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Economia ·
História Econômica
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FRANÇOIS CHÂTELET OLIVIER DUHAMEL ÉVELYNE PISIER HISTÓRIA das IDEIAS POLÍTICAS ZAHAR E sta história das ideias políticas apresenta deliberadamente um caráter particular Não tendo como objeto um saber prático estrita mente delimitado não poderia ser uma justaposição de fichas memotécnicas so bre os grandes autores ou as obras mais importantes Em vez de uma sucessão de informações optouse por uma reflexão de conjunto O apoio mais eficaz da memória é a com preensão para compreender por exem plo o bolchevismo será que basta saber que Trotski originariamente menchevique aproximouse de Lênin e que ambos marxistas dirigiram com êxito uma in surreição em 1917 Não é mais útil des cobrir que em 1905 Trotski adotou uma concepção ditatorial da revolução de fendendo ao mesmo tempo uma organi zação democrática do partido enquanto Lênin defendia um partido militarizado mas uma ditadura democrática E que em 1917 Trotski aderiu à concepção le ninista do partido e Lênin à concepção trotskista da revolução Que o acordo portanto de um lado e de outro foi feito em torno da escolha da solução ditato rial em detrimento da solução demo crática Isso não pode ser exposto sem referência aos textos às citações quando necessárias e ao conteúdo das argumen tações que são eles mesmos função do contexto histórico O presente trabalho se esforça para siste matizar de modo claro as principais dou trinas que marcaram o desenvolvimento do pensamento político de Platão a Mao e de Aristóteles a Foucault agrupandoas em capítulos cujos títulos já são signifi cativos das emergências conceituais que desempenharam um papel decisivo no devir político das sociedades o Príncipe Estado o EstadoNação o EstadoSocie dade o EstadoGerente o EstadoPartido o EstadoForça a NaçãoEstado o Estado Cientista finalizando com o Estado em Questão no qual se aprofunda a análise das questões do totalitarismo da história do poder e do próprio Estado FRANÇOIS CHÂTELET Foi professor de Filosofia na Universidade de Paris vm Obras publicadas no Brasil História da Filosofia em 8 volumes As Concepções Políticas do Século xx Uma História da Razão e Hegel OLIVIER DUHAMEL Professor na Universidade Sciences Po EVELYNE PISIER Professora emérita na Universidade de Paris r HISTÓRIA DAS IDEIAS POLÍTICAS François Châtelet Olivier Duhamel Évelyne Pisier HISTÓRIA DAS IDEIAS POLÍTICAS Tradução Carlos Nelson Coutinho Minha Impalável Biblioteca ZAHAR Título original História des idées politiques Sumário CAPITULO Ili o ESTADONAÇÃO 80 As Revoluções Americana e Francesa Doutrinários Partidários e Adversários 81 Significação da Revolução na América do Norte A Revolução na França a nação contra a tirania Sieyes A NaçãoPátria a vontade do povo como fun damento da República Robespierre SaintJust A República como unidade do povo e administração do território Aspectos dos juízos contemporâneos sobre a Revolução na França Burke J de Maistre O Nacionalismo na Europa 89 Uma metafísica da Nação JG Fichte O nacionalismo e a função da história A Thierry Michelet von Ranke Do nacionalismo filantrópico à ideologia conservadora da Nação Mazzini Taine Renan As doutrinas da expansão nacional e o imperialismo O Liberalismo Político Benjamin Constant o liberalismo contra a democracia Alexis de Tocqueville a democracia liberal CAPITULO IV o ESTADOSOCIEDADE 108 A Ciência como Instrumento e a Natureza como Modelo da Ordem Social 109 As metamorfoses do utilitarismo de Bentham a Stuart Mill O espírito po sitivo a ciência da sociedade como instrumento e garantia do progresso na ordem Auguste Comte A dogmática evolucionista o sistema de Herbert Spencer O Marxismo de Marx e Engels 116 Da crítica do Estado burguês à definição do ponto de vista materialista Dos Centros de Correspondência Comunista à crítica da economia política A crítica da economia política o Capital como fundamento da sociedade bur guesa Do Manifesto Comunista à fundação e à posterior dissolução da Asso ciação Internacional dos Trabalhadores Os Socialistas Utópicos 130 Socialismo e utopia A ode a Fourier A Sociedade Fora do Estado de Max Stirner ao Anarcossindicalismo 138 O individualismo e os paradoxos do niilismo de Max Stirner a Netchaiev A capacidade política das classes operárias segundo PJ Proudhon Do anar quismo libertário de Bakunin ao anarcossindicalismo CAPITULO V o ESTADOGERENTE 149 A Ideia de Gerência 149 O Humanismo 152 Do humanismo ao Estado de direito A inspiração cristã O humanismo re publicano O socialismo humanista O Pluralismo 161 Hesitações cristãs O democratismo poliárquico O socialismo pluralista O Reformismo 169 Da caridade à prevenção do risco social Rumo ao controle social Sobre o fim das ideologias CAPITULO VI o ESTADOPARTIDO 181 A Crítica do Estado Burguês 183 Um sistema de exploração econômica A crise do capitalismo o revisionismo de Bernstein A Revolução Mundial Rosa Luxemburgo A etapa imperialista Lênin Socialismo soviético e imperia lismo Stálin O pósStálin o capitalismo monopolista de Estado Um sistema de dominação política Reflexos e ideologias Bernstein O Estado hegemonia revestida de coerção Gramsci O gramscismoleninismo Althusser e Poulantzas A Gênese do Estado Socialista 199 A extinção do Estado A Revolução Bolchevique Plekhanov Trotski Lênin A teoria leninista do Par tido Lukács Trotski Lênin A ditadura do proletariado o Estado e a Revolução O fortalecimento do Estado De Lênin a Stálin Trotski Zhdânov Stálin A crítica do stalinismo Luxem burgo Trotski Djilas A desestalinização Kruschev Togliatti Dissidências CAPfTULOVll o ESTADOFORÇA 221 A Direita Contrarrevolucionária do Nacionalismo ao Racismo 222 O nacionalismo integral Maurras O racismo préfascista Drumont Maur ras Valois FascismosNazismos Interpretações 230 A explicação culturalista A explicação pelo totalitário Hannah Arendt Frie drich A explicação econômica Bettelheim Guérin Poulantzas A explica ção psíquica Reich Horkheimer Fromm As explicações sociológicas Lip set Moore A Bioideologia do Darwinismo Social à Sociobiologia 246 O darwinismo social Darwin Taine Le Bon O biohistoricismo List Go bineau Rosemberg A sociobiologia CAPfTULOVlll A NAÇÃOESTADO 253 Os Impérios 253 Imperialismos O colonialismo Disraeli Spencer O socialinternacionalismo Marx e a Nação A Segunda Internacional e a superestimação da questão social Luxemburgo Kautsky A Terceira Internacional a superestimação da questão política Lênin Stálin As Novas Nações A identidade A identidade perdida a alienação Césaire Fanon A unidade reencontrada as solidariedades Guevara Senghor A identidade nova a idiossincrasia so cialista A luta armada O princípioviolência A guerra popular Mao Zedong O foquismo Castro Guevara O povo A primazia da ideologia Nkrumah Kadhafi Guevara Mao Populismos Perón Nasser Castro O religioso Do judaísmo ao sionismo Herzl Do Islã ao islamismo Afghani Khomeini Kadhafi CAPITULO IX o ESTADOCIENTISTA 266 302 Uma Ciência da Sociedade 302 Ciência e sociedade Durkheim ou a explicação social Max Weber ou a ne cessidade do sagrado Vilfredo Pareto ou a propaganda pelo fato Eric Weil ou a política da razão A Ciência como Força Social 313 A organização do trabalho Taylor Lênin e o taylorismo James Burnham a irresistível ascensão dos gerentes JK Galbraith Onde você trabalha A ideologia tecnoburocrática Os juristas o direito e o EstadoCientista 320 Léon Duguit o socorro da sociologia Hans Kelsen o Direito o Estado e a norma Pashukanis e Vichinski a degenerescência da teoria marxista do direito As Teorias do EstadoCientista 325 Deutsch e Easton a pilotagem sistêmica Raymond Aron a teoria da socie dade industrial A Escola de Frankfurt a contestação do EstadoCientista CAPfTULOX o ESTADO EM QUESTÃO 331 A Questão do Totalitarismo 332 O enfoque liberal o totalitarismo como acidente superado Sartori Aron Investigações críticas o totalitarismo como virtualidade permanente Reich Arendt A Questão da História 338 Sobre a tirania StraussKojeve Comunismo e sentido da história Sartre MerleauPonty O estruturalismo e a dissolução da história LéviStrauss A história indeterminada Castoriadis A Questão do Poder 346 Rebeliões FreudMarcuse O poder como estratégia Foucault As mega máquinas do poder DeleuzeGuattari Niilismos Lyotard Baudrillard A Questão do Estado 360 Por que a obediência La Boétie Lefort Clastres As armadilhas da teolo gia Legendre A dívida em face do divino Gauchet Servidão e liberdade Lefort índice analítico e onomástico 371 Apresentação Esta história das ideias políticas apresenta deliberadamente um caráter par ticular Não tendo como objeto um saber prático estritamente delimitado não poderia ser uma justaposição de fichas memotécnicas sobre os grandes autores ou as obras principais Ao contrário e precisamente para responder ao objetivo da coleção 1 mas respeitando ao mesmo tempo a matéria de que trata não seria preferível dotar alguns traços habitualmente reservados aos manuais Nenhum plano detalhado mas um conjunto redigido apoiado em citações longas quando necessário não uma sucessão de informações mas uma reflexão de conjunto O apoio mais eficaz da memória é a compreensão para compreender por exemplo o bolchevismo será que basta saber que Trotski originaria mente menchevique aproximouse de Lênin e que ambos marxistas diri giram com êxito uma insurreição em 1917 Não é mais útil descobrir que em 1905 Trotski adotou uma concepção ditatorial da revolução defendendo ao mesmo tempo uma organização democrática do partido enquanto Lênin defendia um partido militarizado mas uma ditadura democráticà E que em 1917 Trotski aderiu à concepção leninista do Partido e Lênin à concep ção trotskista da revolução Que o acordo portanto de um lado e de outro foi feito em torno da escolha da solução ditatorial em detrimento da so lução democráticà Isso não pode ser exposto sem referência aos textos e ao conteúdo das argumentações que são eles mesmos função do contexto histórico O presente trabalho se esforça para sistematizar de modo claro as prin cipais doutrinas que marcaram o desenvolvimento do pensamento político Elas são agrupadas em capítulos cujos títulos já são significativos das emer gências conceituais que desempenharam um papel decisivo no devir político 1 Tratase da coleção Mémentos Thémis publicada por Presses Universitaires de France Pa ris NT 11 12 História das ideias políticas das sociedades Ele constitui não um resumo mas um condensado do ma nual de História do pensamento político a coleção Thémis cujo segundo tomo foi publicado em julho de 1981 sob o título As concepções políticas do século xx2 e cujo primeiro tomo será publicado sob o título As concepções políticas clássicas e modernas Evocar em 400 páginas a história das ideias políticas de Platão a Mao Zedong e de Aristóteles a Foucault constitui um desafio que só pôde ser tentado com fundamento nas 2 mil páginas do citado manual portanto será frequentemente necessário ao leitor preocupado em aprofundar os pontos expostos neste trabalho remeterse à referida Histó ria do pensamento político Poderá fazêlo tanto mais facilmente na medida em que este livro adota o mesmo eixo geral de reflexão a problemática da constituição do Estado já que o Estado tornouse a referência primordial das diversas concepções políticas Assim como o manual esta obra se esforça para subordinar a cronologia à lógica pondo assim em evidência o fato de que os grandes textos políti cos são ao mesmo tempo invenções construções autônomas e respostas aos problemas postos pelo tempo em que foram escritos Na verdade este me mento comporta dez capítulos 2 Ed brasileira Zahar Editores Rio de Janeiro 1983 NT CAPÍTULO 1 Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais A CI DADE G R EGA Uma das fontes principais do pensamento político moderno na área cultural mediterrâneoeuropeia é sem nenhuma dúvida a civilização grega clássica a outra fonte são os textos sagrados do povo judaico e sua reativação pela cristandade e o Islã cf adiante I 3 Entre os produtos marcantes do que é chamado de milagre grego para designar o conjunto das invenções institucionais literárias artísticas cientí ficas teóricas técnicas o mais característico é essa forma política original que é a Pólis a Cidade Quando essa se constituiu durante o século VI aC as organizações políticosociais tradicionais eram na civilização da Hélade realezas de tipo feudal onde predominavam grandes famílias os bemnas cidos que exerciam sua autoridade política religiosa jurídica e econômica sobre um pequeno povo de agricultores artesãos e pescadores e nas terras bárbaras vastos impérios comandados por um déspota que impunha uma dominação absoluta apoiado em castas militares sacerdotais e técnicoad ministrativas Durante a época feudal da Grécia violentos conflitos opunham por um lado as grandes famílias entre si e por outro essas às populações dos campos e das cidades cidades que iam se tornando cada vez mais numerosas e ativas Esses conflitos tornaramse tão violentos que em vários territórios as partes envolvidas concordaram em solicitar a um personagem reputado por sua sabedoria e seu desinteresse que fixasse regras para o jogo social Foi o que ocorreu em Atenas onde por volta dos anos 600 ae Drácon e Sólon sucessivamente foram encarregados de enunciar os princípios orde nadores das relações entre os membros da coletividade Esses legisladores nomotetas assumem a tarefa menos de instaurar uma Constituição do que de definir os enunciados fundamentais conhecidos de todos determinando com precisão a participação de cada um na defesa e na gestão das questões 13 14 História das ideias políticas comuns da Cidade as instâncias de onde devem provir as decisões que en volvem a coletividade a arbitragem dos conflitos e a punição dos crimes e dos delitos Assim regras costumeiras no mais das vezes deixadas à interpretação de tribunais que julgam em segredo são substituídas por textos claros e pú blicos as leis Devese sublinhar o fato de que a obra essencial de Drácon foi exigir que os juízes tornassem publicamente conhecidos os argumentos que legitimavam suas sentenças E em meados do século IV aC quando o historiador Heródoto quer explicar a vitória da Grécia sobre os Bárbaros quando das duas guerras médicas ele põe em evidência a superioridade dos cidadãos combatentes que não têm outro senhor além da Lei e que coman dam a si mesmos em comparação com os guerreiros do Império Persa que obedecem a um homem e não têm outras motivações além do interesse e do temor A Lei como princípio de organização política e social concebida como texto elaborado por um ou mais homens guiados pela reflexão aceita pelos que serão objeto de sua aplicação alvo de um respeito que não exclui modi ficações minuciosamente controladas essa é provavelmente a invenção po lítica mais notória da Grécia clássica é ela que empresta sua alma à Cidade quer essa seja democrática oligárquica ou monárquicà A Cidade como lugar natural da sociedade dos homens Quando no início de A Política Livro I 2 1252 a 241253 a 37 Aristóteles quer definir a Cidade ele a opõe a duas outras formas de agrupamento animal a família que reúne os indivíduos do mesmo sangue e a aldeia que agrupa os vizinhos em função do interesse Nos dois casos o objetivo é a sobrevivência A Cidade por seu turno tem como fim o eu Zein o que significa Viver como convém que um homem viva Essa definição se esclarece quando se sabe que em outros textos Aris tóteles especifica por um lado que o homem não é nem uma besta nem um Deus que é um meio entre esses extremos e por outro que faz parte da essência dele ser um animal que possui o logos ou seja a capacidade de fa lar de maneira sensata e de refletir sobre os seus atos Desse modo a famosa fórmula o homem é um animal político polis cidade Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais 15 significa que somente na Cidade organização fundada não sobre a força bruta não sobre interesses passageiros não sobre as prescrições dos deuses é que o homem pode realizar a virtude a capacidade inscrita em sua es sência Essas análises de Aristóteles cabe sublinhar apresentam o aspecto principal da concepção grega clássica Essa se caracteriza por outros aspectos igualmente importantes que é preciso conhecer se quisermos compreender a significação e o alcance das outras invenções políticas feitas pela Grécia os gregos consideram geralmente que a sociabilidade é produzida pela natureza e portanto que não se trata de fundála mas de ordenála eles imaginam de bom grado uma idade de ouro préhistóricâ na qual os deuses apascentavam diretamente os homens diz Platão que teria sido submergida por um cataclismo levando assim a um estado patriarcal se eles desenvolveram discursos históricos não possuíam de nenhum modo a ideia cristã e póscristã de um decurso da história linear e do tado de um sentido a representação do tempo que domina é a do ciclo que faz reaparecer as mesmas situações a noção de um progresso global está excluída a de uma acumulação das riquezas suscita a maior desconfiança o trabalho material é concebido como algo que deprecia e somente a ativi dade do lazer scholê é produtiva a humanidade como espécie é compreendida como a mais elevada do gê nero animal participando da animalidade por sua sensibilidade e do di vino por sua capacidade de raciocinar no seio dessa espécie a natureza produz ethnai dos quais o divino está ausente e que são naturalmente escravos É um excesso hybris tão grande querer ser um deus como agir como animal o grego por sua situação geográfica e sua cultura paideia considerase como privilegiado quanto à possibilidade de realizar a vir tude do homem a Cidade como comunidade consciente é precisa mente a forma política que permite a explicitação dessa virtude Somente ela permite à coletividade instaurar uma ordem justa e ao indivíduo viver de tal modo que atinja a satisfação legítima sob o império das leis Resta determinar em que consiste essa ordem e que satisfação ela pro mete A democracia Heródoto apresenta uma classificação dos regimes políticos que irá se tornar célebre História III 802 16 História das ideias políticas O bom regime é aquele no qual comanda apenas um a monarquia que governa para sua glória e a de seus súditos Ou aquele no qual comanda uma minoria a oligarquia constituída de cidadãos reconhecidos como superiores por seu nascimento sua riqueza sua competência religiosa ou militar Ou aquele onde comanda a maioria a democracia maioria constituída pela população dos camponeses dos artesãos dos comerciantes dos mari nheiros A contribuição singular de Atenas consiste em ter respondido pratica mente instaurando esse último regime e sobretudo inventando uma outra definição da democracia No final do século VI aC e durante a segunda metade do século se guinte o poder democrático realizou uma série de reformas que estenderam o estatuto de cidadãos plenos à totalidade dos habitantes masculinos nasci dos atenienses assegurandolhes assim a igualdade diante da lei isonomia e o acesso às magistraturas É instituída uma centena de municipalidades agrupadas em dez tribos que são administradas por um conselho que com preende todos os cidadãos nelas englobados O poder central é exercido pela Assembleia Popular que reúne todos os cidadãos dez vezes por ano e nas circunstâncias graves é ela que toma as decisões soberanamente adota de cretos elege os magistrados encarregados do executivo designa de seu seio os membros das câmaras de justiça e o faz por maioria todo cidadão tendo direito de palavra As magistraturas executivas dos estrategistas aos ins petores dos mercados são colegiadas limitadas e necessitamse de sérias razões para que um magistrado seja reeleito para suas funções Decerto as desigualdades devidas à condição social não são completamente apagadas mas essa organização cívica que põe o poder no meio e recusa que ele seja apanágio de alguém visa a conjurar não somente o aparecimento de um tirano mas também a instalação de uma casta ou de uma classe separada da sociedade e que se aproprie do poder político Até os anos 430 ae o êxito da democracia foi grande tanto na harmo nia de seu funcionamento interno como na ampliação de sua expansão ao exterior Com as derrotas sofridas na guerra contra Esparta iniciase uma crise que está na origem das mais significativas reflexões políticas surgidas no pensamento grego Entre essas devemse considerar como exemplares a de Tucídides e a de Platão Na História da Guerra do Peloponeso Tucídides que constata a dege nerescência do regime democrático incapaz de conduzir a guerra e de gerir Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais 17 seus problemas internos constrói um monumento a Péricles O que ele compreendera e seus sucessores haviam esquecido é que a democracia o melhor dos regimes políticos por garantir a isonomia e assegurar as liber dades privadas exige uma constante atenção de todos os cidadãos Ela só subsiste se os dirigentes que o povo escolheu não deixarem nunca de calcular e de refletir sobre suas decisões Regime de liberdade que leva aos grandes empreendimentos ela entra em colapso quando esses não são conduzidos somente pelo princípio da inteligência o nous do intelecto calculador que não apenas elabora estratégias de prudência mas visa também a não lesar nem favorecer nenhum dos grupos constitutivos da coletividade De modo inteiramente contrário Platão refletindo ou utilizando a seu modo o ensinamento de Sócrates desenvolve uma crítica bastante viva da democracia No essencial essa crítica se baseia nos seguintes argumentos A massa popular oi polloi é assimilável por natureza a um animal escravo de suas paixões e de seus interesses passageiros sensível à lisonja incons tante em seus amores e em seus ódios confiarlhe o poder é aceitar a tira nia de um ser incapaz da menor reflexão e do menor rigor Quando a massa designa seus magistrados ela o faz em função das compe tências que acredita ter constatado em particular as qualidades no uso da palavra e disso infere irrefletidamente a capacidade política Quanto às pretensas discussões na Assembleia são apenas disputas con trapondo opiniões subjetivas inconsistentes cujas contradições e lacunas traduzem bastante bem o seu caráter insuficiente Em suma a democracia é ingovernável o exemplo de Atenas prova uma cidade que perdeu a guerra contra Esparta e condenou Sócrates à morte Sua desordem leva à tirania e induz todos à imoralidade A refutação é banal mas o argumento que a apoia coloca um problema político capital o da rela ção entre Saber e Poder Saber e Poder Tucídides reprovava nos demagogos que se haviam apossado da democracia o fato de não conduzirem a ação política segundo as regras de uma reflexão rigorosa Platão é mais exigente prolongando a crítica radical realizada por Sócrates mediante a implementação do projeto de um Saber indubitável ele estabelece a tese segundo a qual a definição da ordem da Cidade justa supõe uma ciência do político que é ela mesma parte de um Saber mais amplo o Saber do que na verdade é Assim a recusa da democracia pressupõe a re 18 História das ideias políticas futação dos princípios nos quais esse regime se funda princípios de que os sofistas foram os portavozes Os sofistas assim são designados os professores de retórica que se insta laram na jovem democracia ateniense para ensinar aos cidadãos como falar de modo persuasivo a fim de fazer triunfar sua causa diante dos tribunais e suas ideias nas instâncias políticas Como o papel do discurso era decisivo eles foram efetivamente os mestres da democracia A arte deles era antes de mais nada formal ensinavam seus alunos a técnica oratória o bom uso dos argumentos a hierarquia dos efeitos Mas tornaramse também os de fensores da novidade retiram de bom grado suas provas da experiência histórica das descobertas artesanais dos trabalhos dos físicos e dos médi cos que eles mesclam com referência às lendas tradicionais da Grécia com o Panteão religioso Todavia por trás dessa prática revelase uma concepção mais profunda quando Protágoras declara que o homem é a medida de todas as coisas afasta essa tradição afirma que a Cidade é o produto do ato dos homens e que as leis resultam de convenções Na mesma óptica Crítias chegará a afir mar que os deuses são criações dos governantes para dar estabilidade à or dem social Para legitimar o regime democrático Protágoras reinterpreta à sua maneira o mito de Prometeu ele diz que os deuses que distribuíram desigualmente o talento entre os homens deulhes para compensar a sua fraqueza em comparação com os animais a todos igualmente a capacidade de julgar o bem comum cf para todos esses pontos os diálogos Protágoras e Górgias de Platão Novamente é reafirmada a preeminência do homem que não tem outro juiz além dele próprio É contra essas teses que segundo Platão a reta filosofia deve se dirigir em nome do que é divino no homem Essa filosofia não tem dificuldade em mostrar que se se tomar a sério a sofística bloqueiase qualquer possi bilidade de enunciação duradouramente válida e por conseguinte qualquer política coerente Uma tal política só pode ser fundada num conhecimento exato da ordem das coisas Tudo se passa portanto como se o filósofo dispu sesse de uma alternativa ou a concepção dos sofistas e mais geralmente dos amantes da terrà é correta caso em que é preciso optar pela democracia e por seu aborto a tirania com seu cortejo de violências de injustiças e de servidões Cálicles personagem do Górgias 1 que sintetiza os traços dos sofistas mais resolutos Ao contrário de sua maneira habitual Platão não põe em cena sob o nome de Cálicles um personagem histórico Decerto sob essa denominação ele construiu o tipo por excelência do inimigo da reta filosofia Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais 19 retira a consequência do caráter convencional da lei por exemplo se a lei nomos não é garantida por uma ordem qualquer a dos deuses ou da na tureza physis então cada um está no direito de agir com o objetivo de satisfazer livremente seus impulsos naturais de pretender ser tirano ou existe uma ordem superior que não é falsa ordem da natureza ou dos deuses tradicionais que só pode ser apreendida pelos que se esforçam no sentido de domar os próprios apetites sensíveis e de exercitar o olho da alma através de uma educação sistemática do logos da atividade dis cursiva esses verão se esboçar no mundo intelegível o esquema da Cidade perfeita que corresponde ao da alma individual bem regrada e à distribui ção cósmica dos caracteres humanos Esse esquema é o seguinte uma classe de cidadãos deve prover as neces sidades materiais da coletividade sua virtude é trabalhar e obedecer perten cem a essa classe que o cosmos fez nascer com uma alma na qual predomi nam os apetites Uma outra tem como missão rechaçar os inimigos e garantir a segurança interna sua virtude é a impetuosidade e a disciplina é composta pelos indivíduos cuja alma é orgulhosa e corajosa Finalmente uma outra garante a autoridade soberana e gere a coletividade é constituída pelas na turezas filosóficas pelos filhos das Ideias que provaram pelo exercício e pelo estudo sua capacidade para saber e portanto para comandar Uma tal organização supõe que os homens e as mulheres sejam igualmente cidadãos e que os bens e os filhos sejam comuns ou seja supõe o aniquilamento da família que o filósoforei proceda graças a seu saber às melhores combi nações eugênicas e à seleção que permita a classificação de cada cidadão na classe adequada à sua natureza As Leis propõem um programa político que atenua amplamente a rigi dez desse modelo Sugeriuse que a República onde tal modelo é exposto seria talvez uma fábula moral Resta o fato de que a Callipolis permaneceu como o tipo por excelência da Utopia racionalista que em nome da per feição submete o Poder ao Saber e a organização social às exigências da Ordem unificadora O cidadão na Cidade A política platônica rompe tão fortemente com a representação grega da Ci dade que não provocou admiração em seu tempo A reflexão política reagiu contra ela e contra a irrupção de demagogia que se alastrou por todas as 20 História das ideias políticas cidades no século IV ae Xenofonte também discípulo de Sócrates es forçouse por restaurar o ideal de um poder que apoiandose na tradição religiosa gerisse a coletividade como um pai governa seu lar Isócrates con siderava que a desgraça das Cidades gregas provinha de sua divisão e bus cou uma autoridade que as confederasse mantendolhes a autonomia desse modo anunciou a suseranià que iriam exercer Filipe da Macedônia e Ale xandre o Grande Entretanto a reação mais interessante é a de Aristóteles Ele adota a posição filosófica a que considera indispensável a referência às Ideias mas considera que a utilização feita por Platão dessa referência é ineficaz e peri gosa Assim como a morte injusta de Sócrates foi o evento que desencadeou a vocação de Platão do mesmo modo o fracasso empírico de Platão sua in capacidade de convencer Dionísio de Siracusa determinou para Aristóte les uma interrogação que estará na origem de uma concepção política ainda hoje viva Seu projeto é não apenas o de tornar a filosofia praticável no seio da Cidade tal como ela é mas também de darlhe credibilidade como instru mento teórico capaz de determinar para cada cidade e em geral qual a me lhor Constituição e quais as virtudes e capacidades exigidas dos cidadãos Esse projeto implica uma defesa e uma reabilitação da Cidade real con tra todos os seus detratores tanto contra os discípulos dos sofistas que como Cálicles exaltam o individualismo como contra os utopistas que sonham com um retorno à tradição monárquicà ou inventam um modelo que incita à implantação de um poder que exerça uma autoridade coercitiva e ilimitada Contra os primeiros ele faz valer as exigências da sociabilidade natural condição necessária para uma existência feliz e virtuosa contra os segundos e em particular contra Platão exalta o ideal realista da Ci dade que faz da liberdade dos cidadãos a condição prévia de toda organiza ção justa A crítica da Callipolis é de extremo vigor a comunidade dos bens das mulheres e dos filhos se opõe à natureza e desconhece o fato de que se a Cidade é a unidade de uma multiplicidade ela é feita de pequenos grupos e de indivíduos que são distintos uns dos outros e se apegam à sua distinção O erro de Platão é querer reduzir seres diferentes à igualdade aritmética e aplicar autoritariamente uma proporcionalidade geométrica à ordem social quando nesse domínio opera uma contingência que torna impossível a apli cação estrita do raciocínio científico Mas o essencial da crítica referese ao governo dos filósofos Aristóteles está convencido da excelência da filosofia Mas portavoz da tradição cívica grega ele considera que é um erro atribuir o poder definitivamente a uma parte do corpo social sem que nada o limite A separação dos cidadãos em Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais 22 História das ideias políticas 0 IM PÉRIO ROMANO Com ele segundo Hegel começa a prosa do mundo Seria leviano interpre tar essa fórmula de modo pejorativo se é verdade que a civilização romana não teve a riqueza de invenção da grega soube transportar para o real ideias elaboradas por essa e construir instituições de uma eficiência incontestável Seu prosaísmo é antes de mais nada um sentido constante do fato consu mado e de sua inscrição nas estruturas coletivas O pragmatismo do pensa mento e da prática política romanas não aceita o compromisso e a oportu nidade a não ser na medida em que concordem com a tradição de grandeza e potência da cidade de Rômulo Os enunciados jurídicos e as legitimações filosóficas intervêm como quadro como marca e como perpetuação da ação fundadora da comunidade cívica Assim o direito a res publica e o imperium atuam enquanto instituem a ordem militar e administrativa estabelecida de fato pelo Povo e pelo Senado As virtudes republicanas Mesmo na época do pior despotismo imperial Roma sempre se proclamou republicana Esse semblante parecia indispensável ao seu poder Ela trans formouse em si mesma somente quando se desembaraçou do arcaísmo re presentado pela realeza e definiu o direito O direito quando por volta de 450 aC os decênviros fizeram gravar a Lei das Doze Tábuas estava constituída a base do Direito romano Seu objeto é em primeiro lugar a família O cidadão o homem livre é o pater fami lias senhor absoluto da casá cabelhe representar junto aos juízes quando julgar que ele próprio os seus ou suas propriedades sofreram algum dano bem como exigir as reparações e penas adequadas Quando o direito se enriquece com prescrições cada vez mais numerosas e precisas quando se estende aos peregrinos depois a todos os que adquirem o direito de ci dadania ele forma um código estrito regulamentando o conjunto da vida social e definindo as liberdades e os deveres de cada um Será preciso ver nisso uma expressão da concepção estoica que reconhecendo a existên cia de uma ordem do mundo inelutável e racional considera a submissão tranquila ao destino como a única virtude É significativo que esse código tenha como objetivo principal regulamentar do modo mais claro e equâ nime possível o que é e não propor um deveser Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais 23 Paralelamente afirmavamse as Instituições Republicanas A sigla que as designa SPQR Senatus Populusque Romanus assinala que o poder que nelas se exerce é pelo menos duplo O historiador grego romanizado Po líbio 200 aC125 aC analisando a expansão de Roma e a vitória sobre Cartago concluiu pela excelência de uma organização política que soube constituir uma mescla harmoniosa de três regimes O pensamento de Po líbio é amplamente tributário da tradição dos filósofos e dos historiado res clássicos combinando habilmente a concepção da história de Platão e sua teoria da decadência com as análises de Aristóteles relativas aos méri tos comparativos das diversas Constituições investigando as retificações sucessivas realizadas pelos romanos em função das circunstâncias e de sua expansão territorial Políbio apresenta a República como sistema que equilibra as vantagens da monarquia asseguradas pela autoridade firme e benevolente dos cônsules da aristocracia realizadas na prudência e na sabedoria do Senado e as da democracia garantidas pelas disposições que têm como objetivo o respeito pelos interesses e direitos do povo Esse equilíbrio é na opinião de Políbio o melhor meio de conjurar a degene rescência inscrita por naturezà nas realidades sujeitas ao devir Por mais edulcorada que seja essa imagem e por mais falaciosa que se revele essa esperança é certo que são ambas constitutivas da ideia que os cidadãos faziam de suas instituições e isso a ponto de mantêlas enquanto as legiões faziam e desfaziam os imperadores Entretanto foi a Cícero 106 aC43 aC que coube o privilégio de de finir os princípios que servem de fundamento para essa Cidade ecumênica universal na qual Roma conquistadora está se transformando Inspi randose nos estoicos Panécio e Possidônio ele considera que existe uma lei natural válida para todos os homens que está inscrita na própria ordem do cosmos tratase de uma lei que podemos conhecer usando a reta razão uma lei imutável e eterna e que deve ser tomada como regra absoluta de toda Constituição e de toda legislação A natureza cosmos que segundo o estoicismo é a mesma coisa que a Razão é assim a norma da organiza ção justa e da ação virtuosa bastaria aprender a conhecer suas incitações e obedecêlas com toda a lucidez para agir como convém Infelizmente maus hábitos e os movimentos passionais nos arrastam para bem longe dos seus ensinamentos Desse modo as legislações de fato aparecem no mais das vezes como produtos dessa ignorância O mérito das instituições romanas contudo con siste em ter definido a comunidade por elas regida com base num vínculo 24 História das ideias políticas jurídico e numa ordem política estritamente determinada Por causa disso a res publica ganha uma outra consistência formada por experiência e por reflexão é também de certo modo e na medida em que a contingência his tórica permite a expressão da lei natural A Cidade ecumênica pode assim ser compreendida enquanto concede progressivamente o direito de cidada nia e faz com que os povos conquistados se beneficiem das garantias do Di reito romano como o núcleo de uma organização universal que faz de cada indivíduo um cidadão do mundo um cosmopolita Sem o querer Cícero prepara a ordem imperial E isso em medida tanto maior quanto retomando o tema da Constituição mista esboça a imagem do princeps do príncipeárbitro tutor e defensor da res publica Dezesseis anos depois da morte de Cícero Otávio Augusto receberá o título de lmperator O imperium romanum O Império como forma política inscrevese no destino de Roma é em seu quadro e graças ao tipo de ordem que ele exerce que a cidade irá reali zar sua virtude e difundir universalmente sua civilização O poder que ele define juntamente com a sacralidade que cedo se lhe acrescentará atualiza de modo exemplar a tripartição das funções sociopolíticas que é caracterís tica segundo Georges Dumézil da cultura indoeuropeia Sob a tutela de César Augusto onipotente equilibramse segundo a hierarquia as três forças constitutivas da comunidade no topo a classe dos sacerdotesreis os senadores os magistrados civis que têm o encargo de se comunicar com os deuses e de administrar a res publica sob a invocação de Júpiter a classe dos guerreiros que defendem a cidade e sob a invocação de Marte estende sua glória Quirino a classe dos agricultores e dos artesãos que proveem as necessi dades materiais Na pessoa de César Augusto encontramse reunidos os diversos atribu tos correspondentes a essas três funções o imperador que é tal porque o consensus o quis é senhor na ordem políticoreligiosa já que detém a potestas administrativa e a auctoritas qualidade moral que lhe permite julgar o que é conveniente ao bem público Génese do pensamento polftico os conceitos fundamentais 25 enquanto imperator é o chefe supremo das legiões finalmente como princeps tem uma espécie de encargo patronal que lhe dá a missão de empreender nos domínios relativos à vida econômica ou artística tudo o que pode contribuir para a felicidade e a honra da cidade A extensão territorial de Roma no Oriente mediterrâneo concorreu para reforçar os aspectos religiosos do poder imperial E ao mesmo tempo em que cresciam desmesuradamente os aparelhos administrativos e militares o Império tornouse o local de uma circulação de capitais de mercadorias e de populações tão intensa e tão diversificada que a vocação ecumênica tende a se perder Nessa situação três problemas políticos fundamentais se colocam Inicialmente um problema constitucional o da sucessão imperial Cir cunstâncias excepcionais presidiram a designação de Otávio Qualquer que tenha sido a natureza desse poder não se poderia questionar o fato de que não foi mantida a ficção de continuidade com a tradição republi cana e que o príncipe não foi eleito ao mesmo tempo pelo Senado pelo Povo e pelas legiões encarregadas de formar um consensus Foi excluído que a filiação real tivesse algum papel mas considerouse normal que o imperador em exercício preparasse a sua sucessão As análises históricas de Tácito constituem uma espécie de meditação razoavelmente pessimista sobre os papéis respectivos do acaso e da necessidade da força bruta e da reflexão da sorte e do azar da descontinuidade e da continuidade no acesso dessa ou daquela personalidade à função suprema Pragmatismo e fatalismo combinamse estranhamente sem prejuízo notável para a potên cia romana enquanto as forças unificadoras predominam sobre os fatores de dispersão Um segundo problema nasce da própria estrutura do poder imperial a onipotência a sacralidade e o tipo singular de legitimidade de fato que a ele se liga engendram nos que exercem esse poder e nos que dele fazem parte uma angustiada reflexão sobre o comando Sêneca 4 aC65 que foi preceptor de Nero e Marco Aurélio que foi imperador de 161 a 180 in terrogavamse na perspectiva definida pelo estoicismo sobre a relação do indivíduo com seu destino e sobre o papel que cada um tem na deci são dos eventos A ideia originária da filosofia clássica grega e do antigo estoicismo de um cálculo racional que permite guiar a conduta é substi tuída paulatinamente por uma doutrina da dignidade que consiste em se conformar com a virtude e em aceitar o destino a despeito da loucura dos homens e da história 26 História das ideias políticas O terceiro problema é mais precisamente político Quanto mais o império se expande tanto mais se multiplicam os fluxos que o atravessam tanto mais a pax romana tornase frágil Pesam ameaças nas fronteiras distantes os povos recémconquistados apresentam o permanente risco de se rebe larem Se permanece em Roma o imperador abandona suas legiões se se bate nas fronteiras perde o controle da rede administrativa Além disso a gestão desse imenso conjunto exige um número cada vez maior de pessoas Os fatores de dispersão tornamse cada vez mais fortes O edito de Cara cala que em 212 concede a cidadania a todos os habitantes do Império não bastará para conjurar os eleitos desintegradores É nessa situação que se desenvolve a pregação cristã na bacia do Me diterrâneo Em 312 o imperador Constantino põe fim às perseguições anti cristãs em 324 ele funda Constantinopla sua capital oriental em 337 morre batizado INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Benveniste E Vocabulaire des institutions indoeuropéennes Minuit 1969 2 vols Cícero Des Lois Les BellesLettres 1968 Des Devoirs in Les stoiciens Dumézil G Mythe et épopée NRF 3 vols 1968 1971 1973 Grenade P Idéologie de limperialisme romain Les BellesLettres 1974 Les stoiciens textos selecionados por E Bréhier NRF La Pléiade 1962 Michel A Les idées politiques à Rome dAuguste à Marc Aurele A Colin col U 1969 Nicolet C Les idées politiques à Rome sous la République A Colin col U 1970 0 MONOTEÍSMO A CRISTAN DAD E E O ISLÃ Os dois eventos importantes do primeiro milênio nessa área da civilização são incontestavelmente o êxito político de duas religiões reveladas a Cristan dade e o Islã Suas visões do mundo parentes e diversas irão marcar dura douramente as ideias e os costumes Uma e outra encontram suas raízes nos textos sagrados do povo judaico reunidos no que se chamou de Velho Testa mento Esses textos têm de original em comparação com a tradição grecola tina o fato de afirmarem a preeminência absoluta de um Deus único pessoal e criador senhor da Lei e a queda do homem que se perdeu por causa dos Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais 27 seus pecados bem como a possibilidade da redenção oferecida por Deus em sua bondade aos homens que quiserem escutálo Ao profundo naturalismo grecolatino esse monoteísmo opõe uma concepção do homem como cria tura que mantém com seu criador relações pessoais espirituais e uma con cepção da comunidade como sendo fundada não num projeto éticopolítico não numa relação jurídica mas numa aliança religiosa Disso resultam sin gulares noções da liberdade e da responsabilidade e portanto da ação histó rica que o cristianismo e o Islã irão reativar cada um a seu modo A Cidade de Deus e a Cidade dos homens Desde seus primeiros séculos o cristianismo põe notadamente através de são Paulo que comenta e ordena a palavra de Cristo um problema deci sivo o da relação entre o crente e a ordem temporal Dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus fórmula feliz mas que desconhece os numerosos casos em que o serviço do imperador entra em conflito com o do Criador São Paulo não deixa de especificar que a obediência civil é uma virtude cristã assim como a submissão aos dados sociais e naturais Todavia no século II o pensador pagão Celso recrimina duramente os cristãos que recusam se submeter aos deveres que cabem aos cidadãos O crente está divi dido dilacerado entre a coletividade a que pertence de fato e a comunidade de fé à qual adere tanto mais dividido quando essa comunidade lhe exige a ação de evangelização A aceitação santa do martírio os delírios eremíticos não podem ser mais do que soluções excepcionais A conversão de Constantino parece conter a possibilidade de uma solu ção para esse problema Ela limitase a institucionalizála O liame de fé exis tente em Roma entre o imperador e o sucessor de são Pedro não implica de modo algum que o poder militar e administrativo se funda com a autoridade espiritual do bispo da cidade sagrada Essa fusão é tanto menos realizável porque por um lado o Império está ameaçado por todos os lados em função da irrupção de povos conquistadores vindos do Leste e tem de assegurar sua defesa militar e por outro lado porque Roma tornase o centro da Igreja instituição que sendo de natureza espiritual nem por isso deixa de de senvolver uma administração hierarquizada e de possuir um poder que não pode deixar de se interessar pelas questões temporais Quando em 410 o rei visigodo Alarico convertido à seita cristã de Ário saqueia Roma santo Agostinho bispo de Hipona compreende que é preciso clarificar a dou trina da Igreja e para isso escreve a Cidade de Deus 413427 História das ideias polfticas Esse texto constitui uma inflexão decisiva do pensamento cristão e marca a cultura europeia Seu objetivo é apresentar uma história geral da hu manidade desde a Criação até o século V submetendo aos critérios da racio nalidade os elementos fornecidos tanto pela história profana grega e latina como pelo Velho e pelo Novo Testamento O fim visado é estabelecer que além das vicissitudes da Cidade dos homens esboçase um desafio muito mais importante o da glória de Deus que se inscreve no devir espiritual da comunidade dos crentes da Igreja A criação o pecado original a aliança de Deus com o povo judaico o sacrifício do Messias a fundação da Igreja são as etapas desse devir sagrado onde se reconhece a Providência divina mas da qual cada um participa segundo suas obras de fé um devir que deve levar à Ressurreição dos corpos e à beatitude Enquanto o pensamento grego aceita como modelo de temporalidade o ciclo do cosmos Agostinho define o tempo como história linear que tem um começo a Criação e um fim a Ressurreição dos justos que é a própria história da humanidade con cebida segundo a fórmula de Pascal como história de um só homem feita de eventos inteiramente singulares e possuindo um sentido ou seja ao mesmo tempo uma orientação e uma significação Desse modo ele estabelece o esquema que doravante se tornará característico das várias filosofias da história inclusive das mais modernas que têm a pretensão de ser as mais materialistas e as mais científicas Tratase para ele de recordar a cada membro da comunidade cristã sua responsabilidade histórica para além dos conflitos terrestres e por ocasião desses importa não apenas trabalhar para a própria salvação através do res peito às regras cristãs de vida mas também assegurar pelo triunfo espiritual da Igreja a glória do Criador Desse modo ele se opõe tanto à concepção grecoromana que coloca como ideal a constituição e manutenção da ci dade feliz e virtuosa quanto à história profética do Velho Testamento substi tuindoas pelo militantismo da fé esclarecido pelo ensinamento de Cristo e pela busca da máxima inteligibilidade A obra dos Pais da Igreja orientase na mesma direção Mais ainda a determinação do dogma que permite perseguir as heresias e legitimar as exclusões abre caminho para o fortalecimento da instituição eclesiástica a qual possuindo uma certeza doutrinária achase em condições de defi nir sua própria legislação interna O Direito Canônico sistema de enuncia dos normativos que regula a conduta do pessoal da Igreja e fixa suas relações hierárquicas e seus tribunais institui no centro da comunidade dos fiéis uma ordem que deve traduzir neste mundo a Lei divina e por isso legifera diretamente ou por diferença para a totalidade dessa comunidade Pierre Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais 29 Legendre Iamour du censeur Essai sur lordre dogmatique Le Seuil 1974 vê nessa autoridade que em nome do Amor de Deus e dos que o represen tam exerce sobre os costumes uma censura rigorosa e aparentemente fun dada a origem formal da concepção do direito e das leis que domina até hoje no Ocidente A esse mesmo estado de espírito que visa a garantir a preeminência da Cidade de Deus ligase a fundação desde o século VI da ordem dos bene ditinos prelúdio de uma floração que irá se expandir a partir do século XI As ordens religiosas em particular as contemplativas formam de certo modo os bastiões do mundo espiritual no seio da realidade temporal Vivendo em autarquia obedecendo a suas próprias regras subtraídas aos tumultos do mundo essas sociedades têm como missão não apenas testemunhar mas também orar orare e trabalhar laborare através da investigação das Sa gradas Escrituras para a maior glória de Deus Na mesma óptica inscre vemse as pregações que do século XI ao XIII foram suscitadas pelas ex pedições militares e pelos movimentos populacionais rumo à Sepultura de Cristo conhecidos como Cruzadas Quaisquer que tenham sido as motiva ções dessas aventuras coletivas econômicas e políticas elas correspon dem também a uma operação do pessoal mais intransigente da Igreja como são Bernardo de Clairvaux visando a lembrar que o serviço de Deus e o triunfo de sua Igreja são o primeiro dever dos príncipes Essa espécie de guerra santâ em que se converteram as Cruzadas foi a ocasião para precisar que a fundação do Islã no século VII na Arábia e seu rápido desenvolvimento no Oriente Próximo no norte da África e até na Espanha foi também objeto de debates de ordem política mas diferentes Com efeito a ação de Maomé cria simultaneamente um espaço religioso e um espaço político que se entrecruzam de tal modo que o fato de perten cer à comunidade dos crentes define imediatamente a inserção política Essa identidade de fundação tem como principal consequência o fato de que não se estabelece uma instituição eclesiástica dotada de um estatuto de autono mia no seio da coletividade e de que o Islã dos primeiros séculos escapa aos conflitos que nos regimes cristãos irão nascer a partir das relações Igreja poder políticosociedade Entretanto precisamente essa situação impõe uma questão crucial com implicações ao mesmo tempo religiosas e políticas quem pode suceder o profeta Se a função profética está definitivamente con cluída resta encontrar a figura central capaz de garantir as tarefas militares e administrativas e de realizar a vocação espiritual e universalista do Islã Para os califas khalifat rasulAllâh sucessor do mensageiro de Deus a con quista o proselitismo guerreiro a jihad guerra santa constituem a solução 30 História das ideias políticas Ela é a prática coletiva que realiza a missão de persuasão religiosa que per mite libertar os pagãos de sua crença idólatra de fazer com que as pessoas do livro os judeus e os cristãos conheçam a própria palavra de Deus de estender a qualidade de membro da Umma comunidade muçulmana reservada originariamente apenas aos árabes aos convertidos Nem por isso deixa de ser verdade que à medida que essa comunidade se estende os antagonismos políticos as discórdias quanto à interpretação do Corão a multiplicação efetiva dos poderes militaradministrativos tracem em seu seio diferenciações que anulam praticamente a unidade originária Poder espiritual e poder tem poral auctoritaspotestas A concepção agostiniana está na origem da chamada teoria das duas espadas que visa a normalizar no Ocidente depois da separação dos dois Impérios que se torna efetiva no século V as relações entre a ordem temporal pró pria dos reinos e em particular o que está chamado a suceder o Império Romano e a ordem espiritual sobre a qual reina o bispo de Roma o papa Formalmente tal como foi exposta pelos papas Gelásio e Gregório o Grande 540604 a teoria é cara somente Deus detém a plenitudo potestatis a po tência suprema todavia no mundo cá de baixo feito de espiritualidade e de materialidade a onipotência delega a dois poderes distintos o cuidado de fazer a ordem divina triunfar ao pontífice a auctoritas a mais alta dignidade ao rei a potestas temporal Cada um é soberano em seu domínio a autoridade do papa em matéria religiosa e eclesiástica é absoluta o poder do rei sobre os seus súditos também o é Cada um deles deveria se satisfazer com isso Mas se não o quiser e romper o equilíbrio tornarseá fonte de conflitos se o chefe da comunidade dos cristãos quiser e puder ele exigirá em vir tude da autoridade religiosa que exerce inclusive sobre os chefes temporais que esses sejam reduzidos à função de braço secular da Igreja se um chefe temporal quiser e puder ele fará pressão sobre o poder espiri tual a fim de utilizar sua autoridade para realizar seus apetites de glória e de conquistas Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais 31 O coroamento de Carlos Magno em Roma em Soo realiza essa segunda eventualidade um monarca piedoso justo e forte toma em suas mãos o des tino da comunidade cristã que lhe deve obediência porque o pontífice ro mano asseguroulhe tal obediência Todavia nos séculos seguintes as riva lidades enfraquecem os poderes temporais e a Igreja afirma sua autoridade administrativa e espiritual então é a segunda interpretação que se impõe O papa Gregório VII humilha o imperador Henrique IV em Canossa 1077 Inocente III e Inocente IV infletem a teoria das duas espadas num sentido que confere a potestas ao papado o qual designa com plena autoridade os executores temporais que lhe convêm Com efeito a resistência a Roma virá não dos imperadores mas dos reinos É enquanto representante de uma co munidade territorial que os chefes temporais irão se opor ao avanço tempo ral do poder da Igreja Romana Esses reis valemse ao mesmo tempo dos direitos costumeiros de origem germânica e de certos aspectos do Direito romano para imporem sua autoridade a seus súditos E o conseguem com tanto mais sucesso na medida em que se afirmam eles próprios como servi dores da comunidade Esse esboço da formação de poderes nacionais a partir do século XI que é mais marcado na Inglaterra e depois na França irá cedo encontrar legitimações e canais tanto teóricos como empíricos Entre as primeiras é significativa a reflexão política de santo Tomás de Aquino 12251274 De certo ela não tem como objetivo deliberado justificar o poder dos reis Toda via contribui de fato contra o agostinianismo para dar peso às comuni dades estabelecidas Rompendo com a perspectiva segundo a qual a Cidade dos homens é diretamente de instituição divina e ligada ao pecado original Tomás estabelece que ela é na ordem da Criação um fato natural Se Deus quer que os homens vivam em sociedade disso resulta que o poder cujo objetivo é assegurar a unidade de uma multiplicidade é uma questão hu mana que faz parte do plano mais geral da Providência e não de um desígnio singular de Deus ou de seu representante Desse modo a definição do bom poder é uma tarefa exclusivamente da Razão E se essa indica que tal poder deve respeitar as prescrições divinas estipula também que é preciso levar em conta o direito inscrito na natureza humana e as vontades da coletividade É desse modo que atingirá seu fim o Bem na medida em que ele é realizável cá embaixo Tem como tarefa facilitar a cada um a realização das virtudes naturais deixando à Igreja o cuidado da Salvação Eterna Para cumprir tal tarefa enunciará leis adequadas também aos costumes do povo sobre o qual se exerce e se esforçará na tradição aristotélica e romana que se liga ao en sinamento de Moisés por estabelecer uma Constituição mista que combine os méritos da monarquia da aristocracia e da democracia 32 História das ideias políticas É significativo que o naturalismo moderado de Tomás de Aquino desen volvido quando da afirmação dos reinos cristãos no século XIII convirja sem que haja a menor filiação com uma investigação correspondente da cultura islâmica do século seguinte expressa na obra de Ibn Khaldun que tem o mérito de acrescentar à consideração da sociedade como fato natural uma reflexão sobre o destino histórico dos povos e das forças que nele se en frentam A Mugaddimah 1377 e a História Universal 13821406 alimenta das por conhecimentos enciclopédicos rompem com o racionalismo abstrato da teoria islâmica empenhamse em descrever minuciosamente os dados reais a fim de descobrir as relações que os regem De certo modo apoiamse numa concepção do devir social antitética àquela na qual se apoiava o pen samento de Agostinho A originalidade de Ibn Khaldun reside na elaboração de uma espécie de inteligibilidade experimental que não deixa de recordar as pesquisas dos sociólogos e historiadores atuais Segundo ele a história con siste numa informação sobre a sociedade humanà E em completa oposi ção à teologia que interpreta o real em função de uma revelação preliminar retira da observação e do raciocínio sobre os eventos critérios que permitem julgar a respeito da veracidade dos relatos históricos É o caso por exemplo das noções operatórias de umrân sociedade por oposição a Estado e de açabiyyah solidariedade espírito de grupo Esse êxito metodológico decerto não é dependente da atividade política de Ibn Khaldun num Islã dilacerado por rivalidades temporais cada vez mais violentas Rumo ao Estado laico e à ética profana Enquanto no seio da ordem cristã o papado afirma incessantemente por exemplo com Bonifácio VIII uma primazia da autoridade espiritual que implica a subordinação dos poderes temporais impõese nos reinos uma prática jurídica e administrativa que garante a autonomia de um poder que se exerce em virtude de princípios profanos o poder real Devese ver nisso uma ressurgência do Direito romano ou a influência da tradição germânica Não será o caso ao contrário de interpretar o fato como uma invenção dos elementos que estão na origem da modernidade Muito cedo na GrãBre tanha surgem instituições que tendem a impor uma jurisdição única sobre o conjunto do território real fundada sobre o que já se deve chamar de di reitos da pessoà na França a partir do século XIII o rei e os legisladores empenhamse em destruir as cidadelas feudais e religiosas que contestam a preeminência do poder central Em todo o Ocidente cristão operase uma Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais 33 transformação da natureza do poder os laços pessoais organizados em torno da ideia de suserania são progressivamente substituídos por uma hierarquia jurídicoadministrativa centrada num princípio que anuncia a própria noção moderna de soberania A autoridade real não mais se exerce sobre um patri mônio povoado por populações protegidas ou assistidas mas sobre um ter ritório cujos habitantes possuem cada vez direitos e deveres bem definidos o próprio monarca que comanda os seus súditos de modo absoluto não pode infringir as regras que editou ou com as quais concordou Sem dúvida a tradição feudal bem como as resistências clericais reto mam incessantemente em seu favor as conquistas dessa primeira configu ração do Estado de direito O extraordinário mérito de Marsílio de Pádua que publica em 1324 o Defensor da Paz consiste em definir a partir dessa tendência geral o que irá ser o Estado laico no sentido do cristianismo Seu objetivo confessado é certamente mais limitado defender as pretensões ao poder universal de um imperador alemão e polemizar contra a teocra cia romana seus princípios e sua argumentação pertencem aparentemente de modo integral à óptica tomista Todavia o empreendimento é decisivo em primeiro lugar ele interpreta num sentido político a definição natura lista da sociedade a divisão do trabalho tem por fim libertar o homem das necessidades e assegurarlhe uma vida feliz cá embaixo a boa organização da existência profana considerada fundamental é o objetivo da política Em segundo lugar ele considera a sociedade como um todo que enquanto tal é anterior e transcendente em relação a suas partes ela pode ser apenas a universitas civium a universalidade dos cidadãos ou sua melhor parte que tem como função legislar editar as leis necessárias à manutenção do todo ela designa em seu seio um pars principans um príncipe individual ou coletivo que tem a seu encargo a coerção e a gestão Lançouse assim o dispositivo teórico que permitirá o advento do conceito político de sobe rania ou seja o conceito moderno do Estado Paralelamente a essa defesa da autonomia e da unidade radical da sociedade política Marsílio recusa a au toridade papal a Igreja não é mais do que um nome para designar o conjunto de crentes não poderia ter um chefe e os padres encarregados de preparar os cidadãos para a salvação dependem do príncipe tanto quanto os demais cidadãos e isso nos quadros da lei No momento em que se concretiza essa evolução dos reinos vão sur gindo lentamente a partir das práticas da vida coletiva noções novas ou renovadas Assim a ideia de universitas aplicase não apenas à totalidade dos cidadãos mas também aos grupos consensuais unidos em torno de uma ta refa e que obedecem a uma mesma regra do monastério à universidade da comum à guilda ou à hansa constituemse corpos sociais que reivindicam e obtêm o reconhecimento como personae fictae como pessoas morais No interior desses grupos elaboramse técnicas de gestão que substituem as hierarquias tradicionais por relações contratuais Nessa mesma perspectiva o desenvolvimento do comércio e dos negócios torna indispensável uma moralização da atividade mercantil O comerciante como o queria Marsílio adquire direito de cidadania na medida em que participa do bemestar comum A Cidade profana que tinha a força lastreiase de realidade Da ordem sagrada que combatia ela toma de empréstimo para se afirmar regras e princípios Assim a plenitudo potestas tende agora a pertencer ao rei Os múltiplos abalos do período que se designa como Renascimento irão radicalizar essa orientação INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Arquillière HX Saint Grégoire VII Vrin 1934 Bible de Jérusalem Ed du Cerf 1956 Blachère R Introduction au Coran Maisonneuve 1947 Daniélou J e HI Marrou Nouvelle histoire de lÉglise III Le Seuil 1962 De Lagarde G La Naissance de lEsprit laïque au déclin du Moyen Age Ed Béatrice De Vaux R Les institutions de lAncien Testament III 2ª ed 19611967 Flávio Josefo Guerre des Juifs I I Les BellesLettres 1975 Gilson É La philosophie au Moyen Age 2ª ed 1944 Ibn Khaldun Histoire universelle 13771406 Unesco Beirute 19671968 3 vols Marsílio de Pádua Le Défenseur de la Paix 1324 Vrin 1968 O Corão GarnierFlammarion Paucat M La Théocratie LEglise et le Pouvoir au Moyen Age Aubier 1957 Rodinson M Mahomet Le Seuil 1968 Santo Agostinho La Cité de Dieu 41327 Desclée de Brouwer 1959 5 vols Santo Tomás de Aquino Du Royaume 1266 Esloff 1946 Villey M La formation de la pensée juridique moderne Montchrestien 1968 CAPÍTULO l i O PríncipeEstado Do PRÍNCI PE SOB ERANO A partir do início do século XVI produzemse transformações que abalam as sociedades da Europa Ocidental Essas múltiplas e interferentes transfor mações o Renascimento envolvem a as realidades históricas e econômicas extensão e aplicação prática das descobertas feitas durante a Idade Média desenvolvimento da civiliza ção urbana comercial e manufatureira b a imagem do mundo descoberta do Novo Mundo revoluções astro nômicas de Copérnico e Kepler e física de Galileu c a representação da natureza o universal medieval dos signos é substi tuído por uma realidade espacial a conquistar e explorar d a cultura a redescoberta da Antiguidade grecoromana pelos huma nistas suscita um maior interesse pelo homem enquanto dado natural e pelas especulações éticopolíticas e o pensamento religioso a radicalização da contestação do poder e da hierarquia de Roma esboçada no século XIV por J Hus na Boêmia e Wycliff na Inglaterra pelos movimentos que reivindicam cristianismo pri mitivo e se apoiam em especificidades nacionais Esses abalos e os con flitos que os marcam colocam às práticas e às reflexões políticas problemas que essas vão tentar resolver por meio de invenções que estão na origem da modernidade entre as mais marcantes a do Estado como soberania INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA Huizinga J Le déclin du Moyen Age 1948 J Delumeau La civilisation de la Renaissance 1967 P Francastel La Figure et lieu 1970 A Koyré Du monde elos à lUnivers infini 1962 TS Khun La révolution copernicienne 1957 P Mesnard Iessor de la philoso phie politique ou XVI siecle 195i 35 História das ideias políticas O Estado como fundação absoluta Maquiavel Quaisquer que sejam as continuidades ou filiações ideais entre a Antigui dade e a Idade Média por um lado e os tempos modernos por outro o se cretário florentino introduziu uma ruptura decisiva contra as teorias da so ciabilidade natural contra os ensinamentos da Revelação e os da teologia ele afirma porque constata que no que se refere às atividades coletivas o que é é o Estado Foi ele quem deu a esse último termo sua significação de poder central soberano legiferante e capaz de decidir sem compartilhar esse poder com ninguém sobre as questões tanto exteriores quanto internas de uma co letividade ou seja de poder que realiza a laicização da plenitudo potestatis A política como propriedade natural do homem ou como ordem imposta ao mundo cá de baixo é substituída pela política como atividade constitutiva da existência coletiva Essa afirmação da originalidade absoluta do Estado e da autonomia do político fundase no conhecimento que se pode obter tanto das repúblicas e dos principados modernos quanto da história política da Antiguidade Em seus Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio 151219 Maquiavel deduz os ensinamentos trazidos pelo devir dos romanos ensinamentos tão sérios quanto os que se pretendem extrair da interpretação dos textos sagra dos há regras que presidem o governo e que têm a mesma natureza das leis que governam o movimento das estações e nada têm a ver com qualquer tipo de dever moral Ora a história de Roma em sua crueza mas também em sua perenidade e grandeza revela princípios essenciais a unidade política condição da existência social repousa num ato que institui o Estado ato que é o de um legislador que define de uma vez por todas o que é justo e o que é injusto e o pleno exercício do poder Esse ato de instituição é um princípio que deve ser mantido constantemente ou restaurado prontamente se algum revés da fortuna minimizou a força do princípio e isso quaisquer que sejam os meios utilizados pelo legislador ou pelo seu sucessor É preciso observar que o detentor individual ou coletivo do poder de Estado que pode e deve fazer tudo para assegurar tal poder não pode ser assimilado a um tirano Maquiavel faz seu o ódio dos romanos pela tirania que não tem como meta o triunfo do Estado mas o capricho de quem se apoderou dele O príncipe que se apresenta como uma obra de técnica do governo composta em 1513 mas publicada mais tarde organizase em torno dos mesmos temas Maquiavel indaga que conduta deve adotar quem tem como projeto a instauração ou restauração de um principado duradouro forte honrado e feliz Ele se dirige aos Médicis que acabam de retomar o poder O PríncipeEstado 37 em Florença mas tem em vista o chefe que assumisse a tarefa de unificar a Itália sob uma mesma bandeira de libertála das invasões estrangeiras e de pôr fim às rivalidades fratricidas A tradição à qual devemos o uso atual do termo maquiavelismo conservou desse texto somente a apologia que nele seria feita da imoralidade indispensável e por conseguinte legítima que se liga a toda vontade de poder A significação de O príncipe é de outra ampli tude tratase antes de mais nada de mostrar que se se quer o poder é preciso querer a onipotência que essa exige não apenas um ato de fundação absoluta mas também uma resolução que não admite nem fraquezas nem compromissos que as considerações morais e religiosas devem ser afastadas do cálculo através do qual se estabelece ou se mantém o Estado que as coisas são assim ainda em maior medida porque o príncipe é senhor da legislação porque define o Bem e o Mal públicos e por conseguinte no que se refere às questões públicas nem ele nem os cidadãos devem se valer dos man damentos da Igreja ou da tradição moral que nessas mesmas questões a recusa da violência é uma tolice e que de resto cabe distinguir a violência que consertâ daquela que destrói A essas regras gerais deduzidas dos dois princípios do Estado en quanto potência e de autonomia do político Maquiavel aduz aspectos mais técnicos ele insiste por exemplo na incontestável vantagem que constitui para o príncipe um exército nacional Mas sobretudo põe em evidência a natureza estratégica da atividade política a virtu do príncipe qualidade de que se refere ao mesmo tempo à firmeza de caráter à coragem militar à habilidade no cálculo à capacidade de sedução à inflexibilidade tem como inimigos seus adversários mas também afortuna o acaso o príncipe terá sucesso se sabendo avaliar o bom momento conseguir colocálo do seu lado O ensinamento de Maquiavel é pessimista A expressão realista de certo é mais adequada Retomando as lições dos historiadores gregos e la tinos antecipando Hegel o florentino constata que em política reinam a violência a astúcia a vontade de poder se as coisas são assim então é me lhor pôr essas forças a serviço do Bem público e aprender a conhecêlas a fim de utilizálas eficientemente como os meios desse fim legítimo Quanto ao maquiavelismo e à misantropia de que Maquiavel foi acusado será que não significam simplesmente que quaisquer que sejam suas preferências o que exerce o poder não encontra o Bem inscrito em nenhuma parte nem na na tureza nem na sociedade e que tem diante de si ao contrário uma realidade envolvida pelo conflito e pela desordem dos interesses História das ideias políticas INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Gramsci A Notes sur Machiavel in Gramsci dans le texte Ed Sociales 1975 ed brasi leira Maquiavel a política e o Estado moderno Civilização Brasileira Rio de Janeiro 4 edição 1982 Lefort C Le travail de loeuvre Machiavel Gallimard 1972 Maquiavel N Le Prince 1513 in Oeuvres La Pléiade 1962 ed brasileira O príncipe in Os Pensadores volIX Abril Cultural São Paulo 1973 p7120 Discours sur la premiere décade de TiteLive 151219 ibid ed brasileira Comen tários sobre a primeira década de Tito Lívio Editora Universidade de Brasília Brasília 1978 Os dois reinos e a espada tem poral Lutero e Calvino Abril de 1517 o teólogo Karlstadt expõe 151 teses de inspiração agostiniana segundo as quais tudo o que provém da natureza é essencialmente mau e que a salvação depende apenas da ascese individual e da graça de Deus Outubro de 1517 Martinho Lutero expõe 91 teses onde denuncia o tráfico de indul gências por Roma que obtém assim consideráveis ganhos materiais e exerce sobre seus fiéis uma pressão moral iníqua Começa a Reforma defendida pe los príncipes cavaleiros alemães mobilizando um amplo apoio popular ela irá conquistar a Europa Ocidental e provocar um abalo profundo nas ideias instituições e sociedades A inspiração dos reformadores é ao mesmo tempo teológica moral e política A argumentação teológica fundase num retorno ao cristianismo primi tivo à palavra do Evangelho e à pessoa de Cristo denuncia a idolatria ro mana que substituiu o amor de Deus pela adoração de imagens e pela prá tica dos rituais Relembra o dogma tão firmemente estabelecido por santo Agostinho a essência da religião é a Fé da criatura em seu Criador é essa relação profunda e imediata que forma a base da Cidade cristã que é comu nidade de caridade a ordem da Fé é a própria ordem da Graça divina que é insondável A crítica moral toma como alvo a corrupção generalizada do alto clero mais preocupado com o poder com o luxo e o bemestar temporais do que com a piedade e a caridade que joga com as inclinações naturais dos fiéis para exercer uma dominação que nada justifica e que o leva a competir com os príncipes no emprego da violência material e moral Essa crítica se des dobra em polêmica política que é de fato uma polêmica contra a Igreja en O PríncipeEstado 39 quanto instituição política Com efeito é esse o aspecto empírico do pecado cometido contra o espírito divino Roma desconhecendo o ensinamento de Agostinho intérprete fiel de são Paulo refletindo ele mesmo sobre o en sinamento dos Textos Sagrados fez da comunidade cristã uma instituição hierarquizada submetida ao formalismo jurídico e implicando uma admi nistração uma burocracia que tem poder sobre essa comunidade ela orga nizou o Corpo Místico segundo um modelo legado pelos pagãos e inspi rado pelo Diabo Sendo assim a corrupção se introduziu no próprio Reino de Deus corrupção da qual o tráfico de indulgências é apenas uma manifes tação banal O tema dos dois Reinos e de sua heterogeneidade radical é o eixo do pensamento de Lutero Ele irá assumir uma significação política por oca sião dos levantes populares que se produzem na Alemanha a partir dos anos 1520 no contexto da rebelião contra a Igreja Romana estimula dos por pregadores que se inspiram nas comunidades cristãs primitivas que levam a recusa do ritual e da administração eclesiástica até a recusa do Sacramento do Batismo que tem como objetivo a instauração aqui e agora do reino de Deus os camponeses pobres pegam em armas contra a dominação senhorial Thomas Münzer 14901525 que se pretende discípulo de Lutero é o portavoz deles para compreender o Evange lho é preciso experimentálo em toda intensidade do vivido não apenas no mais profundo de sua consciência mas também nos atos Münzer cria uma nova missa em língua alemã durante a qual o ensinamento de Cristo é aplicado às situações atuais já que o pecado de Roma consiste menos em ter feito da Igreja um Estado do que em têlo constantemente associado a Estados que tinham como regra a injustiça e a opressão Em 1524 explode a guerra dos camponeses em 1525 a insurreição é esma gada e Münzer é executado Desde 1523 Lutero fizera conhecer sua posição sobre a revolta num texto teórico o Tratado da autoridade temporal Para compreender bem o seu sentido convém recordar que seu autor quando foi excomungado ex pulso do Império recebera um apoio ativo quase militar dos príncipes e dos cavaleiros alemães Tanto isso é verdade que às razões religiosas e mo rais do sucesso da Reforma juntamse causas ligadas ao desejo de garantir a autonomia da religião nacional contra o ecumenismo exangue de Roma Ora Lutero afirma a completa separação entre os dois reinos o de Deus e o do mundo Essa separação seria tão radical como a que existe entre a Alma e o Corpo na Criação o primeiro é de liberdade de graça e de misericórdia o segundo de servidão cólera rigor e castigo Enquanto a Alma depende ape 40 História das ideias políticas nas de Deus o Corpo envolvido por natureza no pecado deve ser subme tido contido punido pela Providência Divina de acordo com os caminhos por ela escolhidos a ordem temporal dos poderes Desse modo o cristão cuja alma é livre na graça de Deus deve obedecer às decisões dos príncipes e aos golpes da história e da sociedade já que eles fazem parte do castigo da Culpa e fortificam a Alma ávida de salvação Não se deve resistir à espada dos reis Salvo num caso quando esses mandam obedecer ao papa e a seus partidários nesse caso eles saem do domínio que lhes é próprio e legiferam em questões que se referem apenas a Deus e à Alma cristã Meu reino não é deste mundo tomando a palavra de Cristo ao pé da letra Lutero deixa de certo modo o campo livre para a onipotência do Es tado no mundo terreno conferelhe o monopólio da decisão e da repressão Deixase ao cristão a possibilidade de intervir pela palavra e pelo exemplo a fim de que sejam respeitados os mandamentos de Deus e afirmada a força espiritual da comunidade dos fiéis João Calvino em Instituição da religião cristã 153659 concorda com Lutero em prescrever aos cristãos a submissão à ordem temporal mas subli nha o papel que devem desempenhar as consciências piedosas no estabele cimento da moralidade pública reformador de Genebra quis fazer desta ci dade uma CidadeIgreja que não é certamente uma teocracia mas que visa a fazer triunfar nas instituições civis a luz da Fé Na época das grandes trans formações do Renascimento e no momento em que se afirmam ao mesmo tempo as realidades nacionais e o poder do Estado a Reforma com Lutero Münzer e Calvino abre com vigor particular um importante capítulo do pensamento político moderno o das relações entre comunidades religiosas e o Estado convertido em potência laica capítulo que é frequentemente ao mesmo tempo o das relações entre exigências morais e necessidade política INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bloch E Thomas Münzer théologien de la Révolution Julliard 1962 ed brasileira Tho mas Münzer teólogo da revolução Tempo Brasileiro Rio de Janeiro 1974 Calvino J Institution de la réligion chrétienne 153660 Genebra Labor Fides 1955 Febvre L Un destin Martin Luther 1927 Lutero M De lâutorité temporelle et dans quelle mesure on lui doit obéissance 1523 Au bierMontaigne 1973 O PríncipeEstado 41 O Estado em questão Thomas More É de La Boétie Enquanto se reforçam no território dos reinos os poderes centrais e vai se es pecificando de maneiras contraditórias a noção de independência da rea lidade política vão surgindo dúvidas sobre a significação ética e social desse poder exorbitante No próprio espírito do Renascimento um erudito como Erasmo em Instituição do Príncipe cristão 1516 interrogase sobre as qualidades que deve possuir um monarca investido de um poder tão grande e de uma res ponsabilidade tão ampla e dirigindose a Carlos V esforçase por compor um programa político que combinaria as virtudes evangélicas e as aquisições do novo humanismo A Utopia de Thomas More publicada no mesmo ano é certamente de interpretação demais difícil Seu autor investido das mais altas responsa bilidades políticas por Henrique VIII da Inglaterra e executado por se ter oposto em nome de sua fé católica ao cisma anglicano renova o modelo platônico da República e do Crítias À Cidade desordenada e corrompida ele opõe a imagem de uma organização racional fundada numa estrita divisão do trabalho e numa disciplina cívica rigorosa mas também numa completa igualdade social a propriedade privada e o dinheiro são proscritos e polí tica os cargos são eletivos e a oposição entre o trabalho manual e intelectual é eliminada assim como na tolerância quanto às opiniões religiosas É claro que essa descrição da Cidade bemsucedida é um meio de criticar o estado de coisas existente Mas o texto manifesta uma tal ironia que o leitor está no direito de perguntar se a utopia também significa o seguinte vocês recla mam um reino forte estritamente centralizado e administrado mobilizando a energia de todos são estas as condições nas quais um tal reino poderia também ser justo e feliz julguem se as condições são realizáveis vocês não deixariam de constatar que elas não o são de modo algum Não será mais razoável renunciar a uma tão louca ambição Entretanto foi a Étienne de La Boétie que coube colocar num registro mais grave a questão de princípio Entre diversos textos alguns dos quais de grande força publicados quando das sangrentas guerras de religião e ques tionando a tirania dos reis dos príncipes da Igreja e dos senhores da guerra o Discurso da servidão voluntária escrito por volta de 1549 e reeditado em 1574 pelos calvinistas sob o título de Contra um distinguese por sua eleva ção de tom e por seu radicalismo Ainda que as circunstâncias históricas sir vam como pano de fundo La Boétie ousa pôr a questão crucial que tem sido até hoje apresentada pela maioria dos que filósofos teólogos estrategistas têm refletido sobre o fato político por que existe obediência Perguntase em geral qual é a origem e a natureza do Poder ou dos poderes Deus A Natureza A Força O Povo A Razão A Lei do Pai Ou então qual é o Poder legítimo E discutese sobre os méritos e os defeitos relativos dos diversos regimes de governo Mas admitese como se tratasse de algo óbvio que existe o Poder ou Poderes ou seja uma instância separada que assegura o comando deixase de lado o fato de que o comando de alguém implica a obediência dos outros e omitese a questão de saber de onde provém a obediência Ora vistas bem as coisas essa é impensável Por sua natureza o homem é livre e o exemplo dos animais que preferem morrer a ser subordinados deveria fortificálo nessa disposição pela linguagem ele entra em amizade e em sociedade com outros homens essa sociedade deveria lhe bastar Mas ele se deixa invadir pela dominação Para compreender essa submissão é preciso evocar o temor do mais forte Por que centenas de milhares de milhões de indivíduos se rebaixam a ponto de receber ordens de uma só pessoa Será correto evocar o interesse Que interesse pode haver em se deixar saquear espoliar e subjulgar Será que se impõe uma razão superior Mas que razão quando é evidente que os ordens decorrem dos caprichos do soberano e no caso da imensa maioria são preconceitos a ela Por qualquer ângulo que se tome a questão ela continua sem resposta Para compreender a submissão de todos a um só que no mais das vezes não é mais do que um nome é preciso supor que a primeira natureza foi substituída por uma segunda natureza que se deixa fascinar pelo Um que admite que toda sociedade pressupõe um princípio um ponto transcendente do qual todos e cada um são dependentes Pois é preciso sublinhar que o Discurso de La Boétie não visa a um regime o despotismo real mas sim à nova forma política que está se impondo o Estado como potência plena De certo modo ele constitui um comentário ao Príncipe pouco importa que o soberano seja odiado quanto seja soberano dizia Maquiavel ele é e o é em todos os pontos odiável constata La Boétie Há uma solução Só se se acreditar que a força das palavras pode derrubar uma natureza ainda que se trate de uma segunda natureza O Discurso no momento em que se opera a laicização do Um como princípio da ordem política levanta com um vigor inigualável o problema que se coloca à reflexão política contemporânea diante do totalitarismo Ele antecipa uma questão posta por Wilhelm Reich o que é surpreendente não é que os povos se revoltem mas sim que não se revolutionem O PríncipeEstado 43 INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS De La Boétie É Discours de la servitude volontaire 1549 Payot 1976 seguido de P Clastres e Cl Lefort La Boétie et la question du politique ed brasileira Discurso da servidão voluntária Brasiliense São Paulo 1982 Erasmo Institution du Prince Chrétien 1516 in La philosophie chrétienne Vrin 1970 More T IUtopie ou Traité de la meilleure forme de gouvernement 1516 La Renaissance du Livre 1966 ed brasileira A Utopia in Os Pensadores Abril Cultural São Paulo volX 1972 p159314 O Estado como potência soberana Oean Bodin Em 1576 aparecem os Seis Livros da República Seu autor Jean Bodin é um erudito que se apoia numa grande cultura histórica e jurídica bem como um togado que teve funções de legislador e de administrador Ele se põe uma dupla tarefa refutar Maquiavel a quem admira mas de quem teme as lições de imoralidade e ser o Aristóteles de seu tempo no que se refere à questão política Sua concepção do homem e da sociedade embora seja muito sutil não se caracteriza pela originalidade Ele está convencido de que a realidade está submetida aos princípios da harmonia que não respeitam as ações hu manas e que existe um direito natural de origem divina que recomenda a equidade e o respeito pela pessoa privada e isso numa óptica que não é de modo algum muito afastada da de Cícero Entretanto o pensamento de Bodin se impõe por um traço singular que faz dele depois de Marsílio de Pádua e de Maquiavel o iniciador da teoria moderna do Estado e de qualquer modo de sua prática de cer tas astúcias que levam frequentemente os teóricos a mascarála ou seja pela definição que ele apresenta do poder político como forma necessá ria da existência social Ele não investiga como Agostinho ou Tomás de Aquino a origem divina ou natural da República considera secundária a questão do bom regime Considera que a existência de um poder público unificado e unificante é um dado de fato de toda sociedade histórica e per gunta sobre o que caracteriza essencialmente esse poder A resposta é clara e forte a potência soberana a que se exerce por meio de um reto governo de vários lares e do que lhes é comum Esse é o estado da Repúblicâ ou para falar brevemente o Estado Devese observar antes de mais nada que o Estado pressupõe os lares ou seja as famílias essas estão colocadas sob a autoridade paterna que está 44 História das ideias políticas por sua vez colocada sob a autoridade da potência soberana no que se refere às questões públicas Isso quer dizer que o poder de Estado se exerce sobre súditos francos ou seja sobre súditos livres que não são nem escravo nem servos O termo soberania majestas ou potestas deve ser tomado em sua acepção mais rigorosa a potência soberana do Estado é absoluta ela comanda e não recebe ne nhum comando não depende de nada nem de ninguém nem de Deus nem da Natureza nem do Povo não exige nenhum fundamento é autos suficiente é indivisível no sentido de que é por essência una e se for delegada está integralmente em cada delegação é perpétua não poderia sofrer as vicissitudes do tempo e por essa razão é transcendente Em suma ela é tal como segundo os teólogos Deus é O Estado é a sede da soberana potência o ponto focal da ordem pública Essa ordem é definida pelas Leis essas determinam segundo a necessidade as normas da existência social em seu aspecto público o Estado é senhor de dálas e de revogálas Do mesmo modo pertence às suas prerrogativas absolutas declarar a paz e a guerra dirigir a administração julgar em última instância e conceder a graça cunhar moeda e arrecadar impostos Se essas últimas disposições inscrevem o projeto de Bodin na óptica que já fora a de Filipe o Belo a teoria da potência legisladora marca mais profundamente uma ruptura em direito a lei como norma é distinta do direito é su perior ao direito costumeiro exterior ao direito natural A disjunção entre Estado e sociedade elemento central da moderna teoria do Estado está em vias de realização Mas quem é esse detentor do Estado Para responder a essa questão Bodin ao que parece retorna à tradição Ele constata a existência de re públicas democráticas aristocráticas e monárquicas Tratase de uma volta atrás O Estado então termina por ser dependente De nenhum modo se lembrarmos que Bodin distingue entre potência e poder entre Estado e go verno A potência soberana pode ser o Povo uma parte do Povo ou um Indi víduo nenhum estatuto misto ao modo de Cícero ou de Tomás de Aquino é inteligível Essa potência que faz as leis decide sobre as modalidades do ou dos poderes Pois para se exercer a potência tem de se encarnar nas insti tuições empíricas que têm a missão de governar Essa distinção não foi vista por Maquiavel o qual em consequência submeteu a potência do Estado aos caprichos históricos do Príncipe O príncipe é abstrato por definição é uma forma que se realiza nesse ou naquele tipo de governo cujo destino é tempo O PríncipeEstado 45 ral Bodin examina os diversos tipos possíveis de combinação que vão desde a democracia real que chamaríamos de cesarismo até a monarquia popular onde o soberano transfere às instituições populares a missão de governar ele não oculta sua preferência pela monarquia real que governa súditos francos que podem expressar sua opinião em oposição à monarquia se nhorial e à tirânicà Ele insiste na importância dos hábitos e dos costumes ligados à natureza dos povos quando se trata dos poderes Mas ele não faz concessões no que lhe parece ser o essencial a absoluta soberania do Estado princípio necessário e transcendente da sociedade en quanto República INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bodin J Les Six livres de la République 1576 Chevalier JJ Histoire de la pensée politique tI De la CitéEtat à tapogée de lEtatna tion monarchique Payot 1979 ed brasileira História do pensamento político tomo 1 Zahar Editores Rio de Janeiro 1982 Mesnard P üssor de la philosophie politique en XVI siecle Vrin 1951 DO FU N DAM ENTO DA SOB ERAN IA O D I REITO NATU RAL E AS TEO RIAS DO CONTRATO A autossuficiência da Soberania postulada por Bodin não deixa de colocar um problema Se ela confere um estatuto formal aos poderes centrais tais como se exercem no início da época clássica deixa na sombra a questão do fundamento e por isso abandona à contingência o problema de qual o me lhor governo Ora nesse final do século XVI e no século seguinte a interro gação política se torna cada vez mais urgente Às dificuldades políticas suscitadas pelos conflitos religiosos acrescen tamse os problemas levantados pelas profundas modificações experimenta das pelas sociedades europeias afirmação das realidades nacionais o que impõe por um lado uma estrita determinação do poder estatal legítimo e por outro uma redefinição da ordem internacional alteração profunda das relações sociais devidas às transformações do mercado de trabalho e à nova concepção da existência social que começa a surgir revolução na imagem da natureza e do homem engendrada pelos múltiplos progressos da matemática e da física Quando Descartes escreveu em 1637 que sua tarefa era tornar o História das ideias políticas homem senhor e dono da naturezà enunciou certamente a máxima desse novo estado de espírito INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Derathé R JeanJacques Rousseau et la science politique de son temps PUF 1950 Hazard P La crise de la conscience européenne 18601715 Boivin 193435 3 vols La pensée européenne ou XVIII siecle Boivin 1945 3 vols Koselleck R Le regne de la critique 1959 Minuit 1979 Mandrou R EEurope absolutiste Raison et raison dEtat 16491675 1977 Strauss L Droit naturel et histoire 1959 Plon 1954 Grócio o Descartes da política o Estado contratual A contribuição do jurista holandês que publica em 1625 em Paris o De jure bellis ac pacis referese antes de mais nada ao direito internacional nesse livro ele expõe os elementos de um direito universal que tem como meta definir os princípios que regulam as relações entre Estados soberanos tanto na paz como na guerra e através disso proteger os indivíduos envolvidos nos conflitos Mas precisamente essa preocupação leva Grócio a fundar a universali dade do direito na própria natureza do homem o termo naturezà é tomado em sua acepção racional independentemente de qualquer consideração mo ral ou genérica O sujeito e a substância do direito é o indivíduo natural tal como Deus em sua perfeição o criou e que se conserva quaisquer que sejam os costumes locais e os direitos positivos particulares Esse indivíduo é atraído por seu semelhante independentemente de qualquer carecimento e é dotado de vontade Os atributos que são ligados a essa natureza e sobre os quais o próprio Deus não poderia voltar atrás podem ser determinados ou pelo raciocínio ou pelo exame dos princípios constantes que governaram ou governam as nações Eles se reduzem a alguns dados simples o respeito pela vida e pela propriedade o respeito pela palavra dada e pelos compromissos e contratos sem os quais não poderia haver sociedade estável a reparação do dano causado por inadvertência ou má intenção Assim Grócio substitui os esquemas organicistas ou comunitários do jus gentium ciceroniano ao corpo místico cristão e as teorias do Ato fundador de Maquiavel e Bodin por uma perspectiva que garante a continuidade entre o direito privado que as pessoas possuem por causa de sua natureza humana e o direito público A sociedade política efeito da sociabilidade é uma realização da lei da natureza Mediante um contrato seus membros decidem voluntariamente delegar a autoridade pública a uma instância soberana e perpétua que tem como missão garantir a paz e a concordia Todavia nenhuma transcendência faz parte dessa soberania o jurisdicismo de Grócio assimalhe de certo modo a sociedade ao Estado os detentores da soberania são por contrato proprietários da autoridade pública do mesmo modo como os membros da coletividade são proprietários desse ou daquele patrimônio Se por sua conduta eles deixam de ser identificáveis à vontade da coletividade então o contrato é rompido e a resistência dessa última é legítima INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA Grócio H Du droit de la guerre et de la paix 1625 1865 3 vols Thomas Hobbes o Deus mortal e seus limites Se o que liga Grócio à modernidade consiste no essencial no papel central que atribui ao indivíduo a relação de Hobbes com seu tempo é muito mais estreita filósofo sua concepção política se articula com sua ontologia e essa se inspira diretamente na nova física e em seu mecanicismo As teorias do movimento e do corpo que ele expõe levamno a compreender o homem como uma máquina natural submetida ao estrito encadeamento de causas e efeitos tendo como propriedades igualmente naturais desejar e agir ou seja deliberar e se mover em função desse dado primeiro que é o desejo O homem individualmente corporal é fundamentalmente potência esse é o ponto de partida do Leviatã publicado em 1651 Assim no desenho de natureza quando abstraímos como mais tarde o explicará JJ Rousseau o que a sociedade lhes trouxe os homens dispersos são potências movidas pelo desejo não limitados por nada são integralmente livres a não ser pela incapacidade material na qual podem se encontrar de satisfazer esse desejo Nesse mesmo estatuto que exclui toda ideia de sociabilidade benevolente e de harmonia com o meio ele experimenta enquanto máquina sensível sentimentos entre os quais predominam a inveja e o medo em particular o medo de sofrer e de morrer Desse modo se a ordem natural ordem mecânica é a lei dos lobos disso resulta que o es História das ideias políticas tado de natureza é ao mesmo tempo e contraditoriamente plena liberdade aquém de todo direito e terror constante ele é inviável Nessa óptica realista e que em nome da física dos corpos elimina qualquer consideração de ordem moral nada no estado de natureza pre para o estado de sociedade esse que não é de instituição divina ou de inscri ção natural tem de ser produto de um artifício Vemos assim que Tu Hobbes funda no próprio Estado essa autonomia do político que Marsílio de Pádua pressentia que Maquiavel justificava por meio de provas históricas que Jean Bodin deduzia a ordem política não pode ser senão o produto de uma decisão coletiva que engendrará um artefato Dado que o estado de natureza é insuportável dado que o desejo de poder e o desejo de viver e de viver em paz se contradizem então surge a capacidade deliberativa própria ao homem que comanda de construir uma instância superior cujo fim é impor uma ordem que elimine a violência natural que substitua a guerra de todos contra todos pela paz de todos com todos Ao grande mal devese responder com o grande remédio para pôr fim à violência nascida do exercício de potências por definição ilimitadas só pode ser eficaz uma potência que não conheça limites Isso significa em palavras claras que a instauração da sociedade política commonwealth civitas do Estado pressupõe que os cidadãos de comum acordo despojemse integral mente de sua potência individual e a transfiram para a autoridade pública A soberania una e indivisível do Estado é ilimitada o contrato que a es tabelece não a sujeita a nenhuma obrigação salvo a de assegurar a tranqui lidade e o bemestar dos contratantes Temos aqui o deus mortal o Leviatã esse monstro da lenda fenícia que é evocado pela Bíblia para dar a imagem de uma força corporal à qual nada resiste Dessa feita a laicização completa da plenitudo potestas dos teólogos realizase na própria noção do Estado A ordem política põe fim à luta de vida ou morte isso só ocorre na me dida em que os membros da coletividade consentem em reconhecer a ab soluta soberania de uma pessoa moral que exerce seu poder por meio de decisões das quais só ela é responsável e de leis que ela impõe como princí pios necessários da organização da República Esse é o sentido do fiat que institui o Estado pôr a morte do lado da mecânica natural e construir em todas as suas peças uma lógica da existência coletiva que preserve a vida Tal como em Bodin tratase de uma lógica e não de uma teoria do bom go verno ainda que Hobbes manifeste uma preferência pessoal pela monarquia ele não toma como problema decisivo o tipo de regime que encarne a sobe rania contanto que esse a exerça com rigor Pois diferentemente de Bodin nesse ponto ele não distingue entre a essência ou a forma da soberania O PríncipeEstado 49 a potência ou majestade e seu exercício empírico o poder ou governo É certamente essa confusão que lhe valeu a acusação de ser o arauto do absolutismo real o que ele não é de modo algum a análise dos direitos e dos deveres da instância suprema deixa isso bastante claro Na verdade o Leviatã quer seja monárquico oligárquico ou demo crático só tem direitos desde quando instituído não pode ser contestado de nenhum modo pelos que o instituíram a minoria tem de se submeter à maioria ele é juiz do que é necessário para a paz e a defesa dos súditos e das doutrinas que convém lhes ensinar detém o direito de editar regras de tal natureza que cada súdito saiba o que lhe pertence de modo que ne nhum outro súdito possa lhe tirar o que é seu sem cometer injustiça o de ministrar a justiça em todas as suas formas o de decidir sobre a guerra e a paz e de escolher todos os conselheiros e ministros tanto na paz quanto na guerrâ o de retribuir e castigar e isso a seu arbítrio bem como o de atribuir honras e hierarquias p187 Hobbes está tão consciente do caráter exorbitante dessas disposições que ele faz notar que por mais repressivo que seja o poder soberano é menos prejudicial do que a ausência de um tal poder p190 Essa alternativa não deixa de parecer com a que Platão propôs na Repú blica submeterse à reta filosofia ou decidir pela injustiça do bom prazer De qualquer modo esse deus é mortal o caso mais banal de seu desapare cimento é sua destruição por um outro poder soberano mas ele também morre a despeito dos comandos que impõe e da coerção que exerce se for incapaz de realizar a missão para a qual foi instituído que é a de garantir a segurança dos seus súditos e suas liberdades privadas tais como foram defi nidas pelas leis civis Pois apesar do seu rigor e de sua extensão o pacto que o institui não poderia fazer com que os indivíduos perdessem o que pertence à natureza deles Se é verdade que esses só têm as liberdades de conduta autorizadas pelo Estado também é verdade que quaisquer que sejam as ordens do so berano eles alienam sua liberdade de pensamento renunciam à defesa do seu próprio corpo e aceitam fazer mal a si mesmos ou fazer mal a outros somente se julgarem que isso é útil como por exemplo na guerra p2301 Essas limitações não fazem parte da ordem do direito mas dos dados de fato Ademais e essa é uma evidência sobre a qual Hobbes não crê necessário in sistir está implícito na lógica do conjunto que o Estado é senhor do espaço público como o é para definir a extensão desse espaço mas que subsiste um espaço privado importante onde pode se exercer a liberdade dos súditos Também nesse caso estamos diante de um fato 50 História das ideias políticas Nos casos em que o soberano não prescreveu regra o súdito tem liberdade para fazer ou se abster conforme julgue ser bom Também essa liberdade é em certos casos mais extensa em outros mais restrita maior em determinado momento e menor em outro conforme os detentores da soberania julguem ser mais van tajoso p232 A concepção política de Th Hobbes é muito mais sutil do que pode parecer à enunciação de seus princípios iniciais Tomando como ponto de partida uma concepção individualista e realista do homem recusando pre viamente qualquer pressuposto moral ela se empenha em conjurar o que para ela é o maior dos males a guerra civil Para fazêlo analisa as condições graças às quais instaurase uma ordem política estável E a condição primor dial é que a coletividade deseje a instituição de um princípio soberano oni potente e consinta em obedecer às leis civis e às decisões que são impostas pelo poder que encarna a soberania Resolvida assim a questão política do bom entendimento e da tranquilidade na República os súditos poderão li vremente se entregar às atividades que julgarem capazes de lhe trazer a salva ção e a satisfação empírica Essa concepção contém ao mesmo tempo uma resposta e um projeto uma resposta estritamente política aos problemas que foram e conti nuam a ser postos pelas guerras nascidas dos conflitos religiosos nos reinos da Europa Ocidental um projeto que leva em conta transformações que afetaram as condições da produção agrícola e manufatureira o comércio e o mercado de trabalho o de uma sociedade que tendo resolvido mediante uma lógica estrita a questão de sua forma política deixaria aos indivíduos o cuidado de regular suas vidas privadas e de usar livremente as próprias capacidades INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Hobbes T Léviathan Traité de la matiere de la forme et du pouvoir de la République ecc lésiastique et civile 1651 Sirey 1971 ed brasileira Leviatã in Os Pensadores Abril Cultural São Paulo volXIV 1974 Macpherson GB La théorie politique de lindividualisme possessif de Hobbes à Locke 1962 Gallimard 1971 ed brasileira A teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke Paz e Terra Rio de Janeiro 1979 Manent P Naissances de la politique moderne Machiavel Hobbes Rousseau Payot 1977 Polin R Politique et philosophie chez Hobbes PUF 1952 O PríncipeEstado 51 Uma filosofia política galileiana1 Spinoza O pensamento político de Spinoza está contido em dois textos breves o Trac tatus theologicopoliticus publicado em 1670 e o Tractatus politicus obra inacabada e póstuma Todavia sua influência no Século das Luzes foi con siderável ao mesmo tempo que indireta Pois é o conjunto da doutrina que por sua coerência e força demonstrativa germina nos espíritos livres esses a utilizam secretamente já que Spinoza é um autor maldito que não é citado a não ser para denunciar o seu caráter diabólico e cujas obras circulam às ocultas para combater as tradições religiosas e os poderes que apelam para o direito divino A eficácia do spinozismo no domínio das ideias políticas decorre do fato de que ele apresenta um sistema a Ética obra também póstuma que é ao mesmo tempo ontologia teoria do conhecimento da paixão e da ação a qual funda rigorosamente a ideia de que a conduta tanto individual como coletiva é uma questão não de fé religiosa não de crenças morais não de ar ranjos empíricos mas de estrita racionalidade da racionalidade usada pelos matemáticos e físicos em suas pesquisas Aparentemente o Tratado teológicopolítico é um livro de exegese bíblica De fato seu objetivo é fundar a distinção entre o domínio da fé e o domínio da razão assim como estabelecer contra Hobbes entre outros o fato de que numa Cidade organizada em função do que é útil aos que a constituem deve ser concedido a cada um pensar o que quiser e dizer o que pensa ed Gar nierFlammarion 1975 p336 Ele mostra que uma leitura da Bíblia que vise a extrair a verdade nela contida deve se ater ao próprio texto empreender sua crítica histórica e ex cluir os procedimentos interpretativos que recorrem a um sentido exterior ao texto que se afirma ser fruto de uma revelação e que não passa de produto da imaginação De resto a interpretação serve pouco à fé e as verdades que ela descobre não têm nenhum interesse para o homem religioso que quer a piedade e a salvação ibid p254 Nem a Escritura deve se curvar à Razão nem a Razão à Escritura 1 Título dado por Marianne Schaub à sua contribuição consagrada a Spinoza na Histoire de la philosophie dirigida por F Châtelet Hachette 1973 tomo III ed brasileira História da Filo sofia Zahar Editores Rio de Janeiro tomo 3 1974 52 História das ideias politicas A teologia e a filosofia são reinos separados a última é verdade e sabe doria a primeira é piedade e obediência Disso resulta que a aplicação da teologia às questões políticas tem como consequência desenvolver o espírito de submissão em detrimento do espírito de liberdade Pois no curso do trabalho Spinoza desenvolveu uma teoria do direito natural e notou que ninguém sabe por natureza que é obrigado a obede cer a Deus tampouco se sabe isso através de um raciocínio qualquer ibid p271 E de acordo com Hobbes ele afirmou que todo homem como ser na tural é desejo e potência mas separandose dele Spinoza constata que nada exterior nenhuma outra potência poderia limitar ou abolir o direito natural soberano do desejo O direito político não pode ser senão uma continuação do direito natural E ele é uma continuação precisamente na medida em que aparece ao indivíduo que pode ser útil à satisfação de suas paixões viver segundo as leis e injunções da razão as quais tendem unicamente ao que é realmente útil aos homens ibid p236 Portanto jamais poderia haver um contrato ou pacto que implicasse a renúncia da potência individual o reconhecimento de uma instância superior é por assim dizer sempre con tingente e provisório ele resulta de um cálculo racional e desaparecida a utilidade o pacto desaparece ao mesmo tempo e tornase algo sem forçà ibid p265 Essa assimilação do direito à força que se inscreve na demonstração realista e determinista da Ética essa afirmação da continuidade entre o de sejo e a razão o sábio não é menos apaixonado do que o insensato essa definição do homem como irredutível potência individual levam Spinoza a definir a ciência políticà no Tratado político como uma aplicação da ra cionalidade galileiana A originalidade da análise consiste em apresentar uma física da sociedade política Essa física liberada das perspectivas morais e que exclui todo finalismo e todo antropomorfismo considera a sociedade como um corpo feito de um conjunto de corpos individuais como um corpo que possui também uma individualidade A utilidade para o indivíduo de pertencer à sociedade é dupla por um lado isso aumenta sua potência ao conjugála com outras potências no seio da potência aumentada em quan tidade e em complexidade que é própria do conjunto por outro lado a ar ticulação do mecanismo do desejo com o da lei civil pode se efetuar nesse conjunto de tal modo que seja assegurada a eficaz conjunção no indivíduo da potência e da ordem racional Pois o Estado não tem absolutamente como meta suprimir as paixões ou reduzilas pela obediência sua função consiste em modificar seus efeitos no sentido da utilidade comum mediante procedi mentos calculados O PríncipeEstado 53 As discussões relativas aos bons ou maus regimes são abstratas na me dida em que ignoram o determinismo natural No fundo o regime importa pouco o que conta é que ele implique o maior número possível de indiví duos envolvidos na atividade legislativa judiciária administrativa Essa é a garantia de um Estado duradouro e forte esse é também o meio de orientar os interesses particulares no sentido da utilidade coletiva e de fazer com que a força das paixões participe da potência humana Se o mérito de uma forma de governo é avaliado de acordo com o número cada vez maior de cidadãos associados à gestão da ordem política e cidadãos aparece aqui como algo oposto a súditos se o direito político realiza efetivamente o direito natu ral então a sociedade assim organizada se afirmará como uma sociedade de liberdade não só de pensar mas também de empreender de construir de comerciar não em função de um fim exterior mas porque a atividade sem entraves é a afirmação do homem e da razão INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS De Lacharriere R Études sur la théorie démocratique Spinoza Rousseau Hegel Marx Payot 1963 Spinoza Traité théologicopolitique 1670 Traité politique póstumo in Oeuvres com pletes La Pléiade 1954 ed brasileira Tratado político in Os Pensadores Abril Cul tural São Paulo volXVII 1973 p31372 Direitos naturais e sociedade política Oohn Locke No horizonte da reflexão spinozista delineiase a revolução física mas tam bém a República dos Países Baixos fervilhante de discussões políticoreligio sas e já empenhada na modernidade comercial e manufatureira A obra polí tica de John Locke é contemporânea da segunda revolução inglesa 1689 da queda definitiva do regime de direito divino e da instauração de uma espécie de monarquia constitucional como as de Hobbes e de Spinoza ela se inspira no espírito novo que se baseia apenas na luz natural e na experiência como elas leva em conta as transformações ocorridas a partir do século anterior no mercado de trabalho e na estrutura da propriedade e do comércio Mas se refuta vivamente John Filmer teórico do absolutismo real de direito divino a teoria lockiana é também inteiramente contrária ao contrato de submissão que segundo Hobbes institui o Leviatã Filósofo que desenvolve uma teoria do conhecimento fundada num empirismo moderado todos os conhecimentos provêm da experiência mas também da capacidade reflexiva do entendimento humano que a ela se aplica Locke baseia sua investigação política numa concepção dos direitos naturais que não deixa de lembrar Grócio No estado de natureza expressão que em Locke indica por vezes como em Hobbes e depois em Rousseau um conceito limite e outras vezes um período histórico primitivo que pode ser encontrado entre os índios da América por exemplo o estado de selvageria segundo Rousseau os seres criados por Deus são livres livres as terras livres os animais livres os homens Para os homens que foram criados de tal modo que são capazes de conhecer de expressar seu pensamento e de trabalhar essa liberdade inscreve como um direito natural ou originário a possibilidade de dispor de sua vida e de suas palavras como lhes convém e de caçar os animais e de ocupar um território em que possam trabalhar para sobreviver São iguais uns aos outros na medida em que não existe entre eles nenhuma diferença natural que autorize um a limitar a liberdade do outro Formam assim famílias e realizam conforme suas conveniências as trocas que julguem proveitosas Nesse estado fazemse promessas mútuas a fim de melhor regularem suas vidas promessas que são naturalmente obrigados a respeitar já que sem tal respeito o uso da promessa perde qualquer significação Eles decidem também sobre signos a moeda graças aos quais as trocas de bens são facilitadas Desse modo as pessoas não mais se atêm em particular no que se refere à ocupação do território aos poucos acres de terra necessários à sobrevivência de uma família A sociedade dos homens tornase mais complexa e surgem cada vez mais numerosos riscos de conflito Os conflitos mais notórios e mais prejudiciais têm como origem os atentados ao direito que cada um tem de dispor de sua vida de se apropriar dos bens livres e de exigir e respeito aos compromissos assumidos De certo aquele cujos direitos foram lesados pode legitimamente punir o culpado e obrigálo a reparar o prejuízo causado Mas independentemente do fato de que esse procedimento apresenta o risco de engendrar uma sequência indefinida de violências ele é empiricamente ineficaz como Locke observa os ladrões e os desonestos são em geral mais robustos e mais astuciosos do que o comum dos proprietários Portanto é conveniente que os que desejam a plena realização dos princípios do direito natural ou seja o livre desenvolvimento de cada um entrem em sociedade e instituam uma instância que tem como fim organizar essa sociedade segundo regras comuns e usar os meios adequados para aplicálas O PríncipeEstado 55 Desse modo os proprietários a propriedade das terras dos instrumen tos do capital não é segundo Locke senão uma extensão natural da livre disposição que o homem tem sobre seu corpo e sua atividade ou seja sobre seu trabalho reúnemse e entram em acordo para definir o poder público encarregado de realizar o direito natural Esse poder é soberano no sentido de que os que o instituíram e na medida em que ele atue segundo seu fim são obrigados a obedecerlhe e a lhe prestar apoio Três são suas tarefas le gislador ele fixa as regras de exercício da soberania as leis orgânicas do Estado ou sua Constituição e define as leis que formam o direito público e o direito privado tendo como perspectiva aplicar os direitos de natureza às particularidades empíricas da sociedade juiz ele pune as faltas contra a lei e se empenha no sentido de fazer com que reine a ordem de justiça que decorre desses mesmos direitos naturais requisitando a força pública a fim de que tenham efetividade as punições e sejam reparados os prejuízos go vernante ele toma decisões sobre a guerra e a paz e as medidas administra tivas exigidas pela salvaguarda da coletividade a segurança dos cidadãos e a proteção de suas livres atividades O pacto de instituição do poder público do Estado é muito diferente do que Grócio imaginava e do que Hobbes prescrevia O primeiro pensa num contrato que liga os cidadãos entre si por um lado e por outro tais cidadãos enquanto coletividade e a instância suprema o segundo o concebe como cessão integral que obriga os súditos e não implica nenhuma obrigação por parte do Estado Locke tem uma posição diversa na medida em que em sua opinião a sociedade enquanto tal no estado de natureza possui a capa cidade de se organizar de modo harmonioso sem que haja necessidade de recorrer à ordem política O que impõe a instauração dessa ordem é a impo tência a que se encontra reduzida uma tal sociedade quando sua organização natural é ameaçada por inimigos internos e externos Os direitos naturais não têm força é indispensável constituir um poder que os enuncie e forma lize que lhes dê força de lei e que imponha sua efetividade mediante a coerção Portanto o princípioEstado é necessário com seu aparelho legislativo judiciário policial e militar mas é uma forma vazia Os cidadãosproprie tários decidem sobre a natureza do corpo legislativo e do governo e sobre quais são os que dentre eles merecem a confiança para realizar suas tarefas Portanto é deles que depende o regime que durará enquanto servir ao bem público Se o Estado fracassasse em sua missão e contrariasse os direitos na turais seria um dever dos cidadãos desencadear a insurreição sagradà e História das ideias políticas formar governos decididos a fazer do Estado um poder ao serviço das liber dades inscritas em cada indivíduo A obra política de John Locke teve uma influência considerável na inte lectualidade europeia Voltaire será seu ardente propagandista Sua clareza sua concisão mas também sua moderação e sua preocupação com a expe riência comum fizeram dela o instrumento por excelência da luta contra a tirania religiosa e política As duas declarações dos direitos do homem a norteamericana de 1787 e a francesa de 1789 inspiramse diretamente nessa obra Muitas fórmulas das diversas Constituições da Primeira Repú blica são tomadas dela Com o Segundo Tratado do Governo Civil 1690 John Locke apresentou a fórmula liberal do Estado moderno potência soberana e legisladora e unidade de uma multiplicidade de súditos francos assim como Hobbes 40 anos antes apresentara sua fórmula autoritária INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Hill Ch Le monde à lenvers les idées radicales au cours de la révolution anglaise 1972 Payot 1977 Locke J Deuxieme traité du gouvernement civil 1690 Vrin 1967 ed brasileira Se gundo Tratado sobre o Governo in Os Pensadores Abril Cultural São Paulo 1973 volXVIII p37137 Potin R La politique morale de John Locke PUF 1960 0 ESTADO E O CON FLITO De Maquiavel a Locke a maioria dos teóricos políticos quer procedam a uma constatação quer se proponham um programa reconheceram no Es tado princípio soberano e unificador da existência social a instância graças à qual contanto que o Estado seja conhecido como deve ser conhecido segundo o enunciado de Hegel e que o poder que ele implica seja corre tamente exercido podem ser reduzidos ou mesmo eliminados os confli tos que opõem os indivíduos ou grupos entre si e portanto que assegura a paz civil e regulamenta do melhor modo possível os antagonismos entre os reinos Todavia em diferente medida de acordo com o país duas reali dades se impõem sobretudo depois do final do século XVI Por um lado concluindo um movimento muito antigo reino e nação tendem a se fundir de tal modo que as partes envolvidas nas questões da política do direito do O PríncipeEstado 57 governo tornamse cada vez mais numerosas o tempo da senhoria e do apa relho senhorial foi definitivamente superado Por outro lado essas socieda des nacionais são cada vez mais profundamente animadas em função das transformações dos aparelhamentos materiais e ideais e das mentalidades por um dinamismo próprio as sociedades como tais independentemente de suas instituições religiosas e de suas estruturas jurídicopolíticas são to madas como objeto de reflexão As teorias políticas não podem ignorálas as relações EstadoSociedade irão constituir o tema principal do pensamento político do século XIX cf mais adiante o cap III Mas desde o século XVIII essa presença da sociedade sob suas modalidades históricas econô micas morais ou culturais é um novo fermento da investigação política Montesquieu a natureza das coisas Filósofo moralista historiador e teórico político francês Montesquieu irá exercer uma influência tão considerável quanto paradoxal nas Assembleias Constituintes revolucionárias francesas De sua reflexão sobre o espírito das leis ele induz uma nova classificação dos regimes políticos ao cabo da qual o governo moderado onde é assegurada uma separação dos poderes revela se a única solução institucional da liberdade política O método comanda um projeto Mas qual Para alguns Montesquieu apesar de suas nostalgias feudais toma resolutamente partido pelo liberalismo para outros o barão de La Brede tornouse objeto de uma recuperação revolucionária por causa de um malentendido destinado a preservar os privilégios da nobreza sua teo ria política e jurídica foi desviada de seu significado a fim de ser posta a ser viço da causa do povo ou pelo menos do Terceiro Estado burguês Montesquieu se esforça no sentido de revelar o espírito das leis ou seja a mais forte curva da relação entre variáveis diversas concretas e relativas que fazem e desfazem as leis humanas Pois se todos os seres têm suas leis tanto a divindade como o mundo material a humanidade tem suas leis próprias Examinei inicialmente os homens e supus que nessa infinita diversidade de leis e de costumes eles não eram movidos unicamente por suas fantasias Coloquei os princípios e observei os seus casos particulares se dobrarem como que por si mesmos as histórias de todas as nações serem apenas suas consequências e cada lei particular aparecer ligada a uma outra lei ou depender de uma outra mais geral História das ideias políticas Como todas as leis as leis humanas são relações necessárias que derivam da natureza das coisas Mas sendo assim as leis humanas dotadas de estrutura própria não poderiam ser derivadas ou deduzidas das leis divinas A lei perde seu caráter de ordem ou mandamento libertase de toda transcendência e de toda es sêncià não é mais do que uma relação imanente aos fenômenos humanos Ainda que Montesquieu seja nesse sentido considerado como o primeiro dos sociólogos Raymond Aron importa compreender que ele permanece um filósofo racionalista A lei em geral é a razão humana enquanto essa governa todos os povos da Terra e as leis particulares e civis de cada nação não devem ser mais do que os casos particulares em que se aplica essa razão humana Elas devem ser tão pró prias ao povo para o qual foram feitas que só por um grande acaso as de uma nação podem ser adequadas a outra É preciso que elas se relacionem com a na tureza e o princípio do governo que foi estabelecido ou que se quer estabelecer quer elas o formem como é o caso das leis políticas quer elas o mantenham como é o caso das leis civis Elas devem se relacionar com o elemento físico do país com o clima frio quente ou temperado com a qualidade do terreno com sua situação com sua extensão com o gênero de vida dos povos lavrado res caçadores ou pescadores devem se relacionar com o grau de liberdade que a Constituição pode suportar com a religião dos habitantes com suas inclina ções suas maneiras Finalmente têm relações entre si têm relações com sua origem com o objeto do legislador com a ordem das coisas sobre as quais são estabelecidas A Razão humana não cai do céu ela é induzida da observação da rea lidade social As leis mantêm relações com a natureza e com o princípio de cada go verno a teoria da lei exige uma nova classificação dos regimes políticos Os governos podem ser distinguidos a partir de sua natureza ou seja a partir dessa estrutura particular que define o modo de detenção e de exercício do poder mas também a partir de seu princípio ou seja desse conjunto de pai xões específicas que remete aos costumes e à comunicação humana Pois há essa diferença entre a natureza do governo e seu princípio que sua natureza é o que o faz ser tal e seu princípio é o que faz agir Uma é sua estrutura par O PríncipeEstado 59 ticular e o outro são as paixões humanas que o põem em movimento Desse modo portanto as leis não devem ser menos relativas ao princípio de cada governo do que à sua naturezà mas o princípio é a base fundamental e o motor que determina já que a corrupção de cada governo começa quase sempre pela dos princípios Levandose em conta a interdependência entre a natureza e o princípio há três espécies de governo o republicano o monárquico e o despótico O regime republicano se caracteriza pelo fato de que o poder é detido pelo povo sua natureza e que nele reina a virtude seu princípio enten dida no sentido político amor pela res publica virtude constantemente solicitada através de diversos meios educação cívica censura economia autárquica por um regime cuja sorte é condicionada por ela Conforme a detenção da soberana potência caiba a todo o povo ou apenas a uma parte do mesmo o regime republicano tem forma democrática ou aristocrática Montesquieu considera a forma aristocrática como superior pois o povo é admirável para escolher a quem deve confiar uma parte de sua auto ridade Mas saberá conduzir uma questão conhecer os lugares as ocasiões os momentos aproveitarse deles Não não o saberá Mas de qualquer modo o regime republicano é uma forma superada simples sobrevivência histórica condenada por causa do aumento dos Esta dos modernos Em troca o regime monárquico é aquele no qual um só o rei governa através de leis fixas e estabelecidas sua natureza e que condiciona a honra seu princípio A natureza do governo monárquico estabelece uma ligação necessária essencial entre monarquia e nobreza a detenção do poder por um só não basta o modo de exercício através de leis supõe a existência de poderes intermediários subordinados e dependentes as leis fundamentais supõem necessariamente canais médios por onde corre a potência pois se não houver no Estado nada mais do que a vontade capri chosa e momentânea de um só nada poderá ser fixo e por conseguinte ne nhuma lei fundamental ora o poder intermediário subordinado mais natural é o da nobreza Em qualquer caso ela faz parte da essência da monarquia A nobreza está implícita também no próprio princípio do regime monárquico O governo monárquico supõe preeminências hierarquias e inclusive uma 60 História das ideias políticas nobreza originária A natureza da honra consiste em demandar preferências e distinções portanto por sua própria natureza ela se situa nesse tipo de go verno A ambição é perniciosa numa República Tem bons efeitos na monar quia dá vida a esse governo A honra é um princípio fácil que a nobreza produz como que involun tariamente sua vaidade ou seu egoísmo a impelem para o esforço Já na Re pública a virtude é de certo modo forçada Portanto há interesse em conser var os privilégios da nobreza a fim de beneficiarse com seus efeitos O regime despótico caracterizase também pelo governo de um só sua natureza mas já que os homens são nele todos iguais não se podem preferir uns aos outros já que os homens são nele todos escravos nada pode ser preferido e como é pre ciso haver virtude numa República e honra numa monarquia é preciso haver o temor num governo despótico seu princípio Desse modo a significação teórica e política de uma tal classificação é clara Como corretamente escreve Paul Vernieres Montesquieu substituiu uma tripartição fundada em categorias numéricas por uma nova tripartição temporal o passado o presente e o longínquo2 O despotismo é o perigo futuro da monarquia caso essa cedendo às pressões do povo separese de uma nobreza que é a única a lhe permitir governar segundo leis A crítica do despotismo é exemplar mas agindo como uma advertência aos reis ela li bera a nobreza de qualquer responsabilidade Blandine BarretKriegel avalia exatamente as consequências disso Assim o filósofo desenraíza o despo tismo de nosso solo e o expatria para a Pérsia a Turquia ou a China retirao de nossa genealogia para deportálo inteiramente para a civilização oriental É dessa erradicação que procede a emigração das imagens do poder abso luto agora votado até a ressurgência dos Estados totalitários ao exotismo e à xenofobia Se esquecermos que Montesquieu participa do esforço ge ral da filosofia senhorial no sentido de negar os deméritos da senhoria e de dissociar a crítica do despotismo da crítica da dominação feudal o filósofo apresenta o risco de nos desviar do caminho A crítica do Estadodéspota com efeito não passa de um engano quando dissimula sob os véus do ha rém o elmo senhorial3 Todavia é esse enfoque que leva Montesquieu a 2 Paul Vernieres Montesquieu et lEsprit des Lois ou la Raison impure Paris 1977 p65 3 Blandine BarretKriegel IEtat et les esclaves Paris CalmannLévy 1979 p323 O PríncipeEstado 61 preconizar como solução institucional para a crise a adoção de um governo moderado onde a separação dos poderes tornase a garantia indispensável da liberdade política A lição só tem sentido se se evita confundir a liberdade política com o poder do povo se se compreende que a liberdade política é indissoluvel mente ligada à lei É preciso ter em mente o que é independência e o que é liberdade A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem e se um cidadão pudesse fazer o que elas proíbem não teria mais liberdade porque os outros teriam também esse poder A liberdade política portanto pode se encontrar apenas num governo onde o poder seja moderado porque limitado É uma experiência eterna a de que todo homem que tem poder é levado a abu sar do mesmo ele vai até o ponto em que encontra limites Para que seja impossível abusar do poder é preciso que pela disposição das coisas o poder freie o poder A moderação do poder por conseguinte depende de uma certa distri buição das forças que resulte da razão e não do acaso Para formar um governo moderado é preciso combinar as potências regula mentálas temperálas deixálas agir ou por assim dizer dar um lastro a um para tornálo capaz de fazer com que o outro desista é uma obraprima de le gislação que o acaso raramente opera e que raramente é confiada à prudência Um governo despótico ao contrário salta por assim dizer à vista ele é uni forme por toda parte como bastam as paixões para estabelecêlo qualquer um serve para isso O regime inglês assume então a figura de modelo daí o famoso Livro XI de O espírito das leis que trata da Constituição da Inglaterrà sem que seja prejudicada a coerência de conjunto do raciocínio Montesquieu distin gue três espécies de poderes que ele chama de potências a potência legisla tiva a potência executiva e a potência de julgar E afirma claramente que tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo de principais e nobres ou do povo exercesse esses três poderes o de fazer leis o de executar resoluções públicas e o de julgar os crimes e as disputas entre particulares 62 História das ideias políticas Podese dizer que a potência de julgar é invisível e nulà na medida em que não põe nenhum problema de alocação ela não é dada a um senado permanente e temese a magistratura e não os magistrados Em troca as duas outras potências são partilhadas por três forças o povo a nobreza o monarca Essa partilha deve obedecer a certas regras a potência legislativa é confiada por um lado a um corpo de representantes do povo de repre sentantes pois sua grande vantagem é que eles são capazes de discutir os problemas o povo por si mesmo não é absolutamente capaz de fazêlo por outro lado aos representantes da nobreza que não podem ser confundidos com o povo pois caso contrário a liberdade comum seria sua escravi dão e eles não teriam nenhum interesse em defender A parte que lhes cabe na legislação deve ser proporcional às outras vantagens que têm no Estado o que ocorrerá se eles formarem um corpo que tenha o direito de frear os atos do povo assim como o povo tem o direito de frear os deles Essas duas partes se ligam entre si pela faculdade recíproca de impedir Ambas serão vinculadas pela potência executora confiada ao monarca mas também ela vinculada pela potência legisladora na medida em que a Constituição lhe dá os meios se não de estatuir pelo menos de também impedir Desse modo a potência se distribui na harmonia e na moderação na colaboração dinâmica e não na separação impotente Essas três potências deveriam formar um re pouso ou uma inação Mas como pelo movimento necessário das coisas elas são obrigadas a se mover serão forçadas a se mover de modo concertado Uma certa tradição jurídica francesa faz de Montesquieu o inventor do princípio da separação dos poderes nos moldes por exemplo em que tal separação será teorizadà por Sieyes em seus discursos de 2 de termidor do ano III Confundir Montesquieu com Sieyes está no limite da aberração Charles Eisenmann de modo irrefutável corrigiu esse erro de interpreta ção Longe de apresentar a doutrina contida em O espírito das leis a inter pretação que a faz proceder da ideia da separação dos poderes desfiguraa completamente dando dela uma imagem inteiramente alterada quase uma caricatura Montesquieu prega o sistema do acordo mútuo das potências na não confusão dos poderes a fim de que as três forças políticas principais não possam nenhuma delas abusar do poder Mas o abuso do poder não tem significação jurídica não se trata de conter o poder num estrito limite le gal mas significação política Abusar do poder segundo sua ideia consiste em exercêlo de modo excessivamente unilateral Portanto não abusar dele é usálo para uma política através de medidas que levem em conta a multi plicidade e a diversidade dos interesses e das concepções que estão presentes na sociedade A moderação assim entendida é a linha média a resultante da composição de forças é o compromisso A teoria jurídica prolonga aqui a análise política e social os constituintes revolucionários censuraram essa por desviar aquela em seu proveito INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Althusser L Montesquieu la politique et lhistoire PUF 1959 reed Quadrige 1981 Aron R Les étapes de la pensée sociologique Gallimard 1966 BarretKriegel B LEtat et les esclaves CalmannLévy 1979 Eisenmann Ch LEsprit des Lois et la séparation des pouvoirs in Mélanges Carré de Malberg 1933 MontesquieuCharles de Secondat Barão de La Brède e de 16891755 LEsprit des Lois 1748 ed brasileira Do espírito das leis in Os Pensadores Abril Cultural vol XXI 1973 Troper M La séparation des pouvoirs et lhistoire constitutionnelle française LGDJ 1973 Vernières P Montesquieu et lEsprit des Lois ou la Raison impure 1977 Política da economia política Adam Smith O desenvolvimento da vida urbana do tráfego comercial nacional e internacional da produção manufatureira da qual alguns setores já são mecanizados da atividade bancária assim como a transformação das relações sociais e as migrações populacionais concomitantes a esses movimentos impõe a insistente presença do econômico nos reinos da Europa Ocidental a partir do final do século XVII De imediato a arte de bem gerir o patrimônio familiar ou a técnica para encher de ouro os cofres do rei dos senhores e dos mercadores transformamse em economia política História das ideias políticas Estado nacional no sentido estrito David Ricardo reagindo ao impacto econômico das guerras napoleónicas mostrará pouco depois em que essa ordem é determinante nas relações internacionais A relação existente entre a nova ciência econômica que fiel ao espírito do tempo esforçase por descobrir princípios explicativos universais e a teoria política que se empenha em definir a organização política legítima é dupla A escola fisiocrática testemunha claramente essa dualidade em um primeiro nível pragmático ela buscou os meios de remediar a pobreza do Estado a miséria da nação indicando as ações que deveriam ser empreen didas mas em um segundo nível a partir das leis científicas que ela julgou descobrir induziu a ideia do bom governo conforme à natureza das coisas Nessa óptica os fisiocratas concluindo a partir de suas investigações que somente o trabalho da terra aumenta realmente a quantidade de bens já que utiliza a maravilhosa produtividade da natureza propõem a institui ção de um reino agrícola cuja base é a propriedade fundiária Desse modo poderá ser edificada uma sociedade livre que deixe cada um empreender o que lhe for conveniente a busca da riqueza pelos indivíduos é a garantia do bemestar da coletividade Todavia para que as leis da natureza e as da natureza humana possam funcionar harmoniosamente é preciso que sejam garantidas a segurança da propriedade e a liberdade empresarial Se o go verno deve se abster de intervir nas questões econômicas tem de ser despó tico quanto à defesa dos bens à livre circulação das mercadorias à vigilância e à punição dos que pretenderem entravar o curso natural das coisas Pois a polícia outro nome para designar a ordem política deve ser tão inflexível quanto a ordem natural Embora creia também na harmonia Adam Smith extrai de suas reflexões econômicas consequências políticas inteiramente diversas A razão consiste no fato de que sua investigação sobre a atividade produtiva se funda num exame empírico realizado de modo inteiramente diferente enquanto os fi siocratas se contentam em pôr o problema econômico apenas do ponto de vista da produção de bens de subsistência e por isso desqualificam a ati vidade manufatureira que transforma sem nada criar Adam Smith toma como ponto de partida a divisão do trabalho e a troca Nessa óptica a riqueza de uma nação é medida pela massa de bens que são nela produzidos troca dos e capazes de ser exportados Um bem que pode ser trocado é uma mer cadoria Desse modo para dar uma avaliação mais precisa é preciso medir o que forma o valor de uma mercadoria Decerto podese responder que esse valor provém de sua utilidade de seu uso Mas a experiência comercial e industrial mostra que se trata nesse caso de um fator contingente o que O PríncipeEstado 65 é relacionado na troca entre mercadorias é o investimento e o trabalho que foram necessários à produção dessas mercadorias O capital criado inicial mente pela poupança e aumentado por meio dos lucros comerciais e o tra balho posto em operação num país constituem as causas da opulência desse país opulência que se refere a todas as coisas da sociedade um e outro acres centam valor à natureza e são os fermentos do que logo após irá ser chamado de civilização Adam Smith completa essa análise cujo poder conceituai funda a eco nomia política como disciplina objetiva mediante considerações que põem em evidência a autorregulação que caracteriza um tal sistema a lei do valor quando seu funcionamento não é entravado por nada implica que o empre sário capitalista busca as atividades benéficas à sociedade e que elimina as produções parasitárias e que os trabalhadores trabalham mais e melhor para melhorar suas condições Numa tal perspectiva o bom governo é aquele que não intervindo de nenhum modo na ordem econômica protege a proprie dade e o capital faz com que reine uma ordem graças à qual cada um será livre de dispor livremente de sua atividade laboriosa garante a regularidade e a aplicação dos contratos privados e garante a força da nação a fim de que ela possa desenvolver suas capacidades comerciais David Ricardo em Princípios da economia política e da tributação 1817 não se acomodará tão facilmente ao princípio de autorregulação de Smith e sublinhará a existência de contradições Sismondi logo após chegará mesmo a negar esse princípio da autorregulação Isso não anula o fato de que dora vante as considerações econômicas quer levem a reduzir a importância do político ou ao contrário demandem uma outra política passam a fazer parte integrante da reflexão sobre o Estado e o governo INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Quesnay F Tableau économique de la France 1758 PUF 1958 Ricardo D Principes de Ieconomie politique et de limpôt 1817 ed brasileira Princí pios da economia política e da tributação col Os Economistas Abril Cultural São Paulo 1982 Smith A Recherches sur la nature et les causes de la richesse des nations 1776 Galli mard col Idées 1976 extratos ed brasileira parcial Investigação sobre a natureza e a causa da riqueza das nações in Os Pensadores Abril Cultural São Paulo 1974 volXXVIII p7247 66 História das ideias políticas Soberania e vontade geral o povo Rousseau A obra de JeanJacques Rousseau 171278 deu lugar a uma multiplicidade de interpretações ainda hoje das mais contraditórias Filósofo das Luzes cujos princípios combate teórico dos direitos naturais que não poupa sarcasmos à Escola do Direito Natural promotor de uma revolução liberal cujas taras descreve antecipadamente individualista empenhado em construir os fun damentos do coletivismo totalitário uma certa tradição universitária não terá terminado por apagar as ambiguidades as contradições os sofismas de Rousseau E uma certa tradição política não terá passado de uma rejeição horrorizada à tentativa de recuperação mais incoerente Uma tradição ins titucional finalmente não o terá incorporado à República burguesa mas ao preço de algumas censuras Da desigualdade Desde 1754 refletindo sobre as fontes da desigualdade entre os homens e pole mizando assim sobre a natureza humana Rousseau advertiu seus contempo râneos para a grande heterogeneidade das teses que precederam a sua e tentou denunciar esse erro comum aos teóricos do direito natural que transpor taram para o estado de natureza ideias que haviam tomado da sociedade que falavam do homem selvagem enquanto retratavam o homem civilizado Ele tenta assim advertilos para sua aversão a todo primitivismo naturalista É preciso destruir as sociedades esmagar o teu e o meu e voltar a viver nas florestas com os ursos Uma consequência à maneira de meus adversários para a qual tanto gostaria de chamar a atenção como de deixar para eles a ver gonha de tirála Em vão e durante séculos pois esse mito do bom selvagem resta misteriosamente preso às premissas de seu pensamento político Rousseau percebe originariamente duas espécies de desigualdade a primeira natural ou física devida à diferença de idade de saúde da força corporal ou das qualidades do espírito em nada lhe interessa já que não poderia fundar nenhuma organização social a segunda moral ou política parece estabelecida com o consentimento dos homens após uma espécie de convenção e é a única que merece ter sua origem e seu processo descritos Já que ela não é natural seu segredo pode residir nessa defasagem entre o estado de natureza e a civilização Mas o estado de natureza não é mais do O PríncipeEstado que uma hipótese teórica uma operação do espírito um postulado da razão Comecemos por afastar todos os fatos proclama Rousseau contra Grócio e contra todos os que pretendendo sempre estabelecer o direito pelo fato não poderiam empregar um método que fosse mais favorável aos tiranos já que ele leva apenas a eternizar o que é e por conseguinte à desigualdade A natureza humana a que interessa a Rousseau exclui inclusive o instinto de sociabilidade Tudo parece afastar o homem selvagem da tentação de deixar de sêlo A sociedade civil ou política também nada deverá à Necessidade ela nasce de uma sequência de acidentes Entre esses o agrupamento das famí lias que se expande na idade de ouro das comunidades patriarcais mas tam bém o aparecimento da divisão do trabalho e desta propriedade que nada deve à natureza O primeiro que tendo cercado um terreno cuidou de dizer isto é meu e en controu pessoas suficientemente simples para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil Quantos crimes guerras assassinatos misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que arrancando as es tacas ou enchendo o fosso tivesse gritado a seus semelhantes Defendamse deste impostor vocês estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de to dos e que a terra não pertence a ninguém Se se pode falar de história ela é bem pouco linear mistura progresso e decadência já que foram o ferro e o trigo que civilizaram os homens e perderam o gênero humano De acidente em acidente a sociedade muda de natureza Desde o instante em que um homem sentiu necessidade do socorro de outro desde que se percebeu ser útil a um só contar com provisões para dois desapa receu a igualdade introduziuse a propriedade o trabalho tornouse necessário e as vastas florestas transformaramse em campos aprazíveis que se impôs regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germi narem e crescerem com as colheitas O pacto iníquo Ameaçados em sua segurança os homens são levados a consentir numa certa organização política a firmarem um certo contrato social Unamo 68 História das ideias políticas nos para defender os fracos da opressão conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse do que lhe pertence Em vez de voltar nossas forças contra nós mesmos reunamonos num poder supremo que nos governe se gundo sábias leis que protejam e defendam todos os membros da associa ção expulsem os inimigos comuns e nos mantenham em concórdia eterna Assim é fundada a sociedade política com base num contrato tão sábio e refletido quanto iníquo porque deu novos entraves ao fraco e novas forças aos ricos porque fixou para sempre para garantila a desigualdade entre os homens Portanto é inútil polemizar sobre a lei do mais forte ou sobre a autoridade paterna é errar de argumento e portanto de adversário A luta contra o despotismo exige preliminarmente essa compreensão do político e se é difícil convencer os homens a se revoltar isso se dá porque na origem eles não se lançaram na escravidão por capricho porque todos correram para seus grilhões acreditando assegurar sua liberdade porque não viram que as vantagens relativas e provisórias da segurança que esse contrato lhes proporcionava os levavam irremediavelmente à alienação de sua liberdade O homem pode denunciar esse pacto iníquo Sim certamente porque ele provou pelo menos que a origem do poder é humana convencional ar tificial e o que o homem fez pode desfazer nenhuma necessidade exterior e transcendente impõe ao homem uma ordem imutável A principal obra de Rousseau o Contrato Social propõe aos homens firmarem finalmente um pacto legítimo que lhes permita reconquistar a liberdade encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada asso ciado com toda a força comum e pela qual cada um unindose a todos só obedeça contudo a si mesmo Rousseau não diz de modo algum que é preciso reencontrar uma natureza perdida não propõe nenhuma fuga para trás e não cede a nenhuma nostalgia de paraísos perdidos já que a natureza não retroage é preciso encontrar os princípios de direito político de uma comu nidade verdadeira na qual a tensão entre o individual e o coletivo resolvase na equação entre o poder e a liberdade O contrato social O problema é insolúvel Podemos conceder a Rousseau o mérito de colocá lo sem tergiversações Esse contrato social legítimo nada tem de um contrato de governo já que antes de examinar o ato pelo qual um povo elege um rei seria bom examinar o ato pelo qual um povo é um povo Não se trata de um contrato estabelecido entre indivíduos mas do contrato de cada um consigo O PríncipeEstado mesmo e que transforma cada indivíduo num cidadão As cláusulas desse contrato reduzemse todas a uma só a saber a alienação total de cada asso ciado com todos os seus direitos à comunidade Desse modo o objeto do contrato se realiza Imediatamente esse ato de associação produz em lugar da pessoa particular de cada contratante um corpo moral e coletivo com posto de tantos membros quantos são os votos da assembleia e que por esse mesmo ato ganha sua unidade seu eu comum sua vida e sua vontade Rousseau não estará incorrendo aqui em flagrante delito de sofismà Não confundirá superstição e liberdade para se devotar às superstições ma joritárias Quanto ao primeiro ponto podese objetar que a alienação total permite a liberdade total na medida em que ela evita transpor para a socie dade política nova os estigmas da desigualdade preexistente Assim cada um dandose a todos não se dá a ninguém e não existindo um associado sobre o qual não se adquire o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo ganhase o equivalente de tudo que se perde e maior força para conservar o que se tem A liberdade só é submissão porque a submissão é voluntária e igual para todos e porque torna a liberdade moral liberdade moral que é a única a tornar o homem verdadeiramente senhor de si pois o impulso apenas do apetite é escravidão enquanto a obediência à lei que se prescreveu para si mesmo é liberdade A primeira questão portanto resolve a segunda a igualdade supõe a unanimidade a primeira convenção aquela que faz de um povo um povo exclui qualquer princípio majoritário Onde estaria a não ser que a eleição fosse unânime a obrigação do menor número de se submeter à escolha do maior E por que cem que desejam um senhor têm o direito de votar por dez que não o desejam A lei da pluralidade dos sufrá gios é em si mesma um estabelecimento convencional e supõe pelo menos uma vez a unanimidade Desse modo o Corpo Político objeto do contrato social não resulta da adição das vontades particulares ele se confunde com a vontade geral tal como essa resulta da alienação total de cada indivíduo e portanto de sua liberdade que não é mais do que a capacidade que ela pos sui de fazer com que sua vontade geral domine sobre sua vontade particular A vontade geral dá a existência e a vida do corpo político a soberania é seu exercício e a legislação seu movimento As características da soberania É a vontade geral que indica as características gerais da soberania ela é ina lienável indivisível infalível absoluta 70 História das ideias políticas A primeira característica é fundamental e leva Rousseau a afastar o re gime representativo os Constituintes revolucionários que assimilaram a teo ria rousseauniana da lei esqueceram que essa só tem sentido em relação com essa condenação prévia enunciada em termos pouco equívocos Afirmo pois que a soberania não sendo senão o exercício da vontade geral jamais pode alienarse e que o soberano que é apenas um ser coletivo só pode ser representado por si mesmo O poder pode ser transmitido não porém a vontade E Rousseau insiste nas consequências de uma tal proposição Os deputados do povo portanto não são nem podem ser seus representantes são apenas seus comissários não podem resolver nada definitivamente Toda lei que o povo não ratificou pessoalmente é nula não é absolutamente uma lei O povo inglês pensa ser livre mas enganase fortemente só o é durante a eleição dos membros do Parlamento tão logo esses são eleitos ele é escravo não é nada Quanto à segunda característica que Rousseau atribui à soberania ela irá desencadear inúmeras controvérsias constitucionais a soberania é indivisível porque a vontade ou é geral ou não é ou é a vontade do corpo do povo ou é somente a de uma parte No primeiro caso essa vontade declarada é um ato de soberania e faz lei no segundo não passa de uma vontade particular ou de um ato de magistratura é no máximo um decreto E Rousseau ironiza os partidários de uma divisão dos poderes comparandoos a esses charlatães do Japão que fingem esquartejar uma criança jogando para o alto os seus membros para depois fazêla cair viva e unida diante dos espectadores A soberania é ainda infalível e absoluta infalível porque a vontade geral é sempre justa e tende sempre à utilidade públicà absoluta porque assim como a natureza dá a todo homem um poder absoluto sobre todos os seus membros o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus No que se refere a essas duas características surgem novamente inú meros contrassensos a partir do momento em que se confunde vontade ge ral com vontade majoritária mas o próprio Rousseau tem a preocupação de precisar que as deliberações do povo nem sempre têm a retidão da vontade geral que a generalização da vontade resulta menos do número de votos do que do interesse comum que os une e sobretudo que o absolutismo do po der soberano tem limites os mesmos que o tornam absoluto por meio do contrato social e que dizem respeito à igualdade dos indivíduos se o poder O PríncipeEstado 71 soberano tentar romper essa igualdade se ele der mais encargos a um súdito do que a outro a questão se torna particular não mais estaremos diante do exercício de uma vontade geral tal poder portanto não é mais nem sobe rano nem absoluto A lei O mesmo ocorre com essa expressão da vontade geral a lei que dá ao corpo político o próprio movimento que o conserva A lei que define a generalidade de seu objeto é certamente obra do Povo Mas como ousa insistir Rousseau a quem sempre se criticou este ceticismo Como é pos sível que uma multidão cega que frequentemente não sabe o que quer pois raramente sabe o que é bom para ela executaria por si mesma um empre endimento tão gigantesco tão difícil como é um sistema de legislação A vontade geral é sempre justa mas o julgamento que a guia nem sempre é esclarecido Os particulares veem o bem que recusam o público quer o bem que não vê Todos precisam igualmente de guias Rousseau que funda toda soberania na Razão sabe que o homem é capaz de irrazão donde a ne cessidade de um legislador nem soberano nem governante simples conse lheiro em matéria de razão remédio para a ausência de deuses pois seriam necessários deuses para dar leis aos homens mas nem todo homem é capaz de fazer com que os deuses falem nem são acreditados quando anun ciam ser seus intérpretes O ceticismo de Rousseau é ainda maior quando trata do povo e de seu governo Assim ele multiplica os conselhos de conveniêncià pregando por exemplo uma boa proporção entre a extensão do território e o número da população a fim de tornar o povo apto para a legislação Quanto ao governo erradamente confundido com o soberano já que ele é apenas o comissá rio o ministro o funcionário desse último pode ser democrático aristo crático ou monárquico mas essas denominações referemse apenas à forma do poder executivo e jamais à fonte da soberania As três formas de governo apresentam vantagens e inconvenientes mas qualquer que seja a forma adotada é preciso ter em mente que a inclinação natural de todo governo é tornarse independente do soberano lssim como a vontade particular age incessantemente contra a vontade geral do mesmo modo o governo faz um contínuo esforço contra a soberania O Contrato Social deixa algum modelo positivo para o uso de consti tuintes empenhados em estabelecer uma legislação política A lição de Rous 72 História das ideias políticas seau é mais sutilmente irônica quem ensinando o direito fala melhor so bre o fato mas revela as razões de se revoltar legitima apenas as revoltas da Razão INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Cassirer E La philosophie des Lumieres 1932 Fayard 1966 Derathé R JeanJacques Rousseau et la science politique de son temps PUF 1950 Lardreau G Le singe dor Mercure de France 1973 Rousseau JJ Discours sur làrigine de linégalité parmi les hommes 1756 Le Contrat so cial 1762 in La Pléiade eds brasileiras Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e Do contrato social in Os Pensadores Abril Cultu ral São Paulo 1973 respectivamente p207326 e 7151 O sujeito moral história e liberdade Kant Tal como Descartes Immanuel Kant fundador em final do século XVIII do criticismo filosófico não escreveu um Tratado de política Todavia sua obra interessa à reflexão sobre o Estado e sua organização de uma dupla ma neira diretamente por um lado na medida em que suas análises que in cidem sobre a moral os costumes o direito e a história definem conceitos que têm implicação política indireta e talvez mais profundamente por outro lado na medida em que sua concepção filosófica do conhecimento e do sa ber da prática termo que significa para ele a ação que institui a ordem da moralidade e dos fins últimos do homem influir duradouramente no pen samento político moderno tanto pelas perspectivas metodológicas que abriu como pelos resultados que permitiu adquirir A importância desse segundo aspecto que pode ser visto entre outros exemplos na influência de Kant em trabalhos tão diversos como os de Léon Bourgeois e Max Weber decorre do fato de que ele soube levar em conta ao mesmo tempo o progresso das ciências na era clássica e os efeitos culturais e morais da transformação das sociedades Na Crítica da Razão Pura 1781 Kant desenvolve uma teoria do conhecimento que estabelece a objetividade ou seja a universalidade e a necessidade das fórmulas do matemático e dos enunciados do físico mas essa só pode ser estabelecida por meio da expe rimentação desse modo ele funda o estatuto das ciências modernas Mas nega a essas últimas o direito de se constituírem em saber capaz de enunciar as propriedades do Seremsi já que por definição elas são relativas à estrutura universal do Espírito humano Na mesma óptica Kant denuncia as pretensões da metafísica que constrói discursos coerentes e contraditórios entre si os quais não podendo ser relacionados com a experiência possível são inverificáveis rigorosamente Portanto devese renunciar de uma vez por todas ao sonho do Saber absoluto Mas isso implica admitir que o Absoluto é uma ideia vazia Que não existe o incondicionado Os Fundamentos da Metafísica dos Costumes 1785 e a Crítica da Razão Prática 1788 propõem uma resposta a essas questões de rigor e originalidade surpreendentes O Absoluto não é e não poderia ser algo dado existe apenas pelo ato de uma vontade que o afirma e na medida em que o afirma Ora a única realidade que uma tal vontade pode pôr como incondicionado é o Sujeito moral Se se quer compreender a existência humana e a irreprimível inclinação pelo Absoluto que é testemunhada pela persistência da ilusão metafísica e da vida moral cotidiana é preciso postular que o homem é vontade livre ao mesmo tempo em que pertence ao mundo natural e como tal é submetido ao determinismo mais estrito vontade livre ou seja capaz de escapar da ordem natural e de se constituir precisamente como Sujeito autônomo como sujeito que dá leis a si mesmo que dependem apenas dele Para escapar do determinismo um sujeito tem de querer obedecer apenas a leis formais leis que excluam qualquer referência a um conteúdo qualquer seja trato de prazer sensual da utilidade social do amor de Deus ou da consciência do dever cumprido A única consideração à qual um sujeito livre pode se submeter referese à instituição da comunidade dos sujeitos livres constituindo uma espécie de sobrenatureza que afirma no interior e acima da natureza submetida ao determinismo a constante e preciosa exigência de liberdade Atua sempre de tal modo que sejas o legislador e sujeito num reino de fins tornado possível pela autonomia da vontade Esse imperativo categórico está no coração da reflexão kantiana sobre a moral aplicada sobre o direito e a história Num texto que data de 1784 O que é a Ilustração Kant mostra como o imperativo prático impõe a cada um o dever de discutir publicamente sobre qualquer obediência imposta pela ordem empírica do Estado da Religião e da opinião pública e de exigir a arbitragem da Razão A Metafísica dos Costumes 1797 analisa as condições em que um contrato privado que sujeita as partes contratantes a um compromisso empírico pode corresponder à exigência moral é preciso e basta 74 História das ideias políticas que o compromisso seja tão exatamente recíproco e equilibrado que de um lado e do outro anulese o elemento da sujeição Nessa moralização e nessa racionalização da ordem empírica das sociedades Kant vê o meio de intro duzir a finalidade humana no tecido do determinismo A Ideia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita 1784 concretiza essa perspectiva Se é extremamente difícil a um indivíduo fazer triunfar a lei moral cá embaixo o mesmo não sucede se se considera a es pécie humana em seu devir É no seio dessa história universal que Kant crê possível definir o alcance da teoria moral por ele elaborada essa atua como uma Ideia ou seja como uma tarefa infinita jamais inteiramente realizada porém sempre existente e insistente O que aparece é que para além das dife renças de raças e de nações dos conflitos naturais que opõem os grupos entre si impõese progressivamente a necessidade racional de uma paz universal e de uma sociedade de nações que permitam aos indivíduos serem legisladores e sujeitos num reino de fins Prosseguindo seu objetivo de construir uma filosofia popular Kant retoma aqui o projeto nascido no século XVIII de uma sociedade dos espíritos que agrupe as elites europeias e se esforce por estendêla como tarefa infinita ao conjunto da humanidade Volta à ilusão metafísica Decerto mas também projeto político formu lado já pelos teóricos do direito da pessoa ligado a certos espíritos nascidos da Revolução Francesa ou seja o projeto de instituir uma sociedade que para além do quadro empírico dos EstadosNação e das novas sujeições que eles segregam assegure a todos os indivíduos a possibilidade da autonomia INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Kant 1 Critique de la Raison pratique 1788 Vrin 1967 Fundamentos da metafísica dos costumes 1785 Projeto de um tratado de paz perpétua 1796 Philosophie de lhistoire Aubier 1947 coletânea de vários textos Neil E Tu Ruyssen e M Viley et al La philosophie politique de Kant PUF 1962 Vlachos G La pensée politique de Kant PUF 1962 A história universal o Estado racional Hegel A obra de GWF Hegel situase na linha direta do pensamento kantiano com a diferença decisiva de que não recusa de nenhum modo a ideia do Saber O PríncipeEstado 75 Absoluto Desde 1806 quando da publicação da Fenomenologia do espírito Hegel se põe como objetivo garantir a passagem da filosofia à ciência filo sófica e essa é exposta como sistema acabado na Ciência da lógica dez anos depois Quanto ao problema político o filósofo de Berlim reitera a perspec tiva aristotélica já que considera que o Saber sobre a política exposto nos Princípios da filosofia do direito 1821 é um momento do desenvolvimento do Saber filosófico Assim enquanto Kant transfere para as vontades livres a tarefa nunca terminada de atualizar o Absoluto Hegel julga que os tempos são propícios à conclusão e à realização da ambição metafísica contanto que se saiba reconhecer na realidade presente marcada pelas revoluções americana e francesa e pela constituição do modelo de Estado napoleônico o começo do fim da história Qualquer que seja nossa opinião sobre esse jul gamento e sua validade se analisamos Hegel nesse ponto embora suas análises sejam posteriores à Revolução Francesa é porque ele conclui com uma apoteose o movimento que iniciado com Marsílio de Pádua e os lega listas esforçouse por pensar o Estado soberano como modo de organização ao mesmo tempo necessário e legítimo da existência social Política e filosofia A compreensão da teoria do Estado exposta no texto de 1821 apressadamente qualificada de monarquista de absolutista até de reacionária por numerosos comentadores que acreditam seguir as pegadas de Marx supõe o conhe cimento da técnica de exposição elaborada por Hegel por um lado e por outro a apreensão dos traços característicos da filosofia da história que ele elaborou precisamente como realização e superação do projeto metafísico No que se refere à exposição Hegel a quem frequentemente se atri bui a invenção do pretenso método dialético não deixa de repetir que não existe outro método além do movimento da própria coisà Essa se impõe inicialmente em sua imediaticidade como realidade feno mênica independente em si assim na Filosofia do direito o Estado ob jeto da pesquisa apresentase ao cidadão ingênuo apolítico em suas manifestações empíricas como instituição judiciária que visa à equidade e pune os delitos e os crimes No segundo momento a contingência dessa realidade seu caráter pura mente fenomênico exige um retorno até o sujeito cognoscente que forma uma representação ou um conceito que tem a função de inteligibilidade História das ideias políticas ou seja na Filosofia do direito o retorno do cidadão à sua própria subje tividade o qual se interroga sobre o fundamento do exercício do direito abstrato e descobre que ele é a origem do mesmo No terceiro momento o conceito reconhecendo sua abstração exterio rizase num ato que constitui o real que o realiza na Filosofia por exem plo o sujeito moral experimentando sua fragilidade se reencontra na mediação de sua participação na família da atividade profissional e das exigências políticas que essas implicam como cidadão reconhecendose doravante como ser cuja existência se efetiva no e pelo Estado Todavia esse estatuto da cidadania e do Estado é o da época contem porânea Ora essa não nasceu do nada é um resultado é o produto de um passado que a fez ser o que é A novidade profunda do hegelianismo é subs tituir o Ser substância imutável dos metafísicos clássicos pelo Devir do qual a humanidade é o sujeito Ora esse devir na óptica hegeliana é es pecificado sua filosofia da história alimentada por uma informação consi derável examina a sucessão dos Povos que encarnaram em sua época com os meios que lhes eram dados e com suas invenções singulares a vontade de liberdade e de racionalidade do homem Cada um deles asiáticos egípcios gregos romanos hebreus cristãos primitivos muçulmanos europeus ela borou ao mesmo tempo que costumes universos religiosos obras de arte também formas políticas o despotismo oriental a Cidade o Império o Santo Império o Estado moderno da Reforma à Revolução Francesa e ao centra lismo napoleônico Cada um tendo superado o precedente ao descobrir suas insuficiências e ao integrar às invenções dele as suas próprias invenções marca uma etapa no advento da humanidade livre e racional O momento presente segundo Hegel que é precisamente o da formação do Estado que toma como princípio de sua organização a Razão e a Liberdade per mite finalmente conhecer esse Devir e portanto perceber seu acabamento Esse é o enigma resolvido do Saber Absoluto a existência do Estado como Razão em ato Mas existência não é realidade os manufatureiros ingleses os patriotas franceses os atuais governantes da Prússia não sabem o que fazem O objetivo da Filosofia do direito não é certamente dizer como deve ser o Estado a pre tensão dos filósofos de propor modelos é nessa matéria histórica ridícula O que o Saber filosófico pode fazer é mostrar como o Estado deve ser conhecido a fim de facilitar a assimilação do novo e poupar assim aos homens tanto quanto possível as extremas violências Como se vê o pensamento político de Hegel é realista quando Platão constrói a Cidade ideal não faz mais do O PríncipeEstado 77 que confessar a incapacidade em que se encontra a Cidade real para superar suas contradições a não ser no plano ideal quanto aos diversos teóricos do direito natural eles testemunham cada um em seu tempo a inadequação dos direitos positivos em uso e a vontade histórica ainda pouco enraizada de substituílas por novos direitos Sociedade civil e Estado Como o Estado moderno deve ser conhecido A maneira imediatà de ser da existência coletiva é a família Essa se manifesta como fato biológico o laço de sangue e como relações afetivas Todavia sua realidade está no pa trimônio quer se trate da propriedade no sentido estrito ou simplesmente para os pobres da posse dos filhos Propriedade que assegura a subsistência e a progenitura constituem o substrato da existência social o que assegura a sobrevivência natural Essa imediaticidade é abolida e ultrapassada no tra balho social Leitor de John Locke e dos chamados economistas clássicos Hegel analisa as atividades profissionais ligadas à divisão do trabalho como elementos constituintes de um domínio próprio que ele designa com a ex pressão Sociedade Civil que é preciso notar significa também em alemão sociedade burguesà A sociedade civil em seu tríplice aspecto de produção distribuição consumo forma para uma coletividade territorial dada um sistema no sentido de que cada um dos seus elementos remete a todos os outros A di nâmica dessa totalidade sua força de progresso qualitativo e quantitativo é assegurada pelo princípio que a governa a busca do lucro máximo e a con corrência que engendra uma vontade constante de melhoria beneficiando a civilização material da coletividade e estimulando sua energia Todavia He gel não pensa que a autorregulação do mercado com a qual contava Adam Smith desempenhe um papel A manutenção das contradições é inelutável rivalidades entre indivíduos no interior de uma mesma profissão oposições entre as diversas profissões antagonismos entre os ricos e os pobres Esses antagonismos podem atingir um tal grau que ponham em perigo a unidade da coletividade As soluções que a sociedade civil realiza graças a seu próprio movimento a conquista de mercados estrangeiros e a colonização não parecem ser suficientes Desse modo devese reconhecer a significação e o alcance da sobera nia do Estado Esse é o princípio necessário que garante a unidade da cole História das ideias políticas tividade a potência plena que emana de suas decisões e a sacralidade laica das leis que ele edita transformamno no árbitro dos conflitos da sociedade civil e no senhor das operações diante das ameaças que provêm do exterior Essa soberania é por definição depositária do interesse universal do todo so cial Todavia para que ela atue em função do que é tornase necessário que seja conhecida e praticadà em função de sua essência Ora não é o que ocorre segundo Hegel Embora a necessidade da história tenha produzido o Estado como princípio de unidade governantes e governados não sabem o que ele é Compreendemno como uma força coercitiva que resulta ou da Providência Divina ou do direito senhorial de conquista e de uma relação de tipo protetorprotegido ou da vontade popular que designa seu repre sentante Desconhecem que a capacidade de arbitragem só pode pertencer à Razão em ato Para que o Estado seja tal é preciso que ele seja efetivamente encarnado por governos que dispõem da força da Razão Ao direito divino ao absolutismo real que reinava na Prússia à demo cracia representativa e às combinações entre essas formas Hegel opõe o Es tado onde o poder executivo onde a autoridade administrativa e legislativa são exercidas por funcionários recrutados em função apenas de sua compe tência que se delineia sobre o pano de fundo do saber racional Pouco im porta que o monarca depositário empírico da soberania seja designado por via hereditária já que a realidade do poder pertence ao corpo de funcioná rios Esses têm como missão impor um programa de interesse universal ra cionalmente calculado o qual de resto será por eles discutido com os repre sentantes dos interesses profissionais nas câmaras consultivas a fim de fazer com que universalidade e particularidade convirjam tanto quanto possível Para reduzir as coisas às suas dimensões empíricas o Estado hegeliano é uma monarquia onde o monarca está submetido às mesmas leis que todos os outros cidadãos e onde o governo de fato pertence a uma administração racional e técnica que se supõe ser competente e devotada à coletividade A implantação de um regime que existe apenas como projeto deveria permitir a cada um realizarse como cidadão livre Entretanto subsiste um obstáculo importante a essa plena realização que reconciliaria como o queria Kant Razão e Liberdade a particularidade em que os Estados ainda se encontram imersos Hegel prevê uma sequência de conflitos internacionais de extrema violência da qual deve surgir o Estado mundial que é o fim da história ou seja a superação de todas as contradições e o reino da transparência Hegel descreveu em sua essência o Estado moderno até nossos dias como o supunham Alexandre Kojeve e Eric Weil Não será antes o teórico genial que tentou mascarar as contradições da sociedade burguesa como o julgava Marx O que é certo é que ele é o pensador mais rigoroso e mais profundo dessa forma histórica que é o EstadoNação CAPÍTULO 1 1 1 O Estado Nação A doutrina política de Hegel aparece como a teoria rigorosa do Estado em sua acepção moderna Ela se alimenta em particular da experiência histó rica fornecida pela Revolução Francesa e pelo Império Napoleônico que dela derivou Para captar mais precisamente o devir dessa forma de Estado no decorrer do século XIX e analisar as tomadas de posição e as concepções do poder que ela suscitou é preciso voltar atrás e interrogar essa experiência e os textos partidários programáticos ou críticos dos que participaram dos eventos Uma ideia se impõe uma ideia certamente já presente nos pensa dores do século XVIII e em Hegel mas que irá doravante desempenhar um papel decisivo a ponto de caracterizar toda a política moderna e contempo rânea a de nação Doravante o EstadoNação constitui o quadro obrigatório da existência social ele é a realidade política por excelência em torno da qual se organizam os atos históricos Sobre a data de nascimento dessa realidade nos diversos países há nu merosas discussões e na falta de critérios precisos discussões confusas As páginas anteriores mostraram que a ideia do Estado como potência sobe rana no mundo terreno encontra sua origem na Europa Medieval Quanto à primeira identificação da nação nesse ou naquele território ela é objeto de debates históricos onde as segundas intenções políticas raramente estão ausentes De resto quem poderá jamais afirmar que uma Nação se consti tuiu para sempre De qualquer modo o que é certo é que o EstadoNação enquanto representação política que implica o fato de que as populações que constituem uma sociedade no mesmo território reconhecemse como per tencentes essencialmente a um poder soberano que emana delas e que as ex pressa surgido certamente com a Restauração Inglesa de 1690 afirmase fortemente com a Revolução Americana de 1776 e com a Revolução Francesa e para essa desde 1790 quando ela é ainda realistà E esse EstadoNação é ainda hoje a trama do mundo político quaisquer que sejam suas diversida des e novidades 80 AS REVOLUÇÕES AMERICANA E FRANCEZA DOUTRINÁRIOS PARTIDÁRIOS E ADVERSÁRIOS As discussões relativas ao momento de emergência do EstadoNação cruzamse em parte com as que tratam da importância dessas duas séries de eventos Afirmase prazerosamente que a República é a forma normal de acesso à independência de uma colônia que reivindica sua emancipação nessa época o imaginário político em função dessas opções tende a considerar 1789 ou como o ano I da era da liberdade ou como um ato desastroso que nenhuma reação conseguirá jamais corrigir inteiramente 82 História das ideias políticas Gérard A La Révolution française mythes et interprétations 17891970 Flammarion Questions dhistoire 1970 Godechot J Les Révolutions 17701789 PUF 2 ed 1965 La pensée révolutionnaire en France et en Europe 17801799 A Colin col U 1964 Hobsbawm E Zere des révolutions Fayard 1964 ed brasileira A era das revoluções Europa 17891848 Paz e Terra Rio de Janeiro 1979 Significação da Revolução na América do Norte A rebelião dos colonos de origem britânica que levou à fundação da Repú blica dos Estados Unidos é importante sob múltiplos aspectos Dirigida contra a Coroa inglesa ela legitima a secessão que realiza re metendose a princípios políticos aplicados pelo Reino Unido e sublinhando em particular que os colonos não têm nenhuma representação na Assembleia que decide sobre seus problemas Embora liderada por políticos realistas ela valese prazerosamente para se justificar na Declaração de Independência 1776 e na Declaração dos Direitos 1787 das noções assimiladas da doutrina dos direitos naturais de John Locke em particular a da insurreição sagradà Nos momentos de seu desenvolvimento ela não deixa de insistir sobre o papel motor das instituições na instauração da sociedade nova como se o Estado fosse o criador da Nação esforçandose por manter constante mente o equilíbrio entre a tradição puritana e a novidade republicana entre os poderes locais e a autoridade federal entre os costumes da vida rural e os desejos de entrar no concerto do mundo industrial nascente Enquanto tal ela constitui ao mesmo tempo um modelo e um exem plo na luta contra uma sujeição ilegítima travada em nome da igualdade natural da liberdade de empresa e para cada um do direito de usufruir sua propriedade e os frutos do seu trabalho assim como para a coletividade de escolher as instituições e os magistrados que lhe convenham Ela influirá nos atos iniciais da Revolução Francesa desempenhará um papel capital no desencadeamento das insurreições que levarão as colônias espanholas e por tuguesas da América do Sul à independência A boa consciêncià dos insurrectos de 1776 seus pontos de vista ao mesmo tempo egoisticamente utilitários e idealistas a aliança entre as preocupações a curto prazo e o desejo de fundar uma potência de tipo novo expansionista e segura de si definem os contornos de uma espécie de O EstadoNação nacionalismo institucional que doravante será característico da República norteamericana que no interior concebe a democracia menos como ex pressão da vontade popular do que como um jogo devidamente controlado de instituições representativas e no exterior apresentase como detentora do segredo das liberdades INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Arendt H Essai sur la Révolution 1963 Gallimard 1967 De Tocqueville A La démocratie en Amérique 18351840 Gallimard 1951 ed brasi leira A democracia na América Itatiaia Belo Horizonte 1963 A Revolução na França a nação contra a tirania Sieyes A situação é bem diferente na França A imagem da Nação está fortemente implantada na representação coletiva e a ação centralizadora da monarquia contribuiu bastante para reforçar tal imagem A despeito das carências da política monárquica e da pobreza endêmica de uma parte da população a sociedade francesa é rica e numerosa É contra esse pano de fundo que irão se apoiar as forças políticas que por ocasião da reunião dos Estados Gerais do Reino em julho de 1789 provocarão os primeiros grandes abalos É significativo que mais ainda que os colonos da América os promoto res do movimento tivessem tido para além da definição dos programas e do enunciado dos textos legislativos de legitimar seus atos políticos e de procla mar as razões de seu empenho Poucos regimes pelo menos até a queda de Robespierre tiveram como esse uma tal preocupação de legitimar sua ação e de anunciar a boanovâ A publicidade das ideias é considerada como uma arma contra o inimigo declarado a tirania E por trás dessa vontade de demonstração esboçase o projeto de uma mobilização universal contra os senhores que oprimem injustamente os povos Uma primeira tomada de posição significativa é a de Sieyes 17481836 membro da Assembleia Constituinte da Convenção do Diretório e artesão do golpe de Estado que abriu a Bonaparte o caminho do poder Sua brochura O que é o Terceiro Estado publicada em janeiro de 1789 teve uma influên cia determinante nos primeiros momentos do pensamento revolucionário e suas concepções da instituição republicana marcaram profundamente a redação das Constituições e dos códigos da República e do Império A indu História das ideias políticas bitável realidade na qual Sieyes se baseia é a Nação ela é um dado anterior a qualquer ato político ou legislativo é feita de indivíduos livres iguais inde pendentes diferentes uns dos outros mas unidos por necessidades comuns à natureza humana e pela vontade de viverem em conjunto Sem essa vontade sem a representação intelectual dessa entidade que é a Nação os indivíduos são impotentes e incapazes de resistir às operações de sujeição tentadas por bandidos e charlatães Todo indivíduo é um cidadão potencial que só se realiza na medida em que ligá sua vontade à dos outros membros do con junto com o fim de constituir o poder nacional É nesse sentido que a Nação é soberana que ela é una e indivisível Sieyes não se embaraça nem com a história nem com a sociologia sua metafísica é pobre e só intervém na medida em que justifica o ponto de vista político adotado Tratase para ele com efeito de designar o ser de razão em torno do qual se organiza o combate pela liberdade e pela igualdade e contra o arbítrio e os privilégios O ser real da Nação é o Terceiro Estado que agrupa a imensa maioria da população que com exclusão dos privilegiados é a parte viva do reino O Terceiro Estado é tudo a abolição dos privilégios é um convite aos que por seu nascimento não conseguem pertencer ao todo e também um convite a eliminar a coletividade os que não querem renunciar a tais privilégios Da Nação do Terceiro Estado emanam todos os poderes Mas a Nação não poderia reinar como tal O exercício da soberania nacional passa pela implantação de uma Constituição que defina os órgãos da legislação e do go verno as autoridades judiciárias que realizarão e garantirão a liberdade e a igualdade dos cidadãos e mais geralmente a plenitude dos direitos naturais Ora o poder constituinte se quer ser eficaz deve obedecer a um princí pio o da representação Devem ser afastadas todas as tentações da demo cracia direta que levam à desordem e à impotência É mesmo conveniente que se desconfie do mandato particular que limita o poder do deputado às prescrições dadas pelos mandantes A boa representação é a que concede um mandato geral ao eleito é nessa condição que ele pode participar utilmente da elaboração da vontade nacional Em suma a encarnação do povo no corpo do rei é substituída pela re presentação na Nação nos corpos instituídos Num e noutro caso tratase de fazer prevalecer uma vontade Sieyes é um liberal mostrase profundamente apegado à salvaguarda das liberdades individuais em face da autoridade go vernamental que desconfia da democracia O Estado emana da Nação e a representa essa é autônoma com relação àquele a não ser politicamente caso em que lhe deve obediência O EstadoNação INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Condorcet AntoineNicolas Caritat marquês de Esquisse dun tableau historique des progres de lEsprit humain 1797 Boivin 1933 Furet F Penser la Révolution française Gallimard 1978 Guiomard JY Lidéologie nationale Champ libre 1974 Sieyes EJ Essai sur les privileges 1788 Questce que le Tiers Etat 1789 A NaçãoPátria a vontade do povo como fundamento da República Robespierre Saint Just Sieyes considera a separação dos poderes como a principal garantia das li berdades privadas O Comitê de Salvação Pública animado notadamente por Robespierre 175894 e por SaintJust 176794 recusa essa fragmen tação da soberania e quando adquire uma posição dominante exerce um poder sem partilha abril de 1793julho de 1794 Essa prática ligase a uma concepção inteiramente diferente do sentido da Revolução Essa prá tica é o ato do povo inteiro num primeiro momento o povo expulsou o poder que o oprimia Mas a experiência mostra que sua tarefa não para aí significaria perder a liberdade entregarse a instituições e a representantes tomados pelo demônio do poder O complô dos aristocratas é constante e ameaça a República tanto no interior quanto no exterior Na guerra contra os tiranos estrangeiros o papel essencial é desem penhado pelo povo em armas os oficiais e os generais estão a serviço da Nação e é preciso que as operações propriamente militares sejam com plementadas com uma estratégia política o exército da República é li bertador A pátria da liberdade tem como missão estender não suas fron teiras mas as da liberdade Quanto ao desenvolvimento das conquistas da Revolução no plano interno ele requer por um lado a unidade do povo e por outro a execução inquebrantável das vontades que o povo expressar Os movimentos de rua as discussões nas seções de bairro e de aldeia e nos clubes são os lugares privilegiados onde se reforça a unidade e se forjam as vontades Quem quer que os utilize para fins partidários e egoístas quem quer que deseje transformar a ação resoluta em agitação e em acerto de contas o que foi criticado respectivamente aos danto nistas e aos hebertistas será eliminado do mesmo modo que os cons piradores monarquistas Nessa óptica a assembleia dos eleitos é menos uma câmara legislativa e de administração do que o lugar público onde aqueles que o povo designou como responsáveis debatem sobre as modalidades de execução de todas as ordens implicadas pela realização dos objetivos fixados pelo povo soberano Assim a abstração que segundo Sieyès é a Nação é substituída por essa outríssima abstração que é a dinâmica popular supostamente unificada e contra a técnica das instituições representativas enquanto modo de organização e de governo da sociedade fazse apelo à democracia direta O EstadoNação A República como unidade do povo e administração do território O constitucionalismo de Sieyes visava pela técnica do mandato geral a proteger a independência do Executivo Robespierre ao contrário quer fazer dos representantes os mandatários das decisões singulares da vontade geral A conjuntura estratégica financeira e econômica na qual a Primeira Repú blica irá se engajar na luta contra a Europa suscita uma prática política e uma concepção que cedo se afirmarão como o traço característico do EstadoNa ção em seu estatuto moderno Quando a República ameaçada toma a iniciativa das operações militares e invade a Savoia e os Países Baixos austríacos a Bélgica o entusiasmo re volucionário sob o impulso entre outros de Anarchasis Cloots designa a França como o centro ativo da futura república universal que instituirá para além das nações a filantropia mundial Concretamente o que se afirma nesse projeto é a perspectiva de dar ao país suas fronteiras naturais ou seja de estendêlas para o Leste além do Reno e dos Alpes A ideia adaptase às especulações do século sobre as harmonias da natureza chocase com a opo sição da Inglaterra que entra na coalizão austroprussiana Desse modo confirmase pouco a pouco a linha política externa e interna que sob di ferentes retóricas leva ao Consulado e ao Império De acordo com JeanYves Guiomard podemos chamála de política da defesa nacional Defender um povo e seus ideais é defender e administrar seu território é portanto aumentar por todos os meios o seu potencial militar financeiro e econômico é soldar a coletividade por meio de uma organização socioju rídica que assegure tanto quanto possível o respeito pelos direitos naturais e o aumento da segurança e das riquezas Um tal programa supõe por um lado um fortalecimento geral do Executivo cujo instrumental é um exér cito nacional e uma administração centralizada que estenda sua rede sobre o conjunto do território e por outro uma independência da sociedade civil constituída como lugar da livreempresa Os princípios de filosofia do direito de Hegel estabelecem a teoria desse sistema do EstadoNação A nação como ser de razão segundo Sieyes ou o povo como força uni ficadaunificante segundo Robespierre parecem encontrar consistência nessa concepção do território Com efeito esse último é inteiramente abs trato só ganha realidade na medida em que impõe uma unidade de estru tura administrativa e política e desse modo define um espaço de dominação em cujo seio se efetuam segundo regras codificadas as trocas sociais e em particular as trocas econômicas Sob esse aspecto o grande construtor nesse 88 História das ideias políticas terreno foi Napoleão Bonaparte general convertido em imperador o qual completa o trabalho de racionalização do território nacional empreendido pela Convenção e pelo Diretório INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA Mathiez A Danton et la paix 1919 A Cochin Les sociétés de pensée et la démocratie Plon 1921 G Lefebvre Les Thermidoriens A Colin 1929 Aspectos dos juízos contemporâneos sobre a Revolução na França Burke J de Maistre Os dois primeiros anos da Revolução foram saudados com entusiasmo pela grande maioria da intelligentsia europeia conquistada para as ideias da Idade das Luzes Todavia se excetuarmos Kant cf supra cap II Fichte cf in fra cap III 2 A e Hegel na Alemanha e o inglês Thomas Paine eleito deputado à Convenção esse entusiasmo não durou muito as vitórias mi litares do exército francês e o Terror provocaram um recuo geral e pouco tempo depois a hostilidade o nacionalismo pregado pela República suscita em ação de retorno reações nacionais das quais a evolução de Fichte é um sugestivo testemunho A atitude de Edmund Burke 172997 se destaca pela sua firmeza Esse membro do Parlamento britânico aristocrata irlandês liberal que defendeu os direitos dos católicos da Irlanda e legitimou a insurreição dos colonos da América publicou já em 1790 suas Reflexões sobre a Revolução na França que condenam o empreendimento revolucionário sem apelação Ele o con dena por ser o fruto da Razão abstrata dos filósofos que só pode engendrar desordem e violência Colocando como objetivo o estabelecimento da liber dade e da igualdade universais os patriotas franceses voltam as costas para a natureza Decerto a ideia de natureza sobre a qual Burke se apoia carece de clareza dela fazem parte tanto considerações teológicas depende da in compreensível Providência Divina como referências empíricas o conhe cimento que os homens têm da natureza é função de suas experiências Mas é precisamente forte o sentimento que temos de que há uma realidade que não depende de nós e que só podemos apreender com referência à tradição lentamente forjada pelos ancestrais e graças às nossas próprias vicissitudes que leva a recusar como ineptos e perigosos os projetos que procedem por decreto e que especulam com uma metafísica da humanidade O EstadoNação Uma Constituição fabricadâ pela reflexão é inoperante o contrato so bre o qual se funda uma organização social sólida e equilibrada instaurouse progressivamente por uma lenta maturação no curso da qual se revelaram os benefícios do bomsenso e da virtude e do uso bem regrado da liberdade Se o povo inglês é hoje um povo livre constata Burke isso ocorre por que ele aprendeu no curso dos séculos a implantar instituições diversifica das que garantem as liberdades compatíveis com a ordem e a obediência em vez de reivindicar a liberdade em geral e porque ele se ligou a pessoas e não a princípios Burke denuncia com vigor as pretensões centralizadoras da Constituinte como a sua vontade de legiferar de uma vez por todas Na opinião dele as regras às quais devemos nos dobrar são as da moral legada pela tradição quanto ao governo não é coisa de que qualquer um possa se ocupar o tempo e a experiência segregam em cada época uma aristocracia que sabe calcular a política conveniente ao bemestar da coletividade Pois o conservadorismo do moralista se alia sem dificuldades aparentes com o sen tido do útil lugarcomum do pensamento britânico desse período Na mesma óptica Jeremias Bentham 17481822 não tardará a elaborar uma teoria da pena e da instituição carcerária a qual como Michel Foucault mostrou cf infra cap X instaura em nome da segurança de todos e do respeito às liberdades privadas de cada um uma técnica de vigilância ge neralizada A despeito dessa sabedoria um tanto ou quanto limitada a obra de Burke testemunha uma visão aguda da falha que seu caráter doutrinário represen tou para a Revolução Francesa Ela explicita uma crítica bem mais pertinente do que a pesada teoria da história providencialista administrada por Joseph de Maistre 17531821 em suas Considerações sobre a França 1796 ou do que as estranhas Considerações sobre as Revoluções 1797 de Chateaubriand 17681848 divididas entre as fidelidades monarquistas de seu autor e a atra ção que sente pela ideia da liberdade Mas já uma outra Europa está em vias de nascer o rumor das botas dos exércitos imperiais despertam os nacionalismos e as dinastias burguesas es tão prestes a substituir as monarquias decadentes 0 NACIONALISMO N A EU RO PA A ideologia nacionalista decerto é bem anterior ao século XIX Mas foi du rante esse período que a Nação passou a ser tomada como tema de análise e de reflexão e que foi erigida em argumento destinado a justificar um tipo de 90 História das ideias políticas poder É difícil distinguir nela o que pertence à concepção política e o que resulta do espírito da época expresso nas obras literárias e nos sentimentos e movimentos populares Os textos que a tomam como objeto pretendendo teorizála são eles mesmos muito disparatados no que se refere aos tipos de provas a que aludem Hyppolite Taine que se quer positivo não é tão meta físico quanto Fichte E a história de Treitschke não é tão romântica quanto a de Michelet As concepções aqui evocadas visam a mostrar a diversidade e a impor tância do tema do nacionalismo que alimenta tanto os partidários quanto os detratores da Revolução tanto os arautos da liberdade quanto os nostálgicos da autoridade tanto os contestatários quanto os conformistas INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Baldensterger F Le mouvement des idées dans lémigration française 17891815 Plon Nourrit 1924 2 vols Burke E Réflexions sur la Révolution en France 1790 Nouvelle Librairie Nationale 1912 ed brasileira Reflexões sobre a Revolução em França Editora Universidade de Brasília Brasília 1982 De Chateaubriand F Essai sur les révolutions 1797 Textos escolhidos in G Dupuis J Georgel J Moreau Politique de Chateaubriand A Colin col U 1966 De Maistre J Considérations sur la France 1796 Vrin 1936 Fichte JG Contribuição à retificação dos juízos do público sobre a Revolução francesa 1793 Philonenko A 1héorie et Praxis dans la pensée morale et politique de Kant et de Fichte Vrin 1968 Uma metafísica da Nação Oohann Gottlieb Fichte Discípulo de Kant em seus primeiros anos de magistério em lena Fichte per maneceu sempre um ardoroso defensor da Revolução Francesa embora num momento subsequente abandonasse os ideais filantrópicos que a ani mavam Ele chega mesmo a ver nos eventos de 1789 a experiência que lhe permitiu compreender o lugar decisivo que o eu livre ocupa na investiga ção filosófica Seu projeto consiste em levar ao mais alto grau de desenvolvi mento a filosofia transcendental de Kant Todavia essa própria exigência o O EstadoNação 91 leva a romper com seu mestre em dois pontos importantes no domínio ético e político Desde as Contribuições destinadas a retificar o julgamento do público so bre a Revolução Francesa 1793 mas sobretudo nos Fundamentos do direito natural 1796 recusa Kant em dois pontos por um lado recusa a separação operada por Kant entre teoria e prática entre a intenção moral liberada de qualquer contaminação empírica e a ação na qual ela se empenha por outro lado considera que o direito é de natureza diversa da moral e que exige um desenvolvimento autônomo Fichte com efeito é sensível ao fato de que a decisão moral pressupõe não somente uma relação intersubjetiva com outras consciências que não são mais concebidas como puros sujeitos abstratos mas também que a ação só tem sentido quando situada em um mundo que lhe resiste e que deve ser organizado segundo regras específicas referentes às necessidades corporais o direito Portanto ele investiga inicialmente as condições em que se pode con ceber uma unidade intersubjetiva suficientemente ampla para que se cons titua um povo e ele reencontra a perspectiva aberta por JJ Rousseau com a noção de vontade gerar no seio da qual cada sujeito em ato é um sujeito para todos os outros A solução que dá a essa questão pertence ao domínio de um pensamento especulativo e apresenta uma grande complexidade A orientação referente ao problema colocado pelo saber jurídico é mais acessí vel a relação intersubjetiva se caracteriza nesse domínio como relação entre vontades livres ela só subsiste na medida em que cada uma delas permanece limitada a si mesma Somente a potência do Estado é capaz de obter essa li mitação e de manter a unidade e isso porque o Estado define a cidadania A partir desse momento a ruptura com o espírito do século XVIII está consumada A cidadania destacada da ideia de propriedade não é mais con siderada como uma decorrência do direito natural E cada vez com maior clareza a referência à intersubjetividade substitui a noção de uma totalidade orgânica de onde emana um querer do qual o Estado é o executante pela noção da sociedade como conjunto de sujeitos autônomos que estabelecem relações racionais entre si Um novo passo nessa direção é dado quando Fichte desejoso de unificar seu país fragmentado em múltiplos poderes e de fazêlo ingressar na modernidade elabora sua teoria do Estado comercial fechado 1800 na qual atribui também a um Estado autoritário a função de organizar a economia a fim de aumentar a força da Nação de eliminar os conflitos entre indivíduos e de estimular a energia alemã A etapa decisiva é franqueada nos Discursos à nação alemã 1807 A afirmação é brutal a língua alemã que é por sua essência filosófica e por 92 História das ideias polfticas tanto capaz de absoluto o passado alemão que viu nascer Lutero ponto terminal do pensamento cristão a cultura alemã a única que sabe pensar a vida em termos de razão atestam que a Alemanha é a Nação por excelên cia a Nação absoluta Ela só foi rebaixada porque se esqueceu do seu Eu A educação filosófica darlheá a energia para voltar a forjála Discurso cir cunstancial A posteridade irá mostrar que na Alemanha mas também em outros lugares irão se repetir circunstâncias semelhantes INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Boucher M Le sentiment national en Allemagne La Colombe 1947 Fichte JG JEtat commercialfermé 1800 LFDJ 1940 Discursos à nação alemã 1807 Machiavel et autres écrits 18061807 apresentados por L Ferry e A Renaut Payot 1981 O nacionalismo e a função da história A Thierry Michelet von Ran ke Já vimos que a filosofia hegeliana da história havia tomado como material de seu percurso o destino dos povos e das nações considerados como figu ras dialeticamente sucessivas do devir do Espírito De maneira inteiramente diversa as austeras meditações de Chateaubriand que pergunta nas Memó rias do alémtúmulo 180941 qual a significação e o alcance de uma vida singular envolvida pelas vias travessas e pelo peso da história e os romances de Stendhal nos quais as opções pessoais são irremediavelmente marcadas pelo jogo da política e das guerras testemunham a presença doravante ine lutável do EstadoNação como força que se impõe aos destinos individuais e coletivos Todavia essa presença se manifesta de um modo ainda mais preciso nas transformações sofridas pela história enquanto disciplina Essa abandona as questões dinásticas e políticas começa a examinar meticulosamente as socie dades a evolução de suas instituições de seus modos de vida os movimentos de população que marcam o devir dessas sociedades abrese para a longa duração Na França os trabalhos de Augustin Thierry os Relatos dos tempos merovíngios 183540 e o Ensaio sobre o Terceiro Estado 185051 esfor çamse no sentido de compreender através do estudo do passado da socie dade francesa o enigma da Revolução e o estatuto contemporâneo da luta O EstadoNação ao mesmo tempo Leopold von Ranke busca descobrir mediante um estudo erudito as raízes mesmas da realidade alemã em sua História da Alemanha no tempo da Reforma 183947 Tudo se passa como se o EstadoNação quisesse se sentir seguro de si reencontrando seu passado próximo ou distante restaurado através de métodos críticos que garantam um conhecimento objetivo Sob esse aspecto a obra de Jules Michelet 17981874 é exemplar Sua monumental História da França 183346 185567 e sua História da Revolução Francesa 184753 baseadas numa informação prodigiosamente rica e empregando um poderoso estilo visam a fazer reviver no presente a complexidade viva do passado Instituições costumes heróis modos de vida imaginações coletivas revivem nessas páginas que têm como sujeito¹ no sentido forte a nação francesa enquanto algo que se forjou através de múltiplas provas Perspectiva romântica Certamente mas também e sobretudo vontade forte de povoar o território abstrato do Estado com uma vida fervilhante sem nada ocultar das fraquezas dos erros e dos infortúnios que o marcaram Doravante a história tornouse uma questão da Nação a historicidade passa a ser uma dimensão da consciência coletiva O conhecimento do passado nacional aparece como um meio de confirmar a unidade da comunidade reunida sob a autoridade de um mesmo Estado E ao mesmo tempo em que se afirma a objetividade desse conhecimento criamse já novos mitos instrumentos de potência 94 História das ideias políticas zini 180572 por exemplo que era um combatente pela unidade da Itália liberta do jugo austríaco concebe essa luta em A Santa Aliança dos Povos 1849 como uma primeira etapa no sentido da fraternidade universal dos povos da Europa É esse mesmo sentimento no qual intervêm frequente mente considerações religiosas e sociais que guia os patriotas poloneses e húngaros os movimentos eslavos que rejeitam ao mesmo tempo a submis são aos Habsburgos ou à Sublime Porta e a tutela do tzar e de modo mais geral todos os que se inspiram nas Declarações de 1787 e 1789 e no princípio da soberania nacional entendida como soberania do povo Todavia os eventos europeus dos anos 184849 o fracasso das revolu ções democrática e nacionalitárias confirmam o duplo conflito que ameaça o equilíbrio europeu fundado na Santa Aliança dos Estados conflito interno nos países avançados nascido do desenvolvimento da ordem industrial e das reivindicações de uma numerosa classe operária miserável porém cada vez mais consciente de sua força e cujos pontos de vista internacionalistas se afirmam e conflito entre os Estados mais poderosos envolvidos em crises econômicas que inevitavelmente os opõem uns aos outros Acrescentamse a isso os riscos de guerra constituídos pelos empreendimentos de liberta ção efetuados pelas nações europeias ainda mantidas em estado de depen dência Essa situação favorece o desenvolvimento em particular na França mas também na Alemanha e no Reino Unido de um outro tipo de nacio nalismo que apela para os valores da tradição a família a terra os ances trais e da moral do sacrifício da renúncia e da obediência para conservar o que existe e para denunciar a anarquia que resultaria de qualquer mudança que não fosse cuidadosamente controlada Esse nacionalismo é reacionário no sentido etimológico e na França deplora o infeliz episódio da Revolução que interrompeu o curso normal da evolução Essa exaltação da Nação como substância da vida coletiva inscrevese facilmente na corrente de pensamento positivista e evolucionista dominante nessa segunda metade do século XIX tal corrente apela para a Razão e para as virtudes clássicas desconfiando do romantismo que conduziria a exces sos O representante francês mais típico desse estado de espírito é Hyppolite Taine 182893 Sua análise das Origens da França contemporânea 187593 pretende estar a serviço da ciência considera os atos dos homens como pro dutos de um estrito determinismo Taine felicita um crítico por ter compre endido que sua história é de fato uma psicologia dos agentes da história e especifica que a investigação psicológica se reduz por seu turno a uma investigação fisiológica e química O EstadoNação 95 Se o determinismo que regula as questões humanas não é aparente isso ocorre porque as causas que nelas interferem são complexas Todavia é pos sível distribuílas em três elementos a raça ou seja o conjunto de caracteres biológicos transmitidos heredita riamente o meio as tradições as crenças os hábitos mentais as instituições que mo delam os indivíduos o momento isto é o conjunto das circunstâncias que desencadeiam a ação Munido desse método Taine explica no sentido estrito do termo a Revolução como produto de agitadores de cérebro doentio no mesmo espí rito erige em leis deduções abstratas operadas a partir de coleta de exemplos e estabelece entre outras coisas que existem caracteres nacionais Dessa psi cologia histórica determinista ele retira ensinamentos políticos o primeiro e mais seguro é que o governo é um problema de saber e que é preciso estabe lecer um sistema que permita às elites competentes calcular boas decisões e implantar uma educação da população que a previna contra a tirania de um só e contra a tirania de todos É essa mesma preocupação do cálculo adap tado às circunstâncias que lhe faz temer a potência centralizadora do Estado o sufrágio universal e a espontaneidade popular Com Taine a Nação se imobiliza numa rede de determinações O im portante então é prevenirse contra a demêncià que viria perturbar essa rede de causas e efeitos Inteiramente oposta é a atitude desse outro mestre da República conservadora que foi Ernest Renan 182392 ensaísta eclé tico tanto no que se refere aos objetos quanto aos modos de argumentação historiador de bela erudição mentor algumas vezes solene Renan ama os matizes e não se recusa a modificar seus pontos de vista Todavia tem em comum com Taine a ideia de que doravante a ciência positiva tomou o lu gar outrora ocupado pela religião e é ela que ilumina a moral Renan tam bém compartilha com Taine uma profunda aversão pela massa e por todas as políticas que apelam para a democracia direta Como Taine Renan teme a decadência da França cuja derrota de 1870 seria um sintoma e pede o seu reerguimento Nessa perspectiva sua pregação moral se organiza em torno do tema A Nação como princípio espiritual discurso de 1882 como alma do território cuja sobrevivência e expansão devem ser o objetivo de todas as vontades Uma outra imagem da pátria portanto delineiase aqui uma imagem que irá encantar a direita de Barres a Maurras e aos herdeiros da Action História das ideias políticas Française Essa direita se considera por sua cultura origens e opções como uma elite depositária da essência superior da Nação ela é xenófoba e radicalmente antidemocrática condenando num mesmo opróbrio o bárbaro estrangeiro e o povo ignorante O caso Dreyfus 189495 irá permitir que ela se afirme como racista INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Girardet R Le nationalisme français 18711914 A Colin col u 1966 Renan E Oeuvres completes CalmannLévy 1947 Taine H Les origines de la France contemporaine 18751893 extratos Hachette 1947 As doutrinas da expansão nacional e o im perialismo De qualquer modo direita centro e esquerda logo irão convergir na França em apoio ao empreendimento colonial conduzido em nome dos direitos e dos deveres de uma Nação que deu provas de virtudes civilizadoras e cada partido reservase a possibilidade de administrar essas provas à sua maneira É verdade que a rival britânica já havia amplamente aberto o caminho nesse domínio A expansão comercial inglesa já se desenvolvera amplamente depois de 1815 mas permanecia em seu conjunto um problema que envolvia as companhias privadas Os governos liberais tinham por princípio não in tervir alémmar a não ser em caso de absoluta necessidade Desde a segunda metade do século essa necessidade tornouse paulatinamente uma lei em torno do tema da salvaguarda das livres comunicações marítimas instalou se progressivamente ao mesmo tempo que uma prática intervencionista uma ideologia da grandeza nacional O tema tradicional da livre expansão comercial transformase em dever nacional e o primeiroministro conser vador Disraeli teve o mérito de dar nome ao seu objetivo a constituição de um Império colonial Nenhuma concepção política no sentido estrito é constituída com o fim de legitimar tal política Mas o pensamento inglês sofre uma transfor mação significativa contra o empirismo e o utilitarismo surgem doutri nários o mais típico dos quais é certamente Thomas Carlyle 17951881 Carlyle exalta os heróis que fizeram a história insiste nos benefícios da O EstadoNação 97 autoridade e da virtude condena o gosto pela facilidade e busca do lucro e desenvolve um idealismo moralizante e profético Por trás dessa pregação manifestase o desejo de um Estado forte de um exército heroico e con quistador e de uma Nação inteiramente devotada à grandeza de sua missão civilizadora Honra e interesse os personagens dos romances de Rudyard Kipling 18651936 irão ilustrar essa máxima Do outro lado do Atlântico à imagem do colonizador que leva o fardo do homem branco corresponde a mitolo gia norteamericana da fronteirà fronteira da civilização incessantemente empurrada para o Oeste por valorosos desbravadores apóstolos a seu modo dos direitos do homem da exploração mineral da agricultura e da carabina Winchester Os pioneiros do faroeste aplicam espontaneamente uma teoria do espaço vital Ora no continente europeu essa teoria irá receber um de senvolvimento repleto de consequências No momento em que Bismarck se vale de tudo para forjar o Segundo Reich reconstituindo a unidade nacional da Alemanha historiadores como H von Treitschke economistas como Friedrich List e artistas elaboram recordando o Sacro Império e os cavaleiros teutônicos uma concepção do Povo e do Estado alemães abertamente racista A metafísica fichtiana desce à terra marcada com um sinal oposto ao que tivera no início do sé culo Pois dessa feita tratase de conquistar para assegurar à raça superior os territórios adequados à sua superioridade No final do século respecti vamente em 1897 e em 1899 aparecem duas obras que sistematizam esse espírito a Geografia política de Friedrich Ratzel 18441904 que se empe nha em dar um fundamento objetivo à política expansionista alemã e os Fundamentos do século XIX de Houston Stewart Chamberlain 18551927 que argumenta no sentido de provar que a raça alemã liberta de suas es córias e das influências latinas eslavas e judaicas que a pervertem possui uma preeminência natural que deve lhe permitir realizar em todos os do mínios os ideais da humanidade O nacionalismo tornouse um elemento constitutivo da potência do Estado Os temas que ele implica unidade do território unidade do povo unidade da vontade etc induzem facilmente a uma retórica que é assumida pelos governos autoritários Todavia desde o bili de 1689 o Estado moderno afirmou sua vontade de defender o princípio das liberdades Convém exami nar como a concepção liberal do poder em conflito ou em cumplicidade com os nacionalismos realiza e legitima esse princípio História das ideias políticas INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA Andler C Les origines du pangermanisme 18001888 Couard 1915 Le pangermanisme philosophique 18001814 ibid 1917 Elie Halévy Histoire du peuple anglais Les im périalistes au pouvoir 18951905 Hachette 1926 R Delavignette ChA Julien Les constructeurs de la France doutremer Corréa 1945 R Girardet Eidée coloniale en France de 1871 à 1962 La Table Ronde 1972 0 LI B ERALISMO PO LÍTICO No século XIX o EstadoNação se constitui mais ou menos por toda parte na ordem interna como Estado liberal o liberalismo político é sua filosofia dominante As concepções liberais dominantes pretendem resolver princi palmente a questão políticà entendida essencialmente como o problema das relações entre o indivíduo e o Estado Qualquer que seja a diversidade dessas doutrinas de acordo com a época o país as tendências numa mesma época e num mesmo país cf Jean Touchard Histoire des idées politiques 2 PUF 1959 podese perceber a presença de uma dupla preocupação essen cial o indivíduo deve ser protegido ao mesmo tempo contra o Estado e contra as massas por conseguinte é preciso encontrar os mecanismos insti tucionais destinados a impedir esse duplo perigo Podemse distinguir grosso modo dois tipos de solução Uma versão mais ou menos otimista considera que a aplicação de certas receitas insti tucionais pode subtrair o indivíduo do despotismo enfraquecendo a autori dade do Estado e impedindo o advento da democracia de massa para tomar mos o exemplo mais significativo é o caso da solução buscada por Benjamin Constant 17671830 A outra versão nitidamente mais pessimista considera o advento democrático como inelutável e tenta preconizar métodos destina dos não a impedir mas a evitar o excesso de despotismo que um tal advento corre o risco de promover coube a Alexis de Tocqueville 180559 decerto ilustrar do modo mais exemplar essa segunda versão Benjamin Constant o liberalismo contra a democracia É impossível afirmar de modo mais preciso que o indivíduo é o princípio primeiro e que é preciso defendêlo duplamente O EstadoNação 99 Defendi durante quarenta anos o mesmo princípio liberdade em tudo na re ligião na literatura na filosofia na indústria na política e por liberdade en tendo o triunfo da individualidade tanto sobre a autoridade que pretendesse governar pelo despotismo quanto sobre as massas que reclamam o direito de subjugar a minoria Mélanges 1829 A sociedade política não tem como fim a igualdade essa se combina com uma concepção arcaica da liberdade legítima para os antigos mas inútil e perigosa para os modernos iludidos pela eterna metafísica do Contrato social Pois a liberdade para um antigo consistia em exercer coletivamente mas de modo direto várias partes da soberania inteira em deliberar na praça pública sobre a guerra e a paz em firmar tratados de aliança com os estrangeiros em votar leis em pronunciar sentenças em exami nar as contas os atos a gestão dos magistrados Mas ao mesmo tempo em que era isso que os antigos chamavam de liberdade admitiam como compatível com essa liberdade coletiva a completa sujeição do indivíduo à autoridade do conjunto de modo que entre os antigos o indivíduo quase sempre sobe rano nas questões públicas é escravo em todas as suas relações privadas Sobre a liberdade dos antigos em comparação com a dos modernos 1819 Os modernos só podem sentir aversão por essa concepção já que para um moderno ser livre é para cada um o direito de ser submetido apenas às leis de não poder ser nem preso nem morto nem maltratado de nenhum modo em decorrência da vontade arbitrária de um ou mais indivíduos É o direito que tem cada um de emitir sua opinião de escolher sua indústria e de exercêla de dispor da pro priedade inclusive de abusar da mesma de ir e vir sem para isso obter permis são e sem prestar contas de seus motivos ou movimentos É o direito que tem cada um de se reunir a outros indivíduos seja para discutir seus interesses seja para professorar o culto que ele e seus associados preferirem seja simplesmente para passar seus dias e horas do modo mais conforme a suas inclinações e fan tasias Finalmente é o direito que cada um tem de influir na administração do governo seja pela nomeação de todos ou de alguns funcionários seja mediante representações demandas que a autoridade é mais ou menos obrigada a levar em consideração ibid 100 História das ideias políticas Benjamin Constant insiste nessa oposição decisiva O objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos os cida dãos de uma mesma pátria Era isso que eles chamavam de liberdade O objetivo dos modernos é a segurança nas fruições privadas e eles chamam de liberdade as garantias concedidas pelas instituições a essas fruições Desse modo a questão política moderna é colocada menos em termos de legitimidade do que em termos de exercício da autoridade O povo é so berano Sim se se quer concorda Constant como uma cláusula de estilo Pouco importa ao indivíduo que se afirme que a soberania é popular mo nárquica ou de outro tipo De fato entre os modernos o indivíduo indepen dente em sua vida privada mesmo nos Estados mais livres só é soberano aparentemente E essa aparência lhe basta desde que a autoridade do Estado seja limitada Popular ou não a única soberania legítima é uma soberania limitada pois nenhuma autoridade sobre a terra é ilimitadà pois os cida dãos possuem direitos individuais independentes de qualquer autoridade so cial ou política e toda autoridade que viola esses direitos tornase ilegítima É Locke contra Rousseau cujo Contrato Social é o mais terrível auxiliar de todos os gêneros de despotismo ele ignora que no ponto onde começam a independência e a existência individual para a jurisdição da soberanià e que o assentimento da maioria não basta absolutamente em todos os casos para legitimar os seus atos O triunfo da individualidade marcha paralelamente ao enfraquecimento da autoridade estatal exercida em todos os domínios com reserva Os pro gressos da civilização as mudanças operadas pelos séculos impõem à auto ridade um respeito cada vez maior pelos hábitos pelas afeições pela inde pendência dos indivíduos Ela deve pôr sobre todos esses objetos uma mão mais prudente e mais leve No domínio econômico e social assim como nos demais Benjamin Constant se bate pela liberdade de imprensa com ardor os censores estão para o pensamento como os espiões para a inocêncià e reclama a tolerância em matéria de religião a religião é como os grandes caminhos gostaria que o Estado os mantivesse contanto que deixasse a cada um o direito de preferir os atalhos Será preciso encontrar ainda um sistema que permita combinar essas características da liberdade com as da soberania popular O melhor sis tema aquele em que repousa a confiança de Constant é o sistema represen tativo O EstadoNação 101 O sistema representativo não é mais do que uma organização com cuja ajuda uma nação encarrega alguns indivíduos de fazer o que ela mesma não quer fazer Os indivíduos pobres cuidam eles próprios de seus problemas os ricos contratam intendentes Temos aqui a história das nações antigas e das nações modernas Sistema que evidentemente não implica nenhum mandato imperativo mas que repousa numa procuração dada em branco a um certo número de homens pela massa do povo que deseja que seus interesses sejam de fendidos mas que não tem o tempo de defendêlos diretamente já que suas fruições privadas têm mais valor para ela Um tal sistema implica logicamente aos olhos de Benjamin Constant a condenação de qualquer forma de sufrágio universal o sufrágio deve ser restrito Prolongando as considerações de Sieyes Benjamin Constant desen volve uma ingênua astúcia a condição necessária para o exercício político é o lazer pois esse lazer é indispensável para a aquisição das luzes Ora é evidente que só a propriedade assegura esse lazer somente a propriedade torna os homens capazes do exercício dos direitos políticos O fato de que Saber e Poder se deem as mãos leva a que a questão política por si mesma apague a questão social Não quero cometer nenhuma injustiça contra a classe laboriosa Mas as pessoas que a indigência conserva numa eterna dependência e que condena a trabalhos diários não são nem mais esclarecidas do que as crianças nem mais interessadas do que os estrangeiros numa prosperidade nacional da qual eles não conhecem os elementos e da qual só indiretamente partilham as vantagens Portanto seria absurdo conferirlhes direitos políticos que servirão infalivel mente para invadir a propriedade Elas marcharão por esse caminho irregular em vez de seguirem a rota natural o trabalho seria para elas uma espécie de corrupção e para o Estado uma desordem Resta assegurar a distribuição de poderes no vértice Benjamin Cons tant segue Montesquieu mas acrescenta uma contribuição original o poder do rei não tem por que governar os ministros poder ativo encarregamse disso O monarca constitucional é um poder neutro garantia dos limites da soberania Com efeito o príncipe é um ser à parte superior às diversidades de opinião que só tem como interesse a manutenção da ordem e a manutenção da liberdade e que não pode jamais 102 História das ideias políticas entrar na condição comum inacessível por conseguinte a todas as paixões que essa condição faz nascer e a todas aquelas que a perspectiva de nela se en contrar alimenta incessantemente no caso dos agentes investidos de um poder momentâneo INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Constant B De lesprit de conquéte et dusurpation 1814 Principes de politique 1815 Réflexions sur les constitutions et les garanties 181418 De la responsabilité des minis tres 181418 De la liberté des anciens comparée à celle des modernes 1815 De la liberté chez les modernes textos escolhidos e apresentados por Marcel Gauchet Pluriel Poche 1980 Alexis de Tocq ueville a democracia liberal Tocqueville descobriu a democracia na América Talvez resida nisso a origem da extraordinária perspicácia de suas análises mas também a causa de suas limitações A interpretação de sua obra de resto põe um certo número de dificuldades metodológicas bem evidenciadas por Ray mond Aron cf em particular Les étapes de la pensée sociologique Galli mard 1967 Com efeito se combinarmos certos capítulos de Da democracia na América onde Tocqueville traça o retrato de uma sociedade particular a sociedade americana e de O antigo regime e a Revolução onde ele tenta analisar uma crise histórica a Revolução Francesa podese perceber que ele se dedica à constituição de um tipo a sociedade democrática a partir do qual são deduzidas as tendências possíveis da sociedade futura Mas dado que certos traços estruturais da sociedade democrática podem ser ligados às particularidades da sociedade americana enquanto outros são extraídos da essência de qualquer sociedade democrática subsiste uma in certeza quanto ao grau de generalidade das respostas dadas por Tocque ville as quais parecem ser ora da ordem da tendência ora da ordem da alternativa Quando Tocqueville opta nitidamente pela alternativa então teremos ou que a sociedade democrática será despótica ou que ela será liberal o modelo americano que o inspira impedeo certamente de ima ginar o frágil mas original modo de desenvolvimento democrático que é próprio das sociedades europeias O EstadoNação 103 De qualquer modo a superioridade de Tocqueville sobre Benjamin Constant e sobre o conjunto dos liberais de seu tempo consiste em que ele põe como inelutável e irreversível o próprio fato democrático Uma grande revolução democrática se opera entre nós todos a veem mas nem todos a julgam do mesmo modo Uns a consideram como coisa nova e a tomam por um acidente têm esperança de poder ainda detêla Já outros a consideram irresistível porque ela lhes parece ser o fato mais contínuo mais antigo e mais permanente que se conhece na história Da democracia na América Mas é preciso especificar imediatamente que para Tocqueville e nisso reside sua plena originalidade esse fato democrático é definido a partir da noção de igualdade O desenvolvimento gradual da igualdade das condições portanto é um fato providencial cujas principais características são é universal duradouro escapa a cada dia do poder humano Todos os eventos assim como todos os homens servem a seu desenvolvimento Nos Estados Unidos esse desenvolvimento da igualdade de condições é associado aos mecanismos da liberdade política Assim por exemplo os americanos conseguiram estabelecer as instituições concretas da soberania popular que nenhuma aristocracia tentou frear Decerto inicialmente esco lheuse no mais das vezes um regime eleitoral censitário mas ao contrário de Benjamin Constant Tocqueville vê em tal regime tão somente uma etapa para a soberania popular Quando um povo começa a tocar no censo elei toral podese prever que ele chegará num prazo mais ou menos longo a eliminálo completamente Tratase de uma das regras mais invariáveis que regulam as sociedades Mas o importante é que a soberania popular apa rece como uma instituição concreta e não como na Europa como uma pe rigosa ficção A vontade nacional é uma das palavras de que os intrigantes de todos os tem pos e os déspotas de todas as épocas mais amplamente abusaram Uns viram sua expressão nos sufrágios acabados de alguns agentes do poder outros nos votos de uma minoria interessada ou temerosa há mesmo quem a descobriu inteiramente formulada no silêncio dos povos e pensou assim que do fato da obediência nascesse para eles o direito de comando 104 História das ideias políticas Às instituições concretas da soberania popular os americanos acrescen tam uma outra vantagem a de uma Constituição federal que permite com binar os méritos das grandes e das pequenas nações J União é livre e feliz como uma pequena nação gloriosa e forte como uma grande Tocqueville insiste também nas consequências positivas de uma liber dade de associação ilimitada tanto política como civil A primeira vez que ouvi dizer nos Estados Unidos que cem mil homens se haviam comprometido publicamente a não beber licores fortes a coisa me pa receu mais divertida do que séria e não vi bem num primeiro momento por que esses cidadãos tão temperantes não se contentavam em beber água no seio de suas famílias Terminei por compreender que eles haviam agido preci samente como um grande senhor que se vestisse muito humildemente com o objetivo de inspirar nos cidadãos simples o desprezo pelo luxo Ora nos países democráticos as associações são capazes de frear os efeitos funestos da igualdade de condições sem tentar contrariar o desenvol vimento dessa igualdade São as associações que entre os povos democráticos devem assumir o lugar dos particulares poderosos que a igualdade de condições fez desaparecer E Tocqueville enumera e analisa vários traços próprios às instituições e aos costumes americanos que lhe parecem se orientar todos nesse mesmo sentido associar combinar igualdade de condições com liberdade Se o desenvolvimento da democracia na Europa não atingiu o mesmo estágio nem por isso deixa de ser menos inelutável E Tocqueville busca suas causas principalmente para a França na história do Antigo Regime e da Re volução Se o fato democrático desenvolvese nesse país de modo convulsio nado e contraditório é preciso ver nisso principalmente o efeito da centrali zação administrativa e da divisão das classes que levaram ao estabelecimento de instituições incapazes dessa combinação entre liberdade e igualdade Ao promover o processo da Revolução na Europa Tocqueville apresenta uma impiedosa diatribe contra a monarquia do Antigo Regime Assim a centralização que se cobre com as cores da Revolução é em primeiro lugar uma obra do Antigo Regime Com extraordinária acuidade Tocqueville des creve os mecanismos da tutela administrativa se a insolência da palavra não havia ainda sido produzida tinhase pelo menos a coisà da justiça ad ministrativa que impunha a garantia dos funcionários graças ao poder dos O EstadoNação 105 Conselhos do Rei da centralização urbana e insiste no nascimento dessa formidável burocracia por intermédio dos intendentes Em suma se a centralização não pereceu absolutamente com a Revolução foi porque era ela mesma o começo da Revolução e o seu signo Acrescentase a isso o fato de que a aristocracia europeia nada compre endeu da inelutabilidade do fato democrático e tentou oporse a ele consti tuindose em castà zelosa de seus privilégios e capaz somente de aumentar a irritação das outras classes compostas por sua vez de grupos corporativos separados e fechados em si mesmos Assistiase observa Tocqueville a uma espécie de individualismo coletivo que preparava as almas para o verda deiro individualismo que conhecemos e finalmente a divisão das classes foi o crime do antigo reinado e tornouse mais tarde a sua desculpa A Revolução não fez mais do que acentuar essa combinação importada do Antigo Regime entre a democracia e a ausência de liberdade política ge neralizandoa para o conjunto dos costumes de modo que a democracia se é nos Estados Unidos um regime de liberdade é na Europa um regime de servidão Para além dessa constatação Tocqueville evita combater o fato demo crático europeu Aqui como em outros lugares querer parar a democracia é algo semelhante a lutar contra o próprio Deus Ao contrário é preciso tentar instruir a democracià é preciso uma ciência nova para um mundo inteira mente novo Da democracia na América Fenômeno inelutável a igualdade das condições faz com que se corram perigos igualmente inelutáveis Mas não creio que sejam insuperáveis afir ma Tocqueville já que as nações de nossos dias não podem fazer com que as condições não sejam iguais em seu seio mas depende delas que a igualdade as conduza à servidão ou à liberdade às luzes ou à barbárie à prosperidade ou à miséria Na realidade e independentemente do que se possa dizer o otimismo de Tocqueville é muito moderado Os remédios que propõe a seus contem porâneos para que se orientem no sentido de uma democracia liberal são extraídos da experiência americana Assim ele insiste particularmente na necessidade de desenvolver um poder judiciário forte e independente de suscitar a constituição de associações diversas ou ainda e sobretudo de bus car todos os meios para obter uma centralização eficaz 106 História das ideias políticas É no município que reside a força dos povos livres As instituições municipais são para a liberdade o que as escolas primárias são para a ciência Sem ins tituições municipais uma nação pode se dar um governo livre mas não possui o espírito da liberdade A lição para os tempos modernos parece insuperável E eu digo que para combater os males que a igualdade pode produzir há ape nas um remédio eficaz é a liberdade política Todavia e nisso reside ao mesmo tempo a ambiguidade e a riqueza de toda a análise de Tocqueville parece que são as próprias condições de desenvolvimento da igualdade que contribuem para destruir as condições da liberdade política Lendoo ficase ainda mais convencido de que a demo cracia será despótica Individualismo e materialismo caracterizam a sociedade democrática moderna e preparam o leito para o poder despótico A centralização não faz mais do que aumentar e a Revolução Industrial leva o intervencionismo estatal a se expandir Também aqui os pontos de vista de Tocqueville são mais lúcidos e mais pessimistas do que os de Constant a propriedade in dustrial dá à luz uma classe que tem necessidade mais do que as outras de ser vigiada regulamentada contidà e por conseguinte é inevitável que as atribuições do governo cresçam com elà a indústria traz o des potismo em seu seio e esse se amplia naturalmente à medida que ela se desenvolve O intervencionismo econômico não basta O Estado é levado a se ocupar da caridade e da religião cujo pessoal é por ele pago cujos pa dres são por ele mantidos ele os controla não somente do ponto de vista da organização mas como o domínio do temporal é por vezes difícil de ser distinguido do espiritual o Estado chega a se imiscuir no dogma e desse modo controla a alma de cada homem até no seu elemento mais profundo À medida que as condições se equalizam os indivíduos parecem meno res e a sociedade maior A unidade a ubiquidade a onipotência do poder social a uniformidade de suas regras formam o traço saliente que caracteriza todos os sistemas políticos gerados em nossos dias E a democracia pode evitar o despotismo em medida ainda menor por que o fato igualitário é também o resultado de uma paixão ardente insaciá vel Doravante os povos democráticos querem a igualdade na liberdade e se não podem obtêla queremna até mesmo no escravidão Padecerão a pobreza a servidão a barbárie mas não padecerá a aristocracia Tocqueville expõe com a maior sutileza os dados de uma aliança conflictual entre liberdade e igualdade Eles haviam querido ser livres para poderem se fazer iguais e à medida que a igualdade se estabelecia melhor com a ajuda da liberdade tornavalhes a liberdade mais difícil Quais são as possibilidades de escapar desse dilema histórico CAPÍTULO IV O EstadoSociedade O fortalecimento do EstadoNação ao longo de todo o século XIX não le vanta apenas questões de ordem institucional e governamental Ao mesmo tempo em que se afirmava essa forma política que implica como princípio a separação em diferentes graus entre as instâncias de poder e a sociedade civil essa sociedade coloca graças a seu desenvolvimento autônomo pro blemas graves para aquelas instâncias suscitando projetos que vão ao ponto de contestar a utilidade ou a necessidade do Estado Em outras palavras a questão social a questão da justiça distributiva da repartição das riquezas e por conseguinte de sua produção tornase cada vez mais diretamente uma questão política Mas não se trata somente como o concebe Adam Smith cf supra cap II de determinar o tipo de poder que permite o livre florescimento do eco nômico cedo se manifestam perspectivas nas quais se tenta conjugar a or dem econômica com a ordem política subordinando a segunda à primeira Pois essa sofreu profundas transformações constituiuse uma nova elite as relações sociais se modificaram no ritmo em que se estendiam a indústria e as trocas comerciais uma numerosa classe social o proletariado urbano se formou vivendo em condições frequentemente miseráveis sofrendo a arregimentação das fábricas tornandose cada vez mais consciente da ex ploração de que é vítima e por conseguinte grávida de revoltas que põem em questão a paz civil A própria ciência econômica perdeu o otimismo que a animava com Sismondi por exemplo ela denuncia os malefícios da in dustrialização e os perigos das crises de superprodução Novos princípios de economia política 1819 E se é assim não será o caso de tentar pensar o problema da organi zação social a partir da própria sociedade Não será conveniente já que essa sociedade mudou de ponta a ponta tentar construir o poder que cor responde a essa mudança Essa orientação espiritual suscitou quatro tipos de concepção muito diferentes no que se refere às suas consequências po 108 A ciência como instrumento e a natureza como modelo da ordem social Na GrãBretanha e na França os dois primeiros países a conhecer os efeitos da industrialização a referência à ciência experimental e à leitura que esta apresenta da natureza física e biológica ocupa um lugar importante na reflexão política desde o início do século XIX As pesquisas de Jeremias Bentham 17481832 de John Stuart Mill 180673 e de Herbert Spencer 18201903 características da tradição empirista inglesa têm em comum com o dogma industrialista de ClaudeHenri de SaintSimon 17601825 e com a filosofia da história de Auguste Comte 17981857 o fato de se inscreverem na perspectiva definida por Condorcet em seu Esboço de um quadro dos progressos do espírito humano obra póstuma publicada em 1797 O progresso é a lei da história da humanidade essa por adquirir mais conhecimentos e aperfeiçoar seus meios técnicos adquire também mais riquezas e serenidade e por consequência maior felicidade e segurança A felicidade e a segurança devidas à extensão das luzes noções descobertas pelo século XVIII com muita hesitação e dúvida irão se tornar lugarescomuns no século seguinte A crença na eficácia das ciências da natureza e de uma possível ciência da sociedade reforça tais ideias e lhes oferece uma legitimidade 110 História das ideias políticas Todavia as implicações políticas extraídas dessa crença comum não são da mesma natureza Para os pensadores ingleses os saberes científicos fun dados na observação e na experimentação são úteis na medida em que por um lado fornecem aos governantes conhecimentos que lhes permitem pôr em operação técnicas eficazes de controle e de gestão e por outro em que dão à política que praticam uma visão realista do dado social A referência à ciência aparece como um auxiliar da ação política Muito mais peremptória é a concepção de Auguste Comte a política positiva define uma arte e uma visão da humanidade que devem substituir a política e a religião JS Mill e Spencer continuam liberais Comte pretende se situar bem além As metamorfoses d o utilitarismo d e Bentham a Stuart Mill Na configuração do pensamento político inglês do fim do século XVIII Je remias Bentham ocupa um lugar singular Ele serve de certo modo como ponte entre o sensualismo característico do fim da Época das Luzes e as pers pectivas utilitaristas ligadas ao desenvolvimento do mundo industrial Sua famosa invenção no domínio da moral é o cálculo dos prazeres a oportunidade de um ato é função de uma apreciação quantitativa que po nha no lado positivo o grau de intensidade do prazer que deve resultar do mesmo e no lado negativo o desprazer Essa apreciação é evidentemente o produto de um sujeito que imagina em função de sua experiência os afetos que vai receber Todavia no interior dessa aritmética subjetiva introduzse a dimensão social O indivíduo social por natureza deve igualmente levar em conta um coeficiente de sociabilidade Assim por aproximação instituise uma concepção da felicidade coletiva fundada na integração das felicidades individuais compreendidas como satisfação das necessidades A Introdução aos princípios de moral e de legislação 1789 propõe assim uma espécie de re pública democrática e filantrópica no seio da qual a eficiência e a felicidade de todos são o produto de instituições que têm como tarefa medir e prever a conduta de cada um É assim que Jeremias Bentham elabora no quadro de um saber sobre a instituição carcerária uma teoria geral das prisões nas quais o detido posto constantemente sob o olhar do guardião e submetido a um adestra mento corporal minucioso será levado a se emendar ou seja a reconhecer que lhe é útil conformarse com a norma da felicidade coletiva Desse modo encontrase definida uma regra geral de governo da sociedade por si mesma a qual em nome da utilidade comum instaura um controle que se aplica O EstadoSociedade 111 inicialmente aos delinquentes e se estende depois no curso do século aos hospitais aos campos de formação militar e às instituições educacionais O princípio da felicidade exige uma regulamentação e uma vigilância univer sais que construções e um urbanismo bem adaptado tornam mais fáceis O liberalismo transformase aqui em seu contrário É o que John Stuart Mill vê com clareza Embora formado na óptica utilitarista mais estrita ele se afasta progressivamente dela constata por um lado que a sociedade indus trial não cumpre suas promessas e que as leis de harmonização automática da economia são errôneas e por outro lado vê que a autorregulação da so ciedade que cria suas instituições a fim de normalizar a felicidade é algo pe rigoso Diante do fato de que as crises econômicas se tornam cada vez mais ameaçadoras e a miséria operária algo esmagador ele contesta o princípio do laisserfaire de Richard Cobden e da Escola de Manchester Ele teme também que o liberalismo político levado até suas consequências extremas conduza a uma tirania da mediocridade e que a dependência do governo diante de uma sociedade submetida aos cálculos de utilidade termine por comprometer as possibilidades da liberdade Assim advoga uma sociedade na qual as máximas oportunidades seriam dadas aos indivíduos e onde seria possível formar incessantemente novas elites Na opinião dele somente sob essa última condição é que a sociedade pode ser livre e o governo verdadeiramente liberal Em Considerações sobre o governo representativo 186061 e no Ensaio sobre a liberdade 1859 ele indica as disposições que devem ser adotadas a fim de que seja conjurado o perigo de uma sociedade subjugada à sua própria norma uma disseminação das instâncias de governo que seja compatível com a eficiência do poder e a distinção entre controle das decisões garantida pelo Parlamento que repre senta a sociedade e a função legislativa que por sua vez deve ser função de uma instância especializada Com efeito a posição de JS Mill deve ser compreendida como um utili tarismo que a exigência da liberdade tempera com elementos éticos que visam a restabelecer os princípios do Estado de direito Nem o positivismo de Au guste Comte nem o evolucionismo de Herbert Spencer têm tais escrúpulos INDICAÇÕ ES BIBLIOG RÁFICAS Bentham J Fragmento sobre o governo 1776 Introdução aos princípios de moral e de legislação 1789 ed brasileira in Os Pensadores Abril Cultural São Paulo 1974 volXXXIV p174 Chevallier JJ Le pouvoir de lidée dutilité chez les utilitaires anglais in Le pouvoir col PUF 1956 O EstadoSociedade 113 secretário de SaintSimon dotado de um conhecimento enciclopédico in cansável propagandista da fé na ciência escolheu como tema de sua investi gação a humanidade Defensor apaixonado do progresso através da ciência e de suas aplicações técnicas ou seja da indústria ele não teme nada mais do que a desordem e a anarquia que nascem do individualismo e do desconhe cimento dos gloriosos objetivos do Homem Ele se atribui como missão missão que o levará à beira da loucura realizar através do ensinamento a unificação do projeto humano Ele crê na necessidade de uma estrita divisão do trabalho e de uma estável hierarquia de competências os que sabem elaboram os conhecimentos relativos à natureza física e à natureza social os publicistas difundem e vulgarizam os planos os governantes os executam e a massa obedece para seu maior proveito Pois é incontestável na opinião de Comte que eventos como a Revolução Francesa resultam de uma perda do sentido da sociabilidade e da vergonha pelos indivíduos A individualidade só vale na medida em que está integrada na sociedade e isso por meio dessas correias indispensáveis que são a família cadinho da formação moral e a pátria que ensina a solidariedade Até aqui a política tem sido frequentemente um campo de paixões e de interesses É preciso darlhe uma base científica ou mais exatamente é preciso substituíla por um saber que defina técnicas de gestão coletiva A grande novidade da época é precisamente a descoberta do Espírito positivo Auguste Comte apoiase nos trabalhos de Sadi Carnot sobre o calor 1824 Esses trabalhos enunciam as leis da termodinâmica sem formular nenhuma hipótese sobre a natureza do calor Desse modo eles definem o novo espírito científico o qual renunciando às hipóteses inverificáveis sobre a essência da matéria em penhase unicamente na observação e na experimentação graças às quais o cientista pode prever as sequências fenomênicas e prover o melhoramento do bemestar da humanidade mediante a utilização calculada dessas previsões Essa descoberta para Auguste Comte é o evento que lhe permite cons truir uma dupla filosofia da história ambas justificadoras do sentido do Pro gresso A filosofia da história das ciências mostra como o espírito elaborou as disciplinas científicas começando pela mais simples e mais abstrata a mate mática para chegar até a mais complexa e concreta a sociologia passando pelas etapas que são a astronomia a física e a biologia A filosofia da história do espírito em sua função explicativa antes de acessar à era positiva o espírito quis explicar a realidade supondo a ação de seres pessoais a era teológica com seus três momentos fetichismo politeísmo monoteísmo depois atribuindo essa explicação a entidades abstratas a era metafísica A era positiva afasta a inútil questão por quê E de imediato teologia e metafísica morrem por falta de alimento A tarefa da vulgarização dos conhecimentos e da afirmação da coesão social é realizada por publicistas e propagandistas do espírito positivo e da religião da Humanidade a ele associada O EstadoSociedade 115 tífica muito próxima de Auguste Comte e tomando de empréstimo à biologia de então sua ideia de evolução ele analisa a realidade social como um or ganismo que se desenvolve em função de suas determinações internas elas próprias ligadas ao princípio de adaptação Essa espontaneidade adaptativa implica o desaparecimento dos órgãos inúteis e o desenvolvimento daqueles de onde resulta um aumento do poder Nessa perspectiva o filósofo desco bre um sentido geral da evolução humana essa vai de um estado de homoge neidade relativamente indefinida para um estado de heterogeneidade relativa mente definida e coerente O florescimento contemporâneo da ordem industrial parecelhe carac terístico desse processo que engendra sociedades cujos elementos são cada vez mais diferenciados cuja organização é cada vez mais coerente e cuja potência em função disso não para de aumentar Apologista da indústria Spencer é também o defensor do liberalismo mais puro enquanto a inter venção do Estado se intensifica no curso da era vitoriana no mesmo ritmo do crescimento do Império Spencer toma vigorosamente posição em favor da livreempresa e da iniciativa privada denuncia a tendência do poder a legiferar a respeito de tudo e argumenta em favor da ideia de que o governo não deve ter outras prerrogativas além das administrativas O indivíduo con tra o Estado 1884 apologia do empresário e do engenheiro chega a for mular o desejo de que sejam suprimidos os ministérios que se ocupam das questões ligadas à agricultura ao comércio e à indústria bem como de que sejam limitados os poderes do Parlamento Nesse meiotempo o evolucionismo spenceriano ganhou força graças à revolução operada por Charles Darwin A origem das espécies é de 1876 Desse modo nos Princípios da sociedade e da moral 187696 e nos Princípios da ética 189293 Spencer orientase no sentido de uma concepção onde os princípios darwinianos em particular o da luta pela vida substituem a ideia da espontaneidade interna Assim o liberalismo que não pode mais se apoiar na ideia da harmonia tal como a concebia Adam Smith encontra recursos numa doutrina científica segundo a qual a violência é natural no mesmo momento o socialismo de Marx e Engels buscava na nova teoria da evolução uma confirmação da justeza dos fundamentos de suas análises só ciohistóricas De SaintSimon a Spencer positivismo e utilitarismo que privilegiam uma certa leitura da ciência concebida menos como conhecimento do que como instrumento neutro de dominação da natureza e da sociedade inter pretada principalmente como sociedade industrial levam a perspectivas políticas inteiramente diferentes da integração total do indivíduo na cole 116 História das ideias políticas tividade segundo Comte à exaltação de sua independência no quadro do Estado segundo JS Mill e Spencer Mas uns e outros têm em comum esta ideia enunciada por SaintSimon agora que estão se impondo a ciência e a indústria as revoluções políticas são inúteis e perigosas tratase agora de organizar a sociedade e de minimizar a questão política INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Spencer H Estática social 1851 Princípios de sociologia e de moral 187696 O indivíduo contra o Estado 1884 0 MARXISMO D E MARX E ENG ELS O tema que Lênin recolheu de Friedrich Engels segundo o qual o pensa mento de Marx possui três fontes a filosofia alemã a economia política in glesa e o socialismo francês não é falso contanto que não se infira dele como o faz Lênin que esse pensamento tendo extraído a quintessência desses três elementos soube integrálos num conjunto coerente Pois o que espanta quando lemos os milhares de páginas de textos redigidos por Karl Marx 181883 e Friedrich Engels 182095 é ao mesmo tempo a diversidade dos temas tratados dos níveis de intervenção e das técnicas de argumentação por um lado e por outro o equívoco profundo do projeto de conjunto e isso porque ora se trata de elaborar nada menos do que uma nova concepção global do mundo da sociedade e do homem ora mais modestamente de contribuir através de pesquisas teóricas para a luta revolucionária do movimento operário Tentouse muitas vezes unificar esses textos e esse projeto sob o signo ou de uma ontologia científica a ortodoxia stalinista seguindo o próprio Engels ou da moral Maximilien Rubel ou da economia política Karl Kautsky ou da ciência da sociedade Antonio Gramsci ou da teoria do conhecimento Max Raphael Henri Lefebvre ou da ciência da história Louis Althusser pretendeuse introduzir uma periodização entre um jo vem Marx para uns filósofo democrata e dialético aberto e para outros romântico inseguro e não ainda marxistà e um Marx adulto para uns economista positivista e já dogmático e para outros senhor finalmente de seu instrumento dialético Essas tentativas só podem ser julgadas em fun O EstadoSociedade 117 ção do projeto próprio que as anima em sua época e em suas circunstâncias políticas Mas a diversidade e o equívoco dos textos resistem a tais circuns tâncias Vamos portanto admitilos a título de hipótese com o objetivo de extrair livremente da análise dos textos os temas principais do pensamento de Marx e Engels independentemente do fato de esse pensamento formar ou não um sistema Da crítica do Estado burguês à definição do ponto de vista materialista Quando em 1840 Frederico Guilherme IV subiu ao trono da Prússia os úl timos discípulos liberais de Hegel foram expulsos das universidades Agru pada em torno de revistas efêmeras em permanente choque com a censura formouse uma corrente chamada de hegeliana de esquerdâ que unia personalidades tão diferentes entre si como os irmãos Bauer Ruge Bakunin Stirner Herzen que convergiam na aplicação dos princípios da política de Hegel Entre eles encontrase Karl Marx que acabava de defender uma tese de doutorado dedicada a Demócrito e a Epicuro Todavia ele logo deixa de se satisfazer com essa agitação brilhante mas sem fundamentos reais e dado que o objetivo dos opositores é a realização do Estado tal como Hegel o concebe ele decide reler e analisar de novo os Princípios da filosofia do direito Disso re sulta um texto vigoroso e crítico que é a primeira etapa na constituição do pen samento de Marx Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel 1843 Instituindo o Estadofuncionário como instância suprema de decisão e como Razão em ato compreendendo a sociedade civil como domínio da luta pelo lucro e apresentando a propriedade e o trabalho como dados inelutáveis do processo histórico prometendo para o futuro a satisfação universal como resultado da mundialização do Estado assim concebido Hegel não fez mais do que hipostasiar uma situação de fato a situação de sociedades onde a minoria da população a burguesia industrial e mercantil e os proprietários fundiários assenhoreouse do poder de Estado para manter sua exploração econômica e sua dominação política Ele esqueceuse do fato de que as ca madas politicamente dirigentes tanto na Prússia como na França e no Reino Unido longe de estarem separadas da sociedade civil ocupam nela um lugar preponderante e de que as decisões de tais camadas pretensamente tomadas em função do interesse geral servem para o fortalecimento do poder delas Hegel não viu que em consequência disso a dinâmica da sociedade civil tal como ele a concebe condena industriais e proprietários fundiários a busca 118 História das ideias políticas rem o lucro máximo e a exercerem uma violência incessantemente crescente sobre trabalhadores das cidades e dos campos O realismo de Hegel o levou a apresentar como necessidade da Ideia o que não é senão um momento da história e a congelar essa no estágio da do minação burguesa Dessa análise o jovem Marx extrai igualmente uma con sequência metodológica decisiva Se o hegelianismo não conseguiu explicar a sociedade moderna isso decorre do fato de que ele não levou absoluta mente em consideração a dinâmica dessa sociedade Sob esse aspecto o que se passa na sociedade civil ou seja na vida econômica é fundamental Sob esse aspecto a Ideologia alemã e as Teses sobre Feuerbach 184546 mar cam um novo progresso podese definir o homem de múltiplas maneiras pela religião pela consciência pela linguagem etc mas o que o constitui é o fato de ele ser o único animal que produz e reproduz suas condições de existência que forja materialmente seu mundo a partir do dado natural O fi lósofo alemão Ludwig Feuerbach 180472 compreendera bem isso quando particularmente em A essência do cristianismo 1840 mostrou que o uni verso religioso não é mais do que a transposição imaginária do universo pro fano e que nele se encontram resolvidos idealmente os conflitos terrestres que dilaceram as sociedades reais Mas ele não soube ir suficientemente longe não apenas a religião a fi losofia as teorias políticas a ideologia em geral são em suas formas meios ideais para resolver idealmente as contradições terrenas mas elas são em seus conteúdos produtos dessas contradições São respostas a tais con tradições Desse modo quando se tenta tornar inteligível uma sociedade dada e suas transformações devemse analisar as condições materiais de existência dessa sociedade as relações econômicas que nela se estabelecem a dominação sociopolítica que nela se exerce e os mecanismos que essa do minação utiliza Somente no interior desse contexto é que aparecem clara mente a significação das ideias As ideias não são unicamente a expressão da inteligência especulativa são tomadas de posição que têm relação com as práticas sociais Esses enunciados de Marx darão lugar a interpretações sobre as quais voltaremos Aqui é importante sublinhar que a afirmação materialista não tem nenhum caráter doutrinário Marx jamais abandonará a sua desconfiança em face dos sistemas especulativos que dissertam sobre o Ser Deus ainda que para negálo ou a Pessoa Interessamno o destino do homem em so ciedade e as possibilidades de sua liberdade e florescimento Para ele assim a posição materialista consiste não em fazer declarações abstratas do tipo das que serão feitas por Engels em 1886 nesse livro medíocre que é o Ludwig O EstadoSociedade 119 Feuerbach e a filosofia clássica alemã ou por Lênin em 1908 em Materia lismo e empiriocriticismo mas em tomar primariamente em consideração as práticas sociais e as relações sociais em sua materialidade na medida em que elas produzem a existência social histórica específica a cada sociedade numa determinada época Para encerrarmos esse tema é preciso deixar claro que nenhum texto de Marx expõe uma doutrina filosófica materialista que ele realmente não desaprovou seu amigo Engels quando esse resolveu escrever a Dialética da natureza 187383 mas que jamais se preocupou com problemas de onto logia geral e que a construção do sistema global do Ser do Pensamento na Natureza da História da arte e do Homem conhecido pelo nome de mate rialismo dialético é bem posterior A importância que Marx confere aos dinamismos materiais das socieda des ligada ao desejo de ir além das teorias abstratas do Estado levao a to mar duas direções por um lado ele se documenta sobre a situação do prole tariado das cidades e dos campos e sobre as lutas que essa classe empreende para combater a miséria e a sujeição às quais está reduzida e por outro em penhase em pôr em evidência os mecanismos econômicos que governam a sociedade atual e que estão na origem das crises e dos conflitos que a abalam De ambos esses pontos de vista o encontro com Engels industrial de for mação e a leitura do seu livro A situação das classes trabalhadoras na Ingla terra 1845 foram eventos capitais Dos Centros de Correspondência Comunista à crítica da economia política Desde 1846 Marx e Engels entraram em contato com os movimentos revo lucionários parisienses ficaram decepcionados com os intelectuais e interes sados pelas formações operárias nascentes Decidiram fundar em Bruxelas um organismo os Centros de Correspondência Comunista cuja função seria a de pôr em contato os diversos grupos europeus que trabalhavam pela emancipação do proletariado e de transmitir aos operários em luta informa ções sobre os combates travados em outros países Desse modo adquiriram a convicção de que a classe operária é a ponta de lança da revolução que se tornara indispensável por causa da incapacidade do poder burguês de con trolar as forças tecnológicas e sociais que pusera em movimento Mas ao mesmo tempo acreditavam poder deduzir das hesitações e dos fracassos do movimento sindical inglês o tradeunionismo e da divisão 120 História das ideias políticas dos grupos revolucionários na Europa continental a ideia de que é indis pensável forjar uma teoria geral da revolução fundada na análise da situa ção econômicopolítica A fim de aumentar sua audiência aderiram à Liga dos Justos associação que agrupava os exilados políticos e os operários ale mães da Europa Ocidental cujo centro era em Londres Essa Liga decidiu em 1847 radicalizar sua ação e organizar dois congressos sucessivos tendo como objetivo a fundação de uma Liga Comunista que reunisse todas as for ças da Europa decididas a pôr fim à exploração burguesa agir no sentido de uma revolução democrática e abolir a propriedade privada O slogan da Liga dos Justos todos os homens são irmãos foi substituído pela fórmula proletários de todos os países unamse Marx e Engels foram encarregados pela Liga de redigir a partir dos textos e das discussões que emergiram do Congresso um manifesto que publicaram em 1848 sob o título de Manifesto do Partido Comunista Esse texto representa um compromisso entre diversas tendências Nem por isso deixa de ser no essencial ou seja em suas duas primeiras partes a expressão do pensamento de seus dois autores Reen contramse nele os temas da luta de classes e da missão do proletariado e são especificadas as noções constitutivas do materialismo histórico Também se manifesta nele o equívoco que será levado até o fim pelo que já é o marxismo de Marx e Engels Um exemplo permite medir a dimensão desse equívoco Depois de uma breve preliminar o Manifesto afirma A his tória de toda sociedade até nossos dias foi a história da luta de classes1 Esse enunciado pode ser entendido de duas maneiras a luta de classes é o motor da história o princípio ontológico explicativo do devir das sociedades a análise do presente europeu e o exame do passado de outros tipos de sociedade permitem afirmar que a luta que opõe opressores e oprimidos é o conceitochave graças ao qual podese tornar intelegíveis esse presente e esse passado e que por conseguinte é legítimo abordar o estudo de toda sociedade e de toda configuração de eventos a partir desse ponto de vista a fim de saber se e como a luta de classes opera nos mesmos Segundo a primeira leitura que é evidentemente a dominante no Ma nifesto o materialismo histórico é a aplicação técnica de uma filosofia da história pressuposta de natureza similar à desenvolvida antes por Bossuet na História Universal e por Hegel e Auguste Comte O princípio de expli cação decerto é diferente mas a concepção de conjunto é a mesma há um 1 Le Manifeste du Parti Communiste 1848 Paris Le Livre de Poche 1973 p5 O EstadoSociedade 121 devir uno de uma humanidade una que passa por etapas sucessivas o devir possui um sentido e cada etapa é um momento de um progresso que deve levar a um fim da história cada um desses momentos é marcado pela ação de uma classe progressista ou revolucionária que durante certo tempo é o sujeito da história Essa perspectiva amplamente desenvolvida por Engels mais tarde é exposta por Marx no Prefácio a Contribuição à crítica da economia política 1859 De certo modo ela fortaleceu a ideia de que o materialismo de Marx constitui uma doutrina e serviu como legitimação para as diversas dogmáti cas desenvolvidas no século XX sob o nome de marxismo Ela considera toda sociedade como formada por uma base ou infraestru tura econômica cujo elemento motor é a dinâmica das forças produtivas que determinam as relações sociais estabelecidas entre os homens relações deter minadas necessárias independentes da vontade desses homens Contribui ção à crítica da economia política de i859 e esse conjunto define um modo de produção Em cada época um modo de produção é dominante Sobre essa base elevase um edifício jurídico e político ao qual correspondem formas determinadas da consciência social O modo de produção domina em geral o desenvolvimento da vida social política e intelectual Não é a consciência dos homens que determina sua existência mas ao contrá rio é sua existência que determina sua consciência ibid A crise anunciadora de uma revolução aparece quando as relações sociais e as formas jurídicas e políticas que a sustentam revelamse um entrave ao florescimento das forças produtivas A história poderá registrar com o rigor das ciências naturais o enorme abalo que se produz então na base material ela perceberá também seu efeito nas superestruturas ideológicas Os homens tomam consciência do conflito entre as forças produtivas e as relações de produção e o levam até o fim A transformação revolucionária ou seja a mudança do modo de produção e seu efeito político não tem lugar antes que relações superiores de produção se manifestem antes que as condi ções materiais de sua existência se tenham desenvolvido no próprio seio da ve lha sociedade Por isso a humanidade sempre se propõe apenas problemas que pode resolver ibid Assim tal como para santo Agostinho e para Hegel há um curso da história com suas etapas dramáticas seus conflitos seu sujeito encarnado 122 História das ideias políticas que deve desembocar em algo uma espécie de fim que é ao mesmo tempo uma plena realização Aos momentos de plenitude a Ressurreição da Carne segundo santo Agostinho ou a reconciliação definitiva no seio do Estado mundial segundo Hegel corresponde na filosofia da história materialista a sociedade comunista integralmente transparente sem classe e sem Estado onde cada um receberá segundo suas necessidades Naquele momento em meados do século XIX depois de ter passado pelos modos de produção asiá tico escravista e feudal a humanidade em sua parte mais avançada a Eu ropa Ocidental começava a experimentar os efeitos da crise engendrada pela incapacidade da burguesia de controlar as forças tecnológicas econômi cas e sociais que pôs em movimento Como o sublinha o Manifesto o capitalismo é o primeiro modo de pro dução a ter provocado uma simplificação da luta de classes nele burgueses e proletários se enfrentam diretamente cinicamente A uma exploração cientí fica corresponde uma classe que toma cada vez mais claramente consciência da causa de sua miséria e do objetivo a que deve visar sua potência a aboli ção da sociedade de classe A burguesia capitalista que foi sujeito da história e classe revolucionária criou seu próprio coveiro o proletariado operário força avançada de todos os explorados pequenos camponeses assalariados de todos os tipos que é a classe radical o sujeito último que põe fim à histó ria já que não pode se emancipar sem emancipar a humanidade inteirà A concepção é grandiosa Exerce a sedução que decorre das visões tota lizantes Todavia ao que parece Marx viu o que ela implica de esquematismo e de elementos apenas supostos no momento em que tentou explicar se quências históricas concretas viu também que a noção de determinação ainda que seja em última instâncià não é clara já que tomada em sentido estrito significa o anulamento do papel dos homens como agentes históricos Por isso ele adota uma posição metodológica muito mais matizada em seus trabalhos históricos posição que especifica na Introdução geral a Contribui ção à crítica da economia política referindose à economia política Essa é a segunda hipótese de leitura acima evocada Nessa óptica o que é dado ao pesquisador é o concreto real um conjunto complexo de fatos de eventos O trabalho de pesquisa não consiste em deduzir uma representação abstrata que empobreça e esquematize esse conjunto Interessa muito pelo contrário analisar investigar a partir de que conceitos ele pode ser pensado e remontar progressivamente aos conceitos mais delicados mais precisos que são pressupostos até o momento em que se torna possível construir um concreto de pensamento um sistema complexo de conceitos Graças a esse sistema podese então voltar ao dado e avaliar o efeito de inteligibilidade O EstadoSociedade 123 que dele resulta Sendo assim a luta de classes o modo de produção as for ças produtivas as classes sociais o Estado o direito etc não são realidades que exerceriam uma causalidade mas conceitos através dos quais tornase possível explicar o que se produz no concreto real Esse concreto que depois como antes subsiste em sua autonomia fora do espírito é o produto multiforme da ação de agentes que criam a partir do dado seu mundo é o resultado incessantemente mutável desses atos que agem e reagem uns sobre os outros esses atos são todos vontades singulares visando a fins singulares A tarefa do conhecimento é forjar os instrumentos que permitem compreender por que algumas dessas vontades entram mate rialmente em coalizão produzem em comum enunciados que lhes servem como justificação ou programa de ação e operam assim uma transformação real que subverte o concreto real Não foi a entidade burguesa que produziu por que misteriosa causalidade o modo de produção capitalista nem vice versa mas foram homens e grupos surgidos de meios diversos tendo em comum o fato de disporem de recursos financeiros acumulados de diferentes modos e determináveis e de buscarem o lucro comercial máximo que se empenharam em construir manufaturas nas quais arregimentaram os pobres das cidades e os camponeses expulsos dos campos e em montar circuitos de venda lucrativos cf para tudo isso K Marx O capital Livro I seção VIII Nos textos de Marx e Engels as duas concepções a que pertence à filosofia da história e que leva a uma escatologia e a uma visão necessitarista do devir e a que considera fundamental a análise das condições materiais de exis tência numa dada sociedade e que insista no poder criador dos agentes históricos essas duas concepções coexistem As duas se manifestam a despeito de sua contradição intrínseca nas pesquisas sobre os mecanismos econômicos que governam a sociedade moderna às quais Marx irá doravante se consagrar A crítica da economia política o Capital como fundamento da sociedade burguesa A inteligibilidade das lutas políticas nesse início da segunda metade do sé culo XIX inteligibilidade que é a única capaz de permitir ao movimento operário a radicalização de seu combate passa pelo conhecimento rigo roso do sistema capitalista e de seus princípios de funcionamento Ora sur 124 História das ideias políticas giu uma ciência no século XVIII que assumiu como objeto um tal conheci mento a economia política Essa ciência indo mais fundo do que a chamada economia vulgar que se contentava em descrever as aparências soube colo carse questões essenciais em particular a seguinte que é decisiva o que faz o valor de uma mercadoria Os economistas compreenderam que aquém da lei da oferta e da procurà é preciso fazer referência à atividade do trabalha dor incorporada a essa mercadoria Ao mesmo tempo importa compreen der que numa época dada e num certo nível de civilização técnica podese medir a quantidade de trabalho social médio necessário à produção de tal mercadoria Eles viram ademais que esse trabalho do operário anônimo é ele mesmo uma mercadoria uma realidade que se compra E seu valor é me dido pela quantidade de meios de subsistência necessários à manutenção do trabalhador Ao fazer isso a economia política clássica descreveu exatamente o sis tema capitalista em seu conjunto o proprietário tendo utilizado seus capi tais para extrair da natureza matériasprimas e tendo construído uma fábrica onde funcionam as máquinas paga ao trabalhador o justo preço de seu tra balho conjunto de operações graças às quais ele põe no mercado bens pro veitosos a todos inclusive aos trabalhadores e retira da venda desses bens um lucro que de certo modo é a recompensa por seu ato empresarial e pelos riscos que ele implica Todavia colocase uma questão que não é abordada como pode ocorrer que um sistema tão equilibrado suscite crises cada vez mais violentas Crises internas nascidas por exemplo da superprodução de certos bens ou do jogo implacável da concorrência e também e sobre tudo crises externas provenientes do fato de que a ordem industrial não importa o que dela se diga é obrigada a arregimentar os operários a im porlhes condições de trabalho desumanas a deixar aumentar o exército de desempregados e a provocar assim a rebelião dos proletários A prática capitalista em seus efeitos desmente a teoria que melhor ex plica seu funcionamento Assim como as práticas governamentais tornaram indispensável a crítica da concepção hegeliana do Estado do mesmo modo convém empreender a crítica da economia política que é a teoria acabada do capitalismo Pois não se trata apenas de denunciar de um ponto de vista moral a injustiça desse sistema ou tendo constatado uma injustiça orga nizar complôs destinados a derrubála Ele é bastante poderoso marchà com muita eficiência a despeito de suas crises e graças a elas para que possa ser destruído sem que se conheçam os mecanismos que explicam ao mesmo tempo seu sucesso e a violência aberta ou larvar que ele é obrigado a manter definindo assim uma estratégia capaz de mobilizar contra ele a massa dos O EstadoSociedade 125 explorados Assim na opinião de Marx a crítica da economia política é mais do que a retificação de um erro é uma arma contra o poder burguês que deve servir como ajuda às lutas operárias Em que consiste a insuficiência teórica da concepção elaborada por Adam Smith Em deixar sem resposta o enigma do lucro Para resolver esse problema é preciso nada menos do que retomar a análise feita pela econo mia política clássica de um ponto de vista histórico É nisso que Marx se empenha a partir de 1857 2 Dez anos depois aparecerá o Livro 1 de O Capital cujo subtítulo é precisamente Crítica da economia política 3 Desses textos fervilhantes de reflexões incomparáveis sobre os proble mas econômicos iremos reter aqui apenas o que serve para esclarecer a con cepção política de Marx E antes de mais nada a teoria da civilização mer cantil que se encontra na Seção 1 de O Capital O trabalho social tem como finalidade a produção de bens esses se caracterizam pelo fato de possuir um valor de uso que decorre de suas propriedades empíricas A partir do momento em que numa sociedade realizamse trocas de bens aparece um termo abstrato comum às duas realidades trocadas em função do qual a tal quantidade de tecido corresponde tal quantidade de trigo esse termo mede o valor de troca A moeda quando é introduzida nesse circuito passa logo a ser o equivalente geral graças ao qual a troca entre as mercadorias se generaliza A civilização mercantil pode ser definida como a civilização na qual a moeda se torna o principal termo da troca não mais o ciclo merca doriadinheiromercadoria mas sim dinheiromercadoriadinheiro no qual a segunda quantidade de dinheiro é superior à primeira O próprio da civilização capitalista é levar a seu paroxismo a socie dade mercantil e organizar a totalidade da vida social segundo o princípio da produção de mercadorias cuja troca compreendida desse modo pro duz sempre mais dinheiro O dinheiro acumulado em capital permite essa extensão paroxística extração descontrolada de matériasprimas constru ção de instrumentos de produção cada vez mais aperfeiçoados mobilização cada vez mais ampla de massas trabalhadoras arregimentadas na produção mundialização do campo de ação do capital E isso com o objetivo de au mentar sempre esse último os Grundrisse descrevem essa sociedade na qual 2 Dessas pesquisas restou um precioso manuscrito publicado em 1939 sob o título Grundrisse des Kritik der politische Ôkonomie trad francesa sob o título Fondements de la Critique de lEconomie Politique Paris Anthropos 196768 3 Marx quando morreu deixou em manuscrito os Livros II e III eles foram publicados por Engels respectivamente em 1885 e em 1894 126 História das ideias políticas finalmente tudo se reduz a dinheiro lucros sob a dupla forma do lucro in dustrial e comercial e da renda fundiária e salários Todavia conservase o seguinte enigma por que a segunda quantidade de dinheiro é superior à primeira A habilidade do vendedor ou as flutua ções dos preços no mercado não poderiam ser tomadas como explicação de um fenômeno tão generalizado como a acumulação do capital Portanto é preciso examinar de mais perto a teoria clássica do salário Adam Smith viu corretamente que o trabalho é uma mercadoria que se compra o salário de um dia de trabalho equivale às mercadorias que permitem ao trabalhador reconstruir sua força de trabalho e manter sua família Mas não viu que na jornada de trabalho efetuada somente uma parte do trabalho dispendido é paga pelo salário assim calculado enquanto a outra parte que também produz valor é doadà ao capitalista pelo trabalhador Marx chama de trabalho excedente essa parte não paga de maisvalia ou valor excedente a quantidade de valor extorquido e de lucro o bene fício que os proprietários dos meios de produção retiram dessa extorsão A partir dessa análise essencial Marx nos Grundrisse e ao longo dos três li vros de O Capital desenvolve uma teoria dos mecanismos do capitalismo e de suas crises Politicamente retira dessa teoria um ensinamento decisivo a luta da classe operária só pode ter como objetivo a supressão dessa extorsão e a instituição de uma sociedade na qual os produtores seriam senhores de sua produção e organizariam seu trabalho de tal modo que o fim da atividade de trabalho não seria a troca simples meio mas o uso a fruição empírica Do Manifesto comunista à fundação e à posterior dissolução da Associação Internacional dos Trabalhadores Marx imaginara que traduzido nas principais línguas europeias O Capital poderia ser distribuído em fascículos à classe operária Com efeito durante a elaboração da crítica da economia política ele realizou junto com Engels uma resoluta atividade militante Depois da dissolução da Liga dos Comu nistas em 1852 em consequência do fracasso das revoluções de 1848 ambos se esforçaram no sentido de agrupar as forças sociais decididas a realizar o programa revolucionário de emancipação da humanidade através da instau ração do comunismo assim como no sentido de concretizar a estratégia e a tática desse movimento Textos como As lutas de classe na França 18481850 e O 18 Brumário de Luís Bonaparte de 1852 põem em evidência o fato de que economicamente a sociedade burguesa é dividida em duas classes pro O EstadoSociedade 127 prietários que dispõem dos meios de produção e trabalhadores livres para vender sua força de trabalho politicamente a situação é mais complexa na medida em que se introduzem diferenciações e matizes devidos aos interes ses a curto e médio prazos e às fixações ideológicas Eles sublinham também que no que diz respeito às lutas políticas a determinação em última instân cià do econômico constitui mais um horizonte em cujo interior operam livremente os desejos dos atores sociais do que uma realidade exercendo sua eficácia mesmo que longínqua Um outro traço pode ser sublinhado na correspondência nos encon tros nos artigos nas obras polêmicas Marx e Engels a despeito do seu projeto de reunir dão provas de uma intransigência teórica que os leva a afastar frequentemente por meio de uma frase injusta as teorias dos que participam dos combates contra a injustiça e a miséria são assim condenados sem apelo o sindicalismo inglês julgado incapaz de superar uma perspectiva reformista o blanquismo acusado de subscrever um comunismo abstrato e de confundir ação revolucionária com técnica de complô PierreJoseph Proudhon pequenoburguês que hesitava constantemente segundo eles entre a tese e a antítese e era mais metafísico do que economista etc Eles reforçam a ideia bastante tenaz a partir de então e da qual o mínimo que se pode dizer é que abandona os matizes de que tudo o que não é conforme à concepção deles qualificada como científica aproximase da utopia Essa atitude se fortalece ainda mais e se traduz em práticas de expulsão quando em 1864 é fundada por iniciativa deles a Associação Internacio nal dos Trabalhadores AIT Decerto tal como a Liga dos Comunistas essa associação não é um partido nem no sentido de facção da classe política que o termo possui nos regimes burgueses da época nem no sentido que mais tarde lhe dará Lênin Tratase de um agrupamento de indivíduos e grupos díspares unidos em torno de um objetivo geral Todavia seus congressos são ocasiões de lutas pelo poder onde as manobras de assembleia desempenham um grande papel Marx e Engels não são os últimos a utilizálas para elimi nar seus rivais os partidários de Ferdinand Lassalle inicialmente e depois os de Proudhon e de Bakunin No curso desses conflitos em particular do que opôs marxistas e bakuninistas revelamse outros traços da concepção política de Marx e de Engels Em primeiro lugar uma concentração do interesse nas partes avançadas da classe operária europeia em detrimento das outras camadas do proletariado do campo e das cidades Engels chegará ao ponto de apro var a repressão contra os eslavos do sul cujos movimentos inconsiderados apresentam o risco de frear o florescimento do movimento operário ale 128 História das ideias polfticas mão Em segundo lugar um eurocentrismo radical que considera ne cessário para o progresso dos povos não europeus que esses passem pelas mesmas fases que as nações brancas e que ao mesmo tempo justifica por exemplo a colonização inglesa na índia Finalmente manifestamse tam bém cada vez mais fortemente o temor da espontaneidade revolucionária das massas o desejo de controlar suas iniciativas e uma confiança na racio nalidade unificante a qual batizada de científica é colocada como garan tia de sucesso duradouro Marx não havia aprovado o movimento que esteve na origem da Co muna de Paris em 1871 Todavia aderiu ao mesmo e analisou seus méritos em A guerra civil na França 1871 A influência do evento aparece no último texto político de Marx a Crítica do Programa de Gotha 1875 Nele são denunciados os erros cometidos no estabelecimento do programa do Partido Operário Alemão idealismo o trabalho como fundamento da natureza humana moralismo o objetivo do partido definido como a dis tribuição equânime dos produtos do trabalho obreirismo exaltação das virtudes operárias estatismo nacionalista apologia do Estado popular livre alemão E são definidos a revolução a tomada do poder pelo povo em armas o poder transitório a ditadura do proletariado seu primeiro ato o socia lismo a socialização dos meios de produção seu objetivo a médio prazo o desaparecimento do Estado e a implantação de uma sociedade orga nizada pelos trabalhadores em benefício de todos seu objetivo a longo prazo comunismo realização da era da liberdade começo da história Nesse meiotempo em 1872 para evitar que os anarquistas se apossas sem da direção da AIT Marx decidira transferir sua sede para os Estados Unidos Logo depois irá dissolvêla De uma estranha diversidade de níveis apesar da unidade do seu pro jeto espantosamente inovadora e ao mesmo tempo profundamente tributá ria do espírito da época a obra de Marx e Engels contém em germe todos os marxismos que ulteriormente irão reivindicála alguns dos quais a trai rão no momento mesmo em que a reiteram literalmente Paradoxalmente o que permanece vivo nessa obra não é nem a filosofia da história nem o socialismo científico nem a estratégia da revolução mundial mas o desejo utópico de instaurar uma organização econômica que engendre não so mente os meios da liberdade mas a própria ação livre O EstadoSociedade 129 IN DICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Apresentaremos em seguida alguns dos escritos de Karl Marx significativos de sua con cepção da ação política Os assinalados com um asterisco são em colaboração com Frie drich Engels Contribution à la critique de la philosophie du Droit de Hegel Introduction 1844 Aubier Montaigne 1971 ed brasileira Crítica da filosofia do direito de Hegel Introdução in Temas de Ciências Humanas Grijalbo São Paulo 19n vol 2 p114 Theses sur Feuerbach 1845 in Manuscrits de 1844 Economie politique et philosophie Ed Sociales 1962 ed brasileira Teses contra Feuerbach in Os Pensadores Abril Cultu ral São Paulo volXXXV 1974 p559 Idéologie allemande 184546 Ed Sociales 1959 ed brasileira parcial Ideologia alemã Ciências Humanas São Paulo 1980 Engels F Situation des classes laborieuses en Angleterre 1845 Ed Sociales 1956 Manifeste du Parti Communiste 1848 Le Livre du Poche 1973 ed brasileira Manifesto do Partido Comunista in MarxEngels Obras Escolhidas AlfaÓmega São Paulo 1979 voli Les luttes de classes en France 18481850 1850 Ed Sociales 1967 ed brasileira As lutas de classe na França in ibid voli Le Dixhuit Brumaire de Louis Bonaparte 1852 Ed Sociales 1963 ed brasileira O 18 Brumário de Luís Bonaparte ibid voli Introduction générale à la Critique de lEconomie politique 1857 3 in Oeuvres Galli mard col Pléiade t I 1963 ed brasileira Introdução à crítica da economia polí ticà in Os Pensadores edcit p10931 Contribution à la Critique de lEconomie Politique 1859 Avantpropos ibid ed brasi leira Para a crítica da economia política Prefácio ibid p1338 Adresse inaugurale à lAssociation Internationale des Travaileurs 1864 ibid ed brasi leira Manifesto de Lançamento da Associação Internacional dos Trabalhadores in MarxEngels Obras Escolhidas edcit voli La guerre civile en France 1871 1871 Ed Sociales 1953 ed brasileira A guerra civil na França ibid vol2 Critique du programme du parti ouvrier allemand Programme de Gotha 1875 ibid ed brasileira Crítica do Programa de Gotha ibid vol2 Para o essencial desses textos cf F Châtelet E PisierKouchner JM Vincent Les marxistes et la politique 1ª parte PUF col Thémis No seio de uma abundantíssima literatura referente à obra de Marx e Engels encon tramse selecionadas a seguir algumas das leituras contemporâneas em língua francesa que parecem as mais significativas por ordem alfabética 130 História das ideias políticas Althusser L Pour Marx Maspero 1965 ed brasileira Em favor de Marx Zahar Edito res Rio de Janeiro 1980 Aron R Les étapes de la pensée sociologique Gallimard 1967 Axelos K Marx penseur de la technique Ed de Minuit 1961 Calvez JY La pensée de Karl Marx Ed du Seuil 1956 Châtelet F Logos et Praxis Sedes 1962 ed brasileira Logos e práxis Paz e Terra Rio de Janeiro 1972 Lefebvre H Pour connaftre la pensée de Marx Bordas 1947 Naville P Le nouveau Leviathan I Riviere 1957 Rubel M Karl Marx essai de biographie intellectuelle Riviere 1957 ÜS SOCIALISTAS UTÓPICOS O termo socialismo apareceu nos anos 1830 nem todos os homens e for ças que o reivindicavam faziam apelo à utopia Longe disso Todavia muito rapidamente uma santa aliança de movimentos de ideias muito contradi tória no plano político permitiu que a ligação dos dois termos socialismo e utopia servisse para desenhar no século XIX um conjunto muito díspar de concepções políticas condição para ingressar nesse conjunto era preocu parse com a questão social sem colocála nos quadros do liberalismo ou do marxismo Ironia da sorte e desforra do século XX o próprio marxismo foi designado assim por determinadas pessoas de modo que passou a se atri buir à utopia socialista o advento do socialismo real Socialismo e utopia Periodicamente a utopia é apontada como bode expiatório responsável pelo Terror e por qualquer Gulag E isso ocorre hoje tanto à direita quanto à es querda A utopia é considerada como uma eterna heresia cf Thomas Moi nar Zutopie Eternelle hérésie 1967 Beauchesne 1973 e mais precisamente a utopia socialista é acusada de engendrar em nome de um homem novo de uma sociedade novà um Estado totalitário Com efeito os caçadores da utopia correm com muita sede ao pote Incoerência e confusão presidem essa condenação bempensante Como su blinha Miguel Abensour o sonho de uma sociedade de plenitude de trans parência ou de liberdade irrompe constantemente na reflexão política e na verdade é preciso com máfé forçar os textos e contentarse com pers O EstadoSociedade 131 pectivas históricas apressadas para poder imputar a Fourier a responsabili dade pela explosão pornográfica a Cabet a organização do terror a Buchez a de qualquer Inquisição ou ler em Marx a sinistra vontade de impor o Gulag cf Miguel Abensour Le proces des maitres rêveurs Libre 78 4 e também Les formes de lutopie socialiste communiste Payot A condenação dos universos concentracionários é uma coisa a conde nação da utopia outra A pressa com a qual alguém se contenta com a última deve inspirar desconfiança a partir do momento em que não se percebe seu verdadeiro alcance ideológico Tanto à direita como à esquerda e mesmo levada pelas melhores intenções a condenação da utopia serve à glória do realismo político e em última instância da razão de Estado Na raiz da po sição utópica há uma atitude de revolta diante do estado de coisas estabele cido Quem ganha o quê em qualquer momento com essa denúncia Em nome da necessidade histórica dos imperativos do progresso do peso das circunstâncias da barreira dos fatos do respeito pelas limitações naturais das fraquezas de uma vontade humana decretada como impaciente impõese a ideia de um curso necessário das coisas e da obrigação em que se encon tra uma sociedade ávida de segurança de se conformar com a ordem esta belecida pela instância estática considerada sábia por definição Acusase o sonho um imaginário social sempre presente sem que se investigue mais sobre as modalidades de seu desvio O desafio nem sempre é claro mas na maioria dos casos chegase a estabelecer a mesma equação cuja gros seria do enunciado desafia a inteligência a luta pela igualdade é causa de desigualdade a luta pela liberdade é causa de opressão cf como exemplo esse modelo de sutilezas em La fin du socialisme Club de lHorloge Lettre dinformation n2 3 1981 Se o marxismo se encontra frequentemente no banco dos acusados de utopia contribui também para fornecer as armas da crítica Numerosos tex tos de Marx e Engels um dos quais de Engels apresenta o significativo título Socialismo utópico e socialismo científico tratase de três capítulos do AntiDühring publicados em separado e sob esse título com a concordância de Engels atacam vivamente os socialistas utópicos Aqui a oposição en tre a ciência e a utopia está carregada dessa pretensão cientificista cara ao sé culo XIX Somente o método marxista o materialismo dialético e histórico pode pretender ser verdadeiramente científico Qualquer outro método ou ausência de método o dos Fourier Leroux Cabet Owen e Louis Blanc é utópico ou seja ingênuo pueril irrealista idealista moralista metafísico até mesmo religioso e tal como a religião a utopia adormece o povo e amacia a sua consciência de classe Por sorte Marx venceu o socialismo utó 132 História das ideias políticas pico e esse é seu principal mérito não passa da infância do socialismo científico que aquele anuncia e para o qual abre caminho é um socialismo prémarxistâ Em seu livro Les formes de lutopie socialiste communiste opcit Miguel Abensour discute essa pretensão marxiana e marxista de constituir a matu ridade Além de ser refutável tanto na teoria como na prática essa afirmação de uma continuidade histórica entre um socialismo utópico precursor ul trapassado e um marxismo científico que revela ao movimento operário sua plena maturidade é reveladora dessa filosofia da história própria a todos os determinismos positivistas Sob esse aspecto o tom do Manifesto Comunista por exemplo é mais do que claro as latas de lixo da história estão cheias de utopia Podese tratar dessas primeiras tentativas de revolta no tempo da sociedade feudal Elas fracassam necessariamente em razão do estado em brionário do próprio proletariado e na ausência das condições materiais de sua emancipação que só podem ser realizadas na época burguesâ não po demos nos impedir de pensar nesses gênios inúteis por terem surgido an tes da hora positivista dos quais falava Auguste Comte Mas pode se tratar também desses sistemas socialistas de SaintSimon de Fourier de Owen os quais decerto apresentam algumas proposições úteis e positivas mas cuja importância é julgada como função inversa do desenvolvimento histórico Pois sempre segundo Marx a utopia é ahistórica por ignorar a luta de classes Os utopistas são capazes de crítica percebem o antagonismo das classes mas substituem a atividade social por sua própria engenhosidade as condições históricas da emancipação por condições fantasiosas Só con cebem o proletariado sob a forma da classe mais sofredora mas desejam melhorar a condição de todos mesmo a dos privilegiados Crendo na força do exemplo e penetrados de pacifismo são incapazes de conceber as leis da revolução Para além das acepções do senso comum podemos recordar que a uto pia termo inventado por Thomas More em 1516 pode significar em ne nhuma parte Esse lugar em nenhum lugar esse alhures tanto no tempo como no espaço ganha um alcance significativo é subversão de uma ordem estabelecida modelo sempre diverso e portanto crítica do modelo dado e considerado real insubmissão ao Estabelecido A utopia é arma contra o posi tivismo precisamente no ponto em que esse pela voz de Auguste Comte proclama a subordinação necessária e permanente da imaginação Desse modo se aceitamos esse alcance a força da utopia não pode ser medida por sua capacidade de realização argumento que querendo defen der a utopia termina por enfraquecêla mas por uma capacidade crítica O EstadoSociedade 133 que recusa as discussões no quadro imposto e se volta contra os princípios contra as aporias dos sistemas que emergem dos próprios sistemas Nesse sentido a utopia extrai sua força não da predição ou da previsão mas da in venção de uma alteridade crítica Todavia os utópicos do século XIX ao contrário de uma opinião banal não renegam em nada a ideia da ciência e muito pelo contrário pretendem valerse dela contra os falsos sábios contra as falsas ciências de todo tipo fa bricadas pelo espírito positivista Essa é também a origem de muitas confusões nesse particular esquecese que o terreno intelectual e social onde se elabo ram essas diferentes doutrinas é o mesmo deixando suas marcas de tal modo que não é possível distinguir muito claramente entre as várias posições No conjunto as doutrinas socialistas do século XIX têm em comum o fato de criticarem o liberalismo enquanto é incapaz de resolver a questão so cial e de proporem soluções práticas fundadas na dupla convicção da imo ralidade e da ineficácia da economia política clássica Indose além disso as divergências são tantas que agrupálas sob um mesmo qualificativo de utópi cos resulta numa impostura Ao contrário é preciso um minucioso e paciente trabalho de investigação sobre a parte de utopia contida em cada um dos sis temas propostos a fim de indicar posteriormente qual a significação principal de cada uma delas É esse por exemplo o trabalho ao qual se dedica Miguel Abensour op cit e a qual não temos intenção de nos entregar aqui Lembremos simplesmente por exemplo que Robert Owen industrial inglês prega a criação de comunidades agrárias que absorveriam a indús tria aboliriam a propriedade privada e levariam por contágio ao advento da felicidade e da virtude sobre a terra Étienne Cabet recorre ao cristianismo para justificar a criação de um mundo novo comunista O Evangelho prescreve a partilha dos bens e a su pressão da moeda Disso resulta uma dupla equação ninguém pode se dizer cristão se não for comunista os comunistas atuais são os discípulos imitadores e continuadores de Jesus Cristo Comunismo cristão em Cabet cristianismo socialista em Buchez e em Pierre Leroux os dois exsaintsimonianos sobretudo cristãos Buchez rein terpreta 17 93 à luz do Evangelho a Convenção quis realizar o princípio cristão enquanto a Constituinte fez uma obra protestante foi individua lista esquecendose do objetivo da atividade comum A teoria do bem comum comanda todo o sistema de Buchez Quanto a Pierre Leroux ele 134 História das ideias políticas propaga ou mesmo inventa a palavra socialismo mas como a bandeira de uma religião para a humanidade e não como a da luta de classes Cada um por todos todos por cada um por meio da ciência e do amor Três discursos Somos socialistas se se entender por socialismo a doutrina que não sacrificará nenhum dos termos da fórmula liberdade fraternidade unidade mas que conciliará todos eles ibid A ode a Fourier Se aceitarmos adotar a posição metodológica que consiste em sublinhar ape nas o traço da utopia então o modelo exemplar é certamente o de Charles Fourier 17721837 Encontramse na obra de Fourier os princípios de uma crítica radical não somente da ordem social existente em seu tempo mas da própria Civi lização bem como um conjunto de proposições para construir um Mundo Harmonioso Segundo Fourier a civilização se define por três constantes reprimir corrigir moderar Constantemente a civilização é apenas repressão corre ção moderação do real no qual ela não introduz senão desordem irrazão violência Como observou Roland Barthes cf Sade Fourier Loyola Paris Le Seuil 1972 a civilização é assim um conjunto teórico imperfectível ir remediável teoricamente e Fourier portanto não buscará estabelecer uma boa teoria da civilização mas somente as condições práticas da libertação desse real assim corrigido moderado reprimido Fourier não reivindica de nenhum modo a utopia só é utópico o sistema que crê suprimir cientifica mente os efeitos de contradições que ele ignora e em particular essa contra dição fundamental entre o real e a civilização A civilização é criticável no próprio princípio de toda organização social por ela induzida cada homem nela tem necessidade da infelicidade alheia Tanto em economia como em política os princípios do liberalismo fundados na concorrência concedem sempre o prêmio ao mais forte ao mais mentiroso ao mais astucioso ao mais egoísta a sociedade é organizada na incoerência e na fragmentação de modo a selecionar os piores parasitas tais como os que vivem de rendas os soldados os comerciantes os cientistas Incoerência em matéria de indústria O EstadoSociedade 135 Comecei a desconfiar de uma desordem fundamental no mecanismo industrial e disso nasceram pesquisas que me fizeram descobrir as leis do movimento universal esquecidas por Newton Poderseão contar quatro maçãs céle bres duas pelos desastres que provocaram a de Adão e a de Páris e duas pelos serviços que prestaram a de Newton e a minha Incoerência em matéria de comércio Experimentei por ele uma aversão secreta e fiz em sete anos a promessa que Aníbal fez em nove contra Roma jurei um ódio eterno ao comércio Incoerência em matéria política a liberdade política o sistema repre sentativo a separação dos poderes não passam de mentira e engodo e le vam sempre a resultados contrários aos que se busca com eles E há pior em civilização essa incoerência generalizada se duplica num sistema de coerção também generalizado Fourier não se contenta com uma crítica dos sistemas econômico e político Sua ironia minuciosa não deixa na sombra nenhum aspecto do que forma a vida cotidiana do indivíduo educação família sexualidade urbanismo poluição e por toda parte ele descobre o traço da coerção Sua crítica ao princípio familiar será tão radical que servirá de objeto a censuras de todos os tipos inclusive por parte de seus mais fiéis discípulos Para Fourier os princípios do mercantilismo e do casamento burguês coincidem assistese a um jogo de enganos onde todos são enganados tanto os mais fortes como os mais fracos homens mulheres e crianças coexistem na dissimulação e na agressividade reprimida Pois a civilização organizou o regime dos amores numa coerção generalizada e em seguida na falsidade generalizada pois há falsidade sempre que existe regime coercitivo A proibição e o contrabando são inseparáveis tanto no amor como na mercadoria Não há sombra de justiça na sorte reservada a essas jovens postas à venda a quem quiser negociar sua aquisição e propriedade exclusivà não há sombra de justiça na sorte reservada a essas crianças trancadas no verão e tão maleducadas por babás que não têm nem os recursos nem a pai xão nem os conhecimentos nem o discernimento necessários à educação delas Mas tampouco o sexo forte conhece a felicidade Fourier elabora por exemplo um irresistível quadro analítico do corneamento passando em re vista 76 espécies de cornos Em projeto ou antecipado marcial ou fanfarrão argutos ou cautelosos irreprochável ou vítima de resguardo saudável regenerador ou conservador auxiliar ou coadjuvante transcendente ou de alto voo federal ou coligado em nome próprio ou como testa de ferro apóstata ou transfuga de urgência ou como salvaguarda judicioso ou garantido E termina essa saborosa enumeração com uma breve constatação Moralistas se os senhores atacam um vício como o adultério denunciamno na mulher e o toleram no homem porque ele é o mais forte cf Vers la liberté en amour Gallimard col Idées 1975 O EstadoSociedade 137 ela tampouco o dinheiro é suprimido mas ele não é mais fonte de espolia ção se deixa de ser necessário A coletividade protege o indivíduo mas em última instância o indivíduo nada tem a temer da coletividade o urba nismo inventado por Fourier para o Palácio da Coletividade esforçase por proteger a existência ao mesmo tempo coletiva e particular A felicidade é uma questão de justiça Mínimo de bemestar assegu rado a cada indivíduo supressão do salário são esses os traços comuns a Fourier e aos socialistas Mas ele se separa da maioria deles pelo modo de distribuição que admite e por uma concepção da justiça onde a igualdade material não tem nenhum papel Mas ele se afasta ainda mais dos socialistas pelo papel que reserva para a liberdade cf Henry Michel Lidée de lEtat Hachette 3ª ed 1898 A liberdade com efeito está por toda parte em Fourier Como Roland Barthes observa sua Utopia não comporta nenhum traço de humanismo integrador o objetivo do falanstério não é proteger a sociedade do conflito pela associação segundo as semelhanças nem reduzir o conflito pela nor malização das paixões nem transcendêlo pela compreensão do outro mas talvez simplesmente deixálo atuar E Barthes tem razão ao notar que em Fourier a força subversiva reside antes de mais nada no estilo E se a uni dade é natural se não é necessário recorrer a nenhum artifício integrador o Estado tornase inútil Em vão se procuraria no sistema de Fourier a auto ridade o poder A hierarquia é muito desenvolvida os títulos de magnatas e os cetros graduados são abundantes Mas a posse desses títulos feita para contentar certas paixões não implica nenhuma potência coercitiva Mais audacioso do que os economistas e os liberais que se limitam a restringir a ação do Estado Fourier elimina até mesmo sua ideia e nunca emprega nem mesmo a palavra que traduz a ideià Henry Michel opcit É inútil medir a força da utopia de Fourier por sua capacidade de rea lização Com efeito o que importam os sucessos e os fracassos dos falans térios os sobressaltos periódicos do desejo comunitário os progressos da agricultura ou da telecomunicação O essencial reside nesse poder de imagi nação que permitiria aos homens entrever por um instante o futuro para se recusarem a ser criados de homens que nascerão nos dois mil anos INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Abensour M Les formes de lutopie socialiste communiste no prelo Beer M A History of British Socialism Londres Allen Unwin 1948 História das ideias políticas Buchez PJ Introduction à la science de lhistoire 1833 Histoire parlamentaire de la Révo lution française 183338 Traité de Politique et de Science Sociale 1866 Cabet É Voyage en carie 1842 Le vrai christianisme suivant ésusChrist 1847 Fourier C Oeuvres Anthropos 1966 6 vols Vers la liberté en amour coletânea de extratos apresentados por Daniel Guérin Gallimard col Idées 1975 Lacroix B Eutopie communautaire PUF 198i Leroux P De lHumanité 1840 Du christianisme et de ses origines démocratiques 1848 Owen R Le nouveau monde moral textos escolhidos apresentados por AL Morton Ed Sociales 1963 A SOCI EDADE FO RA DO ESTADO DE MAX STI R N ER AO ANARCOSS I N D I CALISMO O projeto de uma sociedade industrialistâ fundada na ciência como meio de dominação da natureza e como técnica de gestão da coletividade as sim como o contraprojeto da ditadura do proletariado primeiro momento da instauração de uma sociedade sem classes por mais opostos que sejam em sua orientação política têm em comum o fato de requerer o princípio de um poder unificador que tem como missão realizar a história É da in venção fraterna e de um imaginário mais realista do que o real miserável produzido pelo Estado burguês que se alimentam os artesãos da Utopia Em seu empreendimento a anarquia gostaria de unir a radical idade desses últimos com a exigência de revolução política que está no coração da con cepção de Marx O movimento anarquista do século XIX se inscreve numa tradição muito antiga marcada ao mesmo tempo pela reivindicação da independência do indivíduo que recusa a ordem sociopolítica imposta da qual os cínicos da Antiguidade pagã são os representantes mais audaciosos e pela afirmação de que os grupos humanos são capazes de se organizar de modo autônomo segundo seus desejos e suas vontades fora ou à margem da autoridade po lítica posições muitas vezes adotadas tanto pelas primeiras comunidades cristãs quanto pelos burgueses da Idade Média ou pelos diggers quando da Revolução Inglesa por exemplo Para a anarquia colocar a questão social é não somente recusar o Estado burguês e sua problemática política sem perspectiva mas também consi derar que os indivíduos e os grupos possuem em si mesmos a capacidade de O EstadoSociedade 139 engendrar uma outra forma de organização da sociedade que não a do Es tado ou de seu equivalente o diretório dos sábios o partido encarregado de representar o proletariado etc Nem Deus nem senhor o slogan significa antes de mais nada que nenhum princípio que se supõe imutável ainda que revolucionário é aceitável já que sua própria instituição é uma hipo teca para a liberdade Por isso o tema constante que anima o movimento anarquista é a luta antiautoritária sob qualquer forma que se apresente essa autoridade Essa luta toma como ponto de apoio o fato de que em todos os níveis da realidade social a única potência efetiva é a do indivíduo e sendo assim toda outra potência deriva dela e aquela que se separa de sua origem e se volta contra ela é uma usurpação fundada numa mentira A partir disso desenvolveuse uma corrente minoritária que se ateve a essa afirmação e chegou a negar o fato da sociedade e uma corrente majoritária que se esforça por reali zar uma dinâmica que visa a opor às coerções econômicas e políticas a força de potências individuais que organizam por si mesmas sua coalizão INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Dolléans E Histoire du mouvement ouvrier 1830 à nos jours A Colin 1953 3 vols Maitron J Dictionaire biographique du mouvement ouvrier français Ed Ouvrieres 1964 67 Histoire du mouvement anarchiste en France 18801914 SVEL 1951 Netlau M Histoire de lanarchie 19271931 Ed du Cercle 1971 Sergent A Cl Harmel Histoire de lánarchie Le Portulan 1949 Voline La révolution inconnue 1947 Belfond 1969 O individualismo e os paradoxos do niilismo de Max Stirner a Netchaiev Foi no seio do movimento dos hegelianos de esquerdà e portanto na vizi nhança de Marx e de Bakunin que apareceu em 1844 escrita por Max Stir ner 180656 uma obra estranha e caótica O único e sua propriedade que é o manifesto do individualismo absoluto Tratase de um texto filosófico que não pode ser compreendido se não é inserido em seu contexto de ideias Devese recordar que no centro das reflexões veementes desse grupo contestador encontramse personagens de elevada estatura GWF He gel e Ludwig Feuerbach O primeiro elaborou uma filosofia da história na 140 História das ideias políticas qual o homem tanto em seu ser coletivo como em seu ser individual é a encarnação do movimento do Espírito Razão cujo fim é a recon ciliação universal no seio do Estado mundial contra essa escatologia que julga idealista Feuerbach construiu uma concepção crítica que põe no centro a humanidade compreendida como materialidade que para se li bertar tem de lutar contra a alienação religiosa e sua expressão filosófica o hegelianismo Com uma fingida ingenuidade Stirner pergunta o que o indivíduo ga nhou com essa operação A resposta é clara uma nova alienação Feuer bach lhe impõe realizarse como homem e define tal como a religião a filosofia as doutrinas políticas novas tarefas uma nova missão Para convencerse disso bastalhe considerar o que ocorreu com o Eu depois que o liberalismo inscreveu em seu programa a liberdade e a igualdade politicamente a tirania do rei foi substituída pela tirania da nação sobe rana socialmente as hierarquias dos estamentos foram substituídas pela hierarquia do dinheiro e a coação ao trabalho mantevese idêntica quanto aos revolucionários disputam entre si para saber a quais instituições será submetida a sociedade futura Stirner apela a uma tomada de consciência que o Eu finalmente saiba se reconhecer ao mesmo tempo como única potência real e como originali dade irredutível que deixe de crer no direito que não é mais do que a expres são do querer do Estado que não entre em sociedade com os outros se não na medida em que disso vier a tirar satisfações e de modo sempre provisó rio que recuse toda missão todo destino e que conheça apenas uma única tarefa seu próprio florescimento e seu gozo pessoal Depois de um sucesso efêmero a obra não terá efeitos notórios em seu tempo Nietzsche que ao que parece não a conheceu reencontrará seus temas e lhes dará desenvolvimentos surpreendentes Será preciso esperar pelo século XX para que essa afirmação individualista que condena todos os ensinamentos científicos e éticopolíticos encontre sua ressonância To davia essa mesma atitude de desafio em face dos valores estabelecidos e dos projetos subversivos que eles suscitam esse niilismo surgiu novamente em circunstâncias diferentes e engendrou tomadas de posições individuais de estilo completamente diverso Foi no romance de Turgueniev Pais e filhos 1862 que o termo niilismo surgiu em sua atual acepção Na mesma época Nikolai Tchernichevski apre sentou em Que fazer um personagem extraordinário o sal do sal da terrà que calma e firmemente empenhase por suas palavras e condutas em destruir as ideias recebidas e em abalar os poderes Já duas décadas an O EstadoSociedade 141 tes Vissarion Bielinski 181148 opusera às ilusões românticas a força da crí tica realista e o projeto de uma subversão profunda das estruturas mentais e sociais Na mesma óptica Nikolai Tchernichevski 182889 que passou 37 anos de sua vida na prisão ou no exílio sonha com uma mulher que fosse uma completa cidadã imagina a fundação na Santa Rússia de cooperativas femininas de produção afirma um hedonismo completo e denuncia as impos turas da alma bela Escreve ao tzar para denunciar o odioso embuste que foi a abolição da servidão Seu discípulo Nikolai Dobroliubov 183661 analisa a partir do personagem de um romance de Gontchárov Oblomov a neurose coletiva que prolifera na Rússia à sombra do despotismo o oblomovismo é o desencanto a incapacidade de reagir a resignação e a veleidade ele prevê a explosão que porá fim a essa situação insustentável O poeta do grupo Dmitri Pisarev 184068 admite que os niilistas são fanáticos mas o que os fana tiza é uma sóbria vontade muito precisa e muito humana de proporcionar a todos os homens em geral a maior parte da felicidade terrena Todavia a explosão se faz esperar a repressão contra as forças da liber dade aumentou Dizendose anarquista convencido de ter recebido a aprova ção de Bakunin Serguei Netchaiev que morreu na prisão em Petersburgo em 1882 lançase numa ação de propaganda e de prática do terrorismo Em toda a Europa dos anos que se seguem ao esmagamento da Comuna de Paris até o início de nosso século desencadeiase uma vaga de assassinatos políticos que se pretendem exemplares e que têm como finalidade provar a liberdade do indivíduo inflexível e despertar o povo de sua letargia Se na ausência de qualquer filiação há uma lógica que leva de Stirner ao niilismo russo e às afirmações nietzschianas nenhuma lógica leva do pressuposto anarquista ao uso do terror esse decorre muito mais de uma técnica inteira mente subjetiva de ajuste de contas De resto o anarquismo escolheu outros caminhos INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Netchaiev S Catecismo do revolucionário 1970 Stirner M ZUnique et sa propriété 1845 in Oeuvres completes Lausanne IAge dhomme 1972 Tchernichevski N N Dobroliubov e D Pisarev Extraits in Les nihilistes russes Aubier Montaigne 1974 142 História das ideias políticas A capacidade política das classes operárias segundo PJ Proudhon Esse título de um livro póstumo de PierreJoseph Proudhon 180965 for nece o ponto de vista que permite introduzir uma certa unidade numa obra muito diversa quanto aos objetos e aos níveis de análise cuja leitura foi hipo tecada pela crítica de Marx crítica que o marxismo posterior irá radicalizar até chegar ao desconhecimento É verdade que as demonstrações de Proudhon são prejudicadas por im precisões históricas e por referências filosóficas pouco pertinentes e que lhe ocorreu dar sua confiança a empreendimentos duvidosos Mas há dois as pectos de sua atividade sobre os quais não poderia ser levantada nenhuma suspeição A constância e a firmeza de seu devotamento à causa do socialismo se por esse termo se entende a dinâmica de emancipação das classes subju gadas como pode ser testemunhado entre outras coisas por seu discurso à Câmara de 31 de julho de 1848 que valeu ao deputado Proudhon uma conde nação quase unânime da Assembleia O desejo de se manter o mais perto possível das iniciativas próprias da classe operária que se organizava para lutar contra a expressão capitalista contra a miséria e contra a apatia política bem como sua vontade de inscre ver seu projeto no quadro desse combate por uma autonomia máxima do proletariado Essa vontade de levar em máxima conta as diversas formas da reivindi cação empírica levou a análise proudhoniana a recusar as abstrações realiza das pelos economistas moralistas e políticos reformadores ou revolucioná rios Pois as ações operárias não separam os dados econômicos dos sociais ou políticos elas lutam contra a opressão e pela justiça sem prejulgar sobre a natureza da instâncià cuja transformação será decisiva Intervêm onde po dem quando podem com objetivos que evoluem em função dos episódios de suas lutas A economia política clássica não viu que a divisão social do trabalho no sistema capitalista implica uma espoliação um roubo que não pode deixar de ter como efeito o antagonismo entre proprietários e proletários Isolando o domínio econômico ela mascarou o fato de que o capital enquanto tal não produz nada que ele é apenas um suporte e que somente o trabalho é produ tivo Os jacobinos e seus sucessores mais ou menos radicais Louis Blanc e Auguste Blanqui ao privilegiarem o fator político tomando como objetivo O EstadoSociedade 143 a conquista do poder e desconhecendo a importância das relações sociais na produção abriram caminho para a onipotência do Estado que cedo terá por fim somente a sua manutenção e para isso o seu fortalecimento e a limitação das liberdades Quanto aos arautos da igualdade e da fraternidade universais eles desconhecem as relações empíricas de força O próprio funcionamento do capitalismo põe em destaque a interpre tação do econômico do social e do político o sistema da propriedade ca pitalista que se apropria do excedente do trabalho operário implica a cen tralização estatal e a ocupação do poder pelos governantesproprietários em todos os níveis da vida social E viceversa a constituição de uma instân cia soberana ainda que fosse o fruto da vontade geral como queria Jean Jacques Rousseau implica uma coerção política que impede os produtores de organizarem a produção segundo seus interesses e suas vontades e leva inelutavelmente a uma outra servidão Sendo assim o teórico preocupado com a realidade operária concebe a indispensável revolução como remanejamento que subverte todas as relações sociais Embora seja necessário por exemplo expropriar os capitalistas pro prietários das grandes unidades de produção industrial deve ser evitada a es tatização que reinstaura a dinâmica da opressão a socialização deve ser com preendida como controle dos produtores sobre sua atividade no próprio local que permita determinar o valor dos diferentes produtos mediante convenções nacionais constantemente revisáveis Do mesmo modo a fim de evitar a insti tuição de um princípio centralizador devese conservar o estatuto privado do artesanato do pequeno comércio e da pequena propriedade agrícola Pois se é preciso abolir a exploração tratase também de preservar a motivação motriz da atividade a competição limitada pela fixação de regras que definam o valor médio em função do custo social e que excluam qualquer possibilidade de monopólio Assim Proudhon empenhase em combinar do modo mais flexível possível o coletivismo aplicável às empresas de impor tância e função nacionais o mutualismo que é o fermento da invenção e da autoorganização operárias e um setor privado onde são garantidos os direitos da individualidade solitária Não é certo que Proudhon tenha tido razão quando se referiu à filosofia de Hegel para legitimar seu projeto a ideia da dialética aberta na qual os termos contraditórios se conservam sem sín tese e onde cada um desenvolve seus aspectos positivos e anula o que implica de negativo não tem nenhum sentido teórico Só pode funcionar como me táfora para denunciar as simplificações de uma filosofia da história que sob o pretexto de inteligibilidade obriga a classe operária a realizar uma missão previamente definida 144 História das ideias políticas A esse modo de organização diversificada único capaz de introduzir a justiça nas relações sociais corresponde a forma política do federalismo O empirismo de Proudhon reconhece como dados o fato da família e o da nação Mas é inútil em sua opinião que essa última se institua como poder de Estado Quanto ao poder central não poderia ser senão a emanação das comunas das regiões e das empresas coletivas ou mutualistas que já administrando a si mesmas necessitariam apenas de um órgão de coorde nação e de orientação que teria unicamente de estatuir acerca das questões comuns após debates em que partes interessadas discutiriam amplamente Decerto é ilusório pressupor uma harmonia qualquer entre as realida des constituintes Surgirão conflitos implicando relações de força sabese muito bem que o recurso à decisão dos que dizem representar a vontade geral leva a dar força de lei ao interesse do grupo mais forte É mais realista e conforme à justiça prever organismos de discussão no seio dos quais po deriam ser estabelecidos compromissos finalmente aceitáveis pelas partes em conflito Tão afastado do liberalismo quanto do socialismo autoritário o anar quismo de Proudhon recusa a existência formal ou real de qualquer princí pio que transcenda a sociedade Ele recusa o aparelho de Estado encarregado de executar os decretos da vontade geral desconfia das lições que a com petência política pretende dar aos produtores não reconhece a autoridade de um partido por mais revolucionárias que sejam suas proclamações Não admite senão uma única transcendência a da ideia de justiça Ela intervém como valor regulador no duplo sentido de que constitui a motivação con creta dos movimentos operários que lutam contra a espoliação a humilhação e a impotência às quais a irracional idade e a violência burguesas condenam os trabalhadores e o ideal a que eles devem visar INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Ansart P Naissance de lanarchisme PUF 1970 Langlois J Défense et actualité de Proudhon Payot 1976 Proudhon PJ Questce que la propriété 1840 De la création de lordre dans lhumanité 1843 Philosophie de la misere 1846 ldée générale de la Révolution du XIX siecle 1851 Du principe fédératif 1865 De la capacité politique des classes ouvrieres 1865 Proudhon coletânea de textos por C Bouglé Alcan 1930 O EstadoSociedade 145 Do anarquismo libertário de Bakunin ao anarcossindicalismo O pensamento e a ação de Mikhail Bakunin 181476 situamse em linha de continuidade direta com o pensamento de Proudhon Mas Bakunin distin guese de Proudhon por um lado agressivo e abrupto característico também das tomadas de posição dos libertários espanhóis catalães e jurassianos cujas federações ficaram ao lado de Bakunin nos conflitos que o opuseram a Marx no seio da Primeira Internacional Bakunin que também fez parte dos hegelianos de esquerdà acreditouse obrigado a definir suà dialética ao contrário de Proudhon ele privilegia a negatividade A posição do homem é sua animalidade a negação é a revolta contra esse estado de dependência por meio do pensamento a negação da negação é a realização da liberdade humana pela destruição das limitações impostas pelo pensamento Mas depois de se ter empenhado nos movimentos que militavam em favor da constituição de Estados nacionais eslavos contra a hegemonia tza rista aderiu ao campo antiautoritário quando em 1861 conseguiu fugir do seu exílio siberiano Até sua morte durante 15 anos participou fisicamente dos combates travados contra a opressão e polemizou tão vivamente contra Marx que esse se amedrontou e conseguiu expulsálo da AIT em 1872 Sua perspectiva histórica é incisiva a religião e a ideia de Deus o Estado e a autoridade de um princípio político e a propriedade e os sistemas econô micos que lhe correspondem talvez tenham contribuído no passado para a emancipação do homem do seu estatuto animal Hoje estão superadas e constituem freios à emancipação humana e ao florescimento da liberdade A crítica da religião ao modo de Feuerbach ou de Marx é insuficiente Para afirmar o homem é preciso negar Deus O ateísmo e o que dele resulta normalmente o niilismo prático a recusa das morais constituem o fun damento do pensamento libertário Piotr Kropotkin 18421921 que possuía uma boa formação científica irá desenvolver esse tema pretendendo darlhe uma legitimação científica segundo ele a organização físicoquímica é anár quica sem princípio unificador e apresenta em cada um dos seus campos fatos de associação O Estado sob qualquer forma que se apresente bem como o que ele implica a autoridade centralizada a administração a legislação a represen tação dos cidadãos não pode deixar de se opor ao livre florescimento da humanidade Qualquer que seja o modo pelo qual é designada a instituição que detém a potência de decidir pela sociedade se opõe a essa e a coage A ditadura do proletariado dos partidários de Marx não poderia ter outro História das ideias políticas fim além da ditadura de uma burocracia sobre o proletariado precisa Mikhail Bakunin Ele se vincula à ideia proudhoniana de uma federação de comunas Pois se é preciso suprimir a propriedade privada dos meios de produ ção é preciso também construir formas de organização de tal tipo que as di versas liberdades individuais possam se fortalecer uma às outras e explicitar suas capacidades fora de qualquer coerção econômica global O comunismo libertário tem como elemento de base nessa óptica a comuna livre e a em presa dirigida coletivamente O fracasso da Comuna de Paris o constante fortalecimento dos poderes imperialistas no terceiro terço do século XIX o desenvolvimento massivo do capitalismo industrial que arregimenta massas cada vez maiores de traba lhadores as ilusões eleitoralistas alimentadas pelos partidos socialistas que se unem no seio da Segunda Internacional Operária em 1889 todos esses fa tos atingem duramente o movimento libertário O terrorismo individual ou especulações sobre o emprego ético da violência de massa como as de Ge orges Sorel em suas Reflexões sobre a violência 1906 pretendem fornecer uma resposta a essa situação bloqueada Todavia o anarquismo encontra um ponto de enraizamento mais adequado e seus objetivos na ação que empre ende nos sindicatos operários Sobretudo na Itália na Catalunha e na França a concepção proudhoniana readaptada às circunstâncias encontrase na origem de poderosas ações que visam a obter ao mesmo tempo em cada empresa em cada profissão um melhoramento das condições de trabalho e dos salários a manutenção da combatividade dos trabalhadores e o agrupa mento nas Bolsas do Trabalho da classe operária no nível de cada cidade a fim de garantir a emancipação e a formação de cada um e de constituir uma força capaz de intervir globalmente na luta econômica O objetivo consiste em forjar fora dos partidos políticos uma força que esteja nas mãos dos operários e que controlada por eles possa se contrapor à política do Estado burguês e ao mesmo tempo lutar concretamente contra o poder capitalista Tratase não de conquistar o poder do Estado mas de fabricar uma máquina autônoma de onde deve brotar uma nova sociedade Na França a Carta de Amiens adotada pela CGT Confederação Ge ral dos Trabalhadores em 1906 especifica bastante bem o sentido político desse apoliticismô E a violência da repressão que se abateu sobre as gran des greves nacionais entre 1900 e 1914 testemunha o temor que ele suscita entre os governantes Tal como o enquadramento dos sindicatos por Lênin e Trotski após a Revolução Bolchevique Tal como a batalha iniciada em 1980 na Polônia sobre os sindicatos livres O EstadoSociedade INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bakunin M Oeuvres completes 6 vols Stok 190722 Guérin D IAnarchisme Gallimard col Idées 1965 Kaminski HE Bakounine la vie dun révolutionnaire Ed Montaigne 1938 Kropotkin P Paroles dun révolté 1885 Flammarion 1885 147 Idealismo crença ingênua no homem otimismo inconsiderado no que diz respeito à capacidade das coletividades de se encarregar de seus conflitos espírito pequenoburguês e culto da individualidade realismo grosseiro exaltação das tendências materialistas gosto pela expressão violenta e pelo ato excessivo coletivismo que não hesita em ironizar os sentimentos na turais complacência culpável em face do desvio e da anormalidade Essas críticas foram dirigidas ao mesmo tempo contra o anarquismo No melhor dos casos falam em nome de um poder presente ou futuro fortalecido por um saber sobre o homem a sociedade e a história Desconhecem precisamente a singularidade do ponto de vista libertário propor uma perspectiva de emancipação sem por causa disso ter de cons truir uma política elaborar uma Constituição ou um programa econômico e nomear um governo considerar que a questão social não pode ser posta e ter sua solução encaminhada a não ser pela própria sociedade sociedade feita de indivíduos e de grupos inteiramente diferentes e não préformada como povo nacional classe sábia ou produtiva ou proletária ou con senso saco onde cada político põe o que convém a suas ambições e seus in teresses aceitar a palavra liberalismo quando ela implanta uma dinâmica de liberdade mas recusar as instituições que ela assume já que destinada a fortalecer a potência do Estado denunciar o socialismo autoritário que pre tende pôr como objetivo a libertação da sociedade como tal mas começa por subjugála aos imperativos da eficácia econômica e do sentido da história Uma tal posição assumida no jogo político é frágil É preciso também constatar que os anarquistas perderam suas batalhas políticas no século XX Mas o pensamento libertário não deixou e não deixa de continuar ativo no Leste e no Oeste nas lutas contra o totalitarismo burocrático e nas que são travadas contra a ordem industrial capitalista Ele se desenvolve não como doutrina mas como estado de espírito e como prática cotidiana Ele se en contra espontaneamente em relação de cumplicidade com as formas de cul tura literária artística filosófica mais ricas e mais vivas do mundo contem porâneo O materialismo prático que tal pensamento tentou implantar a História das ideias políticas imprescritível liberdade que tomou como eixo de suas afirmações estão em grande parte na origem das atuais investigações que visam a definir a demo cracia como organização da liberdade fora da potência do Estado I N D I CAÇÕES B I B LIOG RÁFI CAS GuyGrand G La philosophie syndicaliste Grasset 1951 H Dubief Le syndicalisme révolutionnaire textos escolhidos A Colin col U 1969 Labriola A Socialisme et philosophie Lettres à Georges Sorel Giard 1899 Lefranc G Histoire du mouvement syndicalfrançais Libr syndic 1937 Les expériences syndicales internationales Aubier 1952 Pelloutier F Histoire des Bourses du Travail 1902 Costes 1946 Sorel G Réflexions sur la violence 1908 Riviere 1946 Poder de um só poder de um grupo poder do povo a classificação tripartite exposta pela primeira vez por Heródoto revelase hoje particularmente inoperante Em grande número de Estados contemporâneos a legitimidade proclamada é de tipo democrático ao passo que a aparência política confere o poder a uma espécie de monarca temporário às vezes eleito e o funcionamento político real é de tipo oligárquico Quanto às classificações que tendem hoje a distinguir os Estados de acordo com o fato de serem o produto do liberalismo do socialismo ou do fascismo tratase de algo construído com finalidades de propaganda ou destinado a registrar debates ideológicos tendo apenas no mais das vezes um valor polêmico Desse modo no que se refere ao conjunto dos Estados líderes do bloco ocidental ditas democracias ocidentais liberais ou avançadas o termo gerência parece o menos apropriado para designar o corpo de concepções políticas que os sustenta O termo liberalismo habitualmente contraposto a socialismo ou comunismo engendra numerosas confusões tanto mais porque se refere a um conjunto de proposições doutrinárias dominantes no século XIX mas de nenhum modo permanentes O termo gerência pode permitir pôr fim a essa oposição equívoca ele designa elementos doutrinários do liberalismo tanto em sua gênese como em seus desenvolvimentos mas também do socialismo cuja especificidade tende frequentemente a ser anulada quando se faz dele um subproduto doutrinário do marxismo Com efeito o termo gerência tal como o entendemos aqui implica a renúncia a uma concepção do liberalismo inteiramente contida na ideologia de uma classe social ou confundida com um programa socioeconômico limitado ao laisserfaire laisserpasser Em sua História da teoria política 150 História das ideias políticas George H Sabine constata no fim do século XIX uma convergência de princípios entre os pensamentos liberais e socialistas e tenta avaliar o que a evolução das democracias ocidentais deve a essa convergência É certo que em final do século XIX os liberais parecem dispostos a con siderar o mercado livre como uma instituição social e a pôr fim à oposição sistemática entre o econômico e o político O Estado tornase menos sus peito a concepção da liberdade menos negativa Entre certas tendências do liberalismo e do socialismo em particular a fabiana a fronteira é muito tênue Produzse uma espécie de osmose a segurança e a estabilidade são também condições da liberdade e a competição entra em acordo com a pre visão planned society não se renuncia ao individualismo mas esse é ra cionalizado Essa evolução impõe o abandono do termo liberalismo a não ser que lhe seja conservado o estrito sentido que tem na luta eleitoral para distingui la das posições conservadoras ou socialistas ou a não ser ainda que se lhe permita monopolizar sob sua sigla o conjunto das concepções democráti cas às quais aderem outras correntes particularmente socialistas Mas nesse caso para evitar qualquer confusão é melhor falar em gerêncià Não pretendemos ocultar as dificuldades metodológicas e os riscos teó ricos em que incorremos com essa escolha e que são pelo menos de duas diferentes ordens inclusive contraditórias Por um lado para levar a sério um acordo mínimo sobre um certo número de valores e de práticas devese evitar a tentação de apagar as dife renças de negar os antagonismos políticos tomandose ao pé da letra o mito do consenso Por outro lado e inversamente para levar em conta esses antagonis mos internos ao EstadoGerente devese evitar considerálo como um sim ples quadro informe e não específico a partir do qual emergem outras for mas de Estado essas específicas de modo que a gerência captada como tecido de ilusões e suporte de mentiras transformarseia num princípio de causalidade e de responsabilidade O EstadoGerente existe encontramolo todos os dias o fato de que esteja grávido de tentações fascistas tecnocráti cas ou de outro tipo não diminui sua especificidade mas ao contrário con tribui para mantêla O termo gerência implica a ideia de uma separação necessária entre o poder e uma realidade que é dada ao mesmo tempo de modo natural e histó rico a saber a sociedade civil Em consequência a sociedade civil não pode ser considerada como matériaprima oferecida às experiências políticas O EstadoGerente 151 Georges Burdeau pois tanto os indivíduos como os grupos que a consti tuem possuem antes e fora do Poder direitos que esse tem de respeitar Todavia o Poder é considerado como a própria expressão dessa sociedade cuja independência ele figura e garante Essa posição do Poder posição de exterioridade ao dado social que ele tem a missão de regular já que ele tam bém é seu tutor designado faz do Estado o gerente da sociedade A expressão EstadoGerente testemunha o equívoco que caracteriza essa concepção e reforça o silêncio teórico de que ele se tornou objeto no sé culo XX não tendo em seu favor salvo exceções senão testemunhas muito medíocres ou dissertações despojadas de amplitude e de sabor Mar cel Prélot com o risco de abandonar o terreno ideológico aos opositores FP Bénoit A gerência é silenciosa as grandes vozes do século passado se calaram tudo se passa como se na ordem política os princípios tivessem se tornado objeto de tão grande consensus que podem dispensar as doutrinas Salvo se resolvermos tomar esse silêncio como sinal de um malestar malestar em aceitar o equívoco da gerência malestar em aceitar a espe cificidade desse EstadoGerente trabalhado de dentro pelas tentações mais antagônicas A gerência implica ao mesmo tempo a obrigação para o que gere de es tar a serviço de seu mandante o corpo dos cidadãos na maioria dos casos e a precariedade essencial do mandato fixado pelas regras do jogo político em vigor Todavia cada ato do gerente é marcado pelo timbre da potência soberana O EstadoGerente é um ser duplo limitado pela obrigação de ser viço para a qual foi instituído e levado a usar uma potência que multiplique seu título de legitimidade Essa duplicidade introduz disjunções significativas nos valores constitu tivos da concepção política da gerência como por exemplo para citarmos as mais notórias o humanismo o pluralismo e o reformismo A gerência faz apelo ao humanismo reconhece uma essência comum a todos os homens quaisquer que sejam suas condições de onde ela faz de rivar direitos fundamentais que tem por missão garantir no quadro de um Estado de direito Mas tanto no interior como no exterior o Estado de di reito contém sua própria contradição legalizando a exceção e a derrogação como partes integrantes do sistema Exacerbados esses efeitos do colonia lismo e do nacionalismo acumulamse os desmentidos às proclamações hu manistas A NaçãoEstado terá triunfado sobre o EstadoGerente Outra característica da gerência a afirmação da necessidade do plura lismo político Separado da sociedade o Poder emana dela é portanto o produto de sufrágios livremente expressos Todavia se pluralismo e consenso 152 História das ideias políticas exigemse reciprocamente também se contradizem A sociedade é múltipla e conflitual o poder que a gere não poderia representála sem tentar reduzi la à uniformidade e perpetuar sua gerência pela manipulação o EstadoPar tido é uma ameaça constante Finalmente implícita na própria fonte do liberalismo a vontade de re formismo está incluída na ideia e na atividade da gerência Mitos progressis tas e desenvolvimentos tecnológicos decuplicam a necessidade do interven cionismo estatal de modo que hoje em nome da racionalidade técnica o EstadoCientista avança em todo EstadoGerente INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bénoit FP La démocratie libérale PUF 1979 Burdeau G Le libéralisme Le Seuil 1979 Prélot M Histoire des idées politiques Dalloz 1966 Sabine GH A history of political theory Dryden Press Hinsdale Illinois 41 ed revista por Thomas L Thorson 1973 0 H U MAN ISMO O humanismo é entendido aqui em seu sentido mais amplo e designa o con junto de doutrinas e mesmo de atitudes que tendem a considerar o homem como fim e valor superiores Quer seja datado do Renascimento ou do sé culo XIX o termo para além dos grandes debates filosóficos e antropológi cos pode designar uma ideia simples em comunidade o individualismo se veste de moral e essa moral de certo modo sustentará o político É nesse sentido que a permanência do protesto humanista é um traço do EstadoGe rente Uma tal permanência não implica nem sua realidade nem sua men tira Mas implica efeitos de discurso que devem ser relacionados com um ordenamento jurídico o EstadoGerente se organiza em Estado de direito A raiz não é nova o humanismo contém o universalismo no sentido de que a particularidade individual garante o respeito pelo universal Sendo assim o humanismo leva a recusar a fundação de uma definição da humanidade com base em distinções e diferenças de raça ou de classe por exemplo e a proclamar todos os homens que vivem no seio de uma comunidade política como iguais diante da lei que garante seus direitos O EstadoGerente 153 Do humanismo ao Estado de direito A questão do Estado de direito encontra suas fontes filosóficas na obra por exemplo de Kant cf cap III Mas ela restringiuse por muito tempo ao terreno jurídico cf no direito administrativo francês as discussões relativas ao princípio da legalidade Conheceu há pouco uma nova voga no seio da teoria política que a utiliza por vezes como meio para possibilitar uma abor dagem da especificidade das Democracias Ocidentais em relação aos Estados ditos totalitários O debate que assim se instaurou deu lugar a interessantes aberturas mas apresenta o risco de levar a um duplo impasse sobretudo se não for capaz de transcender as considerações puramente polêmicas Primeiro impasse a tentação de autossatisfação A palavra é tomada em sua realidade o Estado de direito é aquele que inteiramente submetido a um Direito considerado como justo trata seus cidadãos em função de uma estrita legalidade Desse modo a simples alusão a esse paraíso jurídico per mite ocultar as discriminações as injustiças as exceções internas cometidas em seu próprio nome e a reflexão tornase deliberadamente cega diante das contradições do sistema Melhor na medida em que nada justifica a expor tação do Estado de direito um certo ambiente internacional é dissolvido o colonialismo e o imperialismo em qualquer de suas formas não têm ne nhum papel na explicação do Estado de não direito o que se faz é simples mente uma exortação ao grande combate pelos direitos do homem Com bate utilizado para fins políticos grosseiros Mas assistese ao delineamento de um risco mais insidioso na atitude dos que de boafé chegam a atribuir à própria forma estatal os méritos do Direito valendose do fato de que não existe nem histórica nem sociologicamente Estado de direito sem Estado e que a contrario a carência de Direito em outras partes nasce da ausência de Estado Além de não repousar em nenhuma consideração séria uma tal análise fornece seus argumentos de autoridade às doutrinas da Segurança cuja propaganda se fortalece ao agitar contra a delinquência e o terrorismo os espectros da insegurança Mas o debate dá lugar a um segundo impasse ligado dessa feita à escola do ceticismo Retirando argumentos das hipocrisias das insuficiências e dos crimes do Estado de direito superando até mesmo a crítica marxista de seu formalismo chegase a recusar a distinção entre os Estados a renunciar a dar seu nome às democracias e portanto a compreender o que nelas se passa ainda que se trate da incerta sorte da liberdade Política da mescla indiferen ciada que alimenta os positivismos e impede a inteligibilidade do político 154 História das ideias políticas Assim para além das discussões polêmicas é preciso voltar a essa ques tão fundamental que segundo Claude Lefort está contida na expressão Es tado de direito ou seja a operação de separação entre o poder e a Lei nos termos da qual um novo ponto de sustentação é fixado o homem Assim o direito encontrase categoricamente estabelecido na natureza do homem uma natureza presente em cada indivíduo nos termos da qual o Estado de direito implica certamente quaisquer que sejam os meios de dominação postos à disposição de uma classe a possibilidade de uma oposição ao po der fundado no direito O conjunto dos discursos que sustentam o EstadoGerente é portador dessa proclamação humanista que alimenta os fundamentos e os desenvol vimentos do Estado de direito discursos inteiramente ideológicos mas que contribuem para a constituição dessas forças simbólicas específicas de uma certa realidade política INDICAÇÃO BIB LIOGRÁFICA Lefort C Droits de lhomme et politique Libre 807 Payot reeditado in Cl Lefort Einvention démocratique les limites de la domination totalitaire Fayard 1981 ed bra sileira A invenção democrática os limites da dominação totalitária Brasiliense São Paulo 1982 A inspiração cristã Embora a Igreja viva no mais das vezes separada do EstadoGerente ela con tribuiu poderosamente para inspirar os seus fundamentos ideológicos e em particular participou na promoção do humanismo A questão do desenvolvi mento das tendências das tentações das hesitações do cristianismo político no século XX supera por sua amplitude a investigação puramente dou trinária Nesse domínio a reflexão não pode dispensar estudos ao mesmo tempo históricos e teológicos aos quais o presente livro não pode aludir Contentarnosemos em recordar as observações de Hegel relativas ao alcance do monoteísmo esse instituindo um Ser perfeito infinitamente po deroso e bom como criador de todas as coisas fazendo do homem uma criatura livre libertou o humano ao mesmo tempo de sua submissão ao capricho das divindades pagãs e de sua inclusão no dado natural o homem criatura livre é doravante um ser liberado para sua desgraça ou felicidade O EstadoGerente 155 para sua danação ou salvação A ajuda da Igreja fundada por Deus permite fazer com que as potências da salvação triunfem sobre as da danação A Igreja é instituída para socorrer os homens a política cristã participando do poder ou se apoderando dele tem como objetivo facilitar essa ação salvadora da humanidade Na realidade como se sabe a questão não é assim tão óbvia e a voca ção humanista cede frequentemente lugar às exigências de mediação política Mesmo quando algumas vezes como em 1978 com a eleição de João Paulo II a Igreja colocou em sua direção um verdadeiro papa político A primeira encíclica do pontificado Redemptor Humanis de 1979 rea firma fortemente a ideia de que a Redenção envolve a humanidade inteira pois cada homem traz em sua particularidade o valor divino A seu modo a Igreja parece se alinhar com a defesa dos direitos humanos que por tanto tempo combateu em sua formulação revolucionária e republicana e que ten tará compatibilizar com as múltiplas proibições emanadas de sua ordem moral Aqui o humanismo não sofre apenas o desmentido cotidiano de uma realidade exterior ele está ainda nos balbucios de uma reivindicação concreta Os filósofos cristãos desse século de Simone Weil 190943 a Gus tave Thibon 19032001 de Unamuno 18641936 a Gabriel Marcel 1889 1973 de Teilhard de Chardin 18811955 a Maritain 18821973 buscam apaixonadamente fazer com que recuem os limites da indiferença diante da condição temporal o sofrimento humano continua em busca de seu esta tuto a partir do momento em que o mandamento da caridade não contém indicação precisa sobre a organização da justiça Ora a humanidade que se pretende proteger enquanto tal não é reconhecida como livre em suas escolhas entregue a seu próprio orgulho de resto ela não soube organizar mais do que a opressão do egoísmo individual ou da barbárie coletivista O humanismo cristão implica uma ambiguidade específica O homem decerto é por ele considerado como valor supremo já que feito à imagem de Deus Nesse sentido ele apela a um universalismo A pessoa humana é pro tegida sem distinção de sexo raça classe cultura Mas é à Igreja que cabe manifestar o mistério de Deus desse Deus que é o fim último do homem assim como ao mesmo tempo revelar ao homem o sentido de sua própria existência ou seja sua verdade essencial Encíclica Gladium et Spes 1965 Entre Deus e o homem se interpõe a Igreja ou em outras palavras uma organização com seus interesses sua burocracia suas estratégias sua polí História das ideias polfticas tica Essa especificidade organizacional particularmente forte no caso do ca tolicismo o Soberano Pontífice é de direito o chefe de um Estado explica por que de acordo com o caso o cristianismo apareça como o defensor dos direitos do Homem diante dos poderes políticos que o amea çam essencialmente Estados socialistas ateus o promotor dos direitos da Igreja ao lado de poderes políticos que o acei tam EstadosGerentes laicos A proclamação humanista de toda uma parte da corrente cristã por tanto serviu para uma acomodação com regimes cuja conformidade aos valores do cristianismo não é evidente nacionalsocialismo hitleriano di taduras de Mussolini e Franco etc Essa aparente anomalia não se explica apenas pela atuação dedicada aos direitos da Igreja mas também pelas ca racterísticas do humanismo cristão que propaga as virtudes da ordem e da autoridade incitando assim à submissão Nos EstadosGerentes esses cris tãos se alinharam entre os mais conservadores defendendo o nacionalismo o racismo e o colonialismo Como exemplo basta lembrar que no fim do século a divisão entre os dreyfusistas e os antidreyfusistas era em ampla medida a mesma que havia entre não católicos e católicos O humanismo contudo pode levar a uma atitude inversa tanto por parte de cristãos que o tomam ao pé da letra como inclusive em certos contextos por parte das Igrejas que podem se tornar instrumentos últimos de oposição à ditadura como na América Latina Fundado por Emmanuel Mounier o movimento personalista represen tou o mais interessante esforço intelectual para tentar retirar o humanismo cristão de seus impasses Enquanto pessoa o indivíduo é apreendido em sua relação com o outro e é essa relação que funda tanto seu sentido originário como sua vocação Em determinado sentido o personalismo abre caminho para um engajamento o ideal cristão incita a uma revolução espiritual con tra a despersonalização das relações humanas num mundo dominado pelo egoísmo pelo materialismo pelo capitalismo Mas Mounier recusando à burguesia capitalista o direito de monopolizar o Evangelho denuncia tam bém qualquer tentação marxista A ortodoxia marxista deu provas mais sangrentas da selvageria da Razão do que os excessos da Inquisição o fez em relação à conservação do fanatismo O imperialismo proletário ameaça suceder duramente com a dialética na mão os imperialismos capitalistas Mais ainda do que a ditadura de um interesse que é frequentemente temperada pela prudência e por um certo relativismo O EstadoGerente 157 devese temer uma primazia do espiritual que serviria apenas para encobrir um regime autoritário da abstração A Razão impessoal não pode respeitar as pessoas INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Maritain J Christianisme et Démocratie Hartmann 1943 ed brasileira Cristianismo e democracia Agir Rio de Janeiro Humanisme intégral Aubier 1936 ed brasileira Humanismo integral Cia Ed Nacional São Paulo Zhomme et lEtat PUF 1954 ed brasileira O homem e o Estado Agir Rio de Janeiro Mounier E Manifestes au service du personalisme Le Seuil 1936 Les certitudes difficiles Le Seuil 1951 O humanismo republicano Contra o coletivismo e o fascismo contra o materialismo e o reino da má quina denunciando o compromisso das Igrejas com os Estados no racismo e na guerra o humanismo tem também sua voz laica As correntes liberais do século XX quando não confessam oficialmente um conservadorismo cris pado na defesa de seus privilégios ou quando não se entregam às tentações do organicismo cientificista pretendem apelar à herança das Luzes e repetir ainda que o homem é finalidade suprema e não poderia ser tratado como uma coisa que ele tem em relação ao Estado direitos fundamentais que a República protege Herdeiro do utilitarismo o radicalismo por exemplo crê poder resolver as ambiguidades cristãs no que se refere ao sofrimento humano a felicidade é deste mundo Mas no século XX o otimismo se faz mais matizado O do mínio da natureza a ampliação das riquezas o desenvolvimento da educa ção não triunfaram contra a malvadez humana É preciso mais Léon Bourgeois primeiro Presidente do Conselho radical 1895 esfor çouse no sentido de elaborar uma teoria social e política a partir do conceito de solidariedade Tratase de tornar historicamente aceitável a tese do con trato social no sentido de uma superação na origem da soberania estatal não poderia estar um contrato no sentido estrito do termo já que a realização de um tal ato supõe uma sociedade já organizada mas há algo como um quase contrato O fato de se nascer numa sociedade humana compromete imedia tamente o indivíduo em relação a tal sociedade Mas o compromisso é bila História das ideias políticas teral a sociedade se compromete a reparar as injustiças que resultam de sua existência Desse modo as leis atos da vontade coletiva têm de remediar as injustiças e restabelecer a igualdade Essa é a função do Estado que não é nada mais do que o fiador de todos os contratos e que por conseguinte deve pagar aos que são credores e fazer com que os devedores paguem A ideia de solidariedade assim substitui a ideia muito mais vaga na opinião de Léon Bourgeois da fraternidade e confere ao Estado um verdadeiro dever de as sistência e de intervenção Nos termos do quase contrato social a autoridade é uma gestão de negócios que deve impor à propriedade encargos funcionais desenvolver a solidariedade progressiva e generalizar a previdência Diante da questão social esse solidarismo em sua pretensão de renovar os funda mentos do radicalismo acantonase num reformismo prudente tentando ao mesmo tempo promover uma ideia mais concreta dos direitos do homem Em seu livro A democracia diante da ciência 1925 Célestin Bouglé tenta ampliar as bases filosóficas do solidarismo demonstrando que no quadro da República a democracia será aplicada à sociedade o resultado do de senvolvimento da racionalidade cartesiana e dos progressos científicos que farão com que recuem definitivamente o elitismo o autoritarismo o racismo permitindo finalmente a afirmação concreta dos direitos do homem INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bourgeois L La solidarité A Colin 1896 Essai dune philosophie de la solidarité Alcan 1902 O socialismo h umanista Para a socialdemocracia o humanismo é algo óbvio O conjunto de suas declarações humanistas carece de qualquer originalidade teórica em compa ração com as que emanam dos outros sustentáculos do EstadoGerente No máximo ela se contentará com uma atitude de vigilância crítica diante das distorções entre as intenções proclamadas e as práticas manifestas de seus adversários na competição política Todavia é essa reivindicação humanista que a distingue especificamente em primeiro lugar das correntes marxistas leninistas Assim Eduard Bernstein nesse início do século XX abriu o dossiê do revisionismo em nome de um retorno ao humanismo em nome mais O EstadoGerente 159 precisamente de um retorno a Kant contra Hegel para condenar sem ape lação os fundamentos materialistas e dialéticos da teoria de Marx Bernstein expressa por exemplo seu desacordo com a célebre fórmula de Marx Não é a consciência do homem que determina sua existência ao contrário é sua existência social que determina sua consciência Embora o fator determi nante da evolução social resida na produção e na reprodução dos meios de existência objeta Bernstein a consciência do homem fonte de conheci mento e de vontade não pode ser subordinada à matéria O conhecimento permite ao homem mudar o curso das coisas pois a necessidade só é cega na medida em que não é compreendidà É preciso em particular reabilitar contra Marx que a dessacralizou a Moral enquanto potência capaz de ação criadorà Contra Marx Bernstein demonstra que o desprezo pelo ideal a elevação dos fatores materiais ao nível de forças onipotentes no seio da evolução são uma ilusão Fiel continuador do pensamento de Bernstein o socialista belga Henri de Man pretende também demonstrar que a hipótese materialista de Marx é radicalmente superável e superada a luta de classes só tem sentido se trans ferida do plano econômico para o plano ético a não ser que se deixe de lado o objetivo final do projeto socialista Para que a emancipação de uma classe implique realmente a emancipação da humanidade em seu conjunto é pre ciso que ela justifique seus objetivos e seus métodos não em nome do inte resse particular mas através de juízos de valor de validade humana geral Ademais o marxismo enganase quanto a seus inimigos e às causas do mal não são os princípios do humanismo burguês ou do cristianismo que devem ser denunciados mas apenas a insuficiência de sua realização desse modo o movimento socialista é ao mesmo tempo o defensor da democracia da qual a burguesia desertou e o realizador do ideal cristão que foi traído pela Igreja Henri de Man tenta fundar suas exigências revisionistas no que ele mesmo chama de otimismo cultural humanistà a cultura proletária sem se aburguesar deve retomar o impulso dado na época cultural burguesa e estender o domínio do próximo em direções muito diferentes contra as barreiras de raça de nacionalidade de religião de sexo de idade e de classe Mas isso só é possível porque o proletariado não detém o monopólio do ideal socialista que é fundado em convicções morais de ordem universal O so cialismo é uma tendência da vontade no sentido de uma ordem social justa Ele considera suas reivindicações como justas porque julga as instituições e relações sociais segundo um critério moral universalmente válido 160 História das ideias políticas Na França é também em nome de uma reivindicação de humanismo que as duas grandes figuras da socialdemocracia Jean Jaures e Léon Blum pretendem repudiar o marxismo assim como de resto o liberalismo na medida em que esse é assimilado apenas ao capitalismo Embora pretenda se distinguir de Bernstein Jean Jaures tal como o revisionista alemão rejeita o materialismo histórico a doutrina da luta de classes o catastrofismo revolucionário e a tese da pauperização absoluta do proletariado Em sua célebre controvérsia com Lafargue ele invoca Spinoza Kant e Hegel para tentar reconciliar idealismo e materialismo O movimento da história é ao mesmo tempo uma afirmação idealista da cons ciência contra os regimes que rebaixam o homem e uma reação automática das forças humanas contra toda situação social instável e violenta É a huma nidade que através de formas econômicas que repugnam cada vez menos sua ideia realizase a si mesma E existe na história humana não apenas uma evo lução necessária mas uma direção inteligível e um sentido ideal A huma nidade se busca e se afirma ela mesma e qualquer que seja a diversidade dos ambientes das épocas das reivindicações econômicas é um mesmo sopro de lamento e de esperança que sai da boca do escravo do servo e do proletário é esse sopro imortal de humanidade que forma a alma do que chamamos de direito conferência de dezembro de 1894 recolhida em Iesprit du socialisme Paris Gonthier col Médiations 1964 O humanismo de Jaures referese aos direitos do homem e ao indivi dualismo consequente Somente o socialismo dará à declaração dos direitos do homem todo seu sentido e realizará o direito humano o socialismo é o individualismo lógico e completo Desde a primeira parte de sua obra e de sua ação Léon Blum é também independentemente do que por vezes se diz ele o militante de um socia lismo não marxista na perspectiva de uma ética universalista O socialismo nasceu da consciência da igualdade natural ao passo que a socie dade em que vivemos é inteiramente fundada no privilégio Nasceu da compai xão e da cólera suscitadas em todo coração honesto por esses espetáculos into leráveis a miséria o desemprego o frio a fome que ocorrem enquanto a terra como disse um poeta produz pão suficiente para alimentar todos os filhos dos homens enquanto a subsistência e o bemestar de cada homem deveriam ser garantidos por todos os outros O socialismo não é como já se disse tantas vezes o produto da inveja que é o mais baixo dos impulsos humanos mas da justiça e da piedade que são os mais belos O socialismo portanto é uma moral e uma religião tanto quanto uma doutrina É a aplicação exata no presente estado da sociedade desses sentimentos generosos e universais nos quais as morais e as religiões fundaramse sucessivamente Pour être socialisme 1919 citado em Jean Touchard La gauche en France depuis 1900 Le Seuil 1977 Amigo de Péguy e de Charles Andler discípulo de Benoît Malon e de Jaurès Léon Blum pronunciase em favor de um humanismo do coração e da razão cujas exigências são acentuadas à medida que ele desenvolve sua obra nem fatalismo nem determinismo na escolha dessa sociedade nem ressignificação nem cinismo nesse programa de socialismo humanista que deve liberar a pessoa humana de todas as servidões que a oprimem e garantir ao homem à mulher à criança numa sociedade fundada sobre a igualdade e a fraternidade o livre exercício de seus direitos e de suas faculdades naturais INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bernstein E Les présupposés du socialisme 1899 Le Seuil 1974 ed brasileira parcial Socialismo evolucionário Zahar Editores Rio de Janeiro 1964 Blum L A léchelle humaine 1946 Gallimard 1971 prefácio de René Rémond De Man H Zur Psychologie des Sozialismus 1922 trad francesa Audelà du marxisme 1933 Jaurès J Lesprit du socialisme antologia Gonthier col Médiations 1964 História das ideias políticas Hesitações cristãs Para além da proclamação de humanismo o cristianismo se vê posto em face da irritante questão do compromisso político Deve escolher entre os dife rentes regimes da Cidade dos homens Jacques Maritain convoca os fiéis a levarem a ação cristã para a Cidade O cristão não dá sua alma ao mundo Mas deve ir ao mundo deve falar ao mundo deve estar no mundo e no mais profundo do mundo não digo que deva fazer isso apenas com o objetivo de dar testemunho de Deus e da vida eterna mas também para realizar como cristão seu ofício de homem no mundo e para fazer com que a vida temporal do mundo avance para as margens de Deus Humanismo integral 1936 A novidade da ação política católica no século XX reside no fato de que ela supera o estrito conservadorismo antidemocrático dos séculos anterio res Em 1891 o papa Leão XIII encorajou o alinhamento com a Terceira Re pública encíclica Rerum Novarum Depois da Primeira Guerra Mundial uma parte dos católicos passou a aceitar a democracia liberal e o pluralismo O italiano Don Sturzo fundou o Partido Popular ancestral da Democracia Cristã e convocou à defesa de todos os pluralismos Pluralismo horizontal multiplicidade de grupos sociais defesa das células familiares poderes locais etc Pluralismo vertical diversidade das doutrinas políticas multiplicidade dos partidos tolerância etc Para além do princípio da tolerância é possível e desejável definir uma política cristã Os cristãos se dividem sobre esse ponto A organização dos cristãos conforme as normas da política clássica é pre gada à direita por Charpentier de Ribes e os democratas populares à esquerda por Marc Sagnier e depois ao centro por Georges Bidault e o MRP A primazia espirituaf é afirmada por Jacques Maritain que convida a de finir uma política nova onde o espiritual ilumine o temporal exatamente como o impulso democrático é uma manifestação temporal da inspira ção evangélicà A recusa de uma política cristã e a fortiori de um partido confessional é veemente em Emmanuel Mounier que prefere apelar para um novo Re O EstadoGerente 163 nascimento contra o indivíduo abstrato do cartesianismo Mounier pre tende desatrelar completamente o cristianismo da desordem estabelecidà No século XX a evolução da política do Vaticano orientase indubita velmente no sentido de uma acolhida das instituições democráticas Todavia devese matizar o julgamento segundo o qual por exemplo ao dar aos di reitos do homem uma importância primordial João XXIII tinha de ser con duzido pela lógica de seu pensamento a considerar favoravelmente as insti tuições do constitucionalismo democrático 1 Na realidade a Igreja Católica não se pronunciou claramente em favor do pluralismo eleitoral e continua por evidentes razões de clientelismo político a manter reservas importan tes Assim a encíclica Pacem in terris contém essa evidente ambiguidade A ideia de que os cidadãos podem tomar parte ativa na vida pública é um di reito inerente à dignidade das pessoas embora as modalidades dessa partici pação sejam subordinadas ao grau de maturidade alcançado pela comunidade política da qual são membros e na qual atuam João XXIll Pacem in terris Centurion 1963 O democratismo poliárquico No século XX o liberalismo não inventa nada e inova pouco tudo foi dito nos últimos séculos Uma dupla tradição herdada de John Cocke por um lado e de Hegel por outro permite ilustrar e enriquecer dois princípios combinados que podem ser superpostos e não são contraditórios o governo da sociedade é necessário o governo é necessariamente separado da sociedade O Poder é um lugar que deve ser ocupado A ocupação é legal e legítima quando é resultado de uma competição livre entre forças reconhecidas como plurais surgidas da sociedade e que o Poder representa mas não encarna Essa ideia não é nova ou seja ela está contida desde suas origens na reivin dicação democrática e referese ao mesmo tempo às fontes e aos limites do poder de Estado A necessária separação entre governo e sociedade implica a regra do pluralismo eleitoral diferente e constantemente evocada em todas as literaturas políticas do EstadoGerente 1 M Prélot e F GallouédecGénuys Le libéralisme catholique Paris Armand Colin 1969 p416 A luta política é não somente explícita mas institucionalizada Aceitando como fundamento do poder a coletividade em sua diversidade esse regime põe freios à autoridade governamental O poder deve ser encarado no sentido de que nenhuma equipe dirigente está instalada para sempre que nenhum programa pode ser considerado definitivo que toda política só é oficial provisoriamente Essa abertura ou melhor essa disponibilidade do poder é comandada por uma filosofia pluralista que faz da oposição uma força tão legítima quanto os governantes do momento Não somente todas as tendências e todos os interesses podem se expressar mas todos têm a esperança de acessar ao governo e de utilizar suas prerrogativas segundo seus pontos de vista Georges Burdeau Démocratie Encyclopaedia Universalis Surgida das tradições liberais a regra do pluralismo eleitoral que afasta a encarnação em favor da representação põe fundamentalmente em xeque o projeto totalitário Assim entre as doutrinas políticas é importante reconhecer as que teorizam como projeto de fundo e não como pura tática a designação dos governantes a partir da sanção do pluralismo eleitoral Com efeito por mais manipulado que seja em alguns casos por mais aproximativo que seja sempre em suas aplicações o ato do sufrágio possui antes de mais nada uma eficácia simbólica a questão da democracia pode então ser enunciada como a de uma sociedade que acolhe o conflito de classe a fragmentação das experiências do mundo a heterogeneidade das culturas e dos costumes a coexistência de normas e de valores irredutíveis Claude Lefort Eficácia simbólica que não ratifica em nenhum caso a tese do consenso pacífico e generalizado as intenções pluralistas do EstadoGerente sabem combinar o projeto democrático com um certo projeto de dominação Ao mesmo tempo em que acolhe o conflito combinase desde sua origem com uma organização quase militar do proletariado no quadro da indústria ao mesmo tempo em que acolhe a heterogeneidade cultural a variedade das crenças e dos costumes combinase ainda com o colonialismo e o racismo ao mesmo tempo em que permite a manifestação de uma fragmentação das experiências do mundo combinase ainda com um discurso ideológico que tende a erigir como modelo a figura burguesa do verdadeiro do belo do bem do real Claude Lefort O EstadoGerente 165 Pois tudo se passa como se se tratasse de apagar a significação real dessa confissão de diversidade que constitui simbolicamente a liberdade de elei ção Com os progressos do sufrágio universal a dominação menos do que nunca poderá aparecer como tal A partir de então multiplicamse as jus tificações doutrinárias fundadas no consenso ou no princípio majoritário destinadas em nome frequentemente de uma maior fidelidade da Repre sentação a mascarar o fato de que esse pluralismo leva a um elitismo polí tico e social porque o sufrágio universal não exclui nem a formação de uma classe política nem a prática do voto censitário oculto conforme a expressão de Daniel Gaxie Le Seuil 1978 No século XX a gerência assume o fato oligárquico mas disserta so bre a qualidade das elites das quais ao mesmo tempo critica a insuficiente representatividade e a falta de eficiência Pois o EstadoGerente sofre de uma constante crise de sua representação cf por exemplo Joseph Barthélemy La crise de la démocratie représentative Revue de droit public 1928 mas essa crise que sob diferentes formas lhe é inerente certamente a ameaça me nos do que as diversas tentativas doutrinárias que pretendem resolvêla e se inscrevem no coração de uma longa reforma do Estado O sufrágio univer sal é acusado de levar a uma poliarquia eletivà Giovanni Sartori agravada pelo regime partidário Decerto o pluripartidarismo aparece como a verdadeira garantia do pluralismo político Enquanto os partidos aparecerem com representativos do maior número de ci dadãos ou seja enquanto eles oferecerem por sua diversidade uma expressão satisfatoriamente fiel das diversas opiniões entre as quais hesitam os indivíduos e os grupos a liberdade definida como escolha dos governantes continua a existir ainda que não seguramente de modo total mas ela já o foi alguma vez em certo sentido ela é maior hoje do que ontem na medida em que o sufrá gio universal e a necessidade de convencer as multidões não enquadradas pelos notáveis atenua o caráter oligárquico dos regimes representativos Raymond Aron Essai sur les libertés Mas ligado ao pluralismo o sistema partidário é constantemente acu sado de falsear o jogo democrático agravando a passividade das massas e manipulando as verdadeiras opções políticas Basta pensar na crítica exem plar de Michels ou de Ostrogorski da militância à profissionalização política a atividade partidária secreta uma elite rapidamente inamovível desencora jando qualquer participação popular de modo que a estrutura oligárquica 166 História das ideias políticas do edifício esmaga o princípio democrático fundamental Inércia das mas sas e especialização dos chefes reforçamse mutuamente A partir de então e com uma argumentação sólida o discurso crítico so bre as imperfeições do pluralismo e do pluripartidarismo termina inapela velmente por apelar à democracia para jogála contra si mesma ao povo real contra o povo legal e partidário aos grupos reais orgânicos contra os grupos artificiais Sob o pretexto de clarificar as escolhas ou de corrigir as imperfei ções da representação jogase o consenso contra a divisão o controle contra a decisão o plebiscito contra a eleição o Executivo contra o Parlamento não repugna ao discurso liberal a emergência do EstadoCientista Ele chega até a apelar para ele em nome mesmo da democracia subrepticiamente a eficiên cia governamental tornase o corretivo de todas as crises de representação O socialismo pluralista Sustentáculo do EstadoGerente a socialdemocracia faz da defesa do plu ralismo eleitoral uma linha de ruptura tanto com o fascismo quanto com o bolchevismo mesmo quando ela pretende representar apenas uma parte operária da população eleitoral A originalidade da socialdemocracia em relação ao leninismo reside no fato de que ela considera que a democracia após a conquista do poder pela via eleito ral deve continuar a funcionar para todos os membros da sociedade De mocracia significa portanto para os partidos socialdemocratas democracia para todos tanto burgueses como trabalhadores Por conseguinte a social democracia aceita a divisão social em toda a sua profundidade A socialde mocracia se caracteriza de fato pelo compromisso com o poder econômico e pela competição pacífica ou seja a democracia pelo poder político O com promisso garante a competição no sentido de que a preserva A opção pela de mocracia é bem mais do que uma estratégia de acesso ao poder é um projeto político de fundo sobre a própria natureza da sociedade a construir A so cialdemocracia reconhece a existência do conflito de classe sua força chega mesmo a resultar do fato de ser partido da classe operária e isso a distingue dos partidos políticos de direita que se apoiam também no reconhecimento do pluralismo O caráter específico da socialdemocracia reside no fato de que funda seu projeto na existência do conflito de classe entre os trabalhadores e a burguesia Isso a distingue dos partidos de direita e a aproxima dos partidos comunistas Mas ela não pretende resolver esse conflito pela eliminação do ad O EstadoGerente versário e nisso ela aceita como a direita liberal o pluralismo da sociedade Alain Bergounioux Bernard Manin La socialdémocratie ou le compromis Pa ris PUF 1979 p199 e ss Essa observação vale para o conjunto das correntes socialdemocratas no século XX quaisquer que sejam suas divergências doutrinárias ou suas hesitações eventuais Citaremos como exemplo o socialismo fabiano depois trabalhista que rapidamente assimilou esse princípio mas podemos citar também o so cialismo escandinavo para o qual o referido princípio é óbvio embora não seja objeto de grandes desenvolvimentos teóricos Vamos tomar o poder e falar menos sobre ele a partir do momento em que se está de acordo sobre o princípio da democracia capitalista De resto e principalmente nos países onde existe uma forte organização leninista o debate doutrinário suscita maiores discussões e é marcado por mais ambiguidades Pelo menos podese constatar que para além das hesi tações de linhà e dos compromissos estratégicos próprios das organizações as vozes que sustentam a concepção socialdemocrata não hesitam em recor dar a necessidade do pluralismo eleitoral e o respeito a suas consequências em matéria de liberdades políticas É o caso de Bernstein certamente A crítica humanista do marxismo prolongase em crítica política Bernstein recusa assimilar a democracia à dominação da classe burguesa A democracia é a ausência da dominação de classe ou seja um estado social onde nenhuma classe desfrutará de um privilégio qualquer em face da comunidade a democracia portanto é a supressão da dominação de classe embora não seja a supressão efetiva das próprias classes Longe de se reduzir a uma simples liberdade para os proprietários de escravos a democracia é uma conquista moderna preciosa para todos que o proletariado deve desenvolver e não destruir A democracia é simultaneamente o meio e o fim Ela é o meio para estabelecer o socialismo e ao mesmo tempo é a forma de sua realização Karl Kautsky a partir do momento em que se tornou renegado foi ainda mais longe ao afirmar para além das considerações de aritmética eleitoral a consubstancialidade da democracia e do socialismo É em termos extrema mente claros que ele toma posição contra os métodos bolcheviques quando da Revolução de 1917 fazendo da democracia a linha de demarcação 168 História das ideias políticas A oposição entre as duas correntes não se funda em mesquinhas rivalidades pessoais mas repousa na oposição de dois métodos radicalmente diferentes o método democrático e o método ditatorial As duas correntes querem a mesma coisa a emancipação do proletariado e com ela a da humanidade através do socialismo Mas o caminho escolhido por uns é considerado pelos outros como falso e capaz apenas de levar à ruína Karl Kautsky La dictature du prolétariat 1918 Paris Bourgeois col 1018 1972 Do mesmo modo na França para além das oscilações das organizações e qualquer que seja a influência persistente de correntes hostis à democracia parlamentar cf as divisões sobre o caso Millerand Jean Jaures e Léon Blum por exemplo não deixaram nunca de lutar contra a tentação perni ciosa de renegar as conquistas democráticas Assim Jean Jaures inquieta se com o jogo duplo dos que não aceitam o pluralismo eleitoral a não ser como compromisso tático e mandam delegados ao Parlamento mas decla rando previamente que não terão nele mais do que um papel ridículo de impotência e corrupção Para Jaures a defesa de Dreyfus não pode dei xar o proletariado indiferente do mesmo modo como a democracia não pode ser abandonada à burguesia a democracia não é burguesa e a defesa das liberdades políticas na República é a filha da classe operária O que seria das liberdades políticas nesse país se há 120 anos a classe operária não tivesse consagrado a todos os movimentos de emancipação sua valentia sua força seu desinteresse É o eco desses princípios que podemos encontrar na obra de Léon Blum ainda que a distinção entre conquista exercício e ocu pação do poder tenha por vezes dado lugar a algumas ambiguidades Com efeito desde 1920 Léon Blum denunciou o bolchevismo como blanquismo e reafirmou até o fim da vida seu apego aos princípios essenciais da demo cracià Não pode estar em jogo qualquer atentado ao princípio eletivo nem à lei do sufrágio universal que é o próprio símbolo da democracià Léon Blum A léchelle humaine 1946 Todavia apesar desse seu apego ao pluralismo apesar de suas reiteradas críticas aos regimes fascistas ou bolcheviques a socialdemocracia dá fre quentemente provas de cegueira teórica Isso resulta do fato de que ela foi conquistada para a ideia de uma boa estatização de que ela ignora que tra balha sob a aparência de nobres motivos em favor de uma separação cada vez maior entre o poder administrativo regulamentador policial por um lado e por outro a sociedade sobre a qual atua Claude Lefort Jinvention démocratique opcit Seu mais nobre motivo o reformismo O EstadoGerente INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Aron R Essai sur les libertés CalmannLévy ed revista 1976 Burdeau G La démocratie Bruxelas 1956 Le Seuil col Points 1978 Sartori G 1héorie de la démocratie A Colin 1973 0 REFORMISMO Quando o EstadoGerente age o reformismo tornase a legitimação prin cipal de sua ação É preciso articular aqui duas observações distintas mas convergentes por um lado o reformismo não é suplementar mas sim com plementar ao pluralismo por outro esse complemento tem uma dimensão histórica e é bem enunciado numa convergência progressiva dos discursos liberais e socialistas sobre a necessidade da intervenção estatal na sociedade civil ou na sociedade pura e simplesmente A primeira observação vai de encontro a certas análises clássicas se gundo as quais o liberalismo originário dito puro ou verdadeiro ex cluiria toda intervenção do Estado exclusão de onde se deduz sua especifi cidade essencial Em seu comentário da obra de Benjamin Constant Marcel Gauchet demonstra com rara finura que a dinâmica da liberalização é si multânea e indissociavelmente a dinâmica do fortalecimento do Estado ad ministrativo que a emancipação liberal da sociedade civil foi e continua a ser o próprio vetor da estatização no seio de nosso mundo Desse modo somente por cair numa ilusão originária é que Benjamin Constant por exemplo podia imaginar que a autonomização da sociedade civil podia conter para sempre a intervenção estatal Ele não previa que a posição de exterioridade do Estado ao mesmo tempo em que preservava a liberdade na sociedade podia legitimar sua ação sobre a sociedade Tanto mais que para o EstadoGerente não se trata de opor mas de combinar os valores da Ordem e do Progresso que não se trata somente de manter mas de fazer surgir Desse modo não é por causa do abandono progressivo de sua posição de exterioridade que o Estado conquista sua capacidade de ação é precisamente essa posição que contém o princípio dela a instância política conquistoua ganhando precisamente uma posição de exterioridade gestionária Inci tar em vez de proibir doravante passou a ser esse o horizonte Contido nas premissas o reformismo se impõe progressivamente à medida que se processa a ampliação das conquistas democráticas Desse modo no século XX combinado com a democracia política que no mesmo processo o limita e o amplia o reformismo tornase a base dos projetos comuns que asseguram a convergência do liberalismo e do socialismo no sentido da gerência Convergência que evidentemente não exclui diferenças muito importantes nos projetos e sobretudo convergência que não exclui a luta política muito pelo contrário Por isso convém examinar de mais perto aspectos dessa convergência tal como resulta dos efeitos dessa referência comum ao reformismo O EstadoGerente melhorar enormemente o destino da classe operárià sem cometer o pecado de intervencionismo Ele o fará em todo rigor do seu direito e sem ter de temer ser admoestado por ingerência pois precisamente em virtude de seu ofício o Estado deve servir ao interesse comum A Igreja busca no arsenal de sua própria temática os argumentos mais bem apropriados para lutar ao mesmo tempo contra o egoísmo do econo micismo liberal e contra a ameaça socialista Em 1931 na encíclica Quadrage simo Anno o papa Pio IX lembra que os esforços de Leão XIII tinham como objetivo ultrapassar com audácia as barreiras nas quais o liberalismo con tivera a intervenção dos poderes públicos quando já estavam abalados os falsos dogmas do liberalismo que há muito paralisavam toda ação eficaz dos poderes públicos A Igreja oficial se desforrava da ideologia dos direitos na turais a propriedade privada não é intocável e dado que não há ordem sem autoridade a do Estado pode remediar eficazmente as desordens sociais De certo a Igreja evita uma condenação radical do capitalismo condenação da qual ela não queria nem podia assumir as consequências políticas Tratase apenas de pregar um reformismo prudente Quando ela concilia o direito de propriedade com as exigências do interesse geral a autoridade pública longe de se mostrar inimiga dos que possuem prestalhes um benéfico ser viço impedindo a propriedade privada de provocar males intoleráveis e de preparar seu próprio desaparecimento é preciso portanto que a livre con corrência contida em limites razoáveis e justos e mais ainda o poder eco nômico sejam efetivamente submetidos à autoridade pública Na primeira parte do século XX a Igreja apela ao Estado para reformar o social Apelo muito moderado sem nenhuma dúvida em face dos valores dominantes já que não se trata de uma arbitragem Georges Burdeau observa justamente Admitindo a propriedade privada o salariato a concorrência motivada pela busca do lucro o cristianismo social conta sobretudo com uma restauração dos valores cristãos para humanizar as relações sociais As sim a arbitragem do Estado aparece como uma forma derivada de proteção a assistência oficializa a caridade modela o seu espírito Georges Burdeau Le libéralisme opcit No conjunto todavia um certo tom é dado uma condenação é feita o liberalismo econômico não é considerado capaz de barrar o caminho ao marxismo Mas a exegese das teses papais leva a diferentes políticas cris tãs algumas correntes em nome de um corporativismo autoritário dos mais elementares colaboram abertamente com governos militares e fascistas outras em nome de uma espécie de socialismo comunitário aliamse em certos contextos históricos ou geográficos determinados a forças políticas 172 História das ideias políticas até mesmo marxistas contanto que se digam de libertação Mas no con junto essas teses papais permitem sobretudo aos partidos democratacris tãos para além de alguns sobressaltos contribuir para a sustentação do EstadoGerente e de seus equilíbrios Com efeito seria um erro ver no reformismo pontifício apenas a marca de uma hostilidade arcaica aos capitalismos enquanto a república laica leva ria ao reformismo progressista Assim na França o movimento solidarista prega firmemente a revisão do liberalismo econômico é preciso ampliar a fraternidade até tornála solidariedade Ainda que os radicais pela voz de Alain por exemplo continuem a manifestar sua desconfiança em relação ao Estado todos apelam agora a esse mesmo Estado para que faça reinar maior justiça social através de uma melhor distribuição dos bens para que proteja o cidadão contra o risco social através da generalização dos sistemas de previdência Uma banalidade aceita a guerra de massa do século XX acompanhada por seus efeitos econômicos e sociais transforma irremediavelmente as úl timas ilusões do liberalismo Quaisquer que sejam as divergências nas pro postas há um apelo generalizado ao Estado Com Keynes em particular o EstadoGerente com a GrãBretanha à frente descobre o grande medo de males sociais como o desemprego contra os quais os automatismos da li berdade nada podem A partir de então os três grandes princípios do pensa mento econômico clássico o estalãoouro o equilíbrio orçamentário e o li vrecambismo parecem postos em questão Em nome mesmo da liberdade a autoridade central deve ser restaurada por meio da economia dirigida Keynes propõese descobrir o que num sistema econômico dado deter mina a todo momento a renda nacional e o que é quase o mesmo o volume do emprego É certamente o fim do liberalismo John Maynard Keynes 1he end oflaisserfaire Londres 1926 que se manifesta nessa busca de uma nova avaliação das relações entre autoridade e liberdade Quanto à nossa tarefa final ela poderia consistir em escolher no tipo de sistema em que real mente vivemos as variáveis cujo controle ou manobra podem ser assegura dos conscientemente pela autoridade central Nos Estados Unidos a gerência teoriza um pouco mais em nome do pragmatismo a reforma se estende lentamente do sistema educacional para o sistema econômico ao mesmo tempo em que diante da crise desenvol vemse as críticas ao capitalismo tradicional Franklin Roosevelt 18821945 defende a propriedade privada e a livreempresa mas declara firmemente que somente a intervenção do Estado pode corrigir as leis naturais no sen tido do BemEstar geral Com a experiência da Tennessee Valley Authority O EstadoGerente 173 o reformismo encontra seu presidente Na Europa por outro lado a referên cia a essa experiência norteamericana libera a ideia de plano até mesmo de planejamento pelo menos indicativo Confirmado em sua necessidade pela Segunda Guerra Mundial o intervencionismo introduz no EstadoGerente os germes do EstadoCientista cf cap IX Mais do que qualquer outra por sua amplitude teórica inigualável nessa época de grandes silêncios a obra de Bertrand de Jouvenel é exemplar Ela dá as chaves das autotransformações progressivas do liberalismo tornando legíveis os efeitos de uma inquietação dominando pouco a pouco suas con tradições nostálgicas maldita em si mesma a concentração do poder polí tico encontra sua justificação na necessidade de enérgicas previsões econô micas e de medidas sociais adequadas Ao longo dessa obra a crítica mais lúcida dos malefícios do poder Du pouvoir Histoire naturelle de sa crois sance 1945 reed Hachette 1972 o diagnóstico de seu crescimento natural agravado pelas doutrinas individualistas De la souveraineté A la recherche du bien politique Paris Médicis 1955 a análise realista da concentração do executivo em detrimento da representação parlamentar Du Principat Paris Hachette 1972 o apelo ao desenvolvimento de contrapoderes destinados a multiplicar os focos de autoridade no seio da sociedade esses tópicos or ganizam um sistema teórico a partir do qual se efetuam opções doutrinárias cuja coerência final para além de suas diversidades pode ser apreciada cf Evelyne Pisier Autorité et liberté dans les écrits poli tiques de Bertrand de Jouvenel Paris PUF 1967 Partidário entusiasta do New Deal impressio nado por Keynes adepto dessa arte de governar que é o planejamento pre gando a economia dirigida cf Léconomie dirigée Paris Valois 1928 Ber trand de Jouvenel cedeu por algum tempo à tentação fascista e isso porque o capitalismo só pode ser destruído por uma ditadurà e o papel histórico do fascismo é pôr fim à decomposição social do Ocidente Embora dure pouco em Bertrand de Jouvenel essa tentação merece ser sublinhada pois é típica desses desvios comuns a várias correntes neoliberais desvios que podem ser justificados por uma certa vontade de reforma cf por exemplo seus artigos publicados em La lutte des jeunes ou em Iémancipation nationale Depois da Segunda Guerra Mundial a reação de Bertrand de Jouvenel permite ilustrar ainda essas derrapadas dos conservadores desesperados com o crescimento estatal Todavia Bertrand de Jouvenel continuou convencido da necessidade de uma boa intervenção estatal contanto que fosse praticada por elites competentes e sábias Já que não existe na natureza do Estado ne nhuma fatalidade que o torne um incapaz no domínio econômico e que portanto ele pode gerir a produção melhor do que o concurso das iniciati 174 História das ideias políticas vas privadas já que o alto funcionário é o senhor de hoje que destronou as antigas elites que se tornaram desfuncionais já que é um erro associar os termos cesarismo e burocraciâ pois a burocracia pode ser mais um corretivo do cesarismo do que um seu dócil instrumento já que a ciência econômica deve superar o horizonte do mercado e se orientar para uma ver dadeira estratégia prospectiva da economia social por tudo isso o Estado pode ser esse gerente cientista capaz de reformar a sociedade INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS De Jouvenel B Du pouvoir Histoire naturelle de sa croissance 1945 reed Hachette 1972 Encycliques et Messages sociaux textos coletados por H Guitton Dalloz 1948 Keynes JM The end of laisserfaire Londres 1926 Teoria geral do emprego do juro e da moeda 1936 Rumo ao controle social Desde o fim da Primeira Guerra Mundial uma questão se resolve no seio do EstadoGerente a questão do reformismo Tudo se passa como se se as sistisse à progressiva e profunda vitória da socialdemocracia quaisquer que sejam as conjunturas eleitorais Por um lado a economia se socializou a um grau que não poderia sequer ser imaginado há cinquenta anos Além de se tores inteiros da produção cuja propriedade se tornou pública as transferên cias sociais operam uma redistribuição permanente das rendas e dos capitais Louis Salleron Libéralisme et socialisme Por outro lado a consagração dos direitos sociais de todo tipo bem como a generalização da previdência con firma o avanço das concepções socialdemocratas Esse julgamento implica diversas controvérsias Periodicamente escuta mos a voz dos que alarmados ou satisfeitos diagnosticam uma real crise da socialdemocracia Mas esse diagnóstico ainda que tivesse algum funda mento não invalidaria a tese de conjunto ao contrário Com efeito é claro que em diversos períodos no curso desse século a socialdemocracia pareceu se comportar mal incapacidades crônicas da so cialdemocracia alemã do Labour ou dos socialistas franceses diante de um certo número de crises internacionais e internas A análise é bastante conhe cida para que tenhamos de insistir aqui nessa questão O EstadoGerente 175 Todavia essas crises testemunham em última instância um processo de adaptação a estruturas capitalistas que elas mesmas contribuíram para transformar através da superação progressiva da mística revolucionária mar xista e com a ajuda desse projeto de reformas de estrutura cuja coerência só lentamente se desenha Decerto ambiguidades e ambivalências se multipli cam aceitando a regra do pluralismo o socialismo democrático teve dificul dades eleitorais para concretizar sua ruptura com o marxismo pregando sistematicamente o projeto de uma transformação progressiva da sociedade com a ajuda de um conjunto de reformas de estrutura teve dificuldades para adquirir e conservar uma especificidade própria Desde os anos 1930 um certo número de portavozes da socialdemo cracia passou a preconizar um reformismo nitidamente diferente dos pro jetos marxistasleninistas um reformismo segundo o qual o planejamento não tem como objetivo a apropriação coletiva É por exemplo a posição de Henri de Man Outros adotam posições mais ambíguas Assim em Audelà du réformisme Léon Blum erguese contra o planismo preconizado por De Man e acredita poder propor um reformismo revolucionário reformas não reformistas expressando assim as dificuldades próprias à socialdemocracia francesa dominada pela herança do guesdismo e pela referência ambígua à ideia de revolução Ainda em 1951 na declaração de Frankfurt a Interna cional Socialista se contenta com uma síntese ambígua que permite às dife rentes correntes socialdemocratas opções diversas entre diferentes formas de propriedade coletiva contanto que subsista um amplo setor privado cf sobre tais pontos a obra de Alain Bergounioux e Bernard Manin opcit Mas em seguida a maioria dos partidos socialdemocratas pronun ciouse mais claramente contra a socialização da produção em favor da aceitação dos mecanismos de um capitalismo organizado e dirigido tese que foi consagrada no Programa de Bad Godesberg 1959 Finalmente qualquer que seja a diversidade da situação em cada país podese afirmar Assim como a Primeira Guerra Mundial tornara inevitável a intervenção do Estado a Segunda realizou determinados princípios da economia mista e durante certo tempo deu uma orientação socializante às economias oci dentais mediante formas de planificação controles estatais e acordos entre empresas De modo mais duradouro durante a guerra as democracias oci dentais aceitaram as principais reivindicações do movimento socialdemo crata dos anos 1920 A exigência de segurança social e de proteção era agora admitida os socialdemocratas fizeram dela um objetivo próprio mas o mesmo não estava ausente das políticas conservadoras Bergounioux e Manin Em outras palavras a ideia de uma vitória das concepções socialis História das ideias políticas tas sobre as concepções liberais tem certamente um sentido mas na condi ção de vinculála à ideia de um compromisso progressivo que acompanha a evolução das estruturas do capitalismo É preciso lembrar ainda que uma tal vitória só foi obtida com o surgimento e fortalecimento desse novo parceiro social essencial o sindicalismo Em sua origem o sindicalismo não poderia ser confundido com o ad vento da socialdemocracia pelo menos não em todos os casos Ao contrário ele ganha forma doutrinária e organizativa no seio de um entrecruzamento de concepções filosóficas políticas e sociológicas que mantêm uma espécie de confusão natural entre a questão social e a questão operária Desde o final do século XIX a autocrítica do liberalismo pôs radicalmente em questão os dogmas sagrados do individualismo e do subjetivismo tomada de consciên cia que provoca e acelera por toda parte lutas operárias cada vez mais deter minadas Como Tocqueville previra a questão da igualdade subverte defini tivamente os dados da liberdade Em sua origem e durante algumas décadas a concepção sindical da política oscilou entre diversas tendências e em certos países em particular na França na Itália ou na Espanha sofreu a influência do anarquismo Filósofos como Antonio Labriola 18431904 ou Georges Sorel 18471922 tentaram criar uma teoria da autonomia sindical em relação à política clássica marcandoa com perspectivas radicalmente antiestatistas Sobretudo na França como observa Jean Touchard a referência Sorel acompanha e prolonga a referência Prou dhon Os sindicalistas devem ser capazes através do mito da greve geral e da ginástica da ação direta de constituir uma elite revolucionária posta na van guarda das massas operárias suscetível de derrubar o chamado Estado demo crático e parlamentar A ação sindical portanto deve ser autônoma Numerosas correntes numerosos líderes continuam influenciados por essa mitologia teórica e prática O Estado tem como razão de ser tão somente a salvaguarda de interesses po líticos supérfluos e prejudiciais E o sindicalismo não visa a uma simples modificação do pessoal governante mas sim à redução do Estado a zero trans ferindo para os organismos sindicais as poucas funções úteis que criam a ilusão sobre seu valor e suprimindo pura e simplesmente as demais Pelloutier A famosa Carta de Amiens 1906 à qual aderiu a maior parte do mo vimento sindical francês traz a marca dessas concepções verdadeira decla ração de desconfiança em face do Estado do tradeunionismo dos partidos políticos ela pretende consagrar os princípios da autonomia sindical diante do patronato assim como agrupar independentemente de qualquer escola política todos os trabalhadores conscientes da luta a ser travada em prol do desaparecimento do salariato Pronunciase em favor da ação direta e da greve geral contra a colaboração de classe e o eleitoralismo político em suma contra o reformismo estatal e a gerência Mas apesar da marca profunda das concepções libertárias o sindicalismo sofreu também a influência do marxismo assim na França depois da guerra de 1914 e sobretudo depois da cisão de 1921 os comunistas tiveram êxito onde os guedistas tinham fracassado uma parte do sindicalismo operário tornouse correia de transmissão do Partido Comunista e suas teses não mais apresentam originalidade em relação às concepções leninistas do Estado de classe Todavia para além dessas influências ambivalentes e contraditórias o fato sindical no século XX tem um outro alcance defendendo os temas da democracia industrial e social em estreita associação com as forças políticas influenciado pelo empirismo tradeunionista o sindicalismo ocidental em seu conjunto apela para a arbitragem do Estado nos conflitos com o patronato por intermédio de convenções coletivas suscetíveis de assegurar seu reconhecimento como novo parceiro social e de entender as medidas de reforma econômica e social Em alguns lugares as práticas de participação ou de cogestão associam os sindicatos à gerência e transformam no sentido de uma proteção social cujo reverso obrigatório é a extensão do controle social O sindicalismo que sonhara integrar o Estado a si integrase agora nele sob o duplo signo da unidade e da obrigação Parceiro do Estado o sindicalismo não escapa da burocratização seus portavozes estão em posição de compromisso A emergência e a potência do sindicalismo tornamse componentes essenciais do EstadoGerente Expressão suplementar e ambígua da divisão social o fato sindical marca a derrota das soluções corporativistas que teorizavam seu desaparecimento mas são ao mesmo tempo uma vitória certamente diferente mas parcialmente semelhante em seus objetivos do corporativismo História das ideias políticas tinadas objetivamente a reforçar o Estado e a lutar sutilmente contra a influên cia do sindicalismo operário Foi o caso do corporativismo maurrassiano até sua versão Vichy ou mais simplesmente de todos os corporativismos fas cistas versões Salazar Franco ou Mussolini Mas ocorre o mesmo na linha da maior inclinação no caso das concepções desses juristaspoliticistas ainda que sinceramente animados por um desejo descentralizador convencidos de que o individualismo liberal arruína as possibilidades da democracia consti tucional e de que a representação parlamentar deve ceder lugar à representa ção profissional cf por exemplo as ambiguidades das opções de Léon Du guit Acompanhando um desejo de reforma do capitalismo com o objetivo de disciplinar a concorrência e reorganizar a economia o corporativismo deixa ouvir uma voz social que se trata de controlar o melhor possível Parado xalmente no seio do EstadoGerente ele só tem êxito onde fracassa ou seja com a vitória do sindicalismo da qual se pode dizer que foi sem dúvida o grande fato da história do pensamento político francês no século XX Jacques Droz E decerto do conjunto dos EstadosGerentes Ligada ao crescimento dos partidos socialdemocratas a integração progressiva do fato sindical deu lugar a uma forma políticâ nova na qual certos autores veem o advento de uma espécie de neocorporativismo tradu ção institucional do compromisso triangular permanente entre o Estado o patronato e os sindicatos Uma tal evolução permite à palavra de ordem da reforma social conti nuar na ordem do dia a divisão social não é cancelada Mas a cada etapa do compromisso político ou econômico o acordo traduz uma maior interven ção do Estado Assim concebida e praticada a gerência anuncia o fim das ideologias INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bergounioux A e Bernard Manin La socialdémocratie ou le compromis PUF 1979 BuciGlucksmann C e Gõran Therborn Le défi socialdémocrate Maspero 1981 Sorel G Réflexions sur la violence 1908 Riviere 1946 Matériaux dune théorie du prolé tariat 1919 Riviere 1921 Sobre o fim das ideologias A tese se apoia em algumas evidências às quais se concede em geral um esta tuto sociológico O EstadoGerente 179 evolução do capitalismo ocidental no sentido da socialização relativa integração das classes operárias por intermédio das forças políticas e sindicais gestionárias importância dos fatores tecnológicos que determinam objetivamente as decisões políticas e paralelamente a ascensão das elites técnicas A socialdemocratização progressiva das sociedades industriais é de tal ordem que o conflito não tem mais razão de ser Essa é por exemplo a tese defendida na França por Raymond Aron acompanhando diferentes traba lhos americanos no mesmo sentido Um certo número de valores ou de mecanismos considerados como socialistas foram efetivamente realizados ou utilizados nas sociedades europeias Os me canismos de funcionamento o controle parcial do comércio exterior a sociali zação da poupança a ação do Estado sobre o volume de investimentos são fe nômenos que a linguagem comum chama de socialistas Ademais alguns dos chamados valores socialistas realizaramse nas sociedades ocidentais a de sigualdade das rendas foi atenuada os sindicatos operários são relativamente livres as discussões sobre as condições de trabalho entre sindicatos operários e sindicatos patronais tornaramse um costume a tributação progressiva parece ser uma evidência as leis de previdência social são aceitas pelos mais reacioná rios Dixhuit leçons sur la société industrielle Gallimard col Idées 1962 Desse modo o conjunto desses fatores reforça o consenso ou o que dá no mesmo a apatia política e ideológica dos cidadãos As grandes lutas ideo lógicas são reservadas ao Terceiro Mundo Na sociedade industrial do século XX a desvalorização dos conflitos ideológicos do século XIX parece algo definitivo não há nenhum sinal de retorno ou de despertar no horizonte Inaugurada nos anos 1960 essa controvérsia se esgotou por si mesma à força de argumentos válidos e contraditórios mas sempre surgidos de pro jetos ideológicos característicos cf Jean Meynaud Le déclin des idéologies curso na Universidade de Lausanne 196061 Só levaremos em conta aqui nas concepções políticas atuais os sintomas de nova desconfiança em face do Estado surgiu um novo liberalismo que pretende reabilitar o laisser faire E também um novo socialismo que pretende reabilitar a causa da autogestão Em torno da Escola de Chicago que se inspira nos trabalhos de Hayek cf em particular O caminho da servidão 1945 a palavra de ordem é a do retorno às leis do mercado a fim de combater o mal essencial ou seja o Es 180 História das ideias políticas tado Assim Milton Friedmann retomando de Hayek a ideia de que as crises econômicas do século XX não resultaram do excesso de capitalismo mas do excesso de intervencionismo contesta vigorosamente os pretensos benefí cios do EstadoPrevidência moderno O inimigo é Keynes A planificação inclusive a indicativa abre o caminho para a servidão A intervenção dos poderes públicos não é de modo algum necessária para o desenvolvimento tecnológico Quanto à legislação social mais do que diminuir a exploração reforça o Estado e ao contrário a melhor garantia contra todas as explora ções é o mercado As melhores estruturas sociais se fundam no máximo de estruturas de troca A lógica do mercado portadora em si mesma de pro gresso tecnológico pode na condição de que todos os seus mecanismos se jam respeitados levar a uma redução exemplar do mal ou seja do domínio de intervenção do Estado sobre todos esses pontos cf Henri Lepage De main le capitalisme 1979 e Demain le libéralisme 1980 É muito cedo para afirmar que esse conjunto de proposições tem um alcance mais significativo do que no melhor dos casos um debate sobre o uso obrigatório do cinto de segurança e se é capaz de ressuscitar um liberalismo que se tinha por morto e desonrado cf Georges Burdeau Le libéralisme opcit Parece que também na esquerda se assiste a uma renovação teórica da inquietação em face do Estado A autogestão não é uma invenção recente Tem suas raízes na confluência entre as intenções descentralizadoras do libe ralismo e as doutrinas proudhonianas Desde a origem é marcada por equí vocos No século XX servirá para designar experiências muito diferentes No seio das correntes socialdemocratas corresponde na maioria dos casos a uma vontade de democratização da empresa ou da administração von tade que evidentemente se acomoda com um dirigismo ampliado ao nível do Estado por vezes corresponde ao desejo de evitar o risco de uniformi zação ideológica e portanto de crise de identidade Transparecem então sinais de uma verdadeira inquietação em face do socialismo administrativo e planificador que traz cada vez mais Estado bem como as marcas de uma verdadeira sensibilidade em face das burocracias de todo tipo Sinais não ne gligenciáveis decerto mas que não devem gerar ilusões Sobretudo se engen drarem apenas uma análise tão falsa quanto otimista do Estadocrise ou de uma crise histórica do modelo keynesiano cf Christine BuciGlucksmann e Gõran Therborn opcit mesmo que animada pela melhor das intenções a de liberar o social do EstadoGerente mas o preservando das tentações do EstadoPartido CAPÍTULO VI O Estado Partido No século XX o socialismo muda desdobrase O projeto socialista é dora vante ideologia e instituição Ele se organiza realizase Dois fatores radical mente novos são responsáveis por essa alteração 1 O marxismo qualquer que seja sua variante tornase a ideologia oficial de todos os partidos socialistas europeus Depois da expulsão de Bakunin da Primeira Internacional 1872 da unificação dos socialistas alemães Gotha 1875 e da criação por Guesde e Lafargue do Partido Operário Francês 1879 nasceu o marxismo o marxismo triunfou tornouse o referente doutriná rio supremo em relação ao qual determinamse todos os matizes e todas as rupturas inclusive após 1917 inclusive após a ruptura sinosoviética 2 O marxismo através dos que o reivindicam institucionalizase Po derosas organizações Estados ou partidos se estruturam tornandose do ravante parte integrante da realidade do socialismo Nenhuma definição de socialismo escapa agora a uma referência organizacional Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial todas as nações europeias são representadas nos congressos da Segunda Internacional com dois partidos dominando o con junto a socialdemocracia alemã Kautsky e a Seção Francesa da Interna cional Operária Jaures A partir de 1917 o polo de atração do movimento socialista tornase um Estado a União Soviética Depois da Segunda Guerra Mundial novos Estados vêm reforçálo e constituem o campo socialistà Em 1949 o Estado mais populoso do mundo a China tornase por sua vez socialista Ideologia e instituição o socialismo se enuncia após Marx e lhe pede que responda a questões que ele não se colocou ou que não resolveu Disso resultam quatro ambiguidades do legado marxista 1 O estatuto do texto de Marx e Engels tornase equívoco Ele oferece uma filosofia da história ou uma teoria da revolução 181 182 História das ideias políticas uma concepção do homem onde o Ser é o devir único e necessário de uma humanidade que se encaminha inelutavelmente para a sociedade final mente transparente ou uma análise da contingência das ações e da complexidade dos organis mos sociais uma estratégia da mudança social onde o devir só é necessário retrospectivamente 2 A significação das teses marxistas parece contraditória Tratase de uma leitura da evolução das sociedade como algo determinado pela economia onde a infraestrutura é a causa da superestrutura e determina suas rupturas ou do recurso à luta de classes como simples chave de inteligibilidade da referência às relações de produção para definir as condições históricas da ação política de um necessitarismo onde a causalidade é econômica ou de um voluntarismo onde o eficaz é a política 3 A natureza da força que fará a Revolução é imprecisa É necessário um poder que dirija o movimento decrete expulsões funcione como um tribunal detenha o duplo privilégio de representar a classe operária e de possuir o saber do devir ou um Partido que seja apenas uma liga um organismo sem função diri gente um centro de coordenação das informações e das pesquisas que deixe a cada movimento proletário sua autonomia suas ideias e seus ritmos 4 As modalidades da Revolução não parecem mais claras Leremos Marx que imaginava a Revolução baseado no modelo das insurreições que deram por certo tempo o poder ao povo 1793 1830 1848 1871 ou seja a conquista violenta do poder pelo povo em armas ou o velho Engels que diante dos sucessos eleitorais do socialismo mar xista na Alemanha e do crescimento dos sindicatos julgava ter chegado o momento da ação política legal Essas ambiguidades não são estranhas ao espantoso resultado que co nhecemos a consolidação desse outro Leviatã que é o Estado socialista cada vez mais forte e cada vez mais centralizado que não oferece nenhuma pers pectiva de extinção salvo para quem ainda quer crer na fábula de uma fun ção dialética da defesa e da extinção do Estado O paradoxo convida a estu dar sucessivamente a crítica do Estado burguês e a gênese do Estado socialista para melhor apreender esse monstro que é o EstadoPartido A crítica do Estado burguês Embora não tenham elaborado uma teoria do Estado Marx e Engels empreenderam a crítica mais radical no século XIX de todas as teorias do Estado Todo Estado é o produto da divisão da sociedade em classes antagónicas o Estado burguês não é mais do que o produto do capitalismo e por isso um instrumento de opressão de exploração e de domínio de uma classe burguês sobre outra proletária O socialismo substituirá a dominação do homem sobre o homem pela administração das coisas o que implica a crítica de um Estado que consagra a exploração econômica e a dominação política Um sistema de exploração econômica A burguesia desempenhou um papel revolucionário mas não é mais segundo Marx uma força de progresso Revelase incapaz de controlar o formidável desenvolvimento industrial que suscitou e que vai inequivocamente conduzir à sua própria ruína O operário produz o capital O capital produz o operário A burguesia negando o proletariado nega a si mesma o proletariado não pode se negar a não ser negando a burguesia A burguesia produz seus próprios coveiros Sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis Essa profecia do Manifesto Comunista encontrase confirmada e argumentada nos principais textos de Marx e de Engels Mas a crise geral na qual o capitalismo deve entrar em colapso tardará a se produzir o capitalismo evoluirá e o movimento socialista conhecerá um certo número de ajustes e de debates sobre a natureza da exploração capitalista História das ideias políticas lho A teoria do valor não estabelece norma para a justiça ou a injustiça da divisão do produto do trabalho do mesmo modo como a teoria dos átomos não estabelece nenhum critério para julgar sobre a beleza ou o não valor de uma obra de escultura O valor de um produto depende também de sua utilidade fator subje tivo Segunda crítica a teoria da pauperização é desmentida pelos fatos A formação de sociedades anônimas contrapõese à centralizacão das fortunas que resulta da concentração das empresas Não há maior concentração de capi tal O número de possuidores aumenta A terceira crítica decorre dessa a polarização das classes anunciada por Marx não se realizou As classes médias não se proletarizam e se ampliam O crescimento contínuo da produção colocanos portanto diante da seguinte alternativa ou uma elevação progressiva do bemestar do proletariado ou uma classe média numerosa No conjunto o capitalismo moderno tornouse capaz de evitar a crise Seus elementos novos permitemlhe fazêlo a extensão gigantesca do mer cado mundial a redução do tempo necessário à transmissão de informações a circulação cada vez mais rápida das mercadorias o aumento da riqueza dos países capitalistas europeus a flexibilidade do sistema de crédito e o apa recimento dos cartéis Crises gerais semelhantes às de outrora tornaramse improváveis O caminho da catástrofe econômica está fechado Isso obriga a voltarse para o caminho político Kautsky assumiu a tarefa de refutar as teses de Bernstein Ele o fez atra vés da defesa de um marxismo ultraortodoxo Estranho debate no qual Kautsky critica Bernstein por ter inflado até mesmo inventado as posições de Marx mas em seguida ele retoma por sua conta essas inflações Ele contradiz assim ponto por ponto as revisões de Bernstein O agravamento da exploração É algo incontestável e Marx não falou em pauperização absoluta mas sim relativa A riqueza aumenta mas a parte do proletariado em sua divisão não aumenta A concentração capitalista negada por Bernstein É que ela se polari zou em relação ao número das empresas O fenômeno é qualitativo Alguns grupos dominam cada vez mais em todos os setores inclusive na agricultura O EstadoPartido A polarização das classes O desenvolvimento da classe média não passa de uma ilusão sua proletarização é uma realidade Os pequenosbur gueses que proliferam mascates mercadores ambulantes etc são apenas desempregados disfarçados A crise do capitalismo É absolutamente inelutável cientificamente de monstrada pelas leis do desenvolvimento econômico e essas leis se impõem tão necessariamente como as leis da natureza o homem não pode escapar delas O teórico da socialdemocracia alemã defende assim um marxismo quase darwinista no qual a práxis revolucionária não tem lugar já que as leis objetivas do desenvolvimento governam por si sós o mundo e levam di retamente ao socialismo Kautsky não varia seu evolucionismo intangível levao a se opor ao idealismo direitista de Bernstein no final do século XIX assim como o levará a condenar os bolcheviques que violam de modo es querdista as leis da história INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bernstein E Les préssupposés du socialisme 1899 reed Le Seuil 1974 ed brasileira par cial Socialismo evolucionário Zahar Editores Rio de Janeiro 1964 Kautsky K Le marxisme et son critique Bernstein 1899 Stock 1900 A revolução mundial Rosa Luxemburgo Kautsky não teve o monopólio da réplica a Bernstein A revolucionária po lonesa que se tornou alemã Rosa Luxemburgo assumiu igualmente a defesa do marxismo ou mais exatamente da revolução socialista que as teses de Bernstein apresentavam como algo inútil O erro de Bernstein resulta do es quecimento dos três dados fundamentais do capitalismo revelados pelo so cialismo científico ou seja que o socialismo pode se apoiar tll Na crescente anarquia da economia capitalista que a levará fatalmente ao colapso 22 Na socialização crescente do processo de produção que cria os primeiros fundamentos positivos da ordem social vindoura 3ll Finalmente na organização e na crescente consciência de classe do proleta riado que constituem o elemento ativo da revolução iminente 186 História das ideias políticas Bernstein elimina o primeiro elemento o que lhe permite desembara çarse da revolução Para além dessa resposta Rosa Luxemburgo apresenta uma análise mais pessoal do desenvolvimento capitalista à luz do imperialismo Elabora uma teoria da acumulação do capital que traz uma nova justificação para a tese da crise fatal do capitalismo Rosa Luxemburgo parte de uma leitura de O Capital precisamente do seu Livro II Nele Marx realiza uma admirável demonstração dos mecanis mos de criação da maisvalia mas não explica a reprodução ampliada do capitalismo não indica como a maisvalia se realiza como uma vez con cluído o processo de produção as mercadorias portadoras de maisvalia podem ser compradas Pelos operários Eles não dispõem de meios suficien tes Pelos capitalistas São pouco numerosos para absorver toda a maisva lia Então como Pelas zonas não capitalistas O capitalismo está condenado à mundialização Só subsiste arruinando as estruturas não capitalistas Tem necessidade delas como de um solo nutriz às expensas do qual a acumula ção prossegue absorvendoo Compreendese que o capitalismo esteja condenado à morte Ele sobre vive tão somente estendendo sua dominação às camadas não capitalistas nos países capitalistas aos países não capitalistas através do mundo Uma vez concluída essa extensão ele não disporá de nenhum fruto para se alimentar e deverá morrer Ao contrário de Kautsky Rosa Luxemburgo não toma esse inexorável fim como pretexto para pregar uma atitude de espera passiva O próprio mecanismo da acumulação favorece a irrupção de revoluções antes da agonia final A mundialização implica uma concorrência violenta para se apoderar das últimas porções do ambiente mundial não capitalistà e essa encarniçada luta implica uma série de catástrofes econômicas e políticas crises mundiais guerras revoluções Acrescentemos que no seio dessas análises de economia política ti nham lugar disputas políticas precisas Bernstein milita em favor do refor mismo que pouco a pouco conquistava a classe operária alemã através de seus sindicatos e fustigando as contradições entre a fraseologia e a prática socialdemocratas queria pôr a teoria de acordo com os comportamentos políticos do proletariado Kautsky apegavase a um determinismo ortodoxo do qual fazia profissão de fé Se se revelasse um dia que a concepção ma terialista da história e a concepção do proletariado como força dirigente da revolução vindoura haviam se tornado obsoletas eu deveria então admitir que tudo terminara para mim e que minha vida não teria mais sentido Di fícil dizer mais Acrescentemos ainda mais uma vez que paralelamente O EstadoPartido às disputas políticas são também temperamentos que se enfrentam O de Rosa Luxemburgo lhe fazia dizer A revolução é grandiosa e tudo o mais não passa de besteira INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA Luxemburgo R Reforme ou révolution 1898 Maspero 1971 ed brasileira Reforma ou revolução Elipse São Paulo sd A acumulação do capital 1913 ed brasileira Zahar Editores Rio de Janeiro 2 ed 1981 A etapa imperialista Lênin No curso de suas refutações das teses revisionistas Lênin foi levado a elabo rar uma nova análise do capitalismo ou se se prefere um prolongamento da análise marxista do capitalismo através da teoria do imperialismo O regime capitalista entrou numa nova etapa a última antes de seu colapso a etapa imperialista O imperialismo se caracteriza por quatro fatores principais 1 O capitalismo de monopólio O capitalismo em sua fase imperialista aproximase estreitamente da socialização integral da produção 2 O capitalismo financeiro O imperialismo é o capitalismo que atingiu o estágio de desenvolvimento no qual se exerce a dominação dos monopó lios e do capital financeiro Os bancos tornaramse senhores da economia mediante a interpretação entre capital industrial e capital bancário 3 A exportação dos capitais O que caracterizava o antigo capitalismo no qual reinava plenamente a livre concorrência era a exportação de merca dorias O que caracteriza o capitalismo atual no qual reinam os monopólios é a exportação dos capitais 4 A luta pela partilha do mundo luta entre os grupos capitalistas pela conquista de novos setores luta entre Estados capitalistas pela ocupação de colônias Os trustes internacionais começam a dividir entre si o mundo a superfície do globo já está dividida entre os grandes países capitalistas As consequências que Lênin atribui a essa transformação do capitalismo não são exatamente as indicadas por Rudolf Hilferding ou Rosa Luxem burgo nos quais ele se inspirou para conceber a teoria do imperialismo Lê nin recusa a visão apocalíptica da revolucionária alemã As contradições do sistema mundial não desembocarão na autodestruição do regime enquanto 188 História das ideias políticas a luta de classes não puser termo à existência do capitalismo Esse manifesta capacidade de adaptação a constituição de uma oligarquia financeira nas cida do imperialismo permite a melhoria econômica da classe operária a atenuação da luta de classes e a recuperação de uma parte do movimento operário a corrupção de uma aristocracia operária O estágio imperialista contudo favorece as perspectivas revolucioná rias Ele apressa o advento do socialismo antes de mais nada por multiplicar os riscos de guerra Com efeito não se pode conceber outra base para a partilha das zonas de influ ência dos interesses das colônias em regime capitalista além da força dos participantes da partilha força econômica financeira militar Da teoria do imperialismo decorre sobretudo a lei do desenvolvimento desigual O desenvolvimento desigual e por saltos das diferentes empresas das diferentes indústrias e dos diferentes países são inevitáveis em regime capitalista É preciso saber encontrar a cada momento dado o elo preciso que deve ser preso com todas as forças para que se possa segurar toda a cadeia e preparar solidamente a passagem para o elo seguinte Essa concepção do elo mais fraco da cadeia imperialista irá justificar te oricamente a possibilidade de uma revolução socialista num país atrasado como era a Rússia tzarista Lênin assim distinguese de Rosa Luxemburgo para a qual a revolução socialista se desencadeará inicialmente nas metrópoles avançadas do capita lismo Mas ele se opõe sobretudo a Kautsky duplamente A teoria leninista do imperialismo recusa a teoria kautskyana de um ultraimperialismo no qual se imporia a cooperação pacífica entre Estados que houvessem partilhado o mundo entre si Contradiz também a estrita ortodoxia de um Kautsky se gundo a qual a revolução não poderia irromper num país feudal o sucesso do leninismo é o fracasso do marxismo INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA Lênin Vladimir Ilitch Ulianov O imperialismo estágio supremo do capitalismo 1916 ed brasileira in Obras Escolhidas AlfaÓmega São Paulo 19791980 vol 1 Socialismo soviético e imperialismo Stálin A teoria leninista do imperialismo e sua lei do elo mais fraco anunciam a tese stalinista do socialismo num só país Lênin com efeito influiu a perspectiva imaginada por Marx e Engels de uma revolução socialista mais ou menos simultânea nos principais países capitalistas A lei do desenvolvimento desejável implica que esta conclusão que se impõe o socialismo não pode vencer simultaneamente em todos os países ele vencerá inicialmente num só país ou em vários países Esse ponto de vista serviu em sua origem a uma posição revolucionária não esperar o incêndio do Ocidente para sublevar o proletariado russo Opondose a Zinoviev e Kamenev Lênin escreveu ao Comitê Central em 6 de novembro de 1917 Gostaria de convencer os camaradas que tudo depende hoje de um fio de cabelo Seria o maior dos crimes por parte de revolucionários deixar escapar o momento Esperar para agir é a morte Stálin saberá canonizar essa posição para fazer dela um instrumento a serviço da defesa do Estado soviético Stálin utiliza as diferentes análises do imperialismo em função das necessidades políticas Num primeiro momento defende a posição moderada de Bukharin Esse último opunha ao catastrofismo de Rosa Luxemburgo a possibilidade de uma passagem para o capitalismo de Estado como forma de adaptação do capitalismo à fase imperialista Disso resultaria uma estabilização relativa dos regimes capitalistas uma tese que Stálin podia usar contra a teoria trotskista da Revolução permanente A partir de 1929 Stálin desautoriza Bukharin e endossa oficialmente a tese da crise geral do capitalismo combinandoa astuciosamente com a realização do socialismo num só país A industrialização e a potência crescentes da União Soviética estreitavam geograficamente e economicamente o mercado mundial aberto à economia capitalista Por isso elas aceleram o seu colapso Em outras palavras o crescimento da potência do Estado soviético e ao mesmo tempo de Stálin cria as condições necessárias para a queda do capitalismo A luta pela revolução se identifica com a defesa da União Soviética E quanto mais o Estado soviético for forte tanto mais o capitalismo será fraco 190 História das ideias políticas O esquema geral é conservado mas infletido depois da Segunda Guerra Mundial Tratase menos de reforçar o Estado soviético coisa já feita do que abrir caminho para uma primeira forma de coexistência pacífica A difi culdade consiste em justificar esse amolecimento sem renunciar ao discurso revolucionário do qual a União Soviética ainda retira sua legitimidade Stá lin portanto recusa as análises do economista Varga segundo o qual a nova partilha do mundo entre Estados capitalistas e socialistas abria uma era de paz relativa sem crise previsível do capitalismo Ao contrário a existência de Estados socialistas exacerbaria a concorrência imperialista provocando um novo estreitamento de suas bases Essa restrição dos escoadouros provo cará conflitos internos e externos A crise geral do capitalismo continua tal e qual Mas continua por si mesma sozinha sem que a União Soviética tenha necessidade de fazer a Revolução em escala mundial ou de qualquer modo sem que ela tenha necessidade de destruir esse sistema através da guerra Das análises do Estado burguês como sistema de exploração econômica passase assim insensivelmente para a justificação da política de Estado posta em prá tica pela União Soviética Ou melhor as análises do capitalismo justificam essa política INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bukharin N Imperialismo e acumulação de capital 1925 D Kaisergruber Jaffaire Bou kharine Maspero 1980 Stálin Joseph Vissarionovitch Djugatchvili Problemas do leninismo 1926 há várias edi ções brasileiras Varga J As mudunças da economia capitalista 1946 O pósStálin O capitalismo monopolista de Estado A descongestão representada pela desestalinização permitiu um certo ques tionamento da teoria coagulada em que se convertera a explicação leninista stalinista do imperialismo a qual condenava o capitalismo à lenta agonia de seu estágio último e os revolucionários do mundo inteiro à defesa prioritária dos Estados socialistas Não é que a crítica do Estado burguês tenha se alte rado radicalmente mas a tese do capitalismo monopolista de Estado opera um certo retorno à fonte leninista ao mesmo tempo em que se abre a uma maior diversidade de interpretações O EstadoPartido 191 O retorno constrangido a Lênin corresponde a uma leitura mais atenta de sua análise do imperialismo A interpretação stalinista insistia ex cessivamente sobre a qualificação de estágio supremo último estertor úl tima solução antes do colapso final Deixava de lado o fato de que Lênin via igualmente nesse estágio imperialista uma transição para o socialismo já percebida por Engels A relação capitalista não é suprimida ao contrário é levada às suas últimas ins tâncias Mas atingido esse ponto ela se inverte A propriedade do Estado sobre as forças produtivas não é a solução do conflito mas contém em si mesma o meio formal o modo de se aproximar da solução Lênin foi mais longe vendo no capitalismo de Estado um présocia lismo O capitalismo de Estado é a preparação material mais completa do socialismo a antessala do socialismo a etapa da história que nenhuma etapa intermediária separa do socialismo Em 1960 a Conferência dos 81 Partidos Comunistas reunida em Moscou seguiu essa pista e adotou uma fórmula que rompe com as teses stalinistas As contradições do imperialismo aceleraram a transformação do capitalismo monopolista em capitalismo monopolista de Estado Reforçando o poder dos monopólios sobre a vida nacional o capitalismo monopolista de Estado reúne a potência dos monopólios e a do Estado num mecanismo único destinado a salvar o regime capitalista a aumentar ao máximo os lucros da burguesia im perialista por meio da exploração da classe operária e da pilhagem das cama das da população A história do capitalismo é assim dividida em três estágios e quatro fases Estágios Capitalismo Período Europa Primitivo Manufatureiro Séc XVIIXVIII Clássico Concorrencial Séc XIX Imperialismo Monopolista Início do séc XX Monopolista de Estado Meio e fim do séc XX Quanto às consequências políticas da teoria do capitalismo monopolista de Estado elas tendem a aproximar os comunistas dos não leninistas e em particular dos movimentos socialistas na medida em que a extrema concentração de poder econômico e político reduz ainda mais o campo dos inimigos e aumenta correlativamente o dos aliados potenciais Com boa lógica as análises do CME militam em favor das amplas alianças antimonopolistas da união do povo etc Assim os especialistas do Partido Comunista Francês propuseram em 1970 uma nova representação da estrutura social da França que opõe mais de 95 da população ativa vítimas mais ou menos diretas dos monopólios a uma pequena minoria que a compõe ou a serve 45 Classe operária 30 Camadas intermediárias assalariadas na qual se incluem os intelectuais 21 Camadas médias não assalariadas na qual se incluem o pequeno e o médio campones 4 Burguesia dirigentes de empresas e capitalistas auxiliares da burguesia NB No XXII Congresso do PCF em 1976 Georges Marchais reduziu a população dos donos da França a menos de 250 pessoas Os 4 caíram para 00001 O fato mais importante é que se a estatização do capitalismo prepara formalmente Engels e materialmente Lênin o socialismo perspectivas mais imediatas do que a crise final se abrem em princípio aos comunistas Faltalhes apenas controlar o Estado o mecanismo único Estadomonopólios para substituílo então por um mecanismo Estadoclasse operária O EstadoPartido 193 natureza está inteiramente contida no sistema de exploração econômica Ao insistirem demasiadamente na originalidade do materialismo histórico seus adeptos correm o risco de se contentarem com uma análise simplista do po lítico se o matizarem em excesso temem estar fazendo concessões à ideo logia burguesà Muitos debates entre marxistas caem nesse círculo vicioso algumas construções tentam escapar dele e buscam melhorar a inteligibili dade das superestruturas tornar mais preciso o lugar que a teoria concede ao político ao jurídico e o ideológico em relação ao econômico A investigação sobre a natureza das superestruturas começa com Berns tein que contesta a tese do simples reflexo do econômico pelo político e isso é feito no quadro da revisão do marxismo por ele proposta Para tentar resolver o problema do economicismo sem renunciar ao materialismo histó rico Gramsci apresenta uma noção nova a de hegemonia na qual Althusser irá se inspirar para a criação do conceito de aparelhos ideológicos de Estado Reflexos e ideologias Bernstein Bernstein combate o núcleo do materialismo marxista ou seja a ideia de que a estrutura econômica determina tudo assim resumida por Marx Na produção social de sua existência os homens entram em relações determi nadas necessárias independentes de sua vontade relações de produção que correspondem a um grau determinado de desenvolvimento das forças produti vas A estrutura econômica da sociedade constitui a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas de consciência social determinadas Portanto não é a consciência social dos homens que determina seu ser Ao 1 contrário é seu ser social que determina sua consciência Marx Prefácio a Para a crítica da economia política 1959 Bernstein vê nessa colocação uma superestimação do econômico cada vez mais inexata O interesse privado já está recuando diante do interesse coletivo e precisa mente por causa desse fato os fatores econômicos deixam de desempenhar um papel de primeiro plano As causas econômicas são um substrato sobre o qual nascem as ideias mas a difusão dessas ideias a forma que assumem depende de uma multidão de outros fatores 194 História das ideias políticas A multiplicidade dos fatores que escapam à economia termina por modifi car o caráter da necessidade histórica Les pressupposés du socialisme p40 Desse modo ele convida a superar nossa concepção primitiva do ma terialismo histórico e para isso invoca Engels contra Marx carta a Conrad Schmidt 1890 Diante de nossos adversários tivemos de afirmar o princípio essencial que eles rejeitavam a influência dos fatores econômicos Foi assim que nem sempre ti vemos ocasião ou tempo para esclarecer a importância dos outros fatores que participam do processo histórico Contudo Bernstein não se contenta com a imagem do bastão que para ser posto na posição certa é excessivamente inclinado no sentido oposto Ele chega a repudiar qualquer materialismo O materialismo é um calvinismo ateu que embora negando a ideia da predes tinação admite que tudo é determinado pela totalidade da matéria A dialética é uma metafísica não científica indemonstrável Hoje podese provar tudo mediante os escritos de Marx ou de Engels situação ideal para os apologistas e os rábulas Recusando a importância primeira da economia reabilitando o papel da ideologia e da moral Bernstein prega um retorno a Kant contra Hegel A obra de Marx e Engels deve demasiadamente ao hegelianismo mas ela só é grandiosa onde se afasta dele E o erro blanquista do marxismo encontra sua fonte e sua justificação na própria dialética Ele chega assim a distinguir duas correntes no movimento socialista mo derno ideia que em seguida irá conhecer um certo sucesso o socialismo dos teóricos construtivo utópico societário e pacifista evolucionista idealista kantiano e o socialismo das sublevações destrutivo demagógico conspirativo terrorista materialista hegelianoblanquista O EstadoPartido 195 A teoria marxista seria apenas uma tentativa de síntese entre essas duas tendências mas um compromisso fracassado um dualismo não superado já que o marxismo deslizou para o blanquismo para o socialismo político estatista antidemocrático É preciso retornar à versão moral do marxismo ou lhe opor a versão democrática do socialismo Bernstein insiste um dos primeiros junto com Jaures a fazêlo na complementaridade entre socialismo e democracia Ele avança fórmulas que algumas décadas mais tarde florescerão no euroco munismo A democracia é ao mesmo tempo um meio e um fim É um instrumento para instaurar o socialismo e a própria forma de sua realização O socialismo em última instância é apenas a aplicação da democracia à totalidade da vida social Que sentido há em ficar apegado à ideia da ditadura do proletariado quando por toda parte os representantes da socialdemocracia participam do jogo da representação proporcional e do Poder Legislativo práticas que são o oposto da ditadura As inflexões bernsteinianas inspiraram ao mesmo tempo a moderni zação do movimento comunista ocidental mais ortodoxo e os esboços he terodoxos de um socialismo humanista o de um Henri de Man onde o socialismo tornase a forma moderna da filosofia antiga da moral cristã do humanismo burguês O Estado hegemonia revestida de coerção Gramsci Decerto os socialistas humanistas reabilitam a moral e a política mas atra vés de um abandono mais ou menos completo do marxismo reduzido a uma vaga sociologia das classes sociais Os trabalhos do comunista italiano Antonio Gramsci ao contrário mantêmse no quadro do socialismo mar xista ao mesmo tempo em que lhe aportam uma contribuição original no sentido de flexibilizar as relações entre o ideológicopolítico e o econômico Essa renovação da concepção marxista do político passa por uma redefini ção do Estado e por uma atenção particular ao papel dos intelectuais Gramsci propõe uma definição extensiva do Estado que se distingue tanto de sua apreensão puramente econômica Marx quanto de sua caracte rização como aparelho de repressão Lênin De modo mais amplo História das ideias políticas o Estado é a sociedade civil mais a sociedade política uma hegemonia reves tida de coerção A direção intelectual e moral da sociedade as instituições que a asseguram a Igreja a escola os partidos políticos a imprensa etc a ideologia dominante somase à máquina administrativa a serviço da exploração às estruturas re pressivas que protegem a classe dominante o exército a política a justiça etc O Estado moderno funciona por consenso e não somente por violência Uma tal concepção é plena de consequências políticas Se o Estado não se reduz a uma simples máquina de opressão não é possível reduzir a revolução à tomada do instrumento para voltálo contra os opressores Nesse ponto Gra msci contradiz diretamente Lênin Com a ressalva de que ele concede que sua definição vale sobretudo para o Ocidente desenvolvido A Gramsci sublinha que no Oriente Rússia a sociedade civil é gelatinosà enquanto a sociedade política é quase tudo Portanto cabe aqui limitarse a uma insurreição que se apodere do Estado strictu senso a uma estratégia leninista Mas no Ocidente onde a sociedade civil é diferentemente desenvolvida onde o Estado lato sensu se apoia menos em seu versante repressivo do que em sua face ideológica é pre ciso também inicialmente quebrar esse edifício intelectual e moral aniquilar a hegemonia da burguesia garantir a hegemonia da classe operária Os efeitos teóricos da problemática gramsciana põem em questão as in terpretações sumárias da relação entre infraestrutura econômica e superes truturas Para explicar essa relação ele constrói a noção de bloco histórico a saber a articulação precisa numa situação histórica determinada entre a estrutura social as classes e a superestrutura ideológica e política Em vez de falar de determinação da superestrutura pela estrutura ou da ação de re torno da estrutura sobre a superestrutura Gramsci considera que estrutura e superestrutura são organicamente soldadas entre si A ligação orgânica entre a estrutura social e o ideológicopolítico é asse gurada pelos intelectuais funcionários da superestrutura São eles que assegu ram a hegemonia da classe dirigente elaboram e difundem sua concepção do mundo em todas as classes por intermédio da filosofia da religião do folclore ou simplesmente do senso comum Mas eles não são simples la caios formam uma camada social relativamente autônoma cujos laços com a classe dirigente são aqui também orgânicos e não mecânicos Eles devem se destacar da classe dominante para se unirem a ela mais intimamente para serem a verdadeira superestrutura e não somente um elemento inorgânico e indistinto da estrutura econômicà O gramscismoleninismo Althusser e Poulantzas Na perspectiva traçada por Gramsci um certo número de marxistas contemporâneos tem se esforçado no sentido de salvar o marxismo tornandoo mais complexo o que apresenta pelo menos o mérito de libertálo do que se convencionou chamar de economicismo Nicos Poulantzas apefeição assim a análise marxista das bases sociais do poder político e Louis Althusser a do Estado A noção gramsciana de bloco histórico afastase singularmente da dicotomia grosseira que vê apenas a burguesia exploradora e o proletariado explorado Nesse sentido ela explica necessariamente melhor a complexidade do capitalismo da revolução científica e técnica Serve igualmente como ponto de partida para o questionamento da ortodoxia marxista Roger Garaudy por exemplo inspirouse nessa noção para propor a formação de um bloco histórico novo que agrupasse operários e intelectuais Supõese que a camada dos operários altamente qualificados deverá ter o papel de cimento nessa nova aliança Não tendo preocupações políticas tão imediatas Nicos Poulantzas retoma a noção de bloco no poder para tornar mais sutil a chave para a inteligibilidade das sociedades contemporâneas Ele distingue diferentes tipos de classes sociais ou frações de classes A classe hegemônica é a que detém a hegemonia política A classe dominante é a que exerce a direção econômica A classe reinante é a que ocupa principalmente o governo A classe de apoio é aquela em cujo seio se recruta o aparelho de Estado Essa primeira série pertence ao princípio do bloco no poder Além disso existem As classes aliadas que se beneficiam de certos compromissos com o bloco no poder As classesapoi o que sustentam o Estado por ilusão ideológica e sem proveito As classes subalternas excluídas do bloco no poder e diretamente exploradas Chegase assim a um esquema muito complexo tanto mais que a mesma classe pode ocupar várias posições exemplo a pequena burguesia sob a Terceira República ao mesmo tempo classe reinante e classe aliada Faltaria ainda aplicar o esquema L Althusser retoma igualmente a distinção feita por Marx entre o poder de Estado que pertence à classe que domina na produção e o aparelho de Estado que é o instrumento de exercício do poder estatal não necessariamente em mãos da classe que detém o poder de Estado Mas a noção de aparelho de Estado deve ser repensada Os marxistas insistem tradicionalmente nos aparelhos encarregados da repressão exército polícia tribunais enquanto existem também o que ele chama de aparelhos ideológicos de Estado AIE as igrejas as famílias a escola os partidos as organizações sindicais ou socioprofissionais etc Os AIE garantem a reprodução das relações de produção mas a garantia através da ideologia Portadores e administradores das ideias da classe no poder eles modelam as consciências e o inconsciente dos indivíduos e dos grupos Valemse de seu caráter privado de suas formas diversificadas de sua aparente neutralidade e da tradição humanista de que desfruta para reforçar sutilmente o poder tornandoo aceitável Conforme a época determinado aparelho ideológico de Estado desempenha um papel de primeiro plano O pá IgrejaFamília que reinava na vida cotidiana na época medieval foi hoje substituído pelo EscolaFamília Os AIE e seu indispensável pluralismo são locais atravessados pela luta de classes e portanto alvos decisivos do combate pelo socialismo INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Althusser L Positions 19641975 Ed Sociales 1976 ed brasileira Posições 1 e 2 Graal Rio de Janeiro 1978 e 1980 Poulantzas N Pouvoir politique et classes sociales Maspero 1968 ed brasileira Poder político e classes sociais Martins Fontes São Paulo 1976 Ranciè re J Les leçons dAlthusser Gallimard col Idées 1974 A gênese do Estado socialista Em outubro de 1917 o Império dos tsares tornouse o primeiro Estado socialista Estado socialista a ideia se complica acrescentase a ela o referente real um Estado um verdadeiro e que dura prossegue a obsessiva questão do Estado Isso significa que depois da queda da antiga sociedade haverá uma nova dominação de classe resumindose num novo poder político Não A classe trabalhadora no curso de seu desenvolvimento substituirá a antiga sociedade civil por uma associação que excluirá as classes e seu antagonismo e não haverá mais poder político propriamente dito Marx escreveu essas frases Miséria da filosofia 1847 e elas foram lidas por todo mundo O socialismo extrai sua força de persuasão dessa escatologia o anúncio do fim do Estado do fim da dominação do homem pelo homem É a verdadeira solução do antagonismo entre o homem e a natureza entre o homem e o homem a verdadeira solução da luta entre existência e essência É o enigma resolvido da história e sabe que é essa solução afimou Marx em 1844 Todavia uma dificuldade no curso de seu desenvolvimento Os socialistas não são anarquistas o Estado não será suprimido do dia para a noite a revolução se inscreve numa evolução a passagem para o comunismo se faz por etapas um Estado socialista é provisoriamente necessário E tudo se complica com o parêntesis na teoria e na prática Como conceber esse provisório Por que ele se institucionaliza Por que ironia o socialismo anuncia a extinção do Estado ao mesmo tempo em que organiza o fortalecimento do Estado Não será o momento de elucidar o que bem poderia ser uma das maiores estratégias da história e do pensamento políticos 200 História das ideias políticas A revolução bolchevique Plekhanov Trotski Lênin Uma sociedade não pode nem superar com um salto nem abolir por decreto as fases de seu desenvolvimento natural Se seguirmos a letra de Marx em O Capital não haveria necessidade de ou teria sido impossível fazer a revolu ção na Rússia atrasada As sociedades devem passar por cinco estágios i Comunidade primitiva onde não existe propriedade privada 2 Regime escravista onde aparece a dominação do homem pelo homem 3 Regime feudal propriedade principalmente fundiária florescimento das forças produtivas 4 Capitalismo caracterizado pela propriedade privada dos meios de pro dução 5 Socialismo socialização dos meios de produção extinção do Estado Somente após esses cinco estágios é que pode e deve aparecer o comu nismo Lênin não desmente esse determinismo ajustao para fazer a revolução através por um lado de sua teoria do imperialismo e por outro da tese do primado do político Nesse sistema a autonomia do político figura apenas como uma falsa janela em relação à inevitabilidade a dialética fornece uma simetria artificial O marxismoleninismo que vê a lei social com espírito dialético mostra que ela opera sob a forma da tendência dominante da evolução das re lações sociais dadas Isso significa que a lei determina a orientação geral do mo vimento que decorre necessariamente dessas ou daquelas condições objetivas Mas a marcha concreta dos eventos depende não somente das leis gerais mas também da correlação real das forças de classe da política das classes em luta e de muitas outras condições específicas Alguns desses fatores podem apressar ou retardar o sucesso definitivo da luta da classe operária Todavia a vitória da classe operária e do socialismo continua inevitável Apressar ou retardar o inevitável esse é o magro lugar concedido ao po lítico pelo manual de marxismoleninismo editado em Moscou Para além dos debates filosóficos sobre determinismo e dialética ne cessidade e liberdade Lênin vêse diante de um problema histórico preciso O EstadoPartido 201 a atualidade ou o caráter prematuro da Revolução na Rússia Para resolvêlo é preciso estudar duas questões frequentemente confundidas 1 Tratase para um país semifeudal de se poupar do estágio capitalista 2 Tratase no estágio capitalista de evitar o poder da burguesia e desse modo de transformar qualitativamente esse estágio capitalista para acelerar a transformação ao socialismo A primeira questão opõe os populistas russos aos mencheviques e aos bolcheviques Os primeiros Tchernichevski Herzen Tkatchev consideram que a ausência de escoadouros externos e a estreiteza do mercado interno tornam impossível a implantação do capitalismo na Rússia Além disso a estrutura comunitária das terras o Mir oferece uma base para construir o socialismo imediatamente A Rússia agrária evitará assim os males da in dustrialização e do capitalismo Para Lênin tratase de heresia e de absurdo O campesinato comunitário russo não é o antagonista do capitalismo ao contrário é sua base mais profunda e mais sólidà O desenvolvimento do capitalismo na Rússia 1896 Quanto à segunda questão o lugar do proletariado na revolução capi talista ela divide a socialdemocracia russa que estava de acordo apenas contra o comunismo agrário dos populistas O debate toma forma quando da Revolução de 1905 Três correntes três posições Num polo Plekhanov e a maioria dos mencheviques O socialismo não está na ordem do dia Não é preciso tomar o poder mas sim apoiar a burguesia Já que a sociedade russa não é suficientemente desenvolvida o proletariado russo não é suficientemente maduro Uma re volução prematura levaria a um desastre como o demonstra a Comuna de Paris e Marx teria sido contra No outro polo Trotski e os mais revolucionários Não ao tzar governo operário A revolução socialista é possível É pre ciso tomar o poder O proletariado pode conduzir sozinho uma revolução permanente ou seja ininterrupta burguêsproletária e colocar o coleti vismo na ordem do dià Entre os dois Lênin mais matizado Como para Plekhanov o capitalismo lhe parece necessário o socialismo é prematuro A ideia de buscar a salvação da classe operária em outra coisa que não o desenvolvimento do capitalismo é reacionária Em países como a Rússia a classe operária sofre menos com o capitalismo do que com a insuficiência de desenvolvimento do capitalismo A classe operária tem 202 História das ideias políticas todo o interesse no desenvolvimento mais amplo mais livre e mais rápido do capitalismo Contra Plekhanov e Martinov e com Trotski ele acredita que a burguesia russa é incapaz de realizar uma revolução burguesa assim o proletariado deve tomar o poder Mas com os camponeses e para realizar as reformas burguesas república liberdades democráticas separação entre a Igreja e o Estado transformações econômicas Isso só poderá ser feito mediante a ditadura revolucionária democrática do proletariado e do campesinato Em 1917 Lênin se alinha com a posição de Trotski a do socialismo ime diato Hoje quem falar apenas da ditadura democrática revolucionária do proleta riado e do campesinato está atrasado em relação à vida e passou na prática para a pequena burguesia merecendo ser relegado aos arquivos A revolução democrático burguesa é uma fórmula que envelheceu Está morta Todo po der aos sovietes Teses de Abril Podese considerar que atento à evolução histórica Lênin tornouse trotskistà ou seja que retomou por sua conta o ponto de vista da revolução permanente Podese também afirmar que ele não mudou que continuou convencido da necessidade do encadeamento das etapas capitalismo socia lismo comunismo Nesse caso o socialismo se encarrega na Rússia daquilo que o capitalismo não é capaz de fazer o socialismo nada mais é do que um monopólio capitalista de Estado instituído em benefício de todo o povo e que por isso perde seu caráter de monopólio capitalistà O Estado e a Revolução 1917 E Lênin jamais duvidou da necessidade de uma evolução capitalista da economia de uma espécie de capitalismo sem capitalistas O socialista ale mão Arthur Rosenberg escreveu O programa econômico de Lênin poderia ter sido aprovado naquele momento por políticos burgueses de esquerda na Europa e na Rússia se não tivesse sido combinado com uma democracia po lítica ilimitada Sobre esse último ponto podese e devese discutir mas é verdade que Lênin resolveu o problema da revolução na Rússia mediante a política em termos políticos INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Lênin Duas táticas da socialdemocracia na revolução russa 1905 Teses de Abril 1917 eds brasileiras in Obras Escolhidas AlfaÓmega São Paulo 197980 respectiva mente tomos 1 e 2 A teoria leninista do Partido Lukács Trotski Lênin A teoria do Partido ou da organização revolucionária é o verdadeiro cadinho do leninismo Constitui o principal acréscimo feito por Lênin e Marx ao mesmo tempo em que oferece a solução política para a superação do economicismo e permite a Revolução na Rússia Parte de uma certa concepção da consciência de classe e leva a um certo tipo de organização do proletariado É na prática que o homem deve provar a verdade ou seja a realidade é a potência de seu pensamento E em nome da unidade dialética entre pensamento e real Lênin não deixará de revisar Marx ao mesmo tempo em que não cessa jamais de lutar contra o revisionismo O marxismo não é uma filosofia especulativa mas uma ciência para transformar o mundo Essa transformação só se realizará através de uma dialética da teoria e da prática O agente dessa dialética será o Partido Cabelhe preencher as insuficiências quantitativas e qualitativas do proletariado russo Lukács explica como a teoria leninista da organização funciona como resposta política ao evolucionismo Lênin não considera que a vitória do socialismo seja inelutável O proletariado só é revolucionário na medida em que se eleva à consciência de classe E essa elevação não se dá nem automaticamente nem espontaneamente Lukács faz aqui uma distinção entre consciência psicológica e consciência atribuída O proletariado imediatamente possui apenas uma consciência psicológica conjunto dos pensamentos empíricos efetivos psicologicamente descritivos e explicativos que os homens elaboram acerca de sua situação vital Os operários portanto são capazes de reações de defesa contra a burguesia Mas não de fazer a Revolução Lukács e Lênin criticam o espontaneísmo de Rosa Luxemburgo bem como sua convicção dogmática segundo a qual se produz ao mesmo tempo que a necessidade social real também o meio de sua satisfação ou seja ao mesmo tempo à tarefa e sua solução A verdadeira consciência de classe do proletariado não é sua consciência psicológica mas uma consciência atribuída a consciência que a classe teria se fosse capaz de captar a situação histórica do ponto de vista de seu in teresse de classe ou seja com uma compreensão da totalidade da sociedade A classe operária pode chegar a esse ponto de vista mas não o faz necessariamente e nem sozinha Lênin insiste de acordo com Kautsky sobre essa incapacidade A história de todos os países atesta que por suas próprias forças a classe operária pode atingir apenas a consciência tradeunionista defensiva reivindicativa A consciência socialista é um elemento importado de fora na luta de classe do proletariado Que fazer 1902 A consciência atribuída a adequação à evolução objetiva global é trazida ao proletariado pelo Partido e mais precisamente pelos intelectuais revolucionários que o dirigem Esses intelectuais egressos da burguesia mas que romperam com ela põem a serviço da classe operária as conquistas teóricas da humanidade INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Lukács G Histoire et conscience de classe 1923 Ed de Minuit 1960 Weber H Marxisme et conscience de classe col 1018 1975 Colas D Principes du léninisme La théorie du parti et ses implications politiques tese 1980 PUF 1982 Essa concepção importadora da consciência de classe segundo a qual o proletariado deve importar seu saber implica a concepção elitista e antidemocrática da organização revolucionária apresentada por Lênin Lênin se inspira nos métodos herdados do capitalismo e da burguesia pelos quais como Marx ele não esconde sua admiração ao mesmo tempo em que os condena A fábrica capitalista essa fábrica que a alguns parece ser um espantalho é precisamente a forma superior da cooperação capitalista que aglutinou e disciplinou o proletariado ensinoulhe a organização colocouo à frente de todas as outras categorias da população laboriosa e explorada Foi o marxismo ideologia do proletariado educado pelo capitalismo que ensinou e ensina aos intelectuais volúveis a diferença entre o lado explorador da fábrica disciplina baseada no temor de morrer de fome e seu lado organizador disciplina baseada no trabalho em comum resultado de uma técnica altamente desenvolvida ibid O EstadoPartido 205 O Partido sabe graças aos intelectuais rompidos com a burguesia Rosa Luxemburgo Léon Blum e muitos outros criticaram Lênin por seu blanquismo Blanqui com efeito foi um dos primeiros apóstolos do van guardismo Eram burgueses os que primeiro levantaram a bandeira do proletariado que formularam as doutrinas igualitárias que as difundem mantêm e soerguem depois da queda Em todo lugar são burgueses que dirigem o povo em suas batalhas contra a burguesia O Partido organiza e dirige de modo militar a luta política da classe operária Rosa Luxemburgo denuncia esta subordinação A classe operária reclama o direito de aprender por seus próprios esforços a dialética da história Os erros cometidos pelo movimento operário revolucio nário são historicamente muito mais fecundos que a infalibilidade do melhor comitê central O Partido é composto de uma elite aguerrida de combatentes de van guarda de revolucionários profissionais que comandam os operários É or ganizado de modo predominantemente antidemocrático nem publicidade nem eletividade dos funcionários rigorosa seleção de membros e disciplina de ferro Na época em que Lênin apresentou esses princípios Que fazer 1902 Trotski os recusou Estão presentes dois métodos de construção do Partido o fato de querer pen sar pelo proletariado o substitutismo político do proletariado e sua mobiliza ção política para exercer uma pressão racional sobre todos os grupos e parti dos políticos Com o centralismo leninista em primeiro lugar a organização do Partido substitui o conjunto do Partido depois o Comitê Central substitui a própria organização e finalmente um único ditador substituirá o Comitê Central Era premonitório Todavia em 1917 Trotski alinhouse com a posição de Lênin com o centralismo A dominação revolucionária do proletariado supõe no próprio proletariado a dominação de um Partido dotado de um programa de ação bem definido e de uma forte disciplina interna No conjunto Lênin e Trotski que se opunham em 1905 sobre a possibilidade de uma revolução socialista e sobre a organização do Partido puderamse de acordo em 1917 Trotski adotou o centralismo leninista Lênin adotou a possibilidade de uma revolução proletária Notemos que o movimento dessas convergências corresponde ao endurecimento de cada um deles no qual Stálin encontrará seu elemento LÊNIN 1905 Revolução democrática porém Partido ditatorial 1917 Revolução proletária e ditadura de Partido TROTSKI Revolução proletária porém Partido democrático 1917 Revolução proletária e ditadura de Partido INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Blanqui A Textes choisis Editions Sociales 1956 Luxemburg R Grève de masse parti et syndicats 1906 Maspero 1971 La révolution russe 1918 Maspero 1971 Trotski L Terrorisme et communisme 1920 col 1018 ed brasileira Terrorismo e comunismo Saga Rio de Janeiro 1969 A ditadura do proletariado o Estado e a Revolução A teoria da extinção do Estado é exposta do modo mais completo na obra capital escrita por Lênin às vésperas da insurreição de outubro O Estado e a Revolução Texto de leitura essencial para os que querem compreender a teoria e a prática do socialismo fácil porque claro difícil porque aberto a uma pluralidade de interpretações A escolha entre essas interpretações condiciona nada menos do que a explicação do stalinismo a relação entre Lênin e Stálin as causas do socialismo ditatorial as possibilidades de um socialismo libertador Dois tipos de versão se opõem uma com uma variante stalinista que aceita o todo e com uma variante antistalinista que rejeita o bolchevismo e seus emulos estabelece as fliações teóricas entre leninismo e stalinismo A outra ao contrário sublinha a ruptura radical entre eles e inocenta Lênin do pecado stalinista A leitura libertária de O Estado e a Revolução conservase próxima do texto de Lênin Lucio Coletti distingue assim no livro três pontos principais O EstadoPartido 207 uma exposição da teoria marxista do Estado uma concepção da conquista destruição do Estado burguês e depois da abolição de todo Estado Ou seja Apresentação leninista da teoria marxista do Estado O Estado é o pro duto e a manifestação da inconciliabilidade das contradições de classe É pre ciso evitar o contrassenso funcionalista que acredita que o Estado surge por causa das contradições de classe verdadeiro e tem por função por causa disso resolvêlas falso a existência do Estado prova a inconciliabilidade entre as classes É preciso igualmente evitar o contrassenso revisionista que admite ser o Estado um fenômeno de dominação de classe mas crê que sua transformação é possível sem sua destruição através apenas de sua conquista pela classe dominada Conquistadestruição do Estado burguês Marx escreveu Todas as revoluções políticas não fizeram mais do que aperfeiçoar a máquina do Estado em vez de quebrála O iB Brumário de Luís Bonaparte Engels escreveu e concretizou no AntiDühring O proletariado se apodera do poder de Estado e transforma os meios de produ ção inicialmente em propriedade do Estado Mas ao fazer isso ele se suprime a si mesmo como proletariado suprime todas as diferenças de classe e oposi ções de classe e igualmente suprime o Estado enquanto Estado A intervenção de um poder de Estado nas relações sociais tornase supér flua progressivamente nos vários terrenos e desse modo ele vai naturalmente minguando O governo das pessoas cede lugar à administração das coisas e à direção das operações de produção O Estado não é abolido ele se extingue Lênin o cita interpretao puxao para o lado do bolchevismo Engels fala aqui da supressão do Estado pela revolução proletária da burgue sia enquanto o que se fala sobre a extinção referese ao que subsiste do Estado proletário depois da revolução socialista O Estado burguês segundo Engels não se extingue é suprimido pelo proletariado no curso da revolução O que se extingue depois dessa revolução é o Estado proletário Abolição do Estado proletário Depois de ter evitado uma interpreta ção anarquistà de Engels destruição definitiva do Estado pela revolução Lênin volta a ser libertário A tarefa principal da ditadura do proletariado é abolir o Estado A democracia da burguesia tornase proletária e o Estado se transforma em algo que não é mais um Estado Somente o comunismo é capaz de realizar uma democracia realmente completa e quanto mais ela for completa mais rapidamente se tornará supérflua e desaparecerá por si mesma Pela primeira vez na história as massas são chamadas ao governo A revolução transforma os organismos representativos em organismos autênticos Segundo o modelo da Comuna os sovietes substituem o mandato representativo pelo mandato imperativo Passase assim da ditadura democrática para a democracia direta e da democracia direta para o fim do Estado Esse belo encadeamento não se realizou Uma leitura estatista de O Estado e a Revolução pode pelo menos reivindicar o argumento da realidade A passagem do leninismo para o stalinismo foi historicamente possível Isso significa portanto que ela foi também teoricamente ou seja segundo a ordem do raciocínio A interpretação estatista do leninismo sublinha que por trás de seus acentos libertários Lênin reencontra o Estado e por trás da chegada das massas ao poder a dominação de uma vanguarda Todo o poder aos sovietes a fórmula é vazia ou excessivamente cheia Ela confunde tudo com uma das mãos concede a destruição do Estado mas com a outra reintegra os sovietes na teoria repressiva Pois através dos sovietes é o Partido que toma o poder ou o Partido que exerce o poder o Partido que constrói seu Estado Os socialistas antistatistas opõem então o par ditatorial LêninStálin ao par libertário MarxEngels A ditadura do proletariado oferece o argumento privilegiado dessa oposição Uns se contentam em contar a ditadura do proletariado noção central do leninismo desempenha em Marx um papel apenas secundário já que ele pouco a evoca somente duas vezes segundo Boris Souvarine 11 vezes no máximo segundo H Draper Mas Marx fala dela em seus principais textos políticos Chegou mesmo a escrever O que eu trouxe de novo foi provar que essa luta de classes leva necessariamente à ditadura do proletariado Carta a Weydemeyer 1852 Dirseá então que Marx não teorizou essa ditadura e lhe conferiu um conteúdo incerto cf Kautsky ou Maximilien Rubel Finalmente terceiro argumento utilizado a significação da ditadura do proletariado não é a mesma em Lênin que lhe retira o conteúdo democrático O pensamento político de Marx não teria deixado de ser democrático Já o Manifesto definia a Revolução como o movimento espontâneo da imensa maioria O EstadoPartido 209 em proveito da imensa maioria Quanto à ditadura do proletariado é apenas um poder democrático revolucionário conforme o modelo da Comuna O filisteu socialdemocrata foi recentemente tomado por um sagrado terror ao ouvir as palavras ditadura do proletariado Pois bem senhores querem saber com o que se parece essa ditadura Olhem para a Comuna de Paris é a dita dura do proletariado Engels Prefácio de 1891 a Marx A guerra civil na França 1871 Qualquer pessoa pode constatar que o poder soviético há muito não se inspira mais nas características da Comuna sublinhadas por Marx regime democrático A Comuna foi composta de conselheiros municipais eleitos por sufrágio uni versal nos diversos bairros da cidade Eram responsáveis e revogáveis a qual quer momento Destruição do Estado destruição dos poderes do poder clerical A Comuna colocouse como tarefa quebrar o instrumental espiritual da opres são o poder dos padres Esses foram devolvidos ao tranquilo retiro da vida privada para lá viver da esmola dos fiéis tal como seus predecessores os apóstolos Destruição da polícia da administração da justiça cujos funcionários tornamse responsáveis e revogáveis a qualquer momento Destruição da centralização O regime da Comuna uma vez estabelecido em Paris e nos centros secundários faria com que o antigo governo centralizado também nas províncias fosse substi tuído pelo autogoverno dos produtores Marx A guerra civil na França 1871 Última crítica Lênin substitui a ditadura majoritária da classe majoritá ria pela ditadura minoritária do partido de vanguarda Reencontramos aqui a acusação de blanquismo Marx disse aos blanquistas sim nós queremos a ditadura ao mesmo tempo audaciosa e enérgica para defender a revolução mas somos contra o que vocês desejam como ditadura queremos a ditadura da classe ou seja do proletariado e não a do partido revolucionário Engels 1874 210 História das ideias políticas INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Châtelet F Evelyne PisierKouchner e JeanMarie Vincent Les marxistes et la politique PUF 1975 col Thémis Coletti L De Rousseau à Lenine Gramma 1972 Gorter H Réponse à Lénine Librairie ouvriere 1920 ed brasileira Carta aberta ao com panheiro Lênin 1920 in M Tragtenberg org Marxismo heterodoxo Brasiliense São Paulo 1981 p1474 Kautsky K La dictature du prolétariat 1918 col 1018 1972 ed brasileira KautskyLê nin A ditadura do proletariado A revolução proletária e o renegado Kautsky Ciências Humanas São Paulo 1979 p387 O fortalecimento do Estado Ditadura do Partido justificada em teoria exacerbada na prática com Lênin já se torna problemático traçar a fronteira entre o teórico e o empírico Stá lin proclamase herdeiro direto de Lênin não sem razões não sem abusos Convém revelar a falsificação e indicar o que a autoriza Em outras palavras elucidar a continuidadedescontinuidade entre Lênin e Stálin o que permite avaliar melhor as críticas ao stalinismo assim como o novo rumo seguido pela oposição no pósstalinismo a dissidência De Lênin a Stálin Trotski Zhdânov Stálin Antes de mais nada uma realidade o nascimento do Estado soviético não deu lugar nos fatos a nenhum salto qualitativo ou ampliação da demo cracia mas desde Lênin ao seu contrário redução progressiva da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão proibição oficial da greve não se pode fazer greve contra si mesmo recusa de admitir os comunistas de esquerda no Conselho de Comissários do Povo criação da Tcheca polícia política para reprimir os heterodoxos proclamação oficial do Terror Vermelho para defender a Revolução subordinação dos sindicatos o trabalho deles é convencer as massas Lênin funcionarização da administração burocratização dos sovietes dissolução da Assembleia Constituinte onde os bolcheviques eram mino ritários O EstadoPartido 211 proibição do pluripartidarismo inclusive limitado aos defensores do so cialismo supressão autoritária das frações no seio do Partido único justificação do recurso à ditadura Cada uma dessas medidas deu lugar a inumeráveis debates na literatura socialista A tendência dominante as justifica em nome das necessidades práticas e das ameaças contra a Revolução agredida realidades políticas que seria difícil negar ou álibis de uma engrenagem fatal O debate em certo sentido é puramente empírico em outro imortal Não seria possível deixar de sublinhar as peças teóricas que constituem a trama do fortalecimento do Estado os dois principais pontos de articulação entre Stálin e Lênin o socia lismo em um só país o agravamento da luta de classes O socialismo em um só país Com Trotski Lênin acreditou durante muito tempo que a salvação só é possível pelo único caminho da revolução socialista internacional Sua lei do desenvolvimento desigual introduziu a primeira brecha a Revolução podia começar num só país Mas ela deveria rapidamente se estender ao restante da cadeia imperialista em particular através da transformação da guerra internacional em guerra revolucionária mundial A partir de 1918 Lênin vê nessa ideia nada mais do que um conto de fadas Passase assim da revolução em um só país ao socialismo em um só país O ponto de vista tornase tese oficial somente sob Stálin mas tem sua origem no leninismo H Lefebvre Esse deslizamento permite passar subrepticiamente do leninismo trotskista ao stalinismo leninista e do so cialismo internacional ao socialismo nacional A doutrina de Stálin leva a esse notável resultado ela suprime aparentemente a contradição que existe na Rússia soviética entre o mito socialista e a realidade É a ditadura do proletariado que reina na Rússia e sua tarefa consiste em reali zar o socialismo integral com a eliminação total dos elementos capitalistas Desde i925 o mito da Rússia soviética consiste no fato de que a teoria bolche vique oficial faz passar o socialismo nacional tal como existe na Rússia pelo socialismo marxista ortodoxo A Rosenberg Histoire du bolchevisme cit INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Korsch K Paul Mattick Anton Pannekoek Otto Rühle e Helmut Wagner La contreré volution bureaucratique Ch Bourjois col 10ls 1973 Lefebvre H Pour connaitre la pensée de Lenine Bordas 1957 reed 1977 212 História das ideias políticas Nos anos 192829 o stalinismo se afirma O socialismo em um só país é elevado ao nível de teoria completase com um projeto de industrializa ção acelerada que impõe destruir os kulaks e realizar a coletivização for çada da agricultura Para isso Stálin retoma de Lênin a tese segundo a qual a ditadura do proletariado se justifica pela intensificação da luta de classes O Estado socialista o meioEstado da ditadura do proletariado esvaziase então de todo conteúdo democrático Sobre o socialismo transição entre o capitalismo e o comunismo Lênin escreveu O período de derrubada e supressão completa da burguesia é necessaria mente marcado por uma luta de classes de intensidade sem precedentes O Estado desse período portanto deve necessariamente ser democrático de um modo novo e para os proletários ditatorial de um modo novo contra a burguesia Stálin conserva apenas a parte ditatorial da frase para melhor justificar a repressão inclusive contra os comunistas moderados Bukharin supõe que sob a ditadura do proletariado a luta de classes deve se ex tinguir e desaparecer Ora Lênin nos ensina que as classes só serão abolidas depois de uma luta de classes mais perseverante mais encarniçada ainda sob a ditadura do proletariado do que antes dela O stalinismo força assim os textos de Lênin para chegar à identificação teórica entre Estado socialista e Estado soviético O fortalecimento do Es tado inscrevese então em linha de continuidade direta com o leninismo já que é na União Soviética que se constrói o socialismo e as condições particulares de seu desenvolvimento impõem o afastamento de qualquer referência à extinção do Estado Dito isso é certamente necessário que o socialismo progrida que a abolição das classes termine por se delinear no horizonte sem o que a referência ao marxismoleninismo perderia qual quer verossimilhança Disso resulta a nova tese sobre o advento da socie dade sem classes A sociedade soviética de nossa época ao contrário de qualquer sociedade capi talista não tem mais em seu seio classes antagônicas inimigas as classes exploradoras foram liquidadas Stálin 1939 O EstadoPartido 213 Mas como justificar a persistência do Estado quando desapareceu o an tagonismo das classes que é o seu fundamento Por um atalho engenhoso o cerco capitalista Se o esquema da extinção do Estado não funciona exa tamente como previsto apesar dos progressos do socialismo na União So viética a culpa é do outro do inimigo do mundo capitalista hostil sempre pronto a intervir militarmente para restaurar o capitalismo O Estado sovié tico está cercado portanto não pode desaparecer A Constituição de i936 proclama o fim de toda função de repressão in terna Os opositores mudam de qualidade Não são mais inimigos de classe mas cúmplices do imperialismo É assim que se explica o fato de que a repressão tenha podido atingir o proletariado e os próprios comunistas O Partido é por excelência o órgão dessa repressão Stálin pode se proclamar sobre esse ponto continuador de Lênin para ganhar a luta de classes inten sificada ou a luta contra os agentes do estrangeiro o Partido deve reforçar o seu monolitismo Ele exerce seu poder tirânico e confere legitimidade em todos os domínios inclusive na arte Jdanov ou na biologia Lysenko Ele sabe e diz o Verdadeiro o Belo o Bem E sua autoridade se estende a todos os cidadãos pois o Estado é o Partido o Partido é o Estado INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA Jdanov A Sobre a literatura a filosofia e a música 1947 e Stálin Joseph Vissarionovitch Dju gatchvili Quesitos do leninismo artigos 1926 A crítica do stalinismo Luxemburgo Trotski Djilas A avaliação do stalinismo é condicionada pelo menos à esquerda pelo ba lanço das continuidades e descontinuidades entre MarxLêninStálin O en cadeamento salta aos olhos porque cada um pôde com certa credibilidade reivindicar o precedente Marx autoriza Lênin que autoriza Stálin Mas as rupturas teóricas não deixam por isso de existir e elas permitem fazer uma escolha no cardápio De Marx a Stálin sobre as questõeschave da Revolução e do Estado há uma sucessão de inflexões MarxEngels O EstadoPartido 215 A crítica trotskista se antecipa a todas as outras já que ganha corpo à medida que Joseph Stálin ascende Todavia outros revolucionários soube ram denunciar a ameaça burocrática antes mesmo que ela se manifestasse em toda sua dimensão E souberam fazêlo em termos de uma nitidez que Trotski jamais alcançará É assim que Rosa Luxemburgo lembra aos bolche viques que eles têm o dever de substituir a democracia burguesa pela democracia socialista e não suprimir qualquer democracia fazer com que a democracia socialista não comece somente na Terra Pro metida quando a infraestrutura da economia socialista houver sido criada lembrar que a liberdade somente para os partidários do governo somente para os membros do partido por mais numerosos que sejam não é liber dade A liberdade é sempre pelo menos a liberdade de quem pensa diferen temente Trotski não podia sequer ter acesso a essas evidências sua luta contra a burocracia carecia de base porque Trotski era objetivamente um artesão dessa burocracià Cl Lefort Em 1921 ele condena as teses da Oposição Operária sobre a democracia no partido e sobre a gestão operária confiada aos sindicatos aprova os bombardeios dos insurrectos de Kronstadt que re clamavam eleições livres para os sovietes Só a partir de 1923 é que a oposição de esquerda trotskista evoca os sintomas de degenerescêncià e as ameaças de um Termidor Trotski funda sua condenação sobre a denúncia da tese do socialismo em um só país e portanto limita sua crítica ao stalinismo ainda que a torne mais complexa com o passar dos anos Qualquer que seja a amplitude de sua análise da burocracia ele se recusa a ver nela um novo sistema de explora ção uma nova classe dirigente Ela é apenas uma casta parasitária Quando a burocracia rouba o povo estamos diante não de uma exploração de classe no sentido científico da palavra mas de um parasitismo social ainda que em grande escala O clero da Idade Média era uma classe na medida em que sua dominação se apoiava num sistema determinado de propriedade fundiária e de servidão A atual Igreja não é uma classe exploradora mas uma corporação parasitária A burocracia corresponde evidentemente a muito mais do que um sim ples parasitismo Trotski porém não o admite por temor de pôr em questão 216 História das ideias políticas o próprio bolchevismo Para valorizar as conquistas de Outubro de 1917 ele subestima o stalinismo O Estado stalinista é assim um Estado operário de generado degenerado mas operário Dizer mais para pior seria considerar que não havia sido necessário fazer a Revolução de 1917 No Leste emergiram outras críticas mais radicais Na Iugoslávia Milo van Djilas expulso da Liga dos Comunistas em 1954 por desvio burguês considera a burocracia uma nova classe dirigente Classe ela toma posse das riquezas nacionais em nome da coletividade Nova ao contrário das precedentes que só obtiveram o poder depois da formação de novas estruturas econômicas no seio da velha sociedade a buro cracia não tomou o poder para completar uma ordem econômica renovadà mas para estabelecer seu próprio sistema econômico e instaurar desse modo seu poder sobre toda a sociedade Na Polônia Kuron e Modzelewski anunciaram em 1964 uma crise geral da economia e choques entre as forças revolucionárias e a classe dominante do socialismo burocrático Classe dominante de tipo original ligada às ne cessidades de industrialização de um país subdesenvolvido A burocracia é a única a responder a essas necessidades porque é a única a poder fazer da industrialização ou seja da produção pela produ ção seu interesse de classe A burocracia política central é uma classe dominante tem o poder exclusivo sobre os meios de produção de base compra a força de trabalho da classe ope rária tomalhe através da força bruta e da coerção econômica o produto exce dente que explora para objetivos hostis ou alheios aos operários ou seja com o objetivo de ampliar e de reforçar seu poder sobre a produção e a sociedade Na Alemanha Oriental Rudolf Bahro filósofo comunista condenado a oito anos de prisão em 1977 depois de ter escrito A alternativa para uma crítica do socialismo realmente existente desenvolve uma análise marxista dos países ditos socialistas A análise nos leva a definir um conceito geral de via não capitalistà que com preende a maioria dos países que se intitulam socialistas bem como a buscar a origem dessa via não capitalista na herança do chamado modo de produção asiático É sobre isso que se funda a análise da evolução da Rússia que pas sou de um despotismo agrário a um despotismo industrial O EstadoPartido 217 Todas essas tentativas teóricas foram reprimidas já que todas iam de masiadamente longe condenando as raízes do sistema muito além dos limi tes aceitos pela chamada desestalinização INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bahro R Ialternative 19n Stock 1979 ed brasileira parcial A alternativa Paz e Terra Rio de Janeiro 1980 Djilas M La nouvelle classe dirigeante Plon 1957 ed brasileira A nova classe dirigente Agir Rio de Janeiro 1958 Kuron Modzelewski Lettre ouverte au Parti polonais 1964 Maspero 1969 Trotski Novo curso 1923 A Quarta Internacional e a URSS 1933 A revolução traída 1936 Stálin 1940 A desestalinização Em i956 o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética conde nou oficialmente mas de modo secreto o stalinismo considerado como um culto à personalidade Expressão de uma incontestável verdade mas de extrema pobreza teórica para caracterizar o sistema stalinista A autocracia de Stálin foi certamente o coroamento do sistema mas foi sobretudo sua verdade A onipotência e a onisciência de Stálin são a conclu são lógica do delírio que é a interpretação do marxismo como filosofia da história de tipo agostiniano O paralelismo com a visão providencialista de um Bossuet é chocante nessa visão um certo número de encarnações devem levar ao Fim do Tempo Em Bossuet Deus se encarna em Cristo o Cristo na Igreja a Igreja no papa aqui as massas se encarnam no proletariado o proletariado em seu partido o partido em seu secretáriogeral O chefe parteiro genial da sociedade comunista Foi necessário o de saparecimento físico do tirano e o vazio assim criado para que esse delírio fosse substituído sob a pressão das camadas de técnicos por um Estado igualmente autoritário mas que atua de modo mais matizado 218 História das ideias políticas Os limites teóricos da crítica oficial do stalinismo são diretamente de terminados pelos limites práticos da desestalinização Tratase de mudar os procedimentos sem subverter o sistema Portanto o regime stalinista conti nua a ser considerado como globalmente positivo e suas bases socialistas estão intactas Kruschev atribui exclusivamente à personalidade e aos méto dos de direção de Stálin os malefícios do período No seio dos partidos comunistas ocidentais alguns julgaram a análise um pouco limitada em função dos fatos revelados manipulação petrifica ção dos dogmas esmagamento da democracia estabelecimento de normas infernais nas fábricas deportação de populações inteiras liquidação física de milhões de pessoas comunistas ou não Assim Togliatti dirigente do Partido Comunista Italiano sublinha Supor que uma personalidade ainda que tão importante como Stálin tenha po dido mudar nosso regime social e político é contradizer os fatos o marxismo a realidade é cair no idealismo Dessa suposição Togliatti extrai importantes consequências políticas os elos que levarão ao eurocomunismo o policentrismo a afirmação de que existem caminhos nacionais para o socialismo o caminho italiano consti tucionalista democrático pluralista eurocomunista por antecipação O Partido Comunista Francês não irá tão rápido nem tão longe reser vando essas audácias a alguns dos seus membros mais ou menos marginais Roger Garaudy inspirase em Gramsci e prega um novo bloco histórico entre operários e intelectuais É expulso do PCF em 1970 Jean Ellenstein não o é Ele estuda o fenômeno staliniano segundo uma problemática na qual as condições históricas particulares da Rússia substituem o culto da perso nalidade como chave explicativa A história explica e o comunismo francês será diferente No outro polo do PCF Louis Althusser propõe um conceito ainda que provisório o desvio stalinista Ele caracteriza a Segunda Interna cional socialdemocrata pelo par humanismoeconomicismo e sugere que o stalinismo é uma forma de desforra póstuma da Segunda Internacional INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Althusser L Réponse à John Lewis Maspero 1973 ed brasileira Resposta a John Lewis in Posições 1 Graal Rio de Janeiro 1978 p1371 Ellenstein J Le phénomene stalinien Grasset 1976 O EstadoPartido 219 Garaudy R Le grand tournant du socialisme Gallimard 1970 col Idées ed brasileira A grande virada do socialismo Civilização Brasileira Rio de Janeiro 1971 Lazitch B Le rapport Khrouchtchev et son histoire Seuil 1979 col Points Togliatti P Le Testament de Togliatti Maspero 1964 ed brasileira Memorial de Ialta 1964 in Togliatti Socialismo e democracia Obras escolhidas 19441964 Muro Rio de Janeiro 1980 p22535 Dissidências Os eurocomunistas e alguns outros discutem ainda sobre a natureza do sta linismo seus efeitos suas sequelas Mas a margem se estreita até onde é possível empenharse na denúncia de um regime para o qual se conserva a etiqueta de socialista A dissidência se situa além ela indica uma ruptura Os dissidentes se colocam fora do sistema e de seu fundamento ideológico Não esperam mais a liberalização da desestalinização não sonham mais com uma reforma interna Indicam diretamente o caráter monstruoso do Estado socialista que perdura e se fortalece Hungria 1956 Polônia 1956 Tchecoslováquia 1968 Polônia 1970 Po lônia 1980 em todos os casos revoltas antitotalitárias sublevações da classe operária contra si mesma ou seja contra o Estado que pretende encarnála em todos os casos fermentos da dissidência dilacerações flagrantes dos dis cursos sobre o Estado da classe operária em processo de extinção Ao mesmo tempo paradoxalmente imenso sofrimento indizível ironia a dissidên cia se apodera da arma legalista A partir do processo contra Siniavski e Da niel 1966 criamse comitês que reclamam a aplicação das Constituições das leis da Declaração Universal dos direitos do homem Desse movimento surge também uma obra literária e política Também aqui só há novidade para os que se recusavam a saber Desde os anos 1930 Boris Souvarine denunciava o assassinato das liberdades e o extermínio da elite camponesa Ele apresenta a incrível cifra de dez a 15 mi lhões de deportados Hoje a dissidência quebrou a intransponível barreira entre o amigo e o inimigo o silêncio não dita mais a lei Os testemunhos e análises se multiplicam Sob formas novas Vejamos o que diz Zinoviev em Os cumes escarpados 1977 Não é de se excluir que existam situações onde todo um povo é culpado de um crime contra um único indivíduo Isso é casuística diz ela É essa casuística que funda toda a civilização do Direito diz ele Mas se os interesses do povo diz ela Então todo o código não passa de uma grande palhaçada diz ele Uma sociedade cujo slogan oficial é que os interesses do povo estão acima dos interesses dos indivíduos é uma sociedade sem Direito Pura e simplesmente Anticomunismo radical que não evita apreciações heréticas Na época do stalinismo o país conheceu uma promoção sem precedentes na história da humanidade milhões de pessoas deixaram as camadas inferiores da sociedade para se tornarem contramestres engenheiros professores médicos atores oficiais pesquisadores escritores etc Victimes et complices Le Monde 22 de dezembro de 1979 A despeito de todos os seus horrores o stalinismo foi um autêntico poder do povo Zinoviev ibid Em 1976 Pinochet e Brejnev trocaram seus dissidentes o comunista chileno Corvalán e o louco soviético Bukovski Confissão que a seu modo Bukovski revela Por que você não se levanta quando um chefe entra Economizo minhas forças Sete dias de prisão como castigo Por que você não quer trabalhar Com 450 gramas de pão não se resolve muita coisa Lembrese de que durante a guerra no tempo do bloqueio os habitantes de Leningrado recebiam apenas 200 gramas por dia e apesar disso trabalhavam Ou seja eles mesmos se comparavam aos fascistas INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bukovski V Et le vent reprend ses tours Laffont 1978 Soljenitsin A Larchipel du Goulag Le Seuil 3 vols 197476 ed brasileira O arquipélago Gulag Difel São Paulo Zinoviev A Lavenir radieux LAge dhomme 1978 CAPÍTULO VII O Estado Força Estado total poderíamos dizer se a expressão não convidasse a confundir fascismos e socialismos Estado racial se ela não induzisse a uma assimilação abusiva da Itália mussoliniana com a Alemanha de Hitler EstadoPovo se essa tradução do alemão volklisch não privilegiasse apenas um termo povo em detrimento do outro raça quando precisamente a palavra volklisch os funde Portanto usaremos EstadoForça embora todo Estado funcione em maior ou menor medida com base na coerção e o faremos porque o na zismo os fascismos e as doutrinas contrarrevolucionárias que os precederam ou os acompanharam têm em comum a luta por um Estado forte que não seja limitado pelo direito sem nem mesmo apresentar a desculpa ou o pre texto de sua futura extinção Isso não anula que entrecruzamentos ocorram nem que toda classifica ção tome partido Ainda que no caso em pauta seja possível reivindicar a seriedade da análise para escapar à alternativa corrente em virtude da qual seria preciso ou confundir stalinismo e nazismo sob todos os pontos de vista ou passar por um defensor do Gulag É verdade que Mussolini começou como socialista revolucionário e que não precisou de nenhuma ruptura radical para chegar ao fascismo como também é verdade que Maurras por suas nostal gias ligase mais a Chateaubriand do que a Hitler A história das ideias con vida a uma pluralidade de associações mas como se disse o jogo das filiações importa menos do que a revelação dos efeitos reais produzidos por esse ou aquele pensamento Charles Maurras não atraiu ninguém para o liberalismo democrático ao contrário ele não foi estranho à aceitação do nazismo por boa parte das elites políticas econômicas e intelectuais francesas O mesmo problema se coloca mas com um risco ainda maior de arbi trariedade no que se refere às ideologias mais novas mais recentemente formuladas as quais por definição são excessivamente jovens para ter produzido seus efeitos sobretudo na medida em que permanecem margi nais ou minoritárias A nova direita não reivindica sua inclusão de resto 221 222 História das ideias políticas contestável na linhagem nazista O elitismo argumentado pela biologia ins crevea indubitavelmente na continuidade contrarrevolucionária mas alguns liberalismos também se construíram com base no culto da elite Contudo ela será incluída nesse capítulo porque na configuração ideológica do século que acaba ela ocupa um lugar análogo ao dos contrarrevolucionários do fim do século XIX e dos fascistas dos anos 1930 A nova direita remete à antiga sem que o fascismo possa ser considerado como um simples parêntese A D I REITA CONTRARREVO LUCIONÁRIA DO NACIONALISMO AO RACISMO O nacionalismo integral A direita francesa da primeira metade do século XX é dominada pela perso nalidade de Charles Maurras Uma das maiores forças intelectuais de nosso tempo Malraux um dos mestres de nossa geração Mauriac meu mes tre Montherlant Num período marcado pela crise das democracias parla mentares e do capitalismo na Europa o papel desempenhado pela doutrina maurrasiana revelouse complexo para não dizer contraditório É habitual sublinhar as diferenças até mesmo as incompatibilidades entre o naciona lismo integral e as ideologias fascistas Com efeito veremos que o aspecto rea cionário do maurrasismo opunhase à revolução fascistâ mas em seguida iremos precisar como a direita francesa foi igualmente revolucionária e pré fascista No final das contas se o nacionalismo francês afastou a França do fas cismo não deixou por isso de forjar as origens francesas do fascismo 1 A unidade do pensamento maurrasiano e mais ainda da direita fran cesa anterior à Segunda Guerra Mundial repousa em sua determinação con trarrevolucionária Contra a Revolução Francesa antes de mais nada contra a revolução bolchevique como é evidente mas na maioria dos casos de modo acessório contra o igualitarismo que as une a Ação Francesa pregou uma contrarrevolução política e social Contra julho de 1789 em favor de julho de 1940 Ela aspira a um Estado forte talvez cúmplice do Estado fascista mas diferente dele A contrarrevolução política condena os ideais da Revolução Francesa e lhes opõe as virtudes da monarquia 1 Para retomarmos o pertinente subtítulo do livro de Zeev Sternhell La droite révolutionnaire 18851914 Paris Le Seuil 1978 col TUnivers Historique O EstadoForça 223 Por um lado Maurras se contenta em retomar os argumentos do tradi cionalismo contra a democracia Como Burke Bonald e Maistre 1789 lhe pa rece antinatural na medida em que a natureza se identifica com a continui dade da ordem histórica Mas o historicismo de Maurras é laicizado Sabese que Maurras não chegou a crer e recusouse a abandonar seu ateísmo2 em bora ele contivesse grandes inconvenientes políticos 3 O cristianismo lhe era particularmente insuportável Há no Evangelho um almanaque para formar um bom demagogo anarquistà Ele depôs os poderosos Ele cumulou os famintos de bens Ele expulsou os ricos depois de têlos despojado etc Todavia se Maurras recusava o Cristo judeu cercado de judeus obscuros cobria de louvores a Igreja Católica por ter implantado uma construção de or dem de razão de sabedoria de autoridade e de conservadorismo a partir de uma mensagem confusa judaica oriental anarquista A Igreja soube defor mar violar e trair as Escrituras subversivas essa foi sua genialidade política Vêse aqui a roupagem modernista de Maurras o seu positivismo Pouco lhe importa em última instância ter de crer em Deus para apoiar a Igreja já que a influência política dessa é benéfica Do mesmo modo ele denuncia o irracionalismo da Revolução Decerto Burke já voltara a Razão contra seus filósofos mas através de uma definição da razão pelos preconceitos reto mada por Taine a natureza e a história escolheram previamente por nós ou Barres vamos nos vestir com nossos preconceitos eles nos aquecem ou em outras palavras através de uma recusa da inteligência essa pequena coisa na superfície de nós mesmos Ao contrário Maurras apela para a in teligência clássica para a razão positiva experimental prática e é em nome da civilização laboriosa construção da razão que ele denuncia a Revolução Foi pela análise dos últimos erros literários do romantismo que fomos le vados e até mesmo arrastados ao estudo do erro moral e político de um Estado em revolução Odiando o romantismo bárbaro por ser estranho às letras clássicas preferindo os impulsos à razão a desordem e a indisciplina à ordem grecolatina Maurras chega a recusar a Revolução já que o roman tismo não passa de uma consequência literária filosófica e moral da Revo luçãd Raciocínio surpreendente pouco suscetível de arrastar as massas e referência à razão positiva que pretenderá ser um dique contra as torrentes irracionais do fascismo 2 Se deixamos de lado sua conversão in extremis arrancada em seu leito de morte pelo abade Cormier e ao qual Maurras concedeu Estou cansado de raciocinar 3 A Ação Francesa recrutava o grosso de sua clientela nos meios católicos O ateísmo de Maurras implicou a condenação do seu movimento e a excomunhão de seus membros entre 1927 e 1939 224 História das ideias políticas Esse moderantismo reacionário reencontrase no monarquismo da Ação Francesa A monarquia é necessária pois somente o rei pode salvar a França O princípio monárquico é superior é imposto pelo nacionalismo pela here ditariedade Uma vez colocada a vontade de conservar nossa pátria francesa como postu lado tudo se encadeia tudo se deduz de um movimento inelutável A fantasia a própria escolha não desempenham nisso nenhum papel se você está resol vido a ser patriota terá obrigatoriamente de ser monarquista A razão o quer É preciso seguila e ir até onde ela conduz Charles Maurras Mes idées poli tiques 1937 p280 Essa geração marcada pela derrota de 1870 imputava a responsabilidade de tal derrota à deriva democrática impotente em face do autoritarismo prus siano Um país democrático não pode ser bem governado bem adminis trado bem comandado Ernest Renan La Réforme intellectuelle et morale de la France 1871 Se o nacionalismo exige a pirâmide das obediências e por tanto a hierarquia monárquica a hereditariedade a justifica Nascese juiz ou mercador militar agricultor ou marinheiro O príncipe é assim uma varie dade social do tipo do homem A hereditariedade confere ao poder a força a duração e a continuidade das quais carece cruelmente o regime democrático Em que o monarquismo maurrasiano se afastaria do fascismo Em pri meiro lugar ele desviaria os seus adeptos dos movimentos de massa fascis tas O monarca hereditário não tem muito a ver com o chefe carismático que inflama suas coortes Os caininhos propostos pela Ação Francesa para a to mada do poder permaneciam relativamente tranquilos pelo menos no plano verbal O momento doutrinário predominava sobre tudo política antes de mais nada Advertido pela derrota boulangista Maurras tirou a seguinte conclusão Não há nenhuma possibilidade de restauração da coisa pública sem doutrina Os partidários do nacionalismo integral portanto eram con vidados a propagar a doutrina Num segundo momento com os progressos da mentalidade conspirativà chegou a hora do golpe de forçà Maurras atrasa um século e oferece como modelo Mademoiselle Monck publicado em 1910 com um prefácio de Andre Malraux uma bela mulher convencida por seu amante a apoiar Luís XVIII e que soube persuadir Talleyrand a ade rir aos Bourbon Assim como se lamentava Georges Valois Maurras em vez de organizar as forças nacionais para a conquista do poder sempre con siderou que atuaria através do espírito sobre o Homem militar ou civil que daria o golpe O EstadoForça 225 Por outro lado a concepção maurrasiana do Estado monárquico está bastante longe da concepção do Estado fascista Ela não se apoia numa mo bilização popular o que lhe tira a componente de massa própria dos fascis mos Barres compreendera isso afirmando que uma inteligência julgando in abstracto adota o sistema monárquico que constituiu o território francês Resposta a Maurras in Enquête sur la monarchie 1900 mas considerava indispensável aceitar a Revolução Para além da questão do regime Maurras desejava a restauração de um Estado forte mas evitava o estatismo e não aderiu à concepção totalitária do Estado Quando o Estado se torna tudo o Estado não é mais nada Embora tenha apreciado Mussolini não aceitou a estatolatria mussoliniana segundo a qual tudo está no Estado nada contra o Estado nada fora do Estado Maurras considera ao contrário que a socie dade tanto espiritual como temporal é anterior lógica e historicamente ao Estado Se retomarmos a classificação dos tipos de Estado proposta em 1934 pelo jurista nazista Ernst Rudolf Huber veremos que Maurras se situa em última instância na categoria não fascista4 A Sociedade domina o Estado Estado dos partidos democracias Estado de um partido bolchevismo O Estado domina e forma a sociedade Estado absoluto Itália fascista Estado e Sociedade reunidos numa unidade nova Estado volklisch Alemanha nazista O nacionalismo integral se alimentava mais da fonte liberal afirman do que o Estado e a sociedade são coisas distintas A sociedade começa pela família sua primeira unidade Continua no município na associação profissional e confes sional na variedade infinita de grupos corporações companhias e comunida des na ausência dos quais toda vida humana desapareceria O Estado é apenas um órgão indispensável e primordial da sociedade O Estado qualquer que seja ele é o funcionário da sociedade Maurras Mes idées politiques 1937 p122 E Maurras irá encontrar acentos tocquevillianos para pregar uma monar quia descentralizada O corporativismo só aparentemente aproxima o na 4 Sobre essa tipologia ver JeanPierre Faye Langages totalitaires 1972 226 História das ideias políticas cionalismo francês do fascismo pois se trata de dois tipos diferentes de cor porativismo Natureza da corporação Extensão do corporativismo Criação Estruturas e poderes Designação dos dirigentes Corporativismo fascista Engrenagem política Conjunto da sociedade Obrigatória Decididos pelo Estado Homologados pelo Estado Corporativismo associacionista Instituição social Domínio profissional Facultativa Definidos pelos interesses Designados pelos interessados No sistema fascista as corporações são um instrumento em mãos do par tido único para permitir ao Estado estender seu controle sobre a sociedade subordinada A política estende sua dominação sobre todas as esferas da vida Para o nacionalismo integral tratase ao contrário de subtrair o domínio so cial das paixões e dos interesses da políticà Nesse sentido e mais uma vez é por se pretender reacionário que o nacionalismo francês impedese de ser fas cista A modernidade do estatismo levado às suas mais extremas consequên cias pelo fascismo ele opõe a nostalgia das corporações do Antigo Regime Dito isso e recordadas essas diferenças Maurras não teria interessado tanta gente se se limitasse a lamentar o desaparecimento das corporações profissionais ou a defender o retorno do duque de Orléans ao trono Se o dis curso nacionalista dessa direita se limitasse aos arcaísmos evocados acima não teria feito mais do que abalar o consenso sobre a democracia parlamen tar Mas ele carreava igualmente um delírio racista tanto mais aceitável na medida em que era acompanhado pelas abstrações mais moderadas sobre as virtudes do classicismo INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Barres M Les déracinés 1897 Scenes et doctrines du nationalisme 1925 Maurras C Enquête sur la monarchie 1900 Mes idées politiques 1937 Dictionnaire politi que et critique editado por Pierre Chardon Fayarcl 193235 5 vols Sternhell Z Maurice Barres et le nationalisme français Colin 1972 Weber E EAction Française Stock 1962 O EstadoForça 227 O racismo préfascista Era algo corrente no século XIX se ser racista e não ocultar demasiadamente o fato A esquerda teve seus antissemitas entre os quais várias figuras do so cialismo francês Fourier observou Os judeus se arrogam o título de povo de Deus e foram o verdadeiro povo do inferno Seu discípulo Alphonse de Toussenel publicou em 1845 Os judeus reis da época História da feudali dade financeira em 1848 participou na Comissão de Trabalho implantada por Louis Blanc Proudhon ia mais longe O judeu é o inimigo do gênero humano É preciso fazer com que essa raça volte para a Ásia ou teremos de exterminála E moderando sua posição diz Tole rar os anciãos que não geram mais Blanqui não está longe de partilhar esse ponto de vista O sufrágio uni versal é uma coisa já julgada É a entronização definitiva dos Rothschild o advento dos judeus Seu adjunto o comunardo Tridon publicou Sobre o molochismo judeu Bruxelas 1884 cujo programa exorta a raça indoariana a combater o espírito e as ideias semíticas Com Edouart Drumont o racismo passa para a direita O antissemi tismo deixa de ser um complemento primitivo mas secundário do antica pitalismo para se tornar seu sustentáculo A França judaica 1885 pretende demonstrar que os judeus introduziram o capitalismo na França por causa de sua qualidade racial O antissemitismo jamais foi uma questão religiosa foi sempre uma questão econômica e social Não nos deixemos enganar se o judeu é o inimigo social isso resulta de sua raça O semita é negociante por instinto tem a vocação para o tráfico a genialidade para tudo o que for troca para tudo o que for oportunidade de enganar seu semelhante O ariano é agricultor monge e sobretudo soldado a guerra é seu verdadeiro elemento ele corre alegremente para o perigo desafia a morte La France juive Flammarion 1885 p10 Essa dicotomia delirante dirigiase ao mesmo tempo às massas oprimi das pelo capitalismo e aos aristocratas expropriados pela burguesia A Ação Francesa não se enganou de modo algum As duas paixões plebiscitária e antissemita são certamente as únicas forças revolucionárias que o naciona 228 História das ideias políticas lismo pode opor atualmente ao parlamentarismo que nos entrega ao estran geiro Henri Vaugeois Os judeus não são somente responsáveis pelo capi talismo mas também pela Revolução Francesa Com efeito Maurras escreve sem rir que a Revolução procede na França de um esforço do Estran geiro e de seus prepostos com o objetivo de expulsar o indígenà Ela nos submete às dinastias judaicas e metecas O racismo maurrasiano pregava quatro grandes exclusões atacando os metecos ou seja os estrangeiros quaisquer que sejam mas sobretudo os que vêm do Leste desse Oriente que obcecava Maurras o Oriente obscuro apaixonado de influências dissolutas hostil à Razão contra os grandes bárbaros brancos surgidos em cerrado turbilhão da floresta das Ardenas os francomaçons malditos pelo antidemocratismo numa época em que a francomaçonaria era a armadura ideológica da República em que todo professor tendia a ser o padre racionalista da Igreja democrática os protestantes ainda que esses fossem mais liberais do que revolucionários e por vezes até conservadores no cenário político francês basta pensar em Guizot que morreu afirmando O sufrágio universal nunca mas que eram individualistas e adeptos de uma teologia que suprimia a Igreja a melhor para deixar cada cristão em sua subjetividade diante de Deus o pior os judeus que concentravam todas as taras metecos já que frequente mente recémimigrados alemães pois frequentemente provenientes dessa Alemanha odiada usurários e por isso responsáveis pelas dificuldades da aristocracia rural bolcheviques já que Marx Trotski Rosa Luxemburgo Zinoviev etc eram judeus Veremos as justificações apresentadas por esse racismo cf infra a bioi deologia do darwinismo social à sociobiologia O importante aqui é subli nhar que ele ia de mãos dadas com uma tentativa de recuperação do socia lismo que fará precisamente a originalidade do fascismo mussoliniano ou hitlerista A aliança dos sorelianos e dos maurrasianos franceses suscitou na Itá lia um entusiasmo que dificilmente se pode imaginar hoje Sternhell No início do século XX foi na França que se operaram ou foram tentadas as primeiras junções entre o movimento operário e o nacionalismo entre a ex trema direita e a extrema esquerda Maurras considera que um socialismo libertado do elemento democrático e cosmopolita pode casarse com o na cionalismo como uma luva benfeita com uma bela mão um socialismo an tidemocrático um socialismo nacional Georges Valois organizará então essa Partido Popular Francês 230 História das ideias políticas abertura operária da Ação Francesa Ele escreve A monarquia e a classe ope rária 1914 para justificar a recuperação corporativista do sindicalismo O movimento sindicalista substitui a poeira de indivíduos que quer encontrar acima dela o Estado republicano por agrupamentos profissionais sobre os quais se apoia a tradicional monarquia francesa Outros monarquistas so ciais como Firmin Bacconier elaboram os princípios do Estado corporativo que serão aplicados pelo fascismo italiano Em outras palavras se a França não conheceu regime fascista foi pro vavelmente por causa de suas estruturas mentais e sociais de seu desenvol vimento histórico próprio não foi certamente por não ter possuído inte lectuais fascistas nem por não ter conhecido doutrinários corporativistas nacionalistas e racistas Podese admitir que esse racismo constituiu um préfascismo No pe ríodo entre as duas guerras ele reaparecerá na maioria dos grupos fascistas ou de extrema direita franceses hoje esquecidos mas dos quais se pode re sumir a existência Com exceção de Doriot egresso do Partido Comunista todos esses mo vimentos sofreram em maior ou menor medida a influência do maurra sismo Numerosos de seus aderentes chegaram a colaborar com a Alema nha nazista apesar de seu nacionalismo apesar da germanofobia da Ação Francesa O antissemitismo levará o próprio Maurras a desejar a vitória do inimigo eterno pois se os angloamericanos ganhassem isso significaria o retorno dos francomaçons dos judeus e de todo o pessoal político elimi nado em 1940 IAction française 8 de maio de 1944 Na prática portanto o nacionalismo francês levou à aceitação do nazismo considerado como preferível às perversões da democracia parlamentar Na prática a ideologia racista difundida pela direita francesa sob a Terceira República tornou o na cionalsocialismo aceitável FASCISMOS NAZISMOS 1 NTERPRETAÇÕES Hitler vê o jovem judeu de cabelos negros espiar durante horas com o rosto iluminado por uma alegria satânica a jovem inconsciente do perigo que ele suja com seu sangue emasculando assim o povo de onde ela provém As sim como ele corrompe sistematicamente as mulheres e as moças não teme derrubar as barreiras que o sangue põe entre os outros povos Lendo essas linhas neuróticas em Mein Kampf o historiador das ideias tende a negligenciar a importância da ideologia nazista e a buscar em outro O EstadoForça 231 ponto a explicação de seu sucesso Uma oportunidade histórica prodigiosa deu uma força de penetração e uma celebridade extraordinária a uma obra intrinsecamente medíocre JJ Chevalier Como se a nulidade de uma ideo logia devesse levar à sua ineficácia A vantagem desse tipo de reação é que ela estimulou a pesquisa plural de explicação dos fascismos o inconveniente é que afastou a questão da ideologia O fascismo contudo não se reduz a um evento do qual seria preciso buscar as causas nem a um fenômeno do qual caberia revelar as manifestações é também uma ideologia Uma O fascismo italiano e o nazismo diferem de modo evidente e seria absurdo assimilar a doutrina de extermínio do segundo ao nacionalismo principalmente gro tesco inclusive em seu totalitarismo do primeiro Independentemente dessa oposição um e outro foram objeto de tentativas de explicação idênticas cujo inventário mesmo simplificado permite descobrir a diversidade das abor dagens de uma concepção política Sem pretender resumir todas as obras publicadas sobre o problema do fascismo podese a partir das sínteses historiográficas mais recentes5 de duzir cinco tipos de explicação que se aplicam prioritariamente ao nazismo frequentemente ao fascismo italiano por vezes aos outros fascismos da Eu ropa e inclusive a manifestações situadas em outros locais A explicação culturalista O procedimento consiste em buscar inicialmente a chave do fascismo nas especificidades nacionais dos países que o adotaram Esse tipo de interpre tação é aplicada à Itália mussoliniana dos primeiros anos tanto mais facil mente na medida em que a Alemanha ainda não era nazista Sob sua forma mais rudimentar a análise remete ao desvendamento de um mal nacional do qual o fascismo seria a manifestação paroxística O sucesso dos grupos fascistas italianos tornase assim a última explosão de um mal enraizado entre os italianos constituído pelo hábito da insubordinação pela ausência de sentimento cívico pela corrupção em suma por vícios nascidos de séculos de governo despóticd N Valeri A tese do mal italiano ou alemão ou espanhol não remonta forçosamente até a penumbra da psicologia dos povos Pode também explicálo pelas particularidades da história nacional 5 Cf Renzo de Feiice Comprendre le fascisme Paris Seghers 1975 e Pierre Ayçoberry La question nazie Les interprétations du nacionalsocialisme 192275 Paris Le Seuil 1979 232 História das ideias políticas com o risco de cair no ultradeterminismo histórico tudo o que o precedeu levou quase inevitavelmente ao fascismo O historiador americano Dennis Mack Smith vê assim na história da Itália entre 1861 e 1922 a continuidade de uma ditadura parlamentar italianà que apresentou somente diferenças de grau sob Cavour Depretis Crispi ou Giolitti Mussolini tornase o herdeiro legítimo deles Um enfoque análogo pondo o acento nas culturas políticas buscou a chave do nazismo no espírito alemão inclusive na alma germânica Uma fi liação é então estabelecida entre o luteranismo e o nacionalsocialismo A so ciologia empírica constata que o voto nazista foi maciço nas regiões protes tantes a história factual confirma que uma maioria dos membros da Igreja Protestante aceitou a depuração dos pastores não arianos o historiador das ideias explicará o todo pelos efeitos políticos da religiosidade luterana que reserva a liberdade à consciência individual e convida à submissão ao poder exterior qualquer que seja ele Supõese que o próprio misticismo protes tante tenha favorecido a submissão ardente dos alemães à mística profanà que foi o nazismo O prussianismo é igualmente invocado na medida em que teria engendrado a uniformização a submissão irrefletida em face das autoridades todos os tipos de pulsões e de paixões malsãs Meinecke Bismarck prepara Hitler ao inculcar o culto da razão de Estado A versão mais explosiva dessa tese foi elaborada pelo germanista fran cês Edmond Vermeil segundo o qual toda a história alemã é dominada pelo romantismo organizado Antes da chegada de Hitler ao poder romantismo e organização enfrentaramse incessantemente e na verdade existem duas Alemanhas a do Nordeste racional uniformizada sob o jugo dos fidalgos e portanto prussiana e a do Sudeste particularista fragmentada povoada por pequenos camponeses romântica O nazismo teria germinado a partir desse dualismo fundamental que ele integra em sua dinâmica e sua agres sividade tende a resolver a dilaceração criada ao longo da história alemã Tratase de um militarismo radical que induz a Alemanha à exaltação ab surda de suas taras mais inveteradas Vermeil A explicação alemã conhece variantes mais grosseiras apesar das aparências O sociólogo americano Tal cott Parsons assim irá explicar o sucesso hitleriano pela crise do sistema de valores tipicamente alemão que resultaria de sete características germânicas um persistente feudalismo uma poderosa burocracia um estilo de governo luterano a dominação dos lobbies sobre os partidos uma indústria burocra tizada uma inclinação particular pelos títulos honoríficos e finalmente re O EstadoForça 233 lações familiares muito formais compensadas por amizades viris A Alema nha traumatizada pela derrota de 1918 e pelas crises que se seguiram teria ingressado num estado de anomia de ruptura do sistema de valores de onde surgiu então o nazismo Levado ao limite esse tipo de problemática chega a explicar o comportamento dos oficiais SS como o fez um psiquiatra fran cês no Processo de Nuremberg ele não descobria nos SS nenhum sintoma de doença mental mas um temperamento profundamente mau devido ao choque da civilização clássica e cristã com uma forma particularmente te mível e aguda de germanismo A interpretação do nazismo então passa a ser claramente dominada pelas exigências da luta contra a Alemanha INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Meinecke F Die deutsche Katastrophe Wiesbaden 1946 Vermeil E IAllemagne essai dexplication Paris 1945 A explicação pelo totalitário À guerra mundial cedo sucedeu a guerra fria Mudam as necessidades e aparece a explicação totalitária Nos antípodas das análises precedentes o nazismo não é mais relacionado às profundezas da alma alemã mas confun dido com as ditaduras de massa dos tempos modernos quer sejam negras ou vermelhas fascistas ou comunistas Portanto a denúncia do totalitarismo supõe pelo menos implicitamente que um só sistema político deve ser reco nhecido como legítimo a democracia pluralista ocidental Compreendese por que os precursores da explicação pelo totalitário situavamse na direita antifascista Hermann Rauschning antigo governador nazista de Danzig hoje Gdansk é também um dos primeiros a enxergar por trás da cruz gamada a bolchevização o socialismo de Estado o Império militar e totalitário As sim como certos homens de direita aceitaram o nazismo porque o avaliaram num primeiro momento como um anticomunismo outros conservadores o rejeitam por ver nele antes de mais nada um criptocomunismo No furor dos anos 1930 ainda é a Revolução de Outubro que determina as reações diante de Hitler A década que se seguiu deu a palavra aos politólogos os quais constroem modelos mais abstratos aparentemente mais neutros Hans 234 História das ideias políticas Kohn dera o tom ao ser o primeiro a sistematizar os pontos comuns e as di ferenças entre comunismo e nazismo Seu modelo ditatorial pode ser assim resumido Identidade social chefes apoio Identidade ideológica Diferenças no tipo de ditadura Comunismo Nazismo Egressos das classes inferiores Grupos sociais opostos às classes dirigentes Luta contra todas as religiões Pretensão à verdade absoluta Vontade de ser a juventude do mundo Ditadura racional inter nacionalista provisória em nome da liberdade Ditadura carismática nacionalista permanente em nome da nação A medida que a tese do totalitarismo toma corpo as diferenças entre sovietismo e hitlerismo são cada vez mais minimizadas ou mesmo intei ramente silenciadas Suas condições de emergência são apresentadas como idênticas centralismo estatal ascensão das massas crises da religião e da democracia derrotas militares tudo isso se conjuga para deixar o campo aberto à ditadura Seus resultados se confundem monopolização da dire ção de todas as atividades humanas públicas ou privadas pelo partido e seu chefe apoio nas classes médias inferiores para fundir todas as classes cria ção de uma Igreja missionária inteiramente voltada para seu novo Deus o do sangue e do solo ou o do materialismo Hannah Arendt que foi quem melhor aprofundou a noção de totalita rismo concebeo em última instância como uma lógica da demência Pouco importam a tradição nacional ou a fonte particular de sua ideologia o regime totalitário transforma sempre as classes em massas substitui o sistema de partidos não por ditaduras de partido único mas por um movimento de massa desloca o centro do poder do exército para a polícia e instaura uma polí tica exterior que visa abertamente à dominação do mundo A demência o não senso ou o supersenso supersense resulta do fato de que a racionalidade não explica as opções totalitárias Quando Heydrich escreveu a Hitler para lhe pedir que adiasse o extermínio dos judeus tche cos porque ele precisava de mão de obra e quando propôs que eles fossem O EstadoForça 235 transformados em carne para salsichas mas somente dentro de um ou dois anos recebeu uma resposta negativa Quando quadros nazistas justificaram a eutanásia para eliminar bocas inúteis foram chamados à ordem a elimina ção dos deficientes físicos ou mentais justificase apenas por considerações éticas O terror totalitário não busca tanto conquistar o mundo por motivos de potência mas antes para provar a legitimidade de seu movimento para tornar o mundo coerente ou seja conforme à concepção que dele têm os totalitários Outro modo de dizer a mesma coisa esses dementes são recrutados en tre os marginais O sociólogo americano Daniel Lerner estudou a origem so cial dos quadros nazistas a partir do Anuário do Terceiro Reich e construiu um índice de marginalidade pelo acúmulo de várias variáveis instabilidade profissional casamento em idade anormal precoce ou tardia juventude fracassos escolares e universitários nascimento numa região de fronteira etc Aplicando esse índice às diferentes categorias de responsáveis nazistas encarregados da administração da propaganda ou da repressão descobriu que todos os grupos possuíam um índice de marginalidade superior a 75 Os animadores do totalitarismo eram recrutados na nova classe média fun cionários profissionais liberais gerentes e mais especificamente entre os marginais desses grupos intermediários Alguns anos mais tarde D Lerner aplicou o mesmo método aos partidos comunistas russo e chinês Obteve re sultados análogos com o que se demonstra que a elite totalitária é marginal tem a mesma composição tanto entre os vermelhos como entre os negros cf Daniel Lerner The Nazi Elite Stanford 1951 The coercitive ideologists in perspective in World revolutionary elites 1965 Último modo de chegar à mesma conclusão fascismo e comunismo decorrem de um único sistema o sistema totalitário Carl J Friedrich o ca racteriza segundo um modelo de cinco faces o que se poderia chamar uma sociedade pentagonal ou melhor uma destruição pentagonal da sociedade Pela primeira vez na história um regime político acumula cinco monopó lios e controla sozinho a ideologia o Estado a política o Exército e os mass media Os três últimos monopólios tornaramse possíveis graças ao desen volvimento técnico os dois primeiros aos progressos educacionais os quais segundo Friedrich aumentam as necessidades de certeza e portanto a pre disposição à submissão As sociedades totalitárias levam ao limite máximo as taras das sociedades técnicas do mundo contemporâneo das quais se dis tinguem apenas pela unificação dos instrumentos que nos regimes demo cráticos conservamse separados Monopólio ideológico milenarismo oficial Monopólio dos media controle dos meios de comunicação Monopólio político partido único Direção centralizada da sociedade pelo Estado História das ideias políticas Monopólio policial controle terrorista da população Monopólio militar controle dos meios de combate A acumulação desses monopólios por uma só força leva ao quase de saparecimento da sociedade civil e a uma supressão do homem privado O conteúdo social dos regimes decerto pode variar a finalidade que eles atri buem às suas ideologias pode ser oposta mas seus métodos são tão idênticos que é possível caracterizálos através dessa maneira totalitária de agir Não se trata apenas de uma aproximação formal de violações da democracia já que os totalitarismos diferem dos despotismos tradicionais e organizam ditadu ras de massa de tipo inteiramente inédito Ao pentágono de Friedrich 6 poderia corresponder o triângulo de Carl W Deutsch 7 O totalitarismo tende a funcionar segundo três fases 2 Unidade de comando 1 Mobilização total 3 Eficiência da execução 6 Carl J Friedrich Totalitarianism 1954 Dictature totalitaire 1956 7 Carl W Deutsch in ibid Cracks in the Monolith and pattern of desintegration in totalita rian systems O EstadoForça 237 Mas cada uma dessas fases põe problemas a primeira exige a destruição permanente sob pena de esclerose a segunda sobrecarrega o chefe a última oscila entre o terror e a persuasão O totalitarismo cria assim suas próprias divisões e as condições de sua desintegração Conclusão otimista à qual se opõe o esquema bipolar de Zbigniew Brzezinski racionalidade e objetivo revolucionário constituem os dois polos do totalitarismo decerto eles estão em estado de tensão quase permanente mas tecnocratas preocupados com a conservação e fanáticos da uniformização permanecem solidários É em conjunto que eles fazem com que o sistema funcione e seria absurdo supor uma liberalização desse sistema somente por causa da ascensão dos tecno cratas O assessor do presidente Carter irá se recordar do que escrevera 20 anos antes quando não era mais do que um politólogo 8 Curiosamente foram historiadores da Alemanha Ocidental que puse ram em questão algumas simplificações da teoria do totalitarismo subli nhando as oposições entre comunismo e nazismo Nazismo Comunismo Sociedade industrial agrária Classe dominante defesa do capital destruição do capital Ideologia racismomanipulação socialismoprodução Classe dirigente fechada elite ampliação progressiva Terror militar selecionador policial inquisitorial exterminador confissão Resultado pura destruição construção de uma sociedade INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Arendt H Le systeme totalitaire Le Seuil 1972 terceira parte de The origins of Totalita rism Nova York 1951 col Politique Besançon A Présent soviétique et passé russe Le Livre de Poche 1980 Kohn H Dictatorship in the Modern World Minneapolis 1935 Rauschning H La révolution du nihilisme 1937 reed Gallimard 1980 8 Z Brzezinski Totalitarism and rationality American political science review 1956 O ex purgo permanente 1956 A explicação econômica Bettelheim Guérin Poulantzas Nos antípodos das confusões institucionais ou das assimil ações segundo os procedimentos o economicismo opõe radicalmente o fascismo à revolução socialista até colocar essa oposição antes de qualquer outra coisa o fascismo do qual o nazismo é apenas uma variante constitui a contrarrevolução do século XX o tipo contrarrevolucionário novo que corresponde à nova fase do capitalismo o imperialismo monopolista Os marxistas desse modo deslo cam a análise para um terreno mais favorável que apresenta a imensa vant agem de eludir os pontos comuns entre os Gulags e a peste marrom e de sublinhar ao contrário a incontrolável diferença entre eles ou melhor seu antagonismo Last but not least privilegiar o econômico permite denunciar ao mesmo tempo as cumplicidades do capital no advento do fascismo e uma das mais sensíveis debilidades da tese totalitária como confundir a estatização soviética e a manutenção da propriedade privada dos meios de produção na Alemanha na Itália ou na península Ibérica O núcleo invari ante das análises marxistas do fascismo relacionao à crise estrutural do capitalismo desenvolvido a ditadura fascista corresponde a uma solução para o capital ameaçado Essa problemática sublinha corre tamente o parentesco democapitalismo dos fascistas Ainda está grávido o ventre de onde saiu a besta imunda Bertolt Brecht Se o Gulag provém do socialismo o mussolinismo o salazarismo o hitlerismo e o franquismo provêm certamente do capitalismo Mas o risco é que a simples recordação dessa verdade deva a uma denúncia bastante simplista do fascismoagentedograndecapital Na origem desses esquemas o simplismo desemboca no absurdo Foi o caso da teoria do socialfascismo formulada pela Terceira Internacional por ocasião da conquista do poder por Mussolini e logo estendida à Alemanha Com esse vocábulo Stá lin transpos grossiramente a teoria leninista do so cialimperialismo que explicava a traição nacionalista dos socialdemocra tas quando a Primeira Guerra Mundial através da formação de uma nova coalizão entre a burguesia monopolista e a aristocracia operária O socialfascismo prolonga o socialchauvinismo e leva à ideia de que há fascismo por toda parte ou seja que todas as forças políticas com exceção dos co munistas estão contaminadas pelo vírus fascista Molotov Malinski e Stá lin condenam assim a busca de alianças entre socialistas e a fortiori com essa ou aquela tendência burguesa Todo mundo é fascista Brüning diret o do Centro Católico chancelar alemão em 193032 é fascista von Papen suces O EstadoForça 239 sor de Brüning assumiu a liderança de um golpe de Estado fascista final mente a socialdemocracia é objetivamente a ala moderada do fascismo Stálin Esse esquerdismo teórico e prático ia de mãos dadas com uma interpre tação ultraotimista das potencialidades revolucionárias do período Os co munistas podiam se permitir lançar todo o mundo no mesmo saco fascista já que a revolução estava na ordem do dia Dois meses depois da subida de Adolf Hitler ao poder a cúpula da Internacional Comunista afirma ainda sem temor A instituição da ditadura fascista aberta que destrói as ilusões democráticas das massas e as liberta da influência socialdemocrata acelera a marcha da Alemanha para a revolução proletária Como a sequência da história entrou em choque frontal com a inani dade dessa expectativa a tese da ultrarreação substituiu a do socialfascismo O fascismo é a ditadura aberta e terrorista dos elementos mais reacionários mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro G Dimítrov VII Congresso do Komintern i935 Inversão total ditadura abertà e por tanto as democracias burguesas não são fascistas dos elementos mais nem todo mundo é mais fascista do capital financeiro ou seja existe um capital não fascista uma burguesia democrática novas alianças podem ser concebidas entrase assim na era das Frentes Populares Decerto a nova definição aparece tão abertamente política quanto a velha definição por ela afastada Assim a referência ao capital financeiro característico da fase im perialista do capitalismo e portanto de sua fase última ou seja a mais moderna no desenvolvimento histórico não deixa por isso de ser qualificada como ultrarreacionária Mas o que importam essas incoerências Ninguém pediria à Terceira Internacional que adotasse um ponto de vista científico não seriam os seus dirigentes que iriam ter essa pretensão Os outros adeptos do materialismo científico professores universitários eou políticos sem abandonar a correlação entre fascismo e crise do capi talismo desenvolvido irão pôr o acento em diferentes graus na autono mia relativa do fenômeno fascista Dois clássicos se destacam nessa matéria Charles Bettelheim que estudou A economia alemã sob o nazismo e Daniel Guérin que publicou Fascismo e grande capital Para a economia marxista o nazismo corresponde às necessidades da infraestrutura a insuficiência do mercado interno torna indispensável a obtenção de novos escoadouros inicialmente através do rearmamento depois pela conquista militar de mer cados externos Quanto ao materialista libertário que é Daniel Guérin ele considera que num primeiro momento o fascismo era o instrumento da indústria pesada contra a indústria leve embora essa distinção desapareça 240 História das ideias políticas com a crise e a conquista do poder pelas forças fascistas A burguesia re corre à solução fascista para se proteger menos contra as perturbações de rua do que contra as perturbações de seu próprio sistema econômico No essencial portanto os fascistas aparecem como os agentes do grande capital e sua autonomia parece das mais limitadas Contudo Guérin considera que a independência do exército italiano ou alemão prova que a burguesia sabe se manter autônoma em relação aos regimes fascistas chegando mesmo quando as circunstâncias o exigem a se opor a ele prisão de Mussolini em 25 de julho de 1943 atentado contra Hitler em 24 de julho de 1944 Quando os marxistas querem ir adiante no reconhecimento da especi ficidade do fascismo podem recorrer ao esquema bonapartista Esboçado por Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte a explicação afirma que em situação de crise a burguesia pode ser levada a abandonar o poder político para melhor conservar seu poder social ameaçado Transposto para o caso fascista o bonapartismo significa então que o fascismo corresponde a uma expropriação política da burguesia mas em seu próprio interesse Assim apresentando a teoria do fascismo em Trotski Ernest Mandel explica como o fascismo constitui ao mesmo tempo uma realização e uma negação das tendências do capital monopolista A essa primeira especificidade de resto acrescentase uma evidência por muito tempo negada pelos comunistas or todoxos mas sublinhada por Trotski a saber que o fascismo se apoia num movimento de massas da pequena burguesia o que o diferencia de outros ti pos de Estado policial Nicos Poulantzas insiste também na originalidade do regime fascista cujo aparecimento resulta de uma crise de representação ou seja de uma crise do sistema político na qual os partidos e a ideologia tra dicionais não conseguem mais garantir a hegemonia burguesa O fascismo se apresenta então como o mediador indispensável para restabelecer essa hegemonia o que ele faz mediante a criação de um partido de massa a con servação de uma dualidade entre partido e Estado e o recurso privilegiado à família e à propaganda para perpetuar a dominação último eco da explicação econômica a busca da inteligibilidade do na zismo pode renunciar a toda causalidade infraestrutura e deixar de lado o grande capital mas descobrir os traços industriais da ideologia nazista Nesse sentido Joseph Billig chama a atenção para a organização industrial dos campos de concentração nos quais ele vê um modelo caricatural de ca pitalismo de Estado A verdade nazista então seria encontrada menos em Hitler fanático mas conservador do que na exaltação da ciência e da técnica de um Rosenberg o homem luciferiano germanonórdico traz consigo uma visão industrial da história O EstadoForça 241 INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bettelheim C Eéconomie allemande sous le nazisme Riviere 2 vols 1946 reed Mas pero 1971 Billig J Lhitlérisme et le systeme concentrationnaire PUF 1967 Guérin D Fascisme et grand capital Gallimard 1936 2 ed 1945 reed Maspero 1965 Mandel E Préface a Leon Trotski Comment vaincre le fascisme BuchetChastel 1973 Poulantzas N Fascisme et dictature Maspero 1970 Le Seuil 1973 A explicação psíquica Reich Horkheimer Fromm Do sistema fascista passase assim ao homem fascista do economicismo ao psiquismo Para compreender uma realidade tão demencial como o Holo causto é tentador referila à demência de seus atores A elucidação do misté rio pode então ser buscada ou na psicobiografia dos dirigentes ou na psicos sociologia das massas arrebatadas pela aventura AdolfHitler prestase muito bem a uma psicanálise do chefe esse frus trado extraordinariamente preguiçoso pensionista vitalício de um refúgio para ociosos artista demitido essa caricatura do incapaz incapaz de montar a cavalo incapaz de dirigir incapaz de procriar Thomas Mann esse protó tipo de neurótico o que fez senão aliviar suas neuroses senão vingar a moça emporcalhada numa rua de Viena Todavia resta explicar por que ele conseguiu chegar aonde chegou Dir seá que se beneficiou de uma situação excepcional na qual suas neuroses pessoais correspondiam às predisposições psicológicas dos alemães Os jo vens alemães dos anos 1930 haviam conhecido em sua infância o trauma tismo de 191418 difícil de ser imaginado por quem não o viveu Tinham enfrentado ao mesmo tempo a fome e a derrota dos pais A grande crise de 1929 operou como uma perturbação externa de tal violência que desenca deou segundo um processo já assinalado por Freud um retorno ao trauma tismo da infância A juventude alemã reconduzida às suas angústias infan tis oferecia assim a Hitler uma oportunidade única de projetar nas massas alemãs os conflitos inconscientes que havia constituído sua própria infâncià Robert Waite 1he Psychopatic God Adolf Hitler Nova York 1977 Quanto a Mussolini ele escapa mais facilmente à psicobiografia na me dida em que ninguém lhe atribuiu a condição de sifilítico ou suspeitou que fosse impotente Os estudos que não vão além das perturbações da persona 242 História das ideias políticas lidade do chefe parecem assim um pouco limitados e a explicação psíquica apoiase melhor na análise dos comportamentos coletivos Antes de recorrer à psicologia das massas alguns historiadores interpre taram o fascismo italiano como uma doença moral É o caso de Benedetto Croce para quem esse fascismo foi um obscurecimento da consciência uma crise de depressão cívica e uma embriaguez produtos da guerrà Mas foi mérito de Wilhelm Reich ter explicado o fascismo através da psicologia das massas sexualmente frustradas Não existe um só homem vivo que não traga em sua estrutura de caráter os elemen tos da sensibilidade e do pensamento fascistas O fascismo se distingue de todos os outros partidos reacionários pelo fato de ser aceito e preconizado pelas massas W Reich prefácio à 31 edição de Psicologia de massas do fascismo 1946 O fascismo soube responder à angústia das massas dilaceradas entre seu desejo de liberdade e seu medo da liberdade Ele representa a segunda camada caracterial a dos impulsos secundários crueldade sadismo etc é a atitude emocional fundamental do homem oprimido pela civilização ma quinista autoritárià seu racismo é uma forma de repressão e de angústia sexuais que emanam elas mesmas da sociedade patriarcal e autoritárià Essa pista iria ser explorada por filósofos e sociólogos alemães da cha mada Escola de Frankfurt Max Horkheimer foi o primeiro a aplicar a teoria critica e a psicanálise às mediações que ligam os interesses de uma classe a infraestrutura à sua cultura a superestrutura Ele aprofundou a hipótese de Reich segundo a qual o pai de família está no coração dessas mediações Tendo perdido sua autonomia econômica na passagem do capitalismo liberal para o capitalismo monopolista o pai de família desfruta apenas um prestí gio irracional e frágil Reich mostrara que o pequenoburguês socialmente reprimido por seu superior hierárquico reprimia por sua vez sexualmente seus filhos Horkheimer acrescenta que a aura do pai foi transferida para o Estado Erich Fromm pôde então avaliar a personalidade autoritária do homem subjugado A aspiração ao poder não é produto da força mas o filho abas tardado da fraqueza Para demonstrar isso Fromm não se contenta em afirmar que o fascismo teve êxito por permitir que as massas satisfizessem seus impulsos sadomasoquistas através da identificação com os poderes do minantes Ele sugere não sem razão que o problema fundamental de todo indivíduo reside no aparentamento na busca de uma identidade social na necessidade de pertencer a uma comunidade O aparentamento se opera em face da família e em face da sociedade mas o capitalismo tende a destruir esses laços de identidade As relações sociais perderam seu caráter direto e humano Em todas as relações sociais e pessoais as leis do mercado são a regra O homem moderno sofre a despersonalização O indivíduo vende a si mesmo e sente que é uma mercadoria No mundo moderno as ligações fa miliares que outrora proporcionavam segurança afrouxaramse e as condi ções econômicas por seu turno impedem o seu florescimento Confrontado com essa despersonalização o indivíduo põe em ação mecanismos de evasão para tentar escapar a sua instabilidade e à sua solidão Busca fugir de sua liberdade tornada um fardo intolerável tratase de uma fuga no confor tismo dos automátos na destrutividade na eliminação do outro e no au toritarismo com seu duplo aspecto masoquista dissolverse num conjunto e sádico agir segundo as regras desse conjunto Essa fuga da liberdade não se processa de modo indiferenciado em todas as classes sociais A classe mé dia entregase a ela com maior intensidade na medida em que sua frustração social é mais viva ela combina a nostalgia da submissão e a sede de poder A perseguição ao homossexual ao marginal ao judeu ao outro e a guerra colonial ou mundial satisfazem seus impulsos sádicos A personalidade au toritária reencontra segurança e identidade no fascismo Esquematicamente o processo pode ser assim resumido Destruição da autoridade paterna FUGA À LIBERDADE FUGA À LIBERDADE INDIVÍDUO FASCISTA SUBMISSÃO AO ESTADO Sociedade Derrota Crise econômica Racismo Guerra 244 História das ideias políticas INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Fromm E Escape from freedom 1941 ed brasileira O medo à liberdade Zahar Editores Rio de Janeiro 121 ed 1980 Reich W Psicologia de massas do fascismo 1933 trad francesa 1972 As explicações sociológicas Lipset Moore A sociologia confirma a banalidade do fascismo S Lipset falará assim de um extremismo do centro para caracterizar o nacionalsocialismo Nos antípodas dos estudos que insistem na marginalidade Lipset conclui suas análises de so ciologia eleitoral indicando que os nazistas obtiveram seus principais sucessos nos meios estáveis mais nas pequenas cidades do que nas grandes mais no campo do que nas metrópoles ganhando eleitores centristas mais do que elei tores de direita Portanto não haveria um fascismo mas três extremismos o extremismo de direita da classe superior nos países de economia atrasada exs Horthy Dolfuss Salazar o extremismo de centro da classe média nos luga res onde o capitalismo e o movimento operário são desenvolvidos ex Hitler o extremismo de esquerda da classe operária nos países em processo de industrialização rápida ex Perón Sem entrar nos detalhes das análises sociológicas do fascismo gostaría mos de mencionar a tentativa de síntese que reconhece nele uma das vias para a modernização O totalitarismo hitleriano ou mussoliniano seria um dos caminhos para a modernização do mesmo modo como as ditaduras do Terceiro Mundo que hoje parecem se inspirar neles em maior ou menor medida A ideia originária exposta em 1965 por F Kenneth Oranski esta belece relações entre as diferentes etapas do desenvolvimento econômico e a evolução das estruturas políticas Esquematicamente distinguemse quatro fases na história da Europa desde o século XVI Desenvolvimento econômico i Unificação primitiva 2 Industrialização 3 Prosperidade nacional 4 Abundância Desenvolvimento político Unidade nacional e centralização Nova classe dirigente Participação das massas democracia Revolução da automação O EstadoForça 245 A primeira e a última fase do desenvolvimento não contam para o fas cismo que só é suscetível de intervir na segunda e na terceira Ainda nesse último caso não se trata de fascismo propriamente dito já que segundo Organski o fascismo é apenas uma das variedades da política de indus trialização Hitler era um ditador autoritário um nacionalista um agres sor e um louco mas não era um fascista já que a Alemanha era plenamente industrializada quando ele subiu ao poder O sistema nazista não era uma forma da política de industrialização mas uma variante da política de prosperidade Quanto ao segundo estágio três formas de poder podem lhe corresponder conforme a intensidade da acumulação de capital e o ritmo imprimido à industrialização L rápida stalinismo INDUSTRIALIZAÇÃO progressiva democracia burguesa lenta fascismo O fascismo representa um compromisso típico entre duas elites com vocação de poder a coexistência entre uma elite agrícola tradicional forte mas em declínio e uma elite industrial ascendente mas ainda débil uma aliança entre a antiga e a futura classe dominante com o objetivo de impe dir uma afirmação muito rápida das massas a última vitória da aristocracia rural que consegue efetivamente exonerar a elite agrária do pagamento dos custos econômicos e sociais da industrialização A categoria fascista encontrase assim consideravelmente ampliada co bre todas as espécies de ditaduras de desenvolvimento e Organski por sua vez a inclui na categoria mais ampla de regimes sincráticos Barrington Moore Jr prolonga esse afresco sóciohistórico observando que as dita duras fascistas se implantaram nos países de burguesia débil e portanto aliada às classes dirigentes retardados em sua industrialização a qual foi imposta por uma revolução pelo alto deixando subsistir a estrutura social tradicional Disso resulta todo paradoxo do fascismo uma modernização conservadora tradução de um atraso histórico e da tentativa de superálo recurso aos arcaísmos e às nostalgias préindustriais mas para realizar a modernização forçada movimento dos que perdem com a industrialização mas graças ao qual os que vão ganhar podem por fim obter sua vitória anor malmente adiada História das ideias políticas I N D I CAÇÕ ES B I B LI O G RÁFI CAS Moore Jr B Social Origins of Dictatorship and Democracy Lord and Peasant in the making of the modern world Boston 1966 Les origines sociales de la dictature et de la démocratie Maspero 1969 Organski FK The Stages of Political Development 1965 A B I O I D EO LOG IA DO DARWI N ISMO SOCIAL À SOCI O B I O LOGIA Para justificar a dominação de um pequeno grupo de homens sobre a mul tidão a atribuição de privilégios a uma ordem em detrimento das outras o exercício do poder político por governantes aos quais os governados se sub metem a detenção dos meios de produção por uns poucos para os quais o grosso da população trabalha para justificar tudo isso é tentador encontrar fundamentos científicos a partir dos quais se afirma que essas hierarquias se riam inelutáveis e que a vontade de suprimilas seria utópica No Antigo Re gime os germanistas já defendiam a superioridade dos nobres invocando as origens germânicas da nobreza franca Os nobres se consideravam superio res por causa da pureza de sua linhagem da especificidade de sua raça Em 1789 Sieyes convocava o Terceiro Estado a se sublevar contra esse racismo Por que não mandar de volta para as florestas da Francônia todas essas fa mílias que conservam a louca pretensão de provirem da raça dos conquista dores A raça dos Conquistadores a raça dos Senhores é sempre a mesma coisa há uma certa continuidade de resto entre Boulainvilliers Augustin Thierry Taine Gobineau Chamberlain e Hitler E é nesse sentido que um Maurras podia aparecer ao mesmo tempo como o último dos reacionários e o primeiro dos totalitários como o elo que liga o velho preconceito racial da aristocracia francesa ao antissemitismo moderno com a única reserva de que lhe faltava o germanismo O darwinismo social Darwin Taine Le Bon No final do século XIX a busca de uma justificação científica da dominação tenta recorrer às descobertas da biologia e defende um darwinismo social A hereditariedade é invocada contra a igualdade a biologia é usada para defen der a raça O EstadoForça 247 Em 1859 Darwin publicou Da origem das espécies por meio da seleção natural Ele revolucionou a biologia O homem é o codescendente de al guma forma antiga inferior e extintà de uma mesma fonte primata da qual veio o macaco E sobretudo o desenvolvimento biológico é governado pela lei da seleção natural a saber A persistência do mais apto à conservação das diferenças e variações individuais favoráveis e à eliminação das variações prejudiciais Dessa seleção do mais apto a direita nacionalista deduz que a igualdade é um absurdo Uma sociedade pode tender à igualdade mas na biologia a igualdade só existe no cemitério Quanto mais o ser vive e se aperfeiçoa tanto mais a divisão do trabalho implica a desigualdade das funções a qual leva a uma diferenciação dos órgãos e à sua desigualdade A igualdade pode estar no degrau mais baixo da escala no início da vida ela é destruída pelos progressos da própria vida O progresso é aristocrático É impossível que as leis da sociedade e a política é uma ciência positiva não sejam da mesma ordem que as leis da vida e não concordem em lançar todo sistema de democracia nas causalidades do mal e da morte Charles Maurras Mes idées politiques cap De la biologie à la politique O darwinismo social contudo irá mais longe que o simples desigualita rismo Ele postula o determinismo racial Em 1863 Taine considera que na origem e no mais profundo da região das causas aparece a raça Histoire de la littérature anglaise 1863 tIII p616 As capacidades dos homens são uma função de suas raças Há naturalmente variedades de homens assim como há variedades de touros e de cavalos Dois grandes tipos se opõem um su perior e outro inferior Nas raças arianas o espírito inteiro é tomado pelo belo e pelo sublime e concebe um modelo ideal capaz por sua nobreza e sua harmonia de conquis tar para si a ternura e o entusiasmo do gênero humano Nas raças semíticas falta a metafísica O espírito é muito tenso e inteiro o homem se reduz ao entusiasmo lírico à paixão irrefreável à ação fanática e limitada ibid tI pXIX O peso da biologia é reforçado pelo da psicologia A emergência da no ção de inconsciente é utilizada para confirmar a predestinação dos povos O dr Gustave Le Bon triunfa na psicologia dos povos A ciência propõese aqui a combater o racionalismo da filosofia das Luzes já que essa chamada liber dade do homem não é mais do que ignorância das causas que o subjugam à engrenagem das necessidades que os dirigem a condição natural de todos História das ideias políticas os seres é estarem subjugados Les lois psychologiques de lévolution des peu ples 1895 p 170 Os mortos dominam os vivos e forjam os povos A cadeia das determi nações pode ser assim resumida MORTOS RAÇA INCONSCIENTE ALMA DOS VIVOS DOS POVOS Na época moderna mais do que nunca um povo é um organismo criado pelo passado pois a era das multidões é a dos primitivos A multidão é conduzida quase exclusivamente pelo inconsciente Seus atos estão muito mais sob a influência da medula espinhal do que sob a do cérebro Ela se aproxima nisso dos seres inteiramente primitivos ibid p43 Última componente desse cientificismo racial é a antropossociologia de Vacher de Lapouge Tal como seu amigo alemão Ludwig Woltmann ele pro mete uma síntese entre marxismo e darwinismo entre determinismo his tórico e determinismo biológico entre a luta de classes e a luta de raças O caráter fatal da evolução social desmente o ideal democrático is ficções de Justiça Igualdade Fraternidade a política científica prefere a realidade das Forças das Leis das Raças da Evolução Infelizes os povos que perdem tempo com seus sonhos Laryen et son rôle social 1899 pIX O homem livre não existe A psicologia da raça domina a do indivíduo Essa é a noção fundamental do monismo darwiniano e a contrapartida do sonho da alma virgem forjado pelos filósofos O indivíduo é esmagado por sua raça ele não é nada A raça a nação são tudo O biohistoricismo Paralelamente às referências de Darwin um outro racismo encontra seus ar gumentos no biohistoricismo Uma raça se vê atribuir uma missão histórica superior O economista alemão Friedrich List 17891846 explica assim que a raça germânica foi designada pela Providência por causa de sua natu O EstadoForça 249 reza e de seu próprio caráter para resolver este grande problema dirigir as questões do mundo inteiro civilizar os países selvagens e bárbaros e povoar os ainda desabitados Arthur de Gobineau 181682 efetua uma sombria meditação sobre o declínio da humanidade ligado ao fato de que a espécie branca desapareceu presentemente da face do mundo Essai sur linégalité des races humaines 1853 O percentual de civilização é proporcional ao percentual de sangue ariano na população em questão Ora a parte desse sangue que é o único sustento do edifício de nossa sociedade se encaminha para os termos extre mos de sua absorção Hitler retoma o tema em Mein Kampf afirmando que os judeus querem destruir pelo abastardamento que resulta da mestiçagem essa raça branca que eles odeiam querem destronála do alto nível de civilização e de orga nização política ao qual ela se elevou e tornaremse seus senhores O judeu tornase pior do que inferior é a negatividade absoluta um Outro diabó lico Os eslavos ou os negros são subhomens dos quais os Senhores devem dispor a seu belprazer os judeus devem ser exterminados já que são res ponsáveis pela derrota de 1918 pelo liberalismo plutocrático pelo marxismo pela corrupção mundial em suma pela Decadência do Ocidente Nessa obra publicada entre 1915 e 1920 Oswald Spengler defendia uma visão biológica da história ls culturas são organismos A história universal é sua biologia geral Nascimento infância juventude maturidade e velhice se sucedem nas civilizações e a decadência se caracteriza pela mistura das culturas e das al mas já que cada cultura possui sua alma a cultura antiga a alma apolínea a árabe a alma mágica e a ocidental a alma faustiana Falando propriamente não há racismo em Spengler mas a combinação de seu biohistoricismo com o darwinismo social será a realização do mestre ideológico do nazismo Alfred Rosenberg Ele explica em O mito do século XX 1930 que a história é animada pelo conflito entre a raça ariana e a raça semítica a qual contaminou o cristianismo judaicizado por são Paulo e são Mateus o liberalismo e o marxismo A Reforma corresponde à revolta dos germanos contra a tirania judaicoromana Os franceses não compreenderam isso e a França se abastardou ao expulsar os huguenotes Seu tipo racial se modificou até se tomar braquicéfalo com o crânio achatado e arredondado A exploração das ciências humanas a serviço do EstadoForça culmina com o recurso à geografia Friedrich Ratzel o fundador da geopolítica parte igualmente de uma concepção biológica do Estado para dela deduzir que cada povo tem o direito de explorar os territórios que correspondam a seu espaço vital A geografia física tornase ciência da conquista O general geó grafo Karl Haushofer transmite a mensagem a seu amigo Rudolf Hesse e a teoria do Lebensraum toma lugar no corpus nacionalsocialista Depois da derrota do totalitarismo nazista ninguém mais pensará no Ocidente em defender abertamente uma doutrina racista O quadriplo ab surdo do racismo parece mais bem conhecido 1 As raças puras não existem todos os grupos humanos resultam de uma mestiçagem Mas supondose que elas existam 2 a pureza não representa nenhuma superioridade biológica a própria noção de abastardamento é absurda E isso tanto mais porque 3 uma eventual superioridade genética não implica nenhuma superioridade psicológica e cultural da qual fosse automaticamente deduzível E mesmo admitindose essa última hipótese 4 uma superioridade cultural não justifica por si só a hegemonia polí tica Não há nenhuma evidência de que os maiores ou os mais musculosos ou os mais belos ou os mais inteligentes governem os outros homens A sociobiologia Sem pregar um racismo que se tornou incontestável em qualquer variante uma corrente científica e política contemporânea procede de modo com pa rável aos adeptos do darwinismo social de final do século XIX transpondo pura e simplesmente os resultados ou leis das ciências naturais para as ciên cias sociais e mais particularmente as descobertas da biologia para a ciência política Além de uma tal transposição ser cientificamente absurda ela pre tende levar a um aniquilamento científico da liberdade de opções políticas A Ciência no caso a sociobiologia demonstra que os comportamen tos sociais são determinados em bases biológicas Somente os obscurantis tas então pretenderiam transformar sociedades cujas bases fundamentais estão inscritas nos genes O futuro pertence à família tradicional O altruísmo provém do egoísmo genético As leis da vida condenam o nivelamento mundial Essa é a mensagem revolucionária de 300 dos maiores cientistas ingleses e americanos os sociobiologistas como escreve Alain de Benoist Le Figaro Magazine 30 de junho de 1979 A nova direita se refere em primeiro lugar à etologia que aplica certas ligações tiradas da teoria da evolução à análise do comportamento dos ho mens e dos animais Alain de Benoist Vu de droite Paris Copernic 1977 p156 Antes dos sociobiologistas os zoológos mostraram o caminho O EstadoForça 251 Nossas sociedades integram a si os tarados os semiloucos os crimino sos os pedagogos dopam os menos bemdotados de inteligência recuperam os débeis mentais e todos esses anormais entram no ciclo reprodutor Disso resulta obrigatoriamente uma queda da saúde intelectual moral até mesmo física de nossos contemporâneos escreve o padre Pierre Grassé para pregar o eugenismo Konrad Lorenz demonstra que o homem possui como os ani mais comportamentos inatos entre os quais a agressividade a hierarquia a territorialidade Em consequência o espírito de competição o gosto pelo risco o sentimento de honra a vontade de empreender e até mesmo o dina mismo industrial são do mesmo modo que a guerra subprodutos de uma pulsão agressiva inscrita nas estruturas mais sutis do organismo Combater essa pulsão significaria retirar da espécie seu gosto pela luta sua vontade de viver ibid p50 Se você não adota os valores capitalistas está condenando a espécie Alain de Benoist retoma as elucubrações de um Gustave Le Bon No indivíduo normal as pulsões que se formam no nível do paleocórtex são em geral mais ou menos controladas pelo neocórtex Em caso contrário o hipotálamo bloqueia o córtex e a razão é como que paralisada o que explica certas características da psicologia das multidões ibid p156 O fundador da sociobiologia EO Wilson é também zoólogo professor na Universidade de Harvard Ele deduz do estudo das sociedades de insetos os princípios primeiros que governam a evolução dos sistemas sociais Le Monde 24 de fevereiro de 1980 O núcleo de sua demonstração reside numa teoria da seleção de parentesco O parentesco seria a estrutura prepon derante das sociedades primitivas porque se trataria de um fato biológico e não cultural A ideia central é que os seres vivos buscam antes de qualquer outra coisa otimizar seus ganhos genéticos ou seja assegurar a reprodução do máximo de seus genes ser os melhores na batalha da hereditariedade O altruísmo social traduz assim um egoísmo genético os sacrifícios têm como objetivo salvar vários parentes e desse modo aumentar a quantidade de nos sos genes que irá sobreviver O altruísmo é inclusive condicionado por essa vantagem genética é função do grau de parentesco e portanto é limitado e reintegrado na teoria evolucionista seletiva O egoísmo genético tornase a causa primeira dos comportamentos sociais As conclusões políticas da bioideologia variam ao sabor das descober tas e das preferências de seus adeptos Cedo estaremos em condições de identificar a maioria dos genes que intervêm no comportamento Wilson WD Hamilton sugere que a discriminação racial repousa em fundamentos nitidamente genéticos um gene racista de qualquer modo Podemse ima ginar outros De todo modo as consequências sociais dessa mudança de 252 História das ideias políticas perspectiva são imensas Já que o teorema central da sociobiologia é a regra universal da otimização dos comportamentos isso implica por si mesmo a rivalidade e a competição entre os indivíduos e por conseguinte a estratifi cação social Alain de Benoist Le Figaro Magazine 30 de junho de 1979 O que seria preciso demonstrar A ordem social é biologicamente fundada I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFICA Wilson E Lhumaine nature Essai de sociobiologie 1978 Stock 1979 e contra Marshall Sahlins Critique de la sociobiologie 1976 Gallimard 1980 CAPÍTULO VI 1 1 A Nação Estado O EstadoNação nascido na idade clássica continua a ser hoje a reali dade política essencial Decerto ele foi afetado por profundas transforma ções considerase como gerente cf cap V ou se revela partidário cf cap VI pôde se apresentar como pura força cf cap VII e reivindica agora a técnica e a ciência cf cap IX O EstadoCientistà Mas conserva seu núcleo nacional Os EstadosNação devem também ser considerados como soberanias voltadas para o exterior envolvidas nas relações internacionais Constatase então que os mais fortes e avançados dentre eles desenvolveram sua polí tica colonial até transformála em expansionismo imperial e que ainda hoje depois da descolonização a partilha do mundo em dois blocos dificilmente esconde a efetividade de impérios de tipo novo Mas povos e nações outrora subjugados acederam à independência política de tal modo que se impôs a formaEstado Estudaremos sucessivamente os Impérios e os problemas das novas nações a fim de compreender o nascimento das NaçõesEstado1 Os I M PÉRIOS Os EstadosNação quando sua potência lhes permite buscam estender ao conjunto do mundo sua ação de dominação Disso resultam os imperialis mos Nos tempos modernos os Estados capitalistas efetuaram a legitima ção do mais completo imperialismo o da conquista Disso resulta o colo nialismo O pensamento socialista condenouo sem saber sempre que ele mesmo instalava um outro tipo de imperialismo Disso resulta o socialin ternacionalismo 1 Sobre a diferença entre EstadoNação e NaçãoEstado cf infra neste capítulo 253 254 História das ideias políticas I mperialismos O imperialismo não esperou o estágio supremo do capitalismo para se ma nifestar Tucídides já ensinava que ele é inerente a toda formação de tipo es tatal No seio do EstadoNação as coisas são mais complicadas do que o di zem Hobson Hilferding ou Lênin Os interesses dos que controlam o poder econômico nem sempre coincidem com os interesses dos que detêm o apa relho de Estado E o imperialismo não se explica apenas por razões econô micas ele se alimenta também da ideia de Império Ademais essa doençà da dominação internacional não poupou a União Soviética que se resolveu alegremente a participar da partilha do mundo Nem mesmo os Estados que conquistaram recentemente sua independência deixaram de ser contamina dos pelo vírus Portanto menos que nunca é possível levar a sério isto é como moeda corrente as teorias que os Estados liberais depois os Estados socialistas de pois os Estados do Terceiro Mundo apresentaram para justificar seus direitos históricos à preeminência Não faltaram os mitos e as filosofias da história ou do homem para defender as práticas nacionalimperialistas A questão começa no século XIX século do homem branco adulto civi lizado produto da história passada e agente do futuro O Estado centralizado e constitucional a ciência a religião a indústria o exército convertido em missionário todos se reconciliam e dividem as tarefas A pilhagem interna cional dos conquistadores e pioneiros cede lugar a uma administração siste mática que extermina índios da América maoris cafres ou subjuga África Oriente conforme o caso mas sempre em nome da civilização Cristóvão Colombo singrava os mares rumo às Índias Ocidentais para manifestar a po tência de seu soberano conseguirlhe um butim e evangelizar as populações que desconheciam a Boanova O branco do século XIX com seus geógrafos etnógrafos cartógrafos e missionários não fez outra coisa Ao Evangelho re ligioso acrescentase o Evangelho segundo Auguste Comte o aventureiro é substituído pelo administrador colonial O essencial não muda ecumenismo cristão e universalismo europeu andam de mãos dadas Dos Fundamentos geográficos da história universal de Hegel 1811 até as Memórias de Henry Kissinger 1980 a perspectiva não se altera Tudo parte dos Estados bran cos e tudo volta a eles A filosofia da história materialista e dialética não passa em última ins tância de uma variedade dessa consciência progressista Marx e Engels de certo enunciaram a célebre fórmula Um povo que oprime outro jamais poderá ser um povo livre O marxismo na versão da Segunda Internacio nal porém nem por isso deixou de introduzir a ideia de que o proletariado A NaçãoEstado 255 industrial e portanto o das nações cientificamente avançadas detém a ponta de lança da Revolução mundial As sublevações dos povos coloniais não são mais do que forças de apoio O Estado soviético reforça essa ideolo gia existem mundialmente dois campos o da justiça do direito e do progresso que têm à frente a União Soviética e agrupa os proletários as nações e os povos que sofrem a exploração capita listaimperialista o da exploração da mentira e da reação cosmopolita dirigido hoje pelas corporações multinacionais e submetido à hegemonia militar política e econômica dos Estados Unidos da América Essa visão da realidade mundial é essencialmente a mesma que serviu como horizonte de pensamento nos Estados liberais de Disraeli e Jules Ferry a John Kennedy e a Nixon As tropas soviéticas intervêm no Afeganistão de zembro de 1979 para libertar o país do jugo feudal A filosofia das Luzes serviu como cobertura para a civilizaçãocolonização do mundo O mar xismo serve como cobertura discursiva para as práticas nacionalistas do Es tado soviético Os dois progressismos brancos surgidos no século XIX procedem se gundo a mesma lógica de ideias herdada de santo Agostinho e de Hegel messianismo da Igreja da cultura do Estado burguês messianismo do proletariado de seu partido do Estado socialista O Terceiro Mundo o não alinhamento pareceram oferecer um caminho para superar essa alternativa que conserva a sujeição internacional A Confe rência de Bandung 1955 despertou essa esperança em torno de Chu Enlai Nasser Nehru e Sukarno Os pobres do mundo de fato no caso concreto da ÁfricaÁsia expressam uma tomada de consciência de sua eminente dig nidade o que faria do fato o evento mais importante desde o Renascimento Léopold Sendar Senghor A condenação do colonialismo a afirmação do não alinhamento a busca da coexistência entre as nações se inspiravam no Panch Shilâ na não violência ensinada por Gandhi Em 1961 Tito organi zou em Belgrado a primeira conferência de cúpula dos não alinhados que aduziu aos princípios de Bandung a libertação econômica Os povos têm o direito para suas finalidades pessoais de dispor livremente de suas riquezas e recursos naturais Em 1966 Fidel Castro acrescentou o terceiro A com a conferência de so lidariedade dos povos da Ásia África e América Latina reunida em Havana História das ideias políticas O terceiromundismo estendeu então ao mundo o raciocínio que o jo vem Marx formulara a respeito do proletariado Os povos que sofreram as maiores injúrias e alienações a espoliação a servidão e a humilhação têm de querer a supressão de todas as formas de violência internacionais e interes tatais para eles mesmos e para todos os outros Por seu destino infeliz eles representam a consciência ética e política da humanidade Através deles do Terceiro Mundo triunfarão o imperativo da paz e portanto a independên cia dos povos a exploração em comum dos recursos nacionais a igualdade dos indivíduos a defesa das liberdades no quadro das tradições e sobretudo serão recusadas reprimidas destruídas as forças imperialistas Quantas aná lises foram feitas na época para provar que o Islã autêntico ou a organização tribal praticavam originariamente o socialismo e a democracia Todavia o terceiromundismo não resiste às circunstâncias cerco dos dois campos sobrevivência de um passado muito próximo fraqueza material das nações envolvidas o não alinhamento não consegue ser mais do que uma estratégia a serviço dos nacionalismos pobres e exaltados prontos a fazer causa comum com uma das duas hegemonias quando uma vantagem mate rial os incitasse a tanto Isso resulta também do fato de que o Terceiro Mundo jamais quis nem pôde se desprender do modelo de Estado europeu e sua liber tação significou para eles o ingresso na competição internacional Quaisquer que tenham sido as modalidades da independência constituiuse um Estado de tipo europeu cujo eixo central era o nacionalismo e como sua imediata consequência o imperialismo A República Popular da China até mesmo em seu período mais esquerdistà atuava como qualquer outra grande potên cia ou talvez até com menos pretextos no cinismo Os nacionalismos mais recentes revelamse mais sólidos do que a comunidade de língua a tradição éticoreligiosa e a desforra contra o inimigo comum a nação árabe unificada pelo menos do Eufrates ao Atlântico jamais viu a luz Duas potências ainda dominam o mundo o número de Estados soberanos não deixa de crescer os conflitos devidos aos nacionalismos e imperialismos locais se multiplicam Nenhuma filosofia da história explica essa realidade todas servem como jus tificação a liberal a marxista a humanista terceiromundista I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFICAS Lichtheim G De limpérialisme 1971 CalmannLévy 1972 Mahatma a grande alma Gandhi Mohandas Karamchand Gandhi Leur civilisation et notre délivrance Denoel 1957 A NaçãoEstado 257 O colonialismo O imperialismo moderno se distingue do imperialismo clássico o dos anti gos gregos do ecumenismo militar de Roma do espírito de conquista e de evangelização da primeira vaga da colonização europeia pela mundializa ção da sociedade burguesa que se realiza ao lado da extensão da dominação política dos Estados Por sua vez a colonização se transforma Com efeito não se trata de uma mas de três colonizações a colonização da evangelização e da pilhagem inaugurada por Cristóvão Colombo a colonização comercial na qual os ingleses tomam o lugar dos holan deses a colonização administrativa na qual os Estados Unidos estabelecem pac tos e tratados Colônia pura ou Estado submetido à penetração econômica não há mais nenhum hectare de terreno que escape ao mundo branco ou ao seu imitador japonês A grande vaga da colonização do século XIX teve seu caminho aberto pela GrãBretanha Colônias de exploração foram estabelecidas ao longo de toda a rota das índias uma frota comercial cobria a maior parte das tro cas intercontinentais Disraeli chegou a criar um consenso em torno desse novo tipo de colonização que garante a hegemonia mundial da nação Um conjunto de ideias serve como embasamento para essa política Inicialmente um sofinationalism um nacionalismo seguro de si mas sem agressividade nem ressentimento Depois a certeza de ter razão que é conferida pelas filo sofias da história tanto pelo pensamento missionário dos anglicanos como pela vontade de melhorar o conhecimento do mundo que anima as socie dades científicas tanto pelo desejo de produzir dos positivistas como pelo evolucionismo de Spencer Com Spencer o imperialismo recebe o reforço do darwinismo político cf supra cap VII As leis que regem os organismos vivos aplicamse igual mente às sociedades princípio de evolução crescimento dos mais capazes atrofia dos inúteis Portanto é normal que o homem civilizado conquiste o mundo Spencer continua individualista Benjamin Kidd é mais abertamente racista e opõe o interesse a longo prazo da raça ao interesse mesquinho do indivíduo A forma moral e a grandeza religiosa da raça inglesà fundam sua superioridade e sua missão imperial No fim das contas o Império é con História das ideias políticas siderado como o produto da Providência da Raça do Espírito Humano e serve como abertura para os Novos Tempos da Indústria Aquém das ideias que acompanham o imperialismo inglês é preciso re montar ao pensamento liberal sob cuja égide se constituiu o EstadoNação do qual a GrãBretanha é a pérola Reencontrase então John Locke e sua concepção do Estado como pacto como contrato entre proprietários que transferem a uma autoridade soberana o direito de punir e de cuidar dos negócios comuns O imperialismo resulta disso o Estado é um contrato entre proprietários é proprietário quem ocupou um terreno e soube fazêlo dar frutos o Estado portanto é um território um conjunto de proprietários prós peros por conseguinte os nômades são excluídos do pacto civil do mesmo modo os improdutivos devem aceitar a tutela dos produtores civilizados para ingressar na civilização O dinamismo imperial triunfa sem grande dificuldade na GrãBretanha no Japão na Rússia e nos Estados Unidos Mas ele tem de superar obstáculos no seio da Terceira República francesa De imediato tem de encontrar justifica ções mais precisas A tarefa de legitimação do colonialismo aparece com mais clareza A França saiu muito desgastada na guerra de 1870 Perdeu o bona partismo a Alsácia e a Lorena reencontrou as facções monarquistas e a con testação socialista esmagou a Comuna reencontrou a divisão Dois caminhos parecem se abrir a desforra contra a Alemanha ou a aventura colonial O partido colonial triunfa e recebe múltiplos apoios A Igreja Católica se felicita por poder evangelizar contra o anglicanismo e o protestantismo E os colonizadores se felicitam com as justificações morais trazidas pelos católi cos tais como o abade Raboisson Em todo lugar onde o francês pôs o pé ainda que por um instante tornou fran cês o solo que pisou É o caso de Maurício de Trinidad da Luisiânia do Ca nadá Da própria Alsácia Portanto podese construir uma França africana uma França oriental uma França polar Études sur les colonies et la colonisation au regard de la France 1877 Monsenhor Lavigerie arcebispo de Argel lançou pessoalmente expedi ções contra a África negra e apelou em 1871 aos metropolitanos para que se fizessem colonos A NaçãoEstado 259 Vinte contribuindo para estabelecer sobre esse solo ainda infiel uma população laboriosa moral cristã vós sereis os verdadeiros apóstolos diante de Deus e diante da pátria Aux Alsaciens et aux Lorains exiles Os geógrafos veem finalmente reconhecidos sua utilidade e seu patrio tismo O almirante La Ronciere Le Noury declara em 1875 diante do presi dente MacMahon A Providência nos ditou a obrigação de conhecer a Terra e de conquistála A geografia a ciência que inspira um tão belo devotamento e em nome da qual tantas vítimas se sacrificaram tornouse a filosofia da terra Jules Ferry republicano e laico presidente do Conselho entre 1880 e 1885 sistematiza a argumentação em favor da colonização com argumentos econômicos A política colonial é filha da política industrial Para os Estados ricos onde os capitais abundam e se acumulam rapidamente a exportação é um fator es sencial da prosperidade humanitários Será que alguém pode negar que há mais justiça mais ordem material e moral mais equidade mais virtudes sociais na África do Norte depois que a França a conquistou políticos na Europa tal como foi feita nessa concorrência de tantos rivais que vemos crescer em torno de nós numa Europa ou melhor num universo assim feito a política do isolamento ou da abstenção é simplesmente o grande cami nho para a decadência é cair do primeiro nível para o terceiro ou quarto Mais de um século depois a problemática da concorrência e do nível ainda serve para justificar uma política como a única política possível Por muito tempo a temática da colonização será humanà democrá ticà republicanà e progressistà como o atesta a intervenção do professor 260 História das ideias políticas universitário radical Albert Bayet no Congresso de 1931 da Liga dos Direitos do Homem a colonização é legítima quando o povo que coloniza leva consigo um te souro de ideias e de sentimentos que enriquecerá outros povos sendo assim a colonização não é um direito mas um dever Pareceme que a França moderna filha do Renascimento herdeira do século XVIII e da Revolução re presenta no mundo um ideal que tem seu valor próprio e que ela pode e deve difundir pelo Universo Um tal discurso pode ser pronunciado por para todos os imperia lismos I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁ F I CAS Disraeli B Ver RJ White 1he Conservative Tradition Londres N Kaye 1950 Ferry J Le Tonkin et la mere patrie 1890 Girardet R Lidée coloniale en France de 1871 à 1962 1972 Poche 1979 Kidd B Social Evolution 1894 O socialinternacionalismo O socialismo nascido no século XIX e difundido no XX pretende ser uma concepção política do internacionalismo e na grande família dos socialis mos o marxismo pretende mais que qualquer outro rimar com internacio nalismo Ao mesmo tempo a nação serve verdadeiramente de pretexto para o reforçamento estatal o interesse nacional legitima o Estado soberano ou expansionista O socialismo não pode senão redobrar sua pretensão inter nacionalista As coisas se complicam contudo com a doutrina leninista que pretende efetuar em cada caso a análise concreta de situações concretas e também com a concretização do projeto comunista no qual o socialismo se reduz provisoriamente a um só país ou a uma só zona Finalmente somase o fato de que no século XX a questão nacional se fragmenta em significações diversas e frequentemente contraditórias O enfoque da questão nacional assume então uma ambiguidade fundamental e levanta uma verdadeira di ficuldade insuperável e insuperada Como explicar que o socialismo inter nacionalista tenha sempre triunfado numa luta contra o estrangeiro numa situação de guerra eou tornandose um movimento de libertação nacional contra a dominação estrangeira Rússia 1917 Europa do Leste 194548 China 1949 Vietname 194573 Cuba 19591962 Angola 1975 Nicarágua 1979 etc Como explicar que em cada oportunidade a tomada do poder pelos socialistas implicou o fortalecimento da NaçãoEstado É preciso buscar a resposta a essas questões na obra dos primeiros teóricos do socialismo científico antes de seguir as superstições do social e do político a outra face da subestimação teórica do nacional 262 História das ideias políticas A Segunda Internacional e a superestimação da questão social Se vocês abolirem a exploração do homem pelo homem abolirão a explora ção de uma nação por outra nação essa era portanto a mensagem do Ma nifesto Comunista A Segunda Internacional a recebeu bem superestimando por sua vez a questão social Foi o caso diante do problema das nacionalida des sefá o caso em face do problema das colônias Uni debate opunha no início do século XX os internacionalistas in transigentes aos defensores da ortodoxia marxista Rosa Luxemburgo defende o proletariado polonês Seus interesses reais na matéria a liberdade de vida e do desenvolvimento na cional cultural a igualdade dos cidadãos a abolição de toda opressão nacional encontram sua única expressão possível completa e ao mesmo tempo eficaz nas aspirações gerais de classe do proletariado a uma maior democratização dos países ocupantes Mas ela não defende a independência nacional da Polônia A necessidade de possuir o aparelho de um Estado de classe independente que é uma outra arma para oprimir os operários é tão somente nas circunstân cias atuais levandose em conta o caráter utópico dessa aspiração um interesse imaginário dos operários assimilado de uma concepção pequenoburguesa do mundo tão estranha aos interesses reais do proletariado quanto ao modo de pensamento do socialismo científico em geral A questão polonesa e o movi mento socialista 1905 Karl Kautsky opõe a isso uma versão estatista de Marx que compõe com o Estado nacional A unidade nacional decorre inelutavelmente do desen volvimento econômico e não pode ser entravada assim como não o pode esse mesmo desenvolvimento Onde as tendências nacionais ainda lutam por seu reconhecimento todo partido do progresso deve levar em conta esse caráter inelutável e defender a aspiração à unificação num Estado e à in dependência das nações nas quais vive e atuà Contra o internacionalismo intransigente de Rosa Luxemburgo e de Pannekoek o fato nacional é um fato ideológico burguês os marxistas ortodoxos da socialdemocracia consideram a aspiração nacional como uma etapa necessá ria da revolução socialista e chegam assim a um nacionalismo tático A NaçãoEstado A superestimação da questão social é também encontrada no exame da questão colonial e é acompanhada por um etnocentrismo percepção dos grandes problemas somente do ponto de vista do centro do Ocidente pouco capaz de captar a significação da colonização e os desafios da descoloniza ção A partir desse viés comum o movimento socialista se divide em duas grandes tendências Os alemães Eduard Bernstein ou Eduard David 18631936 e o belga Van dervelde 18661938 são as principais figuras da primeira tendência que considera o colonialismo como uma necessidade histórica o desenvolvimento das forças produtivas o exige a propagação da civilização o justifica So mente os métodos do colonialismo são atrozes A Segunda Internacional não condena em princípio e para sempre qualquer política colonial mo ção do Congresso de Stuttgart 1907 E Bernstein precisa Temos o dever de praticar uma política colonial socialista positiva Devemos abandonar a ideia utópica de entregar as colônias a consequência extrema dessa atitude levaria a entregar os Estados Unidos da América aos índios As colônias estão aí é preciso aceitar esse fato Os socialistas devem também reco nhecer a necessidade que têm os povos civilizados de exercer uma certa tutela sobre os povos não civilizados Essa é a tese dominante no seio dos partidos socialistas da Europa Uma segunda tendência condena mais nitidamente o colonialismo Kautsky defende e faz com que se adote uma tese complementar segundo a qual a política colonial capitalista por sua própria essência leva necessariamente à sujeição ao trabalho forçado ou ao extermínio das populações indígenas do domínio colonial A missão civilizadora reivindicada pela sociedade capi talista servelhe apenas como pretexto para encobrir sua sede de exploração e de conquista Somente a sociedade socialista poderá oferecer a todos os povos a possibilidade de desenvolver plenamente sua civilização Sem estar isento de paternalismo esse ponto de vista contém uma to mada de consciência da questão colonial Seus adeptos reclamam sem mais tardar a criação de partidos socialistas nos países colonizados a fim de es tabelecer laços políticos entre a classe operária dos países dominantes e os povos dominados A renovação da problemática do imperialismo contudo para nisso é a classe operária dos países colonizadores que mostra o cami nho do socialismo História das ideias políticas A Terceira Internacional a superestimação da questão política Lênin Stálin Lênin não rompe brutalmente com as teses da Segunda Internacional He sita longamente apoia amplamente Kautsky e concorda com ele quanto ao elemento central da matriz marxiana o primado da classe sobre a nação Todavia mostrase mais atento ao potencial revolucionário dos movimentos nacionais Lênin e Stálin privilegiam assim a tática a utilização política da aspiração nacionalista inicialmente para fazer a revolução depois para de fender o Estado revolucionário Desde 1913 Lênin encarrega Stálin este maravilhoso georgiano de elaborar uma solução proletária para a questão nacional Disso resulta a cé lebre definição de Stálin da nação como uma comunidade estável historicamente constituída comunidade de língua de território de vida econômica e de formação psíquica que se traduz na comuni dade de cultura Definição que condena as reivindicações autonomistas Basta que um só desses índices falte para que a nação deixe de ser uma nação O mesmo para os judeus ou para os armênios Lênin como Stálin não reconhece qualquer fato nacional O federa lismo inicialmente foi recusado depois o direito de autodeterminação foi admitido a fim de acelerar a decomposição do Império tzarista finalmente a reconstrução unitária foi imposta em nome da autodeterminação dos tra balhadores e quando necessário pela força ataque à Geórgia em 1921 O nacionalismo pôde ser útil à tática revolucionária ele não tem lugar no es quema bolchevique sobretudo quando se trata do nacionalismo das regiões pobres e periféricas A base política da ditadura do proletariado é constituída inicialmente e de modo essencial para as regiões industriais do centro e de modo algum para os limites representados pelos países agrários Stálin 1923 A questão colonial foi tratada segundo a mesma lógica Lênin reivindica a unidade dos pontos de vista cf Sobre o direito de autodeterminação das na ções 1914 Paralelamente ele integra suas análises sobre a questão colonial à sua concepção do imperialismo Lênin esboça uma concepção mundial da A NaçãoEstado Revolução podese dizer que ele tenta mundializar o esquema legado por Marx mas sem chegar a se desfazer do eurocentrismo Em igual nível de intensidade o golpe desferido contra o poder da burguesia inglesa pela insurreição na Irlanda tem uma importância política cem vezes maior do que se tivesse sido desferido na Ásia ou na África Balanço de uma discussão sobre a autodeterminação 1916 Na prática a Terceira Internacional reconhece a justeza das lutas colo niais mas ajusta suas posições em função dos interesses da União Soviética Camaradas irmãos chegou o momento no qual vocês poderão começar a or ganização de uma guerra popular justa e sagrada contra os bandidos e os opres sores Viva a união fraternal dos povos do Oriente com a Internacional Co munista Zinoviev Congresso de Baku 1920 Na luta contra a burguesia mundial a República Soviética deve agrupar em torno de si ao mesmo tempo os movimentos soviéticos conselhistas dos operários avançados de todos os países e os movimentos de libertação nacional das colônias ou das nacionalidades oprimidas Disso resulta uma tese intermediária entre a velha tese economicista segundo a qual os Estados colonizadores devem inicialmente exportar o capitalismo antes de pensar no socialismo nas colônias e a nova tese asiocêntrica segundo a qual a Revolução cresce a partir do Oriente e emergem nações proletárias nas quais a libertação é possível imediatamente A Internacional deve estabelecer acordos temporários até mesmo alianças com a democracia burguesa das colônias e dos países atrasados Acordos temporários já que toda fusão com a burguesia nacional está excluída o objetivo continua a ser a ditadura do proletariado I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFICAS Châtelet F Evelyne PisierKouchner e JeanMarie Vincent Les marxistes et la politique PUF 1975 col Thémis DEncausse HC Eempire éclaté Flammarion 1978 266 História das ideias políticas Haupt G Michael Lõwy e Claude Weill Les marxistes et la question nationale 18481914 Maspero 1974 Schram S e Hélene Carrere dEncausse Le marxisme et fAsie Colin 1966 AS N OVAS NAÇÕ ES Os Impérios têm seus imperialismos as novas nações seus nacionalismos Esse fato não justifica nenhuma confusão os povos que enfrentam a desco lonização não formam uma totalidade homogênea e não existe por mais que se tenha sonhado com ele um pensamento do Terceiro Mundo As con cepções das novas nações de resto fragmentamse no tempo e no espaço desde o século XIX em alguns visionários latinoamericanos até os anos 1980 nos países ainda sob dominação colonial de Cuba à África do Sul ou de Porto Rico à Namíbia Ademais as modalidades de acesso à independên cia variam consideravelmente entre a retirada voluntária do colonizador e as lutas armadas vitoriosas Todavia permanece um fundo comum os movimentos de libertação na cional e suas justificações as técnicas de fundação de um Estado e as razões apresentadas situamse num mesmo quadro o do jugo colonial com suas mesmas consequências sociais materiais e ideais subdesenvolvimento des truição das estruturas da sociedade esmagamento da cultura nacional Trata se aqui e ali de fazer com que exista um Estado contra as sequelas do passado colonial e apesar do novo imperialismo Aqui e ali a referência obrigatória é a do Estado industrial desenvolvido em seu resultado liberal americano ou em seu resultado socialista soviético Era e continua a ser inimaginável que africanos vivendo num mesmo território decidamse a se organizar em agrupamentos anárquicos de comunidades de diferentes formas sem rei ou presidente sem Constituição subscrevendo um simples direito costumeiro praticando o escambo e buscando a autarquia econômica Um tal desvio polí tico teria sido continua sendo imediatamente punido com a intervenção das grandes potências ou dos vizinhos mais razoáveis A formaEstado domina Os fatores ideológicos no sentido mais simples da palavra os valores as palavras de ordem as representações ou em suma as ideias têm um peso bastante grande Mais hoje do que outrora na Europa Quando da constituição dos EstadosNação da Europa as ideias não cum priam senão uma função de catálise Hegel depois de Locke e de Smith con corda nisso com Karl Marx o Estado moderno implantouse numa nação A NaçãoEstado onde a sociedade civil já estava em processo de unificação e de organização Simplificando a nação precede o Estado o social precede o ideal Com a constituição das NaçõesEstado do Terceiro Mundo as ideias têm de cumprir uma função decisiva A instrução colonial desestruturou as socie dades civis dos países ocupados O recurso à ideologia deve compensar a ausência de uma sociedade civil organizada Simplificando o Estado precede a nação o ideal precede o social Quais são essas ideias esses valores Podese agrupálos em quatro gran des categorias ou princípios gerais de inteligibilidade que explicam em nome e em função de que ideias se travaram os combates pela independência e se processam as ações no sentido da formação ou do fortalecimento do Estado a identidade a luta armada o povo a religião Dáse por suposto que em cada caso histórico singular o dos argelinos ou dos cubanos dos chineses ou dos ganenses etc essas categorias se combi nam ou se opõem de modo específico A identidade Independentemente da diversidade das situações a problemática da liberta ção colocouse por toda parte em termos de busca de identidade A análise puramente econômica dos efeitos do imperialismo não basta é preciso de modo mais amplo denunciar a alienação colonial E o que o colonialismo divisou precisa ser reunificado por meio de novas solidariedades E quando como é frequente a identidade reencontrada se pretende socialista isso ocorre num sentido que não é o habitual A identidade perdida a alienação Césaire Fanon O processo contra o Ocidente não se limita à acusação de pilhagem O eu ropeu consagrase também à destruição das culturas tradicionais não por causa de um ingênuo complexo de superioridade mas para interiorizar no 268 História das ideias políticas colonizado o sentimento de sua inferioridade A difusão forçada do modelo cultural ocidental iria então de mãos dadas com o racismo O colonialismo portanto não é simples despossessão mas também humilhação ofensa atentado contra o ser Desde meados do século Aimé Césaire denuncia esse processo de de sumanização que arrancou milhões de homens de seus deuses e de sua terra de seus hábitos de sua vida da vida de sua classe de sua sabedoria Falamme de progresso de realizações de doenças curadas de níveis de vida elevados Eu prefiro falar das próprias sociedades esvaziadas de terras confiscadas de religiões assassinadas de coisas magníficas esmagadas de ex traordinárias possibilidades suprimidas Discours sur le colonialisme 1950 Frantz Fanon tentou sistematizar a alienação a partir de uma análise psiquiátricà das funções e dos efeitos do racismo Sartre afirmara que foi o antissemitismo que criou o judeu Fanon afirma que é o racista que cria a inferioridade E a discriminação racial não é uma excrescência mas a base de toda a ins tituição colonial O racismo determina os comportamentos individuais e cole tivos dos colonizados Ele introduz o conflito no próprio ser do colonizado Conflito biológico Comigo tudo assume uma face nova Nenhuma oportunidade me é permitida Sou sobredeterminado do exterior Não sou escravo da ideià que os outros têm de mim mas de minha aparência Chego lentamente no mundo habituado a não mais pretender o surgimento Ando rastejando Os olhares brancos os úni cos verdadeiros me disseram Sou fixado Tendo ajustado seu micrótomo rea lizam objetivamente cortes de realidade Sou traído Sinto vejo nesses olhares brancos que não é um novo homem que entra mas um novo tipo de homem um novo gênero Um negro ora Deslizo pelos cantos Resto em silêncio as piro ao anonimato ao esquecimento Vejam eu aceito tudo contanto que não me percebam mais Peau noire et masques blancs p113 Conflito cultural Como para ilustrar o caráter totalitário da exploração colonial o colono faz do colonizado uma espécie de quintessência do mal A sociedade colonizada A NaçãoEstado 269 não é descrita apenas como sociedade Sem valores O indígena é decla rado impermeável à ética ausência de valores mas também negação dos va lores Os costumes do colonizado suas tradições seus mitos sobretudo seus mitos são a própria marca dessa indigência dessa depravação constitu cional ibid p252 Conflito linguístico tão bem descrito por Kateb Yacine Jamais deixei de sentir no fundo de mim essa segunda ruptura do cordão um bilical esse exílio interior que só aproximava o escolar de sua mãe para dela arrancálo cada vez mais aos frêmitos reprovadores de uma língua banida secretamente por um mesmo acordo rompido tão logo estabelecido As sim eu perdera ao mesmo tempo minha mãe e sua língua os únicos tesouros inalienáveis e apesar disso alienados Le polygone étoilé Paris Le Seuil 1962 p181 I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFI CAS Césaire A Discours sur le colonialisme Paris 1950 Fanon F Peau noire et masques blancs Paris Le Seuil 1952 prefácio de JeanPaul Sartre Les damnés de la terre Paris Maspero 1961 ed brasileira Os condenados da terra Civilização Brasileira Rio de Janeiro 1967 A unidade reencontrada as solidariedades Guevara Senghor Embora evitando as visões redutoras da história e da geografia podese cons tatar uma vontade comum de superar independentemente das experiências e dos continentes a balcanização imposta pelo imperialismo Luta revolu cionária continental Ernesto Guevara chamado de Che retoma o sonho de Simon Bolívar libertador do jugo espanhol Para o Che a Cordilheira dos Andes será a Sierra Maestra2 do continente sulamericano Cada país tem sua particularidade mas os continentes também as têm e os fatores de uni dade são numerosos língua costumes religião e sobretudo 2 Nome da montanha onde Fidel Castro e Che Guevara iniciaram a guerrilha em Cuba 270 História das ideias políticas uma identidade tão grande entre as classes desses países que eles chegam a uma identificação de caráter internacionalamericanô muito mais completa do que em outros continentes Em todas as partes temos o regime de latifúndios o subdesenvolvimento a fome dos homens e o mesmo senhor A guerra de guerrilhas 1962 O projeto guevarista pretende ser também uma réplica ao pseudo americanismo da Organização dos Estados Americanos e da Aliança para o Progresso implantada por John F Kennedy E o caráter continental da luta não deve difundir a ilusão continentalistà A existência das nações americanas separadas até mesmo hostis entre si é um ato irreversível e a luta revolucionária só pode ser um combate pela libertação nacional Estabelecer para os processos revolucionários nacionais a condição prévia da unidade continental é adiálos para as calendas gregas Régis Debray Essais sur tAmérique Latine Maspero 1967 Guevara fracassa o argentino herói da revolução cubana morre em 8 de outubro de 1967 na Bolívia assassinado por militares treinados no Pa namá pelos Estados Unidos A busca da unidade árabe parece mais ambivalente Decerto ela cris taliza desde o século XIX o protesto contra o colonizador ao qual se opõe a ideia de uma comunidade árabe fundada ao mesmo tempo num critério religioso o Islã e na noção mítica de povo Será que não vale a pena na opinião de vocês abrir escolas a fim de nelas edu car seus filhos de instruílos de erguer uma barreira graças a essas escolas contra a influência europeia que as escolas europeias semeiam nos espíritos de les É melhor roubálos aos europeus do que perdêlos Ensinemlhes que vo cês são os pais deles antes que eles antes reneguem Transmitam a eles a religião que é a sua antes que eles se ergam contra vocês Abdallah AlNadim Rapidamente a ideologia da unidade árabe irá assumir um uso nacional e se expressar antes de mais nada no quadro do EstadoNação Na África negra mais arbitrariamente fragmentada pelo colonizador o retorno a uma identidade comum se opõe à vontade dos novos dirigentes de preservar o quadro territorial de seu poder ainda que esse seja precário O haitiano PrinceMars evocou em 1928 as civilizações africanas cujo esplen dor espalhouse para além dos limites da estepe e do deserto Aimé Césaire e Léopold Senghor fundam em 1934 a revista ZEtudiant Noir A NaçãoEstado 271 O primeiro canta sua raça raisin mur pour pieds ivres3 O segundo confere à negritude o seu universalismo A emoção é negra como a razão é helênica O que nos liga está para além da história Está enraizado na préhistória Per tence à geografia à etnia e portanto à cultura É anterior a qualquer coloni zação Tratase de uma comunidade cultural que chamo de africanidade Eu a definiria como o conjunto dos valores africanos de civilização Jeune Afrique 9 de junho de 1963 I N D I CAÇÕ ES B I B LI O G RÁFI CAS Césaire A Cahiers du retour au pays natal 1947 Présence Africaine 1971 Che Guevara Journal de Bolivie Maspero 1968 ed brasileira Diário da Bolívia Coor denada Brasília 1968 Nkrumah K A África Negra deve se unir 1964 Senghor LS Liberté Le Seuil 1964 A identidade nova a idiossincrasia socialista Socialismo nacional sempre nominal na maioria dos casos algo destinado a armar o Estado novo Em certas regiões árabes a ideologia socialista na cional pretende conciliar a permanência do passado islâmico com os impe rativos tecnológicos do progresso Busca de uma autenticidade perdida bandeira erguida com finalidades diversas pelo Poder e pelos intelectuais opositores essa ideologia pretende superar a oposição entre a eternidade e a história Na verdade ela consiste em arabismo mais industrialização Ab dallah Laroui Lidéologie arabe contemporaine Maspero 1973 Se há um ponto comum entre os socialistas do Terceiro Mundo é essa função consensual o socialismo reconciliará o Estado nacional com sua so ciedade e condenará previamente toda expressão conflitual Assim Sékou Touré socialista guineense chega a negar a luta de classes O marxismo foi amputado desse elemento para permitir a todas as camadas africanas travarem em conjunto a luta geral anticolonialista citado por Yves Benot Idéologies des indépendances africaines 3 Uva madura para pés bêbados NT 272 História das ideias políticas O socialismo africano imagina para si justificações específicas A África é essencialmente comunocrática A vida coletiva a solidariedade so cial emprestam a seus hábitos um fundo de humanismo que pode ser invejado por muitos povos Sékou Touré ibid p81 O continente negro tem um socialismo já pronto sob medida O negro resolvera o problema num sentido humanista O solo assim como tudo o que ele traz consigo é um bem comum dividido entre as famílias e em alguns casos entre os membros da família que têm uma propriedade tem porária e usufrutuária sobre ele Senghor Liberté 1 Nesse socialismo africanizado nessa africanidade socializada a aboli ção do Estado tornase supérflua A sociedade socialista confundindose com o Estado não poderia dissolver o Estado em si já que é ela que gera é o povo gerador é o povo construtor é o povo sábio que rege organiza e dirige a sociedade e isso em função do seu devir Numa tal sociedade o Estado é algo permanente mudará apenas a sua natureza que se tornará social Se cabe falar de extinção é apenas do Estado capitalista imperialista ou neocolonialista Sékou Touré ibid No limite a referência ao socialismo já reduzida a uma pele de cha grém tornase ela mesma inútil a africanidade decomposta se necessário é suficiente Vocês vocês são um mundo de oposições mas nós zairenses nós somos um mundo de justaposição Citemme uma única aldeia zairense onde haja dois chefes um dos quais oposição Não existe isso Criando vários parti dos políticos os zairenses pecariam contra a Autenticidade Mobutu Sese Seko chefe de Estado do Zaire citado por Y Bénot op cit p72 O socialismo terceiromundializado nem sempre se torna esse álibi aglutinante no qual a adaptação às idiossincrasias nacionais elimina todos os elementos subversivos da luta de classes à destruição do Estado para conservar apenas a justificação do unanimismo Um Fanon um Depestre um Cabral denunciam essa busca ilusória da identidade perdida e apelam para a formação de uma identidade radicalmente nova Buscando a iden A NaçãoEstado 273 tidade reencontrase a submissão Busquem a libertação encontrarão a identidade O que importa não é dar prova da especificidade ou não especificidade da cul tura de um povo mas sim a luta de libertação que é ato de culturà e ne cessariamente prova de identidade Amilcar Cabral A arma da teoria ed francesa Maspero 1975 A luta de libertação não restitui à cultura nacional seu valor e seus contor nos antigos Ela visa a uma redistribuição fundamental das relações entre os homens É a libertação nacional que torna a nação presente na cena da histó ria Frantz Fanon Les damnés de la terre 1961 I N D I CAÇÕ ES B I B LI O G RÁFI CAS Bénot Y Idéologies des indépendances africaines Maspero 1969 Chaliand G Mythes révolutionnaires du Tiers Monde Seuil 1976 A luta armada Dupla justificação da violência elemento necessário do processo de desa lienação resposta ao imperialismo de fato e necessariamente agressivo A ideologia da libertação nacional passa assim pela afirmação da necessidade da violência única arma capaz de dar à luz a nação antes que a nação seja Estado Condenado pela história o pacifismo parece agora desonrado e de sonrante A NaçãoEstado arma o povo e todo o povo até as crianças O fu zil equivale à virilidade o heroísmo é patriotismo a morte é prova suprema Da guerrilha à guerra popular da guerra justa à guerra santa as palavras de ordem se militarizam a violência é sacralizada o terrorismo é ritualizado Frantz Fanon tentou explicar essa necessidade do princípioviolência en quanto Guevara na América Latina e Mao na China criaram duas estraté gias da violência revolucionária O princípioviolência A descolonização é sempre um fenômeno violento Fanon Não se trata apenas de uma constatação mas também da expressão de uma necessidade 274 História das ideias políticas psicossociológica A violência segundo o psiquiatra antilhano preenche uma dupla função de libertação em face do opressor e de reconhecimento de si mesmo Ele o explica em Les damnés de la terre O aparecimento do colonialismo significou sincreticamente morte da socie dade autóctone letargia cultural petrificação dos indivíduos Para o colonizado a vida só pode surgir do cadáver em decomposição do colono Portanto essa é a correspondência termo a termo dos dois raciocínios Abater o colono permite ao colonizado matar tanto o opressor quanto o oprimido A coisà colonizada tornase homem no próprio processo pelo qual se liberta O ato de violência é constitutivo da luta sinal de sua irre versibilidade e de sua exemplaridade Assim ninguém podia ser admitido nos grupos terroristas da FNL argelina senão depois de ter cometido um atentado A violência é também necessidade política que os comunistas chineses nos anos 1960 opõem à coexistência pacífica pregada pelos soviéticos O velho debate reforma ou revolução ressurge assim na zona das tempesta des É um erro dos comunistas kruschevianos privilegiar a contradição entre proletariado e burguesia no seio dos países capitalistas é um erro considerar como eles fazem que o regime colonial já desmoronou As modificações ocorridas no mundo confirmam que as contradições entre a política de subordinação buscada pelos imperialistas americanos e os povos do mundo e por outro lado as contradições que opõem a política de expansão mundial praticada pelo im perialismo americano e as outras potências imperialistas constituem o ponto de convergência das contradições no mundo depois da Segunda Guerra Mun dial PékinInformation 18 de março de 1963 As regiões da Ásia da África e da América Latina constituem o elo mais fraco do imperialismo a principal fonte de revolução mundial atual que ir rompe tempestuosamente ibid Portanto não cabe mais ao proletariado dos países ocidentais arrastar os povos oprimidos à luta mas ao contrário é a luta dos povos na zona das tempestades que determinará a causa revolucionária do proletariado mun dial Não reconhecendo isso os soviéticos servem ao neocolonialismo e são adeptos do socialreformismo antes de se tornarem adeptos do socialim perialismo pior ainda que o Império americano A NaçãoEstado 275 A guerra popular Mao Zedong A concepção maoista da luta mundial transpõe para o plano internacional um dos pontos centrais da teoria maoista da conquista do poder a saber o cerco das cidades pelo campo Ásia América do Europa Ásia Norte Ocidental CIDADES CAMPO América África Latina Essa visão ultraterceiromundista não sobreviverá a Lin Biao eliminado em 1971 Quanto a Mao Zedong4 antes de ser um teórico da guerra popu lar foi um prático quem não fez pesquisa não tem direito à palavra O maoismo surgiu de 30 anos de lutas revolucionárias na China cada etapa das quais trouxe seu ensinamento O primeiro período 192127 revelou a Mao o limite de uma estraté gia leninista de insurreição do proletariado urbano e a necessidade de mo bilizar prioritariamente os camponeses Ele publicou em 1926 Análise das classes na sociedade chinesa um texto que põe o acento nas capacidades re volucionárias do campesinato e cujas conclusões são rechaçadas pelo Par tido Comunista Chinês dirigido por Chen Duxiu Dois anos mais tarde o V Congresso do PCC recusou as teses defendidas por Mao em seu Informe sobre uma pesquisa acerca do movimento camponês de Hunan favoráveis às revoltas espontâneas das massas Mas o fracasso da insurreição operária de Xangai 1927 a virada do Kuomintang Partido Nacional do Povo anterior mente aliado do PCC confirmaram Mao em sua convicção de que devia se apoiar nas massas camponesas O segundo período 192737 ensinou a necessidade de construir um exército revolucionário A insurreição de 1927 terminou num massacre as tropas de Chiang Kaishek triunfaram sobre os comunistas 1934 e Mao criticou a ofensiva geral então desencadeada Ele organizou a retirada para 4 Mao Tsétung A transcrição dos caracteres chineses é hoje uniformizada de acordo com o sistema Pinyin pouco conhecido dos franceses e dos brasileiros História das ideias polfticas o noroeste seguido pela maioria dos combatentes dez mil quilômetros de uma Longa Marcha que se tornou lendária No final da mesma 1935 Mao quebrou o cerco do Kuomintang e assumiu o controle do PCC O terceiro período 193745 permite elaborar a concepção da guerra po pular prolongada Temse novamente uma frente comum entre comunistas e nacionalistas contra o invasor japonês Contudo Mao recusa a fusão das tropas e dos comandos com o objetivo de preservar as perspectivas revolu cionárias Disso resultam as múltiplas facetas da guerra maoista nacional aliança com a burguesia nacional inicialmente mobilizada con tra o imperialismo e por isso alinhada com a revolução revolucionária vanguarda confiada ao proletariado o que respeita pelo menos nas fórmulas a ortodoxia leninista popular apoio nas massas camponesas e nas bases rurais o que constitui a contribuição específica do maoismo e da revolução chinesa O quarto período 194549 vê o triunfo da revolução Depois da capitu lação dos japoneses Mao se recusa a formar um governo de união nacional com o Kuomintang e organiza a luta militar para a conquista do poder reto mada dos combates recuo do Exército Popular de Libertação contraofen siva proclamação da República Popular da China em 111 de outubro de 1949 em Pequim Em seu conjunto essa longa luta revolucionária cheia de reviravoltas levou Mao a ressaltar a originalidade da estratégia de guerra popular pro longada Primazia do político Mao novo Clausewitz recorda que a guerra é a continuação da política por outros meios mas uma continuação indispensá vel para garantir uma tomada revolucionária do poder A tarefa central e a forma suprema da revolução é a conquista do poder pela luta armada Esse princípio do marxismoleninismo é válido em toda parte mais ainda na China do que em outros países A necessidade da guerra não poderia implicar a subordinação do Partido O poder está na ponta do fuzil Essa célebre palavra de ordem possui uma dupla significação na estra tégia A NaçãoEstado 277 recurso indispensável à luta armada A experiência da luta de classes na época do imperialismo mostra que a classe operária e as massas trabalhadoras só podem vencer os proprietários fundiá rios e a burguesia armada com a ajuda dos fuzis subordinação do exército ao Partido O Partido manda nos fuzis Não se pode permitir jamais que os fuzis mandem no Partido Mao Ze dong Sobre a guerra popular prolongada 1938 Importância dos camponeses a China contava com menos de 3 milhões de operários mas com 500 milhões de camponeses e com dois milênios de tradição de lutas camponesas Disso resulta a constância da exaltação dos movimentos camponeses em Mao por motivos de eficiência revolucionária Eles quebrarão todas as cadeias e se lançarão na via de sua libertação Te mos de nos pôr à frente dos camponeses e dirigilos 1927 por motivos quase morais Durante anos não tivemos nada que se assemelhasse a um salário Tínha mos apenas nossa ração alimentar Agora entramos nas cidades E uma boa coisa Se não tivéssemos entrado nas cidades Chiang Kaisheck as ocuparia Mas foi também uma coisa ruim pois nosso Partido começou a se degradar Mao Intervenção no Pleno do Comitê Central do PCC abril de 1969 Guerra prolongada travada com o sentido do tempo O sinólogo Stuart Schram insiste nessa notável ponderação nesse sentido do possível em cada momento determinado Mao parle au peuple PUF 19n p34 A guerra é de longa duração e passa por várias fases 1 Sublevar as massas atear fogo à pradariâ mediante a mobilidade Quando o inimigo avança nós recuamos quando o inimigo para fustigamo lo quando o inimigo cansa atacamos quando o inimigo recua nós o perse guimos Desde esse primeiro estágio convém ter o sentido da contradição História das ideias políticas de dispersar as forças para sublevar as massas A guerra revolucionária é a guerra das massas populares só é possível fazêla mobilizando as massas apoiandose nelas Mao 1934 de concentrar as forças para enfrentar o inimigo Os combates de aniquila mento produzem imediatamente profundas repercussões no adversário qual quer que seja ele Vale mais aniquilar uma divisão do adversário do que pôr dez em fuga de empreender conjuntamente uma luta de guerrilha e uma estratégia de aniquilamento 2 Construção de um Exército Popular colocado sob a direção do PC que organiza uma sociedade nas zonas rurais libertadas O Exército Vermelho não se limita apenas às atividades militares Assume inclusive o estabelecimento das organizações do Partido O exército comba tente deve ser utilizado para uma dupla tarefa combater e produzir Paralelamente ao acento colocado no aniquilamento Mao insiste na de fensiva e na economia dos meios atacar inicialmente com forças dispersas em cada combate concentrar uma força superior à do inimigo jamais com bater quando a vitória não estiver garantida 3 Conquista das cidades a partir do campo das grandes cidades a partir das pequenas Defensiva consolidação contraofensiva sublevação das mas sas acumulação de forças guerra de longa duração cerco das cidades etc a concepção maoista não tem muito a ver com a insurreição bolchevique I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFI CA Zedong M Écrits militaires Pequim Ed em línguas estrangeiras 1964 La guerre révo lutionnaire Paris UGE col 10is 1965 Há várias edições brasileiras de obras de Mao Zedong O foquismo CastroGuevara Como o maoismo o guevarismo recusa ao mesmo tempo a coexistência pa cífica e o caminho pacífico Como Mao e Lin Biao Fidel Castro e Che Gue A NaçãoEstado 279 vara efetuam uma teorização da prática revolucionária cubana com a dife rença de que no último caso a distância em relação à ortodoxia soviética não é mascarada mas ao contrário exagerada Entre 1921 e 1949 os comunistas chineses tiveram o cuidado de não se chocar frontalmente com o grande ir mão soviético Entre 1953 e 1958 os comunistas cubanos não se preocuparam com isso Também aqui portanto a recordação das grandes etapas da con quista do poder pelos revolucionários cubanos é indispensável à inteligibili dade da teoria do foco ou seja da estratégia da guerra de guerrilha Cuba foi uma das últimas colônias espanholas na América Latina a se tornar independente depois de duas guerras de libertação 1868 e 1895 um desembarque de fuzileiros navais americanos impediu que a última con cluísse numa capitulação dos espanhóis em mãos dos rebeldes Os america nos conservaram assim um estreito controle sobre a ilha que se acentuou com o golpe de Estado de Fulgencio Batista em 10 de março de 1952 Foi contra essa ditadura que começou a epopeia castrista Primeira etapa Moncada 26 de julho de 1953 Um golpe de força es querdista militarmente fracassado o ataque ao quartel de Moncada na ex tremidade leste da ilha província de Oriente onde já haviam se iniciado as guerras de independência Cento e setenta insurrectos quase todos com menos de 30 anos Noventa e um mortos Castro preso depois obrigado a se exilar Em suma o fracasso Segunda etapa Granma 29 de novembro de 1956 Uma tentativa insur recional totalmente fracassada o desembarque de 83 revolucionários vindos do México a bordo do Granma A maioria morreu ou foi presa Somente uma dúzia escapou ao exército de Batista Janeiro de 1957 12 homens perdi dos nas montanhas de Oriente Janeiro de 1959 atravessaram a ilha de leste a oeste e tomaram Havana com vários milhares de rebeldes Terceira etapa a Sierra Maestra onde tudo se passou a montanha de Oriente onde se construiu o Exército Rebelde Romantismo e eficiência em cinco fases i Formação do núcleo guerrilheiro dezembro de 1956maio de 1957 O grupo sobrevive instalase 2 Conquista da Sierra junho de 1957novembro de 1957 O Exército Rebelde se eleva a uma centena de homens Castro confia uma segunda co luna a Che Guevara 3 Propagação da luta armada novembro de 1957março de 1958 Na pla nície os políticos estão divididos Na montanha o Exército Rebelde está unido e cresce Os rebeldes passam da guerra de guerrilha à guerra de colunas 280 História das ideias políticas 4 Fracasso da greve geral e revés abriljunho de 1958 Em 9 de abril o golpe decisivo fracassa o trabalho não para O fracasso leva a uma su bordinação maior do movimento urbano à Sierra Batista decide lançar uma contraofensiva contra ela 5 A conquista do país julho de 1958janeiro de 1959 O Exército Re belde expulsa o exército regular da Sierra instaura seu poder de fato em Oriente consolida suas alianças políticas os comunistas só aderirão em ou tubro e subleva a ilha A progressão militar se dá por colunas de través de leste para oeste e em espirais cerco das pequenas cidades pelos campos das capitais provinciais pelas cidades de Havana pelas províncias Em 5 de janeiro de 1959 uma greve geral abre a capital ao Exército Rebelde Os cas tristas chegam ao poder A partir dessa experiência dessa história e dessa geografia políticas fa bricase um modelo cubano com o objetivo de ser aplicado ao restante da América Latina A leitura geográfica ou seja dá nascimento a uma teorização política parcial que cobre apenas um as pecto da realidade a luta na montanha a guerra de guerrilha o Exército Rebelde mascarando um outro a luta nas cidades as greves os movimentos propriamente políticos e que nega que o sucesso da revolução castrista re sulte precisamente da articulação dos dois Para resumir as coisas de modo esquemático ver o quadro a seguir o modelo cubano mostra apenas a parte esquerda quando a revolução cubana na verdade abarca o conjunto A teoria do foco sistematizada por Régis Debray de acordo com Castro e que foi aplicada em 1967 por Che Guevara na Bolívia não simplifica as coi sas pelo simples prazer de valorizar o papel dos guerrilheiros da Sierra mas cumpre funções políticas precisas todas centradas em torno de um objetivo criar dois três vários Vietnãs desencadear a Revolução na América do Sul Para esse fim A NaçãoEstado Movimento armado no campo Guerra de guerrilha Exército rebelde Guerra de posições e movimentos Vitória militar Dirigente revolucionário guerrilheiro 281 Movimento político na cidade Propaganda Manifestações Sabotagens Frentes urbanas Greves de massa Greve geral O foquismo se opõe ao golpismo muito familiar aos latinoamericanos afasta o golpe de Estado recusa qualquer arbitragem do exército insiste na necessidade de destruir o aparelho militar do Estado O foquismo se opõe ao eleitoralismo pondo o acento na ação revolucioná ria ainda que desencadeada por um pequeno grupo O foquismo se opõe ao mito da greve geral que suprime o momento mili tar e afasta as massas camponesas da sublevação O foquismo se opõe aos partidos comunistas burocratizados imersos nas cidades essas incubadeiras mornas que infantilizam e aburguesam Ré gis Debray Révolution dans la révolution Ele dispensa o Partido substi tuindoo pelo Exército Rebelde e mais precisamente por seu comandante cuja pessoa basta para unificar o político e o militar O foquismo se opõe à expectativa passiva mostrando apenas os elemen tos novos da revolução cubana e antes de mais nada seu incrível volunta rismo que passaria por pura loucura se não tivesse triunfado Che Guevara resume assim as principais lições da experiência cubana i As forças populares podem ganhar uma guerra contra o exército regular 2 Não se deve esperar sempre que estejam reunidas todas as condições para fazer surgir a Revolução o foco insurrecional pode criálas 3 Na América subdesenvolvida o terreno fundamental da luta armada deve ser o campo História das ideias políticas I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFICAS Castro F Révolution Cubaine textos Maspero 1968 Che Guevara La guerre de guérilla 1960 ed francesa Maspero 1968 Debray R Révolution dans la révolution Maspero 1967 La guérilla du Che Le Seuil 1974 La critique des armes 1 e II Le Seuil 1974 O povo Na luta armada o povo já está presente É o grande presenteausente É em seu nome que se opera o distanciamento com relação à ortodoxia marxista a começar pelo deslocamento da cidade para os campos Mas é também em seu nome que emergem as críticas do foquisrno guerrilha urbana pregada por Carlos Marighela no Brasil luta armada cornbinadà proposta por Dou glas Bravo na Venezuela É ainda em seu nome que R Debray refuta suas próprias teses em 1974 o erro do foquisrno seria não indicar os elos entre a vanguarda clandestina e as massas populares Mas é para além da estratégia revolucionária que a NaçãoEstado precisa do povo Corno proclamar a própria independência diante de forças que a impe dem Corno consolidála diante dos que só a admitem corno independência formal Contra eles contra o Outro é preciso erguer o Si Mesmo o Si Mesmo torna o nome de Nação e reivindica urna forma política o Estado Então vem o Estado que prova ser Nação Mas a palavra remete a urna realidade de so ciedade civil cuja existência deve ao mesmo tempo ser inventada e masca rada pelo Estado inventála corno unà mascarála em suas dilacerações para conservála assim unà Urna nova categoria ideológica aparece então para permitir essa dupla operação de invenção e de camuflagem o Povo Independentemente das diferenças segundo os regimes e as sociedades diferenças que devem sempre ser conservadas na mente reencontrase as sim a proclamação da primazia dos fatores ideológicos embora nem por isso todos reivindiquem o populismo A primazia da ideologia Nkrumah Kadhafi Guevara Mao Na África negra a primazia da ideologia é encarregada de mitigar as defici ências da Nação A palavra ideologià assume um sentido positivo o debate só intervém para escolher a melhor ideologia Significativa a esse respeito A NaçãoEstado é a evolução do Senegal Num primeiro momento a ideologia da negritude se opõe às ideologias ocidentais como caminho para o Um em face dos Outros Tratase de escolher entre a ideologia da Negritude e as ideologias que na Eu ropa Ásia e na América estão a serviço dos imperialismos em luta pela domi nação do Mundo quer se trate do capitalismo liberal do socialismo demo crático ou do marxismoleninismo ao modo russo ou chinês Num segundo momento 1976 o mesmo Senghor restaura o multipar tidarismo mas limitado a quatro grandes correntes ideológicas com obriga ção de vincularse ao conservadorismo Movimento Democrático Senegalês Boubacar Gueye liberalismo Partido Democrático Senegalês Abdolaye Wade socialismo democrático Partido Socialista LS Senghor marxismo Partido Africano de Independência Majhemouth Diop Mais recentemente 1981 o multipartidarismo livre e desvinculado das ideologias foi estabelecido por Abdou Diouf sucessor designado por Sen ghor já que a unidade do país parece estar assegurada Esse caminho contudo não fez escola a primazia da ideologia e a cons tante referência ao Povo vão de mãos dadas na maioria dos casos com a conservação de um partido único A ideologia está acima de tudo o Partido levaa à prática As ideias devem servir como motor A revolução cultural deve preceder e preparar a Revolução política econômica e social Somente ela garantirá o sucesso do salto qualitativo e quantitativo no interior do regime Sékou Touré Guiné Além de se esforçar para promover atitudes e fins comuns a toda a sociedade a ideologia dominante é também a que decide sobre a forma que as instituições devem assumir Nkrumah i90972 Gana O Partido único então permite a equação Estado Povo A referência ao povo é quase inversamente proporcional à sua realidade Sabese que nas democracias ocidentais a nacionalização do poder foi no mais das vezes algo que se deu paralelamente com sua apropriação ainda que parcial pelos governados pelo povo As coisas não podem se dar assim nas sociedades dominadas História das ideias políticas Em primeiro lugar porque o povo não está constituído a nova reali dade estatal decorre de fronteiras artificiais herdadas da colonização 1878 ata de Berlim partilha da África ao sul do Saara entre as potências colonizadoras e em função da correlação de forças entre elas 1963 carta de Adis Abeba constitutiva da Organização da Unidade Afri cana que coloca o princípio da intangibilidade das fronteiras coloniais Os Estados cobrem realidades pluriétnicas que a sublimação do PartidoPovo tem o objetivo de negar e ou superar A União nacional feita para que a luta política seja posta em latência sic im plica que para o chefe de Estado o Partido Democrático do Gabão continua a ser o instrumento da política de unidade nacional AB Longo 1970 Em segundo lugar porque as tradições políticas africanas combinam se mal com a designação dos governantes por uma multidão de indivíduos indiferenciada mas parece ao mesmo tempo mais e menos democrática isto é mais direta do que representativa porém reduzida a entidades ligadas pela vida em comum as linhagens agrupamse no quadro de base que forma a aldeia as linhagens que veneram o mesmo ancestral e o mesmo totem for mam o clã os clãs que possuem uma língua e tradições comuns formam a tribo Em cada nível o poder é detido por um chefe cercado por uma as sembleia que reúne o conjunto dos membros do grupo reconhecidos como maduros por terem passado pelos ritos de iniciação O poder não é somente político mas social e religioso A própria ideia de sua distribuição parece portanto absurda o tribalismo pode certamente ser denunciado como um legado do imperialismo mas na verdade o precede e torna mais necessário o recurso à retórica do povo Nos países que reivindicam o Islã não é o povo propriamente dito que serve como referência ideológica para cimentar a unidade mas o Umma termo intraduzível como tal que é habitualmente transcrito como Comu nidade e algumas vezes como povo crente ou mesmo como nação O importante é captar a especificidade da noção e seu alcance consensual é sublinhar o que ele não é e o que ele é Repousando numa filiação religiosa o Umma reúne todos os muçulmanos Implica a obediência a Deus Aceita o poder de Deus Une a família muçulmana Exclui todos os não muçulmanos Não confere nenhum direito político Não atribui nenhum poder humano Negligencia as divisões políticas A partir desse fundo comum as utilizações políticas do Islã variam cf infra final deste capítulo de acordo com a orientação dos regimes A unidade poderá ser garantida por um monarca e se combinar com o multipartidarismo É o caso do Marrocos onde o califa engendrou o sultão e o sultão intitulase rei Em suma onde o Estado é dirigido por um zaïm chefe religioso militar e político comandante dos crentes Hassan II Se não é rei o chefe da comunidade Uma pode se apoiar num partido único como o Partido Socialista Desturiano na Tunísia Nosso sistema é fundado no partido único O Estado é uma emanação do partido único Burguiba 1970 Todo partido mesmo único pode finalmente ser suprimido para proclamar o governo somente do povo como o fez Kadhafi guia da revolução líbia A solução é que o povo seja o aparelho de governo mas a Lei da sociedade é o costume tradição ou a religião 286 História das ideias políticas é também uma arte de classe mais profundamente capitalista talvez do que a arte do século XX na qual transparece a angústia do homem alienado A eliminação progressiva do dinheiro afirmada na célebre controvérsia sobre os estímulos materiais aos quais Guevara opõe os estímulos ideológicos entu siasmo revolucionário participação na edificação do socialismo exemplaridade da vanguarda tudo isso para promover a visão do homem socialista A aceleração e radicalização da história As botas de sete léguas da revolu ção cubana podem e devem queimar as etapas e forçar a marcha dos eventos A consciência dos homens de vanguardà pode compensar um atraso das condições objetivas Compensar as lacunas da história forçar seu decurso esse voluntarismo revolucionário marca igualmente o maoismo Mao Zedong com a teoria das contradições inflete o marxismoleni nismo mediante uma valorização do papel das ideias Querendo recordar o caráter universal e geral das contradições Mao indica dois pontos essenciais Que as contradições se estendem à superestrutura a ponto algumas vezes de tornar o ideológico ou político algo essencial ou mesmo deter minante Decerto as forças produtivas a prática a base econômica desempenham em geral o papel principal determinante e quem o nega não é materialista Todavia em certas condições a teoria a superestrutura manifestamse por seu turno no papel principal e determinante Sobre a contradição 1937 Que as contradições subsistem no seio da sociedade socialista Mao especifica isso 20 anos depois no momento das Cem Flores Sobre a justa solução das contradições no seio do povo 1957 Podem mesmo existir contra dições entre as práticas burocráticas de certos funcionários do Estado e as massas Disso resulta o apelo à eclosão das críticas à liberdade de expressão à liberação das iniciativas individuais Disso se deduz decerto a legitimidade dos choques políticos o que à diferença da União Soviética do povo inteiro não implica considerar todo opositor como louco e aplicarlhe um trata mento psiquiátrico Mas seria errado e esse erro foi cometido concluir a partir disso sobre o caráter não repressivo do maoismo A linha durà chamada do Grande Salto à frente que sucedeu a aberturà das Cem Flo res insistia igualmente na ideologia A China é uma página branca que se oferece à inspiração de Mao para que ele nela caligrafe o poema inesperado A NaçãoEstado de sua revolução Simon Leys 1971 A revolução cultural desencadeada em 1966 levou a luta ideológica ao seu paroxismo ao mesmo tempo em que permitiu a Mao recobrar o controle do poder Dois ditados simbolizam na China o desacordo sobre a extensão do reino da ideologia vermelha o se gundo dos quais valeu a Deng Xiaoping ter sido afastado e depois reabili tado 19n eliminação do bando dos quatro Que importa que o trem chegue ou não no horário contanto que seja socia lista Que importa que o gato seja branco ou preto contanto que pegue o rato Populismos Todos os regimes revolucionários ou que se dizem tais reivindicam o povo e o socialismo o que não impede que as diferenças entre eles sejam consi deráveis Não é certo que sob esse aspecto a referência ao marxismoleni nismo trace a linha de demarcação fundamental E não é insignificante o fato de que a maioria dos Estados dominados quando pretende dar um conteúdo real à sua independência tenha necessidade da categoria povo O exemplo de Cuba atesta os limites da importância de uma simples re ferência ideológica ao marxismo Decerto é possível opor os primeiros anos da revolução cubana 195961 aos que se seguiram Nem eu nem o movimento são comunistas Fidel Castro 13 de janeiro de 1959 Serei marxistaleninista até o último dia de minha vida 2 de dezembro de 1961 Contudo independentemente do efeito de contraste acima provocado as diferenças são maiores entre a monodemocraciâ revolucionária da pri meira década e a ditadura do proletariado e portanto do Partido de tipo soviético institucionalizada nos anos 1970 Mas mesmo depois da normali zação o povo continua a ser um referente necessário O problema é que nos países não industrializados a matriz proletária do marxismo deve ser adap tada Já vimos como todos os desvios do maoismo em relação à ortodoxia visam a reintroduzir os camponeses no processo revolucionário Essa é a eficácia primeira da noção de povo Ela permite associar clas ses sociais normalmente antagônicas para criar uma nova unidade nacional Além disso como segunda função mas não das menores ela legitima uma relação direta entre o dirigente e as massas 288 História das ideias políticas Esses dois aspectos podem ser também encontrados no que na ausência de um termo melhor chamaremos de populismo de direità Ele promove uma integração da classe operária a um sistema dominado pela burguesia mas do qual a massa era anteriormente excluída Será essa a característica por exemplo do justicialismo de Juan Perón na Argentina mais quando de seu primeiro período de poder 194655 de resto do que quando do se gundo 197375 O discurso justicialista pronunciado de modo extremo por sua mulher Evita expressa o amor pelo povo Fui buscar no fundo do meu coração um sentimento fundamental que domina totalmente meu espírito e minha vida esse sentimento é a indignação diante da injustiça Meu sectarismo é uma reparação e uma compensação Durante um século os privilegiados exploraram a classe operária A justiça exige que durante um século os privilegiados sejam agora os trabalhadores Mutatis mutandis o socialismo árabe de Gamal Abdel Nasser incluise num populismo análogo mais radical porém temperado pela referência ao Islã e pela conservação parcial da propriedade privada dos meios de produção Não sou contra a propriedade privada mas contra a propriedade que explora as massas Em nossa sociedade socialista há lugar para todos os trabalhadores mas não para os milionários e os feudais Nasser discurso de 3 de outubro de 1961 A unidade nacional constituída pela aliança das forças populares que represen tam o povo trabalhador a saber os camponeses os operários os soldados as pessoas instruídas e o capitalismo nacional institui a União Socialista Árabe que constitui a autoridade que representa o povo artigo 32 da Proclamação Constitucional de 23 de março de 1964 No outro polo o populismo de esquerdà amplia ao campesinato e à burguesia nacional a conquista e o exercício do poder cuja ponta de lança só pode ser já que a Revolução impõe a classe operária mas que não poderia já que o subdesenvolvimento impõe chegar sozinha ao poder Disso resulta a atenção que já sublinhamos concedida por Mao aos camponeses o olho do camponês vê certo Disso resulta a sua teoria da ditadura democráticà que incorpora uma parte da burguesia ao povo A retórica AmigoInimigo simplista mas rica de eficácia política pode então funcionar plenamente tanto na ordem interna quanto na internacional A NaçãoEstado O povo a classe operária o campesinato a pequena burguesia urbana a burguesia nacional se opõe aos inimigos do povo aos cães de fila do imperialismo à classe dos proprietários fundiá rios e à burguesia burocrática Em chinês a palavra povo yen min é formada a partir de duas raízes a primeira significa homem a segunda as massas A etimologia corres ponde bastante bem à ambivalência do vocábulo povo na ideologia das Na çõesEstado revolucionárias onde se trata de apelar a menos que ao todo so cial porém a mais que somente às classes exploradas Stuart Schram assim vê na concepção maoista da ditadura democráticà um desejo de falar em nome da maioria esmagadora da população uma espécie de metamorfose da teoria da vontade geral O dirigente revolucionário retira sua legitimidade não tanto do fato de representar o povo mas do fato de servirlhe Servir ao povo de todo o coração sem desligarse das massas por um só ins tante partir em tudo dos interesses do povo e não dos interesses do indivíduo ou de um pequeno grupo é isso o que inspira nossos atos Citações do pre sidente Mao Tsétung Le Petit Livre Rouge Pequim Ed em línguas estrangei ras 1966 cap XVII Servir ao povo Segundo procedimentos diferentes o povo desempenha um papel idên tico em Cuba Foi ele que fez a Revolução Um dia o povo ergueuse contra a tirania um dia o povo uniuse e um dia o povo venceu mas essencialmente o povo operário o povo camponês o povo estudante E as diferentes forças se uniram como fios dágua provenientes das diferentes fontes e que se encontram num mesmo rio no grande rio da revolu ção Fidel Castro discurso de 22 de agosto de 1975 A identificação entre o processo revolucionário e o povo assume uma extrema importância já que justifica a recusa de instaurar um regime de mocrático fundado na disputa eleitoral Assim na Nicarágua o sandinismo vitorioso derrubada do ditador Somoza em 19 de julho de 1979 afastou em 1980 o recurso às eleições que havia sido anteriormente previsto Os prin cipais líderes da Revolução Daniel e Umberto Ortega argumentam sobre a inutilidade dos mecanismos da democracia burguesà pois o povo já es colheu a Frente Sandinista de Libertação Nacional quando se sublevou a seu lado contra a ditadura somozista 290 História das ideias políticas Finalmente o vaivém que se supõe permanente entre a vanguarda e o povo transcende a oposição entre democracia e ditadura Autoriza o uso do que o escritor argentino Borges chama de oximoro uma fórmula explosiva mente contraditória ditadura democrática ditadura do proletariado poder popular etc O poder do Partido fundase então sobre o que Mao chama de linha de massas O povo somente o povo é a força motriz o criador da história universal Mao 1945 em Citações op cit cap XI A linha de massas Recolher as ideias das massas concentrálas e leválas novamente às massas a fim de que elas as apliquem firmemente e chegar assim a elaborar justas ideias para o trabalho de direção esse é o método fundamental de direção Mao 1943 ibid A onipotência reconhecida ao povo pode então ir de mãos dadas com o poder absoluto de um grupo dirigente ou com o poder monocrático do chefe Em Cuba o socialismo desde o início da rebelião não podia ser outra coisa que não o fruto de um diálogo não institucionalizado de homem para homem entre a vanguarda e o povo Tudo isso sei muito bem não está de acordo com o esquema de Karl Marx Violamos as leis da história ao fazer nossa revo lução Será que não deveríamos fazêlo Fidel Castro março de 1968 citado por KS Karol Les guérrilleros au pouvoir Paris Laffont 1970 O religioso O fator religioso intervém na luta das NaçõesEstado para conquistar o estatuto estatal e pôr termo à colonização para afirmar a coesão da NaçãoEstado reconstituída O religioso preen che várias funções e opera de diversas maneiras comunitário por definição ele se impõe às consciências individuais e re úne os fiéis em torno de uma fé comum esboça uma geografia e uma história sagradas enraíza a língua e a men talidade num solo originário e num momento inicial a partir dos quais tudo advém e para os quais tudo retorna A NaçãoEstado inscrevese materialmente pontilha o calendário e portanto a memória o território a existência social Seu ritual ritma a vida as lembranças li gamse a suas cerimônias mais profundamente regula as famílias as relações de parentesco a edu cação dos filhos os sentimentos éticos que dele derivam políticas as religiões e em particular as religiões reveladas a judaica a cristã a muçulmana são tais na medida em que ensinam aos fiéis o modo pelo qual devem se comportar diante dos poderes O cristianismo está associado principalmente ao espaço dos Estados Nação constituídos há muito precisamente os que aperfeiçoaram a forma Estado precisamente os que empreenderam a colonização do mundo E se a religião cristã serviu de meio de penetração para a ideologia branca não existe exemplo inverso de NaçãoEstado cujos dirigentes se tenham servido do cristianismo para quebrar seus laços com as antigas metrópoles Isso não significa que os cristãos e suas Igrejas não possam jamais constituir contra poderes o Brasil militarizado e a Polônia sovietizada atestam o contrário mas simplesmente que ele não pode por causa de sua face ocidental servir à constituição das NaçõesEstado O budismo e o bramanismo em troca desempenharam um certo papel na história da China e da península indochinesa mas se deixarmos de lado a índia e a Birmânia não parecem ter intervindo diretamente nas lutas de libertação do século XX Podese mesmo perguntar se o budismo não terá ensinado a submissão e o afastamento dos combates políticos por serem de masiadamente bélicos Há 2500 anos que a pregação de um príncipe pouco importante do Nepal mar cou inumeráveis gerações do Oriente não fomentou nenhuma guerra e ensi nou aos homens a serenidade e a tolerância Citemos alguns textos dos livros canônicos O ódio jamais pode parar o ódio somente o amor pode parar o ódio essa lei é antiga Se numa batalha um homem vencesse mil homens enquanto um outro vencesse a si mesmo o maior vencedor seria o segundo Nenhum fogo pode igualar a paixão nenhum mal pode igualar o ódio ne nhum sofrimento é comparável ao provocado por essa vida carnal não há feli cidade maior do que a paz Jorge Luís Borges Questce que le boudhisme 1976 Gallimard 1979 col Idées 292 História das ideias políticas Restam então como exemplos o judaísmo e o islamismo diretamente implicados nos conflitos políticos do século XX pelo menos no que se refere à constituição de NaçõesEstado Do judaísmo ao sionismo Herzl Judaísmo e nacionalismo mantêm relações tão particulares que a termino logia habitual não é conveniente para o caso O Estado de Israel complica o problema ao mesmo tempo em que o exacerba já que a questão sionista duplica a questão judaica Na origem uma aberração a saber a sobrevivên cia da comunidade judaica embora toda a sua história objetivà se encami nhasse no sentido do desaparecimento dela Antes de evocar as controvérsias sobre a relação entre judaísmo e Estado de Israel é preciso inicialmente in vestigar a estranha relação entre a religião judaica e uma certa ausência de Estado É preciso então insistir no fato de que a primeira versão do mono teísmo possui dois elementos essenciais muito específicos o formalismo e o messianismo O formalismo judaico é original no fato de que leva muito mais a uma moral da Lei do que a uma moral da Fé para retomar a distinção de Blandine BarretKriegel A religião judaica supõe que a cidade de Deus tem uma vocação terrena sem esperar o juízo final a ética comunitária deve ser preser vada a identidade judaica reside no res peito pela Lei pelos valores aceitos por todos e para todos e muito mais do que a salvação indivi dual prometida não na afirmação da Fé na simples crença em Deus e em sua Igreja Tu tu perseguirás a justiça Deuterônomo IV 8 Moral da Lei lei e moral direito e religião vão de mãos dadas e a comu nidade judaica observa preceitos precisos em matéria de legislação familiar socioeconômica política e cultural e até regras alimentares ou profiláticas detalhadas O messianismo judaico é igualmente específico O Deus dos judeus é o que e Jesus Cristo não é seu Messias O Messias virá mas na verdade ele não vem e não poderia receber uma encarnação terrestre É a Espera contra toda espera a recusa de toda consolação no Além o ancoradouro da espe A NaçãoEstado 293 rança colocado na vida O povo eleito portanto não deve ser interpretado como a pretensão a uma superioridade intrínseca sobre os outros homens O povo só é eleito pela liberação de todos os homens seu particularismo é universalismo a redenção de Israel é a salvação da humanidade o retorno à Terra Prometida equivale a uma promessa de terra para todos da vitória do Bem a vitória de Jeová o reino da justiça Tudo poderia ficar nisso não fosse a história a começar pelo perfeito su cesso e pelo total fracasso da assimilação Do século XVII ao século XIX os judeus do Ocidente aderiram à filosofia das Luzes e defenderam o processo de emancipação Numerosos foram os judeus que quiseram tornarse cida dãos e portanto assimilarse ao mesmo tempo em que simetricamente a lógica do EstadoNação e da modernidade tende à anulação da especifici dade judaica A Constituinte quando da Revolução Francesa revoga todos os adiamentos reservas exceções inseridos nos decretos anterio res relativos aos indivíduos judeus que fizeram profissão de fé cívica que será encarada como uma renúncia a todos os privilégios e exceções introduzidas an teriormente em favor deles A assimilação só teve êxito parcial porque renasceu o antissemitismo Desde o fim do século XIX o caso Dreyfus revelou quanto a sociedade fran cesa é antissemita Desde a invasão alemã o regime de Vichy recordou an tecipando as exigências nazistas o antissemitismo da direita francesa e por exemplo decretou um estatuto dos judeus já em 3 de outubro de 1940 O Estado francês decide excluir os judeus dos postos de direção no exército na função pública no ensino na imprensa no rádio no teatro e no cinema e introduzir cotas para eles nas profissões liberais Permite que 7 5000 judeus sejam deportados entre os quais no verão de 1942 crianças mulheres e ve lhos o que impede crer que se se tratasse de uma simples deportação de trabalho e dos quais somente 2500 escaparam dos campos de extermínio Na Europa do Leste o advento do socialismo não impediu a persistência do antissemitismo por vezes encorajado pelos dirigentes Por seu lado Lê nin inicialmente favorável às reivindicações autonomistas pronunciouse com virulência em favor da assimilação A cultura nacional judaica eis a palavra de ordem dos rabinos e dos burgue ses Quem formular direta ou indiretamente a palavra de ordem da cultura nacional judaica quaisquer que sejam suas boas intenções é um inimigo do proletariado partidário do que é antigo citado por Annie Kriegel Les Juifs et le monde moderne Le Seuil 1977 294 História das ideias políticas A persistência no Leste como no Ocidente do antissemitismo contri buiu para o advento do sionismo político Em 1896 Theodor Herzl escritor húngaro publicou O Estado ju daico Procura de uma solução moderna para a questão judaica Um ano mais tarde reuniu em Basileia o congresso constitutivo da Organização Sionista Mundial nascera o sionismo Herzl pregava a criação de um Estado judaico a partir da constatação do fracasso da assimilação Por toda parte tentamos lealmente nos fundir com as coletividades nacionais que nos cercavam salvaguardando apenas a fé de nossos pais Inutilmente so mos patriotas fiéis até mesmo em certos países de exuberantes patriotas inutil mente aceitamos os mesmos sacrifícios em dinheiro e sangue que nossos com patriotas inutilmente nos esforçamos para elevar a glória de nossas respectivas pátrias no domínio das artes e das ciências assim como para aumentar suas riquezas através do comércio e da troca Os povos entre os quais vivem os judeus são sem exceção aberta ou enver gonhadamente antissemitas Portanto é certamente o antissemitismo que impõe o sionismo o rea grupamento do povo judeu num território com vistas a nele construir um Estado judeu Somos um povo uno ainda que sejamos um povo apesar de nós A Palestina continua a ser nossa pátria histórica inesquecível Seu simples nome constituiria um grito de alinhamento de irresistível poder de atração para nosso povo Quanto aos lugares sagrados da cristandade poderíamos concor dar uma forma de extraterritorialidade Formaríamos a guarda de honra em torno dos Lugares Sagrados garantindo com nossa própria existência o cum primento desse dever Essa guarda de honra simbolizaria para nós a solução da questão judaica depois de dezoito séculos de cruéis sofrimentos No projeto de Theodor Herzl o Estado de Israel quer se situe na Pa lestina como seria desejável ou em outra parte se for preciso deverá ser um Estado constitucional não ditatorial que sirva como modelo Herzl imagina uma República aristocráticà um governo dos melhores recusando qualquer solução teocrática Se nossa fé cria nossa unidade a ciência nos torna livres Por conseguinte não admitimos que se acentuem as veleidades teocráticas de nossos chefes religio A NaçãoEstado 295 sos Saberemos mantêlos em seus templos assim como manteremos em suas casernas nossos soldados de carreira As ideias de Herzl foram vigorosamente contestadas no próprio seio da comunidade judaica Seriam necessários os campos de extermínio nazistas para suspender muitas restrições mas não para afastar a resistência árabe subestimada pelo fundador do sionismo Mesmo com esses alguns milhões de cadáveres a mais a comunidade religiosa judaica não se tornou unânime alguns criticaram esse pequeno retorno em vez de um grande retorno Os judeus foram coagidos ao Estado Não se terá operado uma inversão pela qual o Estado já não é o instrumento do sionismo mas o sionismo o instru mento do Estado Nesse caso o judaísmo perderia sua especificidade I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFI CAS Eisenberg J Une histoire des Juifs CAL 1970 Poche Herzl T IÉtat juif 1896 Jerusalém 1954 Poliakov L Histoire de lantisémitisme CalmannLévy 1977 Do Islã ao islamismo Afghani Khomeini Kadhai A importância da religião manifestase de imediato nas dificuldades termi nológicas As confusões que frequentemente se estabelecem entre muçulma nos e árabes entre o islã e o mundo árabe decorrem precisamente do papel motor da religião na civilização árabe Isso não impede que a maioria dos muçulmanos não seja árabe e que numerosos árabes não sejam muçulma nos o que implica a necessidade de recordar as definições Os árabes eram originariamente um conjunto de povos que viviam na Arábia possuindo uma língua e cultura comuns Nesse sentido os árabes existem pelo menos desde nove séculos antes de Cristo e quinze séculos antes de Maomé sempre nesse sentido estrito existem hoje menos de 30 mi lhões de árabes puros Foi com Maomé 570632 fundador da religião muçulmana islã que o religioso e o político se imbricaram já que foi em nome do islã e pelo islã que os árabes efetuaram suas grandes conquistas dos séculos VI e VIII Em 750 eles dominavam regiões que se estendiam dos Pireneus aos portos da China História das ideias políticas Os árabes designam hoje um conjunto de homens que reconhecemse como tais árabes puros arabizados arabófonos consideram a língua árabe sua língua natural julgam pertencer a uma só nação a nação árabe Nesse sentido havia em 1980 cerca de 150 milhões de árabes Os muçulmanos são os adeptos da religião islâmica da qual Maomé Muhammad ou Mahommed em árabe é o profeta Muçulmano é uma tra dução do árabe moslem que significa crente fiel O termo é estritamente si nônimo de maometano hoje em desuso Em sentido estrito e com minúscula islã é o nome dessa religião dos muçulmanos palavra árabe que significa paz superior piedade divina Por extensão e com uma maiúscula Islã designa a comunidade dos po vos que professam a religião muçulmana o islã e a civilização que com ela se relaciona Havia em 1980 cerca de 550 milhões de muçulmanos Portanto convém distinguir vários tipos de situação i Indivíduos árabes mas não muçulmanos sempre existiram judeus cristãos ou ateus exemplos no Líbano ou em Israel 2 Países muçulmanos mas não árabes cujo Estado é laico Turquia depois da proclamação da República por Mus tafa Kemal em 1923 Senegal Mali Afeganistão cujo Estado é isldmico Somália Paquistão depois de 1978 Irã desde a Re volução de 1979 etc 3 Países árabes e muçulmanos principalmente na África do Norte e mais ainda no Oriente Próximo cujo Estado é laico embora em alguns os dirigentes se refiram ao Islã Egito Sudão Kuwait Bahrein Qatar Emirados Árabes Unidos Tunísia Argélia Sudão enquanto outros pregam um laicismo mais radical Ira que Síria Iêmen do Sul cujo Estado é islc1mico Arábia Saudita Iêmen do Norte Omã Líbia Mar rocos e com contestações sobre seu caráter árabe Mauritânia Essas distinções todavia não devem ocultar a imbricação entre o fato linguístico árabe e o fato religioso islâmico O alcance político do islã reside em primeiro lugar nessa realidade histórica ele serviu como vetor para o expansionismo árabe e como núcleo para uma civilização Um traço A NaçãoEstado 297 singular da religião muçulmana desempenha aqui um papel determinante O Corão o texto da revelação é a própria palavra de Deus ditada ao profeta Entre 612 e 632 Deus transmitiu suas palavras ao último de seus profetas Muhammad Maomé 570632 Disso resultou o Livro composto por 114 suratas ou capítulos divididos por sua vez em versículos Em outras pala vras a doutrina religiosa social e política do islã é enunciada pelo próprio Alá ela é sagrada como é sagrada a língua árabe que a expressa Portanto o programa do islã se identifica com uma civilização árabe conquistadora Comporta ao mesmo tempo uma purificação política e mo ral Muhammad em nome de Deus denuncia a decadência das tribos árabes que perderam sua frugalidade e sua honra passadas sacrificadas ao culto do dinheiro à desigualdade à corrupção O islã exalta assim a renovação árabe exaltação que lhe permite ser as sociado às lutas de libertação O ideal muçulmano assim foi contraposto sucessivamente à dominação turca e ao colonizador europeu A relação entre o Império Otomano e o islamismo é ambivalente foi a Turquia que garantiu do século XI ao século XVI a unidade do mundo mu çulmano graças ao seu império centralizado mas essa unidade se operou em detrimento do antigo Império Árabe que precisamente o islã soubera constituir contra o Império Bizantino e que atingira o seu apogeu entre os séculos IX e X Assim um dos primeiros levantamentos árabes contra a po tência turca se fez em nome do islã O waabismo do nome do seu fundador Muhammad ibn 1bdalWahhab 170392 pregava na Arábia o retomo à pureza do islã Provocou uma insurreição vitoriosa nas cidades sagradas Meca e Medina que só será derrotada ao cabo de uma guerra de sete anos 1818 No final do século XIX foi igualmente em nome do retorno a um islã puro que Abd alRahman alKawâkibi 18491902 exaltou o nacionalismo árabe cujo renascimento deveria passar pela regeneração do califado árabe Instituiçãochave do islã o califado aparece como igualmente ambiva lente teocrático porque o califa é sucessor do profeta lugartenente de Deus e o Livro Sagrado lhe impõe obediência Quem obedece ao profeta obedece a Deus Corão IV 80 democrático porque o califa deve ser designado ou pelo menos aceito pela comunidade dos crentes o Umma Somente o povo reunido diz o Corão está certamente de posse da verdade História das ideias políticas Desse modo o acento pode ser colocado conforme as circunstâncias e as forças sociais envolvidas na submissão ou na reconstituição da comu nidade A purificação política e moral permite também se opor à dominação eu ropeia e o islã cumpriu essa função mais no Oriente Próximo de resto do que na África do Norte Sabese que a penetração europeia foi inicialmente comercial e começou desde o século XVI O panislamismo só apareceu no final do século XIX em face da colonização propriamente dita 1830 con quista da Argélia pela França 1839 ocupação de Aden pela Inglaterra 1882 ocupação do Egito Gamal adDin Afghani 183997 um dos fundadores do panislamismo preparou esse deslocamento da luta contra o Império Otomano para a luta contra os ocidentais mas essa dualidade de adversários dividiu precisamente os movimentos islâmicos já que à divisão entre reli giosos integristas e muçulmanos modernistas superpôsse a opção entre o apoio aos turcos contra os ocidentais ou mais raramente o inverso e o combate contra todos os estrangeiros Nem no século XIX nem hoje a invocação do islã pode ser reduzida a uma só concepção política Podemos opor ao preço de algumas simplifica ções pelo menos dois polos 1 Um islã ocidentalizado no qual a religião muçulmana deve permitir a modernização política e econômica no qual a referência ao Corão elimina todos os seus arcaísmos e rigorismos Essa orientação dá lugar a duas variantes Liberal quando a ocidentalização é concebida como uma moderni zação econômica que se inspira no esquema capitalista Essa corrente pode defender uma monarquia constitucional foi o destino do Istiqlal partido da independência animado pelo marroquino Allal alFassi que se tornou o principal sustentáculo de Muhammad V depois Hassan II ou uma repú blica como no Egito de Anwar el Sadat Socialista ou socializante quando o acento é posto sobre a busca de um modelo de desenvolvimento redistributivo por exemplo no Marrocos a União Nacional das Forças Populares cisão de esquerda do Istiqlal animado em 1959 por Mehdi Ben Barka ou ainda o Egito de Gamal Abdel Nasser 191870 e o que frequentemente ocorre ao mesmo tempo a afirmação de um nacionalismo árabe mais laico do que islâmico é o caso do Baas ou Partido Socialista da Ressurreição Árabe cujos dois ramos rivais exercem o poder desde 1963 na Síria e desde 1968 no Iraque Mesmo nesse último caso a referência ao islã não desaparece completamente já que na Síria A NaçãoEstado 299 e também na Argélia a Constituição reserva a detenção do poder supremo a um muçulmano 2 Um islã integrista para o qual o retorno ao Corão não deve ser objeto de nenhuma modernização mas levar até seu termo a purificação moral e po lítica Esse polo rigorista é também terceiromundistà o que mostra como não é possível compreendêlo com categorias políticas do tipo direitaes querdà Ele conduz ao mesmo tempo ao ultraconservadorismo religioso e por vezes social e à mais radical rejeição do Ocidente satânico e corrupto É o caso da Irmandade Muçulmana associação criada no Egito em 1928 pelo xeque Hassan alBanna para concorrer com o Partido Wadf criado dez anos antes por nacionalistas considerados excessivamente ocidentalizados É o caso a partir de 1979 do Irã onde a revolução que derrubou a di tadura do xá Muhammad Reza Pahlavi é animada pelos líderes religiosos xiitas dirigidos pelo aiatolá Ruhollah Khomeini e cuja legitimidade decorre exclusivamente do islã O xiismo confere uma autoridade talvez maior ainda aos religiosos do que o sunismo islã dominante do qual ele se separou quando Ali genro do profeta Maomé foi afastado do califado em 657 O xiismo com efeito distinguese do sunismo pela importância atribuída à razão na interpretação dos textos pelas gnoses do Corão com o objetivo de revelar sentidos ocultos pela espera do retorno antes da ressurreição e do juízo final pela atribuição ao imã aiatolá supremo da legitimidade absoluta en quanto descendente do profeta e depositário do sentido real do Corão O imã portanto é superior a qualquer outro poder um poder tempo ral que contradiga o chefe da comunidade religiosa é por esse simples fato usurpador Uma hierarquia religiosa extremamente poderosa desenvolveuse com base nesses princípios e manifestou várias vezes sua potência contra o es trangeiro 1826 desencadeamento do jihad guerra santa contra a Rús sia tzarista 1889 greve dos fumantes desencadeada pelo aiatolá Chirazi até a denúncia da concessão do tabaco persa a uma sociedade inglesa 195053 apoio a Mossadegh em favor da nacionalização do petróleo 1979 derrubada do xá Khomeini restaura o despotismo teocrático do islã Todo o povo deve ser islâmico é preciso unidade de opinião unidade de expressão unidade de ação 300 História das ideias políticas Obedeçam a Deus e aos que dentre vocês detêm a autoridade di vina O único governo aceito por Deus no dia da ressurreição deve ser organizado segundo as leis divinas e isso só é possível com o controle dos religiosos Disso resulta que o governo islâmico não é um governo cons titucional onde as leis sejam subordinadas à aprovação das pessoas ou da ma1ona Finalmente parece ser essa a inspiração do coronel líbio Muammar alKadhafi ainda que esse ponto seja muito controverso pois a revolução líbia agrupa elementos muito díspares Ela começa pela derrubada de uma monarquia islâmica tradicional 1969 e empreende um caminho nasserista Mas a República líbia restabelece o código penal da charia a lei islâmica que resulta do Corão Exemplos Os homens têm autoridade sobre as mulheres Censurem aquelas de quem vocês temem a infidelidade releguemnas em quartos isolados e batam nelas Mas não continuem a recriminálas se elas lhes obedecerem Deus é supremo e grande Surata IV 34 Cortem as mãos do ladrão e da ladra será uma retribuição pelo que eles cometeram e um castigo de Deus Deus é poderoso e justo Surata V 38 Sob outros aspectos a revolução líbia parece ligarse mais ao islamismo reformista inspiração rousseauniana do Livro Verde advento proclamado em 19n da era das massas dissolução do partido único enquanto partido e da República Árabe Líbia enquanto Estado nascimento do poder das massas Jamahir e da ahahiriya Árabe Libia Popular e Socialista referência apenas ao Corão e recusa da tradição a Sunna enquanto fonte do direito pers pectiva da abolição do salariato e supressão imediata de qualquer forma de aluguel a começar pela dos apartamentos etc No conjunto o gaddha fismo kaddhafismo ou quadhdhâfismo mistura o islamismo o socialismo terceiromundista e a democracia direta para levar a um discurso sincrético e a um poder que por ser qualificado de popular nem por isso deixa de pos suir virtualidades totalitárias A NaçãoEstado 301 O exemplo líbio atesta os limites da distinção integrismomodernismo ao mesmo tempo em que mostra que as combinações de ambos não se si tuam necessariamente emsobre uma posição intermediária mas podem misturar os extremismos Finalmente ele revela que as referências ao islã em geral e ao povo em geral são suscetíveis de acumular as abstrações para manter agrupada a NaçãoEstado Para de imediato sacralizar o ca ráter arbitrário de uma política incapaz de exibir no presente as provas de sua validade Marx pensava em 1843 que a crítica da religião estava no es sencial concluídà Enganavase redondamente A crítica da religião deve ser constantemente retomada nem mais nem menos que a crítica do Estado I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFICÁS Berque J Les Arabes dhier à demain Le Seuil 1960 Carré O La légitimation islamique des socialismes arabes Presses de la FNSP 1979 Gardet L Les Hommes de lIslam Hachette 1977 O Corão ed francesa Gallimard 1980 2 tomos col Folio Pouvoirs n2 12 Les régimes islamiques PUF 1980 Rodinson M Mahommet Le Seuil 1968 col Politiques A expressão EstadoCientista corresponde a um dado característico das sociedades contemporâneas a convivência entre Estado e a ciência que institui uma ordem singular e radicalmente nova Por um lado as atividades científicas assumem uma crescente importância até se tornarem uma questão de Estado Saber e poder se articulam e o seu vínculo engendra uma nova mentalidade uma nova sacralidade Por outro lado as chamadas sociedades pósindustriais tornamse tão complexas que são obrigadas a se pensar a se compreender a fim de se governarem É preciso inventarlhes uma sociologia e encontrar uma ciência da política Uma ciência da sociedade Ciência e sociedade O EstadoCientista começa com a reconciliação da ciência e da indústria O capitalismo exige que a técnica abandone o domínio da fabricação artesanal e que a ciência deixe de ser especulativa para descer à terra Não se trata mais de opor quem tem uma profissão a quem tem conhecimento de opor saber e poder Nos séculos XVII e XVIII ainda se perpetua a separação entre O EstadoCientista 303 conhecimento se estende à livre investigação científica e a ciência se torna ex perimental Nos séculos XIX e XX organizase progressivamente a fusão entre a ciência e a sociedade ambas visando à dominação da natureza Estabelece se uma continuidade entre os cultores da ciência pura e os engenheiros da ciência aplicada entre as leis descobertas pelos primeiros e os aparelhos in ventados pelos segundos Não se trata de uma cumplicidade política na qual físicos e capitalistas se dariam a mão mas de evoluções complexas e complementares de uma transformação concomitante das práticas científicas e dos estatutos da in dústria Até a Primeira Guerra Mundial essa convergência se fará fora do Estado contentandose com sua episódica tutela A partir dos anos 1920 o Estado se torna o organizador do par saberpoder Ele distribui o dinheiro define os segredos cimenta as hierarquias A ciência e a produção formam uma coisa só pois é única a cadeia que parte dos laboratórios do Massachu setts Institute of Technology e leva às fábricas de Hong Kong a cadeia que produz submarinos nucleares ou a ração para cães Uma transformação dessa amplitude passava por uma revisão radical da ideia de conhecimento Do mesmo modo como a revolução copérnicoga lileiana fez nascer a física moderna e essa ciência foi parte decisiva da revo lução industrial assim também foi indispensável transformar novamente a terra em pátria do saber e orientar o conhecimento para a inteligibilidade do mundo real Como dominar a natureza sem conhecêla Ou melhor conhe cer é dominar é fazer com que desapareça o mistério do objeto é entregálo à vontade dos homens que poderão transformálo O desenvolvimento das ciências sociais portanto processase em liga ção com o do Estado industrial Essa é uma primeira razão para abordar so ciólogos e politólogos numa história das ideias políticas Mais diretamente os cientistas não se libertarão nunca apesar do que por vezes afirmam de uma pretensão política Eles querem e vão fornecer um instrumento à polí tica vão extrair lições da observação social vão oferecer uma técnica cientí fica para o governo dos homens A ideia consiste decerto em formular uma ciência da sociedade contra as filosofias da história Aqui o empirismo triunfa e a sociologia toma corpo como disciplina de observação Mas se trata também de elaborar uma polí tica racional para que desmontar as engrenagens das sociedades políticas se não para fazer com que a máquina funcione melhor Acrescentemos que se a sociologia nasce com a industrialização há razão para sublinhar que ela se liga à Revolução Francesa esse evento tão radical quanto surpreendente depois do qual o Estado busca novos valores e os governantes tentam encontrar certezas que se sustentem Já que a subversão social é possível a ciência social tornase necessária direto Ela é política por seu excesso de neutralidade que toma a sociedade como um todo préconstituído O racionalismo de observação adotado por Durkheim evita certamente a superficialidade do empirismo ou os a priori da filosofia da história Mas definindo a sociedade como uma consciência coletiva pretendendo explicar o todo social Durkheim explica a vida coletiva tal como ela existe explicaa até legitimála Empréstimos a sociedade industrial sua coesão invocando sua totalidade Propõe assim sua estabilidade e subestima os conflitos que não são anomias casos patológicos 306 História das ideias políticas liza e busca uma finalidade E essas ações têm lugar numa sociedade ou seja numa cultura Como decodificar esse contexto Buscando o sistema de valo res adotado pela sociedade a fim de compreender por exemplo como um protestante inglês do século XVII podia ser levado a comprar bens e a fazê los frutificar Weber pôde então escrever sobre A ética protestante e o espírito do ca pitalismo explicar o aparecimento do capitalismo europeu e ligálo à con cepção calvinista do mundo O puritanismo proíbe o homem de conhecer os decretos de Deus mas o obriga a engrandecer seu Reino cá embaixo O trabalho então confirma a fé dos predestinados Ele é oração A organização racional do trabalho e a acumulação do capital enriquecem a vida humana não porque proporcionam dinheiro ao homem mas por lhe provarem que ele é um eleito de Deus Por conseguinte o capitalismo não nasceu apenas quando um capital foi acumulado quando ocorreram transformações técnicas e quando uma classe tomou consciência de seu interesse econômico Nasceu quando os ho mens o desejaram quando homens conceberam o mundo diferentemente e quando o submeteram a essa nova concepção Para confirmar a validade de sua interpretação Max Weber sublinha que a China pôde conhecer acumulação de capital e revolução técnica sem que lá nascesse a revolução industrial faltava a ética suscetível de mover o con junto Todavia seria abusivo concluir que Max Weber opõe ao Econômico de Marx um Religioso que determinaria sempre o curso da história Ele se contenta em revelar uma configuração singular na qual o fator religioso teve essa primazia Para além da gênese do capitalismo Max Weber pôs a nu a dimensão do político no Estado O andamento de sua investigação consiste então em cons truir categorias abstratas que ajudem a captar sociedades concretas quando essas são confrontadas com tais categorias O sociólogo imagina assim dois tipos de sociedade dois modelos que enquanto tais não existem nunca mas oferecem pontos de apoio a comunidade Gemeinschaft na qual os indivíduos são fortemente integrados no todo social e atuam se gundo a tradição e os dados afetivos de natureza religiosa e a sociedade Gesellschaft à qual os participantes aderem calculando seus interesses mútuos e na qual atuam com o objetivo de obter os acordos mais vantajosos O EstadoCientista A Gesellschaft tornase agrupamento quando um contrato explícito une seus membros empreendimento quando sua finalidade é determinada de modo racional instituição se o empreendimento puder impor aos membros seus comportamentos mediante decretos ou leis Qualquer que seja sua racionalização a ordem política permanece mar cada pela dualidade entre a tendência ao conflito e a tendência à integração Ela se caracteriza pela emergência da potência a Herrschaft ou dominação pela qual dominantes e dominados constituemse em grupo político O Es tado então é essa instituição que exerce a dominação no espaço um territó rio e no tempo a história esse monopólio da violência física legítima Uma vez estabelecida essa especificidade do político e restabelecida a evidência em virtude da qual o Estado exige obediência Max Weber elabora uma tipologia da dominação Ele distingue o poder carismático no qual a legitimidade remete a uma transcendência a um princípio com o qual o líder mantém uma relação privilegiada O líder carismático detém sozi nho a autoridade seus fiéis não podem receber senão delegações excepcionais Exemplo o bonapartismo o poder tradicional cuja legitimidade é fundada no peso do passado e em sua aceitação o qual dita as regras particulares Os titulares da autoridade devem obediência pessoal a seus superiores O poder deles é arbitrário Exemplo as monarquias absolutas o poder racional A legitimidade é fundada num corpo de regras legais de regras gerais Os ti tulares da autoridade estão limitados a uma esfera definida de competência O poder deles é estabelecido pelo direito Exemplo os Estados burocráticos Qual é a lição política desse trabalho Max Weber não formula nenhuma Ele se atém ao corte de princípio entre a reflexão científica que anuncia ape nas juízos de fato e a atividade política que fabrica ou reproduz valores As conclusões científicas não induzem a nenhum valor e ao contrário o esta belecimento das verdades deve repudiar todo valor Apesar dessa separação entre o cientista e o político o acento que o sociólogo alemão coloca na uni versalidade da burocracia no Estado moderno e portanto implicitamente no caráter secundário das oposições capitalismosocialismo ou ditadurade 308 História das ideias políticas mocracia não podem deixar de ter efeitos políticos As perspectivas traça das por suas análises tendem a privilegiar bem mais o melhoramento da so ciedade burocrática do que o advento de uma impossível democracia Todavia não é simples resumir as ideias políticas de Max Weber Ou melhor seria simplista utilizar suas formulações sobre o chefe carismático para fazer dele um hitleriano precoce ou referirse à Ética protestante para considerálo um antimarxista radical E de resto não importa saber se Max Weber era antimarxista ou amarxista ou se teria ficado fascinado ou horro rizado com Hitler Mais segura revelase sua desesperança em face da socie dade burocrática que elimina o indivíduo o apelo secreto de Weber a reen contrar o sagrado Max Weber foi o primeiro a compreender a sociedade pósindustrial e a ver como ela perdeu a dimensão religiosa de suas origens para não funcionar senão segundo sua própria gravidade Máquina vazia que gira em torno de si mesma ela abandona a cultura e se submete a uma racionalização extre mada que esmaga todos os valores E Weber não crê que as sociedades hu manas possam progredir sem valores contentandose com a verdade prática não crê que elas possam avançar sem um Deus É aqui que sua visão aparece radicalmente oposta ao desafio marxista Ele interpela o EstadoCientista excessivamente cientista para que ele se salve por meio de novos valores e se eleve através de novos heróis I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFI CAS Aron R Les étapes de la pensée sociologique Gallimard 1967 Weber M A ética protestante e o espfrito do capitalismo 19041905 ed brasileira Pio neira São Paulo 1967 A política e a ciência como vocação 1919 ed brasileira in Ensaios de sociologia ed por HansGerth e C Wright Mills Zahar Editores Rio de Janeiro sd p97183 Economia e sociedade 1922 ed brasileira parcial Ensaios de Sociologia cit Vilfredo Pareto ou a propaganda pelo fato Como todos os estudiosos do social Pareto pretende ser científico e acredita obter isso por meio de um ultrapositivismo A ciência é apenas lógicoexpe rimental o observador é neutro somente os fatos é que contam Constituir um conceito é inútil ou perigoso pretender estabelecer núcleos de inteligi O EstadoCientista 309 bilidade que só se justificariam pela pura racionalidade corresponde a uma ilusão filosófica A observação científica e as opções políticas de resto não teriam nenhuma relação entre si Uma mesma doutrina pode ser recusada do ponto de vista experimental e admitida do ponto de vista da utilidade social ou viceversa Portanto restam os fatos que o pesquisador irá agrupar Conhecese a célebre imagem do bêbado que perdeu sua chave numa rua e passou a buscá la debaixo do poste sob o pretexto de que aí havia luz O empirismo radical de Pareto cede a essa embriaguez a rua não existe a sociedade não existe como objeto há apenas fatos sociais zonas de luz nas quais o sociólogo pode operar aproximações fazer triagens propor classificações Nesse jogo de classificação indispensável para passar à posteridade Pareto brilha não sem talento Tudo parte da distinção entre ações lógi cas e ações não lógicas essas últimas em princípio são mais raras dada a paixão raciocinante do homem mas uma ação não lógica pode consistir em introduzir uma lógica onde não existe nenhuma onde meios e fins se contradizem Para classificar as ações convém conhecer os principais instintos do ho mem o que Pareto chama de resíduos Ele distingue dois instintos funda mentais o instinto de combinação pelo qual o homem espírito lógico gosta de calcular e o instinto de inércia em virtude do qual o homem de natureza conservadora opõese a que as coisas que estão unidas se sepa rem Acrescentamse a esses outros quatro instintos manifestação de seus sentimentos sociabilidade e conformismo piedade individualismo As so ciedades apelam predominantemente para esse ou aquele tipo de instinto Atenas cultivava o instinto de combinação próprio às sociedades democráti cas já Esparta cultivava o de conservação e isso tornava inevitável o conflito entre as duas cidades Os efeitos políticos desse edifício que nós simplificamos ao extremo são claros A distinção fundamental entre condutas lógicas e não lógicas permite denunciar as ilusões democráticas ou a fortiori socialistas condenadas à con tradição entre os fins de libertação e os meios autoritários Toda sociedade é dirigida por elites que se apoderaram do poder graças à sua arte combinatória Mas as elites que fazem a história correm o risco de se perder nela Desgas tamse combinam excessivamente esquecemse do instinto de inércia negli genciam a preocupação com a persistência dos agregados intelectualizamse separamse das massas A história é um cemitério de aristocratas Pareto recomenda aos dirigentes do século XX que se acalmem orga nizem a circulação das elites renovem seus membros para melhor se man 310 História das ideias políticas terem E já que é um fato que as elites fazem as sociedades já que é um fato a necessidade de uma elite viril para dirigir a massa Pareto será de fato liberalfascistà representante do governo Mussolini na Sociedade das Na ções mas defensor da liberdade de imprensa Sobretudo será um dos pri meiros doutrinários do antidoutrinarismo desses fanáticos do fato para os quais as massas devem inexoravelmente se submeter ao que é I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFICAS Busino G Introduction à une histoire de la sociologie de Pareto Genebra 1966 Pareto V Les systemes socialistes 1903 Traité de sociologie générale 1916 Genebra 1968 Eric Weil ou a política da razão O ponto de partida da concepção política desenvolvida por Eric Weil 1904 77 é filosófico no sentido estrito da palavra Renovando as perspectivas do pensamento especulativo clássico e apoiandose nos resultados adquiridos por Kant por Hegel e pelo que há de hegeliano nas investigações de Marx a con cepção de Weil considera fundamental o fato de que o homem animal social e histórico é razoável nem racional as provas de suas loucuras são demasia damente frequentes nem irracional ele busca constantemente a coerência de seu discurso e de sua conduta mas simplesmente capaz de razão Como tal ele busca a satisfação a vida plena e transparente mas porque é social porque fala essa satisfação só vale se for reconhecida por aqueles com quem ele vive e no limite pela humanidade inteira Assim o homem visa ainda que não o saiba ao universal a própria ação egoísta quer a dimensão universal Sendo assim a política é definida como a ciência da ação razoável ela diz respeito à ação universal a qual embora seja por sua origem empírica ação de um indivíduo ou de um grupo não vísa ao indivíduo ou ao grupo enquanto tais mas ao gênero humano Nessa óptica é claro que as ciências sociais por mais úteis que sejam na medida em que estudam as condições empíricas da ação são incapazes de definir a ação razoável Essa como ação política só pode ser compreendida em função de uma dupla referência ao indivíduo sujeito normal que busca O EstadoCientista 311 quer queira ou não o acordo consigo mesmo e o gênero humano histórico lugar de toda satisfação possível e duradoura O indivíduo quer ao mesmo tempo a satisfação e o universal como ser moral ele se pretenderia universal Mas não poderia estar só por causa disso não pode deixar de pôr problemas políticos Talvez se possa pensar que lhe basta estar de acordo com seu grupo histórico e portanto que não existam problemas políticos mas somente soluções Mas o que acontece quando o grupo contradiz a exigência de universalidade Quando ele se recusa a co locar a questão de sua inserção no gênero humano universal concreto A resposta é dada por Sócrates é preciso em nome da moral julgar a política Em outras palavras o direito positivo de uma dada sociedade histórica não pode ser aceito como norma transcendente Pelo menos é o que a histó ria estabelece ela está repleta de rebeldes que para estarem de acordo con sigo mesmos tomam o partido de julgar sua sociedade e suas regras preci samente em nome da universalidade que buscam ao buscarem a satisfação O problema político surge inelutavelmente a partir do momento em que se compreende que o direito positivo tem de ser referido a esse direito universal que é subjacente à sua própria essência Esse direito universal assume de acordo com a época diferentes figuras está sempre presente como instância e impõe uma tarefa ao sujeito ou seja a tarefa de definir por exemplo para além das normas em uso o que seria a justiça Assim Eric Weil dá uma representação da antiga ideia de direito natural que assegura o dinamismo da mesma as condições da justiça da liberdade da dignidade etc não são em cada época as mesmas mas essas reivindicações em cada época intervêm como exigência de superação de recusa do dado e como fermento Nesse sentido o indivíduo moral já é um educador a partir do momento em que aceita o problema político isto é o questionamento do direito posi tivo E o filósofo que tampouco pode deixar de se ocupar de política que é concebido por Eric Weil conforme a tradição clássica como o homem que compreende a si mesmo é o educador por excelência se quer ser coerente deve considerar que é responsável pela liberdade A tarefa de filósofo educador consiste em discernir a razão no mundo ou seja em descobrir as estruturas do mundo em vista da realização da liberdade razoá vel Philosophie politique p57 Sua atividade pertence ao terreno do conhecimento Ora o que ele co nhece na época atual é a comunidade humana organizada como comunidade 312 História das ideias políticas de trabalho seu sagrado é a dominação da natureza é a razão calculadora materialista e mecanicista Essa comunidade que existe de direito é por um lado dividida em povos e em Estados é comandada de diversas maneiras por mecanismos sociais que subjugam os indivíduos Para esses últimos tais mecanismos constituem uma segunda natureza quer a economia seja libe ral ou dirigistà os indivíduos se encontram diante de uma única neces sidade a de se valorizarem de se tornarem preciosos uns aos outros id p77 eles estão submetidos à pressão das circunstâncias à ameaça de desemprego de falência ameaça de ir para o campo de trabalho for çado de ser processado por sabotagem id p78 Sendo assim a competi ção é a regra de conduta deles A essa situação acrescentase o fato da divisão do gênero humano em nações cada uma delas vê as outras nações como situadas numa exteriori dade natural que deve ser combatida Lutas de classes lutas internacionais o indivíduo preso pelo racional é mergulhado na absoluta irracionalidade Por causa disso na sociedade moderna o indivíduo está completamente insatisfeito id p93 Há conflito no seio da moral viva entre a determina ção racional da eficácia e a vontade de cada um de dar um sentido à sua vida aqui e agora Essa insatisfação levao a se comprometer na ação histórica com o ob jetivo de realizar o universal concreto Nesse empreendimento chocase com um Estado cuja função histórica é assegurar a sobrevivência da comuni dade contra a derrota externa e a dissolução interna Para obter isso o Estado edita leis e se apoia numa administração Segundo Eric Weil os debates sobre os regimes são abstratos e anedóticos porque os regimes resultam do pró prio dado histórico Contra esse dado o filósofoeducador não pode muita coisa sua missão é lutar contra os dogmatismos tecnocráticos e políticos e denunciar os envolvimentos passionais Tratase sobretudo na época atual de recordar que o cálculo de eficácia inelutável não poderia desconhecer o sentimento de justiça que permanece constantemente presente a despeito do egoísmo imposto pelas circunstâncias e que a expressão desse sentimento su põe a possibilidade de uma discussão livre dos cidadãos e de uma educação que permita a cada um dar sua opinião com conhecimento de causa O ob jetivo do filósofo político portanto consiste em assegurar uma organização mundial de tal natureza que nela possa existir a satisfação dos indivíduos razoáveis no interior dos Estados particularmente livres id p240 Fortemente marcado pelo ensinamento hegeliano Eric Weil não crê ser possível escapar de uma visão em última instância necessitarista da histó ria e da formaEstado como quadro obrigatório da vida razoável Mas ele co A ciência como força social Os filósofos como Eric Weil os sociólogos como Max Weber os engenheiros como Taylor e os revolucionários como Lênin concordam em maior ou menor medida na ideia de que o mundo se unifica em torno do princípio do trabalho ou mais exatamente que o trabalho moderno tornouse o elemento essencial de todas as sociedades qualquer que seja o tratamento social que eles lhe aplicam 314 História das ideias políticas cimento do Estado é idêntica a lógica é a mesma ditada pelo imperativo do desenvolvimento científico técnico industrial O questionamento difuso da civilização industrial tende hoje a fazer esquecer a dinâmica filantrópica do EstadoCientista Dominar a natureza diziase racionalizar o trabalho para ajudar o operário pensavase Taylor começou como operário depois tornouse capataz terminou como enge nheiroassessor em organização Quando no início do século concebeu a organização científica do trabalho Taylor pretendeu ao mesmo tempo livrar o operário de seu cansaço e poupar ao patrão as distrações dos operários Quis assim criar uma nova camada de trabalhadores cuja única função fosse pôr ordem nos comportamentos Taylor chega ao ponto de quantificar a re lação ótima entre departamento de pessoal capatazes e operários que seria igual a um para três um organizador para três produtores ou se se prefere um vigilante para três executantes Graças a essa racionalização do trabalho industrial os operários são ex propriados de suas habilidades técnicas savoirfaire Os conhecimentos tra dicionais outrora concentrados em suas cabeças incorporamse ao capital Taylor implanta o que Marx anunciara a fragmentação sistemática dos ges tos de trabalho a militarização científica das empresas na qual os operários se tornam a engrenagem automática de uma operação única de modo que termina por se realizar a absurda fábula de Menenius Agrippa que repre senta um homem como fragmento de seu próprio corpo a grande indús tria faz da ciência uma força produtiva independente e colocaa a serviço do capital K Marx O Capital Livro 1 Em favor da produtividade a ciên cia penetra na fábrica tanto no Ocidente como no Leste I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFI CA Chaplin C Tempos Modernos 1935 filme Taylor FW La direction scientifique des entreprises Verviers 1967 Lênin e o taylorismo Somos lentamente apressados costumava dizer Lênin A ideia justificou a NEP restauração parcial do capitalismo para salvar a perspectiva socialista Lênin defendia em virtude da mesma dialética a ideia de que a supressão da distinção entre trabalho manual e trabalho intelectual passava pelo fortaleci O EstadoCientista 315 mento dessa distinção Com efeito o agravamento da divisão do trabalho e com ele da natureza autoritária do processo de trabalho justificase se aparecer como condição para uma eficiência muito maior do trabalho produtivo e portanto do encurtamento do tempo de trabalho e portanto da participação do proletariado nas tarefas políticas e nas questões do Es tado Lênin Oeuvres Ed de Moscou tXX p93 Se o trabalho organizado e cronometrado permite ganhar quatro horas por dia devese recorrer a ele e utilizar essas quatro horas para o aprendizado da autogestão Lênin foi além desse raciocínio em termos de eficácia O dirigente bol chevique considerou o taylorismo como uma forma transitória de prepara ção ao socialismo A estandardização do trabalho manual lhe apareceu como uma transição possível para o socialismo através da generalização do traba lho manual a toda a sociedade Não esqueçamos que malgrado sua teoria do imperialismo Lênin partilha com Marx a certeza de que o comunismo marcha paralelamente com a opulência ou em outras palavras que a ex tinção do Estado passa por um aumento considerável da produtividade e no caso concreto da Rússia que é preciso construir a base econômica do comunismo Decerto é fácil criticar o monstruoso acoplamento da instauração de uma real democracia econômica e da instalação de uma não menos real ditadura técnica Decerto era audacioso recorrer ao modelo capitalista da grande indústria mecânica acreditando ser suficiente confiar a sua direção às mesmas pessoas que sofrem seus efeitos para com isso evitar seus perigos Mas seria preciso sofrer de amnésia para ignorar que a tentativa de superar essas contradições não pode ser mantida por muito tempo o que complica o balanço A história sacudiu o projeto e a guerra civil fez o mesmo com o proleta riado Nem por isso deixa de ser verdade que o stalinismo irá ganhar corpo a partir desses imperativos técnicos Não existem rupturas entre o taylorismo o stakanovismo a exaltação da racionalidade técnica a prioridade concedida à indústria pesada a afirmação de uma camada de engenheiros e de técni cos destacada do proletariado e o fortalecimento da autoridade organizadora do Estado Um problema verdadeiro encontrou uma solução catastrófica De qualquer modo Lênin se ateve à equação comunismo poder dos sovietes eletrificação o que permite ver nele um promotor do EstadoCientista E a dimensão industrial do bolchevismo foi tão negligenciada que vale a pena insistir aqui sobre a disjunção que se operou entre a revolução tecnológica e a revolução política Um tecnocrata giscardiano confessou um dia sua rela tiva admiração pelos dirigentes soviéticos que em meio século realizaram 316 História das ideias políticas uma revolução industrial mais rápida e menos custosa do que a ocorrida nos países capitalistas A classificação comparada só teria sentido se se somassem numa coluna as crianças mortas nas minas e na outra as crianças mortas nos campos Mas não é verdade que todos em nome do trabalho morreram pelo EstadoCientista James Burn ham a irresistível ascensão dos gerentes Burnham se situa entre Lênin e Taylor Não somente porque foi trotskista até 1933 e publicou The managerial revolution em 1940 porém mais ainda na medida em que retomou a ideia da importância da organização do trabalho generalizou seus efeitos integrouos numa concepção economicista do po der e no conjunto respondeu a Marx com Taylor Como os marxistas poderiam negar que as condições da produção de terminam a posse do poder político E Burnham constatou a uniformização crescente das infraestruturas no Hemisfério Norte O taylorismo triunfa da Califórnia aos Urais O crescimento industrial o ordenamento do mercado de trabalho e das riquezas assim como a produtividade máxima tornaram se os valores das nações avançadas As sociedades modernas se estruturam então segundo uma nova hierarquia social dominada pelos managers os organizadores Somente esses técnicos muito superiores possuem ao mesmo tempo com petências técnicas conhecimentos científicos e sobretudo capacidades psico lógicas e sociais indispensáveis para dominar já que os seres humanos são instrumentos de produção tão importantes quanto as máquinas e é preciso saber manejálos O poder na sociedade não pertence aos financistas muito especializados não passou para as mãos dos técnicos de laboratório cujo sa ber permanece excessivamente científico é detido pelos organizadores que coordenam o conjunto e dirigem o todo inclusive os homens Os managers já exercem o poder real é inelutável que se apoderam do poder legal e também aqui os marxistas não diziam outra coisa quando consideravam que na mo narquia francesa do século XVIII os burgueses já detinham o poder A era dos organizadores culminará assim em um regime ditatorial que triunfará por todo o mundo As superestruturas variarão em função das tradições his tóricas e Burnham considera apenas três dessas variações a soviética estati zada a alemã nacionalsocialista e a americana depois do New Deal Indicar quem detém o poder é conferilo a esse alguém Se se responder afirmativamente a distinção entre o cientista e o político desaparecerá De O EstadoCientista 317 resto o fato de que Burnham acreditasse na vitória da Alemanha nacional socialista não quer dizer que a desejasse Também seria apressado convertê lo no simples ideólogo dos managers James Burnham inscrevese antes na linha dos sociólogos desiludidos e sua obra pretende ser antes de mais nada uma desmistificação do comunismo Se o capitalismo está morrendo o po der dos produtores é impossível A lição política que disso resulta não deixa lugar a dúvidas é inútil esperar a revolução socialista acessoriamente seria reacionário empenharse na preservação do regime capitalista Resta então um reformismo tecnocrático que levará ao management Como observava Léon Blum a revolução será feita mas a revolução ditatorial substituirá a revolução social e no que toca à imensa massa dos proletários que não farão mais do que mudar de senhor e de explorador ela será feita para nadà I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFICA Burnham J The managerial Revolution 1940 trad francesa Eere des organisateurs CalmannLévy 1947 com prefácio de Léon Blum The Machiavelians Defenders of Freedom 1943 Les Machiavéliens CalmannLévy 1949 JK Galbraith Onde você trabalha A ascensão dos organizadores ultrapassa o estreito quadro da empresa O manager de um partido de uma administração ou de um sindicato par ticipará na direção do regime ditatorial John Kenneth Galbraith não de senvolverá essa generalização das teses de Burnham na medida em que irá preferir analisar o sistema econômico americano O autor de O novo Estado industrial investiga as motivações desses novos responsáveis Mais precisa mente ele pergunta que milagre faz com que suas motivações correspon dam às das grandes empresas nas quais trabalham Por que mecanismo os organizadores querem o que o EstadoCientista quer O que impulsiona a tecnoestrutura O dinheiro muito pouco as gratificações mais o social narcisismo 1 certamente A rentabilidade econômica é legitimada pela consciência de trabalhar numa empresa poderosa 1 A expressão é de Étienne Allemand in Pour une éthologie générale tese Paris VIII 1976 318 História das ideias políticas A grande sociedade continua a ser o símbolo do sucesso e do êxito na ordem da civilização Ela transmite esse prestígio a seus membros vale mais evidente mente pertencer à General Motors ou à Western Eletric do que ser um isolado A pergunta que automaticamente se fazem dois homens que acabam de se co nhecer na Flórida ou num avião é onde você trabalha E a tal ponto que se esse detalhe não for conhecido o outro é um enigma não se pode situálo num contexto ninguém sabe que grau de consideração ele merece Se o mana ger capitula diante da organização é porque essa faz mais por ele do que ele mesmo poderia fazer Le nouvel Etat industriei Gallimard 1968 p155 O que vale para determinada multinacional vale igualmente para uma certa administração mais ou menos apoiada no mito do serviço público Apesar da persistência de algumas diferenças a distinção entre público e pri vado tornase cada vez mais anacrônica Galbraith admite que cientistas e administradores se associam para constituir uma tecnoestrutura que governa Notemos que as teses do economista americano pretendem ser críticas Ele constata o desaparecimento do liberalismo econômico e com ele a elimi nação do poder do capitalismo na empresa e do consumidor no mercado A economia moderna é então dominada por algumas grandes firmas que invertem a lei da oferta e da procura e criam artificialmente necessidades irracionais a fim de aumentar indefinidamente o próprio crescimento Além disso a simbiose entre tecnoestrutura e burocracia permite ao conjunto apo derarse de toda a sociedade Uma interpretação esquerdista poderia fazer de Galbraith um defensor do capitalismo monopolista de Estado Uma leitura direitista veria nele um nostálgico da era liberal Na verdade o economista keynesianokennediano prega uma reorientação do papel do Estado na qual a burocracia se des tacaria das tecnoestruturas para satisfazer necessidades sociais Galbraith sobretudo inscrevese nessa série de autores americanos que com Daniel Bell ou Zbigniew Brzezinski veem na evolução dos Estados Unidos o fu turo do mundo I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFI CAS Bell D Les contradictions culturelles du capitalisme PUF 1979 Brzezinski Z A revolução tecnetrônica 1971 Galbraith JK A era da opulência 1961 O novo Estado industrial i968 ed brasileira Civilização Brasileira Rio de Janeiro i968 O EstadoCientista 319 A ideologia tecnoburocrática Foram os mesmos sociólogos americanos que inventaram a expressão sociedade pósindustrial e proclamaram o fim das ideologias É que o Es tadoCientista execra a ideologia contestável por natureza e a política que pressupõe oposição Preferelhes a gestão da sociedade pelos homens mais competentes Essa ideologia que tende a se tornar dominante tomou corpo nos anos 1930 e difundiuse entre as elites em oposição à política tradicional Para compreendêla talvez não seja inútil lembrar em que ela se definia contra a política antes de ver como esse dualismo simplista desembocou em novos valores Originariamente portanto temos duas orientações Uma salutar a promover Ciência verdadeiro Administração administrador Interesse geral Serviço público Neutralidade técnica Consenso unidade O Estado o público Permanência dos funcionários A outra nefasta a eliminar Ideologia falso Política político Interesses particulares Opções partidárias Compromissos sociais Divisões conflitos A Sociedade o privado Instabilidade dos governos Sob essa forma caricatural a ideologia tecnocrática não tinha nenhuma possibilidade de triunfar Apesar de seu modernismo ela contradizia de modo excessivamente brutal a legitimidade democrática de que os Estados ocidentais têm também e ainda necessidade Portanto ela se atenuou para melhor concordar com os novos valores dos governantes A conver gência foi facilitada por eventos históricos e transformações estruturais Na França a Resistência abalou as velhas elites obrigou altos funcionários ao compromisso desgostou a nova geração política dos partidos Em menor medida 25 anos mais tarde o Maio de 1968 produzirá efeitos análogos so bre a nova vaga de enarcas2 Além dessas importantes peripécias a diversifi cação dos papéis do Estado implicou uma politização da administração ao 2 Énarques no original ou seja pessoas formadas pela École Nationale dAdministration ENA que é conhecida por fornecer os quadros superiores da administração pública na França NT 320 História das ideias políticas mesmo tempo em que o fortalecimento do Poder Executivo favorecia uma funcionarização da política Desde a Libertação de resto altos funcionários e dirigentes políticos são recrutados no mesmo viveiro o da Escola Nacional de Administração Os enarcas que se tornam políticos reivindicam o mono pólio do saber sobre a técnica de decisão como os altos funcionários eles são capazes de decidir Os enarcas que continuam administradores reivindi cam a legitimidade representativa o diretor de música do Ministério da Cul tura representa os músicos melhor do que qualquer deputado saberia fazer o intendente de Jura representa os jurassianos pelo menos tanto quanto o deputado que eles elegeram para a Assembleia Nacional No final das contas os tecnodirigentes concordam no essencial A polí tica la politique politicienne e a administração executiva estão mortas Viva o político le politique e a gestão As opções partidárias cedem lugar à re solução dos problemas Revolucionários e conservadores são afastados em conjunto para deixar o caminho aberto aos animadores da mudança social O EstadoCientista será dirigido por negociadores e técnicos Especialistas técnicos e técnicos da negociação podem se dar as mãos para decidir o resto não passa de falatório I N D I CAÇÕ ES B I B LI O G RÁFI CAS Association française de Sciences politiques Administration et politique en France sous la Ve République Presses de la FNSP 1982 Bell D 1he End of Ideology 1960 ed brasileira O fim da ideologia Ed da Universidade de Brasília Brasília 1980 Chevalier JJ e D Loschak Science administrative LGDJ 1978 2 tomos Variations autour de lidéologie de lintérêt général vários autores editado por JJ Cheva lier e Danielle Loschak PUF 1979 OS J U RISTAS O D I REITO E O ESTADOCI ENTISTA Taylor Durkheim e Duguit foram contemporâneos Os juristas são confron tados com o mesmo mundo com o qual se deparam engenheiros e sociólogos O problema específico deles consiste em edificar uma teoria geral do direito compatível com esse mundo em salvar a ciência jurídica construindoa A tarefa é dura tanto no Leste como no Ocidente lá porque Marx não se en carregou disso limitandose por falta de tempo à crítica do direito burguês O EstadoCientista 321 e não se aventurando na edificação de um direito socialista aqui porque o EstadoCientista surgiu e arruinou os belos sistemas do pensamento liberal exigindo em seu lugar uma doutrina jurídica capaz de explicar e justificar o intervencionismo estatal Nessa tarefa tão difícil os juristas terão um relativo êxito e isso por caminhos diferentes dos quais os três principais são a socio logia a lógica formal e o materialismo Léon Duguit o socorro da sociologia Duguit começa por uma subversão Ele recusa o direito subjetivo quer esse resulte do individualismo postulado pelo direito natural ou do ordenamento jurídico criado pelo Estado Toda metafísica jurídica é assim afastada a regra do Direito não provém nem da vontade individual nem do Estado É antes de mais nada uma regra social O princípio da obrigação que caracteriza o imperativo jurídico decorre da norma social é ela quem dita a obrigação de respeitar a solidariedade social e de trabalhar para sua realização Diante do Estado e num primeiro momento Duguit não carece de audácia Ele o des creve como um fenômeno de pura força retirandolhe assim qualquer legi timidade jurídica Ao mesmo tempo ele afirma também a submissão do Es tado ao Direito a força porque é força não pode fundar o Direito portanto ela pode apenas submeterse a ele Quanto à doutrina jurídica tradicional atravessada pelo idealismo por ficções individualistas e por intricadas exe geses ela se espantaria com a ideia de que o Direito e o Estado devem ser definidos a partir da realidade social Temores arcaicos já que a dualidade de Estado e Direito termina por reforçar o Estado Léon Duguit é incapaz de determinar a autoridade quali ficada para precisar o conteúdo do Direito na ausência de um acordo geral das consciências Seu sociologismo recai nos trilhos do direito natural sim plesmente substituído pelo direito objetivo ou se supõe que o direito posi tivo lhe corresponde o que por princípio justifica o que existe ou então é preciso confrontar o direito positivo com o direito natural ou objetivo Mas quem realiza esse confronto O autor postula sabiamente que a lei positiva emanada do Estado beneficiase de uma presunção de conformidade com o direito objetivo Duguit reencontra assim o idealismo jurídico respeitoso da ordem esta belecida mas o que ele legitima é a nova ordem Sua concepção sociológica do Direito com efeito liberta o Estado liberal dos entraves que o impediam de se converter em EstadoCientista O Estado não é mais uma potência sobe 322 História das ideias políticas rana mas uma cooperação de serviços públicos organizados e controlados pelos governos para cumprir funções de gestão A potência estatal é menos comprometida do que justificada nesse seu novo impulso A gestão dissimula a dominação e permite a intervenção do Estado em todos os domínios INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Duguit L Traité de droit constitutionnel Boccard 3 ed 1927 reed CNRS em 3 volumes PisierKouchner E Le service public dans la théorie de lEtat de Léon Duguit LGDJ 1972 Hans Kelsen o Direito o Estado a norma Se a sociedade sugere que não se deve matar a norma jurídica não enuncia a obrigação de não matar Ela somente ordena ao juiz que inflija uma sanção ao assassino A sanção não é distinta da obrigação e o Direito tampouco é disso ciado do Estado O pensamento de Kelsen muito racional visa a construir a teoria purà do Direito libertandoo definitivamente de toda ideologia O Direito é uma pirâmide de normas As normas jurídicas formam o objeto da ciência do Direito ou o que dá no mesmo o Direito é um sis tema de normas O Estado não criou o Direito Não está submetido a ele Ele é o Direito Para fazer com que essa afirmação seja compreendida o ju rista austríaco compara o problema das relações do Estado com o Direito ao das relações entre Deus e o mundo notando que foi preciso muito esforço para convencer o homem de que Deus não é mais do que a personificação da natureza concebida como um sistema de leis O Direito é uma ordem que tem como função regulamentar o emprego da força nas relações entre os ho mens o Estado também Portanto eles coincidem já que uma só e mesma comunidade social não pode ser constituída por duas ordens diferentes A ordem estatal possui uma estrutura piramidal pois aparece como uma série de graus jurídicos uma hierarquia cujos diferentes estágios são ligados entre si pelo princípio da delegação Cada norma é obrigatória na medida em que é conforme a uma norma superior Kelsen assim apresenta o Direito en quanto forma A teoria pura do Direito põese acima da ideologia o que explica as nu merosas oposições que encontrou Um jurista democratacristão ou socia lista fica indignado se alguém lhe sugere Hitler é o direito Um advogado conservador considera inconcebível que a República dos Sovietes seja consi O EstadoCientista 323 derada como uma ordem jurídica As oposições foram particularmente vee mentes na França já que a ideologia francesa há muito confunde as opções políticas e as análises jurídicas Cada um deseja ter a legalidade de seu lado incapaz de se satisfazer com a legitimidade A ciência jurídica contudo iro niza a justiçà do Direito A norma jurídica pode muito bem ser injusta ou ilegítima esse é um problema do político não do jurista Esse último consi dera apenas a coerência da pirâmide normativa Um primeiro obstáculo não tarda a surgir a pirâmide deve certamente ter um topo a norma superior deve se ligar a uma norma suprema Kelsen responde que se trata de uma norma hipotética ou norma fundamental hi pótese necessária à ciência do Direito Outra dificuldade as normas estão contidas nos textos e esses textos têm de ser objeto de uma interpretação O órgão de aplicação escolhe dar um sentido ao texto entre outros sentidos possíveis Os sentidos ligamse necessariamente ao conteúdo o que quebra a estrutura da ordem jurídica separada da sociedade Kelsen ao separar o di reito da ideologia corre o forte risco de reduzilo a um formalismo abstrato I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFICA Kelsen H 1héorie pure du droit 1934 Dalloz 1962 A democracia 1923 Socialismo e Estado 1923 Pashukanis e Vichinski a degenerescência da teoria marxista do direito Pashukanis concorda com Kelsen quanto à especificidade da relação jurídica e à necessidade de levar em conta a forma jurídica enquanto tal Ao contrá rio dos marxistas juristas que completam a história das formas econômicas com algumas decorações jurídicas e ao contrário dos juristas marxistas que propõem uma história das instituições salpicada de luta de classes Pashuka nis busca uma teoria geral do direito Seu acordo com Kelsen contudo para nisso já que essa teoria geral irá se tornar materialista Ela condena a teoria kelseniana por voltar as costas a priori para as realidades efetivas ou seja para a vida social ela cuida de normas sem se ocupar com a origem delas ou com suas relações com quaisquer interesses materiais O jurista soviético se esforça portanto para examinar o conteúdo mate rial do direito através da história Mas ele quer igualmente dar uma explicação materialista da regulamentação jurídica como forma histórica determinadà 324 História das ideias políticas Aparecelhe então que as categorias jurídicas não são simples generalizações teóricas destinadas a ordenar uma matéria social sem vida nem história Ao contrário são a expressão de formas sociais que organizam o comportamento de grupos sociais num contexto dado O Direito não nasce do Estado nasceu das relações sociais O Estado lhe confere clareza e estabilidade mas suas pre missas se enraízam nas relações materiais nas relações de produção Pashukanis desse modo relaciona o direito com a economia a ordem jurídica com a organização das classes sociais Pode assim extrair dessa re lação a conclusão política esperada ou seja de que o desaparecimento dos antagonismos de classe permitirá que a extinção do Direito acompanhe a extinção do Estado Conclusão esperada não por todos não por muito tempo O Estado sta linista não se extinguiu A Constituição de 1936 diz que o Estado é de todo o povo ao mesmo tempo em que o reforça Pashukanis foi eliminado em 1937 Vichinski tornouse o teórico soviético do Direito O direito positivo deixa de ser um mal necessário em processo de extinção uma sobrevivência do direito burguês mas tornase um Direito de tipo novo Vichinski justa põe as velhas banalidades um conjunto de costumes e de regras de vida em comum confirmadas pela autoridade estatal e o marxismo mais gros seiro um conjunto de regras de conduta que expressa a vontade da classe dominante Como coroamento do todo temos a força Um e outro são garantidos pela força coercitiva do Estado A coerção reconquista seus di reitos e a especificidade do Direito desaparece Vichinski não se preocupa com ela Preocupase em troca com a harmonização de suas teses com as de Stálin segundo as quais a luta de classes desapareceu na União Soviética Bastalhe proclamar nesse caso que as leis soviéticas expressam a vontade do povo unânime já que os eleitos para os sovietes o são por unanimidade acrescentando que a vontade da classe operária emerge da vontade do povo O direito não é mais do que um instrumento acionado por uma vontade a qual desliza progressivamente da classe para o Partido do Partido para o Es tado e do Estado para o Intérprete O Gulag encontrou o seu Direito I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFI CAS Pashukanis E La théorie générale du droit et le marxisme EDI 1970 Stoyanovitch K La philosophie du droit en URSS LGDJ 1965 Vincent JM Fétichisme et société Anthropos 1973 O EstadoCientista 325 As TEO RIAS DO ESTADOCI ENTISTA Existem inúmeros pensadores do EstadoCientista mas esquematica mente é possível agrupálas em dois tipos por um lado no coração da conivência entre Saber e Estado os que com talentos diversos querem edificar a ciência do governo por outro colocandose deliberadamente fora dessa racionalidade os que querem elaborar a crítica do EstadoCientista A análise sistêmica e depois as reflexões de Raymond Aron ilustrarão o primeiro tipo as da Escola de Frankfurt o segundo Deutsch e Easton a pilotagem sistêmica Como suprimir o que há de político na política Reduzindoa a uma técnica entre outras Substituindo a política pelo político Há o que faz parte do me cânico do químico do biológico do cultural Há também o que pertence ao político já que os conjuntos sociais têm necessidade de ser governados Daí a metáfora náutica de Karl Deutsch Nossa palavra governo provém de uma raiz grega que se refere à arte de pi lotar um navio O mesmo conceito subjacente se reflete do duplo sentido da palavra inglesa governor que significa ao mesmo tempo uma pessoa encarregada do controle administrativo de uma unidade política e um dispositivo mecânico que controla a marcha de uma máquina a vapor ou de um automóvel Olhando as coisas mais de perto constatamos que existe efetivamente uma certa similaridade subjacente entre o modo de governar um navio e a arte de governar as organizações humanas Pilotar um navio significa guiar o seu comportamento futuro a partir de informações que se referem por um lado à sua marcha no passado e por outro à posição que ele ocupa no presente com relação a um certo número de elementos que lhe são externos em particular rota meta ou alvo The nerves of Government Nova York 1963 Elaborar a teoria do EstadoCientista implica então paradoxalmente apagálo enquanto poder de Estado tomálo como simples organismo de funcionamento encarregado de alocar autoritariamente valores Easton 326 História das ideias políticas O sistema político deve ser considerado em seu ambiente Disso resulta a célebre frase de Easton sobre a caixa negra O sistema recebe o sistema pro duz Recebe inputs insumos que podem ser classificados em exigências ou apoios Produz outputs produtos que podem ser classificados em decisões ou ações Bem entendido os outputs retroagem feedbacks sobre os inputs Para que o sistema funcione bem é preciso um bom piloto que saiba receber as demandas organizar os apoios converter os insumos em produtos A análise sistêmica põe assim o acento nas capacidades de adaptação dos sistemas políticos Por isso foi acusada de ser conservadora mas Deutsch e Easton puderam objetar com pertinência que um sistema que se perpetua não é nem conservador ele integra as mudanças nem revolucionário em tal caso haveria substituição de um sistema por outro mas antes de um pro gressismo calculado Essa é a lei de evolução do EstadoCientista a gestão calculada dos homens A política é reduzida a uma função Encontrase assim avalizada a ideia de que o caráter obrigatório dos comportamentos impostos aos cidadãos resulta de um cálculo efetuado por um organismo habilitado para essa tarefa Uma regulamentação legítima e necessária substitui assim a noção de poder extorquido ou consensual A classe política é doravante desideologizadà e despersonalizada ou pelo menos esse é o destino de sua modernidade Reduzse à sua função que é de simples gestão Segundo os sistemistas essas conclusões baseiamse na simples constatação Quer goste mos ou não é assim que as coisas se passam no EstadoCientista I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFI CAS Birnbaum P e F Chazel Sociologie politique textos Colin 1971 2 vols ed abreviada 1979 1 vol col U Deutsch K 1he nerves of Government Nova York The Free Press of Glencoe 1963 Easton D Analyse du systeme politique 1965 A Colin 1974 Varieties of political theory Englewoods PrenticeHall 1966 Raymond Aron a teoria da sociedade industrial Raymond Aron não gosta das ideologias e se recusa a dureza do marxismo soviético nem por isso se entrega à moleza do liberalismo Preferindo a aná lise fria dos dados sociais não deixa por isso de buscar influenciar os deten tores do poder econômico político intelectual ou militar Nesse sentido ele O EstadoCientista 327 pretende também se ater ao corte weberiano entre a pesquisa factual e os compromissos individuais mas pode refletir o curso do EstadoCientista ao se fazer seu teórico É nessa perspectiva que ele encara a sociedade industrial do século XX na tríplice linha de Tocqueville Marx e Weber Inicialmente Tocqueville menos por uma preferência liberal do que por prazer sociológico com essa excitação secreta da inteligência quando desco bre o que não ama Tocqueville constata um movimento quase irresistível como que desejado pela Providência no sen tido da democracia cujo significado é o anulamento progressivo das diferenças de status a tendência ao nivelamento das condições de vida Marx observa no início do século XIX o desenvolvimento acelerado das forças produtivas mas crê que esse crescimento no quadro do capitalismo implica necessaria mente uma luta de classes de intensidade cada vez maior R Aron La lutte des classes nouvelles leçons sur la société industrielle A previsão de Tocqueville realizouse formalmente todos os países do mundo se dotaram de Constituições que afirmam a igualdade de direitos mas a seu modo também o marxismo teve êxito já que se tornou a ideo logia oficial de um dos maiores Estados atuais Num sentido mais marxista do que liberal muito marcado pelas análises de O Capital Raymond Aron insiste no considerável desenvolvimento das forças produtivas na sociedade industrial contemporânea As sociedades ocidentais e soviéticas aderem em maior ou menor proporção ao mesmo modelo de crescimento e subordi nam cada uma a seu modo as forças sociais aos imperativos econômicos Tanto na União Soviética como nos Estados Unidos a sociedade industrial impõe a mesma distribuição das profissões diminuição considerável do nú mero de agricultores aumento do número de trabalhadores na indústria proliferação dos empregados nos serviços Sob esse aspecto capitalismo e socialismo são apenas dois métodos diferentes para construir a mesma mo dernidade econômica Malgrado essa convergência Aron sublinha igualmente as diferenças en tre o Leste e o Ocidente É aqui que ele se inspira em Weber e em particular na explicação tipológica O sociólogo não poderia distinguir os regimes por suas ideologias oficiais já que eles podem concordar no plano dos princípios por exemplo a afirmação da soberania do povo ou não corresponder à rea lidade a classe operária não dirige os Estados socialistas os Estados Unidos 328 História das ideias políticas não são governados pelo povo Os partidos políticos constituem em troca um critério mais seguro O autor de Democracia e totalitarismo assim opõe os regimes de partido único voltados para o futuro revolucionários e violentos onde o Estado absorve a sociedade o que é próprio do totalitarismo A ideologia partidária não admite a existência de conflitos O regime monopolista funciona pelo medo e pela fé aos regimes de partidos múltiplos preocupados em conservar respeitosos da legalidade nos quais a sociedade continua a ser diferente do Estado condição do pluralismo A ideologia plu ralista se funda na existência de conflitos O regime pluralista funciona pelo pluralismo Qualquer que seja a preocupação de objetividade do sociólogo é evidente que sua tipologia não incita a adotar o totalitarismo Aron aproximase aqui da tradição liberal e se revela como o último dos sociólogos clássicos e ao mesmo tempo como um dos primeiros sociólogos do EstadoCientista I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFICA Aron R Dixhuit leçons sur la société industrielle curso na Sorbonne 195556 Galli mard 1962 La lutte des classes nouvelles leçons sur la société industrielle Gallimard 1964 Démocratie et totalitarisme Gallimard 1965 Les étapes de la pensée sociologique Gallimard 1967 A Escola de Fran kfurt a contestação do EstadoCientista Desde os anos 1930 um certo número de filósofos alemães que emigraram no momento da instauração do nazismo agrupados na chamada Escola de Frankfurt amplamente inspirados no pensamento de Hegel e no mar xismo questionaram com um vigor e uma profundidade jamais desmen tidos e cujos efeitos se fazem sentir até hoje a pretensão moderna de racio nalizar a existência social no quadro do Estado e de suas instituições Georg Lukács 18851971 em História e consciência de classe 1923 e Karl Korsch 18861961 já se haviam distanciado do uso dogmático que o leninismo fi zera da racionalidade científica e da negatividade dialética o segundo che gara mesmo à ruptura em Marxismo e filosofia 1923 O EstadoCientista 329 A Escola de Frankfurt é mal designada Com efeito ela não forma um corpo doutrinário a teoria críticà que ela desenvolve movese em vários ní veis encontra expressões diversas conforme os autores e nisso fiel a Marx recusa separar a investigação filosófica dos desafios políticos aos quais se aplica Por isso não somente chegou a conclusões não convergentes mas também evoluiu em função das situações históricas Todavia o que permite tratar em conjunto pensadores tão diferentes como Max Horkheimer 18951973 Herbert Marcuse 18981979 Theodor Adorno 190369 e Jurgen Habermas 1929 para citar apenas os mais co nhecidos é a tríplice vontade de não separar a teoria da prática e da história e por conseguinte de tomar como tema essencial de reflexão o totalitarismo das sociedades atuais sob qualquer forma que se exerça de investigar constantemente as relações existentes entre o domínio cada vez maior da Razão a dos filósofos mas também a das ciências da na tureza e das ciências sociais sobre o pensamento a ideologia e as técnicas governamentais por um lado e por outro as restrições cada vez maiores impostas hoje às liberdades individuais e coletivas e ao recuo sofrido pela es perança em uma emancipação geral da humanidade esperança que alimen tara o racionalismo clássico de recusar firmemente as tentações sempre recorrentes do irraciona lismo mantendo a exigência de verdade como algo indissociável da exigên cia de liberdade e de reativar a negatividade dialética com o objetivo de em prestar novamente à Razão sua força libertadora Disso resulta que para esses pensadores o que até aqui foi chamado de EstadoCientista e suas práticas constituem o objeto por excelência da crítica É o que ocorre por exemplo com Herbert Marcuse em O homem unidimensional 1965 e de Jurgen Habermas em A técnica e a ciência como ideologia 1964 O primeiro constata que o ponto de vista definido por Max Weber o de uma sociedade racional na qual os cientistas estudariam os meios enquanto os políticos em função de uma reflexão ética definiriam os fins tornouse caduco se é que algum dia teve fundamento A Razão técnica que classifica calcula e organiza ainda que fosse aplicada apenas à matéria natural implica inelutavelmente com o processo de dominação da natureza um processo de dominação dos homens por outros homens e uma alienação de uns e de outros O próprio objeto da ciência tal como definido por Descartes estabelece uma concepção da existência social no seio da qual misturamse a hierarquia racional e a hierarquia social O homem unidi mensional p189 330 História das ideias políticas A partir disso H Marcuse não mais recusando a dimensão utópica imagina a possibilidade de um outro projeto científico de um projeto que preservaria a busca da inteligibilidade mas excluiria a perspectiva de domi nação e de destruição Eros e civilização 1955 desenvolveu temas análogos a propósito dessa feita do sujeito cognoscente que deixaria de se pensar como corpo hierarquizado mas aceitaria viver e agir como corpo erotizado Jurgen Habermas investigando a significação realista das perspectivas assim abertas revolução cultural tecnologia doce observa que a emer gência da racionalidade técnica deve ser compreendida a partir do enfraque cimento da Razão clássica Essa organizava a dominação e se empenhava em definir fins legítimos Seu eclipse para retomarmos a expressão de Max Horkheimer corresponde a um primado da ordem econômica que implica a intervenção autoritária do Estado e a utilização da ciência como força pro dutiva A dominação política se reforça e substitui a pesquisa dos fins pela simples manipulação técnica e administrativa As próprias democracias libe rais se organizam segundo o modelo plebiscitário e os regimes ditos socialis tas exercem uma unificação integral da vida social que abole toda diferença entre público e privado A ideologia da técnica e da ciência nos dois casos e com meios diferentes elimina qualquer eventualidade crítica e recusa em nome de uma dialética fraca longo prazocurto prazo o poder emancipa dor contido no pensamento dialético Aderindo à contestação do EstadoCientista já realizada com perspec tivas diferentes pelo clássico Léo Strauss por um lado e pelo marxistà Ernst Bloch por outro os pensadores da Escola de Frankfurt abrem cami nho para um questionamento do Estado enquanto forma obrigatória do ser social e para uma crítica da Razão como totalização alienante I N D I CAÇÕ ES B I B LI O G RÁFI CAS Bloch E Droit naturel et dignité humaine 1961 Payot 1978 Habermas J La technique et la science comme idéologie 1964 Gallimard 1973 Horkheimer M Théorie critique 19301970 Gallimard 1978 cf em particular a apre sentação desses textos por Luc Ferry e Alain Renaut Marcuse H Eros et Civilisation 1955 Minuit 1963 ed brasileira Eros e civilização Zahar Editores Rio de Janeiro 8ª edição 1981 IHomme Unidimensionnel 1965 Minuit 1968 ed brasileira Ideologia da socie dade industrial Zahar Editores Rio de Janeiro 5ª edição 1979 CAPÍTULO X O Estado em questão O EstadoCientista forma privilegiada da autoridade soberana dos países industrializados organizase como estrutura total da sociedade Pretende ser uma síntese entre os três níveis constitutivos das coletividades o domínio privado a atividade econômica e a ordem estatal A dominação política pe netra a realidade até constituíla Fortalecida por seu aparelho técnicocien tífico e industrial ela impõe seu poder fabricando o tempo e o espaço cons truindo a terra e o céu O conceito de sociedade industrial desenvolvido por Raymond Aron dá conta dessa situação de modo imperfeito Supõe uma causalidade em virtude da qual a infraestrutura tecnológica implicaria um fortalecimento inelutável do poder estatal um fortalecimento que sofre inflexões em função do con texto ideológicopolítico fortalece o Estado nos regimes socialistas nos re gimes capitalistas a organização política e a filosofia pluralista contrabalan çam esse fortalecimento Mas o EstadoCientista é virtualmente totalizante pois é um complexo militarindustrial que engloba o político e o econô mico num campo técnico autoritário O Estado cobre toda a realidade As noções de dominação referida ao atributo político e de exploração referida ao atributo econômico têm uma importância primordial mas não bastam para analisar a situação contemporânea Novos conceitos são neces sários novos campos de estudo devem ser explorados talvez os índios da Amazônia nos ensinem mais sobre o stalinismo do que os textos de Marx As discussões sobre a natureza da União Soviética interessam ao historiador e ao economista mas também à reflexão política Com efeito importa saber se se trata de um Estado operário degenerado de um capitalismo de Es tado de uma restauração revisionista ou de um desvio economicista a não ser que assimilemos tudo considerando que a administração americana e a burocracia soviética exercem uma dominação e uma exploração da mesma natureza cada uma utilizando práticas de poder que melhor se adaptam ao seu contexto 331 332 História das ideias polfticas Essas noções novas EstadoCientista sociedade sem Estado não são entidades concretas mas características abstratas para construir juízos de inteligibilidade Designam condutas de dominação e exploração condutas governamentais que produzem efeitos sociais constatáveis que penetram a totalidade da vida coletiva As novas teorias que vão ser evocadas agora não se preocupam em saber que classe social ocupa as posições de autoridade mas antes em elucidar o problema político da dominação em compreender como o poder se impõe tão profundamente A questão do Estado pode ser posta em quatro pontos ou seja a par tir de quatro debates O primeiro referese ao totalitarismo não mais como simples explicação do fascismo mas como algo inerente ao EstadoCientista O segundo referese à história e ao lugar que lhe cabe na reflexão política O terceiro se empenha em detectar o poder por toda parte O último dirigese para o Estado e investiga o enigma da obediência A QU ESTÃO DO TOTALITARISMO Não terá chegado o momento de considerar o Estado totalitário como o fenômeno que domina o nosso século como a novidade por excelência de nossa época tal como se coubesse uma comparação foi o caso da Revo lução Industrial em relação ao século passado1 A pergunta sobre o totali tarismo começa com o nacionalsocialismo e o stalinismo mas não se limita ao problema da pertinência da aproximação entre essas duas ditaduras ou à explicação do sucesso das mesmas Um dos primeiros teóricos do totalita rismo Hans Kohn sublinha As ditaduras totalitárias são fenômenos próprios do século XX por causa de seu caráter democrático são fenômenos de massa Embora tenham começado por uma conquista do poder por parte de minorias tiveram êxito porque deram forma aos sonhos nebulosos das massas nacionais e porque fizeram eco às suas aspirações confusas e pouco conscientes Não se pode compreender as massas que seguiram homens como Stálin e Hitler recorrendo unicamente ao argumento do terror Uma afinidade funda mental une o chefe a seu povo bem mais do que o magnetismo pessoal do chefe Hitler não conquistou as massas alemãs ele as representou The Twentieth Century 1949 p99100 1 Marcel Gauchet Lexpérience totalitaire et la pensée de la politique in Esprit julhoagosto de 1976 p3 O Estado em questão 333 Alexandre Zinoviev explicará no mesmo sentido que o stalinismo é um autêntico poder do povo A questão que assim se coloca é saber se esse fenômeno radicalmente novo constitui um acidente uma exceção desaparecida ou em desapareci mento ou se existe virtualmente aqui e agora O enfoque liberal o totalitarismo como acidente superado Sartori Aron O pensamento liberal e erudito assume a noção de totalitarismo para conde nar radicalmente o nazismo e o stalinismo mas não consegue elaborarlhe um conceito A definição do termo se revela impossível como o reconhece Spiro a propósito dos seus traços principais que ele enumera i O universalismo O sistema totalitário quer refazer o gênero humano à sua imagem há uni versalização do objetivo Mas o crescimento tecnológico homogeneiza as sociedades modernas To das tendem para o universal 2 A participação forçada Os eleitos das organizações públicas oficiais obtêm até 100 dos votos nin guém escapa à aprovação política O desenvolvimento das técnicas de comunicação e a diminuição da esfera privada arrastam todos os cidadãos para o jogo político 3 A supressão das organizações não oficiais Os regimes totalitários não toleram nenhuma associação contrária à polí tica oficial Em caso de crise grave ou de guerra os próprios Estados liberais proíbem a oposição 4 A violência militar ou paramilitar Nenhum regime constitucional liberal conhece uma tal brutalidade in terna nem mesmo em tempo de crise ou de guerra Todos os regimes modernos utilizam procedimentos análogos contra o inimigo externo 5 A insegurança das regras A norma é imprevisível já que depende da vontade pessoal A inflação normativa e a arbitrariedade administrativa afetam todas as so ciedades modernas 334 História das ideias políticas 6 A unicidade do objetivo Um único objetivo racismo ou advento do proletariado uma única expli cação da realidade recusa total de qualquer explicação diferente O pluralismo se opõe a esse aspecto do totalitarismo mas as sociedades políticas modernas tendem a uniformizar os programas Os grandes tipos de explicação do totalitarismo não são mais sufi cientes i Controle da economia O totalitarismo ligase ao socialismo Alguns regimes socializantes não são absolutamente totalitários Suécia alguns Estados africanos trabalhismo etc 2 Sociedade de massa A era das massas implica a manipulação política totalitária Os Estados Unidos sociedade de massa não são totalitários 3 Filosofia política O totalitarismo seria a conclusão lógica da regra da maioria exacerbada até a vontade geral da qual o marxismo seria o protótipo O totalitarismo conhece uma grande diversidade ideológica e não há por que exagerar a influência das doutrinas 4 O racismo O ditador totalitário chega a impor a ideia da não importância das vidas humanas Alguns países como a França e muitos outros conheceram o racismo mas não o totalitarismo Em conclusão Spiro admite que é preciso renunciar à noção de totali tarismo Podese observar de resto que para concluir de outro modo ou seja para refutar essas objeções seria necessário estender o totalitarismo ao conjunto das sociedades modernas pelo menos enquanto virtualidade Portanto o totalitarismo permanece como uma exceção histórica O Estado liberal terminou para sempre com o nazismo e saberá resolver o problema do stalinismo acidente de um Estado não liberal em processo de possível liberalização Os traços dessa dupla tese podem ser encontrados de modo mais ou menos explícito nos pensadores liberais atuais como Sar tori e Raymond Aron O primeiro ao contrário dos observadores críticos da massificação democráticà anexa a democracia ao liberalismo A demo O Estado em questão 335 cracia não é somente um modo de governo é uma forma de governo um sistema político Governar parà o povo é demofilia não democracià essa se funda no assentimento popular e na concorrência entre as elites arbitrada pelas massas R Aron insiste igualmente na oposição democraciatotalitarismo e faz do regime dos partidos a principal variável de onde se deduzem os cinco traços do fenômeno totalitário o regime confere a um partido único o monopólio da atividade política o partido monopolista impõe uma ideologia oficial verdade do Estado o Estado se reserva o duplo monopólio dos meios de força e de persuasão as atividades econômicas e profissionais estão submetidas ao Estado tudo se torna atividade do Estado submetido à ideologia de onde resulta o terror A partir dessa definição R Aron considera que esses elementos foram reunidos no curso de certos períodos na história soviética sem dizer que todo regime de partido monopolista deve levar a essa forma extrema de ter ror Disso ele deduz um prognóstico tendencialmente otimista Se excluir mos um abalo no regime soviético que deu à União Soviética a grandeza a potência progressos econômicos de ano para and sua transformação pro gressiva parece plausível os fenômenos extremos corresponderiam às fases iniciais da industrialização Lá e cá a realidade triunfa sobre a ficção Os construtores do futuro se resignarão a ser apenas o que são gestores de uma sociedade hierárquica e administrativa desejosos não mais apenas de alcan çar o Ocidente mas de imitálo I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFI CAS Aron R Démocratie et totalitarisme Gallimard 1965 col Idées Sartori G 1héorie de la démocratie A Colin 1973 Spiro H Totalitarianism in International Encyclopaedia of the Social Sciences 1968 voli6 Investigações críticas o totalitarismo como virtualidade permanente Reich Arendt É preciso voltar à análise de Hannah Arendt que supera o ponto de vista li beral ao pôr a nu a banalidade do mal totalitário que espreita o século XX 336 História das ideias políticas Para além do paralelo entre nazismo e stalinismo cf supra cap VIII Hannah Arendt mostra que o totalitarismo destrói a alternativa clássica da filosofia política entre regime sem lei e regime submetido a leis entre po der legítimo e poder arbitrário O regime totalitário jamais opera sem ter a lei como guia ou melhor ele pretende obedecer sem equívocos às leis da Natureza e da História das quais todas as leis positivas sempre pretenderam emergir Mas ele o faz desconfiando de todas as leis positivas inclusive das suas próprias pretende fazer do próprio gênero humano a encarnação da lei A lei totalitária não assegura mais nenhuma função de estabilização não é mais do que lei de movimento Lei da Natureza para os nazistas ou lei da História para os bolcheviques a lei mudou de sentido não é mais o quadro instável onde veem se inscrever os movimentos humanos é a expressão do próprio movimento Quanto às condições de advento do totalitarismo elas resultam da mo dernidade Os movimentos nazistas e comunistas dos anos 1930 germinam na massificação no colapso do sistema de classes e de suas barreiras proteto ras na sociedade atomizada A propaganda totalitária labora nesse terreno preparado elevando o cientificismo ideológico e sua técnica profética a um grau desconhecido de eficiência no método e de absurdo no conteúdo Socialismo e racismo são esvaziados de seu conteúdo utilitário e assumem a forma de uma previsão infalível O homem da era totalitária não é apenas o indivíduo isolado átomo da massa mas o homem desolado A dominação totalitária fundase na desolação na experiência de uma absoluta não participação no mundo estreitamente ligada ao desenraizamento e à inutilidade que envolveram as massas modernas desde o começo da Revolução Industrial O fascismo é um fenômeno internacional que atinge todos os organis mos da sociedade humana em todas as nações do mundo Wilhelm Reich estende ainda mais o campo totalitário É preciso dizer que ele bateu o triste recorde de ser expulso ao mesmo tempo do Partido Comunista Alemão e da Associação Internacional de Psicanálise em 1933 e além disso 20 anos mais tarde de ver sua revista queimada e seus livros proibidos nos Estados Unidos Condenações exemplares para um homem que queria reconciliar marxismo e psicanálise Com tal objetivo propôs superar o projeto freudiano e o economicismo marxista Freud tem razão ao considerar que as neuro ses são o produto da repressão imposta às pulsões sexuais mas está errado quando defende a equação Repressão Sublimação Civilização pois ela leva a justificar a repressão do desejo Quanto aos marxistas eles não compreendem a complexidade das determinações que aplicam à consciência humana A família autoritária e patriarcal é o primeiro local de repressão uma fábrica de estruturas mentais conservadoras é a correia de transmissão entre a estrutura econômica da sociedade burguesa e sua superestrutura ideológica Esquematicamente Estrutura econômica relações de produção Família patriarcal proibição do Édipo Ideologia repressiva Marx Freud A repressão sexual é um fator permanente e cotidiano portador do fascismo em diferentes sociedades A Escola de Frankfurt aprofundou a crítica filosófica do totalitarismo Max Horkheimer fundador da Escola em 1923 parte do ponto de vista racional o totalitarismo corresponde a uma vitória dos mitos sobre a razão para chegar a uma crítica da razão contemporânea a própria razão tornase totalitária degenera em razão de Estado ou em razão científica O totalitarismo aparece assim como uma recuperação da razão a serviço da dominação Abandonar a própria existência em favor do Estado cujas leis garantem o seu legado não é ir contra a conservação de si o sacrifício tornase racional Horkheimer denuncia o papel da ciência nessa deriva da razão São a ciência e a técnica que assumem hoje a função de emprestar à dominação o que a legitima Na posteridade de uma esquerda hegeliana e de um marxismo crítico a Escola de Frankfurt opta por uma dialética negativa Segundo Marcuse Hegel conservouse prisioneiro de uma concepção da Razão e do progresso que compreende tudo e finalmente absolve tudo porque toda coisa tem seu lugar e sua função no Todo e porque a totalidade está além do Bem e do Mal da verdade e da falsidade Em última instância essa concepção inclui a escravidão a Inquisição o trabalho das crianças os campos de concentração as câmaras de gás e os preparativos nucleares Esses termos talvez façam parte integrante da racionalidade que regeu a história da humanidade Horkheimer nota então que a Razão renunciou à Razão que ela foi tão completamente expurgada de toda espécie de tendência ou de preferência específica que no final das contas renunciou à tarefa de julgar as ações e o modo de vida do homem O culto da ciência e da tecnologia inaugura a barbárie moderna O positivismo encorajou a submissão do espírito ao que ele chama de realidade e que funda como ordem O anônimo o inautêntico o uniforme se estende 338 História das ideias políticas dem e estendem a desumanização O progresso ameaça aniquilar o próprio fim para o qual em princípio ele tende a ideia do homem Horkheimer Theodor Adorno desmascara a potencialidade totalitária em todas as estru turas de poder no seio de todas as hierarquias E convida a exercer o pen samento negativo a que se busque em cada ideia e em cada coisa sua ne gação a que se adote um ponto de vista sistematicamente crítico a que se retorne ao juízo filosófico à condenação de princípio do e dos poderes a uma distância permanente em face da ação que sempre apresenta o risco de levar ao autoritarismo a um radicalpessimismo I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFI CAS Adorno TW Dialectique négative 1966 Payot 1978 Mínima moralia réflexions sur la vie mutilée 1974 Payot 1980 Habermas J La technique et la science comme idéologie 1968 Gallimard 1973 Le pro blême de la légitimité dans le capitalisme avancé 1963 Payot 1975 ed brasileira O problema da legitimidade do capitalismo tardio Tempo Brasileiro Rio de Janeiro Horkheimer M Eclipse de la raison 1947 Payot 1974 ed brasileira Eclipse da razão La bor São Paulo 1978 Les débuts de la philosophie bourgeoise de lhistoire 1930 Payot 1978 Jay M Jimagination dialectique Payot 1977 Marcuse H Raison et révolution 1941 Ed Minuit 1969 ed brasileira Razão e revolu ção Paz e Terra Rio de Janeiro 2 ed 1976 Vincent JM La théorie critique de lÉcole de Frankfurt Galilée 1976 A QU ESTÃO DA H ISTÓ RIA Com a Escola de Frankfurt a indagação sobre o totalitarismo surgida do desenvolvimento das ciências sociais retornou à filosofia Os filósofos do apósguerra buscaram compreender a modernidade e os fundamentos da tirania Sob esse aspecto dois debates merecem ser recordados ambos reco locam a questão do sentido da história o debate entre Léo Strauss e Kojeve sobre a tirania e o debate entre MerleauPonty e Sartre sobre a dialética Tratase de questões teóricas cujas implicações políticas concretas devem ser evidenciadas Paralelamente a esses confrontos uma nova investigação cien tífica ganhava corpo com o estruturalismo que pareceu dissolver a história O Estado em questão 339 Sobre a tirania StraussKojêve Léo Strauss voltouse para os antigos em especial para Xenofonte a fim de analisar o regime tirânico A leitura do diálogo de Xenofonte no qual Hie ronte tirano de Siracusa debate com Simônides o poeta indica que a tira nia é um perigo que aparece já nas ordens da vida políticà Decerto a tirania moderna possui suas especificidades sobre as quais Strauss insiste Ela dispõe da tecnologià e da ideologià Pressupõe a existência de uma certa ciência enquanto a ciência antiga não tinha como objetivo a conquista da natureza e não queria ser nem vulgarizada nem difundidà Apesar dessa sobredetermi nação tecnoideológica a tirania atual não é mais do que uma modalidade da antiga por isso Xenofonte continua a ser pertinente Ao contrário do que se supõe o tirano é infeliz Hieronte explica ao sá bio que ele não conhece nem amores confiáveis nem amizades verdadeiras mas sim o temor constante do complô e do assassinato a solidão Simônides lhe sugere que renuncie à tirania e se torne um rei benevolente para não mais ser infeliz Hieronte objeta que uma tal mudança não abolirá os seus crimes a recordação dos seus crimes A maior miséria da tirania é que não pode mos mais nos desfazer dela O Simônides de Xenofonte não responde nada Tratase certamente do pior dos regimes Seria melhor renunciar a qual quer tirania antes mesmo de se ter tentado instauráIa Alexandre Kojeve contesta essa concepção de XenofonteStrauss O Si mônides deles não passa de um poeta ou pior de um intelectual que fala sem meditar O fato de que uma tirania não possa ser popular ou iluminada não quer dizer que se tenha de renunciar a ela pois há casos em que a sobre vivência do Estado a possibilidade do progresso exigem uma tirania Kojeve hegeliano evoca Napoleão erigido por Hegel em modelo da modernidade mas também Salazar e Stálin A desgraça do tirano resulta de que cansado de ser temido deseja ser amado Nero em Britanicus Mas precisamente porque temido ele não pode ser amado Xenofonte antes de Hegel põe em evidência a dialética entre o Senhor e o Escravo O que faz a diferença en tre o homem e os outros animais é o desejo de honra Ora as homenagens ditadas pelo temor não são honras mas atos servis O Senhor empenhado num combate de vida ou morte a fim de fazer com que seu adversário re conheça sua dignidade humana exclusivà percebe que quem lhe cede grita por clemência e prefere a submissão à morte não vale mais nada é digno precisamente de viver como escravo Hieronte e Simônides perdem o cami nho Em política não se trata de amor nem de felicidade É melhor se ater à fórmula precisa de Hegel que fala de reconhecimento O desejo de ser reconhecido é o móvel último de toda emulação entre os homens e portanto de toda sua luta política Esse é o verdadeiro estatuto do desejo de honra em política a vontade de fazer com que a própria autoridade seja reconhecida Se o tirano não é feliz não é absolutamente por não ser amado mas porque não foi reconhecido Insatisfação à qual está condenado todo governante digno desse nome o desejo de reconhecimento é ilimitado a vontade de autoridade quer se aplicar a todos os homens ele só ficaria satisfeito com o controle de um Estado não apenas universal mas também política e socialmente homogêneo Inevitavelmente assassinato o político busca legitimamente ser confortado por um sábio o qual deve lhe dar tal conforto com realismo Duas concepções se enfrentam nitidamente Por um lado o hegelianismo de Kojevë onde a luta pelo reconhecimento que se desenvolve através da História até sua solução final no Estado universal e homogêneo desculpa os tiranos exige que em determinados momentos se cometem crimes e pede a compreensão do filósofo Por outro lado a moral de Strauss a recusa de justificativas da tirania que seja através das necessidades da História ou das explicações das ciências sociais através do devir da Razão ou da prova dos fatos ele coloca a necessidade de reencontrar uma filosofia política que como os antigos saiba julgar os bons e os maus regimes Indicações bibliográficas Kojevë A Introduction à la lecture de Hegel Gallimard 1948 reed na col Tel 1980 Strauss L Droit naturel et histoire conferências de 1949 Plon 1954 De la tyrannie Gallimard 1954 Comunismo e sentido da história Sartre MerleauPonty Não é verdade que as boas intenções justifiquem tudo nem que se tenha o direito de fazer o contrário do que se deseja Em 1946 Maurice MerleauPonty era um desses intelectuais da revista Les Temps Modernes Raymond Aron Jean Paulhan JeanPaul Sartre que entraram na política sem renunciar à exigência de verdade e de liberdade A política separou os que deveria reunir Aron Malraux e Koestler foram afastados pela crítica aos Estados Unidos e pela oposição a De Gaulle Camus pelo anticomunismo virulento O Estado em questão 341 lento Mas o principal debate opôs Sartre a MerleauPonty tratouse de uma controvérsia entrecruzada sobre o comunismo e o sentido da história na qual um defendia a União Soviética sem a ajuda do marxismo enquanto o outro recusavaa sem se afastar da dialética histórica Albert Camus foi o protagonista do primeiro conflito Recusouse a to mar partido entre o capitalismo e o comunismo stalinista e transpôs para o domínio político o pessimismo de O mito de Sísifo O homem revoltado perdeuse nos Tempos Modernos2 Nos tempos ingênuos onde os tiranos arrasavam as cidades para sua maior glória onde o escravo amarrado ao carro do vencedor desfilava pelas cidades em festa onde o inimigo era lançado às feras diante do povo reunido a cons ciência podia ser clara e o julgamento claro Mas os campos de escravos instaurados sob a bandeira da liberdade os mas sacres justificados em nome do amor ao homem ou o gesto da superhuma nidade em certo sentido desamparam o julgamento No momento em que o crime se paramenta com os despojos da inocência numa inversão que é pró pria de nossa época é a inocência que tem de apresentar suas justificações As conclusões estão à altura da proposição Ainda que a constatação de Camus seja justa ele não oferece nenhuma saída política A não ser com bater em si em torno de si os excessos escutar René Char A obsessão da colheita e a indiferença pela história são as duas extremidades de meu arco Mas será Sartre a ser escutado Entre Sartre e MerleauPonty o choque foi mais complexo mais para doxal Sartre toma posição em favor do Partido Comunista Francês mas o faz em nome dos princípios do existencialismo e sem recorrer ao marxismo teórico MerleauPonty combate tanto o comunismo stalinista como o ultra bolchevismo sartriano mas em nome da dialética do sentido da História Sartre Nação PC Classe Operária Liberdade Paz 2 Um evidente jogo de palavras com o título de uma importante obra de Camus Ihomme révolté e o título da revista dirigida por Sartre Les Temps Modernes NT A partir de 1950 compreendeuse que não se tratava de escolher o que se pode amar Era preciso colocarse do lado dos que corriam o risco daqueles cujo interesse levava a querer a paz do lado portanto dos soviéticos O PC é a expressão necessária e exata da classe operária O partido é aquilo sem o que não há unidade da massa operária ele é a mediação constitutiva da classe operária Na França de hoje a classe operária é a única classe que dispõe de uma doutrina é a única cujo particularismo está em plena harmonia com os interesses da nação O partido que a representa e a constitui deve ser monolítico o organismo da ligação deve ser ato puro se ele implicar o menor germe de divisão se conservar em si qualquer passividade qualquer peso interesses opiniões divergentes quem irá então unificar o aparelho unificador Portanto é preciso lutar ao lado da classe operária e de seu partido no campo da União Soviética MerleauPonty Comunismos Antidialéticos sartreano e stalinista Stalin é o déspota sangrento de um novo imperialismo Ele não encerra nem a liberdade nem a paz O comunismo stalinista explica uma concepção não dialética da história A eficácia tornase o único critério O sentido virá mais tarde sabe Deus como No momento tratase apenas de colocar os fundamentos através de meios sem relação com nenhum fim Uma vez construído o aparelho de produção veremos o humanismo e a dialética brotar e florescer enquanto o Estado murchará Isso seria muito bom se para criar o aparelho de produção a sociedade cívica não instaurasse um aparelho de coação e nãoOrganizasse privilégios que tornamse pouco a pouco a verdadeira figura de sua história O bolchevismo sartreano justifica a ação comunista recusando qualquer produtividade à história fazendo dela o resultado imediato de nossas vontades um comunismo ultravoluntarista sem relação com o marxismo Esse comunismo não se justifica mais pela filosofia da história e pela dialética mas por sua negação pela criação pura Tornase um empreendimento indeterminado Subtraído a qualquer prova a qualquer controle a qualquer sentido ação sem critérios o comunismo não pode obter mais do que uma presença ausente INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Camus A Lhomme révolté Gallimard 1951 Actuelles 3 vols MerleauPonty M Les aventures de la dialectique Gallimard 1955 Para posição contrária cf Simone de Beauvoir MerleauPonty et le PseudoSartrisme Les Temps Modernes julho de 1955 Sartre JP Les communistes et la paix artigos publicados em Les Temps Modernes 195254 agora em Situations VI Gallimard 1964 O estruturalismo e a dissolução da história O peso da historicidade contestada por Léo Strauss o sentido revolucionário da história quebrado pela lógica do Estado socialista a essa crítica filosófica e a essa deriva prática é preciso acrescentar uma contestação epistemológica da história As ciências sociais com o estruturalismo assumem uma orientação nova que parece pronunciar a dissolução da História O estudo do estruturalismo exigiria confrontar os trabalhos do linguista Roman Jakobson do biólogo François Jacob dos filósofos Louis Althusser e Michel Foucault do psicanalista Jacques Lacan e do etnólogo Claude LéviStrauss Contentarnosemos aqui em evocar as objeções que LéviStrauss levanta contra o historicismo LéviStrauss recorda a existência de povos ditos primitivos a cujo pensamento repugna a história ou pelo menos nossa concepção da história factual cumulativa progressista lugar por excelência da legitimação Esses povos pensam antes através do mito que conta histórias atemporais Portanto esse pensamento será qualificado como primitivo enquanto tais povos serão ditos sem história ao mesmo tempo produto e sinal de sua fraqueza de sua incapacidade para acolher os progressos tecnológicos A pesquisa etnológica desmente essas conclusões Esse pensamento não é tanto primitivo não civilizado quanto selvagem não domesticated Ele não ignora a história A equivocada distinção entre povos sem história e os demais poderia ser vantajosamente substituída por uma distinção entre 344 História das ideias políticas sociedades frias que buscam graças às instituições que constroem para si anular de modo quase automático o efeito que os fatores históricos poderiam ter sobre seu equilíbrio e sua continuidade e sociedades quentes que interiorizariam resolutamente o devir histórico para fazer dele o motor de seu desenvolvimento O reconhecimento da historicidade portanto ligase a uma escolha operada pela sociedade a uma ideologia e a disposições institucionais pre cisas A sucessão no tempo encontrase assim privilegiada em relação ao espalhamento no espaço a dimensão temporal desfruta um prestígio es pecial como se a diacronia fundasse um tipo de inteligibilidade não apenas superior ao fornecido pela sincronia mas sobretudo de natureza mais espe cificamente humana Imaginase que graças à dimensão temporal a his tória nos restitua não estados separados mas sim a passagem de um estado para outro sob uma forma contínuà Criticando a concepção sartriana LéviStrauss denuncia as pretensões da história total e revela sua preferência pelas histórias parciais Na medida em que a história aspira à significação ela se condena a escolher regiões épocas grupos de homens e de indivíduos nesses grupos e a fazer com que se destaquem como figuras descontínuas contra um contínuo capaz pre cisamente de servir como pano de fundo Por trás da História o que Lévi Strauss pretende desqualificar é a filosofia da história Ele substitui a oposi ção historicidadepermanência pela oposição diacroniasincronia A história não é mais o ponto de chegada da inteligibilidade mas seu ponto de partida O projeto sartriano de deduzir a historicidade de compreendêlà para dela fazer um instrumento da liberdade é assim desmantelado As sociedades de história lenta nas quais as estruturas os elementos intemporais dominam são ricas de ensinamentos políticos Talvez elas não sejam melhores do que a nossa embora estejamos inclinados a crer nisso não dispomos de nenhum método para proválo Todavia conhe cendoas melhor ganhamos um meio de nos distanciar da nossa não absolu tamente porque essa seja completamente ou apenas má mas porque é a única da qual nos devemos libertar Desse modo seremos capazes de sem nada reter de nenhuma sociedade utilizálas todas para extrair os princípios da vida social que poderemos aplicar à reforma de nossos próprios costumes O Estado em questão 345 I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFICA LéviStrauss C Tristes tropiques Plon 1955 Anthropologie structurele Plon 1958 ed brasileira Antropologia estrutural Tempo Brasileiro Rio de Janeiro 1967 La pen sée sauvage Plon 1962 ed brasileira O pensamento selvagem Cia Editora Nacional São Paulo 1969 A história indeterminada As novas correntes científicas e políticas portanto buscam menos eliminar a história do que lhe restituir sua diversidade e indeterminação O problema da revolução é então colocado de um ponto de vista diferente A tentativa de uma apreensão pósmarxista da revolução anima assim os trabalhos de Cor nélius Castoriadis Eles partem de uma refutação do materialismo histórico para chegar a uma nova concepção da relação entre tempo e sociedade A história é essencialmente poiésis contingente autocriação dos ho mens É preciso livrarse do marxismo como filosofia da história como saber do devir e de sua necessidade Uma libertação necessária pois esse marxismo revelouse inteiramente inexato perigoso e inútil Inexato a causalidade do econômico explicação pela infraestrutura o princípio da tomada de consciência como acesso à verdade e da classe social como encarnação de um momento do progresso jamais chegaram a explicar uma sequência histórica precisa Só contribuem para explicála na condição de serem transgredidos Inútil Se para ter uma teoria da história for preciso excluir da História quase tudo salvo o que se passou durante séculos numa pequena faixa de terra que cerca o Atlântico Norte o preço a pagar é verdadeiramente muito alto é melhor olhar para a história e recusar a teoria Mas não estamos reduzidos a esse dilema Não temos necessidade enquanto revolucionários de reduzir a história anterior da humanidade a esquemas simples Temos necessidade em primeiro lugar de compreender e interpretar nossa sociedade E isso só pode ser feito se a relativizarmos mostrando que nenhuma das formas da alienação social presente é fatal para a humanidade já que sempre existiram Perigoso essas prescrições metodológicas levam a justificar e mesmo sacralizar o presente em relação a um passado arbitrariamente reconstruído e a um futuro radioso assegurado O totalitarismo soviético não passa da apli cação da ideia de que há uma teoria verdadeira da História Se existe uma racionalidade em operação nas coisas é claro que a direção do desenvolvi História das ideias políticas mento deve ser confiada aos especialistas dessa teoria aos teóricos dessa ra cionalidade O poder deles deve ser absoluto qualquer democracia não passa de uma concessão à falibilidade humana dos dirigentes ou um proce dimento pedagógico cujas doses corretas podem ser administradas somente por esses dirigentes O fracasso do sistema marxista contudo não implica o fracasso do pro jeto revolucionário contanto que se admita a ideia central da revolução a de que a humanidade tem diante de si um verdadeiro futuro e que esse futuro não deve apenas ser pensado mas também feito Para tanto convém reabilitar a históriacontingência a políticavontade a revoluçãoautono mia Nossa sociedade imobilizou a temporalidade o tempo é negado já que é percebido como identitário o hoje é continuação do ontem do já feito Com esse tipo de apoio com tais categorias sendo utilizadas para compreender a história as de causalidade finalidade sucessão lógica a sociedade se pensa na sucessão e chega a negarse enquanto autocriação Ela não confessa que se criou não se reconhece como instituinte Contudo toda sociedade é ao mesmo tempo instituinte e instituída Cas toriadis convoca a uma compreensão do que ele chama de socialhistórico Por um lado estruturas dadas instituições e obras e por outro o que estrutura institui materializa Compreensão que passa pela do indivíduo so cial encontro entre dois mundos o mundo privado e o mundo comum en tre duas histórias a história da psique imaginação radical do inconsciente e a da ação da sociedade sobre essa psique Somente então os homens poderão autoinstituir abertamente sua sociedade I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFI CA Castoriadis C Einstitution imaginaire de la société Le Seuil 1975 ed brasileira A insti tuição imaginária da sociedade Paz e Terra Rio de Janeiro 1982 A QU ESTÃO DO PODER A história não dita mais a solução o Estado socialista não se extingue o Estado liberal se totalitariza A política não pode ser pensada nessas pers pectivas habituais Depois desses desmentidos que interesse há em buscar o bom governo o Estado legítimo ou tipo de Estado que se extinga Qual é o bom Estado A questão não é mais essa Por que o poder Já é tempo de le vantar essa indagação O Estado em questão 347 O poder e não somente o Estado já que a questão do poder parece mais pertinente mais ampla mais profunda já que essa simples mudança de termo desloca o ponto de vista O que faz com que as pessoas obedeçam Como explicar que certos homens se instituam como dominantes e decidam por todos fabricando os meios de perenizar sua dominação e de aplicar suas decisões O que faz com que eles obtenham a obediência de uma comuni dade por vezes muito ampla onde as relações empíricas entre dominantes e dominados parecem por vezes tão tênues E o que faz com que por vezes alguns já não obedeçam mais Colocar essas questões procurar por toda parte o poder e seus pontos de apoio é nisso que se empenha uma problemática nova na pesquisa social particularmente na França Nos anos 195060 a filosofia política girou em torno da questão do comunismo nos anos 196070 as ciências humanas se renovaram com o estruturalismo os anos 197080 põem o poder em ques tão Problemática do pósmarxismo no qual o fracasso soviético é levado em conta o fracasso ou seja não apenas o Gulag mas também o fato de que a Revolução Russa teve êxito tão somente nos casos em que com outros meios de resto mais discretos o próprio capitalismo também teve êxito de senvolvimento industrial e científico potência militar Fracasso amargura dúvidas Emerge a recusa recusa radical que afasta teorias e práticas socialistas e liberais assim como seus avatares do Terceiro Mundo Em nome das liberdades todo poder é posto em questão através do estudo das rebeliões que suscita Marcuse das sutilezas onipre sentes de seu exercício Foucault de suas maquinações do desejo De leuzeGuattari do desafio niilista a lhe opor Lyotard Baudrillard Rebeliões FreudMarcuse Contestações inesperadas surgiram à luz do dia rebeliões contra os poderes que Herbert Marcuse empenhouse em teorizar Movimentos novos entram em choque com a ordem social sem se inscreverem na perspectiva da luta contra o poder central Essas sublevações não foram previstas pela ciência política que não as compreende de modo algum não foram controladas pe las instituições políticas incluídos os partidos das quais elas se desviam não podem ser explicadas pelas categorias clássicas do marxismo Jovens americanos recusam fazer a guerra e preferem a prisão ou o exílio jovens alemães se insurgem em Berlim em abril de 1968 contra o magnata da im prensa sensacionalista jovens franceses desencadeiam uma revolta genera lizada em maio de 1968 os tchecos inventam a primavera na política para História das ideias poUticas libertar o socialismo do stalinismo e nos anos 1970 multiplicamse no Leste as dissidências de intelectuais que preferem correr o risco de ir para um hos pital psiquiátrico e pensar como bem entendem a ingressar nas academias pensando o que lhes ordenam pensar Para esboçar a teoria dessa espontaneidade Marcuse após Reich su pera Marx com Freud A referência a Freud parte das teses de O malestar na civilização mas para compreendêlas é preciso especificar em que a teoria freudiana destrói a concepção que o homem construiu de si mesmo desde a época clássica Freud destrói a visão tradicional do Eu Reduzida à sua expressão mais simples ela se resumiria na seguinte equação Essência do homem Personalidade Consciência Ego Moí Eu e Vontade livre Freud demonstra que o Ego não é essa bela unidade constituída por uma reflexão sobre si que não é uma consciência clara um ego cada vez mais eu uma vontade cada vez mais livre A consciência na verdade não é mais do que um elemento da individualidade o Ego não é mais do que um lugar de fronteira dependente de duas forças igualmente poderosas O inconsciente ou o ld conjunto de pulsões onde as experiências de terminantes e reprimidas se inscrevem como traços mnésicos permanentes O inconsciente funciona segundo uma lógica própria sem relação com os encadeamentos racionais ignorando as regras da sucessão temporal Lap sos sonhos atos irrefletidos as diversas manifestações de incoerência ou de loucuras tornamse assim objeto de um conhecimento específico O mora lismo da pessoa privada ou pública recebe um golpe fatal Tanto mais que a segunda força da qual o Ego resulta não é esse ideal idílico mas sim O Superego produto da estrutura familiar interiorização das proibi ções pela criança O homem não se contenta em reprimir as pulsões Cada um aprende a instalar para si um pequeno tribunal pessoal através da identificação com os pais Esse tribunal o Superego exerce uma constante vigilância fabrica modelos favorece a aceitação das coerções e desenvolve a culpabilidade Os homens e as mulheres são sacudidos entre as pulsões do Id e os ide ais do Superego As coisas se complicam ainda mais por causa do caráter con traditório das pulsões A constituinte dinâmica fundamental é a libido pul são profunda que anima cada um desde a infância pulsão sexual que emana do corpo inteiro Mas às pulsões sexuais de Eros opõemse as pulsões do Ego o Tanatos que visam a poupar a energia desencadeada da sexualidade Reencontrase essa contradição no plano coletivo na civilização A civiliza O Estado em questão 349 ção opõe o princípio de realidade ao princípio de prazer o princípio de reali dade é a exigência de adaptação que se impõe ao Ego consciente tornandoo tributário do mundo exterior e ao mesmo tempo frágil angustiado Disso resulta o sofrimento do homem na civilização É o princípio de prazer que determina a vida que governa desde a origem as operações do aparelho psíquico Nenhuma dúvida pode subsistir quanto à sua utilidade Mas apesar disso o universo inteiro busca contestar o seu programa Seríamos tentados a dizer que não fez parte do plano da criação que o homem fosse feliz A civilização impõe ao homem que renuncie a seus desejos que os repri ma O homem tornase neurótico porque não pode suportar o grau de re núncia exigido pela sociedade em nome de seu ideal cultural A civilização do progresso da dominação da natureza da felicidade e da razão é assim um de plorável fracasso inclusive em seus sucessos Pois cada conquista da racionali dade encontra seu duplo no aparecimento de um sofrimento mais pesado Marcuse acredita que na civilização contemporânea a repressão da li bido é acrescida pela competição e pelo imperativo do rendimento As classes produtoras são atingidas por uma maisrepressão são cada vez mais integra das ao sistema tanto ideológica como materialmente Assim o proletariado industrial cuja alienação tornase cada vez mais difusa e acompanhada por fenômenos compensatórios perde sua força revolucionária A revolta então virá das margens das camadas sociais rejeitadas e por isso capazes de negação e de oposição radical Marginalizadas por seu esta tuto excluídas das compensações do rendimento tais camadas recusam o jogo da sociedade industrial e conservam a dinâmica do princípio do prazer Somente elas podem lutar por uma revolução fundamental que acabe com a exploração e promova uma erotização geral da existência I N D I CAÇÕ ES B I B LI O G RÁFI CAS Freud S Totem et tabou 1912 Payot 1947 ed brasileira Totem e tabu Delta Rio de Janeiro 1955 Malaise dans la civilisation 1929 PUF 1971 ed brasileira Malestar na civilização Imago Rio de Janeiro 1973 Marcuse H Ihomme unidimensionnel 1964 Ed de Minuit 1968 ed brasileira Ideolo gia da sociedade industrial Zahar Editores Rio de Janeiro 8ª ed 1981 350 História das ideias políticas O poder como estratégia Foucault Ao contrário de Marcuse Michel Foucault não se identifica com um movi mento político preciso Seus trabalhos contudo contribuem para a contesta ção da ordem política tradicional por meio da redefinição do poder que eles propõem Deixando de ser um atributo o poder é compreendido como um exercício Uma tal concepção parte de um novo enfoque sobre a cumplici dade entre saber e poder para levar a uma visão que privilegia as resistências em face da Revolução O poder é um exercício o saber seu regulamento Os primeiros traba lhos de Foucault se situam no quadro da epistemologia a ciência das ciên cias Ele procede a uma crítica da ciência da filosofia da ciência das cate gorias implícitas ou explícitas que são subjacentes às ciências à constituição dos saberes Foucault desmonta assim o mito do progresso e seus corolários as noções de filiação de continuidade de sucessão de influência de matu ração na medida em que o estudo da formação das disciplinas científicas revela que elas ao contrário avançam através de diferenças de nível descon tinuidades e rupturas O deus ex machina da dialética se encontra desqualifi cado ao mesmo tempo que seu par a consciênciasujeito Fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciência humana o sujeito de todo devir e de toda prática são as duas faces de um mesmo sistema de pensamento O tempo em tal sistema é concebido em termos de totalização e as revoluções que nele ocorrem nunca passam de tomadas de consciência Compreendese que aqui Foucault referese a Marx Nietzsche e Freud ou seja aos três pensadores que operaram os principais descentramentos em relação ao papel fundador do sujeito a partir do qual se pensava o mundo Marx opõe a tal sujeito a categoria do modo de produção Nietzsche a inves tigação genealógica Freud o inconsciente em todos os três casos o sujeito deixa de ser central Uma nova apreensão do poder então toma forma O poder é uma es tratégia o poder está em toda parte O poder é uma estratégia As concepções tradicionais resolvem o pro blema simplificandoo excessivamente O formalismo jurídico põe como postulado que não há poder duradouro que não seja legítimo Ele remete à Lei e à autoridade que a edita Então temse apenas de discorrer sobre as condições formais da legitimidade e no máximo de glosar sobre a norma A sociologia durkheimiana assume uma perspectiva mais ampla mas ao considerar que o fato social é coercitivo por natureza reduz os poderes a O Estado em questão 351 pontos de aplicação da dimensão repressiva inerente à sociedade Quanto à sociologia marxista em lugar de buscar a Lei ela busca a classe social que a manipula o que no caso dá no mesmo Nos três casos do formalismo jurídico da sociologia durkheimiana e da sociologia marxista deixase de lado o essencial esquecese que o exercício do poder é em cada oportuni dade algo singular em seus mecanismos objetivos e efeitos A ideia de um poder maciço global do qual tudo parte ou ao qual tudo retorna não se sustenta Portanto é impossível elaborar uma física geral do Poder uniforme e que domina a sociedade Em vez de indagar sobre o Po der devese pesquisar as práticas disciplinares constituídas desde a época clássica com seus campos de operação seus poderes próprios e em função de saberes dotados de regras específicas Esses saberes e essas instituições ins talaramse com o objetivo de obter o adestramento dos corpos e das palavras de atingir o enquadramento da existência Portanto é preciso conceber uma microfísica do poder e essa microfísica supõe que o poder que se exerce não seja concebido como uma proprie dade mas como uma estratégia que seus efeitos de dominação não se mas a disposições manobras táticas téc jam atribuídos a uma apropriação nicas funcionamentos Esse poder se exerce em vez de ser algo que se possui não é mas o efeito de conjunto de suas dis privilégio adquirido ou conservado da posições estratégicas classe dominante Ele não se aplica pura e simplesmente ele os envolve passa por e através deles como uma obrigação ou uma proibição apoiase neles aos que não o possuem não se localizam nas relações do Es tado com os cidadãos ou na fronteira Essas relações deitam profundas raízes na espessura da sociedade dos corpos in La Volonté de savoir Todo poder se define como uma tecnologia política dos corpos As relações de poder operam sobre o corpo uma apropriação imediata in vestemno marcamno adestramno indicamlhe trabalhos obrigamno a cerimônias exigemlhe sinais O corpo só se torna força útil quando é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo subjugado E Michel Foucault explora os procedimentos ideais e técnicos de controle do corpo de controle do doente do louco do delinquente Assim os saberes correspondem a essa estratégia em que o poder consiste e devem ser relacionados a ela Por exemplo em vez de tratar a história do direito penal e a história das ciências humanas como duas séries separadas devese investigar se não há uma matriz comum a reorganização do poder de punir nascimento da prisão controle da delinquência por uma administração das penas como procedimento de prevenção dissuasão punição reabilitação reinserção Foucault penetra em domínios comumente negligenciados pela ciência política para neles descobrir as técnicas de amestramento Ele analisa a disciplina essa anatomia política do detalhe esse ensinamento da docilidade através de um sistema de micropenalidades que controla o tempo atrasos ausências interrupção do trabalho a atividade desatenção negligência falta de zelo a maneira de ser falta de polidez desobediência os discursos tagarelice insolência o corpo atitudes incorretas gestos impróprios a sexualidade imodéstia indecência Vigilância e penalidade têm como finalidade impor moral e materialmente o poder da Norma O urbanismo a psiquiatria a criminologia a sexologia a sociologia todos esses saberes servem ao mesmo tempo como legitimidade e como modos de emprego dos poderes O poder está em toda parte A soberania do Estado o quadro jurídicorepressivo ou a dominação de uma minoria não são os dados iniciais mas as formas termina O Estado em questão 353 I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFICA Foucault M Naissance de la clinique une archéologie du regard médicat PUF 1963 Les mots et les choses Gallimard 1966 Histoire de la folie à lilge classique Plon 1961 Surveiller et punir Gallimard 1975 ed brasileira Vigiar e punir Vozes Petrópolis 1979 La volonté de savoir histoire de la sexualité t I Gallimard 1976 ed brasileira História da Sexuali dade 1 A Vontade de Saber Graal Rio de Janeiro 21 ed 1979 As megamáquinas do poder Foucault vê no poder antes de mais nada um adestramento do corpo Gilles Deleuze e Félix Guattari tomam também o corpo como ponto de partida como dado fundamental como lugar pleno onde se exercem esses fluxos maquinais que são chamados de desejo Há máquinas em toda parte e não de modo inteiramente metafórico máquinas de máquinas com seus acoplamentos suas conexões Uma má quinaórgão ramifica se a partir de uma máquinafonte uma emite um fluxo que a outra corta O seio é uma máquina que produz leite e a boca uma máquina acoplada naquela outra É perigoso resumir uma obra tão densa como O AntiÉdipo na qual se elaboram conceitos novos vamos tentar definilos Desejo O desejo é esse conjunto de sínteses passivas que maquinam os objetos parciais os fluxos e os corpos e que funcionam como unidades de produção O real decorre dele é o resultado das sínteses passivas do desejo Ao desejo não falta nada a ele não falta seu objeto É antes o sujeito que falta ao desejo ou ao desejo que falta um sujeito fixo só há sujeito fixo pela repressão Anti Oedipe I p34 Fluxo Isto funciona em toda parte às vezes sem parar às vezes descontínuo Isto respira isto esquenta isto come Isto caga isto fode Que erro ter dito o isto Em toda parte são máquinas de maneira alguma metaforicamente má quinas de máquinas com seus acoplamentos suas conexões Uma máquina órgão é ligada em uma máquinafonte uma emite um fluxo que a outra cortà id p7 Máquina desejante As máquinas desejantes são máquinas binárias com regra binária ou regime associativo sempre uma máquina acoplada com uma outra A síntese produtiva a produção de produção tem uma forma conectiva e e de 354 História das ideias políticas pois É que sempre há uma máquina produtora de um fluxo e uma outra que lhe é ligada operando um corte uma extração de fluxo o seio a boca ibid pn Corpo pleno sem órgãos As máquinas desejantes fazemnos um orga nismo mas dentro dessa produção na sua própria produção o corpo sofre por estar organizado assim por não ter outra organização O corpo pleno sem órgãos é o improdutivo o estéril o ingendrado o incomensurável id p14 Codificação inscrição A sociedade não é primeiramente um meio de troca onde o essencial seria circular ou fazer circular mas um socius de inscrição onde o essencial é marcar e ser marcado id p166 Megamáquina social A máquina social tem como peças os homens mesmo se os consideramos com suas máquinas e os integramos e interiorizamos em um modelo institucional em todos os níveis da ação da transmissão e da motri cidade Assim ela forma uma memória sem a qual não haveria sinergia do ho mem e de suas máquinas técnicas Estas não contêm com efeito as condições de reprodução de seu processo remetem a máquinas sociais que as condicio nam e as organizam mas também limitam ou inibem o seu desenvolvimento id p165 Esses termos permitem recompor a história universal indicar os mo mentos importantes da produção social da produção da sociedade por ela mesma Todavia não há nenhum determinismo nessa sucessão a referência constante a Marx admite a importância do econômico mas entende como tal mais do que apenas a produção de bens e recusa qualquer causalidade direta ou dialética o econômico age como uma maquinação de fluxos e or ganiza o desejo Assim esboçamse três épocas principais Corpo pleno Acoplamento desejocorpo pleno Ação das megamáquinas sociais Ilustração Códigos Evolução limite o Dó C E megamáquina territorial codificação dos fluxos marcar os territórios Demarcação do território Marcação dos corpos inscrições filiações e alianças conjurar a troca que fluxos de troca e de produção não venham quebrar os códigos salvar o Estado é sob os golpes da propriedade privada e da produção mercantil que o Estado conhece sua extinção a Terra o Déspota megamáquina do Estado o Capital axiomática capitalista supercodificação dos fluxos apropriar a maisvalia O imposto não para alimentar o aparelho do Estado A burguesia decodificante tira da máquina um fluxo indiviso de rendas convertíveis em bens no qual se fundem os salários e os lucros a família pequena colônia que fixa os fluxos decodificados evitar a esquizofrenia o esquizofrênico se mantém no limite do capitalismo é sua tendência desenvolvida seu anjo exterminador 356 História das ideias polfticas Quanto às consequências da investigação deleuziana elas não poderiam se inscrever num programa político A despeito da axiomatização capita lista conservase o desejo não como carência espera do paraíso mas como energia A oposição é entre a classe entre os servos da máquina entre o regime da máquina social I N D I CAÇÕ ES B I B LI O G RÁFI CAS e os semclasse e os que a destroem ou destroem suas engrenagens e o regime da máquina desejante Deleuze G e Félix Guattari IAntiOedipe capitalisme et schizophrénie Ed de Minuit 1972 ed brasileira O AntiÉdipo Imago Rio de Janeiro 1979 Deleuze G e Claire Parret Dialogues Flammarion 19n Niilismos A energia do desejo é drenada para uma determinada configuração de rela ções sociais e não para uma outra em função dos arranjos maquinais de uma dada sociedade JeanFrançois Lyotard tal como Deleuze e Guattari é um adepto da política esquizoanalítica mas à diferença deles recusa qual quer pretensão teórica para pregar apenas a deriva libidinal A dualidade entre máquinas desejantes e megamáquinas sociais suge rida em O AntiÉdipo tem o erro de se inscrever ainda no esquema marxista no qual a existência social é considerada como fonte de alienação Portanto ela mantém ainda que no niilismo um pensamento político crítico Lyo tard considera necessário renunciar a qualquer ambição dessa natureza e abandonar o terrorismo da atitude crítica profundamente racional profundamente adequada ao sistema profundamente reformista a crítica se mantém na esfera do criticado pertencelhe supera ape nas um termo de posição não a posição dos termos E é profundamente hie rárquica de onde o crítico extrai sua força sobre o criticado Ele sabe mais É o professor o educador Portanto é a universalidade a unidade o Estado a Cidade inclinandose sobre a infância a natureza a singularidade o aleijado para eleválos até ele O Estado em questão 357 Em última instância apesar das intenções contrárias chegase à con servação intacta da relação autoritáriâ O que dizer O que fazer Derivar para fora da crítica assim como de riva o desejo que pouco a pouco destrói a ordem atual Para milhões de jovens o desejo não mais se inscreve no desenvolvimento kapitalista eles não se veem mais e não mais se comportam como força de trabalho a ser valorizada em função da troca ou seja do consumo têm re pugnância pelo que o kapital continua a chamar de trabalho de vida moderna de consumo por todos os valores de nação família Estado propriedade pro fissão educação valores que percebem como paródias do único valor o valor de troca O que a nova geração realiza é o ceticismo do Kapital seu niilismo não há coisas pessoas fronteiras saberes crenças não há razões para vivermorrer Mas esse niilismo é ao mesmo tempo a mais forte afirmação contém a liberta ção potencial das pulsões em face da lei do valor As pulsões contra o valor a libido contra o dinheiro a fruição contra a necessidade Freud diria o prazer contra a civilização mas não nos en ganemos não se trata para Lyotard de impor um princípio contra outro a ordem afetiva contra a ordem racional mas a desordem libidinal a deriva do desejo a absoluta liberdade de fruição sem o menor referente central sem excluir o amor pelo próprio capital Com que direito condenar o amor pelo dinheiro ou o fascínio pela mercadoria A partir de que vocês criticariam o fetichismo quando vocês sabem que não se pode criticar a homossexua lidade e o masoquismo sem se tornar um crápula vulgar no plano moral Pelo fato de que o capital dá lugar ao poder e à dominação à exploração e mesmo ao extermínio Isso é certo mas são as coisas ainda mais obscuras porque os proletários explorados fruem com sua exploração Vejam os proletários ingleses o que o capital ou seja o trabalho deles fez de seus corpos Mas vocês irão me dizer bem é isso ou morrer Será que vocês acreditam que essa é uma alternativa isso ou morrer E que se alguém faz isso ou seja tornase escravo de sua máquina máquina de máquinaodedor fodido por ela durante oito horas por dia doze horas há um século é por ser forçado obrigado por que se apega à vida A morte não é uma alternativa a isso é uma parte disso atesta que há gozo nisso Os desempregados ingleses não se torna ram operários para sobreviver eles gozaram com o esgotamento histérico masoquista sei lá o quê de permanecer nas minas nas fundições nas fábricas 358 História das ideias políticas no inferno gozaram em e com a louca destruição imposta a seus corpos orgâ nicos gozaram com a decomposição de suas identidades pessoais Mas apesar disso eles também se revoltaram Um tal gozo digo o dos proletários não é de modo algum excludente das mais duras e mais intensas revoltas O gozo é insuportável Portanto não resta mais do que a apatia te órica e a exaltação do gozo ainda que algumas vezes seja ele que nos assas sina Lyotard leva ao ultraniilismo É possível ir mais longe na recusa Baudrillard acredita que sim cri ticando Foucault Deleuze Lyotard e Cia de ainda participarem da lógica produtivista do imperativo da produção O libidinal substitui a economia política um modelo de socialização mais fluido através do psíquico e do se xual sucede o modelo de socialização violento e arcaico através do trabalho mas de um discurso a outro corre do mesmo ultimato de produção no sentido literal da palavrà Ninguém chega até o fim da crítica das ortodoxias marxista e freudiana reconhecer que o poder é um engodo que só existe na medida em que se modifica que só se efetiva num ciclo reversível de sedu ções de desafios e de astúcias A produção acabou a revolução é ilusória e a única coisa que está em jogo é a morte O fim da produção esse esquema dominante da era industrial está supe rado O Capital transcendeu a produção Seu poder lhe vem justamente de seu desenvolvimento simultâneo em todos os níveis de não se ter jamais confundido a fundo com a produção como o fez Marx e todos os revolucionários posteriores que foram os únicos a crer e continuar crendo na produção que com ela misturaram suas fantasias e suas mais loucas esperanças O capital quanto a ele contentase em ampliar sua lei com um só movi mento ocupando inexoravelmente todo o espaço da vida sem se preocupar com prioridades E se ele colocou as pessoas no trabalho também as colocou na cultura nas necessidades na informação e na comunicação colocouas no direito na liberdade na sexualidade colocouas no instinto de conservação e no instinto de morte adestrouas por toda parte ao mesmo tempo segundo mitos adversos e indiferentes É essa sua única lei a indiferença O trabalho não se explica pela produção ele não é mais uma força po rém uma atribuição um lugar doado O trabalho também sob a forma de lazer invade toda a vida como repressão fundamental como controle como ocupação permanente em tempos e lugares O Estado em questão 359 regulamentados de acordo com um código onipresente É preciso fixar as pes soas por toda parte na escola na fábrica na praia ou diante da TV ou na reci clagem Mas esse trabalho não é mais produtivo no sentido originário não é mais do que o espelho da sociedade seu princípio fantástico de realidade Portanto é impossível calcular o valor das mercadorias ou o justo preço do trabalho O salário não é mais equivalente ou proporcional ao que quer que seja é um sacramento tal como o batismo que faz de você um ver dadeiro cidadão da sociedade política do Capital A moeda primeira mer cadoria assume o estatuto de signo e afastase do valor de uso Afastase até mesmo do valor de troca Liberada do próprio mercado tornase simu lacro autônomo esvaziada de qualquer mensagem ou significação de troca convertida ela mesma em mensagem e trocandose por si mesmà O poder e a morte o poder é o dom o dom unilateral o dom de tudo até mesmo da vida O segredo do poder do capital é antes de mais nada o de se pôr na situação de ser a própria instância que doa doa trabalho bemestar segurança cidada nia e em segundo lugar o de implantar instituições mediações sociais tais que ninguém possa ter jamais a oportunidade de perceber o desafio representado por um tal dom O trabalho é uma morte lenta oposta à morte violenta É uma morte adiada portanto uma vida dada pelo capital Ou então essa morte lenta é uma tentativa desesperada para devolver o dom para desafiar o poder do ca pital Morte lenta adiada ineficaz A única réplica eficaz ao poder consiste em devolverlhe o que ele dá e isso só é possível simbolicamente por meio da morte A morte é a única arma absoluta e sua simples ameaça coletiva pode fazer com que o poder entre em colapso Diante dessa única chantagem simbólica barricadas de 1968 prisão de reféns o poder se desune já que ele vive de minha morte lenta eu lhe oponho minha morte violenta E é porque vivemos da morte lenta que sonhamos com a morte violenta Esse simples sonho é insuportável para o poder Ao poder que dá tudo podemos contrapor apenas a desobediência as resistências o desejo ou a deriva libidinal de que todos fazemos parte ao poder que dá tudo podese opor apenas a morte Hist6ria das ideias poUticas I N D I CAÇÕ ES B I B LI O G RÁFI CAS Baudrillard J Iéchange symbolique et la mort Gallimard 1976 Lyotard JF Économie libidinale Minuit 1974 A QU ESTÃO DO ESTADO A questão do poder foi dissolvida na indicação das redes que inervam o tecido social Foucault o exercício do poder foi considerado como um dado geral da existência a única resposta possível em face dessa inelutabilidade torna se então a ontologia niilista dos desejantes Deleuze libidinais Lyotard mortíferos Baudrillard Para tentar escapar dessas sombrias soluções ou mais modestamente para retomar a questão inicial da obediência será que não se deve evitar a diluição do político no poder e colocar a questão do Estado As interrogações contemporâneas reencontram então intuições mais antigas e buscam inspiração até mesmo nos primitivos Clastres e Lefort re leem La Boétie Legendre decifra o direito canônico Marcel Gauchet vincula o político ao religioso Claude Lefort reinventà a democracia Por que a obediência La Boétie Por que eles obedecem Por que nós obedecemos Por que vocês obedecem Étienne de La Boétie coloca a questão em 1548 em seu Discurso sobre a ser vidão voluntária Como é possível que tantos homens tantas cidades tantas nações suportem algumas vezes um único Tirano que apenas tem o poder que eles lhe atribuem que não tem possibilidade de causarlhes dano ao qual se quisessem pode riam resistir do qual não poderiam sofrer nenhum mal se não preferissem tudo sofrer dele em vez de contradizêlo Coisa verdadeiramente surpreendente e contudo tão comum que antes temos de lamentála do que nos espantar com ela Ver milhões e milhões de homens miseravelmente subjugados e submeti dos de cabeça baixa a um jugo deplorável e não porque sejam obrigados a isso graças a uma força irresistível mas porque são fascinados e por assim dizer enfeitiçados pelo único nome de um que não deveriam temer já que é único nem adorar já que é diante deles todos desumano e cruel O Estado em questão 361 Temos aqui a questão mais subversiva de todas comenta Pierre Clas tres espantarse com a servidão voluntária é supor que a liberdade é pos sível É também instituir um corte radical entre sociedades de liberdade e sociedades de servidão Não há deslizamento progressivo da liberdade para a servidão mas o brutal desencontro que faz com que o antes da liber dade entre em colapso na posterior servidão La Boétie afasta as diferen tes explicações naturais A covardia dos súditos Ela não explicaria o desejo de servidão Ademais os mesmos homens que se abaixam diante do tirano mostram o maior heroísmo na guerra impossível chamálos de covardes A vontade de ter A renúncia à liberdade para possuir em tranquilidade seria concebível mas não é esse o caso Pessoas pobres e miseráveis povos insensatos nações teimosas em seu mal e cegas em seu bem vocês deixam que lhes tomem diante de seus próprios olhos o mais belo e o mais claro de suas rendas deixam que pilhem os seus campos que devastem suas casas e lhes despojem dos velhos móveis de seus ancestrais Vocês vivem de tal modo que nada mais lhes pertence La Boétie exclui a explicação econô mica E então Então Lefort explica o vocês de La Boétie Esse vocês se dirige ao povo a cada homem Mas seria um engano crer que ele aponta para a comu nidade do povo ou para os indivíduos percebidos como exemplares de uma mesma natureza humana ele designa um entrevocês o plural que se desfaz na produção do Um a renúncia recíproca de onde surge o Outro Contra Um esse era o título original do Discurso da servidão voluntária porque esse é o erro o Um a articulação de cada um com cada um numa totalidade para dar um conteúdo à vida comum a necessidade de uma identidade encon trada no outro A fonte da dominação ligase ao desejo existente em cada um qualquer que seja a escala da hierarquia que ocupa de se identificar com o tirano ao se fazer senhor de um outro O UmNós portanto faz o tirano A servidão voluntária repousa numa dupla cadeia de identificação a primeira pela qual a comunidade se reco nhece no Um e aceita assim o comando dele a segunda que multiplica o comando e através da qual se constituem grupos que exercem o poder para ele e em seu nome Assim a tirania atravessa a sociedade de lado a lado La BoétieClastresLefort colocam assim o problema da dominação po lítica a partir da soberania estatal tipo de dominação dos mais poderosos mas insistem eles não necessário A organização política não implica obrigatoriamente a cisão entre dominantes e dominados Os homens pode riam recuperar sua liberdade 362 História das ideias políticas Disponhamse a não mais servir e vocês serão livres Não quero que vocês o combatam nem que o derrubem mas somente que não o sustentem e verão que tal como um grande colosso do qual se retira a base ele tombará por seu próprio peso e se quebrará Para melhor elucidar o mistério da submissão Pierre Clastres não se contenta em reler La Boétie Também se esforça no sentido de renovar a an tropologia política e de extrair algum ensinamento do estudo das sociedades primitivas as quais apresentam em alguns casos um modelo único de so ciedade sem Estado A óptica contemporânea produtivista e evolucionista deduz desse fato que se trata de sociedades incompletas e portanto implici tamente inviáveis Todavia a observação das mesmas revela uma tecnologia adaptada aos seus problemas Para o homem das sociedades primitivas a atividade de produção é exatamente mensurada delimitada pelas necessidades a satisfazer entendendose que se trata essencialmente de necessidades energéticas a produção se baseia na re constituição do estoque de energia dispendida É a vida enquanto natureza que funda e determina a quantidade de tempo de trabalho consagrada a re produzila Disso resulta uma sociedade livre na qual os homens são senhores de sua atividade igualitária na qual a economia não se constitui em domínio autônomo ociosa na qual o homem só trabalha algumas horas apenas para viver e não para fazer com que os que não trabalham vivam No caso contrá rio aparece o Estado Quando a produção não é mais primitiva isso significa que ela se tornou uma sociedade dividida em dominantes e dominados em senhores e súditos sig nifica que ela deixou de exorcizar o que está destinado a matála o poder e o respeito pelo poder A revolução estatal revelase então o corte decisivo a grande divisão en tre selvagens e civilizados o incancelável corte para além do qual tudo mu dou já que o tempo se transformou em histórià Muito mais importante do que a revolução neolítica que trouxe a domesticação dos animais a agricul tura a tecelagem a cerâmica a sedentarização mas não necessariamente o Estado Também aqui a determinação da superestrutura pela infraestrutura cara aos marxistas não funciona há sociedades de nômades com Estado e sociedades de agricultores sem Estado A verdadeira linha de divisão O Estado em questão é a revolução política é o surgimento misterioso irreversível mortal para as so ciedades primitivas daquilo que conhecemos sob o nome de Estado Uma única reviravolta estrutural abissal pode transformar destruindoa enquanto tal a sociedade primitiva a reviravolta que faz surgir do seu seio ou de fora aquilo cuja ausência é precisamente o que define essa sociedade a autoridade da hierarquia a relação de poder a sujeição dos homens o Estado Mas então de onde provém o poder político de onde provém o Es tado Antes de mais nada é preciso saber que seu não aparecimento é pos sível e por exemplo que os chefes primitivos não detinham um poder de tipo estatal O espaço da chefia não é o lugar de um poder e a figura muito mal designada do chefe não prefigura em nada a de um futuro dés pota O chefe das sociedades ameríndias não possui nenhuma autoridade no sentido contemporâneo da expressão ele não faz a lei Ele é investido ao contrário de deveres e servidões tem de assegurar relações pacíficas no seio do grupo ser generoso com seus bens expressar o consensus omnium na linguagem conveniente é uma espécie de prisioneiro da coletividade O chefe é venerado em sua impotência sua opulência é o sonho diurno do grupo Todavia ocorre que o poder da chefia aumenta que os chefes tentam se tornar reis com sucesso em alguns casos Mas paralelamente a essa emer gência do poder político um estranho fenômeno desde o início das últimas décadas do século XV agitava as tribos tupiguaranis as pregações inflamadas de certos homens que de grupo em grupo convocavam os índios a abandonar tudo e a se lançar em busca da Terra sem Mal do paraíso terrestre Esse movimento expressava a insistente ideia segundo a qual o lugar de nascimento do Mal da fonte da infelicidade era o Um Ele convidava a abolir a infelicidade através da recusa radical do Um como essência univer sal do Estado A oposição radical entre dois tipos de sociedade com ou sem Estado corresponderia assim a uma oposição metafísica decisiva conforme o fato de que o Um figura o bem ou o mal O pensamento dos profetas selvagens e o dos gregos antigos pensam a mesma coisa o Um mas o índio guarani diz que o Um é o mal enquanto Heráclito diz que é o bem História das ideias políticas Em que condições o Um é pensado como Bem Essa se torna então a questão crucial da antropologia política para compreender seriamente o fato do Estado I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFI CAS Clastres P La société contre lEtat Minuit 1975 De La Boétie É Discours de la servitude volontaire 1548 Payot prefácio de Pierre Clas tres posfácio de Pierre Clastres e Claude Lefort 1976 ed brasileira Discurso da ser vidão voluntária Brasiliense São Paulo 1982 As armadi lhas da teologia Legendre Os homens aceitam obedecer ou melhor escolhem obedecer identificando se todos com Um É assim que nasce o Estado que esse se pereniza Mas como se mantém essa dominação estatal Pierre Legendre tenta responder a partir de uma análise do direito canônico o poder pontifício forneceria de certo modo a chave para o Estado moderno Desde a Idade Média até nossos dias a ação da teologia garante a do minação da instituição estatal centralizadora Ontem religiosa hoje secular e radicalmente laica é sempre a teologia que está em operação A Igreja e sua lei canônica presentearamnos com um Ocidente antes do capitalismo elas ensinaram ao Estado como utilizar o desejo sexual como lhe impor a ordem de uma censura mas também como oferecêlo como objeto de amor A composição moderna do Poder sob as figuras da teocracia pontifícia é instaurada a partir do século XII com a fundação do discurso canônico O direito canônico organiza uma simbólica onde transparece o objeto erótico e que realiza imaginariamente o desejo segundo uma combinação muito complexa característica da cultural ocidental O pontífice único e so berano ocupa nessa simbólica um lugar central Ele é o Ausente Mostrase no lugar de um outro é autenticamente apresentado para represen tar o Ausente Recebeu o encargo inumano de comandar de cima a baixo Conserva chaves místicas Sua sentença declara a Lei e mantém a sacros santa Igreja O Estado em questão Ele é Roma Uma transferência do Império teve lugar e o soberano pontífice aparece na ca deia dos signos como um duplo do imperador romano a ponto de receber as mesmas fórmulas simétricas Ele é o pai castrado A doutrina do pontífice inclui uma remissão ao estatuto geral do clero O que suja as mãos do padre é definido em três temas a mulher o sangue o dinheiro A obrigação sacerdotal de castidade retira o clérigo do universo laico marcado pelo tema da mulher e da punição Desse modo o soberano pontífice enquanto representa a onipotência e a privação sexual resolve uma antinomia é o pai mas castrado Ele inscreve o objeto sexual sob a ameaça depois o desejo é realizado imaginariamente pela castração fictícia infligida ao pai Ele é o intérprete É o portador do direito canônico Se ele é senhor é para transmitilo é o portavoz da instituição Constituise assim uma experiência arquetípica sig nificativamente difundida e depois modernizada na Europa as grandes buro cracias nacionalistas do Ocidente conquistaram igualmente as massas através dessa ficção da monarquia de um chefe sacrossanto ditando sob sua lógica os estereótipos de uma crença Sem esse título de autoridade rigorosamente con trolado segundo os procedimentos estabelecidos pela chefia religiosa os Esta dos não teriam nascido E cabe ao jurista comentar a Lei escamotear o desejo glosar esse objeto de amor recitar a palavra magisterial A censura se tornará efetiva apta a manipular todos os súditos até leválos a amar a Lei como autêntico objeto do desejo O dispositivo surgido há oito séculos continua a funcionar segundo as mesmas regras com as mesmas consequências Somente as peças mudaram o Estado substituiu o pontífice o pai de família o confessor a Lei econômica do rendimento a Lei divina as ciências humanas as ciências morais o na cionalismo a religião o Estado centralista o monoteísmo a Lei a palavra do pontífice Tratase sempre de inocular amor à subordinação no coração do povo por meio do amor à Lei A administração está no centro dessa orga História das ideias políticas nização tirânica lugar de angústia que deve fixar o ciúme e gratificar com alguma coisà Ela é Mãe nutriz generosa e perseguidora como antes a Mãe Igreja Sua primeira função é produzir lugares fazer entrar proteger por meio da submissão E aos tiranizados cabe exigir sempre mais justiça por meio do bom Estado I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFICA Legendre P Lámour du censeur Le Seuil 1974 Jouir du pouvoir traité de la bureaucratie patriote Minuit 1976 A dívida em face do divino Gauchet As sociedades primitivas indicam que o Estado não é necessário o direito canônico revela os sustentáculos de sua dominação e esses ensinamentos aparentemente díspares talvez tenham algo em comum Marcel Gauchet de certo está mais próximo de Clastres do que de Legendre mas isso se dá por causa de sua insistência na relação entre religião e política Ele mostra como a religião tornou possível o Estado antes de investigar os meios de se libertar do totalitarismo Depois de muitos outros Gauchet retoma a busca da origem a procura do fundamento da sociedade Para isso propõe uma nova leitura da religião primitiva A constância do fenômeno religioso com efeito parece enigmá tica Por quê A forma mais elementar e ao mesmo tempo a razão mais geral da crença re ligiosa não é mais do que a dívida do sentido o que durante milênios os ho mens reconheceram que deviam aos deuses Compreender por que os homens se pretenderam universalmente devedo res por que as sociedades pensaram tão obstinadamente que suas razões de pendiam de algo que não era eles é compreender por que existiu um Estado possível num dado momento do devir humanosocial Ao contrário do postulado positivista ou marxista a religião não é uma instituição consequência da fraqueza dos meios de produção ela não era uma necessidade É preciso pensar o fato religioso como instituído como uma decisão da sociedade E perguntar por que os primitivos pensaram desse O Estado em questão modo e quais foram os efeitos desse pensamento Por que eles decidiram pôr os eventos como resultados dos ancestrais ou dos deuses negar a evidência sensível dividir a realidade em dois domínios hierarquizados o das potên cias invisíveis e misteriosas o da atividade sensível inteiramente sob a de pendência do primeiro É o caçador que atira a flecha mas são os espíritos que ele soube apaziguar que o fazem atingir o animal Por que esta vontade afirmada e sistemática de despossessão Por um parti pris que preenche uma função política A religião não é apenas um modo mistificado de explicar o universo e o enca deamento dos fenômenos Através da religião instalase uma linha de di visão entre os homens e as modalidades de sua organização em sociedade As razões que presidem à organização da sociedade têm sua raiz fora da sociedade E isso com o objetivo de impedir que algum homem possa falar em nome da legi timidade última da coisa coletiva a partir do local onde se situa o fundamento ou seja de impedir que se exerça o poder A exterioridade simbólica do funda mento social contra a separação efetiva da autoridade política é essa a filosofia da religião primitiva A religião serve assim para conjurar o risco de uma separação no inte rior da sociedade entre dominantes e dominados A existência de potências exteriores à organização social implica o reconhecimento de uma desapro priação irremediável e definitiva O desejo de poder assim é aniquilado O poder existe não é para os homens é preciso deixar de ser homem a fim de passar para o lado do poder por exemplo morrendo Não há separação política possível dentro da sociedade sendo assim não há homem que possa se tornar o outro do restante dos homens Tudo se deve ao invisível Essa despossessão que invocava o Estado era ao mesmo tempo grávida do Estado já era a estrutura da separação instalada A exterioridade do fun damento da sociedade não foi criada pelo Estado mas o precedeu o pre parou De instrumento de igualdade o corte entre os vivos e as potências fundadoras e legisladoras que regulam sua existência tornase o suporte de sua sujeição Assim a religião foi historicamente a condição da possibilidade do Estado o fundamento do Estado é o mesmo da religião 368 História das ideias polfticas Estamos em sociedade porque devemos a outro que não a nós a existência da sociedade e a existência dessa sociedade tal como ela é Essa é a raiz do estra nho mal que leva inevitavelmente as sociedades a se dissociarem do que acredi tam ser sua própria causa e a garantia de sua ordem legítima Prosseguindo sua lógica o Estado se realiza liquidando a religião pois ele se impõe como sendo o único recurso da sociedade Onde estava Deus deve aparecer o Estado Conhecer isso pensálo é começar a decifrar o enigma do social a compreender o que faz com que existam senhores con quistar a verdade do poder permite que se lhe impeça o exercício I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFICA Gauchet M La dette du sens et les racines de lEtat politique de la religion primitive in Libre Payot 19772 Servidão e liberdade Lefort A atenção às relações entre sociedade e Estado permite uma apreensão nova do totalitarismo como oposto à democracia Esse é o sentido dos trabalhos de Claude Lefort da reinvenção subversiva do combate democrático na qual esses trabalhos se empenham O fato totalitário definese pela consubstancialidade entre o Estado e a sociedade civil M Gauchet sublinha que o totalitarismo é o filho natural do Estado moderno já que desenvolve sua lógica a seu ponto extremo ele nasce no momento em que a cisão da sociedade consigo mesma revelase pela primeira vez na história humana em estado puro sem a justificação de uma alteridade divinâ O Estado moderno dispensa Deus estabelece uma sociedade una agrupada por trás de seus governantes que exclui todo con flito de interesses em conjunção íntima com seu saber sobre si mesmâ Tratase em última instância tão somente do prolongamento de uma opção muito antiga da espécie humana da recusa de reconhecer o dado irredutível da cisão entre os homens da vontade inacessível de fazer com que a socie dade exista como Una C Lefort desmonta os mecanismos através dos quais o Estado soviético exacerba essa lógica da unificação A ideologia da pretensa ditadura do proletariado O Estado em questão empenhase em tornar evidente a presença do Estado em toda a extensão do espaço social ou seja em veicular através de uma série de representantes o princípio do poder que informa a diversidade das atividades e as contém no modelo de uma fidelidade comum O Partido é o órgão por excelência do totalitarismo Nele se encarna em todo lugar o princípio do poder propaga a norma geral que fornece a garantia de um tipo de reflexão da sociedade sobre si mesma e simultaneamente da polarização no sentido de um objetivo livrandoa da surda ameaça da inércia do instituído tornando sensível sua identidade sob o imperativo do ativismo A Egocracia se organiza o poder se destaca dos locais da socialização efetiva tal como ela se dá aqui e ali em relação com uma prática determinada e se concentra cada vez mais nos Órgãos nos aparelhos desses Órgãos até refluir para uma fonte única o Egocrata O Egocrata não é um déspota comum não é um senhor que governa só acima das leis mas alguém que concentra em sua pessoa a potência social e aparece e aparece a si mesmo como se nada exis tisse fora de si como se tivesse absorvido a substância da sociedade como se Ego absoluto pudesse se dilatar indefinidamente sem encontrar resistência das coisas Un homme en trop Stálin o maior revolucionário mas também o maior soldado biólogo poeta etc A unidade da sociedade é restaurada a totalidade do poder e do saber se encarna em um Só o fantasma da sociedade Una realizase no Um que concentra a potência a vontade e o saber Ao contrário a democracia reinventada corresponderia à vontade de unificar a sociedade sem abolir suas divisões à determinação de um espaço político no qual a divisão une Lefort se apoia nas experiências contemporâ neas de luta pela democracia e pela reconquista das liberdades nos combates contra o Gulag narrados por Soljenitsin nas resistências dos dissidentes nas revoltas húngara tcheca polonesa nas múltiplas combinações da criação de conselhos sovietes da reivindicação de direitos e liberdades da luta pelo 370 História das ideias políticas estabelecimento das garantias fundamentais da lei Um movimento é revo lucionário não por seus objetivos mas por suas formas de luta a ação de massa a ruptura com a legalidade estabelecida a instauração de uma nova legalidade associada a procedimentos de decisão e controle coletivos O que caracteriza a democracia O fato de que o poder é nela estabelecido de tal modo que não pode ser apropriado por aquele ou por aqueles que o exercem que ele não pertence a ninguém A sociedade como tal aparece numa indeterminação última ao mesmo tempo relacionada a si mesma circunscrita numa identidade nacional porém não mais orgânica e sim foco de geração de relações múltiplas cuja finalidade não existe O Poder o Saber e a Lei são dissociados enquanto espaços autônomos que se entrecruzam mas se contestam O social tornase uma instituição em ato a atração pelo Um recua diante do desejo de liberdade I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFICA Lefort C Eléments dune critique de la bureaucratie Genebra Droz 1971 Un homme en trop Réflexions sur IArchipel du Goulag Le Seuil 1975 Iinvention démocratique les limites de la domination totalitaire Fayard 1981 ed brasileira A invenção demo crática Brasiliense São Paulo 1983 comunismo 1921 412 1189 130 2023 233 3401 Comte 109 110 1123 132 Condorcet MJ de 109 Constant Benjamin 989 169 constituição 16 201 2930 601 71 778 823 989 117 contrato social 456 47 53 70 1578 corporativismo 1767 2256 cosmopolitismo 245 74 756 934 cristã política 27 1545 162 1701 2578 2901 3056 Darwin C 115 247 darwinismo social 247 2578 Debray R 281 Deleuze G e Guattari F 353 De Man H 159 175 democracia 156 201 989 1012 122 108 169 1923 3267 333 3345 368 desejopolítica 1920 50 1334 304 3367 3467 3534 355 despotismo 60 3534 Deutsch CW 236 Deutsch K 325 Dimitrov G 239 direito e poderes políticos 434 46 478 745 767 118 3201 364 direito naturalestado de natureza 223 457 50 53 66 3101 direitos do homem 81 219 Disraeli B 255 dissidência 219 Djilas M 216 Dobroljubov N 141 dominacãoobediência 1920 401 478 678 745 360 Doriot J 229 Dracón 14 Drumont E 227 Duguit L 3212 Dumézil G 24 Durkheim E 304 Easton D 326 economia politicapoderes políticos 634 767 1089 1201 141 183 3056 332 353 355 377 GEORGES DUBY A História Continua PETER BURKE A Fabricação do Rei A construção da imagem pública de Luís XIV NORBERT ELIAS O Processo Civilizador vol 1 Uma história dos costumes vol 2 Formação do Estado e civilização A Sociedade dos Indivíduos 371 Índice analítico e onomástico Este índice não é exaustivo mas contém as referências essenciais aos autores doutrinas e ideias políticas apresentados ao longo do livro As referências mais significativas e desenvolvidas aparecem em números grifados O leitor não deve se surpreender com a ausência dos termos Estado liberdade Legitimidade essas nocões estão presentes ao longo de toda a obra AbdalWahhab 297 Adorno Th 338 Afghani 298 Agostinho Santo 278 43 122 Althusser L 193 198 218 anarqruísmo anarcsindicalismo 1389 1423 145 347 antisemitismo 127 249 2934 Arendt H 234 3356 Aristóteles 14 20 43 Aron R 179 3267 3345 autoraidade autoritas 245 30 434 45 656 734 3067 Bakunin M 109 117 127 139 141 145 181 Barrès M 225 Baudrillard J 358 Bielinski V 141 Bell D 318 Bentham J 89 109 352 Bernstein E 159 160 167 183 186 185 193 195 263 Bettelheim C 238 239 243 Blanc L 131 142 227 Blanqui A 143 205 227 Bloch E 330 Blum L 161 168 175 Bodin J 44 bolchevismo 199200 2067 3356 Bourgeois L 72 157 lndice analítico e onomástico imaginário social 117 134 345 imperialismo 967 117 1878 2534 Império Romano 223 Internacionais Primeira 127 181 Segunda 145 1589 166 1745 181 262 Terceira 1812 2123 264 Islã 26 29 270 285 288 295 Jaures J 160 168 Jouvenel B 173 judaísmo 26 2923 justiça 1920 667 1045 108 1712 Kadhafy M 285 300 Kant E 72 901 153 159 310 Kautsky K 167 1845 204 264 Kelsen H 322 Keynes JM 172 180 Khomeini R 299 Kidd B 257 Kohn H 332 Kojeve A 339 Kropotkin P 145 Kruschev N 218 Kuron Modzelewski 216 La Boétie E de 41 42 364 Labriola A 176 Le Bom G 2467 Lefort C 154 164 168 215 360 361 3689 Legendre P 364 leis 134 15 301 323 434 45 478 51 54 58 71 153 2256 364 36970 Lenin VI 119 146 187 2001 210 264 314 Lerner D 235 Lerom P 131 LéviStrauss C 343 liberalismo 53 57 634 767 989 lll 1189 149 193 333 Lipset S 244 List F 248 Locke J 53 82 100 163 258 266 luta armada 273 Lutero M 38 Lmemburgo R 1856 187 188 189203 205 213 215 228 262 Lyotard FJ 356 Maistre J de 89 223 Mao TséTung 273 2867 290 Maquiavel N 36 42 43 Marcílio de Pádua 33 43 Marcuse H 32930 337 3478 Marighela C 282 Maritain J 155 162 373 Marx KEngels F 109 115 116 131 132 159 181 261 306 310 327 materialismo histórico 1189 191 2001 254 3456 Maurras C 221 222 228 246 Mazzini G 934 MerleauPonty M 340 341 Michelet J 93 Mill JS 109 111 monarquia monarquismo 167 412 601 778 2223 3078 Montesquieu 57 Moore Jr B 245 moral e política 712 86 1723 3345 340 341 More T 41 132 Mounier E 156 1623 Muhammad Maomé 29 295 Münzer T 39 Mussolini B 221 225 nação 36 56 634 81 87 8990 92 253 nacional libertação 266 nacional questão 261 nacionalismo 8990 222 256 nacionalsocialismo 221 2312 3356 Napoleão Bonaparte 88 307 Nasser DA 255 288 298 Netchaiev S 141 Nietzsche F 140 niilismo 140 356 Nkrumah K 283 ordem espiritualordem temporal 30 38 364 365 Organski FK 245 Owen R 132 Pareto V 3089 Parsons T 232 paparalismo 271 284 298 partido único 1267 181 203 212 2812 328 368 Pashukanis EB 323 374 pátria 734 912 956 Paulo são 27 Perõn JD 244 288 Pisarev D 141 Platão 16 17 41 49 Plekhanov G 201 pluralismo político 1501 162 328 Políbio 23 poderes políticossociedade 30 32 56 656 734 77 108 149 1923 195 2256 2312 2678 3056 3089 332 3478 360 368 populismo 13940 2001 282 2878 positivismo 112 222 povo 223 31 324 43 69 85 967 219 245 273 282 3323 Poulantzas N 197 240 progresso 27 667 734 110 1134 propriedade proprietário 1920 667 1201 Protágoras 18 protestantismo 38 3056 Proudhon PJ 109 142 227 Quesnay F 63 racismo 221 227 246 radicalismo político 1578 163 Ratzel F 97 249 rebeliões 54 82 3478 reformismo 1501 1689 regimes classificação dos 156 24 589 71 149 221 Reich W 42 242 335 336 religião e política 30 38 1545 162 16970 2901 3056 3667 Renan E 95 224 representação representantes 601 71 823 100 120 151 164 2078 2401 República 36 44 578 81 revolução 119 1212 1278 1846 199200 2067 214 237 2734 Revolução Americana 82 101 Revolução Francesa 83 1023 1112 Ricardo D 65 Robespierre M de 85 87 Roosevelt FD 172 Rosenberg A 249 Rousseau JJ 54 66 91 100 História das ideias políticas saberpoder 178 301 734 1012 110 1545 237 246 302 331 357 370 SaintJust 85 SaintSimon CH de 109 112 132 Salazar A de 244 Sangnier M 162 Sartori G 165 333 Sartre JP 340 341 Sékou Touré 272 283 Sêneca 25 Senghor LS 255 270 283 Sieyes E 83 87 101 246 sindicatos sindicalismo 11920 1278 144 1756 210 Sismondi S de 108 Smith A 108 126 soberania potestas 234 30 36 42 434 478 512 53 66 778 823 1023 3067 312 3201 331 360 3667 socialdemocracia 1589 1667 1745 socialismo 111 117 130 14950 1589 1667 1745 181 2334 271 2856 301 364 sociologia 250 sociologia e política 1135 304 319 325 3534 sofistas 178 Sólon 13 Sorel G 146 176 Spencer H 109 1145 257 Spengler O 249 Spinoza B 51 Spiro H 333 Stalin J 189 191 210 211 238 239 264 339 Stirner M 138 Strauss L 330 339 Tácito 25 Taine H 94 246 Taylor FW 313 Tchernichevski N 140 201 tecnocracia 316 3178 31920 326 32930 333 teologiapolítica 26 30 Terceiro Mundo 255 256 2734 terror 86 88 130 210 tirania clássicatotalitarismo moderno 339 Tito 255 Tocqueville A de 81 102 327 Togliatti P 218 Índice analítico e onomástico Tomás de Aquino Santo 31 43 44 totalitarismo 2334 3267 332 368 tradição tradicionalismo 88 923 2223 246 Trotski L 146 201 205 211 214 228 240 Tucídides 16 utilitarismo 110 1578 utopia utopismo 1920 412 756 130 3467 Vacher de Lapouge 248 Valois G 2289 Varga E 190 Vichinski AI 3234 Voltaire 56 Weber M 72 305 306 327 Weil E 312 Wilson EO 251 Xenofonte 20 339 Zinoviev A 219 333 375 Este livro foi composto em Minion Pro e Meta Pro e impresso por Paym Gráfica e Editora em julho de 2013
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FRANÇOIS CHÂTELET OLIVIER DUHAMEL ÉVELYNE PISIER HISTÓRIA das IDEIAS POLÍTICAS ZAHAR E sta história das ideias políticas apresenta deliberadamente um caráter particular Não tendo como objeto um saber prático estrita mente delimitado não poderia ser uma justaposição de fichas memotécnicas so bre os grandes autores ou as obras mais importantes Em vez de uma sucessão de informações optouse por uma reflexão de conjunto O apoio mais eficaz da memória é a com preensão para compreender por exem plo o bolchevismo será que basta saber que Trotski originariamente menchevique aproximouse de Lênin e que ambos marxistas dirigiram com êxito uma in surreição em 1917 Não é mais útil des cobrir que em 1905 Trotski adotou uma concepção ditatorial da revolução de fendendo ao mesmo tempo uma organi zação democrática do partido enquanto Lênin defendia um partido militarizado mas uma ditadura democrática E que em 1917 Trotski aderiu à concepção le ninista do partido e Lênin à concepção trotskista da revolução Que o acordo portanto de um lado e de outro foi feito em torno da escolha da solução ditato rial em detrimento da solução demo crática Isso não pode ser exposto sem referência aos textos às citações quando necessárias e ao conteúdo das argumen tações que são eles mesmos função do contexto histórico O presente trabalho se esforça para siste matizar de modo claro as principais dou trinas que marcaram o desenvolvimento do pensamento político de Platão a Mao e de Aristóteles a Foucault agrupandoas em capítulos cujos títulos já são signifi cativos das emergências conceituais que desempenharam um papel decisivo no devir político das sociedades o Príncipe Estado o EstadoNação o EstadoSocie dade o EstadoGerente o EstadoPartido o EstadoForça a NaçãoEstado o Estado Cientista finalizando com o Estado em Questão no qual se aprofunda a análise das questões do totalitarismo da história do poder e do próprio Estado FRANÇOIS CHÂTELET Foi professor de Filosofia na Universidade de Paris vm Obras publicadas no Brasil História da Filosofia em 8 volumes As Concepções Políticas do Século xx Uma História da Razão e Hegel OLIVIER DUHAMEL Professor na Universidade Sciences Po EVELYNE PISIER Professora emérita na Universidade de Paris r HISTÓRIA DAS IDEIAS POLÍTICAS François Châtelet Olivier Duhamel Évelyne Pisier HISTÓRIA DAS IDEIAS POLÍTICAS Tradução Carlos Nelson Coutinho Minha Impalável Biblioteca ZAHAR Título original História des idées politiques Sumário CAPITULO Ili o ESTADONAÇÃO 80 As Revoluções Americana e Francesa Doutrinários Partidários e Adversários 81 Significação da Revolução na América do Norte A Revolução na França a nação contra a tirania Sieyes A NaçãoPátria a vontade do povo como fun damento da República Robespierre SaintJust A República como unidade do povo e administração do território Aspectos dos juízos contemporâneos sobre a Revolução na França Burke J de Maistre O Nacionalismo na Europa 89 Uma metafísica da Nação JG Fichte O nacionalismo e a função da história A Thierry Michelet von Ranke Do nacionalismo filantrópico à ideologia conservadora da Nação Mazzini Taine Renan As doutrinas da expansão nacional e o imperialismo O Liberalismo Político Benjamin Constant o liberalismo contra a democracia Alexis de Tocqueville a democracia liberal CAPITULO IV o ESTADOSOCIEDADE 108 A Ciência como Instrumento e a Natureza como Modelo da Ordem Social 109 As metamorfoses do utilitarismo de Bentham a Stuart Mill O espírito po sitivo a ciência da sociedade como instrumento e garantia do progresso na ordem Auguste Comte A dogmática evolucionista o sistema de Herbert Spencer O Marxismo de Marx e Engels 116 Da crítica do Estado burguês à definição do ponto de vista materialista Dos Centros de Correspondência Comunista à crítica da economia política A crítica da economia política o Capital como fundamento da sociedade bur guesa Do Manifesto Comunista à fundação e à posterior dissolução da Asso ciação Internacional dos Trabalhadores Os Socialistas Utópicos 130 Socialismo e utopia A ode a Fourier A Sociedade Fora do Estado de Max Stirner ao Anarcossindicalismo 138 O individualismo e os paradoxos do niilismo de Max Stirner a Netchaiev A capacidade política das classes operárias segundo PJ Proudhon Do anar quismo libertário de Bakunin ao anarcossindicalismo CAPITULO V o ESTADOGERENTE 149 A Ideia de Gerência 149 O Humanismo 152 Do humanismo ao Estado de direito A inspiração cristã O humanismo re publicano O socialismo humanista O Pluralismo 161 Hesitações cristãs O democratismo poliárquico O socialismo pluralista O Reformismo 169 Da caridade à prevenção do risco social Rumo ao controle social Sobre o fim das ideologias CAPITULO VI o ESTADOPARTIDO 181 A Crítica do Estado Burguês 183 Um sistema de exploração econômica A crise do capitalismo o revisionismo de Bernstein A Revolução Mundial Rosa Luxemburgo A etapa imperialista Lênin Socialismo soviético e imperia lismo Stálin O pósStálin o capitalismo monopolista de Estado Um sistema de dominação política Reflexos e ideologias Bernstein O Estado hegemonia revestida de coerção Gramsci O gramscismoleninismo Althusser e Poulantzas A Gênese do Estado Socialista 199 A extinção do Estado A Revolução Bolchevique Plekhanov Trotski Lênin A teoria leninista do Par tido Lukács Trotski Lênin A ditadura do proletariado o Estado e a Revolução O fortalecimento do Estado De Lênin a Stálin Trotski Zhdânov Stálin A crítica do stalinismo Luxem burgo Trotski Djilas A desestalinização Kruschev Togliatti Dissidências CAPfTULOVll o ESTADOFORÇA 221 A Direita Contrarrevolucionária do Nacionalismo ao Racismo 222 O nacionalismo integral Maurras O racismo préfascista Drumont Maur ras Valois FascismosNazismos Interpretações 230 A explicação culturalista A explicação pelo totalitário Hannah Arendt Frie drich A explicação econômica Bettelheim Guérin Poulantzas A explica ção psíquica Reich Horkheimer Fromm As explicações sociológicas Lip set Moore A Bioideologia do Darwinismo Social à Sociobiologia 246 O darwinismo social Darwin Taine Le Bon O biohistoricismo List Go bineau Rosemberg A sociobiologia CAPfTULOVlll A NAÇÃOESTADO 253 Os Impérios 253 Imperialismos O colonialismo Disraeli Spencer O socialinternacionalismo Marx e a Nação A Segunda Internacional e a superestimação da questão social Luxemburgo Kautsky A Terceira Internacional a superestimação da questão política Lênin Stálin As Novas Nações A identidade A identidade perdida a alienação Césaire Fanon A unidade reencontrada as solidariedades Guevara Senghor A identidade nova a idiossincrasia so cialista A luta armada O princípioviolência A guerra popular Mao Zedong O foquismo Castro Guevara O povo A primazia da ideologia Nkrumah Kadhafi Guevara Mao Populismos Perón Nasser Castro O religioso Do judaísmo ao sionismo Herzl Do Islã ao islamismo Afghani Khomeini Kadhafi CAPITULO IX o ESTADOCIENTISTA 266 302 Uma Ciência da Sociedade 302 Ciência e sociedade Durkheim ou a explicação social Max Weber ou a ne cessidade do sagrado Vilfredo Pareto ou a propaganda pelo fato Eric Weil ou a política da razão A Ciência como Força Social 313 A organização do trabalho Taylor Lênin e o taylorismo James Burnham a irresistível ascensão dos gerentes JK Galbraith Onde você trabalha A ideologia tecnoburocrática Os juristas o direito e o EstadoCientista 320 Léon Duguit o socorro da sociologia Hans Kelsen o Direito o Estado e a norma Pashukanis e Vichinski a degenerescência da teoria marxista do direito As Teorias do EstadoCientista 325 Deutsch e Easton a pilotagem sistêmica Raymond Aron a teoria da socie dade industrial A Escola de Frankfurt a contestação do EstadoCientista CAPfTULOX o ESTADO EM QUESTÃO 331 A Questão do Totalitarismo 332 O enfoque liberal o totalitarismo como acidente superado Sartori Aron Investigações críticas o totalitarismo como virtualidade permanente Reich Arendt A Questão da História 338 Sobre a tirania StraussKojeve Comunismo e sentido da história Sartre MerleauPonty O estruturalismo e a dissolução da história LéviStrauss A história indeterminada Castoriadis A Questão do Poder 346 Rebeliões FreudMarcuse O poder como estratégia Foucault As mega máquinas do poder DeleuzeGuattari Niilismos Lyotard Baudrillard A Questão do Estado 360 Por que a obediência La Boétie Lefort Clastres As armadilhas da teolo gia Legendre A dívida em face do divino Gauchet Servidão e liberdade Lefort índice analítico e onomástico 371 Apresentação Esta história das ideias políticas apresenta deliberadamente um caráter par ticular Não tendo como objeto um saber prático estritamente delimitado não poderia ser uma justaposição de fichas memotécnicas sobre os grandes autores ou as obras principais Ao contrário e precisamente para responder ao objetivo da coleção 1 mas respeitando ao mesmo tempo a matéria de que trata não seria preferível dotar alguns traços habitualmente reservados aos manuais Nenhum plano detalhado mas um conjunto redigido apoiado em citações longas quando necessário não uma sucessão de informações mas uma reflexão de conjunto O apoio mais eficaz da memória é a compreensão para compreender por exemplo o bolchevismo será que basta saber que Trotski originaria mente menchevique aproximouse de Lênin e que ambos marxistas diri giram com êxito uma insurreição em 1917 Não é mais útil descobrir que em 1905 Trotski adotou uma concepção ditatorial da revolução defendendo ao mesmo tempo uma organização democrática do partido enquanto Lênin defendia um partido militarizado mas uma ditadura democráticà E que em 1917 Trotski aderiu à concepção leninista do Partido e Lênin à concep ção trotskista da revolução Que o acordo portanto de um lado e de outro foi feito em torno da escolha da solução ditatorial em detrimento da so lução democráticà Isso não pode ser exposto sem referência aos textos e ao conteúdo das argumentações que são eles mesmos função do contexto histórico O presente trabalho se esforça para sistematizar de modo claro as prin cipais doutrinas que marcaram o desenvolvimento do pensamento político Elas são agrupadas em capítulos cujos títulos já são significativos das emer gências conceituais que desempenharam um papel decisivo no devir político 1 Tratase da coleção Mémentos Thémis publicada por Presses Universitaires de France Pa ris NT 11 12 História das ideias políticas das sociedades Ele constitui não um resumo mas um condensado do ma nual de História do pensamento político a coleção Thémis cujo segundo tomo foi publicado em julho de 1981 sob o título As concepções políticas do século xx2 e cujo primeiro tomo será publicado sob o título As concepções políticas clássicas e modernas Evocar em 400 páginas a história das ideias políticas de Platão a Mao Zedong e de Aristóteles a Foucault constitui um desafio que só pôde ser tentado com fundamento nas 2 mil páginas do citado manual portanto será frequentemente necessário ao leitor preocupado em aprofundar os pontos expostos neste trabalho remeterse à referida Histó ria do pensamento político Poderá fazêlo tanto mais facilmente na medida em que este livro adota o mesmo eixo geral de reflexão a problemática da constituição do Estado já que o Estado tornouse a referência primordial das diversas concepções políticas Assim como o manual esta obra se esforça para subordinar a cronologia à lógica pondo assim em evidência o fato de que os grandes textos políti cos são ao mesmo tempo invenções construções autônomas e respostas aos problemas postos pelo tempo em que foram escritos Na verdade este me mento comporta dez capítulos 2 Ed brasileira Zahar Editores Rio de Janeiro 1983 NT CAPÍTULO 1 Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais A CI DADE G R EGA Uma das fontes principais do pensamento político moderno na área cultural mediterrâneoeuropeia é sem nenhuma dúvida a civilização grega clássica a outra fonte são os textos sagrados do povo judaico e sua reativação pela cristandade e o Islã cf adiante I 3 Entre os produtos marcantes do que é chamado de milagre grego para designar o conjunto das invenções institucionais literárias artísticas cientí ficas teóricas técnicas o mais característico é essa forma política original que é a Pólis a Cidade Quando essa se constituiu durante o século VI aC as organizações políticosociais tradicionais eram na civilização da Hélade realezas de tipo feudal onde predominavam grandes famílias os bemnas cidos que exerciam sua autoridade política religiosa jurídica e econômica sobre um pequeno povo de agricultores artesãos e pescadores e nas terras bárbaras vastos impérios comandados por um déspota que impunha uma dominação absoluta apoiado em castas militares sacerdotais e técnicoad ministrativas Durante a época feudal da Grécia violentos conflitos opunham por um lado as grandes famílias entre si e por outro essas às populações dos campos e das cidades cidades que iam se tornando cada vez mais numerosas e ativas Esses conflitos tornaramse tão violentos que em vários territórios as partes envolvidas concordaram em solicitar a um personagem reputado por sua sabedoria e seu desinteresse que fixasse regras para o jogo social Foi o que ocorreu em Atenas onde por volta dos anos 600 ae Drácon e Sólon sucessivamente foram encarregados de enunciar os princípios orde nadores das relações entre os membros da coletividade Esses legisladores nomotetas assumem a tarefa menos de instaurar uma Constituição do que de definir os enunciados fundamentais conhecidos de todos determinando com precisão a participação de cada um na defesa e na gestão das questões 13 14 História das ideias políticas comuns da Cidade as instâncias de onde devem provir as decisões que en volvem a coletividade a arbitragem dos conflitos e a punição dos crimes e dos delitos Assim regras costumeiras no mais das vezes deixadas à interpretação de tribunais que julgam em segredo são substituídas por textos claros e pú blicos as leis Devese sublinhar o fato de que a obra essencial de Drácon foi exigir que os juízes tornassem publicamente conhecidos os argumentos que legitimavam suas sentenças E em meados do século IV aC quando o historiador Heródoto quer explicar a vitória da Grécia sobre os Bárbaros quando das duas guerras médicas ele põe em evidência a superioridade dos cidadãos combatentes que não têm outro senhor além da Lei e que coman dam a si mesmos em comparação com os guerreiros do Império Persa que obedecem a um homem e não têm outras motivações além do interesse e do temor A Lei como princípio de organização política e social concebida como texto elaborado por um ou mais homens guiados pela reflexão aceita pelos que serão objeto de sua aplicação alvo de um respeito que não exclui modi ficações minuciosamente controladas essa é provavelmente a invenção po lítica mais notória da Grécia clássica é ela que empresta sua alma à Cidade quer essa seja democrática oligárquica ou monárquicà A Cidade como lugar natural da sociedade dos homens Quando no início de A Política Livro I 2 1252 a 241253 a 37 Aristóteles quer definir a Cidade ele a opõe a duas outras formas de agrupamento animal a família que reúne os indivíduos do mesmo sangue e a aldeia que agrupa os vizinhos em função do interesse Nos dois casos o objetivo é a sobrevivência A Cidade por seu turno tem como fim o eu Zein o que significa Viver como convém que um homem viva Essa definição se esclarece quando se sabe que em outros textos Aris tóteles especifica por um lado que o homem não é nem uma besta nem um Deus que é um meio entre esses extremos e por outro que faz parte da essência dele ser um animal que possui o logos ou seja a capacidade de fa lar de maneira sensata e de refletir sobre os seus atos Desse modo a famosa fórmula o homem é um animal político polis cidade Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais 15 significa que somente na Cidade organização fundada não sobre a força bruta não sobre interesses passageiros não sobre as prescrições dos deuses é que o homem pode realizar a virtude a capacidade inscrita em sua es sência Essas análises de Aristóteles cabe sublinhar apresentam o aspecto principal da concepção grega clássica Essa se caracteriza por outros aspectos igualmente importantes que é preciso conhecer se quisermos compreender a significação e o alcance das outras invenções políticas feitas pela Grécia os gregos consideram geralmente que a sociabilidade é produzida pela natureza e portanto que não se trata de fundála mas de ordenála eles imaginam de bom grado uma idade de ouro préhistóricâ na qual os deuses apascentavam diretamente os homens diz Platão que teria sido submergida por um cataclismo levando assim a um estado patriarcal se eles desenvolveram discursos históricos não possuíam de nenhum modo a ideia cristã e póscristã de um decurso da história linear e do tado de um sentido a representação do tempo que domina é a do ciclo que faz reaparecer as mesmas situações a noção de um progresso global está excluída a de uma acumulação das riquezas suscita a maior desconfiança o trabalho material é concebido como algo que deprecia e somente a ativi dade do lazer scholê é produtiva a humanidade como espécie é compreendida como a mais elevada do gê nero animal participando da animalidade por sua sensibilidade e do di vino por sua capacidade de raciocinar no seio dessa espécie a natureza produz ethnai dos quais o divino está ausente e que são naturalmente escravos É um excesso hybris tão grande querer ser um deus como agir como animal o grego por sua situação geográfica e sua cultura paideia considerase como privilegiado quanto à possibilidade de realizar a vir tude do homem a Cidade como comunidade consciente é precisa mente a forma política que permite a explicitação dessa virtude Somente ela permite à coletividade instaurar uma ordem justa e ao indivíduo viver de tal modo que atinja a satisfação legítima sob o império das leis Resta determinar em que consiste essa ordem e que satisfação ela pro mete A democracia Heródoto apresenta uma classificação dos regimes políticos que irá se tornar célebre História III 802 16 História das ideias políticas O bom regime é aquele no qual comanda apenas um a monarquia que governa para sua glória e a de seus súditos Ou aquele no qual comanda uma minoria a oligarquia constituída de cidadãos reconhecidos como superiores por seu nascimento sua riqueza sua competência religiosa ou militar Ou aquele onde comanda a maioria a democracia maioria constituída pela população dos camponeses dos artesãos dos comerciantes dos mari nheiros A contribuição singular de Atenas consiste em ter respondido pratica mente instaurando esse último regime e sobretudo inventando uma outra definição da democracia No final do século VI aC e durante a segunda metade do século se guinte o poder democrático realizou uma série de reformas que estenderam o estatuto de cidadãos plenos à totalidade dos habitantes masculinos nasci dos atenienses assegurandolhes assim a igualdade diante da lei isonomia e o acesso às magistraturas É instituída uma centena de municipalidades agrupadas em dez tribos que são administradas por um conselho que com preende todos os cidadãos nelas englobados O poder central é exercido pela Assembleia Popular que reúne todos os cidadãos dez vezes por ano e nas circunstâncias graves é ela que toma as decisões soberanamente adota de cretos elege os magistrados encarregados do executivo designa de seu seio os membros das câmaras de justiça e o faz por maioria todo cidadão tendo direito de palavra As magistraturas executivas dos estrategistas aos ins petores dos mercados são colegiadas limitadas e necessitamse de sérias razões para que um magistrado seja reeleito para suas funções Decerto as desigualdades devidas à condição social não são completamente apagadas mas essa organização cívica que põe o poder no meio e recusa que ele seja apanágio de alguém visa a conjurar não somente o aparecimento de um tirano mas também a instalação de uma casta ou de uma classe separada da sociedade e que se aproprie do poder político Até os anos 430 ae o êxito da democracia foi grande tanto na harmo nia de seu funcionamento interno como na ampliação de sua expansão ao exterior Com as derrotas sofridas na guerra contra Esparta iniciase uma crise que está na origem das mais significativas reflexões políticas surgidas no pensamento grego Entre essas devemse considerar como exemplares a de Tucídides e a de Platão Na História da Guerra do Peloponeso Tucídides que constata a dege nerescência do regime democrático incapaz de conduzir a guerra e de gerir Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais 17 seus problemas internos constrói um monumento a Péricles O que ele compreendera e seus sucessores haviam esquecido é que a democracia o melhor dos regimes políticos por garantir a isonomia e assegurar as liber dades privadas exige uma constante atenção de todos os cidadãos Ela só subsiste se os dirigentes que o povo escolheu não deixarem nunca de calcular e de refletir sobre suas decisões Regime de liberdade que leva aos grandes empreendimentos ela entra em colapso quando esses não são conduzidos somente pelo princípio da inteligência o nous do intelecto calculador que não apenas elabora estratégias de prudência mas visa também a não lesar nem favorecer nenhum dos grupos constitutivos da coletividade De modo inteiramente contrário Platão refletindo ou utilizando a seu modo o ensinamento de Sócrates desenvolve uma crítica bastante viva da democracia No essencial essa crítica se baseia nos seguintes argumentos A massa popular oi polloi é assimilável por natureza a um animal escravo de suas paixões e de seus interesses passageiros sensível à lisonja incons tante em seus amores e em seus ódios confiarlhe o poder é aceitar a tira nia de um ser incapaz da menor reflexão e do menor rigor Quando a massa designa seus magistrados ela o faz em função das compe tências que acredita ter constatado em particular as qualidades no uso da palavra e disso infere irrefletidamente a capacidade política Quanto às pretensas discussões na Assembleia são apenas disputas con trapondo opiniões subjetivas inconsistentes cujas contradições e lacunas traduzem bastante bem o seu caráter insuficiente Em suma a democracia é ingovernável o exemplo de Atenas prova uma cidade que perdeu a guerra contra Esparta e condenou Sócrates à morte Sua desordem leva à tirania e induz todos à imoralidade A refutação é banal mas o argumento que a apoia coloca um problema político capital o da rela ção entre Saber e Poder Saber e Poder Tucídides reprovava nos demagogos que se haviam apossado da democracia o fato de não conduzirem a ação política segundo as regras de uma reflexão rigorosa Platão é mais exigente prolongando a crítica radical realizada por Sócrates mediante a implementação do projeto de um Saber indubitável ele estabelece a tese segundo a qual a definição da ordem da Cidade justa supõe uma ciência do político que é ela mesma parte de um Saber mais amplo o Saber do que na verdade é Assim a recusa da democracia pressupõe a re 18 História das ideias políticas futação dos princípios nos quais esse regime se funda princípios de que os sofistas foram os portavozes Os sofistas assim são designados os professores de retórica que se insta laram na jovem democracia ateniense para ensinar aos cidadãos como falar de modo persuasivo a fim de fazer triunfar sua causa diante dos tribunais e suas ideias nas instâncias políticas Como o papel do discurso era decisivo eles foram efetivamente os mestres da democracia A arte deles era antes de mais nada formal ensinavam seus alunos a técnica oratória o bom uso dos argumentos a hierarquia dos efeitos Mas tornaramse também os de fensores da novidade retiram de bom grado suas provas da experiência histórica das descobertas artesanais dos trabalhos dos físicos e dos médi cos que eles mesclam com referência às lendas tradicionais da Grécia com o Panteão religioso Todavia por trás dessa prática revelase uma concepção mais profunda quando Protágoras declara que o homem é a medida de todas as coisas afasta essa tradição afirma que a Cidade é o produto do ato dos homens e que as leis resultam de convenções Na mesma óptica Crítias chegará a afir mar que os deuses são criações dos governantes para dar estabilidade à or dem social Para legitimar o regime democrático Protágoras reinterpreta à sua maneira o mito de Prometeu ele diz que os deuses que distribuíram desigualmente o talento entre os homens deulhes para compensar a sua fraqueza em comparação com os animais a todos igualmente a capacidade de julgar o bem comum cf para todos esses pontos os diálogos Protágoras e Górgias de Platão Novamente é reafirmada a preeminência do homem que não tem outro juiz além dele próprio É contra essas teses que segundo Platão a reta filosofia deve se dirigir em nome do que é divino no homem Essa filosofia não tem dificuldade em mostrar que se se tomar a sério a sofística bloqueiase qualquer possi bilidade de enunciação duradouramente válida e por conseguinte qualquer política coerente Uma tal política só pode ser fundada num conhecimento exato da ordem das coisas Tudo se passa portanto como se o filósofo dispu sesse de uma alternativa ou a concepção dos sofistas e mais geralmente dos amantes da terrà é correta caso em que é preciso optar pela democracia e por seu aborto a tirania com seu cortejo de violências de injustiças e de servidões Cálicles personagem do Górgias 1 que sintetiza os traços dos sofistas mais resolutos Ao contrário de sua maneira habitual Platão não põe em cena sob o nome de Cálicles um personagem histórico Decerto sob essa denominação ele construiu o tipo por excelência do inimigo da reta filosofia Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais 19 retira a consequência do caráter convencional da lei por exemplo se a lei nomos não é garantida por uma ordem qualquer a dos deuses ou da na tureza physis então cada um está no direito de agir com o objetivo de satisfazer livremente seus impulsos naturais de pretender ser tirano ou existe uma ordem superior que não é falsa ordem da natureza ou dos deuses tradicionais que só pode ser apreendida pelos que se esforçam no sentido de domar os próprios apetites sensíveis e de exercitar o olho da alma através de uma educação sistemática do logos da atividade dis cursiva esses verão se esboçar no mundo intelegível o esquema da Cidade perfeita que corresponde ao da alma individual bem regrada e à distribui ção cósmica dos caracteres humanos Esse esquema é o seguinte uma classe de cidadãos deve prover as neces sidades materiais da coletividade sua virtude é trabalhar e obedecer perten cem a essa classe que o cosmos fez nascer com uma alma na qual predomi nam os apetites Uma outra tem como missão rechaçar os inimigos e garantir a segurança interna sua virtude é a impetuosidade e a disciplina é composta pelos indivíduos cuja alma é orgulhosa e corajosa Finalmente uma outra garante a autoridade soberana e gere a coletividade é constituída pelas na turezas filosóficas pelos filhos das Ideias que provaram pelo exercício e pelo estudo sua capacidade para saber e portanto para comandar Uma tal organização supõe que os homens e as mulheres sejam igualmente cidadãos e que os bens e os filhos sejam comuns ou seja supõe o aniquilamento da família que o filósoforei proceda graças a seu saber às melhores combi nações eugênicas e à seleção que permita a classificação de cada cidadão na classe adequada à sua natureza As Leis propõem um programa político que atenua amplamente a rigi dez desse modelo Sugeriuse que a República onde tal modelo é exposto seria talvez uma fábula moral Resta o fato de que a Callipolis permaneceu como o tipo por excelência da Utopia racionalista que em nome da per feição submete o Poder ao Saber e a organização social às exigências da Ordem unificadora O cidadão na Cidade A política platônica rompe tão fortemente com a representação grega da Ci dade que não provocou admiração em seu tempo A reflexão política reagiu contra ela e contra a irrupção de demagogia que se alastrou por todas as 20 História das ideias políticas cidades no século IV ae Xenofonte também discípulo de Sócrates es forçouse por restaurar o ideal de um poder que apoiandose na tradição religiosa gerisse a coletividade como um pai governa seu lar Isócrates con siderava que a desgraça das Cidades gregas provinha de sua divisão e bus cou uma autoridade que as confederasse mantendolhes a autonomia desse modo anunciou a suseranià que iriam exercer Filipe da Macedônia e Ale xandre o Grande Entretanto a reação mais interessante é a de Aristóteles Ele adota a posição filosófica a que considera indispensável a referência às Ideias mas considera que a utilização feita por Platão dessa referência é ineficaz e peri gosa Assim como a morte injusta de Sócrates foi o evento que desencadeou a vocação de Platão do mesmo modo o fracasso empírico de Platão sua in capacidade de convencer Dionísio de Siracusa determinou para Aristóte les uma interrogação que estará na origem de uma concepção política ainda hoje viva Seu projeto é não apenas o de tornar a filosofia praticável no seio da Cidade tal como ela é mas também de darlhe credibilidade como instru mento teórico capaz de determinar para cada cidade e em geral qual a me lhor Constituição e quais as virtudes e capacidades exigidas dos cidadãos Esse projeto implica uma defesa e uma reabilitação da Cidade real con tra todos os seus detratores tanto contra os discípulos dos sofistas que como Cálicles exaltam o individualismo como contra os utopistas que sonham com um retorno à tradição monárquicà ou inventam um modelo que incita à implantação de um poder que exerça uma autoridade coercitiva e ilimitada Contra os primeiros ele faz valer as exigências da sociabilidade natural condição necessária para uma existência feliz e virtuosa contra os segundos e em particular contra Platão exalta o ideal realista da Ci dade que faz da liberdade dos cidadãos a condição prévia de toda organiza ção justa A crítica da Callipolis é de extremo vigor a comunidade dos bens das mulheres e dos filhos se opõe à natureza e desconhece o fato de que se a Cidade é a unidade de uma multiplicidade ela é feita de pequenos grupos e de indivíduos que são distintos uns dos outros e se apegam à sua distinção O erro de Platão é querer reduzir seres diferentes à igualdade aritmética e aplicar autoritariamente uma proporcionalidade geométrica à ordem social quando nesse domínio opera uma contingência que torna impossível a apli cação estrita do raciocínio científico Mas o essencial da crítica referese ao governo dos filósofos Aristóteles está convencido da excelência da filosofia Mas portavoz da tradição cívica grega ele considera que é um erro atribuir o poder definitivamente a uma parte do corpo social sem que nada o limite A separação dos cidadãos em Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais 22 História das ideias políticas 0 IM PÉRIO ROMANO Com ele segundo Hegel começa a prosa do mundo Seria leviano interpre tar essa fórmula de modo pejorativo se é verdade que a civilização romana não teve a riqueza de invenção da grega soube transportar para o real ideias elaboradas por essa e construir instituições de uma eficiência incontestável Seu prosaísmo é antes de mais nada um sentido constante do fato consu mado e de sua inscrição nas estruturas coletivas O pragmatismo do pensa mento e da prática política romanas não aceita o compromisso e a oportu nidade a não ser na medida em que concordem com a tradição de grandeza e potência da cidade de Rômulo Os enunciados jurídicos e as legitimações filosóficas intervêm como quadro como marca e como perpetuação da ação fundadora da comunidade cívica Assim o direito a res publica e o imperium atuam enquanto instituem a ordem militar e administrativa estabelecida de fato pelo Povo e pelo Senado As virtudes republicanas Mesmo na época do pior despotismo imperial Roma sempre se proclamou republicana Esse semblante parecia indispensável ao seu poder Ela trans formouse em si mesma somente quando se desembaraçou do arcaísmo re presentado pela realeza e definiu o direito O direito quando por volta de 450 aC os decênviros fizeram gravar a Lei das Doze Tábuas estava constituída a base do Direito romano Seu objeto é em primeiro lugar a família O cidadão o homem livre é o pater fami lias senhor absoluto da casá cabelhe representar junto aos juízes quando julgar que ele próprio os seus ou suas propriedades sofreram algum dano bem como exigir as reparações e penas adequadas Quando o direito se enriquece com prescrições cada vez mais numerosas e precisas quando se estende aos peregrinos depois a todos os que adquirem o direito de ci dadania ele forma um código estrito regulamentando o conjunto da vida social e definindo as liberdades e os deveres de cada um Será preciso ver nisso uma expressão da concepção estoica que reconhecendo a existên cia de uma ordem do mundo inelutável e racional considera a submissão tranquila ao destino como a única virtude É significativo que esse código tenha como objetivo principal regulamentar do modo mais claro e equâ nime possível o que é e não propor um deveser Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais 23 Paralelamente afirmavamse as Instituições Republicanas A sigla que as designa SPQR Senatus Populusque Romanus assinala que o poder que nelas se exerce é pelo menos duplo O historiador grego romanizado Po líbio 200 aC125 aC analisando a expansão de Roma e a vitória sobre Cartago concluiu pela excelência de uma organização política que soube constituir uma mescla harmoniosa de três regimes O pensamento de Po líbio é amplamente tributário da tradição dos filósofos e dos historiado res clássicos combinando habilmente a concepção da história de Platão e sua teoria da decadência com as análises de Aristóteles relativas aos méri tos comparativos das diversas Constituições investigando as retificações sucessivas realizadas pelos romanos em função das circunstâncias e de sua expansão territorial Políbio apresenta a República como sistema que equilibra as vantagens da monarquia asseguradas pela autoridade firme e benevolente dos cônsules da aristocracia realizadas na prudência e na sabedoria do Senado e as da democracia garantidas pelas disposições que têm como objetivo o respeito pelos interesses e direitos do povo Esse equilíbrio é na opinião de Políbio o melhor meio de conjurar a degene rescência inscrita por naturezà nas realidades sujeitas ao devir Por mais edulcorada que seja essa imagem e por mais falaciosa que se revele essa esperança é certo que são ambas constitutivas da ideia que os cidadãos faziam de suas instituições e isso a ponto de mantêlas enquanto as legiões faziam e desfaziam os imperadores Entretanto foi a Cícero 106 aC43 aC que coube o privilégio de de finir os princípios que servem de fundamento para essa Cidade ecumênica universal na qual Roma conquistadora está se transformando Inspi randose nos estoicos Panécio e Possidônio ele considera que existe uma lei natural válida para todos os homens que está inscrita na própria ordem do cosmos tratase de uma lei que podemos conhecer usando a reta razão uma lei imutável e eterna e que deve ser tomada como regra absoluta de toda Constituição e de toda legislação A natureza cosmos que segundo o estoicismo é a mesma coisa que a Razão é assim a norma da organiza ção justa e da ação virtuosa bastaria aprender a conhecer suas incitações e obedecêlas com toda a lucidez para agir como convém Infelizmente maus hábitos e os movimentos passionais nos arrastam para bem longe dos seus ensinamentos Desse modo as legislações de fato aparecem no mais das vezes como produtos dessa ignorância O mérito das instituições romanas contudo con siste em ter definido a comunidade por elas regida com base num vínculo 24 História das ideias políticas jurídico e numa ordem política estritamente determinada Por causa disso a res publica ganha uma outra consistência formada por experiência e por reflexão é também de certo modo e na medida em que a contingência his tórica permite a expressão da lei natural A Cidade ecumênica pode assim ser compreendida enquanto concede progressivamente o direito de cidada nia e faz com que os povos conquistados se beneficiem das garantias do Di reito romano como o núcleo de uma organização universal que faz de cada indivíduo um cidadão do mundo um cosmopolita Sem o querer Cícero prepara a ordem imperial E isso em medida tanto maior quanto retomando o tema da Constituição mista esboça a imagem do princeps do príncipeárbitro tutor e defensor da res publica Dezesseis anos depois da morte de Cícero Otávio Augusto receberá o título de lmperator O imperium romanum O Império como forma política inscrevese no destino de Roma é em seu quadro e graças ao tipo de ordem que ele exerce que a cidade irá reali zar sua virtude e difundir universalmente sua civilização O poder que ele define juntamente com a sacralidade que cedo se lhe acrescentará atualiza de modo exemplar a tripartição das funções sociopolíticas que é caracterís tica segundo Georges Dumézil da cultura indoeuropeia Sob a tutela de César Augusto onipotente equilibramse segundo a hierarquia as três forças constitutivas da comunidade no topo a classe dos sacerdotesreis os senadores os magistrados civis que têm o encargo de se comunicar com os deuses e de administrar a res publica sob a invocação de Júpiter a classe dos guerreiros que defendem a cidade e sob a invocação de Marte estende sua glória Quirino a classe dos agricultores e dos artesãos que proveem as necessi dades materiais Na pessoa de César Augusto encontramse reunidos os diversos atribu tos correspondentes a essas três funções o imperador que é tal porque o consensus o quis é senhor na ordem políticoreligiosa já que detém a potestas administrativa e a auctoritas qualidade moral que lhe permite julgar o que é conveniente ao bem público Génese do pensamento polftico os conceitos fundamentais 25 enquanto imperator é o chefe supremo das legiões finalmente como princeps tem uma espécie de encargo patronal que lhe dá a missão de empreender nos domínios relativos à vida econômica ou artística tudo o que pode contribuir para a felicidade e a honra da cidade A extensão territorial de Roma no Oriente mediterrâneo concorreu para reforçar os aspectos religiosos do poder imperial E ao mesmo tempo em que cresciam desmesuradamente os aparelhos administrativos e militares o Império tornouse o local de uma circulação de capitais de mercadorias e de populações tão intensa e tão diversificada que a vocação ecumênica tende a se perder Nessa situação três problemas políticos fundamentais se colocam Inicialmente um problema constitucional o da sucessão imperial Cir cunstâncias excepcionais presidiram a designação de Otávio Qualquer que tenha sido a natureza desse poder não se poderia questionar o fato de que não foi mantida a ficção de continuidade com a tradição republi cana e que o príncipe não foi eleito ao mesmo tempo pelo Senado pelo Povo e pelas legiões encarregadas de formar um consensus Foi excluído que a filiação real tivesse algum papel mas considerouse normal que o imperador em exercício preparasse a sua sucessão As análises históricas de Tácito constituem uma espécie de meditação razoavelmente pessimista sobre os papéis respectivos do acaso e da necessidade da força bruta e da reflexão da sorte e do azar da descontinuidade e da continuidade no acesso dessa ou daquela personalidade à função suprema Pragmatismo e fatalismo combinamse estranhamente sem prejuízo notável para a potên cia romana enquanto as forças unificadoras predominam sobre os fatores de dispersão Um segundo problema nasce da própria estrutura do poder imperial a onipotência a sacralidade e o tipo singular de legitimidade de fato que a ele se liga engendram nos que exercem esse poder e nos que dele fazem parte uma angustiada reflexão sobre o comando Sêneca 4 aC65 que foi preceptor de Nero e Marco Aurélio que foi imperador de 161 a 180 in terrogavamse na perspectiva definida pelo estoicismo sobre a relação do indivíduo com seu destino e sobre o papel que cada um tem na deci são dos eventos A ideia originária da filosofia clássica grega e do antigo estoicismo de um cálculo racional que permite guiar a conduta é substi tuída paulatinamente por uma doutrina da dignidade que consiste em se conformar com a virtude e em aceitar o destino a despeito da loucura dos homens e da história 26 História das ideias políticas O terceiro problema é mais precisamente político Quanto mais o império se expande tanto mais se multiplicam os fluxos que o atravessam tanto mais a pax romana tornase frágil Pesam ameaças nas fronteiras distantes os povos recémconquistados apresentam o permanente risco de se rebe larem Se permanece em Roma o imperador abandona suas legiões se se bate nas fronteiras perde o controle da rede administrativa Além disso a gestão desse imenso conjunto exige um número cada vez maior de pessoas Os fatores de dispersão tornamse cada vez mais fortes O edito de Cara cala que em 212 concede a cidadania a todos os habitantes do Império não bastará para conjurar os eleitos desintegradores É nessa situação que se desenvolve a pregação cristã na bacia do Me diterrâneo Em 312 o imperador Constantino põe fim às perseguições anti cristãs em 324 ele funda Constantinopla sua capital oriental em 337 morre batizado INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Benveniste E Vocabulaire des institutions indoeuropéennes Minuit 1969 2 vols Cícero Des Lois Les BellesLettres 1968 Des Devoirs in Les stoiciens Dumézil G Mythe et épopée NRF 3 vols 1968 1971 1973 Grenade P Idéologie de limperialisme romain Les BellesLettres 1974 Les stoiciens textos selecionados por E Bréhier NRF La Pléiade 1962 Michel A Les idées politiques à Rome dAuguste à Marc Aurele A Colin col U 1969 Nicolet C Les idées politiques à Rome sous la République A Colin col U 1970 0 MONOTEÍSMO A CRISTAN DAD E E O ISLÃ Os dois eventos importantes do primeiro milênio nessa área da civilização são incontestavelmente o êxito político de duas religiões reveladas a Cristan dade e o Islã Suas visões do mundo parentes e diversas irão marcar dura douramente as ideias e os costumes Uma e outra encontram suas raízes nos textos sagrados do povo judaico reunidos no que se chamou de Velho Testa mento Esses textos têm de original em comparação com a tradição grecola tina o fato de afirmarem a preeminência absoluta de um Deus único pessoal e criador senhor da Lei e a queda do homem que se perdeu por causa dos Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais 27 seus pecados bem como a possibilidade da redenção oferecida por Deus em sua bondade aos homens que quiserem escutálo Ao profundo naturalismo grecolatino esse monoteísmo opõe uma concepção do homem como cria tura que mantém com seu criador relações pessoais espirituais e uma con cepção da comunidade como sendo fundada não num projeto éticopolítico não numa relação jurídica mas numa aliança religiosa Disso resultam sin gulares noções da liberdade e da responsabilidade e portanto da ação histó rica que o cristianismo e o Islã irão reativar cada um a seu modo A Cidade de Deus e a Cidade dos homens Desde seus primeiros séculos o cristianismo põe notadamente através de são Paulo que comenta e ordena a palavra de Cristo um problema deci sivo o da relação entre o crente e a ordem temporal Dar a César o que é de César e a Deus o que é de Deus fórmula feliz mas que desconhece os numerosos casos em que o serviço do imperador entra em conflito com o do Criador São Paulo não deixa de especificar que a obediência civil é uma virtude cristã assim como a submissão aos dados sociais e naturais Todavia no século II o pensador pagão Celso recrimina duramente os cristãos que recusam se submeter aos deveres que cabem aos cidadãos O crente está divi dido dilacerado entre a coletividade a que pertence de fato e a comunidade de fé à qual adere tanto mais dividido quando essa comunidade lhe exige a ação de evangelização A aceitação santa do martírio os delírios eremíticos não podem ser mais do que soluções excepcionais A conversão de Constantino parece conter a possibilidade de uma solu ção para esse problema Ela limitase a institucionalizála O liame de fé exis tente em Roma entre o imperador e o sucessor de são Pedro não implica de modo algum que o poder militar e administrativo se funda com a autoridade espiritual do bispo da cidade sagrada Essa fusão é tanto menos realizável porque por um lado o Império está ameaçado por todos os lados em função da irrupção de povos conquistadores vindos do Leste e tem de assegurar sua defesa militar e por outro lado porque Roma tornase o centro da Igreja instituição que sendo de natureza espiritual nem por isso deixa de de senvolver uma administração hierarquizada e de possuir um poder que não pode deixar de se interessar pelas questões temporais Quando em 410 o rei visigodo Alarico convertido à seita cristã de Ário saqueia Roma santo Agostinho bispo de Hipona compreende que é preciso clarificar a dou trina da Igreja e para isso escreve a Cidade de Deus 413427 História das ideias polfticas Esse texto constitui uma inflexão decisiva do pensamento cristão e marca a cultura europeia Seu objetivo é apresentar uma história geral da hu manidade desde a Criação até o século V submetendo aos critérios da racio nalidade os elementos fornecidos tanto pela história profana grega e latina como pelo Velho e pelo Novo Testamento O fim visado é estabelecer que além das vicissitudes da Cidade dos homens esboçase um desafio muito mais importante o da glória de Deus que se inscreve no devir espiritual da comunidade dos crentes da Igreja A criação o pecado original a aliança de Deus com o povo judaico o sacrifício do Messias a fundação da Igreja são as etapas desse devir sagrado onde se reconhece a Providência divina mas da qual cada um participa segundo suas obras de fé um devir que deve levar à Ressurreição dos corpos e à beatitude Enquanto o pensamento grego aceita como modelo de temporalidade o ciclo do cosmos Agostinho define o tempo como história linear que tem um começo a Criação e um fim a Ressurreição dos justos que é a própria história da humanidade con cebida segundo a fórmula de Pascal como história de um só homem feita de eventos inteiramente singulares e possuindo um sentido ou seja ao mesmo tempo uma orientação e uma significação Desse modo ele estabelece o esquema que doravante se tornará característico das várias filosofias da história inclusive das mais modernas que têm a pretensão de ser as mais materialistas e as mais científicas Tratase para ele de recordar a cada membro da comunidade cristã sua responsabilidade histórica para além dos conflitos terrestres e por ocasião desses importa não apenas trabalhar para a própria salvação através do res peito às regras cristãs de vida mas também assegurar pelo triunfo espiritual da Igreja a glória do Criador Desse modo ele se opõe tanto à concepção grecoromana que coloca como ideal a constituição e manutenção da ci dade feliz e virtuosa quanto à história profética do Velho Testamento substi tuindoas pelo militantismo da fé esclarecido pelo ensinamento de Cristo e pela busca da máxima inteligibilidade A obra dos Pais da Igreja orientase na mesma direção Mais ainda a determinação do dogma que permite perseguir as heresias e legitimar as exclusões abre caminho para o fortalecimento da instituição eclesiástica a qual possuindo uma certeza doutrinária achase em condições de defi nir sua própria legislação interna O Direito Canônico sistema de enuncia dos normativos que regula a conduta do pessoal da Igreja e fixa suas relações hierárquicas e seus tribunais institui no centro da comunidade dos fiéis uma ordem que deve traduzir neste mundo a Lei divina e por isso legifera diretamente ou por diferença para a totalidade dessa comunidade Pierre Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais 29 Legendre Iamour du censeur Essai sur lordre dogmatique Le Seuil 1974 vê nessa autoridade que em nome do Amor de Deus e dos que o represen tam exerce sobre os costumes uma censura rigorosa e aparentemente fun dada a origem formal da concepção do direito e das leis que domina até hoje no Ocidente A esse mesmo estado de espírito que visa a garantir a preeminência da Cidade de Deus ligase a fundação desde o século VI da ordem dos bene ditinos prelúdio de uma floração que irá se expandir a partir do século XI As ordens religiosas em particular as contemplativas formam de certo modo os bastiões do mundo espiritual no seio da realidade temporal Vivendo em autarquia obedecendo a suas próprias regras subtraídas aos tumultos do mundo essas sociedades têm como missão não apenas testemunhar mas também orar orare e trabalhar laborare através da investigação das Sa gradas Escrituras para a maior glória de Deus Na mesma óptica inscre vemse as pregações que do século XI ao XIII foram suscitadas pelas ex pedições militares e pelos movimentos populacionais rumo à Sepultura de Cristo conhecidos como Cruzadas Quaisquer que tenham sido as motiva ções dessas aventuras coletivas econômicas e políticas elas correspon dem também a uma operação do pessoal mais intransigente da Igreja como são Bernardo de Clairvaux visando a lembrar que o serviço de Deus e o triunfo de sua Igreja são o primeiro dever dos príncipes Essa espécie de guerra santâ em que se converteram as Cruzadas foi a ocasião para precisar que a fundação do Islã no século VII na Arábia e seu rápido desenvolvimento no Oriente Próximo no norte da África e até na Espanha foi também objeto de debates de ordem política mas diferentes Com efeito a ação de Maomé cria simultaneamente um espaço religioso e um espaço político que se entrecruzam de tal modo que o fato de perten cer à comunidade dos crentes define imediatamente a inserção política Essa identidade de fundação tem como principal consequência o fato de que não se estabelece uma instituição eclesiástica dotada de um estatuto de autono mia no seio da coletividade e de que o Islã dos primeiros séculos escapa aos conflitos que nos regimes cristãos irão nascer a partir das relações Igreja poder políticosociedade Entretanto precisamente essa situação impõe uma questão crucial com implicações ao mesmo tempo religiosas e políticas quem pode suceder o profeta Se a função profética está definitivamente con cluída resta encontrar a figura central capaz de garantir as tarefas militares e administrativas e de realizar a vocação espiritual e universalista do Islã Para os califas khalifat rasulAllâh sucessor do mensageiro de Deus a con quista o proselitismo guerreiro a jihad guerra santa constituem a solução 30 História das ideias políticas Ela é a prática coletiva que realiza a missão de persuasão religiosa que per mite libertar os pagãos de sua crença idólatra de fazer com que as pessoas do livro os judeus e os cristãos conheçam a própria palavra de Deus de estender a qualidade de membro da Umma comunidade muçulmana reservada originariamente apenas aos árabes aos convertidos Nem por isso deixa de ser verdade que à medida que essa comunidade se estende os antagonismos políticos as discórdias quanto à interpretação do Corão a multiplicação efetiva dos poderes militaradministrativos tracem em seu seio diferenciações que anulam praticamente a unidade originária Poder espiritual e poder tem poral auctoritaspotestas A concepção agostiniana está na origem da chamada teoria das duas espadas que visa a normalizar no Ocidente depois da separação dos dois Impérios que se torna efetiva no século V as relações entre a ordem temporal pró pria dos reinos e em particular o que está chamado a suceder o Império Romano e a ordem espiritual sobre a qual reina o bispo de Roma o papa Formalmente tal como foi exposta pelos papas Gelásio e Gregório o Grande 540604 a teoria é cara somente Deus detém a plenitudo potestatis a po tência suprema todavia no mundo cá de baixo feito de espiritualidade e de materialidade a onipotência delega a dois poderes distintos o cuidado de fazer a ordem divina triunfar ao pontífice a auctoritas a mais alta dignidade ao rei a potestas temporal Cada um é soberano em seu domínio a autoridade do papa em matéria religiosa e eclesiástica é absoluta o poder do rei sobre os seus súditos também o é Cada um deles deveria se satisfazer com isso Mas se não o quiser e romper o equilíbrio tornarseá fonte de conflitos se o chefe da comunidade dos cristãos quiser e puder ele exigirá em vir tude da autoridade religiosa que exerce inclusive sobre os chefes temporais que esses sejam reduzidos à função de braço secular da Igreja se um chefe temporal quiser e puder ele fará pressão sobre o poder espiri tual a fim de utilizar sua autoridade para realizar seus apetites de glória e de conquistas Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais 31 O coroamento de Carlos Magno em Roma em Soo realiza essa segunda eventualidade um monarca piedoso justo e forte toma em suas mãos o des tino da comunidade cristã que lhe deve obediência porque o pontífice ro mano asseguroulhe tal obediência Todavia nos séculos seguintes as riva lidades enfraquecem os poderes temporais e a Igreja afirma sua autoridade administrativa e espiritual então é a segunda interpretação que se impõe O papa Gregório VII humilha o imperador Henrique IV em Canossa 1077 Inocente III e Inocente IV infletem a teoria das duas espadas num sentido que confere a potestas ao papado o qual designa com plena autoridade os executores temporais que lhe convêm Com efeito a resistência a Roma virá não dos imperadores mas dos reinos É enquanto representante de uma co munidade territorial que os chefes temporais irão se opor ao avanço tempo ral do poder da Igreja Romana Esses reis valemse ao mesmo tempo dos direitos costumeiros de origem germânica e de certos aspectos do Direito romano para imporem sua autoridade a seus súditos E o conseguem com tanto mais sucesso na medida em que se afirmam eles próprios como servi dores da comunidade Esse esboço da formação de poderes nacionais a partir do século XI que é mais marcado na Inglaterra e depois na França irá cedo encontrar legitimações e canais tanto teóricos como empíricos Entre as primeiras é significativa a reflexão política de santo Tomás de Aquino 12251274 De certo ela não tem como objetivo deliberado justificar o poder dos reis Toda via contribui de fato contra o agostinianismo para dar peso às comuni dades estabelecidas Rompendo com a perspectiva segundo a qual a Cidade dos homens é diretamente de instituição divina e ligada ao pecado original Tomás estabelece que ela é na ordem da Criação um fato natural Se Deus quer que os homens vivam em sociedade disso resulta que o poder cujo objetivo é assegurar a unidade de uma multiplicidade é uma questão hu mana que faz parte do plano mais geral da Providência e não de um desígnio singular de Deus ou de seu representante Desse modo a definição do bom poder é uma tarefa exclusivamente da Razão E se essa indica que tal poder deve respeitar as prescrições divinas estipula também que é preciso levar em conta o direito inscrito na natureza humana e as vontades da coletividade É desse modo que atingirá seu fim o Bem na medida em que ele é realizável cá embaixo Tem como tarefa facilitar a cada um a realização das virtudes naturais deixando à Igreja o cuidado da Salvação Eterna Para cumprir tal tarefa enunciará leis adequadas também aos costumes do povo sobre o qual se exerce e se esforçará na tradição aristotélica e romana que se liga ao en sinamento de Moisés por estabelecer uma Constituição mista que combine os méritos da monarquia da aristocracia e da democracia 32 História das ideias políticas É significativo que o naturalismo moderado de Tomás de Aquino desen volvido quando da afirmação dos reinos cristãos no século XIII convirja sem que haja a menor filiação com uma investigação correspondente da cultura islâmica do século seguinte expressa na obra de Ibn Khaldun que tem o mérito de acrescentar à consideração da sociedade como fato natural uma reflexão sobre o destino histórico dos povos e das forças que nele se en frentam A Mugaddimah 1377 e a História Universal 13821406 alimenta das por conhecimentos enciclopédicos rompem com o racionalismo abstrato da teoria islâmica empenhamse em descrever minuciosamente os dados reais a fim de descobrir as relações que os regem De certo modo apoiamse numa concepção do devir social antitética àquela na qual se apoiava o pen samento de Agostinho A originalidade de Ibn Khaldun reside na elaboração de uma espécie de inteligibilidade experimental que não deixa de recordar as pesquisas dos sociólogos e historiadores atuais Segundo ele a história con siste numa informação sobre a sociedade humanà E em completa oposi ção à teologia que interpreta o real em função de uma revelação preliminar retira da observação e do raciocínio sobre os eventos critérios que permitem julgar a respeito da veracidade dos relatos históricos É o caso por exemplo das noções operatórias de umrân sociedade por oposição a Estado e de açabiyyah solidariedade espírito de grupo Esse êxito metodológico decerto não é dependente da atividade política de Ibn Khaldun num Islã dilacerado por rivalidades temporais cada vez mais violentas Rumo ao Estado laico e à ética profana Enquanto no seio da ordem cristã o papado afirma incessantemente por exemplo com Bonifácio VIII uma primazia da autoridade espiritual que implica a subordinação dos poderes temporais impõese nos reinos uma prática jurídica e administrativa que garante a autonomia de um poder que se exerce em virtude de princípios profanos o poder real Devese ver nisso uma ressurgência do Direito romano ou a influência da tradição germânica Não será o caso ao contrário de interpretar o fato como uma invenção dos elementos que estão na origem da modernidade Muito cedo na GrãBre tanha surgem instituições que tendem a impor uma jurisdição única sobre o conjunto do território real fundada sobre o que já se deve chamar de di reitos da pessoà na França a partir do século XIII o rei e os legisladores empenhamse em destruir as cidadelas feudais e religiosas que contestam a preeminência do poder central Em todo o Ocidente cristão operase uma Gênese do pensamento político os conceitos fundamentais 33 transformação da natureza do poder os laços pessoais organizados em torno da ideia de suserania são progressivamente substituídos por uma hierarquia jurídicoadministrativa centrada num princípio que anuncia a própria noção moderna de soberania A autoridade real não mais se exerce sobre um patri mônio povoado por populações protegidas ou assistidas mas sobre um ter ritório cujos habitantes possuem cada vez direitos e deveres bem definidos o próprio monarca que comanda os seus súditos de modo absoluto não pode infringir as regras que editou ou com as quais concordou Sem dúvida a tradição feudal bem como as resistências clericais reto mam incessantemente em seu favor as conquistas dessa primeira configu ração do Estado de direito O extraordinário mérito de Marsílio de Pádua que publica em 1324 o Defensor da Paz consiste em definir a partir dessa tendência geral o que irá ser o Estado laico no sentido do cristianismo Seu objetivo confessado é certamente mais limitado defender as pretensões ao poder universal de um imperador alemão e polemizar contra a teocra cia romana seus princípios e sua argumentação pertencem aparentemente de modo integral à óptica tomista Todavia o empreendimento é decisivo em primeiro lugar ele interpreta num sentido político a definição natura lista da sociedade a divisão do trabalho tem por fim libertar o homem das necessidades e assegurarlhe uma vida feliz cá embaixo a boa organização da existência profana considerada fundamental é o objetivo da política Em segundo lugar ele considera a sociedade como um todo que enquanto tal é anterior e transcendente em relação a suas partes ela pode ser apenas a universitas civium a universalidade dos cidadãos ou sua melhor parte que tem como função legislar editar as leis necessárias à manutenção do todo ela designa em seu seio um pars principans um príncipe individual ou coletivo que tem a seu encargo a coerção e a gestão Lançouse assim o dispositivo teórico que permitirá o advento do conceito político de sobe rania ou seja o conceito moderno do Estado Paralelamente a essa defesa da autonomia e da unidade radical da sociedade política Marsílio recusa a au toridade papal a Igreja não é mais do que um nome para designar o conjunto de crentes não poderia ter um chefe e os padres encarregados de preparar os cidadãos para a salvação dependem do príncipe tanto quanto os demais cidadãos e isso nos quadros da lei No momento em que se concretiza essa evolução dos reinos vão sur gindo lentamente a partir das práticas da vida coletiva noções novas ou renovadas Assim a ideia de universitas aplicase não apenas à totalidade dos cidadãos mas também aos grupos consensuais unidos em torno de uma ta refa e que obedecem a uma mesma regra do monastério à universidade da comum à guilda ou à hansa constituemse corpos sociais que reivindicam e obtêm o reconhecimento como personae fictae como pessoas morais No interior desses grupos elaboramse técnicas de gestão que substituem as hierarquias tradicionais por relações contratuais Nessa mesma perspectiva o desenvolvimento do comércio e dos negócios torna indispensável uma moralização da atividade mercantil O comerciante como o queria Marsílio adquire direito de cidadania na medida em que participa do bemestar comum A Cidade profana que tinha a força lastreiase de realidade Da ordem sagrada que combatia ela toma de empréstimo para se afirmar regras e princípios Assim a plenitudo potestas tende agora a pertencer ao rei Os múltiplos abalos do período que se designa como Renascimento irão radicalizar essa orientação INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Arquillière HX Saint Grégoire VII Vrin 1934 Bible de Jérusalem Ed du Cerf 1956 Blachère R Introduction au Coran Maisonneuve 1947 Daniélou J e HI Marrou Nouvelle histoire de lÉglise III Le Seuil 1962 De Lagarde G La Naissance de lEsprit laïque au déclin du Moyen Age Ed Béatrice De Vaux R Les institutions de lAncien Testament III 2ª ed 19611967 Flávio Josefo Guerre des Juifs I I Les BellesLettres 1975 Gilson É La philosophie au Moyen Age 2ª ed 1944 Ibn Khaldun Histoire universelle 13771406 Unesco Beirute 19671968 3 vols Marsílio de Pádua Le Défenseur de la Paix 1324 Vrin 1968 O Corão GarnierFlammarion Paucat M La Théocratie LEglise et le Pouvoir au Moyen Age Aubier 1957 Rodinson M Mahomet Le Seuil 1968 Santo Agostinho La Cité de Dieu 41327 Desclée de Brouwer 1959 5 vols Santo Tomás de Aquino Du Royaume 1266 Esloff 1946 Villey M La formation de la pensée juridique moderne Montchrestien 1968 CAPÍTULO l i O PríncipeEstado Do PRÍNCI PE SOB ERANO A partir do início do século XVI produzemse transformações que abalam as sociedades da Europa Ocidental Essas múltiplas e interferentes transfor mações o Renascimento envolvem a as realidades históricas e econômicas extensão e aplicação prática das descobertas feitas durante a Idade Média desenvolvimento da civiliza ção urbana comercial e manufatureira b a imagem do mundo descoberta do Novo Mundo revoluções astro nômicas de Copérnico e Kepler e física de Galileu c a representação da natureza o universal medieval dos signos é substi tuído por uma realidade espacial a conquistar e explorar d a cultura a redescoberta da Antiguidade grecoromana pelos huma nistas suscita um maior interesse pelo homem enquanto dado natural e pelas especulações éticopolíticas e o pensamento religioso a radicalização da contestação do poder e da hierarquia de Roma esboçada no século XIV por J Hus na Boêmia e Wycliff na Inglaterra pelos movimentos que reivindicam cristianismo pri mitivo e se apoiam em especificidades nacionais Esses abalos e os con flitos que os marcam colocam às práticas e às reflexões políticas problemas que essas vão tentar resolver por meio de invenções que estão na origem da modernidade entre as mais marcantes a do Estado como soberania INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA Huizinga J Le déclin du Moyen Age 1948 J Delumeau La civilisation de la Renaissance 1967 P Francastel La Figure et lieu 1970 A Koyré Du monde elos à lUnivers infini 1962 TS Khun La révolution copernicienne 1957 P Mesnard Iessor de la philoso phie politique ou XVI siecle 195i 35 História das ideias políticas O Estado como fundação absoluta Maquiavel Quaisquer que sejam as continuidades ou filiações ideais entre a Antigui dade e a Idade Média por um lado e os tempos modernos por outro o se cretário florentino introduziu uma ruptura decisiva contra as teorias da so ciabilidade natural contra os ensinamentos da Revelação e os da teologia ele afirma porque constata que no que se refere às atividades coletivas o que é é o Estado Foi ele quem deu a esse último termo sua significação de poder central soberano legiferante e capaz de decidir sem compartilhar esse poder com ninguém sobre as questões tanto exteriores quanto internas de uma co letividade ou seja de poder que realiza a laicização da plenitudo potestatis A política como propriedade natural do homem ou como ordem imposta ao mundo cá de baixo é substituída pela política como atividade constitutiva da existência coletiva Essa afirmação da originalidade absoluta do Estado e da autonomia do político fundase no conhecimento que se pode obter tanto das repúblicas e dos principados modernos quanto da história política da Antiguidade Em seus Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio 151219 Maquiavel deduz os ensinamentos trazidos pelo devir dos romanos ensinamentos tão sérios quanto os que se pretendem extrair da interpretação dos textos sagra dos há regras que presidem o governo e que têm a mesma natureza das leis que governam o movimento das estações e nada têm a ver com qualquer tipo de dever moral Ora a história de Roma em sua crueza mas também em sua perenidade e grandeza revela princípios essenciais a unidade política condição da existência social repousa num ato que institui o Estado ato que é o de um legislador que define de uma vez por todas o que é justo e o que é injusto e o pleno exercício do poder Esse ato de instituição é um princípio que deve ser mantido constantemente ou restaurado prontamente se algum revés da fortuna minimizou a força do princípio e isso quaisquer que sejam os meios utilizados pelo legislador ou pelo seu sucessor É preciso observar que o detentor individual ou coletivo do poder de Estado que pode e deve fazer tudo para assegurar tal poder não pode ser assimilado a um tirano Maquiavel faz seu o ódio dos romanos pela tirania que não tem como meta o triunfo do Estado mas o capricho de quem se apoderou dele O príncipe que se apresenta como uma obra de técnica do governo composta em 1513 mas publicada mais tarde organizase em torno dos mesmos temas Maquiavel indaga que conduta deve adotar quem tem como projeto a instauração ou restauração de um principado duradouro forte honrado e feliz Ele se dirige aos Médicis que acabam de retomar o poder O PríncipeEstado 37 em Florença mas tem em vista o chefe que assumisse a tarefa de unificar a Itália sob uma mesma bandeira de libertála das invasões estrangeiras e de pôr fim às rivalidades fratricidas A tradição à qual devemos o uso atual do termo maquiavelismo conservou desse texto somente a apologia que nele seria feita da imoralidade indispensável e por conseguinte legítima que se liga a toda vontade de poder A significação de O príncipe é de outra ampli tude tratase antes de mais nada de mostrar que se se quer o poder é preciso querer a onipotência que essa exige não apenas um ato de fundação absoluta mas também uma resolução que não admite nem fraquezas nem compromissos que as considerações morais e religiosas devem ser afastadas do cálculo através do qual se estabelece ou se mantém o Estado que as coisas são assim ainda em maior medida porque o príncipe é senhor da legislação porque define o Bem e o Mal públicos e por conseguinte no que se refere às questões públicas nem ele nem os cidadãos devem se valer dos man damentos da Igreja ou da tradição moral que nessas mesmas questões a recusa da violência é uma tolice e que de resto cabe distinguir a violência que consertâ daquela que destrói A essas regras gerais deduzidas dos dois princípios do Estado en quanto potência e de autonomia do político Maquiavel aduz aspectos mais técnicos ele insiste por exemplo na incontestável vantagem que constitui para o príncipe um exército nacional Mas sobretudo põe em evidência a natureza estratégica da atividade política a virtu do príncipe qualidade de que se refere ao mesmo tempo à firmeza de caráter à coragem militar à habilidade no cálculo à capacidade de sedução à inflexibilidade tem como inimigos seus adversários mas também afortuna o acaso o príncipe terá sucesso se sabendo avaliar o bom momento conseguir colocálo do seu lado O ensinamento de Maquiavel é pessimista A expressão realista de certo é mais adequada Retomando as lições dos historiadores gregos e la tinos antecipando Hegel o florentino constata que em política reinam a violência a astúcia a vontade de poder se as coisas são assim então é me lhor pôr essas forças a serviço do Bem público e aprender a conhecêlas a fim de utilizálas eficientemente como os meios desse fim legítimo Quanto ao maquiavelismo e à misantropia de que Maquiavel foi acusado será que não significam simplesmente que quaisquer que sejam suas preferências o que exerce o poder não encontra o Bem inscrito em nenhuma parte nem na na tureza nem na sociedade e que tem diante de si ao contrário uma realidade envolvida pelo conflito e pela desordem dos interesses História das ideias políticas INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Gramsci A Notes sur Machiavel in Gramsci dans le texte Ed Sociales 1975 ed brasi leira Maquiavel a política e o Estado moderno Civilização Brasileira Rio de Janeiro 4 edição 1982 Lefort C Le travail de loeuvre Machiavel Gallimard 1972 Maquiavel N Le Prince 1513 in Oeuvres La Pléiade 1962 ed brasileira O príncipe in Os Pensadores volIX Abril Cultural São Paulo 1973 p7120 Discours sur la premiere décade de TiteLive 151219 ibid ed brasileira Comen tários sobre a primeira década de Tito Lívio Editora Universidade de Brasília Brasília 1978 Os dois reinos e a espada tem poral Lutero e Calvino Abril de 1517 o teólogo Karlstadt expõe 151 teses de inspiração agostiniana segundo as quais tudo o que provém da natureza é essencialmente mau e que a salvação depende apenas da ascese individual e da graça de Deus Outubro de 1517 Martinho Lutero expõe 91 teses onde denuncia o tráfico de indul gências por Roma que obtém assim consideráveis ganhos materiais e exerce sobre seus fiéis uma pressão moral iníqua Começa a Reforma defendida pe los príncipes cavaleiros alemães mobilizando um amplo apoio popular ela irá conquistar a Europa Ocidental e provocar um abalo profundo nas ideias instituições e sociedades A inspiração dos reformadores é ao mesmo tempo teológica moral e política A argumentação teológica fundase num retorno ao cristianismo primi tivo à palavra do Evangelho e à pessoa de Cristo denuncia a idolatria ro mana que substituiu o amor de Deus pela adoração de imagens e pela prá tica dos rituais Relembra o dogma tão firmemente estabelecido por santo Agostinho a essência da religião é a Fé da criatura em seu Criador é essa relação profunda e imediata que forma a base da Cidade cristã que é comu nidade de caridade a ordem da Fé é a própria ordem da Graça divina que é insondável A crítica moral toma como alvo a corrupção generalizada do alto clero mais preocupado com o poder com o luxo e o bemestar temporais do que com a piedade e a caridade que joga com as inclinações naturais dos fiéis para exercer uma dominação que nada justifica e que o leva a competir com os príncipes no emprego da violência material e moral Essa crítica se des dobra em polêmica política que é de fato uma polêmica contra a Igreja en O PríncipeEstado 39 quanto instituição política Com efeito é esse o aspecto empírico do pecado cometido contra o espírito divino Roma desconhecendo o ensinamento de Agostinho intérprete fiel de são Paulo refletindo ele mesmo sobre o en sinamento dos Textos Sagrados fez da comunidade cristã uma instituição hierarquizada submetida ao formalismo jurídico e implicando uma admi nistração uma burocracia que tem poder sobre essa comunidade ela orga nizou o Corpo Místico segundo um modelo legado pelos pagãos e inspi rado pelo Diabo Sendo assim a corrupção se introduziu no próprio Reino de Deus corrupção da qual o tráfico de indulgências é apenas uma manifes tação banal O tema dos dois Reinos e de sua heterogeneidade radical é o eixo do pensamento de Lutero Ele irá assumir uma significação política por oca sião dos levantes populares que se produzem na Alemanha a partir dos anos 1520 no contexto da rebelião contra a Igreja Romana estimula dos por pregadores que se inspiram nas comunidades cristãs primitivas que levam a recusa do ritual e da administração eclesiástica até a recusa do Sacramento do Batismo que tem como objetivo a instauração aqui e agora do reino de Deus os camponeses pobres pegam em armas contra a dominação senhorial Thomas Münzer 14901525 que se pretende discípulo de Lutero é o portavoz deles para compreender o Evange lho é preciso experimentálo em toda intensidade do vivido não apenas no mais profundo de sua consciência mas também nos atos Münzer cria uma nova missa em língua alemã durante a qual o ensinamento de Cristo é aplicado às situações atuais já que o pecado de Roma consiste menos em ter feito da Igreja um Estado do que em têlo constantemente associado a Estados que tinham como regra a injustiça e a opressão Em 1524 explode a guerra dos camponeses em 1525 a insurreição é esma gada e Münzer é executado Desde 1523 Lutero fizera conhecer sua posição sobre a revolta num texto teórico o Tratado da autoridade temporal Para compreender bem o seu sentido convém recordar que seu autor quando foi excomungado ex pulso do Império recebera um apoio ativo quase militar dos príncipes e dos cavaleiros alemães Tanto isso é verdade que às razões religiosas e mo rais do sucesso da Reforma juntamse causas ligadas ao desejo de garantir a autonomia da religião nacional contra o ecumenismo exangue de Roma Ora Lutero afirma a completa separação entre os dois reinos o de Deus e o do mundo Essa separação seria tão radical como a que existe entre a Alma e o Corpo na Criação o primeiro é de liberdade de graça e de misericórdia o segundo de servidão cólera rigor e castigo Enquanto a Alma depende ape 40 História das ideias políticas nas de Deus o Corpo envolvido por natureza no pecado deve ser subme tido contido punido pela Providência Divina de acordo com os caminhos por ela escolhidos a ordem temporal dos poderes Desse modo o cristão cuja alma é livre na graça de Deus deve obedecer às decisões dos príncipes e aos golpes da história e da sociedade já que eles fazem parte do castigo da Culpa e fortificam a Alma ávida de salvação Não se deve resistir à espada dos reis Salvo num caso quando esses mandam obedecer ao papa e a seus partidários nesse caso eles saem do domínio que lhes é próprio e legiferam em questões que se referem apenas a Deus e à Alma cristã Meu reino não é deste mundo tomando a palavra de Cristo ao pé da letra Lutero deixa de certo modo o campo livre para a onipotência do Es tado no mundo terreno conferelhe o monopólio da decisão e da repressão Deixase ao cristão a possibilidade de intervir pela palavra e pelo exemplo a fim de que sejam respeitados os mandamentos de Deus e afirmada a força espiritual da comunidade dos fiéis João Calvino em Instituição da religião cristã 153659 concorda com Lutero em prescrever aos cristãos a submissão à ordem temporal mas subli nha o papel que devem desempenhar as consciências piedosas no estabele cimento da moralidade pública reformador de Genebra quis fazer desta ci dade uma CidadeIgreja que não é certamente uma teocracia mas que visa a fazer triunfar nas instituições civis a luz da Fé Na época das grandes trans formações do Renascimento e no momento em que se afirmam ao mesmo tempo as realidades nacionais e o poder do Estado a Reforma com Lutero Münzer e Calvino abre com vigor particular um importante capítulo do pensamento político moderno o das relações entre comunidades religiosas e o Estado convertido em potência laica capítulo que é frequentemente ao mesmo tempo o das relações entre exigências morais e necessidade política INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bloch E Thomas Münzer théologien de la Révolution Julliard 1962 ed brasileira Tho mas Münzer teólogo da revolução Tempo Brasileiro Rio de Janeiro 1974 Calvino J Institution de la réligion chrétienne 153660 Genebra Labor Fides 1955 Febvre L Un destin Martin Luther 1927 Lutero M De lâutorité temporelle et dans quelle mesure on lui doit obéissance 1523 Au bierMontaigne 1973 O PríncipeEstado 41 O Estado em questão Thomas More É de La Boétie Enquanto se reforçam no território dos reinos os poderes centrais e vai se es pecificando de maneiras contraditórias a noção de independência da rea lidade política vão surgindo dúvidas sobre a significação ética e social desse poder exorbitante No próprio espírito do Renascimento um erudito como Erasmo em Instituição do Príncipe cristão 1516 interrogase sobre as qualidades que deve possuir um monarca investido de um poder tão grande e de uma res ponsabilidade tão ampla e dirigindose a Carlos V esforçase por compor um programa político que combinaria as virtudes evangélicas e as aquisições do novo humanismo A Utopia de Thomas More publicada no mesmo ano é certamente de interpretação demais difícil Seu autor investido das mais altas responsa bilidades políticas por Henrique VIII da Inglaterra e executado por se ter oposto em nome de sua fé católica ao cisma anglicano renova o modelo platônico da República e do Crítias À Cidade desordenada e corrompida ele opõe a imagem de uma organização racional fundada numa estrita divisão do trabalho e numa disciplina cívica rigorosa mas também numa completa igualdade social a propriedade privada e o dinheiro são proscritos e polí tica os cargos são eletivos e a oposição entre o trabalho manual e intelectual é eliminada assim como na tolerância quanto às opiniões religiosas É claro que essa descrição da Cidade bemsucedida é um meio de criticar o estado de coisas existente Mas o texto manifesta uma tal ironia que o leitor está no direito de perguntar se a utopia também significa o seguinte vocês recla mam um reino forte estritamente centralizado e administrado mobilizando a energia de todos são estas as condições nas quais um tal reino poderia também ser justo e feliz julguem se as condições são realizáveis vocês não deixariam de constatar que elas não o são de modo algum Não será mais razoável renunciar a uma tão louca ambição Entretanto foi a Étienne de La Boétie que coube colocar num registro mais grave a questão de princípio Entre diversos textos alguns dos quais de grande força publicados quando das sangrentas guerras de religião e ques tionando a tirania dos reis dos príncipes da Igreja e dos senhores da guerra o Discurso da servidão voluntária escrito por volta de 1549 e reeditado em 1574 pelos calvinistas sob o título de Contra um distinguese por sua eleva ção de tom e por seu radicalismo Ainda que as circunstâncias históricas sir vam como pano de fundo La Boétie ousa pôr a questão crucial que tem sido até hoje apresentada pela maioria dos que filósofos teólogos estrategistas têm refletido sobre o fato político por que existe obediência Perguntase em geral qual é a origem e a natureza do Poder ou dos poderes Deus A Natureza A Força O Povo A Razão A Lei do Pai Ou então qual é o Poder legítimo E discutese sobre os méritos e os defeitos relativos dos diversos regimes de governo Mas admitese como se tratasse de algo óbvio que existe o Poder ou Poderes ou seja uma instância separada que assegura o comando deixase de lado o fato de que o comando de alguém implica a obediência dos outros e omitese a questão de saber de onde provém a obediência Ora vistas bem as coisas essa é impensável Por sua natureza o homem é livre e o exemplo dos animais que preferem morrer a ser subordinados deveria fortificálo nessa disposição pela linguagem ele entra em amizade e em sociedade com outros homens essa sociedade deveria lhe bastar Mas ele se deixa invadir pela dominação Para compreender essa submissão é preciso evocar o temor do mais forte Por que centenas de milhares de milhões de indivíduos se rebaixam a ponto de receber ordens de uma só pessoa Será correto evocar o interesse Que interesse pode haver em se deixar saquear espoliar e subjulgar Será que se impõe uma razão superior Mas que razão quando é evidente que os ordens decorrem dos caprichos do soberano e no caso da imensa maioria são preconceitos a ela Por qualquer ângulo que se tome a questão ela continua sem resposta Para compreender a submissão de todos a um só que no mais das vezes não é mais do que um nome é preciso supor que a primeira natureza foi substituída por uma segunda natureza que se deixa fascinar pelo Um que admite que toda sociedade pressupõe um princípio um ponto transcendente do qual todos e cada um são dependentes Pois é preciso sublinhar que o Discurso de La Boétie não visa a um regime o despotismo real mas sim à nova forma política que está se impondo o Estado como potência plena De certo modo ele constitui um comentário ao Príncipe pouco importa que o soberano seja odiado quanto seja soberano dizia Maquiavel ele é e o é em todos os pontos odiável constata La Boétie Há uma solução Só se se acreditar que a força das palavras pode derrubar uma natureza ainda que se trate de uma segunda natureza O Discurso no momento em que se opera a laicização do Um como princípio da ordem política levanta com um vigor inigualável o problema que se coloca à reflexão política contemporânea diante do totalitarismo Ele antecipa uma questão posta por Wilhelm Reich o que é surpreendente não é que os povos se revoltem mas sim que não se revolutionem O PríncipeEstado 43 INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS De La Boétie É Discours de la servitude volontaire 1549 Payot 1976 seguido de P Clastres e Cl Lefort La Boétie et la question du politique ed brasileira Discurso da servidão voluntária Brasiliense São Paulo 1982 Erasmo Institution du Prince Chrétien 1516 in La philosophie chrétienne Vrin 1970 More T IUtopie ou Traité de la meilleure forme de gouvernement 1516 La Renaissance du Livre 1966 ed brasileira A Utopia in Os Pensadores Abril Cultural São Paulo volX 1972 p159314 O Estado como potência soberana Oean Bodin Em 1576 aparecem os Seis Livros da República Seu autor Jean Bodin é um erudito que se apoia numa grande cultura histórica e jurídica bem como um togado que teve funções de legislador e de administrador Ele se põe uma dupla tarefa refutar Maquiavel a quem admira mas de quem teme as lições de imoralidade e ser o Aristóteles de seu tempo no que se refere à questão política Sua concepção do homem e da sociedade embora seja muito sutil não se caracteriza pela originalidade Ele está convencido de que a realidade está submetida aos princípios da harmonia que não respeitam as ações hu manas e que existe um direito natural de origem divina que recomenda a equidade e o respeito pela pessoa privada e isso numa óptica que não é de modo algum muito afastada da de Cícero Entretanto o pensamento de Bodin se impõe por um traço singular que faz dele depois de Marsílio de Pádua e de Maquiavel o iniciador da teoria moderna do Estado e de qualquer modo de sua prática de cer tas astúcias que levam frequentemente os teóricos a mascarála ou seja pela definição que ele apresenta do poder político como forma necessá ria da existência social Ele não investiga como Agostinho ou Tomás de Aquino a origem divina ou natural da República considera secundária a questão do bom regime Considera que a existência de um poder público unificado e unificante é um dado de fato de toda sociedade histórica e per gunta sobre o que caracteriza essencialmente esse poder A resposta é clara e forte a potência soberana a que se exerce por meio de um reto governo de vários lares e do que lhes é comum Esse é o estado da Repúblicâ ou para falar brevemente o Estado Devese observar antes de mais nada que o Estado pressupõe os lares ou seja as famílias essas estão colocadas sob a autoridade paterna que está 44 História das ideias políticas por sua vez colocada sob a autoridade da potência soberana no que se refere às questões públicas Isso quer dizer que o poder de Estado se exerce sobre súditos francos ou seja sobre súditos livres que não são nem escravo nem servos O termo soberania majestas ou potestas deve ser tomado em sua acepção mais rigorosa a potência soberana do Estado é absoluta ela comanda e não recebe ne nhum comando não depende de nada nem de ninguém nem de Deus nem da Natureza nem do Povo não exige nenhum fundamento é autos suficiente é indivisível no sentido de que é por essência una e se for delegada está integralmente em cada delegação é perpétua não poderia sofrer as vicissitudes do tempo e por essa razão é transcendente Em suma ela é tal como segundo os teólogos Deus é O Estado é a sede da soberana potência o ponto focal da ordem pública Essa ordem é definida pelas Leis essas determinam segundo a necessidade as normas da existência social em seu aspecto público o Estado é senhor de dálas e de revogálas Do mesmo modo pertence às suas prerrogativas absolutas declarar a paz e a guerra dirigir a administração julgar em última instância e conceder a graça cunhar moeda e arrecadar impostos Se essas últimas disposições inscrevem o projeto de Bodin na óptica que já fora a de Filipe o Belo a teoria da potência legisladora marca mais profundamente uma ruptura em direito a lei como norma é distinta do direito é su perior ao direito costumeiro exterior ao direito natural A disjunção entre Estado e sociedade elemento central da moderna teoria do Estado está em vias de realização Mas quem é esse detentor do Estado Para responder a essa questão Bodin ao que parece retorna à tradição Ele constata a existência de re públicas democráticas aristocráticas e monárquicas Tratase de uma volta atrás O Estado então termina por ser dependente De nenhum modo se lembrarmos que Bodin distingue entre potência e poder entre Estado e go verno A potência soberana pode ser o Povo uma parte do Povo ou um Indi víduo nenhum estatuto misto ao modo de Cícero ou de Tomás de Aquino é inteligível Essa potência que faz as leis decide sobre as modalidades do ou dos poderes Pois para se exercer a potência tem de se encarnar nas insti tuições empíricas que têm a missão de governar Essa distinção não foi vista por Maquiavel o qual em consequência submeteu a potência do Estado aos caprichos históricos do Príncipe O príncipe é abstrato por definição é uma forma que se realiza nesse ou naquele tipo de governo cujo destino é tempo O PríncipeEstado 45 ral Bodin examina os diversos tipos possíveis de combinação que vão desde a democracia real que chamaríamos de cesarismo até a monarquia popular onde o soberano transfere às instituições populares a missão de governar ele não oculta sua preferência pela monarquia real que governa súditos francos que podem expressar sua opinião em oposição à monarquia se nhorial e à tirânicà Ele insiste na importância dos hábitos e dos costumes ligados à natureza dos povos quando se trata dos poderes Mas ele não faz concessões no que lhe parece ser o essencial a absoluta soberania do Estado princípio necessário e transcendente da sociedade en quanto República INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bodin J Les Six livres de la République 1576 Chevalier JJ Histoire de la pensée politique tI De la CitéEtat à tapogée de lEtatna tion monarchique Payot 1979 ed brasileira História do pensamento político tomo 1 Zahar Editores Rio de Janeiro 1982 Mesnard P üssor de la philosophie politique en XVI siecle Vrin 1951 DO FU N DAM ENTO DA SOB ERAN IA O D I REITO NATU RAL E AS TEO RIAS DO CONTRATO A autossuficiência da Soberania postulada por Bodin não deixa de colocar um problema Se ela confere um estatuto formal aos poderes centrais tais como se exercem no início da época clássica deixa na sombra a questão do fundamento e por isso abandona à contingência o problema de qual o me lhor governo Ora nesse final do século XVI e no século seguinte a interro gação política se torna cada vez mais urgente Às dificuldades políticas suscitadas pelos conflitos religiosos acrescen tamse os problemas levantados pelas profundas modificações experimenta das pelas sociedades europeias afirmação das realidades nacionais o que impõe por um lado uma estrita determinação do poder estatal legítimo e por outro uma redefinição da ordem internacional alteração profunda das relações sociais devidas às transformações do mercado de trabalho e à nova concepção da existência social que começa a surgir revolução na imagem da natureza e do homem engendrada pelos múltiplos progressos da matemática e da física Quando Descartes escreveu em 1637 que sua tarefa era tornar o História das ideias políticas homem senhor e dono da naturezà enunciou certamente a máxima desse novo estado de espírito INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Derathé R JeanJacques Rousseau et la science politique de son temps PUF 1950 Hazard P La crise de la conscience européenne 18601715 Boivin 193435 3 vols La pensée européenne ou XVIII siecle Boivin 1945 3 vols Koselleck R Le regne de la critique 1959 Minuit 1979 Mandrou R EEurope absolutiste Raison et raison dEtat 16491675 1977 Strauss L Droit naturel et histoire 1959 Plon 1954 Grócio o Descartes da política o Estado contratual A contribuição do jurista holandês que publica em 1625 em Paris o De jure bellis ac pacis referese antes de mais nada ao direito internacional nesse livro ele expõe os elementos de um direito universal que tem como meta definir os princípios que regulam as relações entre Estados soberanos tanto na paz como na guerra e através disso proteger os indivíduos envolvidos nos conflitos Mas precisamente essa preocupação leva Grócio a fundar a universali dade do direito na própria natureza do homem o termo naturezà é tomado em sua acepção racional independentemente de qualquer consideração mo ral ou genérica O sujeito e a substância do direito é o indivíduo natural tal como Deus em sua perfeição o criou e que se conserva quaisquer que sejam os costumes locais e os direitos positivos particulares Esse indivíduo é atraído por seu semelhante independentemente de qualquer carecimento e é dotado de vontade Os atributos que são ligados a essa natureza e sobre os quais o próprio Deus não poderia voltar atrás podem ser determinados ou pelo raciocínio ou pelo exame dos princípios constantes que governaram ou governam as nações Eles se reduzem a alguns dados simples o respeito pela vida e pela propriedade o respeito pela palavra dada e pelos compromissos e contratos sem os quais não poderia haver sociedade estável a reparação do dano causado por inadvertência ou má intenção Assim Grócio substitui os esquemas organicistas ou comunitários do jus gentium ciceroniano ao corpo místico cristão e as teorias do Ato fundador de Maquiavel e Bodin por uma perspectiva que garante a continuidade entre o direito privado que as pessoas possuem por causa de sua natureza humana e o direito público A sociedade política efeito da sociabilidade é uma realização da lei da natureza Mediante um contrato seus membros decidem voluntariamente delegar a autoridade pública a uma instância soberana e perpétua que tem como missão garantir a paz e a concordia Todavia nenhuma transcendência faz parte dessa soberania o jurisdicismo de Grócio assimalhe de certo modo a sociedade ao Estado os detentores da soberania são por contrato proprietários da autoridade pública do mesmo modo como os membros da coletividade são proprietários desse ou daquele patrimônio Se por sua conduta eles deixam de ser identificáveis à vontade da coletividade então o contrato é rompido e a resistência dessa última é legítima INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA Grócio H Du droit de la guerre et de la paix 1625 1865 3 vols Thomas Hobbes o Deus mortal e seus limites Se o que liga Grócio à modernidade consiste no essencial no papel central que atribui ao indivíduo a relação de Hobbes com seu tempo é muito mais estreita filósofo sua concepção política se articula com sua ontologia e essa se inspira diretamente na nova física e em seu mecanicismo As teorias do movimento e do corpo que ele expõe levamno a compreender o homem como uma máquina natural submetida ao estrito encadeamento de causas e efeitos tendo como propriedades igualmente naturais desejar e agir ou seja deliberar e se mover em função desse dado primeiro que é o desejo O homem individualmente corporal é fundamentalmente potência esse é o ponto de partida do Leviatã publicado em 1651 Assim no desenho de natureza quando abstraímos como mais tarde o explicará JJ Rousseau o que a sociedade lhes trouxe os homens dispersos são potências movidas pelo desejo não limitados por nada são integralmente livres a não ser pela incapacidade material na qual podem se encontrar de satisfazer esse desejo Nesse mesmo estatuto que exclui toda ideia de sociabilidade benevolente e de harmonia com o meio ele experimenta enquanto máquina sensível sentimentos entre os quais predominam a inveja e o medo em particular o medo de sofrer e de morrer Desse modo se a ordem natural ordem mecânica é a lei dos lobos disso resulta que o es História das ideias políticas tado de natureza é ao mesmo tempo e contraditoriamente plena liberdade aquém de todo direito e terror constante ele é inviável Nessa óptica realista e que em nome da física dos corpos elimina qualquer consideração de ordem moral nada no estado de natureza pre para o estado de sociedade esse que não é de instituição divina ou de inscri ção natural tem de ser produto de um artifício Vemos assim que Tu Hobbes funda no próprio Estado essa autonomia do político que Marsílio de Pádua pressentia que Maquiavel justificava por meio de provas históricas que Jean Bodin deduzia a ordem política não pode ser senão o produto de uma decisão coletiva que engendrará um artefato Dado que o estado de natureza é insuportável dado que o desejo de poder e o desejo de viver e de viver em paz se contradizem então surge a capacidade deliberativa própria ao homem que comanda de construir uma instância superior cujo fim é impor uma ordem que elimine a violência natural que substitua a guerra de todos contra todos pela paz de todos com todos Ao grande mal devese responder com o grande remédio para pôr fim à violência nascida do exercício de potências por definição ilimitadas só pode ser eficaz uma potência que não conheça limites Isso significa em palavras claras que a instauração da sociedade política commonwealth civitas do Estado pressupõe que os cidadãos de comum acordo despojemse integral mente de sua potência individual e a transfiram para a autoridade pública A soberania una e indivisível do Estado é ilimitada o contrato que a es tabelece não a sujeita a nenhuma obrigação salvo a de assegurar a tranqui lidade e o bemestar dos contratantes Temos aqui o deus mortal o Leviatã esse monstro da lenda fenícia que é evocado pela Bíblia para dar a imagem de uma força corporal à qual nada resiste Dessa feita a laicização completa da plenitudo potestas dos teólogos realizase na própria noção do Estado A ordem política põe fim à luta de vida ou morte isso só ocorre na me dida em que os membros da coletividade consentem em reconhecer a ab soluta soberania de uma pessoa moral que exerce seu poder por meio de decisões das quais só ela é responsável e de leis que ela impõe como princí pios necessários da organização da República Esse é o sentido do fiat que institui o Estado pôr a morte do lado da mecânica natural e construir em todas as suas peças uma lógica da existência coletiva que preserve a vida Tal como em Bodin tratase de uma lógica e não de uma teoria do bom go verno ainda que Hobbes manifeste uma preferência pessoal pela monarquia ele não toma como problema decisivo o tipo de regime que encarne a sobe rania contanto que esse a exerça com rigor Pois diferentemente de Bodin nesse ponto ele não distingue entre a essência ou a forma da soberania O PríncipeEstado 49 a potência ou majestade e seu exercício empírico o poder ou governo É certamente essa confusão que lhe valeu a acusação de ser o arauto do absolutismo real o que ele não é de modo algum a análise dos direitos e dos deveres da instância suprema deixa isso bastante claro Na verdade o Leviatã quer seja monárquico oligárquico ou demo crático só tem direitos desde quando instituído não pode ser contestado de nenhum modo pelos que o instituíram a minoria tem de se submeter à maioria ele é juiz do que é necessário para a paz e a defesa dos súditos e das doutrinas que convém lhes ensinar detém o direito de editar regras de tal natureza que cada súdito saiba o que lhe pertence de modo que ne nhum outro súdito possa lhe tirar o que é seu sem cometer injustiça o de ministrar a justiça em todas as suas formas o de decidir sobre a guerra e a paz e de escolher todos os conselheiros e ministros tanto na paz quanto na guerrâ o de retribuir e castigar e isso a seu arbítrio bem como o de atribuir honras e hierarquias p187 Hobbes está tão consciente do caráter exorbitante dessas disposições que ele faz notar que por mais repressivo que seja o poder soberano é menos prejudicial do que a ausência de um tal poder p190 Essa alternativa não deixa de parecer com a que Platão propôs na Repú blica submeterse à reta filosofia ou decidir pela injustiça do bom prazer De qualquer modo esse deus é mortal o caso mais banal de seu desapare cimento é sua destruição por um outro poder soberano mas ele também morre a despeito dos comandos que impõe e da coerção que exerce se for incapaz de realizar a missão para a qual foi instituído que é a de garantir a segurança dos seus súditos e suas liberdades privadas tais como foram defi nidas pelas leis civis Pois apesar do seu rigor e de sua extensão o pacto que o institui não poderia fazer com que os indivíduos perdessem o que pertence à natureza deles Se é verdade que esses só têm as liberdades de conduta autorizadas pelo Estado também é verdade que quaisquer que sejam as ordens do so berano eles alienam sua liberdade de pensamento renunciam à defesa do seu próprio corpo e aceitam fazer mal a si mesmos ou fazer mal a outros somente se julgarem que isso é útil como por exemplo na guerra p2301 Essas limitações não fazem parte da ordem do direito mas dos dados de fato Ademais e essa é uma evidência sobre a qual Hobbes não crê necessário in sistir está implícito na lógica do conjunto que o Estado é senhor do espaço público como o é para definir a extensão desse espaço mas que subsiste um espaço privado importante onde pode se exercer a liberdade dos súditos Também nesse caso estamos diante de um fato 50 História das ideias políticas Nos casos em que o soberano não prescreveu regra o súdito tem liberdade para fazer ou se abster conforme julgue ser bom Também essa liberdade é em certos casos mais extensa em outros mais restrita maior em determinado momento e menor em outro conforme os detentores da soberania julguem ser mais van tajoso p232 A concepção política de Th Hobbes é muito mais sutil do que pode parecer à enunciação de seus princípios iniciais Tomando como ponto de partida uma concepção individualista e realista do homem recusando pre viamente qualquer pressuposto moral ela se empenha em conjurar o que para ela é o maior dos males a guerra civil Para fazêlo analisa as condições graças às quais instaurase uma ordem política estável E a condição primor dial é que a coletividade deseje a instituição de um princípio soberano oni potente e consinta em obedecer às leis civis e às decisões que são impostas pelo poder que encarna a soberania Resolvida assim a questão política do bom entendimento e da tranquilidade na República os súditos poderão li vremente se entregar às atividades que julgarem capazes de lhe trazer a salva ção e a satisfação empírica Essa concepção contém ao mesmo tempo uma resposta e um projeto uma resposta estritamente política aos problemas que foram e conti nuam a ser postos pelas guerras nascidas dos conflitos religiosos nos reinos da Europa Ocidental um projeto que leva em conta transformações que afetaram as condições da produção agrícola e manufatureira o comércio e o mercado de trabalho o de uma sociedade que tendo resolvido mediante uma lógica estrita a questão de sua forma política deixaria aos indivíduos o cuidado de regular suas vidas privadas e de usar livremente as próprias capacidades INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Hobbes T Léviathan Traité de la matiere de la forme et du pouvoir de la République ecc lésiastique et civile 1651 Sirey 1971 ed brasileira Leviatã in Os Pensadores Abril Cultural São Paulo volXIV 1974 Macpherson GB La théorie politique de lindividualisme possessif de Hobbes à Locke 1962 Gallimard 1971 ed brasileira A teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke Paz e Terra Rio de Janeiro 1979 Manent P Naissances de la politique moderne Machiavel Hobbes Rousseau Payot 1977 Polin R Politique et philosophie chez Hobbes PUF 1952 O PríncipeEstado 51 Uma filosofia política galileiana1 Spinoza O pensamento político de Spinoza está contido em dois textos breves o Trac tatus theologicopoliticus publicado em 1670 e o Tractatus politicus obra inacabada e póstuma Todavia sua influência no Século das Luzes foi con siderável ao mesmo tempo que indireta Pois é o conjunto da doutrina que por sua coerência e força demonstrativa germina nos espíritos livres esses a utilizam secretamente já que Spinoza é um autor maldito que não é citado a não ser para denunciar o seu caráter diabólico e cujas obras circulam às ocultas para combater as tradições religiosas e os poderes que apelam para o direito divino A eficácia do spinozismo no domínio das ideias políticas decorre do fato de que ele apresenta um sistema a Ética obra também póstuma que é ao mesmo tempo ontologia teoria do conhecimento da paixão e da ação a qual funda rigorosamente a ideia de que a conduta tanto individual como coletiva é uma questão não de fé religiosa não de crenças morais não de ar ranjos empíricos mas de estrita racionalidade da racionalidade usada pelos matemáticos e físicos em suas pesquisas Aparentemente o Tratado teológicopolítico é um livro de exegese bíblica De fato seu objetivo é fundar a distinção entre o domínio da fé e o domínio da razão assim como estabelecer contra Hobbes entre outros o fato de que numa Cidade organizada em função do que é útil aos que a constituem deve ser concedido a cada um pensar o que quiser e dizer o que pensa ed Gar nierFlammarion 1975 p336 Ele mostra que uma leitura da Bíblia que vise a extrair a verdade nela contida deve se ater ao próprio texto empreender sua crítica histórica e ex cluir os procedimentos interpretativos que recorrem a um sentido exterior ao texto que se afirma ser fruto de uma revelação e que não passa de produto da imaginação De resto a interpretação serve pouco à fé e as verdades que ela descobre não têm nenhum interesse para o homem religioso que quer a piedade e a salvação ibid p254 Nem a Escritura deve se curvar à Razão nem a Razão à Escritura 1 Título dado por Marianne Schaub à sua contribuição consagrada a Spinoza na Histoire de la philosophie dirigida por F Châtelet Hachette 1973 tomo III ed brasileira História da Filo sofia Zahar Editores Rio de Janeiro tomo 3 1974 52 História das ideias politicas A teologia e a filosofia são reinos separados a última é verdade e sabe doria a primeira é piedade e obediência Disso resulta que a aplicação da teologia às questões políticas tem como consequência desenvolver o espírito de submissão em detrimento do espírito de liberdade Pois no curso do trabalho Spinoza desenvolveu uma teoria do direito natural e notou que ninguém sabe por natureza que é obrigado a obede cer a Deus tampouco se sabe isso através de um raciocínio qualquer ibid p271 E de acordo com Hobbes ele afirmou que todo homem como ser na tural é desejo e potência mas separandose dele Spinoza constata que nada exterior nenhuma outra potência poderia limitar ou abolir o direito natural soberano do desejo O direito político não pode ser senão uma continuação do direito natural E ele é uma continuação precisamente na medida em que aparece ao indivíduo que pode ser útil à satisfação de suas paixões viver segundo as leis e injunções da razão as quais tendem unicamente ao que é realmente útil aos homens ibid p236 Portanto jamais poderia haver um contrato ou pacto que implicasse a renúncia da potência individual o reconhecimento de uma instância superior é por assim dizer sempre con tingente e provisório ele resulta de um cálculo racional e desaparecida a utilidade o pacto desaparece ao mesmo tempo e tornase algo sem forçà ibid p265 Essa assimilação do direito à força que se inscreve na demonstração realista e determinista da Ética essa afirmação da continuidade entre o de sejo e a razão o sábio não é menos apaixonado do que o insensato essa definição do homem como irredutível potência individual levam Spinoza a definir a ciência políticà no Tratado político como uma aplicação da ra cionalidade galileiana A originalidade da análise consiste em apresentar uma física da sociedade política Essa física liberada das perspectivas morais e que exclui todo finalismo e todo antropomorfismo considera a sociedade como um corpo feito de um conjunto de corpos individuais como um corpo que possui também uma individualidade A utilidade para o indivíduo de pertencer à sociedade é dupla por um lado isso aumenta sua potência ao conjugála com outras potências no seio da potência aumentada em quan tidade e em complexidade que é própria do conjunto por outro lado a ar ticulação do mecanismo do desejo com o da lei civil pode se efetuar nesse conjunto de tal modo que seja assegurada a eficaz conjunção no indivíduo da potência e da ordem racional Pois o Estado não tem absolutamente como meta suprimir as paixões ou reduzilas pela obediência sua função consiste em modificar seus efeitos no sentido da utilidade comum mediante procedi mentos calculados O PríncipeEstado 53 As discussões relativas aos bons ou maus regimes são abstratas na me dida em que ignoram o determinismo natural No fundo o regime importa pouco o que conta é que ele implique o maior número possível de indiví duos envolvidos na atividade legislativa judiciária administrativa Essa é a garantia de um Estado duradouro e forte esse é também o meio de orientar os interesses particulares no sentido da utilidade coletiva e de fazer com que a força das paixões participe da potência humana Se o mérito de uma forma de governo é avaliado de acordo com o número cada vez maior de cidadãos associados à gestão da ordem política e cidadãos aparece aqui como algo oposto a súditos se o direito político realiza efetivamente o direito natu ral então a sociedade assim organizada se afirmará como uma sociedade de liberdade não só de pensar mas também de empreender de construir de comerciar não em função de um fim exterior mas porque a atividade sem entraves é a afirmação do homem e da razão INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS De Lacharriere R Études sur la théorie démocratique Spinoza Rousseau Hegel Marx Payot 1963 Spinoza Traité théologicopolitique 1670 Traité politique póstumo in Oeuvres com pletes La Pléiade 1954 ed brasileira Tratado político in Os Pensadores Abril Cul tural São Paulo volXVII 1973 p31372 Direitos naturais e sociedade política Oohn Locke No horizonte da reflexão spinozista delineiase a revolução física mas tam bém a República dos Países Baixos fervilhante de discussões políticoreligio sas e já empenhada na modernidade comercial e manufatureira A obra polí tica de John Locke é contemporânea da segunda revolução inglesa 1689 da queda definitiva do regime de direito divino e da instauração de uma espécie de monarquia constitucional como as de Hobbes e de Spinoza ela se inspira no espírito novo que se baseia apenas na luz natural e na experiência como elas leva em conta as transformações ocorridas a partir do século anterior no mercado de trabalho e na estrutura da propriedade e do comércio Mas se refuta vivamente John Filmer teórico do absolutismo real de direito divino a teoria lockiana é também inteiramente contrária ao contrato de submissão que segundo Hobbes institui o Leviatã Filósofo que desenvolve uma teoria do conhecimento fundada num empirismo moderado todos os conhecimentos provêm da experiência mas também da capacidade reflexiva do entendimento humano que a ela se aplica Locke baseia sua investigação política numa concepção dos direitos naturais que não deixa de lembrar Grócio No estado de natureza expressão que em Locke indica por vezes como em Hobbes e depois em Rousseau um conceito limite e outras vezes um período histórico primitivo que pode ser encontrado entre os índios da América por exemplo o estado de selvageria segundo Rousseau os seres criados por Deus são livres livres as terras livres os animais livres os homens Para os homens que foram criados de tal modo que são capazes de conhecer de expressar seu pensamento e de trabalhar essa liberdade inscreve como um direito natural ou originário a possibilidade de dispor de sua vida e de suas palavras como lhes convém e de caçar os animais e de ocupar um território em que possam trabalhar para sobreviver São iguais uns aos outros na medida em que não existe entre eles nenhuma diferença natural que autorize um a limitar a liberdade do outro Formam assim famílias e realizam conforme suas conveniências as trocas que julguem proveitosas Nesse estado fazemse promessas mútuas a fim de melhor regularem suas vidas promessas que são naturalmente obrigados a respeitar já que sem tal respeito o uso da promessa perde qualquer significação Eles decidem também sobre signos a moeda graças aos quais as trocas de bens são facilitadas Desse modo as pessoas não mais se atêm em particular no que se refere à ocupação do território aos poucos acres de terra necessários à sobrevivência de uma família A sociedade dos homens tornase mais complexa e surgem cada vez mais numerosos riscos de conflito Os conflitos mais notórios e mais prejudiciais têm como origem os atentados ao direito que cada um tem de dispor de sua vida de se apropriar dos bens livres e de exigir e respeito aos compromissos assumidos De certo aquele cujos direitos foram lesados pode legitimamente punir o culpado e obrigálo a reparar o prejuízo causado Mas independentemente do fato de que esse procedimento apresenta o risco de engendrar uma sequência indefinida de violências ele é empiricamente ineficaz como Locke observa os ladrões e os desonestos são em geral mais robustos e mais astuciosos do que o comum dos proprietários Portanto é conveniente que os que desejam a plena realização dos princípios do direito natural ou seja o livre desenvolvimento de cada um entrem em sociedade e instituam uma instância que tem como fim organizar essa sociedade segundo regras comuns e usar os meios adequados para aplicálas O PríncipeEstado 55 Desse modo os proprietários a propriedade das terras dos instrumen tos do capital não é segundo Locke senão uma extensão natural da livre disposição que o homem tem sobre seu corpo e sua atividade ou seja sobre seu trabalho reúnemse e entram em acordo para definir o poder público encarregado de realizar o direito natural Esse poder é soberano no sentido de que os que o instituíram e na medida em que ele atue segundo seu fim são obrigados a obedecerlhe e a lhe prestar apoio Três são suas tarefas le gislador ele fixa as regras de exercício da soberania as leis orgânicas do Estado ou sua Constituição e define as leis que formam o direito público e o direito privado tendo como perspectiva aplicar os direitos de natureza às particularidades empíricas da sociedade juiz ele pune as faltas contra a lei e se empenha no sentido de fazer com que reine a ordem de justiça que decorre desses mesmos direitos naturais requisitando a força pública a fim de que tenham efetividade as punições e sejam reparados os prejuízos go vernante ele toma decisões sobre a guerra e a paz e as medidas administra tivas exigidas pela salvaguarda da coletividade a segurança dos cidadãos e a proteção de suas livres atividades O pacto de instituição do poder público do Estado é muito diferente do que Grócio imaginava e do que Hobbes prescrevia O primeiro pensa num contrato que liga os cidadãos entre si por um lado e por outro tais cidadãos enquanto coletividade e a instância suprema o segundo o concebe como cessão integral que obriga os súditos e não implica nenhuma obrigação por parte do Estado Locke tem uma posição diversa na medida em que em sua opinião a sociedade enquanto tal no estado de natureza possui a capa cidade de se organizar de modo harmonioso sem que haja necessidade de recorrer à ordem política O que impõe a instauração dessa ordem é a impo tência a que se encontra reduzida uma tal sociedade quando sua organização natural é ameaçada por inimigos internos e externos Os direitos naturais não têm força é indispensável constituir um poder que os enuncie e forma lize que lhes dê força de lei e que imponha sua efetividade mediante a coerção Portanto o princípioEstado é necessário com seu aparelho legislativo judiciário policial e militar mas é uma forma vazia Os cidadãosproprie tários decidem sobre a natureza do corpo legislativo e do governo e sobre quais são os que dentre eles merecem a confiança para realizar suas tarefas Portanto é deles que depende o regime que durará enquanto servir ao bem público Se o Estado fracassasse em sua missão e contrariasse os direitos na turais seria um dever dos cidadãos desencadear a insurreição sagradà e História das ideias políticas formar governos decididos a fazer do Estado um poder ao serviço das liber dades inscritas em cada indivíduo A obra política de John Locke teve uma influência considerável na inte lectualidade europeia Voltaire será seu ardente propagandista Sua clareza sua concisão mas também sua moderação e sua preocupação com a expe riência comum fizeram dela o instrumento por excelência da luta contra a tirania religiosa e política As duas declarações dos direitos do homem a norteamericana de 1787 e a francesa de 1789 inspiramse diretamente nessa obra Muitas fórmulas das diversas Constituições da Primeira Repú blica são tomadas dela Com o Segundo Tratado do Governo Civil 1690 John Locke apresentou a fórmula liberal do Estado moderno potência soberana e legisladora e unidade de uma multiplicidade de súditos francos assim como Hobbes 40 anos antes apresentara sua fórmula autoritária INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Hill Ch Le monde à lenvers les idées radicales au cours de la révolution anglaise 1972 Payot 1977 Locke J Deuxieme traité du gouvernement civil 1690 Vrin 1967 ed brasileira Se gundo Tratado sobre o Governo in Os Pensadores Abril Cultural São Paulo 1973 volXVIII p37137 Potin R La politique morale de John Locke PUF 1960 0 ESTADO E O CON FLITO De Maquiavel a Locke a maioria dos teóricos políticos quer procedam a uma constatação quer se proponham um programa reconheceram no Es tado princípio soberano e unificador da existência social a instância graças à qual contanto que o Estado seja conhecido como deve ser conhecido segundo o enunciado de Hegel e que o poder que ele implica seja corre tamente exercido podem ser reduzidos ou mesmo eliminados os confli tos que opõem os indivíduos ou grupos entre si e portanto que assegura a paz civil e regulamenta do melhor modo possível os antagonismos entre os reinos Todavia em diferente medida de acordo com o país duas reali dades se impõem sobretudo depois do final do século XVI Por um lado concluindo um movimento muito antigo reino e nação tendem a se fundir de tal modo que as partes envolvidas nas questões da política do direito do O PríncipeEstado 57 governo tornamse cada vez mais numerosas o tempo da senhoria e do apa relho senhorial foi definitivamente superado Por outro lado essas socieda des nacionais são cada vez mais profundamente animadas em função das transformações dos aparelhamentos materiais e ideais e das mentalidades por um dinamismo próprio as sociedades como tais independentemente de suas instituições religiosas e de suas estruturas jurídicopolíticas são to madas como objeto de reflexão As teorias políticas não podem ignorálas as relações EstadoSociedade irão constituir o tema principal do pensamento político do século XIX cf mais adiante o cap III Mas desde o século XVIII essa presença da sociedade sob suas modalidades históricas econô micas morais ou culturais é um novo fermento da investigação política Montesquieu a natureza das coisas Filósofo moralista historiador e teórico político francês Montesquieu irá exercer uma influência tão considerável quanto paradoxal nas Assembleias Constituintes revolucionárias francesas De sua reflexão sobre o espírito das leis ele induz uma nova classificação dos regimes políticos ao cabo da qual o governo moderado onde é assegurada uma separação dos poderes revela se a única solução institucional da liberdade política O método comanda um projeto Mas qual Para alguns Montesquieu apesar de suas nostalgias feudais toma resolutamente partido pelo liberalismo para outros o barão de La Brede tornouse objeto de uma recuperação revolucionária por causa de um malentendido destinado a preservar os privilégios da nobreza sua teo ria política e jurídica foi desviada de seu significado a fim de ser posta a ser viço da causa do povo ou pelo menos do Terceiro Estado burguês Montesquieu se esforça no sentido de revelar o espírito das leis ou seja a mais forte curva da relação entre variáveis diversas concretas e relativas que fazem e desfazem as leis humanas Pois se todos os seres têm suas leis tanto a divindade como o mundo material a humanidade tem suas leis próprias Examinei inicialmente os homens e supus que nessa infinita diversidade de leis e de costumes eles não eram movidos unicamente por suas fantasias Coloquei os princípios e observei os seus casos particulares se dobrarem como que por si mesmos as histórias de todas as nações serem apenas suas consequências e cada lei particular aparecer ligada a uma outra lei ou depender de uma outra mais geral História das ideias políticas Como todas as leis as leis humanas são relações necessárias que derivam da natureza das coisas Mas sendo assim as leis humanas dotadas de estrutura própria não poderiam ser derivadas ou deduzidas das leis divinas A lei perde seu caráter de ordem ou mandamento libertase de toda transcendência e de toda es sêncià não é mais do que uma relação imanente aos fenômenos humanos Ainda que Montesquieu seja nesse sentido considerado como o primeiro dos sociólogos Raymond Aron importa compreender que ele permanece um filósofo racionalista A lei em geral é a razão humana enquanto essa governa todos os povos da Terra e as leis particulares e civis de cada nação não devem ser mais do que os casos particulares em que se aplica essa razão humana Elas devem ser tão pró prias ao povo para o qual foram feitas que só por um grande acaso as de uma nação podem ser adequadas a outra É preciso que elas se relacionem com a na tureza e o princípio do governo que foi estabelecido ou que se quer estabelecer quer elas o formem como é o caso das leis políticas quer elas o mantenham como é o caso das leis civis Elas devem se relacionar com o elemento físico do país com o clima frio quente ou temperado com a qualidade do terreno com sua situação com sua extensão com o gênero de vida dos povos lavrado res caçadores ou pescadores devem se relacionar com o grau de liberdade que a Constituição pode suportar com a religião dos habitantes com suas inclina ções suas maneiras Finalmente têm relações entre si têm relações com sua origem com o objeto do legislador com a ordem das coisas sobre as quais são estabelecidas A Razão humana não cai do céu ela é induzida da observação da rea lidade social As leis mantêm relações com a natureza e com o princípio de cada go verno a teoria da lei exige uma nova classificação dos regimes políticos Os governos podem ser distinguidos a partir de sua natureza ou seja a partir dessa estrutura particular que define o modo de detenção e de exercício do poder mas também a partir de seu princípio ou seja desse conjunto de pai xões específicas que remete aos costumes e à comunicação humana Pois há essa diferença entre a natureza do governo e seu princípio que sua natureza é o que o faz ser tal e seu princípio é o que faz agir Uma é sua estrutura par O PríncipeEstado 59 ticular e o outro são as paixões humanas que o põem em movimento Desse modo portanto as leis não devem ser menos relativas ao princípio de cada governo do que à sua naturezà mas o princípio é a base fundamental e o motor que determina já que a corrupção de cada governo começa quase sempre pela dos princípios Levandose em conta a interdependência entre a natureza e o princípio há três espécies de governo o republicano o monárquico e o despótico O regime republicano se caracteriza pelo fato de que o poder é detido pelo povo sua natureza e que nele reina a virtude seu princípio enten dida no sentido político amor pela res publica virtude constantemente solicitada através de diversos meios educação cívica censura economia autárquica por um regime cuja sorte é condicionada por ela Conforme a detenção da soberana potência caiba a todo o povo ou apenas a uma parte do mesmo o regime republicano tem forma democrática ou aristocrática Montesquieu considera a forma aristocrática como superior pois o povo é admirável para escolher a quem deve confiar uma parte de sua auto ridade Mas saberá conduzir uma questão conhecer os lugares as ocasiões os momentos aproveitarse deles Não não o saberá Mas de qualquer modo o regime republicano é uma forma superada simples sobrevivência histórica condenada por causa do aumento dos Esta dos modernos Em troca o regime monárquico é aquele no qual um só o rei governa através de leis fixas e estabelecidas sua natureza e que condiciona a honra seu princípio A natureza do governo monárquico estabelece uma ligação necessária essencial entre monarquia e nobreza a detenção do poder por um só não basta o modo de exercício através de leis supõe a existência de poderes intermediários subordinados e dependentes as leis fundamentais supõem necessariamente canais médios por onde corre a potência pois se não houver no Estado nada mais do que a vontade capri chosa e momentânea de um só nada poderá ser fixo e por conseguinte ne nhuma lei fundamental ora o poder intermediário subordinado mais natural é o da nobreza Em qualquer caso ela faz parte da essência da monarquia A nobreza está implícita também no próprio princípio do regime monárquico O governo monárquico supõe preeminências hierarquias e inclusive uma 60 História das ideias políticas nobreza originária A natureza da honra consiste em demandar preferências e distinções portanto por sua própria natureza ela se situa nesse tipo de go verno A ambição é perniciosa numa República Tem bons efeitos na monar quia dá vida a esse governo A honra é um princípio fácil que a nobreza produz como que involun tariamente sua vaidade ou seu egoísmo a impelem para o esforço Já na Re pública a virtude é de certo modo forçada Portanto há interesse em conser var os privilégios da nobreza a fim de beneficiarse com seus efeitos O regime despótico caracterizase também pelo governo de um só sua natureza mas já que os homens são nele todos iguais não se podem preferir uns aos outros já que os homens são nele todos escravos nada pode ser preferido e como é pre ciso haver virtude numa República e honra numa monarquia é preciso haver o temor num governo despótico seu princípio Desse modo a significação teórica e política de uma tal classificação é clara Como corretamente escreve Paul Vernieres Montesquieu substituiu uma tripartição fundada em categorias numéricas por uma nova tripartição temporal o passado o presente e o longínquo2 O despotismo é o perigo futuro da monarquia caso essa cedendo às pressões do povo separese de uma nobreza que é a única a lhe permitir governar segundo leis A crítica do despotismo é exemplar mas agindo como uma advertência aos reis ela li bera a nobreza de qualquer responsabilidade Blandine BarretKriegel avalia exatamente as consequências disso Assim o filósofo desenraíza o despo tismo de nosso solo e o expatria para a Pérsia a Turquia ou a China retirao de nossa genealogia para deportálo inteiramente para a civilização oriental É dessa erradicação que procede a emigração das imagens do poder abso luto agora votado até a ressurgência dos Estados totalitários ao exotismo e à xenofobia Se esquecermos que Montesquieu participa do esforço ge ral da filosofia senhorial no sentido de negar os deméritos da senhoria e de dissociar a crítica do despotismo da crítica da dominação feudal o filósofo apresenta o risco de nos desviar do caminho A crítica do Estadodéspota com efeito não passa de um engano quando dissimula sob os véus do ha rém o elmo senhorial3 Todavia é esse enfoque que leva Montesquieu a 2 Paul Vernieres Montesquieu et lEsprit des Lois ou la Raison impure Paris 1977 p65 3 Blandine BarretKriegel IEtat et les esclaves Paris CalmannLévy 1979 p323 O PríncipeEstado 61 preconizar como solução institucional para a crise a adoção de um governo moderado onde a separação dos poderes tornase a garantia indispensável da liberdade política A lição só tem sentido se se evita confundir a liberdade política com o poder do povo se se compreende que a liberdade política é indissoluvel mente ligada à lei É preciso ter em mente o que é independência e o que é liberdade A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem e se um cidadão pudesse fazer o que elas proíbem não teria mais liberdade porque os outros teriam também esse poder A liberdade política portanto pode se encontrar apenas num governo onde o poder seja moderado porque limitado É uma experiência eterna a de que todo homem que tem poder é levado a abu sar do mesmo ele vai até o ponto em que encontra limites Para que seja impossível abusar do poder é preciso que pela disposição das coisas o poder freie o poder A moderação do poder por conseguinte depende de uma certa distri buição das forças que resulte da razão e não do acaso Para formar um governo moderado é preciso combinar as potências regula mentálas temperálas deixálas agir ou por assim dizer dar um lastro a um para tornálo capaz de fazer com que o outro desista é uma obraprima de le gislação que o acaso raramente opera e que raramente é confiada à prudência Um governo despótico ao contrário salta por assim dizer à vista ele é uni forme por toda parte como bastam as paixões para estabelecêlo qualquer um serve para isso O regime inglês assume então a figura de modelo daí o famoso Livro XI de O espírito das leis que trata da Constituição da Inglaterrà sem que seja prejudicada a coerência de conjunto do raciocínio Montesquieu distin gue três espécies de poderes que ele chama de potências a potência legisla tiva a potência executiva e a potência de julgar E afirma claramente que tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo de principais e nobres ou do povo exercesse esses três poderes o de fazer leis o de executar resoluções públicas e o de julgar os crimes e as disputas entre particulares 62 História das ideias políticas Podese dizer que a potência de julgar é invisível e nulà na medida em que não põe nenhum problema de alocação ela não é dada a um senado permanente e temese a magistratura e não os magistrados Em troca as duas outras potências são partilhadas por três forças o povo a nobreza o monarca Essa partilha deve obedecer a certas regras a potência legislativa é confiada por um lado a um corpo de representantes do povo de repre sentantes pois sua grande vantagem é que eles são capazes de discutir os problemas o povo por si mesmo não é absolutamente capaz de fazêlo por outro lado aos representantes da nobreza que não podem ser confundidos com o povo pois caso contrário a liberdade comum seria sua escravi dão e eles não teriam nenhum interesse em defender A parte que lhes cabe na legislação deve ser proporcional às outras vantagens que têm no Estado o que ocorrerá se eles formarem um corpo que tenha o direito de frear os atos do povo assim como o povo tem o direito de frear os deles Essas duas partes se ligam entre si pela faculdade recíproca de impedir Ambas serão vinculadas pela potência executora confiada ao monarca mas também ela vinculada pela potência legisladora na medida em que a Constituição lhe dá os meios se não de estatuir pelo menos de também impedir Desse modo a potência se distribui na harmonia e na moderação na colaboração dinâmica e não na separação impotente Essas três potências deveriam formar um re pouso ou uma inação Mas como pelo movimento necessário das coisas elas são obrigadas a se mover serão forçadas a se mover de modo concertado Uma certa tradição jurídica francesa faz de Montesquieu o inventor do princípio da separação dos poderes nos moldes por exemplo em que tal separação será teorizadà por Sieyes em seus discursos de 2 de termidor do ano III Confundir Montesquieu com Sieyes está no limite da aberração Charles Eisenmann de modo irrefutável corrigiu esse erro de interpreta ção Longe de apresentar a doutrina contida em O espírito das leis a inter pretação que a faz proceder da ideia da separação dos poderes desfiguraa completamente dando dela uma imagem inteiramente alterada quase uma caricatura Montesquieu prega o sistema do acordo mútuo das potências na não confusão dos poderes a fim de que as três forças políticas principais não possam nenhuma delas abusar do poder Mas o abuso do poder não tem significação jurídica não se trata de conter o poder num estrito limite le gal mas significação política Abusar do poder segundo sua ideia consiste em exercêlo de modo excessivamente unilateral Portanto não abusar dele é usálo para uma política através de medidas que levem em conta a multi plicidade e a diversidade dos interesses e das concepções que estão presentes na sociedade A moderação assim entendida é a linha média a resultante da composição de forças é o compromisso A teoria jurídica prolonga aqui a análise política e social os constituintes revolucionários censuraram essa por desviar aquela em seu proveito INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Althusser L Montesquieu la politique et lhistoire PUF 1959 reed Quadrige 1981 Aron R Les étapes de la pensée sociologique Gallimard 1966 BarretKriegel B LEtat et les esclaves CalmannLévy 1979 Eisenmann Ch LEsprit des Lois et la séparation des pouvoirs in Mélanges Carré de Malberg 1933 MontesquieuCharles de Secondat Barão de La Brède e de 16891755 LEsprit des Lois 1748 ed brasileira Do espírito das leis in Os Pensadores Abril Cultural vol XXI 1973 Troper M La séparation des pouvoirs et lhistoire constitutionnelle française LGDJ 1973 Vernières P Montesquieu et lEsprit des Lois ou la Raison impure 1977 Política da economia política Adam Smith O desenvolvimento da vida urbana do tráfego comercial nacional e internacional da produção manufatureira da qual alguns setores já são mecanizados da atividade bancária assim como a transformação das relações sociais e as migrações populacionais concomitantes a esses movimentos impõe a insistente presença do econômico nos reinos da Europa Ocidental a partir do final do século XVII De imediato a arte de bem gerir o patrimônio familiar ou a técnica para encher de ouro os cofres do rei dos senhores e dos mercadores transformamse em economia política História das ideias políticas Estado nacional no sentido estrito David Ricardo reagindo ao impacto econômico das guerras napoleónicas mostrará pouco depois em que essa ordem é determinante nas relações internacionais A relação existente entre a nova ciência econômica que fiel ao espírito do tempo esforçase por descobrir princípios explicativos universais e a teoria política que se empenha em definir a organização política legítima é dupla A escola fisiocrática testemunha claramente essa dualidade em um primeiro nível pragmático ela buscou os meios de remediar a pobreza do Estado a miséria da nação indicando as ações que deveriam ser empreen didas mas em um segundo nível a partir das leis científicas que ela julgou descobrir induziu a ideia do bom governo conforme à natureza das coisas Nessa óptica os fisiocratas concluindo a partir de suas investigações que somente o trabalho da terra aumenta realmente a quantidade de bens já que utiliza a maravilhosa produtividade da natureza propõem a institui ção de um reino agrícola cuja base é a propriedade fundiária Desse modo poderá ser edificada uma sociedade livre que deixe cada um empreender o que lhe for conveniente a busca da riqueza pelos indivíduos é a garantia do bemestar da coletividade Todavia para que as leis da natureza e as da natureza humana possam funcionar harmoniosamente é preciso que sejam garantidas a segurança da propriedade e a liberdade empresarial Se o go verno deve se abster de intervir nas questões econômicas tem de ser despó tico quanto à defesa dos bens à livre circulação das mercadorias à vigilância e à punição dos que pretenderem entravar o curso natural das coisas Pois a polícia outro nome para designar a ordem política deve ser tão inflexível quanto a ordem natural Embora creia também na harmonia Adam Smith extrai de suas reflexões econômicas consequências políticas inteiramente diversas A razão consiste no fato de que sua investigação sobre a atividade produtiva se funda num exame empírico realizado de modo inteiramente diferente enquanto os fi siocratas se contentam em pôr o problema econômico apenas do ponto de vista da produção de bens de subsistência e por isso desqualificam a ati vidade manufatureira que transforma sem nada criar Adam Smith toma como ponto de partida a divisão do trabalho e a troca Nessa óptica a riqueza de uma nação é medida pela massa de bens que são nela produzidos troca dos e capazes de ser exportados Um bem que pode ser trocado é uma mer cadoria Desse modo para dar uma avaliação mais precisa é preciso medir o que forma o valor de uma mercadoria Decerto podese responder que esse valor provém de sua utilidade de seu uso Mas a experiência comercial e industrial mostra que se trata nesse caso de um fator contingente o que O PríncipeEstado 65 é relacionado na troca entre mercadorias é o investimento e o trabalho que foram necessários à produção dessas mercadorias O capital criado inicial mente pela poupança e aumentado por meio dos lucros comerciais e o tra balho posto em operação num país constituem as causas da opulência desse país opulência que se refere a todas as coisas da sociedade um e outro acres centam valor à natureza e são os fermentos do que logo após irá ser chamado de civilização Adam Smith completa essa análise cujo poder conceituai funda a eco nomia política como disciplina objetiva mediante considerações que põem em evidência a autorregulação que caracteriza um tal sistema a lei do valor quando seu funcionamento não é entravado por nada implica que o empre sário capitalista busca as atividades benéficas à sociedade e que elimina as produções parasitárias e que os trabalhadores trabalham mais e melhor para melhorar suas condições Numa tal perspectiva o bom governo é aquele que não intervindo de nenhum modo na ordem econômica protege a proprie dade e o capital faz com que reine uma ordem graças à qual cada um será livre de dispor livremente de sua atividade laboriosa garante a regularidade e a aplicação dos contratos privados e garante a força da nação a fim de que ela possa desenvolver suas capacidades comerciais David Ricardo em Princípios da economia política e da tributação 1817 não se acomodará tão facilmente ao princípio de autorregulação de Smith e sublinhará a existência de contradições Sismondi logo após chegará mesmo a negar esse princípio da autorregulação Isso não anula o fato de que dora vante as considerações econômicas quer levem a reduzir a importância do político ou ao contrário demandem uma outra política passam a fazer parte integrante da reflexão sobre o Estado e o governo INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Quesnay F Tableau économique de la France 1758 PUF 1958 Ricardo D Principes de Ieconomie politique et de limpôt 1817 ed brasileira Princí pios da economia política e da tributação col Os Economistas Abril Cultural São Paulo 1982 Smith A Recherches sur la nature et les causes de la richesse des nations 1776 Galli mard col Idées 1976 extratos ed brasileira parcial Investigação sobre a natureza e a causa da riqueza das nações in Os Pensadores Abril Cultural São Paulo 1974 volXXVIII p7247 66 História das ideias políticas Soberania e vontade geral o povo Rousseau A obra de JeanJacques Rousseau 171278 deu lugar a uma multiplicidade de interpretações ainda hoje das mais contraditórias Filósofo das Luzes cujos princípios combate teórico dos direitos naturais que não poupa sarcasmos à Escola do Direito Natural promotor de uma revolução liberal cujas taras descreve antecipadamente individualista empenhado em construir os fun damentos do coletivismo totalitário uma certa tradição universitária não terá terminado por apagar as ambiguidades as contradições os sofismas de Rousseau E uma certa tradição política não terá passado de uma rejeição horrorizada à tentativa de recuperação mais incoerente Uma tradição ins titucional finalmente não o terá incorporado à República burguesa mas ao preço de algumas censuras Da desigualdade Desde 1754 refletindo sobre as fontes da desigualdade entre os homens e pole mizando assim sobre a natureza humana Rousseau advertiu seus contempo râneos para a grande heterogeneidade das teses que precederam a sua e tentou denunciar esse erro comum aos teóricos do direito natural que transpor taram para o estado de natureza ideias que haviam tomado da sociedade que falavam do homem selvagem enquanto retratavam o homem civilizado Ele tenta assim advertilos para sua aversão a todo primitivismo naturalista É preciso destruir as sociedades esmagar o teu e o meu e voltar a viver nas florestas com os ursos Uma consequência à maneira de meus adversários para a qual tanto gostaria de chamar a atenção como de deixar para eles a ver gonha de tirála Em vão e durante séculos pois esse mito do bom selvagem resta misteriosamente preso às premissas de seu pensamento político Rousseau percebe originariamente duas espécies de desigualdade a primeira natural ou física devida à diferença de idade de saúde da força corporal ou das qualidades do espírito em nada lhe interessa já que não poderia fundar nenhuma organização social a segunda moral ou política parece estabelecida com o consentimento dos homens após uma espécie de convenção e é a única que merece ter sua origem e seu processo descritos Já que ela não é natural seu segredo pode residir nessa defasagem entre o estado de natureza e a civilização Mas o estado de natureza não é mais do O PríncipeEstado que uma hipótese teórica uma operação do espírito um postulado da razão Comecemos por afastar todos os fatos proclama Rousseau contra Grócio e contra todos os que pretendendo sempre estabelecer o direito pelo fato não poderiam empregar um método que fosse mais favorável aos tiranos já que ele leva apenas a eternizar o que é e por conseguinte à desigualdade A natureza humana a que interessa a Rousseau exclui inclusive o instinto de sociabilidade Tudo parece afastar o homem selvagem da tentação de deixar de sêlo A sociedade civil ou política também nada deverá à Necessidade ela nasce de uma sequência de acidentes Entre esses o agrupamento das famí lias que se expande na idade de ouro das comunidades patriarcais mas tam bém o aparecimento da divisão do trabalho e desta propriedade que nada deve à natureza O primeiro que tendo cercado um terreno cuidou de dizer isto é meu e en controu pessoas suficientemente simples para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil Quantos crimes guerras assassinatos misérias e horrores não teria poupado ao gênero humano aquele que arrancando as es tacas ou enchendo o fosso tivesse gritado a seus semelhantes Defendamse deste impostor vocês estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de to dos e que a terra não pertence a ninguém Se se pode falar de história ela é bem pouco linear mistura progresso e decadência já que foram o ferro e o trigo que civilizaram os homens e perderam o gênero humano De acidente em acidente a sociedade muda de natureza Desde o instante em que um homem sentiu necessidade do socorro de outro desde que se percebeu ser útil a um só contar com provisões para dois desapa receu a igualdade introduziuse a propriedade o trabalho tornouse necessário e as vastas florestas transformaramse em campos aprazíveis que se impôs regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria germi narem e crescerem com as colheitas O pacto iníquo Ameaçados em sua segurança os homens são levados a consentir numa certa organização política a firmarem um certo contrato social Unamo 68 História das ideias políticas nos para defender os fracos da opressão conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse do que lhe pertence Em vez de voltar nossas forças contra nós mesmos reunamonos num poder supremo que nos governe se gundo sábias leis que protejam e defendam todos os membros da associa ção expulsem os inimigos comuns e nos mantenham em concórdia eterna Assim é fundada a sociedade política com base num contrato tão sábio e refletido quanto iníquo porque deu novos entraves ao fraco e novas forças aos ricos porque fixou para sempre para garantila a desigualdade entre os homens Portanto é inútil polemizar sobre a lei do mais forte ou sobre a autoridade paterna é errar de argumento e portanto de adversário A luta contra o despotismo exige preliminarmente essa compreensão do político e se é difícil convencer os homens a se revoltar isso se dá porque na origem eles não se lançaram na escravidão por capricho porque todos correram para seus grilhões acreditando assegurar sua liberdade porque não viram que as vantagens relativas e provisórias da segurança que esse contrato lhes proporcionava os levavam irremediavelmente à alienação de sua liberdade O homem pode denunciar esse pacto iníquo Sim certamente porque ele provou pelo menos que a origem do poder é humana convencional ar tificial e o que o homem fez pode desfazer nenhuma necessidade exterior e transcendente impõe ao homem uma ordem imutável A principal obra de Rousseau o Contrato Social propõe aos homens firmarem finalmente um pacto legítimo que lhes permita reconquistar a liberdade encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada asso ciado com toda a força comum e pela qual cada um unindose a todos só obedeça contudo a si mesmo Rousseau não diz de modo algum que é preciso reencontrar uma natureza perdida não propõe nenhuma fuga para trás e não cede a nenhuma nostalgia de paraísos perdidos já que a natureza não retroage é preciso encontrar os princípios de direito político de uma comu nidade verdadeira na qual a tensão entre o individual e o coletivo resolvase na equação entre o poder e a liberdade O contrato social O problema é insolúvel Podemos conceder a Rousseau o mérito de colocá lo sem tergiversações Esse contrato social legítimo nada tem de um contrato de governo já que antes de examinar o ato pelo qual um povo elege um rei seria bom examinar o ato pelo qual um povo é um povo Não se trata de um contrato estabelecido entre indivíduos mas do contrato de cada um consigo O PríncipeEstado mesmo e que transforma cada indivíduo num cidadão As cláusulas desse contrato reduzemse todas a uma só a saber a alienação total de cada asso ciado com todos os seus direitos à comunidade Desse modo o objeto do contrato se realiza Imediatamente esse ato de associação produz em lugar da pessoa particular de cada contratante um corpo moral e coletivo com posto de tantos membros quantos são os votos da assembleia e que por esse mesmo ato ganha sua unidade seu eu comum sua vida e sua vontade Rousseau não estará incorrendo aqui em flagrante delito de sofismà Não confundirá superstição e liberdade para se devotar às superstições ma joritárias Quanto ao primeiro ponto podese objetar que a alienação total permite a liberdade total na medida em que ela evita transpor para a socie dade política nova os estigmas da desigualdade preexistente Assim cada um dandose a todos não se dá a ninguém e não existindo um associado sobre o qual não se adquire o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo ganhase o equivalente de tudo que se perde e maior força para conservar o que se tem A liberdade só é submissão porque a submissão é voluntária e igual para todos e porque torna a liberdade moral liberdade moral que é a única a tornar o homem verdadeiramente senhor de si pois o impulso apenas do apetite é escravidão enquanto a obediência à lei que se prescreveu para si mesmo é liberdade A primeira questão portanto resolve a segunda a igualdade supõe a unanimidade a primeira convenção aquela que faz de um povo um povo exclui qualquer princípio majoritário Onde estaria a não ser que a eleição fosse unânime a obrigação do menor número de se submeter à escolha do maior E por que cem que desejam um senhor têm o direito de votar por dez que não o desejam A lei da pluralidade dos sufrá gios é em si mesma um estabelecimento convencional e supõe pelo menos uma vez a unanimidade Desse modo o Corpo Político objeto do contrato social não resulta da adição das vontades particulares ele se confunde com a vontade geral tal como essa resulta da alienação total de cada indivíduo e portanto de sua liberdade que não é mais do que a capacidade que ela pos sui de fazer com que sua vontade geral domine sobre sua vontade particular A vontade geral dá a existência e a vida do corpo político a soberania é seu exercício e a legislação seu movimento As características da soberania É a vontade geral que indica as características gerais da soberania ela é ina lienável indivisível infalível absoluta 70 História das ideias políticas A primeira característica é fundamental e leva Rousseau a afastar o re gime representativo os Constituintes revolucionários que assimilaram a teo ria rousseauniana da lei esqueceram que essa só tem sentido em relação com essa condenação prévia enunciada em termos pouco equívocos Afirmo pois que a soberania não sendo senão o exercício da vontade geral jamais pode alienarse e que o soberano que é apenas um ser coletivo só pode ser representado por si mesmo O poder pode ser transmitido não porém a vontade E Rousseau insiste nas consequências de uma tal proposição Os deputados do povo portanto não são nem podem ser seus representantes são apenas seus comissários não podem resolver nada definitivamente Toda lei que o povo não ratificou pessoalmente é nula não é absolutamente uma lei O povo inglês pensa ser livre mas enganase fortemente só o é durante a eleição dos membros do Parlamento tão logo esses são eleitos ele é escravo não é nada Quanto à segunda característica que Rousseau atribui à soberania ela irá desencadear inúmeras controvérsias constitucionais a soberania é indivisível porque a vontade ou é geral ou não é ou é a vontade do corpo do povo ou é somente a de uma parte No primeiro caso essa vontade declarada é um ato de soberania e faz lei no segundo não passa de uma vontade particular ou de um ato de magistratura é no máximo um decreto E Rousseau ironiza os partidários de uma divisão dos poderes comparandoos a esses charlatães do Japão que fingem esquartejar uma criança jogando para o alto os seus membros para depois fazêla cair viva e unida diante dos espectadores A soberania é ainda infalível e absoluta infalível porque a vontade geral é sempre justa e tende sempre à utilidade públicà absoluta porque assim como a natureza dá a todo homem um poder absoluto sobre todos os seus membros o pacto social dá ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus No que se refere a essas duas características surgem novamente inú meros contrassensos a partir do momento em que se confunde vontade ge ral com vontade majoritária mas o próprio Rousseau tem a preocupação de precisar que as deliberações do povo nem sempre têm a retidão da vontade geral que a generalização da vontade resulta menos do número de votos do que do interesse comum que os une e sobretudo que o absolutismo do po der soberano tem limites os mesmos que o tornam absoluto por meio do contrato social e que dizem respeito à igualdade dos indivíduos se o poder O PríncipeEstado 71 soberano tentar romper essa igualdade se ele der mais encargos a um súdito do que a outro a questão se torna particular não mais estaremos diante do exercício de uma vontade geral tal poder portanto não é mais nem sobe rano nem absoluto A lei O mesmo ocorre com essa expressão da vontade geral a lei que dá ao corpo político o próprio movimento que o conserva A lei que define a generalidade de seu objeto é certamente obra do Povo Mas como ousa insistir Rousseau a quem sempre se criticou este ceticismo Como é pos sível que uma multidão cega que frequentemente não sabe o que quer pois raramente sabe o que é bom para ela executaria por si mesma um empre endimento tão gigantesco tão difícil como é um sistema de legislação A vontade geral é sempre justa mas o julgamento que a guia nem sempre é esclarecido Os particulares veem o bem que recusam o público quer o bem que não vê Todos precisam igualmente de guias Rousseau que funda toda soberania na Razão sabe que o homem é capaz de irrazão donde a ne cessidade de um legislador nem soberano nem governante simples conse lheiro em matéria de razão remédio para a ausência de deuses pois seriam necessários deuses para dar leis aos homens mas nem todo homem é capaz de fazer com que os deuses falem nem são acreditados quando anun ciam ser seus intérpretes O ceticismo de Rousseau é ainda maior quando trata do povo e de seu governo Assim ele multiplica os conselhos de conveniêncià pregando por exemplo uma boa proporção entre a extensão do território e o número da população a fim de tornar o povo apto para a legislação Quanto ao governo erradamente confundido com o soberano já que ele é apenas o comissá rio o ministro o funcionário desse último pode ser democrático aristo crático ou monárquico mas essas denominações referemse apenas à forma do poder executivo e jamais à fonte da soberania As três formas de governo apresentam vantagens e inconvenientes mas qualquer que seja a forma adotada é preciso ter em mente que a inclinação natural de todo governo é tornarse independente do soberano lssim como a vontade particular age incessantemente contra a vontade geral do mesmo modo o governo faz um contínuo esforço contra a soberania O Contrato Social deixa algum modelo positivo para o uso de consti tuintes empenhados em estabelecer uma legislação política A lição de Rous 72 História das ideias políticas seau é mais sutilmente irônica quem ensinando o direito fala melhor so bre o fato mas revela as razões de se revoltar legitima apenas as revoltas da Razão INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Cassirer E La philosophie des Lumieres 1932 Fayard 1966 Derathé R JeanJacques Rousseau et la science politique de son temps PUF 1950 Lardreau G Le singe dor Mercure de France 1973 Rousseau JJ Discours sur làrigine de linégalité parmi les hommes 1756 Le Contrat so cial 1762 in La Pléiade eds brasileiras Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens e Do contrato social in Os Pensadores Abril Cultu ral São Paulo 1973 respectivamente p207326 e 7151 O sujeito moral história e liberdade Kant Tal como Descartes Immanuel Kant fundador em final do século XVIII do criticismo filosófico não escreveu um Tratado de política Todavia sua obra interessa à reflexão sobre o Estado e sua organização de uma dupla ma neira diretamente por um lado na medida em que suas análises que in cidem sobre a moral os costumes o direito e a história definem conceitos que têm implicação política indireta e talvez mais profundamente por outro lado na medida em que sua concepção filosófica do conhecimento e do sa ber da prática termo que significa para ele a ação que institui a ordem da moralidade e dos fins últimos do homem influir duradouramente no pen samento político moderno tanto pelas perspectivas metodológicas que abriu como pelos resultados que permitiu adquirir A importância desse segundo aspecto que pode ser visto entre outros exemplos na influência de Kant em trabalhos tão diversos como os de Léon Bourgeois e Max Weber decorre do fato de que ele soube levar em conta ao mesmo tempo o progresso das ciências na era clássica e os efeitos culturais e morais da transformação das sociedades Na Crítica da Razão Pura 1781 Kant desenvolve uma teoria do conhecimento que estabelece a objetividade ou seja a universalidade e a necessidade das fórmulas do matemático e dos enunciados do físico mas essa só pode ser estabelecida por meio da expe rimentação desse modo ele funda o estatuto das ciências modernas Mas nega a essas últimas o direito de se constituírem em saber capaz de enunciar as propriedades do Seremsi já que por definição elas são relativas à estrutura universal do Espírito humano Na mesma óptica Kant denuncia as pretensões da metafísica que constrói discursos coerentes e contraditórios entre si os quais não podendo ser relacionados com a experiência possível são inverificáveis rigorosamente Portanto devese renunciar de uma vez por todas ao sonho do Saber absoluto Mas isso implica admitir que o Absoluto é uma ideia vazia Que não existe o incondicionado Os Fundamentos da Metafísica dos Costumes 1785 e a Crítica da Razão Prática 1788 propõem uma resposta a essas questões de rigor e originalidade surpreendentes O Absoluto não é e não poderia ser algo dado existe apenas pelo ato de uma vontade que o afirma e na medida em que o afirma Ora a única realidade que uma tal vontade pode pôr como incondicionado é o Sujeito moral Se se quer compreender a existência humana e a irreprimível inclinação pelo Absoluto que é testemunhada pela persistência da ilusão metafísica e da vida moral cotidiana é preciso postular que o homem é vontade livre ao mesmo tempo em que pertence ao mundo natural e como tal é submetido ao determinismo mais estrito vontade livre ou seja capaz de escapar da ordem natural e de se constituir precisamente como Sujeito autônomo como sujeito que dá leis a si mesmo que dependem apenas dele Para escapar do determinismo um sujeito tem de querer obedecer apenas a leis formais leis que excluam qualquer referência a um conteúdo qualquer seja trato de prazer sensual da utilidade social do amor de Deus ou da consciência do dever cumprido A única consideração à qual um sujeito livre pode se submeter referese à instituição da comunidade dos sujeitos livres constituindo uma espécie de sobrenatureza que afirma no interior e acima da natureza submetida ao determinismo a constante e preciosa exigência de liberdade Atua sempre de tal modo que sejas o legislador e sujeito num reino de fins tornado possível pela autonomia da vontade Esse imperativo categórico está no coração da reflexão kantiana sobre a moral aplicada sobre o direito e a história Num texto que data de 1784 O que é a Ilustração Kant mostra como o imperativo prático impõe a cada um o dever de discutir publicamente sobre qualquer obediência imposta pela ordem empírica do Estado da Religião e da opinião pública e de exigir a arbitragem da Razão A Metafísica dos Costumes 1797 analisa as condições em que um contrato privado que sujeita as partes contratantes a um compromisso empírico pode corresponder à exigência moral é preciso e basta 74 História das ideias políticas que o compromisso seja tão exatamente recíproco e equilibrado que de um lado e do outro anulese o elemento da sujeição Nessa moralização e nessa racionalização da ordem empírica das sociedades Kant vê o meio de intro duzir a finalidade humana no tecido do determinismo A Ideia de uma história universal do ponto de vista cosmopolita 1784 concretiza essa perspectiva Se é extremamente difícil a um indivíduo fazer triunfar a lei moral cá embaixo o mesmo não sucede se se considera a es pécie humana em seu devir É no seio dessa história universal que Kant crê possível definir o alcance da teoria moral por ele elaborada essa atua como uma Ideia ou seja como uma tarefa infinita jamais inteiramente realizada porém sempre existente e insistente O que aparece é que para além das dife renças de raças e de nações dos conflitos naturais que opõem os grupos entre si impõese progressivamente a necessidade racional de uma paz universal e de uma sociedade de nações que permitam aos indivíduos serem legisladores e sujeitos num reino de fins Prosseguindo seu objetivo de construir uma filosofia popular Kant retoma aqui o projeto nascido no século XVIII de uma sociedade dos espíritos que agrupe as elites europeias e se esforce por estendêla como tarefa infinita ao conjunto da humanidade Volta à ilusão metafísica Decerto mas também projeto político formu lado já pelos teóricos do direito da pessoa ligado a certos espíritos nascidos da Revolução Francesa ou seja o projeto de instituir uma sociedade que para além do quadro empírico dos EstadosNação e das novas sujeições que eles segregam assegure a todos os indivíduos a possibilidade da autonomia INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Kant 1 Critique de la Raison pratique 1788 Vrin 1967 Fundamentos da metafísica dos costumes 1785 Projeto de um tratado de paz perpétua 1796 Philosophie de lhistoire Aubier 1947 coletânea de vários textos Neil E Tu Ruyssen e M Viley et al La philosophie politique de Kant PUF 1962 Vlachos G La pensée politique de Kant PUF 1962 A história universal o Estado racional Hegel A obra de GWF Hegel situase na linha direta do pensamento kantiano com a diferença decisiva de que não recusa de nenhum modo a ideia do Saber O PríncipeEstado 75 Absoluto Desde 1806 quando da publicação da Fenomenologia do espírito Hegel se põe como objetivo garantir a passagem da filosofia à ciência filo sófica e essa é exposta como sistema acabado na Ciência da lógica dez anos depois Quanto ao problema político o filósofo de Berlim reitera a perspec tiva aristotélica já que considera que o Saber sobre a política exposto nos Princípios da filosofia do direito 1821 é um momento do desenvolvimento do Saber filosófico Assim enquanto Kant transfere para as vontades livres a tarefa nunca terminada de atualizar o Absoluto Hegel julga que os tempos são propícios à conclusão e à realização da ambição metafísica contanto que se saiba reconhecer na realidade presente marcada pelas revoluções americana e francesa e pela constituição do modelo de Estado napoleônico o começo do fim da história Qualquer que seja nossa opinião sobre esse jul gamento e sua validade se analisamos Hegel nesse ponto embora suas análises sejam posteriores à Revolução Francesa é porque ele conclui com uma apoteose o movimento que iniciado com Marsílio de Pádua e os lega listas esforçouse por pensar o Estado soberano como modo de organização ao mesmo tempo necessário e legítimo da existência social Política e filosofia A compreensão da teoria do Estado exposta no texto de 1821 apressadamente qualificada de monarquista de absolutista até de reacionária por numerosos comentadores que acreditam seguir as pegadas de Marx supõe o conhe cimento da técnica de exposição elaborada por Hegel por um lado e por outro a apreensão dos traços característicos da filosofia da história que ele elaborou precisamente como realização e superação do projeto metafísico No que se refere à exposição Hegel a quem frequentemente se atri bui a invenção do pretenso método dialético não deixa de repetir que não existe outro método além do movimento da própria coisà Essa se impõe inicialmente em sua imediaticidade como realidade feno mênica independente em si assim na Filosofia do direito o Estado ob jeto da pesquisa apresentase ao cidadão ingênuo apolítico em suas manifestações empíricas como instituição judiciária que visa à equidade e pune os delitos e os crimes No segundo momento a contingência dessa realidade seu caráter pura mente fenomênico exige um retorno até o sujeito cognoscente que forma uma representação ou um conceito que tem a função de inteligibilidade História das ideias políticas ou seja na Filosofia do direito o retorno do cidadão à sua própria subje tividade o qual se interroga sobre o fundamento do exercício do direito abstrato e descobre que ele é a origem do mesmo No terceiro momento o conceito reconhecendo sua abstração exterio rizase num ato que constitui o real que o realiza na Filosofia por exem plo o sujeito moral experimentando sua fragilidade se reencontra na mediação de sua participação na família da atividade profissional e das exigências políticas que essas implicam como cidadão reconhecendose doravante como ser cuja existência se efetiva no e pelo Estado Todavia esse estatuto da cidadania e do Estado é o da época contem porânea Ora essa não nasceu do nada é um resultado é o produto de um passado que a fez ser o que é A novidade profunda do hegelianismo é subs tituir o Ser substância imutável dos metafísicos clássicos pelo Devir do qual a humanidade é o sujeito Ora esse devir na óptica hegeliana é es pecificado sua filosofia da história alimentada por uma informação consi derável examina a sucessão dos Povos que encarnaram em sua época com os meios que lhes eram dados e com suas invenções singulares a vontade de liberdade e de racionalidade do homem Cada um deles asiáticos egípcios gregos romanos hebreus cristãos primitivos muçulmanos europeus ela borou ao mesmo tempo que costumes universos religiosos obras de arte também formas políticas o despotismo oriental a Cidade o Império o Santo Império o Estado moderno da Reforma à Revolução Francesa e ao centra lismo napoleônico Cada um tendo superado o precedente ao descobrir suas insuficiências e ao integrar às invenções dele as suas próprias invenções marca uma etapa no advento da humanidade livre e racional O momento presente segundo Hegel que é precisamente o da formação do Estado que toma como princípio de sua organização a Razão e a Liberdade per mite finalmente conhecer esse Devir e portanto perceber seu acabamento Esse é o enigma resolvido do Saber Absoluto a existência do Estado como Razão em ato Mas existência não é realidade os manufatureiros ingleses os patriotas franceses os atuais governantes da Prússia não sabem o que fazem O objetivo da Filosofia do direito não é certamente dizer como deve ser o Estado a pre tensão dos filósofos de propor modelos é nessa matéria histórica ridícula O que o Saber filosófico pode fazer é mostrar como o Estado deve ser conhecido a fim de facilitar a assimilação do novo e poupar assim aos homens tanto quanto possível as extremas violências Como se vê o pensamento político de Hegel é realista quando Platão constrói a Cidade ideal não faz mais do O PríncipeEstado 77 que confessar a incapacidade em que se encontra a Cidade real para superar suas contradições a não ser no plano ideal quanto aos diversos teóricos do direito natural eles testemunham cada um em seu tempo a inadequação dos direitos positivos em uso e a vontade histórica ainda pouco enraizada de substituílas por novos direitos Sociedade civil e Estado Como o Estado moderno deve ser conhecido A maneira imediatà de ser da existência coletiva é a família Essa se manifesta como fato biológico o laço de sangue e como relações afetivas Todavia sua realidade está no pa trimônio quer se trate da propriedade no sentido estrito ou simplesmente para os pobres da posse dos filhos Propriedade que assegura a subsistência e a progenitura constituem o substrato da existência social o que assegura a sobrevivência natural Essa imediaticidade é abolida e ultrapassada no tra balho social Leitor de John Locke e dos chamados economistas clássicos Hegel analisa as atividades profissionais ligadas à divisão do trabalho como elementos constituintes de um domínio próprio que ele designa com a ex pressão Sociedade Civil que é preciso notar significa também em alemão sociedade burguesà A sociedade civil em seu tríplice aspecto de produção distribuição consumo forma para uma coletividade territorial dada um sistema no sentido de que cada um dos seus elementos remete a todos os outros A di nâmica dessa totalidade sua força de progresso qualitativo e quantitativo é assegurada pelo princípio que a governa a busca do lucro máximo e a con corrência que engendra uma vontade constante de melhoria beneficiando a civilização material da coletividade e estimulando sua energia Todavia He gel não pensa que a autorregulação do mercado com a qual contava Adam Smith desempenhe um papel A manutenção das contradições é inelutável rivalidades entre indivíduos no interior de uma mesma profissão oposições entre as diversas profissões antagonismos entre os ricos e os pobres Esses antagonismos podem atingir um tal grau que ponham em perigo a unidade da coletividade As soluções que a sociedade civil realiza graças a seu próprio movimento a conquista de mercados estrangeiros e a colonização não parecem ser suficientes Desse modo devese reconhecer a significação e o alcance da sobera nia do Estado Esse é o princípio necessário que garante a unidade da cole História das ideias políticas tividade a potência plena que emana de suas decisões e a sacralidade laica das leis que ele edita transformamno no árbitro dos conflitos da sociedade civil e no senhor das operações diante das ameaças que provêm do exterior Essa soberania é por definição depositária do interesse universal do todo so cial Todavia para que ela atue em função do que é tornase necessário que seja conhecida e praticadà em função de sua essência Ora não é o que ocorre segundo Hegel Embora a necessidade da história tenha produzido o Estado como princípio de unidade governantes e governados não sabem o que ele é Compreendemno como uma força coercitiva que resulta ou da Providência Divina ou do direito senhorial de conquista e de uma relação de tipo protetorprotegido ou da vontade popular que designa seu repre sentante Desconhecem que a capacidade de arbitragem só pode pertencer à Razão em ato Para que o Estado seja tal é preciso que ele seja efetivamente encarnado por governos que dispõem da força da Razão Ao direito divino ao absolutismo real que reinava na Prússia à demo cracia representativa e às combinações entre essas formas Hegel opõe o Es tado onde o poder executivo onde a autoridade administrativa e legislativa são exercidas por funcionários recrutados em função apenas de sua compe tência que se delineia sobre o pano de fundo do saber racional Pouco im porta que o monarca depositário empírico da soberania seja designado por via hereditária já que a realidade do poder pertence ao corpo de funcioná rios Esses têm como missão impor um programa de interesse universal ra cionalmente calculado o qual de resto será por eles discutido com os repre sentantes dos interesses profissionais nas câmaras consultivas a fim de fazer com que universalidade e particularidade convirjam tanto quanto possível Para reduzir as coisas às suas dimensões empíricas o Estado hegeliano é uma monarquia onde o monarca está submetido às mesmas leis que todos os outros cidadãos e onde o governo de fato pertence a uma administração racional e técnica que se supõe ser competente e devotada à coletividade A implantação de um regime que existe apenas como projeto deveria permitir a cada um realizarse como cidadão livre Entretanto subsiste um obstáculo importante a essa plena realização que reconciliaria como o queria Kant Razão e Liberdade a particularidade em que os Estados ainda se encontram imersos Hegel prevê uma sequência de conflitos internacionais de extrema violência da qual deve surgir o Estado mundial que é o fim da história ou seja a superação de todas as contradições e o reino da transparência Hegel descreveu em sua essência o Estado moderno até nossos dias como o supunham Alexandre Kojeve e Eric Weil Não será antes o teórico genial que tentou mascarar as contradições da sociedade burguesa como o julgava Marx O que é certo é que ele é o pensador mais rigoroso e mais profundo dessa forma histórica que é o EstadoNação CAPÍTULO 1 1 1 O Estado Nação A doutrina política de Hegel aparece como a teoria rigorosa do Estado em sua acepção moderna Ela se alimenta em particular da experiência histó rica fornecida pela Revolução Francesa e pelo Império Napoleônico que dela derivou Para captar mais precisamente o devir dessa forma de Estado no decorrer do século XIX e analisar as tomadas de posição e as concepções do poder que ela suscitou é preciso voltar atrás e interrogar essa experiência e os textos partidários programáticos ou críticos dos que participaram dos eventos Uma ideia se impõe uma ideia certamente já presente nos pensa dores do século XVIII e em Hegel mas que irá doravante desempenhar um papel decisivo a ponto de caracterizar toda a política moderna e contempo rânea a de nação Doravante o EstadoNação constitui o quadro obrigatório da existência social ele é a realidade política por excelência em torno da qual se organizam os atos históricos Sobre a data de nascimento dessa realidade nos diversos países há nu merosas discussões e na falta de critérios precisos discussões confusas As páginas anteriores mostraram que a ideia do Estado como potência sobe rana no mundo terreno encontra sua origem na Europa Medieval Quanto à primeira identificação da nação nesse ou naquele território ela é objeto de debates históricos onde as segundas intenções políticas raramente estão ausentes De resto quem poderá jamais afirmar que uma Nação se consti tuiu para sempre De qualquer modo o que é certo é que o EstadoNação enquanto representação política que implica o fato de que as populações que constituem uma sociedade no mesmo território reconhecemse como per tencentes essencialmente a um poder soberano que emana delas e que as ex pressa surgido certamente com a Restauração Inglesa de 1690 afirmase fortemente com a Revolução Americana de 1776 e com a Revolução Francesa e para essa desde 1790 quando ela é ainda realistà E esse EstadoNação é ainda hoje a trama do mundo político quaisquer que sejam suas diversida des e novidades 80 AS REVOLUÇÕES AMERICANA E FRANCEZA DOUTRINÁRIOS PARTIDÁRIOS E ADVERSÁRIOS As discussões relativas ao momento de emergência do EstadoNação cruzamse em parte com as que tratam da importância dessas duas séries de eventos Afirmase prazerosamente que a República é a forma normal de acesso à independência de uma colônia que reivindica sua emancipação nessa época o imaginário político em função dessas opções tende a considerar 1789 ou como o ano I da era da liberdade ou como um ato desastroso que nenhuma reação conseguirá jamais corrigir inteiramente 82 História das ideias políticas Gérard A La Révolution française mythes et interprétations 17891970 Flammarion Questions dhistoire 1970 Godechot J Les Révolutions 17701789 PUF 2 ed 1965 La pensée révolutionnaire en France et en Europe 17801799 A Colin col U 1964 Hobsbawm E Zere des révolutions Fayard 1964 ed brasileira A era das revoluções Europa 17891848 Paz e Terra Rio de Janeiro 1979 Significação da Revolução na América do Norte A rebelião dos colonos de origem britânica que levou à fundação da Repú blica dos Estados Unidos é importante sob múltiplos aspectos Dirigida contra a Coroa inglesa ela legitima a secessão que realiza re metendose a princípios políticos aplicados pelo Reino Unido e sublinhando em particular que os colonos não têm nenhuma representação na Assembleia que decide sobre seus problemas Embora liderada por políticos realistas ela valese prazerosamente para se justificar na Declaração de Independência 1776 e na Declaração dos Direitos 1787 das noções assimiladas da doutrina dos direitos naturais de John Locke em particular a da insurreição sagradà Nos momentos de seu desenvolvimento ela não deixa de insistir sobre o papel motor das instituições na instauração da sociedade nova como se o Estado fosse o criador da Nação esforçandose por manter constante mente o equilíbrio entre a tradição puritana e a novidade republicana entre os poderes locais e a autoridade federal entre os costumes da vida rural e os desejos de entrar no concerto do mundo industrial nascente Enquanto tal ela constitui ao mesmo tempo um modelo e um exem plo na luta contra uma sujeição ilegítima travada em nome da igualdade natural da liberdade de empresa e para cada um do direito de usufruir sua propriedade e os frutos do seu trabalho assim como para a coletividade de escolher as instituições e os magistrados que lhe convenham Ela influirá nos atos iniciais da Revolução Francesa desempenhará um papel capital no desencadeamento das insurreições que levarão as colônias espanholas e por tuguesas da América do Sul à independência A boa consciêncià dos insurrectos de 1776 seus pontos de vista ao mesmo tempo egoisticamente utilitários e idealistas a aliança entre as preocupações a curto prazo e o desejo de fundar uma potência de tipo novo expansionista e segura de si definem os contornos de uma espécie de O EstadoNação nacionalismo institucional que doravante será característico da República norteamericana que no interior concebe a democracia menos como ex pressão da vontade popular do que como um jogo devidamente controlado de instituições representativas e no exterior apresentase como detentora do segredo das liberdades INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Arendt H Essai sur la Révolution 1963 Gallimard 1967 De Tocqueville A La démocratie en Amérique 18351840 Gallimard 1951 ed brasi leira A democracia na América Itatiaia Belo Horizonte 1963 A Revolução na França a nação contra a tirania Sieyes A situação é bem diferente na França A imagem da Nação está fortemente implantada na representação coletiva e a ação centralizadora da monarquia contribuiu bastante para reforçar tal imagem A despeito das carências da política monárquica e da pobreza endêmica de uma parte da população a sociedade francesa é rica e numerosa É contra esse pano de fundo que irão se apoiar as forças políticas que por ocasião da reunião dos Estados Gerais do Reino em julho de 1789 provocarão os primeiros grandes abalos É significativo que mais ainda que os colonos da América os promoto res do movimento tivessem tido para além da definição dos programas e do enunciado dos textos legislativos de legitimar seus atos políticos e de procla mar as razões de seu empenho Poucos regimes pelo menos até a queda de Robespierre tiveram como esse uma tal preocupação de legitimar sua ação e de anunciar a boanovâ A publicidade das ideias é considerada como uma arma contra o inimigo declarado a tirania E por trás dessa vontade de demonstração esboçase o projeto de uma mobilização universal contra os senhores que oprimem injustamente os povos Uma primeira tomada de posição significativa é a de Sieyes 17481836 membro da Assembleia Constituinte da Convenção do Diretório e artesão do golpe de Estado que abriu a Bonaparte o caminho do poder Sua brochura O que é o Terceiro Estado publicada em janeiro de 1789 teve uma influên cia determinante nos primeiros momentos do pensamento revolucionário e suas concepções da instituição republicana marcaram profundamente a redação das Constituições e dos códigos da República e do Império A indu História das ideias políticas bitável realidade na qual Sieyes se baseia é a Nação ela é um dado anterior a qualquer ato político ou legislativo é feita de indivíduos livres iguais inde pendentes diferentes uns dos outros mas unidos por necessidades comuns à natureza humana e pela vontade de viverem em conjunto Sem essa vontade sem a representação intelectual dessa entidade que é a Nação os indivíduos são impotentes e incapazes de resistir às operações de sujeição tentadas por bandidos e charlatães Todo indivíduo é um cidadão potencial que só se realiza na medida em que ligá sua vontade à dos outros membros do con junto com o fim de constituir o poder nacional É nesse sentido que a Nação é soberana que ela é una e indivisível Sieyes não se embaraça nem com a história nem com a sociologia sua metafísica é pobre e só intervém na medida em que justifica o ponto de vista político adotado Tratase para ele com efeito de designar o ser de razão em torno do qual se organiza o combate pela liberdade e pela igualdade e contra o arbítrio e os privilégios O ser real da Nação é o Terceiro Estado que agrupa a imensa maioria da população que com exclusão dos privilegiados é a parte viva do reino O Terceiro Estado é tudo a abolição dos privilégios é um convite aos que por seu nascimento não conseguem pertencer ao todo e também um convite a eliminar a coletividade os que não querem renunciar a tais privilégios Da Nação do Terceiro Estado emanam todos os poderes Mas a Nação não poderia reinar como tal O exercício da soberania nacional passa pela implantação de uma Constituição que defina os órgãos da legislação e do go verno as autoridades judiciárias que realizarão e garantirão a liberdade e a igualdade dos cidadãos e mais geralmente a plenitude dos direitos naturais Ora o poder constituinte se quer ser eficaz deve obedecer a um princí pio o da representação Devem ser afastadas todas as tentações da demo cracia direta que levam à desordem e à impotência É mesmo conveniente que se desconfie do mandato particular que limita o poder do deputado às prescrições dadas pelos mandantes A boa representação é a que concede um mandato geral ao eleito é nessa condição que ele pode participar utilmente da elaboração da vontade nacional Em suma a encarnação do povo no corpo do rei é substituída pela re presentação na Nação nos corpos instituídos Num e noutro caso tratase de fazer prevalecer uma vontade Sieyes é um liberal mostrase profundamente apegado à salvaguarda das liberdades individuais em face da autoridade go vernamental que desconfia da democracia O Estado emana da Nação e a representa essa é autônoma com relação àquele a não ser politicamente caso em que lhe deve obediência O EstadoNação INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Condorcet AntoineNicolas Caritat marquês de Esquisse dun tableau historique des progres de lEsprit humain 1797 Boivin 1933 Furet F Penser la Révolution française Gallimard 1978 Guiomard JY Lidéologie nationale Champ libre 1974 Sieyes EJ Essai sur les privileges 1788 Questce que le Tiers Etat 1789 A NaçãoPátria a vontade do povo como fundamento da República Robespierre Saint Just Sieyes considera a separação dos poderes como a principal garantia das li berdades privadas O Comitê de Salvação Pública animado notadamente por Robespierre 175894 e por SaintJust 176794 recusa essa fragmen tação da soberania e quando adquire uma posição dominante exerce um poder sem partilha abril de 1793julho de 1794 Essa prática ligase a uma concepção inteiramente diferente do sentido da Revolução Essa prá tica é o ato do povo inteiro num primeiro momento o povo expulsou o poder que o oprimia Mas a experiência mostra que sua tarefa não para aí significaria perder a liberdade entregarse a instituições e a representantes tomados pelo demônio do poder O complô dos aristocratas é constante e ameaça a República tanto no interior quanto no exterior Na guerra contra os tiranos estrangeiros o papel essencial é desem penhado pelo povo em armas os oficiais e os generais estão a serviço da Nação e é preciso que as operações propriamente militares sejam com plementadas com uma estratégia política o exército da República é li bertador A pátria da liberdade tem como missão estender não suas fron teiras mas as da liberdade Quanto ao desenvolvimento das conquistas da Revolução no plano interno ele requer por um lado a unidade do povo e por outro a execução inquebrantável das vontades que o povo expressar Os movimentos de rua as discussões nas seções de bairro e de aldeia e nos clubes são os lugares privilegiados onde se reforça a unidade e se forjam as vontades Quem quer que os utilize para fins partidários e egoístas quem quer que deseje transformar a ação resoluta em agitação e em acerto de contas o que foi criticado respectivamente aos danto nistas e aos hebertistas será eliminado do mesmo modo que os cons piradores monarquistas Nessa óptica a assembleia dos eleitos é menos uma câmara legislativa e de administração do que o lugar público onde aqueles que o povo designou como responsáveis debatem sobre as modalidades de execução de todas as ordens implicadas pela realização dos objetivos fixados pelo povo soberano Assim a abstração que segundo Sieyès é a Nação é substituída por essa outríssima abstração que é a dinâmica popular supostamente unificada e contra a técnica das instituições representativas enquanto modo de organização e de governo da sociedade fazse apelo à democracia direta O EstadoNação A República como unidade do povo e administração do território O constitucionalismo de Sieyes visava pela técnica do mandato geral a proteger a independência do Executivo Robespierre ao contrário quer fazer dos representantes os mandatários das decisões singulares da vontade geral A conjuntura estratégica financeira e econômica na qual a Primeira Repú blica irá se engajar na luta contra a Europa suscita uma prática política e uma concepção que cedo se afirmarão como o traço característico do EstadoNa ção em seu estatuto moderno Quando a República ameaçada toma a iniciativa das operações militares e invade a Savoia e os Países Baixos austríacos a Bélgica o entusiasmo re volucionário sob o impulso entre outros de Anarchasis Cloots designa a França como o centro ativo da futura república universal que instituirá para além das nações a filantropia mundial Concretamente o que se afirma nesse projeto é a perspectiva de dar ao país suas fronteiras naturais ou seja de estendêlas para o Leste além do Reno e dos Alpes A ideia adaptase às especulações do século sobre as harmonias da natureza chocase com a opo sição da Inglaterra que entra na coalizão austroprussiana Desse modo confirmase pouco a pouco a linha política externa e interna que sob di ferentes retóricas leva ao Consulado e ao Império De acordo com JeanYves Guiomard podemos chamála de política da defesa nacional Defender um povo e seus ideais é defender e administrar seu território é portanto aumentar por todos os meios o seu potencial militar financeiro e econômico é soldar a coletividade por meio de uma organização socioju rídica que assegure tanto quanto possível o respeito pelos direitos naturais e o aumento da segurança e das riquezas Um tal programa supõe por um lado um fortalecimento geral do Executivo cujo instrumental é um exér cito nacional e uma administração centralizada que estenda sua rede sobre o conjunto do território e por outro uma independência da sociedade civil constituída como lugar da livreempresa Os princípios de filosofia do direito de Hegel estabelecem a teoria desse sistema do EstadoNação A nação como ser de razão segundo Sieyes ou o povo como força uni ficadaunificante segundo Robespierre parecem encontrar consistência nessa concepção do território Com efeito esse último é inteiramente abs trato só ganha realidade na medida em que impõe uma unidade de estru tura administrativa e política e desse modo define um espaço de dominação em cujo seio se efetuam segundo regras codificadas as trocas sociais e em particular as trocas econômicas Sob esse aspecto o grande construtor nesse 88 História das ideias políticas terreno foi Napoleão Bonaparte general convertido em imperador o qual completa o trabalho de racionalização do território nacional empreendido pela Convenção e pelo Diretório INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA Mathiez A Danton et la paix 1919 A Cochin Les sociétés de pensée et la démocratie Plon 1921 G Lefebvre Les Thermidoriens A Colin 1929 Aspectos dos juízos contemporâneos sobre a Revolução na França Burke J de Maistre Os dois primeiros anos da Revolução foram saudados com entusiasmo pela grande maioria da intelligentsia europeia conquistada para as ideias da Idade das Luzes Todavia se excetuarmos Kant cf supra cap II Fichte cf in fra cap III 2 A e Hegel na Alemanha e o inglês Thomas Paine eleito deputado à Convenção esse entusiasmo não durou muito as vitórias mi litares do exército francês e o Terror provocaram um recuo geral e pouco tempo depois a hostilidade o nacionalismo pregado pela República suscita em ação de retorno reações nacionais das quais a evolução de Fichte é um sugestivo testemunho A atitude de Edmund Burke 172997 se destaca pela sua firmeza Esse membro do Parlamento britânico aristocrata irlandês liberal que defendeu os direitos dos católicos da Irlanda e legitimou a insurreição dos colonos da América publicou já em 1790 suas Reflexões sobre a Revolução na França que condenam o empreendimento revolucionário sem apelação Ele o con dena por ser o fruto da Razão abstrata dos filósofos que só pode engendrar desordem e violência Colocando como objetivo o estabelecimento da liber dade e da igualdade universais os patriotas franceses voltam as costas para a natureza Decerto a ideia de natureza sobre a qual Burke se apoia carece de clareza dela fazem parte tanto considerações teológicas depende da in compreensível Providência Divina como referências empíricas o conhe cimento que os homens têm da natureza é função de suas experiências Mas é precisamente forte o sentimento que temos de que há uma realidade que não depende de nós e que só podemos apreender com referência à tradição lentamente forjada pelos ancestrais e graças às nossas próprias vicissitudes que leva a recusar como ineptos e perigosos os projetos que procedem por decreto e que especulam com uma metafísica da humanidade O EstadoNação Uma Constituição fabricadâ pela reflexão é inoperante o contrato so bre o qual se funda uma organização social sólida e equilibrada instaurouse progressivamente por uma lenta maturação no curso da qual se revelaram os benefícios do bomsenso e da virtude e do uso bem regrado da liberdade Se o povo inglês é hoje um povo livre constata Burke isso ocorre por que ele aprendeu no curso dos séculos a implantar instituições diversifica das que garantem as liberdades compatíveis com a ordem e a obediência em vez de reivindicar a liberdade em geral e porque ele se ligou a pessoas e não a princípios Burke denuncia com vigor as pretensões centralizadoras da Constituinte como a sua vontade de legiferar de uma vez por todas Na opinião dele as regras às quais devemos nos dobrar são as da moral legada pela tradição quanto ao governo não é coisa de que qualquer um possa se ocupar o tempo e a experiência segregam em cada época uma aristocracia que sabe calcular a política conveniente ao bemestar da coletividade Pois o conservadorismo do moralista se alia sem dificuldades aparentes com o sen tido do útil lugarcomum do pensamento britânico desse período Na mesma óptica Jeremias Bentham 17481822 não tardará a elaborar uma teoria da pena e da instituição carcerária a qual como Michel Foucault mostrou cf infra cap X instaura em nome da segurança de todos e do respeito às liberdades privadas de cada um uma técnica de vigilância ge neralizada A despeito dessa sabedoria um tanto ou quanto limitada a obra de Burke testemunha uma visão aguda da falha que seu caráter doutrinário represen tou para a Revolução Francesa Ela explicita uma crítica bem mais pertinente do que a pesada teoria da história providencialista administrada por Joseph de Maistre 17531821 em suas Considerações sobre a França 1796 ou do que as estranhas Considerações sobre as Revoluções 1797 de Chateaubriand 17681848 divididas entre as fidelidades monarquistas de seu autor e a atra ção que sente pela ideia da liberdade Mas já uma outra Europa está em vias de nascer o rumor das botas dos exércitos imperiais despertam os nacionalismos e as dinastias burguesas es tão prestes a substituir as monarquias decadentes 0 NACIONALISMO N A EU RO PA A ideologia nacionalista decerto é bem anterior ao século XIX Mas foi du rante esse período que a Nação passou a ser tomada como tema de análise e de reflexão e que foi erigida em argumento destinado a justificar um tipo de 90 História das ideias políticas poder É difícil distinguir nela o que pertence à concepção política e o que resulta do espírito da época expresso nas obras literárias e nos sentimentos e movimentos populares Os textos que a tomam como objeto pretendendo teorizála são eles mesmos muito disparatados no que se refere aos tipos de provas a que aludem Hyppolite Taine que se quer positivo não é tão meta físico quanto Fichte E a história de Treitschke não é tão romântica quanto a de Michelet As concepções aqui evocadas visam a mostrar a diversidade e a impor tância do tema do nacionalismo que alimenta tanto os partidários quanto os detratores da Revolução tanto os arautos da liberdade quanto os nostálgicos da autoridade tanto os contestatários quanto os conformistas INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Baldensterger F Le mouvement des idées dans lémigration française 17891815 Plon Nourrit 1924 2 vols Burke E Réflexions sur la Révolution en France 1790 Nouvelle Librairie Nationale 1912 ed brasileira Reflexões sobre a Revolução em França Editora Universidade de Brasília Brasília 1982 De Chateaubriand F Essai sur les révolutions 1797 Textos escolhidos in G Dupuis J Georgel J Moreau Politique de Chateaubriand A Colin col U 1966 De Maistre J Considérations sur la France 1796 Vrin 1936 Fichte JG Contribuição à retificação dos juízos do público sobre a Revolução francesa 1793 Philonenko A 1héorie et Praxis dans la pensée morale et politique de Kant et de Fichte Vrin 1968 Uma metafísica da Nação Oohann Gottlieb Fichte Discípulo de Kant em seus primeiros anos de magistério em lena Fichte per maneceu sempre um ardoroso defensor da Revolução Francesa embora num momento subsequente abandonasse os ideais filantrópicos que a ani mavam Ele chega mesmo a ver nos eventos de 1789 a experiência que lhe permitiu compreender o lugar decisivo que o eu livre ocupa na investiga ção filosófica Seu projeto consiste em levar ao mais alto grau de desenvolvi mento a filosofia transcendental de Kant Todavia essa própria exigência o O EstadoNação 91 leva a romper com seu mestre em dois pontos importantes no domínio ético e político Desde as Contribuições destinadas a retificar o julgamento do público so bre a Revolução Francesa 1793 mas sobretudo nos Fundamentos do direito natural 1796 recusa Kant em dois pontos por um lado recusa a separação operada por Kant entre teoria e prática entre a intenção moral liberada de qualquer contaminação empírica e a ação na qual ela se empenha por outro lado considera que o direito é de natureza diversa da moral e que exige um desenvolvimento autônomo Fichte com efeito é sensível ao fato de que a decisão moral pressupõe não somente uma relação intersubjetiva com outras consciências que não são mais concebidas como puros sujeitos abstratos mas também que a ação só tem sentido quando situada em um mundo que lhe resiste e que deve ser organizado segundo regras específicas referentes às necessidades corporais o direito Portanto ele investiga inicialmente as condições em que se pode con ceber uma unidade intersubjetiva suficientemente ampla para que se cons titua um povo e ele reencontra a perspectiva aberta por JJ Rousseau com a noção de vontade gerar no seio da qual cada sujeito em ato é um sujeito para todos os outros A solução que dá a essa questão pertence ao domínio de um pensamento especulativo e apresenta uma grande complexidade A orientação referente ao problema colocado pelo saber jurídico é mais acessí vel a relação intersubjetiva se caracteriza nesse domínio como relação entre vontades livres ela só subsiste na medida em que cada uma delas permanece limitada a si mesma Somente a potência do Estado é capaz de obter essa li mitação e de manter a unidade e isso porque o Estado define a cidadania A partir desse momento a ruptura com o espírito do século XVIII está consumada A cidadania destacada da ideia de propriedade não é mais con siderada como uma decorrência do direito natural E cada vez com maior clareza a referência à intersubjetividade substitui a noção de uma totalidade orgânica de onde emana um querer do qual o Estado é o executante pela noção da sociedade como conjunto de sujeitos autônomos que estabelecem relações racionais entre si Um novo passo nessa direção é dado quando Fichte desejoso de unificar seu país fragmentado em múltiplos poderes e de fazêlo ingressar na modernidade elabora sua teoria do Estado comercial fechado 1800 na qual atribui também a um Estado autoritário a função de organizar a economia a fim de aumentar a força da Nação de eliminar os conflitos entre indivíduos e de estimular a energia alemã A etapa decisiva é franqueada nos Discursos à nação alemã 1807 A afirmação é brutal a língua alemã que é por sua essência filosófica e por 92 História das ideias polfticas tanto capaz de absoluto o passado alemão que viu nascer Lutero ponto terminal do pensamento cristão a cultura alemã a única que sabe pensar a vida em termos de razão atestam que a Alemanha é a Nação por excelên cia a Nação absoluta Ela só foi rebaixada porque se esqueceu do seu Eu A educação filosófica darlheá a energia para voltar a forjála Discurso cir cunstancial A posteridade irá mostrar que na Alemanha mas também em outros lugares irão se repetir circunstâncias semelhantes INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Boucher M Le sentiment national en Allemagne La Colombe 1947 Fichte JG JEtat commercialfermé 1800 LFDJ 1940 Discursos à nação alemã 1807 Machiavel et autres écrits 18061807 apresentados por L Ferry e A Renaut Payot 1981 O nacionalismo e a função da história A Thierry Michelet von Ran ke Já vimos que a filosofia hegeliana da história havia tomado como material de seu percurso o destino dos povos e das nações considerados como figu ras dialeticamente sucessivas do devir do Espírito De maneira inteiramente diversa as austeras meditações de Chateaubriand que pergunta nas Memó rias do alémtúmulo 180941 qual a significação e o alcance de uma vida singular envolvida pelas vias travessas e pelo peso da história e os romances de Stendhal nos quais as opções pessoais são irremediavelmente marcadas pelo jogo da política e das guerras testemunham a presença doravante ine lutável do EstadoNação como força que se impõe aos destinos individuais e coletivos Todavia essa presença se manifesta de um modo ainda mais preciso nas transformações sofridas pela história enquanto disciplina Essa abandona as questões dinásticas e políticas começa a examinar meticulosamente as socie dades a evolução de suas instituições de seus modos de vida os movimentos de população que marcam o devir dessas sociedades abrese para a longa duração Na França os trabalhos de Augustin Thierry os Relatos dos tempos merovíngios 183540 e o Ensaio sobre o Terceiro Estado 185051 esfor çamse no sentido de compreender através do estudo do passado da socie dade francesa o enigma da Revolução e o estatuto contemporâneo da luta O EstadoNação ao mesmo tempo Leopold von Ranke busca descobrir mediante um estudo erudito as raízes mesmas da realidade alemã em sua História da Alemanha no tempo da Reforma 183947 Tudo se passa como se o EstadoNação quisesse se sentir seguro de si reencontrando seu passado próximo ou distante restaurado através de métodos críticos que garantam um conhecimento objetivo Sob esse aspecto a obra de Jules Michelet 17981874 é exemplar Sua monumental História da França 183346 185567 e sua História da Revolução Francesa 184753 baseadas numa informação prodigiosamente rica e empregando um poderoso estilo visam a fazer reviver no presente a complexidade viva do passado Instituições costumes heróis modos de vida imaginações coletivas revivem nessas páginas que têm como sujeito¹ no sentido forte a nação francesa enquanto algo que se forjou através de múltiplas provas Perspectiva romântica Certamente mas também e sobretudo vontade forte de povoar o território abstrato do Estado com uma vida fervilhante sem nada ocultar das fraquezas dos erros e dos infortúnios que o marcaram Doravante a história tornouse uma questão da Nação a historicidade passa a ser uma dimensão da consciência coletiva O conhecimento do passado nacional aparece como um meio de confirmar a unidade da comunidade reunida sob a autoridade de um mesmo Estado E ao mesmo tempo em que se afirma a objetividade desse conhecimento criamse já novos mitos instrumentos de potência 94 História das ideias políticas zini 180572 por exemplo que era um combatente pela unidade da Itália liberta do jugo austríaco concebe essa luta em A Santa Aliança dos Povos 1849 como uma primeira etapa no sentido da fraternidade universal dos povos da Europa É esse mesmo sentimento no qual intervêm frequente mente considerações religiosas e sociais que guia os patriotas poloneses e húngaros os movimentos eslavos que rejeitam ao mesmo tempo a submis são aos Habsburgos ou à Sublime Porta e a tutela do tzar e de modo mais geral todos os que se inspiram nas Declarações de 1787 e 1789 e no princípio da soberania nacional entendida como soberania do povo Todavia os eventos europeus dos anos 184849 o fracasso das revolu ções democrática e nacionalitárias confirmam o duplo conflito que ameaça o equilíbrio europeu fundado na Santa Aliança dos Estados conflito interno nos países avançados nascido do desenvolvimento da ordem industrial e das reivindicações de uma numerosa classe operária miserável porém cada vez mais consciente de sua força e cujos pontos de vista internacionalistas se afirmam e conflito entre os Estados mais poderosos envolvidos em crises econômicas que inevitavelmente os opõem uns aos outros Acrescentamse a isso os riscos de guerra constituídos pelos empreendimentos de liberta ção efetuados pelas nações europeias ainda mantidas em estado de depen dência Essa situação favorece o desenvolvimento em particular na França mas também na Alemanha e no Reino Unido de um outro tipo de nacio nalismo que apela para os valores da tradição a família a terra os ances trais e da moral do sacrifício da renúncia e da obediência para conservar o que existe e para denunciar a anarquia que resultaria de qualquer mudança que não fosse cuidadosamente controlada Esse nacionalismo é reacionário no sentido etimológico e na França deplora o infeliz episódio da Revolução que interrompeu o curso normal da evolução Essa exaltação da Nação como substância da vida coletiva inscrevese facilmente na corrente de pensamento positivista e evolucionista dominante nessa segunda metade do século XIX tal corrente apela para a Razão e para as virtudes clássicas desconfiando do romantismo que conduziria a exces sos O representante francês mais típico desse estado de espírito é Hyppolite Taine 182893 Sua análise das Origens da França contemporânea 187593 pretende estar a serviço da ciência considera os atos dos homens como pro dutos de um estrito determinismo Taine felicita um crítico por ter compre endido que sua história é de fato uma psicologia dos agentes da história e especifica que a investigação psicológica se reduz por seu turno a uma investigação fisiológica e química O EstadoNação 95 Se o determinismo que regula as questões humanas não é aparente isso ocorre porque as causas que nelas interferem são complexas Todavia é pos sível distribuílas em três elementos a raça ou seja o conjunto de caracteres biológicos transmitidos heredita riamente o meio as tradições as crenças os hábitos mentais as instituições que mo delam os indivíduos o momento isto é o conjunto das circunstâncias que desencadeiam a ação Munido desse método Taine explica no sentido estrito do termo a Revolução como produto de agitadores de cérebro doentio no mesmo espí rito erige em leis deduções abstratas operadas a partir de coleta de exemplos e estabelece entre outras coisas que existem caracteres nacionais Dessa psi cologia histórica determinista ele retira ensinamentos políticos o primeiro e mais seguro é que o governo é um problema de saber e que é preciso estabe lecer um sistema que permita às elites competentes calcular boas decisões e implantar uma educação da população que a previna contra a tirania de um só e contra a tirania de todos É essa mesma preocupação do cálculo adap tado às circunstâncias que lhe faz temer a potência centralizadora do Estado o sufrágio universal e a espontaneidade popular Com Taine a Nação se imobiliza numa rede de determinações O im portante então é prevenirse contra a demêncià que viria perturbar essa rede de causas e efeitos Inteiramente oposta é a atitude desse outro mestre da República conservadora que foi Ernest Renan 182392 ensaísta eclé tico tanto no que se refere aos objetos quanto aos modos de argumentação historiador de bela erudição mentor algumas vezes solene Renan ama os matizes e não se recusa a modificar seus pontos de vista Todavia tem em comum com Taine a ideia de que doravante a ciência positiva tomou o lu gar outrora ocupado pela religião e é ela que ilumina a moral Renan tam bém compartilha com Taine uma profunda aversão pela massa e por todas as políticas que apelam para a democracia direta Como Taine Renan teme a decadência da França cuja derrota de 1870 seria um sintoma e pede o seu reerguimento Nessa perspectiva sua pregação moral se organiza em torno do tema A Nação como princípio espiritual discurso de 1882 como alma do território cuja sobrevivência e expansão devem ser o objetivo de todas as vontades Uma outra imagem da pátria portanto delineiase aqui uma imagem que irá encantar a direita de Barres a Maurras e aos herdeiros da Action História das ideias políticas Française Essa direita se considera por sua cultura origens e opções como uma elite depositária da essência superior da Nação ela é xenófoba e radicalmente antidemocrática condenando num mesmo opróbrio o bárbaro estrangeiro e o povo ignorante O caso Dreyfus 189495 irá permitir que ela se afirme como racista INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Girardet R Le nationalisme français 18711914 A Colin col u 1966 Renan E Oeuvres completes CalmannLévy 1947 Taine H Les origines de la France contemporaine 18751893 extratos Hachette 1947 As doutrinas da expansão nacional e o im perialismo De qualquer modo direita centro e esquerda logo irão convergir na França em apoio ao empreendimento colonial conduzido em nome dos direitos e dos deveres de uma Nação que deu provas de virtudes civilizadoras e cada partido reservase a possibilidade de administrar essas provas à sua maneira É verdade que a rival britânica já havia amplamente aberto o caminho nesse domínio A expansão comercial inglesa já se desenvolvera amplamente depois de 1815 mas permanecia em seu conjunto um problema que envolvia as companhias privadas Os governos liberais tinham por princípio não in tervir alémmar a não ser em caso de absoluta necessidade Desde a segunda metade do século essa necessidade tornouse paulatinamente uma lei em torno do tema da salvaguarda das livres comunicações marítimas instalou se progressivamente ao mesmo tempo que uma prática intervencionista uma ideologia da grandeza nacional O tema tradicional da livre expansão comercial transformase em dever nacional e o primeiroministro conser vador Disraeli teve o mérito de dar nome ao seu objetivo a constituição de um Império colonial Nenhuma concepção política no sentido estrito é constituída com o fim de legitimar tal política Mas o pensamento inglês sofre uma transfor mação significativa contra o empirismo e o utilitarismo surgem doutri nários o mais típico dos quais é certamente Thomas Carlyle 17951881 Carlyle exalta os heróis que fizeram a história insiste nos benefícios da O EstadoNação 97 autoridade e da virtude condena o gosto pela facilidade e busca do lucro e desenvolve um idealismo moralizante e profético Por trás dessa pregação manifestase o desejo de um Estado forte de um exército heroico e con quistador e de uma Nação inteiramente devotada à grandeza de sua missão civilizadora Honra e interesse os personagens dos romances de Rudyard Kipling 18651936 irão ilustrar essa máxima Do outro lado do Atlântico à imagem do colonizador que leva o fardo do homem branco corresponde a mitolo gia norteamericana da fronteirà fronteira da civilização incessantemente empurrada para o Oeste por valorosos desbravadores apóstolos a seu modo dos direitos do homem da exploração mineral da agricultura e da carabina Winchester Os pioneiros do faroeste aplicam espontaneamente uma teoria do espaço vital Ora no continente europeu essa teoria irá receber um de senvolvimento repleto de consequências No momento em que Bismarck se vale de tudo para forjar o Segundo Reich reconstituindo a unidade nacional da Alemanha historiadores como H von Treitschke economistas como Friedrich List e artistas elaboram recordando o Sacro Império e os cavaleiros teutônicos uma concepção do Povo e do Estado alemães abertamente racista A metafísica fichtiana desce à terra marcada com um sinal oposto ao que tivera no início do sé culo Pois dessa feita tratase de conquistar para assegurar à raça superior os territórios adequados à sua superioridade No final do século respecti vamente em 1897 e em 1899 aparecem duas obras que sistematizam esse espírito a Geografia política de Friedrich Ratzel 18441904 que se empe nha em dar um fundamento objetivo à política expansionista alemã e os Fundamentos do século XIX de Houston Stewart Chamberlain 18551927 que argumenta no sentido de provar que a raça alemã liberta de suas es córias e das influências latinas eslavas e judaicas que a pervertem possui uma preeminência natural que deve lhe permitir realizar em todos os do mínios os ideais da humanidade O nacionalismo tornouse um elemento constitutivo da potência do Estado Os temas que ele implica unidade do território unidade do povo unidade da vontade etc induzem facilmente a uma retórica que é assumida pelos governos autoritários Todavia desde o bili de 1689 o Estado moderno afirmou sua vontade de defender o princípio das liberdades Convém exami nar como a concepção liberal do poder em conflito ou em cumplicidade com os nacionalismos realiza e legitima esse princípio História das ideias políticas INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA Andler C Les origines du pangermanisme 18001888 Couard 1915 Le pangermanisme philosophique 18001814 ibid 1917 Elie Halévy Histoire du peuple anglais Les im périalistes au pouvoir 18951905 Hachette 1926 R Delavignette ChA Julien Les constructeurs de la France doutremer Corréa 1945 R Girardet Eidée coloniale en France de 1871 à 1962 La Table Ronde 1972 0 LI B ERALISMO PO LÍTICO No século XIX o EstadoNação se constitui mais ou menos por toda parte na ordem interna como Estado liberal o liberalismo político é sua filosofia dominante As concepções liberais dominantes pretendem resolver princi palmente a questão políticà entendida essencialmente como o problema das relações entre o indivíduo e o Estado Qualquer que seja a diversidade dessas doutrinas de acordo com a época o país as tendências numa mesma época e num mesmo país cf Jean Touchard Histoire des idées politiques 2 PUF 1959 podese perceber a presença de uma dupla preocupação essen cial o indivíduo deve ser protegido ao mesmo tempo contra o Estado e contra as massas por conseguinte é preciso encontrar os mecanismos insti tucionais destinados a impedir esse duplo perigo Podemse distinguir grosso modo dois tipos de solução Uma versão mais ou menos otimista considera que a aplicação de certas receitas insti tucionais pode subtrair o indivíduo do despotismo enfraquecendo a autori dade do Estado e impedindo o advento da democracia de massa para tomar mos o exemplo mais significativo é o caso da solução buscada por Benjamin Constant 17671830 A outra versão nitidamente mais pessimista considera o advento democrático como inelutável e tenta preconizar métodos destina dos não a impedir mas a evitar o excesso de despotismo que um tal advento corre o risco de promover coube a Alexis de Tocqueville 180559 decerto ilustrar do modo mais exemplar essa segunda versão Benjamin Constant o liberalismo contra a democracia É impossível afirmar de modo mais preciso que o indivíduo é o princípio primeiro e que é preciso defendêlo duplamente O EstadoNação 99 Defendi durante quarenta anos o mesmo princípio liberdade em tudo na re ligião na literatura na filosofia na indústria na política e por liberdade en tendo o triunfo da individualidade tanto sobre a autoridade que pretendesse governar pelo despotismo quanto sobre as massas que reclamam o direito de subjugar a minoria Mélanges 1829 A sociedade política não tem como fim a igualdade essa se combina com uma concepção arcaica da liberdade legítima para os antigos mas inútil e perigosa para os modernos iludidos pela eterna metafísica do Contrato social Pois a liberdade para um antigo consistia em exercer coletivamente mas de modo direto várias partes da soberania inteira em deliberar na praça pública sobre a guerra e a paz em firmar tratados de aliança com os estrangeiros em votar leis em pronunciar sentenças em exami nar as contas os atos a gestão dos magistrados Mas ao mesmo tempo em que era isso que os antigos chamavam de liberdade admitiam como compatível com essa liberdade coletiva a completa sujeição do indivíduo à autoridade do conjunto de modo que entre os antigos o indivíduo quase sempre sobe rano nas questões públicas é escravo em todas as suas relações privadas Sobre a liberdade dos antigos em comparação com a dos modernos 1819 Os modernos só podem sentir aversão por essa concepção já que para um moderno ser livre é para cada um o direito de ser submetido apenas às leis de não poder ser nem preso nem morto nem maltratado de nenhum modo em decorrência da vontade arbitrária de um ou mais indivíduos É o direito que tem cada um de emitir sua opinião de escolher sua indústria e de exercêla de dispor da pro priedade inclusive de abusar da mesma de ir e vir sem para isso obter permis são e sem prestar contas de seus motivos ou movimentos É o direito que tem cada um de se reunir a outros indivíduos seja para discutir seus interesses seja para professorar o culto que ele e seus associados preferirem seja simplesmente para passar seus dias e horas do modo mais conforme a suas inclinações e fan tasias Finalmente é o direito que cada um tem de influir na administração do governo seja pela nomeação de todos ou de alguns funcionários seja mediante representações demandas que a autoridade é mais ou menos obrigada a levar em consideração ibid 100 História das ideias políticas Benjamin Constant insiste nessa oposição decisiva O objetivo dos antigos era a partilha do poder social entre todos os cida dãos de uma mesma pátria Era isso que eles chamavam de liberdade O objetivo dos modernos é a segurança nas fruições privadas e eles chamam de liberdade as garantias concedidas pelas instituições a essas fruições Desse modo a questão política moderna é colocada menos em termos de legitimidade do que em termos de exercício da autoridade O povo é so berano Sim se se quer concorda Constant como uma cláusula de estilo Pouco importa ao indivíduo que se afirme que a soberania é popular mo nárquica ou de outro tipo De fato entre os modernos o indivíduo indepen dente em sua vida privada mesmo nos Estados mais livres só é soberano aparentemente E essa aparência lhe basta desde que a autoridade do Estado seja limitada Popular ou não a única soberania legítima é uma soberania limitada pois nenhuma autoridade sobre a terra é ilimitadà pois os cida dãos possuem direitos individuais independentes de qualquer autoridade so cial ou política e toda autoridade que viola esses direitos tornase ilegítima É Locke contra Rousseau cujo Contrato Social é o mais terrível auxiliar de todos os gêneros de despotismo ele ignora que no ponto onde começam a independência e a existência individual para a jurisdição da soberanià e que o assentimento da maioria não basta absolutamente em todos os casos para legitimar os seus atos O triunfo da individualidade marcha paralelamente ao enfraquecimento da autoridade estatal exercida em todos os domínios com reserva Os pro gressos da civilização as mudanças operadas pelos séculos impõem à auto ridade um respeito cada vez maior pelos hábitos pelas afeições pela inde pendência dos indivíduos Ela deve pôr sobre todos esses objetos uma mão mais prudente e mais leve No domínio econômico e social assim como nos demais Benjamin Constant se bate pela liberdade de imprensa com ardor os censores estão para o pensamento como os espiões para a inocêncià e reclama a tolerância em matéria de religião a religião é como os grandes caminhos gostaria que o Estado os mantivesse contanto que deixasse a cada um o direito de preferir os atalhos Será preciso encontrar ainda um sistema que permita combinar essas características da liberdade com as da soberania popular O melhor sis tema aquele em que repousa a confiança de Constant é o sistema represen tativo O EstadoNação 101 O sistema representativo não é mais do que uma organização com cuja ajuda uma nação encarrega alguns indivíduos de fazer o que ela mesma não quer fazer Os indivíduos pobres cuidam eles próprios de seus problemas os ricos contratam intendentes Temos aqui a história das nações antigas e das nações modernas Sistema que evidentemente não implica nenhum mandato imperativo mas que repousa numa procuração dada em branco a um certo número de homens pela massa do povo que deseja que seus interesses sejam de fendidos mas que não tem o tempo de defendêlos diretamente já que suas fruições privadas têm mais valor para ela Um tal sistema implica logicamente aos olhos de Benjamin Constant a condenação de qualquer forma de sufrágio universal o sufrágio deve ser restrito Prolongando as considerações de Sieyes Benjamin Constant desen volve uma ingênua astúcia a condição necessária para o exercício político é o lazer pois esse lazer é indispensável para a aquisição das luzes Ora é evidente que só a propriedade assegura esse lazer somente a propriedade torna os homens capazes do exercício dos direitos políticos O fato de que Saber e Poder se deem as mãos leva a que a questão política por si mesma apague a questão social Não quero cometer nenhuma injustiça contra a classe laboriosa Mas as pessoas que a indigência conserva numa eterna dependência e que condena a trabalhos diários não são nem mais esclarecidas do que as crianças nem mais interessadas do que os estrangeiros numa prosperidade nacional da qual eles não conhecem os elementos e da qual só indiretamente partilham as vantagens Portanto seria absurdo conferirlhes direitos políticos que servirão infalivel mente para invadir a propriedade Elas marcharão por esse caminho irregular em vez de seguirem a rota natural o trabalho seria para elas uma espécie de corrupção e para o Estado uma desordem Resta assegurar a distribuição de poderes no vértice Benjamin Cons tant segue Montesquieu mas acrescenta uma contribuição original o poder do rei não tem por que governar os ministros poder ativo encarregamse disso O monarca constitucional é um poder neutro garantia dos limites da soberania Com efeito o príncipe é um ser à parte superior às diversidades de opinião que só tem como interesse a manutenção da ordem e a manutenção da liberdade e que não pode jamais 102 História das ideias políticas entrar na condição comum inacessível por conseguinte a todas as paixões que essa condição faz nascer e a todas aquelas que a perspectiva de nela se en contrar alimenta incessantemente no caso dos agentes investidos de um poder momentâneo INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Constant B De lesprit de conquéte et dusurpation 1814 Principes de politique 1815 Réflexions sur les constitutions et les garanties 181418 De la responsabilité des minis tres 181418 De la liberté des anciens comparée à celle des modernes 1815 De la liberté chez les modernes textos escolhidos e apresentados por Marcel Gauchet Pluriel Poche 1980 Alexis de Tocq ueville a democracia liberal Tocqueville descobriu a democracia na América Talvez resida nisso a origem da extraordinária perspicácia de suas análises mas também a causa de suas limitações A interpretação de sua obra de resto põe um certo número de dificuldades metodológicas bem evidenciadas por Ray mond Aron cf em particular Les étapes de la pensée sociologique Galli mard 1967 Com efeito se combinarmos certos capítulos de Da democracia na América onde Tocqueville traça o retrato de uma sociedade particular a sociedade americana e de O antigo regime e a Revolução onde ele tenta analisar uma crise histórica a Revolução Francesa podese perceber que ele se dedica à constituição de um tipo a sociedade democrática a partir do qual são deduzidas as tendências possíveis da sociedade futura Mas dado que certos traços estruturais da sociedade democrática podem ser ligados às particularidades da sociedade americana enquanto outros são extraídos da essência de qualquer sociedade democrática subsiste uma in certeza quanto ao grau de generalidade das respostas dadas por Tocque ville as quais parecem ser ora da ordem da tendência ora da ordem da alternativa Quando Tocqueville opta nitidamente pela alternativa então teremos ou que a sociedade democrática será despótica ou que ela será liberal o modelo americano que o inspira impedeo certamente de ima ginar o frágil mas original modo de desenvolvimento democrático que é próprio das sociedades europeias O EstadoNação 103 De qualquer modo a superioridade de Tocqueville sobre Benjamin Constant e sobre o conjunto dos liberais de seu tempo consiste em que ele põe como inelutável e irreversível o próprio fato democrático Uma grande revolução democrática se opera entre nós todos a veem mas nem todos a julgam do mesmo modo Uns a consideram como coisa nova e a tomam por um acidente têm esperança de poder ainda detêla Já outros a consideram irresistível porque ela lhes parece ser o fato mais contínuo mais antigo e mais permanente que se conhece na história Da democracia na América Mas é preciso especificar imediatamente que para Tocqueville e nisso reside sua plena originalidade esse fato democrático é definido a partir da noção de igualdade O desenvolvimento gradual da igualdade das condições portanto é um fato providencial cujas principais características são é universal duradouro escapa a cada dia do poder humano Todos os eventos assim como todos os homens servem a seu desenvolvimento Nos Estados Unidos esse desenvolvimento da igualdade de condições é associado aos mecanismos da liberdade política Assim por exemplo os americanos conseguiram estabelecer as instituições concretas da soberania popular que nenhuma aristocracia tentou frear Decerto inicialmente esco lheuse no mais das vezes um regime eleitoral censitário mas ao contrário de Benjamin Constant Tocqueville vê em tal regime tão somente uma etapa para a soberania popular Quando um povo começa a tocar no censo elei toral podese prever que ele chegará num prazo mais ou menos longo a eliminálo completamente Tratase de uma das regras mais invariáveis que regulam as sociedades Mas o importante é que a soberania popular apa rece como uma instituição concreta e não como na Europa como uma pe rigosa ficção A vontade nacional é uma das palavras de que os intrigantes de todos os tem pos e os déspotas de todas as épocas mais amplamente abusaram Uns viram sua expressão nos sufrágios acabados de alguns agentes do poder outros nos votos de uma minoria interessada ou temerosa há mesmo quem a descobriu inteiramente formulada no silêncio dos povos e pensou assim que do fato da obediência nascesse para eles o direito de comando 104 História das ideias políticas Às instituições concretas da soberania popular os americanos acrescen tam uma outra vantagem a de uma Constituição federal que permite com binar os méritos das grandes e das pequenas nações J União é livre e feliz como uma pequena nação gloriosa e forte como uma grande Tocqueville insiste também nas consequências positivas de uma liber dade de associação ilimitada tanto política como civil A primeira vez que ouvi dizer nos Estados Unidos que cem mil homens se haviam comprometido publicamente a não beber licores fortes a coisa me pa receu mais divertida do que séria e não vi bem num primeiro momento por que esses cidadãos tão temperantes não se contentavam em beber água no seio de suas famílias Terminei por compreender que eles haviam agido preci samente como um grande senhor que se vestisse muito humildemente com o objetivo de inspirar nos cidadãos simples o desprezo pelo luxo Ora nos países democráticos as associações são capazes de frear os efeitos funestos da igualdade de condições sem tentar contrariar o desenvol vimento dessa igualdade São as associações que entre os povos democráticos devem assumir o lugar dos particulares poderosos que a igualdade de condições fez desaparecer E Tocqueville enumera e analisa vários traços próprios às instituições e aos costumes americanos que lhe parecem se orientar todos nesse mesmo sentido associar combinar igualdade de condições com liberdade Se o desenvolvimento da democracia na Europa não atingiu o mesmo estágio nem por isso deixa de ser menos inelutável E Tocqueville busca suas causas principalmente para a França na história do Antigo Regime e da Re volução Se o fato democrático desenvolvese nesse país de modo convulsio nado e contraditório é preciso ver nisso principalmente o efeito da centrali zação administrativa e da divisão das classes que levaram ao estabelecimento de instituições incapazes dessa combinação entre liberdade e igualdade Ao promover o processo da Revolução na Europa Tocqueville apresenta uma impiedosa diatribe contra a monarquia do Antigo Regime Assim a centralização que se cobre com as cores da Revolução é em primeiro lugar uma obra do Antigo Regime Com extraordinária acuidade Tocqueville des creve os mecanismos da tutela administrativa se a insolência da palavra não havia ainda sido produzida tinhase pelo menos a coisà da justiça ad ministrativa que impunha a garantia dos funcionários graças ao poder dos O EstadoNação 105 Conselhos do Rei da centralização urbana e insiste no nascimento dessa formidável burocracia por intermédio dos intendentes Em suma se a centralização não pereceu absolutamente com a Revolução foi porque era ela mesma o começo da Revolução e o seu signo Acrescentase a isso o fato de que a aristocracia europeia nada compre endeu da inelutabilidade do fato democrático e tentou oporse a ele consti tuindose em castà zelosa de seus privilégios e capaz somente de aumentar a irritação das outras classes compostas por sua vez de grupos corporativos separados e fechados em si mesmos Assistiase observa Tocqueville a uma espécie de individualismo coletivo que preparava as almas para o verda deiro individualismo que conhecemos e finalmente a divisão das classes foi o crime do antigo reinado e tornouse mais tarde a sua desculpa A Revolução não fez mais do que acentuar essa combinação importada do Antigo Regime entre a democracia e a ausência de liberdade política ge neralizandoa para o conjunto dos costumes de modo que a democracia se é nos Estados Unidos um regime de liberdade é na Europa um regime de servidão Para além dessa constatação Tocqueville evita combater o fato demo crático europeu Aqui como em outros lugares querer parar a democracia é algo semelhante a lutar contra o próprio Deus Ao contrário é preciso tentar instruir a democracià é preciso uma ciência nova para um mundo inteira mente novo Da democracia na América Fenômeno inelutável a igualdade das condições faz com que se corram perigos igualmente inelutáveis Mas não creio que sejam insuperáveis afir ma Tocqueville já que as nações de nossos dias não podem fazer com que as condições não sejam iguais em seu seio mas depende delas que a igualdade as conduza à servidão ou à liberdade às luzes ou à barbárie à prosperidade ou à miséria Na realidade e independentemente do que se possa dizer o otimismo de Tocqueville é muito moderado Os remédios que propõe a seus contem porâneos para que se orientem no sentido de uma democracia liberal são extraídos da experiência americana Assim ele insiste particularmente na necessidade de desenvolver um poder judiciário forte e independente de suscitar a constituição de associações diversas ou ainda e sobretudo de bus car todos os meios para obter uma centralização eficaz 106 História das ideias políticas É no município que reside a força dos povos livres As instituições municipais são para a liberdade o que as escolas primárias são para a ciência Sem ins tituições municipais uma nação pode se dar um governo livre mas não possui o espírito da liberdade A lição para os tempos modernos parece insuperável E eu digo que para combater os males que a igualdade pode produzir há ape nas um remédio eficaz é a liberdade política Todavia e nisso reside ao mesmo tempo a ambiguidade e a riqueza de toda a análise de Tocqueville parece que são as próprias condições de desenvolvimento da igualdade que contribuem para destruir as condições da liberdade política Lendoo ficase ainda mais convencido de que a demo cracia será despótica Individualismo e materialismo caracterizam a sociedade democrática moderna e preparam o leito para o poder despótico A centralização não faz mais do que aumentar e a Revolução Industrial leva o intervencionismo estatal a se expandir Também aqui os pontos de vista de Tocqueville são mais lúcidos e mais pessimistas do que os de Constant a propriedade in dustrial dá à luz uma classe que tem necessidade mais do que as outras de ser vigiada regulamentada contidà e por conseguinte é inevitável que as atribuições do governo cresçam com elà a indústria traz o des potismo em seu seio e esse se amplia naturalmente à medida que ela se desenvolve O intervencionismo econômico não basta O Estado é levado a se ocupar da caridade e da religião cujo pessoal é por ele pago cujos pa dres são por ele mantidos ele os controla não somente do ponto de vista da organização mas como o domínio do temporal é por vezes difícil de ser distinguido do espiritual o Estado chega a se imiscuir no dogma e desse modo controla a alma de cada homem até no seu elemento mais profundo À medida que as condições se equalizam os indivíduos parecem meno res e a sociedade maior A unidade a ubiquidade a onipotência do poder social a uniformidade de suas regras formam o traço saliente que caracteriza todos os sistemas políticos gerados em nossos dias E a democracia pode evitar o despotismo em medida ainda menor por que o fato igualitário é também o resultado de uma paixão ardente insaciá vel Doravante os povos democráticos querem a igualdade na liberdade e se não podem obtêla queremna até mesmo no escravidão Padecerão a pobreza a servidão a barbárie mas não padecerá a aristocracia Tocqueville expõe com a maior sutileza os dados de uma aliança conflictual entre liberdade e igualdade Eles haviam querido ser livres para poderem se fazer iguais e à medida que a igualdade se estabelecia melhor com a ajuda da liberdade tornavalhes a liberdade mais difícil Quais são as possibilidades de escapar desse dilema histórico CAPÍTULO IV O EstadoSociedade O fortalecimento do EstadoNação ao longo de todo o século XIX não le vanta apenas questões de ordem institucional e governamental Ao mesmo tempo em que se afirmava essa forma política que implica como princípio a separação em diferentes graus entre as instâncias de poder e a sociedade civil essa sociedade coloca graças a seu desenvolvimento autônomo pro blemas graves para aquelas instâncias suscitando projetos que vão ao ponto de contestar a utilidade ou a necessidade do Estado Em outras palavras a questão social a questão da justiça distributiva da repartição das riquezas e por conseguinte de sua produção tornase cada vez mais diretamente uma questão política Mas não se trata somente como o concebe Adam Smith cf supra cap II de determinar o tipo de poder que permite o livre florescimento do eco nômico cedo se manifestam perspectivas nas quais se tenta conjugar a or dem econômica com a ordem política subordinando a segunda à primeira Pois essa sofreu profundas transformações constituiuse uma nova elite as relações sociais se modificaram no ritmo em que se estendiam a indústria e as trocas comerciais uma numerosa classe social o proletariado urbano se formou vivendo em condições frequentemente miseráveis sofrendo a arregimentação das fábricas tornandose cada vez mais consciente da ex ploração de que é vítima e por conseguinte grávida de revoltas que põem em questão a paz civil A própria ciência econômica perdeu o otimismo que a animava com Sismondi por exemplo ela denuncia os malefícios da in dustrialização e os perigos das crises de superprodução Novos princípios de economia política 1819 E se é assim não será o caso de tentar pensar o problema da organi zação social a partir da própria sociedade Não será conveniente já que essa sociedade mudou de ponta a ponta tentar construir o poder que cor responde a essa mudança Essa orientação espiritual suscitou quatro tipos de concepção muito diferentes no que se refere às suas consequências po 108 A ciência como instrumento e a natureza como modelo da ordem social Na GrãBretanha e na França os dois primeiros países a conhecer os efeitos da industrialização a referência à ciência experimental e à leitura que esta apresenta da natureza física e biológica ocupa um lugar importante na reflexão política desde o início do século XIX As pesquisas de Jeremias Bentham 17481832 de John Stuart Mill 180673 e de Herbert Spencer 18201903 características da tradição empirista inglesa têm em comum com o dogma industrialista de ClaudeHenri de SaintSimon 17601825 e com a filosofia da história de Auguste Comte 17981857 o fato de se inscreverem na perspectiva definida por Condorcet em seu Esboço de um quadro dos progressos do espírito humano obra póstuma publicada em 1797 O progresso é a lei da história da humanidade essa por adquirir mais conhecimentos e aperfeiçoar seus meios técnicos adquire também mais riquezas e serenidade e por consequência maior felicidade e segurança A felicidade e a segurança devidas à extensão das luzes noções descobertas pelo século XVIII com muita hesitação e dúvida irão se tornar lugarescomuns no século seguinte A crença na eficácia das ciências da natureza e de uma possível ciência da sociedade reforça tais ideias e lhes oferece uma legitimidade 110 História das ideias políticas Todavia as implicações políticas extraídas dessa crença comum não são da mesma natureza Para os pensadores ingleses os saberes científicos fun dados na observação e na experimentação são úteis na medida em que por um lado fornecem aos governantes conhecimentos que lhes permitem pôr em operação técnicas eficazes de controle e de gestão e por outro em que dão à política que praticam uma visão realista do dado social A referência à ciência aparece como um auxiliar da ação política Muito mais peremptória é a concepção de Auguste Comte a política positiva define uma arte e uma visão da humanidade que devem substituir a política e a religião JS Mill e Spencer continuam liberais Comte pretende se situar bem além As metamorfoses d o utilitarismo d e Bentham a Stuart Mill Na configuração do pensamento político inglês do fim do século XVIII Je remias Bentham ocupa um lugar singular Ele serve de certo modo como ponte entre o sensualismo característico do fim da Época das Luzes e as pers pectivas utilitaristas ligadas ao desenvolvimento do mundo industrial Sua famosa invenção no domínio da moral é o cálculo dos prazeres a oportunidade de um ato é função de uma apreciação quantitativa que po nha no lado positivo o grau de intensidade do prazer que deve resultar do mesmo e no lado negativo o desprazer Essa apreciação é evidentemente o produto de um sujeito que imagina em função de sua experiência os afetos que vai receber Todavia no interior dessa aritmética subjetiva introduzse a dimensão social O indivíduo social por natureza deve igualmente levar em conta um coeficiente de sociabilidade Assim por aproximação instituise uma concepção da felicidade coletiva fundada na integração das felicidades individuais compreendidas como satisfação das necessidades A Introdução aos princípios de moral e de legislação 1789 propõe assim uma espécie de re pública democrática e filantrópica no seio da qual a eficiência e a felicidade de todos são o produto de instituições que têm como tarefa medir e prever a conduta de cada um É assim que Jeremias Bentham elabora no quadro de um saber sobre a instituição carcerária uma teoria geral das prisões nas quais o detido posto constantemente sob o olhar do guardião e submetido a um adestra mento corporal minucioso será levado a se emendar ou seja a reconhecer que lhe é útil conformarse com a norma da felicidade coletiva Desse modo encontrase definida uma regra geral de governo da sociedade por si mesma a qual em nome da utilidade comum instaura um controle que se aplica O EstadoSociedade 111 inicialmente aos delinquentes e se estende depois no curso do século aos hospitais aos campos de formação militar e às instituições educacionais O princípio da felicidade exige uma regulamentação e uma vigilância univer sais que construções e um urbanismo bem adaptado tornam mais fáceis O liberalismo transformase aqui em seu contrário É o que John Stuart Mill vê com clareza Embora formado na óptica utilitarista mais estrita ele se afasta progressivamente dela constata por um lado que a sociedade indus trial não cumpre suas promessas e que as leis de harmonização automática da economia são errôneas e por outro lado vê que a autorregulação da so ciedade que cria suas instituições a fim de normalizar a felicidade é algo pe rigoso Diante do fato de que as crises econômicas se tornam cada vez mais ameaçadoras e a miséria operária algo esmagador ele contesta o princípio do laisserfaire de Richard Cobden e da Escola de Manchester Ele teme também que o liberalismo político levado até suas consequências extremas conduza a uma tirania da mediocridade e que a dependência do governo diante de uma sociedade submetida aos cálculos de utilidade termine por comprometer as possibilidades da liberdade Assim advoga uma sociedade na qual as máximas oportunidades seriam dadas aos indivíduos e onde seria possível formar incessantemente novas elites Na opinião dele somente sob essa última condição é que a sociedade pode ser livre e o governo verdadeiramente liberal Em Considerações sobre o governo representativo 186061 e no Ensaio sobre a liberdade 1859 ele indica as disposições que devem ser adotadas a fim de que seja conjurado o perigo de uma sociedade subjugada à sua própria norma uma disseminação das instâncias de governo que seja compatível com a eficiência do poder e a distinção entre controle das decisões garantida pelo Parlamento que repre senta a sociedade e a função legislativa que por sua vez deve ser função de uma instância especializada Com efeito a posição de JS Mill deve ser compreendida como um utili tarismo que a exigência da liberdade tempera com elementos éticos que visam a restabelecer os princípios do Estado de direito Nem o positivismo de Au guste Comte nem o evolucionismo de Herbert Spencer têm tais escrúpulos INDICAÇÕ ES BIBLIOG RÁFICAS Bentham J Fragmento sobre o governo 1776 Introdução aos princípios de moral e de legislação 1789 ed brasileira in Os Pensadores Abril Cultural São Paulo 1974 volXXXIV p174 Chevallier JJ Le pouvoir de lidée dutilité chez les utilitaires anglais in Le pouvoir col PUF 1956 O EstadoSociedade 113 secretário de SaintSimon dotado de um conhecimento enciclopédico in cansável propagandista da fé na ciência escolheu como tema de sua investi gação a humanidade Defensor apaixonado do progresso através da ciência e de suas aplicações técnicas ou seja da indústria ele não teme nada mais do que a desordem e a anarquia que nascem do individualismo e do desconhe cimento dos gloriosos objetivos do Homem Ele se atribui como missão missão que o levará à beira da loucura realizar através do ensinamento a unificação do projeto humano Ele crê na necessidade de uma estrita divisão do trabalho e de uma estável hierarquia de competências os que sabem elaboram os conhecimentos relativos à natureza física e à natureza social os publicistas difundem e vulgarizam os planos os governantes os executam e a massa obedece para seu maior proveito Pois é incontestável na opinião de Comte que eventos como a Revolução Francesa resultam de uma perda do sentido da sociabilidade e da vergonha pelos indivíduos A individualidade só vale na medida em que está integrada na sociedade e isso por meio dessas correias indispensáveis que são a família cadinho da formação moral e a pátria que ensina a solidariedade Até aqui a política tem sido frequentemente um campo de paixões e de interesses É preciso darlhe uma base científica ou mais exatamente é preciso substituíla por um saber que defina técnicas de gestão coletiva A grande novidade da época é precisamente a descoberta do Espírito positivo Auguste Comte apoiase nos trabalhos de Sadi Carnot sobre o calor 1824 Esses trabalhos enunciam as leis da termodinâmica sem formular nenhuma hipótese sobre a natureza do calor Desse modo eles definem o novo espírito científico o qual renunciando às hipóteses inverificáveis sobre a essência da matéria em penhase unicamente na observação e na experimentação graças às quais o cientista pode prever as sequências fenomênicas e prover o melhoramento do bemestar da humanidade mediante a utilização calculada dessas previsões Essa descoberta para Auguste Comte é o evento que lhe permite cons truir uma dupla filosofia da história ambas justificadoras do sentido do Pro gresso A filosofia da história das ciências mostra como o espírito elaborou as disciplinas científicas começando pela mais simples e mais abstrata a mate mática para chegar até a mais complexa e concreta a sociologia passando pelas etapas que são a astronomia a física e a biologia A filosofia da história do espírito em sua função explicativa antes de acessar à era positiva o espírito quis explicar a realidade supondo a ação de seres pessoais a era teológica com seus três momentos fetichismo politeísmo monoteísmo depois atribuindo essa explicação a entidades abstratas a era metafísica A era positiva afasta a inútil questão por quê E de imediato teologia e metafísica morrem por falta de alimento A tarefa da vulgarização dos conhecimentos e da afirmação da coesão social é realizada por publicistas e propagandistas do espírito positivo e da religião da Humanidade a ele associada O EstadoSociedade 115 tífica muito próxima de Auguste Comte e tomando de empréstimo à biologia de então sua ideia de evolução ele analisa a realidade social como um or ganismo que se desenvolve em função de suas determinações internas elas próprias ligadas ao princípio de adaptação Essa espontaneidade adaptativa implica o desaparecimento dos órgãos inúteis e o desenvolvimento daqueles de onde resulta um aumento do poder Nessa perspectiva o filósofo desco bre um sentido geral da evolução humana essa vai de um estado de homoge neidade relativamente indefinida para um estado de heterogeneidade relativa mente definida e coerente O florescimento contemporâneo da ordem industrial parecelhe carac terístico desse processo que engendra sociedades cujos elementos são cada vez mais diferenciados cuja organização é cada vez mais coerente e cuja potência em função disso não para de aumentar Apologista da indústria Spencer é também o defensor do liberalismo mais puro enquanto a inter venção do Estado se intensifica no curso da era vitoriana no mesmo ritmo do crescimento do Império Spencer toma vigorosamente posição em favor da livreempresa e da iniciativa privada denuncia a tendência do poder a legiferar a respeito de tudo e argumenta em favor da ideia de que o governo não deve ter outras prerrogativas além das administrativas O indivíduo con tra o Estado 1884 apologia do empresário e do engenheiro chega a for mular o desejo de que sejam suprimidos os ministérios que se ocupam das questões ligadas à agricultura ao comércio e à indústria bem como de que sejam limitados os poderes do Parlamento Nesse meiotempo o evolucionismo spenceriano ganhou força graças à revolução operada por Charles Darwin A origem das espécies é de 1876 Desse modo nos Princípios da sociedade e da moral 187696 e nos Princípios da ética 189293 Spencer orientase no sentido de uma concepção onde os princípios darwinianos em particular o da luta pela vida substituem a ideia da espontaneidade interna Assim o liberalismo que não pode mais se apoiar na ideia da harmonia tal como a concebia Adam Smith encontra recursos numa doutrina científica segundo a qual a violência é natural no mesmo momento o socialismo de Marx e Engels buscava na nova teoria da evolução uma confirmação da justeza dos fundamentos de suas análises só ciohistóricas De SaintSimon a Spencer positivismo e utilitarismo que privilegiam uma certa leitura da ciência concebida menos como conhecimento do que como instrumento neutro de dominação da natureza e da sociedade inter pretada principalmente como sociedade industrial levam a perspectivas políticas inteiramente diferentes da integração total do indivíduo na cole 116 História das ideias políticas tividade segundo Comte à exaltação de sua independência no quadro do Estado segundo JS Mill e Spencer Mas uns e outros têm em comum esta ideia enunciada por SaintSimon agora que estão se impondo a ciência e a indústria as revoluções políticas são inúteis e perigosas tratase agora de organizar a sociedade e de minimizar a questão política INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Spencer H Estática social 1851 Princípios de sociologia e de moral 187696 O indivíduo contra o Estado 1884 0 MARXISMO D E MARX E ENG ELS O tema que Lênin recolheu de Friedrich Engels segundo o qual o pensa mento de Marx possui três fontes a filosofia alemã a economia política in glesa e o socialismo francês não é falso contanto que não se infira dele como o faz Lênin que esse pensamento tendo extraído a quintessência desses três elementos soube integrálos num conjunto coerente Pois o que espanta quando lemos os milhares de páginas de textos redigidos por Karl Marx 181883 e Friedrich Engels 182095 é ao mesmo tempo a diversidade dos temas tratados dos níveis de intervenção e das técnicas de argumentação por um lado e por outro o equívoco profundo do projeto de conjunto e isso porque ora se trata de elaborar nada menos do que uma nova concepção global do mundo da sociedade e do homem ora mais modestamente de contribuir através de pesquisas teóricas para a luta revolucionária do movimento operário Tentouse muitas vezes unificar esses textos e esse projeto sob o signo ou de uma ontologia científica a ortodoxia stalinista seguindo o próprio Engels ou da moral Maximilien Rubel ou da economia política Karl Kautsky ou da ciência da sociedade Antonio Gramsci ou da teoria do conhecimento Max Raphael Henri Lefebvre ou da ciência da história Louis Althusser pretendeuse introduzir uma periodização entre um jo vem Marx para uns filósofo democrata e dialético aberto e para outros romântico inseguro e não ainda marxistà e um Marx adulto para uns economista positivista e já dogmático e para outros senhor finalmente de seu instrumento dialético Essas tentativas só podem ser julgadas em fun O EstadoSociedade 117 ção do projeto próprio que as anima em sua época e em suas circunstâncias políticas Mas a diversidade e o equívoco dos textos resistem a tais circuns tâncias Vamos portanto admitilos a título de hipótese com o objetivo de extrair livremente da análise dos textos os temas principais do pensamento de Marx e Engels independentemente do fato de esse pensamento formar ou não um sistema Da crítica do Estado burguês à definição do ponto de vista materialista Quando em 1840 Frederico Guilherme IV subiu ao trono da Prússia os úl timos discípulos liberais de Hegel foram expulsos das universidades Agru pada em torno de revistas efêmeras em permanente choque com a censura formouse uma corrente chamada de hegeliana de esquerdâ que unia personalidades tão diferentes entre si como os irmãos Bauer Ruge Bakunin Stirner Herzen que convergiam na aplicação dos princípios da política de Hegel Entre eles encontrase Karl Marx que acabava de defender uma tese de doutorado dedicada a Demócrito e a Epicuro Todavia ele logo deixa de se satisfazer com essa agitação brilhante mas sem fundamentos reais e dado que o objetivo dos opositores é a realização do Estado tal como Hegel o concebe ele decide reler e analisar de novo os Princípios da filosofia do direito Disso re sulta um texto vigoroso e crítico que é a primeira etapa na constituição do pen samento de Marx Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel 1843 Instituindo o Estadofuncionário como instância suprema de decisão e como Razão em ato compreendendo a sociedade civil como domínio da luta pelo lucro e apresentando a propriedade e o trabalho como dados inelutáveis do processo histórico prometendo para o futuro a satisfação universal como resultado da mundialização do Estado assim concebido Hegel não fez mais do que hipostasiar uma situação de fato a situação de sociedades onde a minoria da população a burguesia industrial e mercantil e os proprietários fundiários assenhoreouse do poder de Estado para manter sua exploração econômica e sua dominação política Ele esqueceuse do fato de que as ca madas politicamente dirigentes tanto na Prússia como na França e no Reino Unido longe de estarem separadas da sociedade civil ocupam nela um lugar preponderante e de que as decisões de tais camadas pretensamente tomadas em função do interesse geral servem para o fortalecimento do poder delas Hegel não viu que em consequência disso a dinâmica da sociedade civil tal como ele a concebe condena industriais e proprietários fundiários a busca 118 História das ideias políticas rem o lucro máximo e a exercerem uma violência incessantemente crescente sobre trabalhadores das cidades e dos campos O realismo de Hegel o levou a apresentar como necessidade da Ideia o que não é senão um momento da história e a congelar essa no estágio da do minação burguesa Dessa análise o jovem Marx extrai igualmente uma con sequência metodológica decisiva Se o hegelianismo não conseguiu explicar a sociedade moderna isso decorre do fato de que ele não levou absoluta mente em consideração a dinâmica dessa sociedade Sob esse aspecto o que se passa na sociedade civil ou seja na vida econômica é fundamental Sob esse aspecto a Ideologia alemã e as Teses sobre Feuerbach 184546 mar cam um novo progresso podese definir o homem de múltiplas maneiras pela religião pela consciência pela linguagem etc mas o que o constitui é o fato de ele ser o único animal que produz e reproduz suas condições de existência que forja materialmente seu mundo a partir do dado natural O fi lósofo alemão Ludwig Feuerbach 180472 compreendera bem isso quando particularmente em A essência do cristianismo 1840 mostrou que o uni verso religioso não é mais do que a transposição imaginária do universo pro fano e que nele se encontram resolvidos idealmente os conflitos terrestres que dilaceram as sociedades reais Mas ele não soube ir suficientemente longe não apenas a religião a fi losofia as teorias políticas a ideologia em geral são em suas formas meios ideais para resolver idealmente as contradições terrenas mas elas são em seus conteúdos produtos dessas contradições São respostas a tais con tradições Desse modo quando se tenta tornar inteligível uma sociedade dada e suas transformações devemse analisar as condições materiais de existência dessa sociedade as relações econômicas que nela se estabelecem a dominação sociopolítica que nela se exerce e os mecanismos que essa do minação utiliza Somente no interior desse contexto é que aparecem clara mente a significação das ideias As ideias não são unicamente a expressão da inteligência especulativa são tomadas de posição que têm relação com as práticas sociais Esses enunciados de Marx darão lugar a interpretações sobre as quais voltaremos Aqui é importante sublinhar que a afirmação materialista não tem nenhum caráter doutrinário Marx jamais abandonará a sua desconfiança em face dos sistemas especulativos que dissertam sobre o Ser Deus ainda que para negálo ou a Pessoa Interessamno o destino do homem em so ciedade e as possibilidades de sua liberdade e florescimento Para ele assim a posição materialista consiste não em fazer declarações abstratas do tipo das que serão feitas por Engels em 1886 nesse livro medíocre que é o Ludwig O EstadoSociedade 119 Feuerbach e a filosofia clássica alemã ou por Lênin em 1908 em Materia lismo e empiriocriticismo mas em tomar primariamente em consideração as práticas sociais e as relações sociais em sua materialidade na medida em que elas produzem a existência social histórica específica a cada sociedade numa determinada época Para encerrarmos esse tema é preciso deixar claro que nenhum texto de Marx expõe uma doutrina filosófica materialista que ele realmente não desaprovou seu amigo Engels quando esse resolveu escrever a Dialética da natureza 187383 mas que jamais se preocupou com problemas de onto logia geral e que a construção do sistema global do Ser do Pensamento na Natureza da História da arte e do Homem conhecido pelo nome de mate rialismo dialético é bem posterior A importância que Marx confere aos dinamismos materiais das socieda des ligada ao desejo de ir além das teorias abstratas do Estado levao a to mar duas direções por um lado ele se documenta sobre a situação do prole tariado das cidades e dos campos e sobre as lutas que essa classe empreende para combater a miséria e a sujeição às quais está reduzida e por outro em penhase em pôr em evidência os mecanismos econômicos que governam a sociedade atual e que estão na origem das crises e dos conflitos que a abalam De ambos esses pontos de vista o encontro com Engels industrial de for mação e a leitura do seu livro A situação das classes trabalhadoras na Ingla terra 1845 foram eventos capitais Dos Centros de Correspondência Comunista à crítica da economia política Desde 1846 Marx e Engels entraram em contato com os movimentos revo lucionários parisienses ficaram decepcionados com os intelectuais e interes sados pelas formações operárias nascentes Decidiram fundar em Bruxelas um organismo os Centros de Correspondência Comunista cuja função seria a de pôr em contato os diversos grupos europeus que trabalhavam pela emancipação do proletariado e de transmitir aos operários em luta informa ções sobre os combates travados em outros países Desse modo adquiriram a convicção de que a classe operária é a ponta de lança da revolução que se tornara indispensável por causa da incapacidade do poder burguês de con trolar as forças tecnológicas e sociais que pusera em movimento Mas ao mesmo tempo acreditavam poder deduzir das hesitações e dos fracassos do movimento sindical inglês o tradeunionismo e da divisão 120 História das ideias políticas dos grupos revolucionários na Europa continental a ideia de que é indis pensável forjar uma teoria geral da revolução fundada na análise da situa ção econômicopolítica A fim de aumentar sua audiência aderiram à Liga dos Justos associação que agrupava os exilados políticos e os operários ale mães da Europa Ocidental cujo centro era em Londres Essa Liga decidiu em 1847 radicalizar sua ação e organizar dois congressos sucessivos tendo como objetivo a fundação de uma Liga Comunista que reunisse todas as for ças da Europa decididas a pôr fim à exploração burguesa agir no sentido de uma revolução democrática e abolir a propriedade privada O slogan da Liga dos Justos todos os homens são irmãos foi substituído pela fórmula proletários de todos os países unamse Marx e Engels foram encarregados pela Liga de redigir a partir dos textos e das discussões que emergiram do Congresso um manifesto que publicaram em 1848 sob o título de Manifesto do Partido Comunista Esse texto representa um compromisso entre diversas tendências Nem por isso deixa de ser no essencial ou seja em suas duas primeiras partes a expressão do pensamento de seus dois autores Reen contramse nele os temas da luta de classes e da missão do proletariado e são especificadas as noções constitutivas do materialismo histórico Também se manifesta nele o equívoco que será levado até o fim pelo que já é o marxismo de Marx e Engels Um exemplo permite medir a dimensão desse equívoco Depois de uma breve preliminar o Manifesto afirma A his tória de toda sociedade até nossos dias foi a história da luta de classes1 Esse enunciado pode ser entendido de duas maneiras a luta de classes é o motor da história o princípio ontológico explicativo do devir das sociedades a análise do presente europeu e o exame do passado de outros tipos de sociedade permitem afirmar que a luta que opõe opressores e oprimidos é o conceitochave graças ao qual podese tornar intelegíveis esse presente e esse passado e que por conseguinte é legítimo abordar o estudo de toda sociedade e de toda configuração de eventos a partir desse ponto de vista a fim de saber se e como a luta de classes opera nos mesmos Segundo a primeira leitura que é evidentemente a dominante no Ma nifesto o materialismo histórico é a aplicação técnica de uma filosofia da história pressuposta de natureza similar à desenvolvida antes por Bossuet na História Universal e por Hegel e Auguste Comte O princípio de expli cação decerto é diferente mas a concepção de conjunto é a mesma há um 1 Le Manifeste du Parti Communiste 1848 Paris Le Livre de Poche 1973 p5 O EstadoSociedade 121 devir uno de uma humanidade una que passa por etapas sucessivas o devir possui um sentido e cada etapa é um momento de um progresso que deve levar a um fim da história cada um desses momentos é marcado pela ação de uma classe progressista ou revolucionária que durante certo tempo é o sujeito da história Essa perspectiva amplamente desenvolvida por Engels mais tarde é exposta por Marx no Prefácio a Contribuição à crítica da economia política 1859 De certo modo ela fortaleceu a ideia de que o materialismo de Marx constitui uma doutrina e serviu como legitimação para as diversas dogmáti cas desenvolvidas no século XX sob o nome de marxismo Ela considera toda sociedade como formada por uma base ou infraestru tura econômica cujo elemento motor é a dinâmica das forças produtivas que determinam as relações sociais estabelecidas entre os homens relações deter minadas necessárias independentes da vontade desses homens Contribui ção à crítica da economia política de i859 e esse conjunto define um modo de produção Em cada época um modo de produção é dominante Sobre essa base elevase um edifício jurídico e político ao qual correspondem formas determinadas da consciência social O modo de produção domina em geral o desenvolvimento da vida social política e intelectual Não é a consciência dos homens que determina sua existência mas ao contrá rio é sua existência que determina sua consciência ibid A crise anunciadora de uma revolução aparece quando as relações sociais e as formas jurídicas e políticas que a sustentam revelamse um entrave ao florescimento das forças produtivas A história poderá registrar com o rigor das ciências naturais o enorme abalo que se produz então na base material ela perceberá também seu efeito nas superestruturas ideológicas Os homens tomam consciência do conflito entre as forças produtivas e as relações de produção e o levam até o fim A transformação revolucionária ou seja a mudança do modo de produção e seu efeito político não tem lugar antes que relações superiores de produção se manifestem antes que as condi ções materiais de sua existência se tenham desenvolvido no próprio seio da ve lha sociedade Por isso a humanidade sempre se propõe apenas problemas que pode resolver ibid Assim tal como para santo Agostinho e para Hegel há um curso da história com suas etapas dramáticas seus conflitos seu sujeito encarnado 122 História das ideias políticas que deve desembocar em algo uma espécie de fim que é ao mesmo tempo uma plena realização Aos momentos de plenitude a Ressurreição da Carne segundo santo Agostinho ou a reconciliação definitiva no seio do Estado mundial segundo Hegel corresponde na filosofia da história materialista a sociedade comunista integralmente transparente sem classe e sem Estado onde cada um receberá segundo suas necessidades Naquele momento em meados do século XIX depois de ter passado pelos modos de produção asiá tico escravista e feudal a humanidade em sua parte mais avançada a Eu ropa Ocidental começava a experimentar os efeitos da crise engendrada pela incapacidade da burguesia de controlar as forças tecnológicas econômi cas e sociais que pôs em movimento Como o sublinha o Manifesto o capitalismo é o primeiro modo de pro dução a ter provocado uma simplificação da luta de classes nele burgueses e proletários se enfrentam diretamente cinicamente A uma exploração cientí fica corresponde uma classe que toma cada vez mais claramente consciência da causa de sua miséria e do objetivo a que deve visar sua potência a aboli ção da sociedade de classe A burguesia capitalista que foi sujeito da história e classe revolucionária criou seu próprio coveiro o proletariado operário força avançada de todos os explorados pequenos camponeses assalariados de todos os tipos que é a classe radical o sujeito último que põe fim à histó ria já que não pode se emancipar sem emancipar a humanidade inteirà A concepção é grandiosa Exerce a sedução que decorre das visões tota lizantes Todavia ao que parece Marx viu o que ela implica de esquematismo e de elementos apenas supostos no momento em que tentou explicar se quências históricas concretas viu também que a noção de determinação ainda que seja em última instâncià não é clara já que tomada em sentido estrito significa o anulamento do papel dos homens como agentes históricos Por isso ele adota uma posição metodológica muito mais matizada em seus trabalhos históricos posição que especifica na Introdução geral a Contribui ção à crítica da economia política referindose à economia política Essa é a segunda hipótese de leitura acima evocada Nessa óptica o que é dado ao pesquisador é o concreto real um conjunto complexo de fatos de eventos O trabalho de pesquisa não consiste em deduzir uma representação abstrata que empobreça e esquematize esse conjunto Interessa muito pelo contrário analisar investigar a partir de que conceitos ele pode ser pensado e remontar progressivamente aos conceitos mais delicados mais precisos que são pressupostos até o momento em que se torna possível construir um concreto de pensamento um sistema complexo de conceitos Graças a esse sistema podese então voltar ao dado e avaliar o efeito de inteligibilidade O EstadoSociedade 123 que dele resulta Sendo assim a luta de classes o modo de produção as for ças produtivas as classes sociais o Estado o direito etc não são realidades que exerceriam uma causalidade mas conceitos através dos quais tornase possível explicar o que se produz no concreto real Esse concreto que depois como antes subsiste em sua autonomia fora do espírito é o produto multiforme da ação de agentes que criam a partir do dado seu mundo é o resultado incessantemente mutável desses atos que agem e reagem uns sobre os outros esses atos são todos vontades singulares visando a fins singulares A tarefa do conhecimento é forjar os instrumentos que permitem compreender por que algumas dessas vontades entram mate rialmente em coalizão produzem em comum enunciados que lhes servem como justificação ou programa de ação e operam assim uma transformação real que subverte o concreto real Não foi a entidade burguesa que produziu por que misteriosa causalidade o modo de produção capitalista nem vice versa mas foram homens e grupos surgidos de meios diversos tendo em comum o fato de disporem de recursos financeiros acumulados de diferentes modos e determináveis e de buscarem o lucro comercial máximo que se empenharam em construir manufaturas nas quais arregimentaram os pobres das cidades e os camponeses expulsos dos campos e em montar circuitos de venda lucrativos cf para tudo isso K Marx O capital Livro I seção VIII Nos textos de Marx e Engels as duas concepções a que pertence à filosofia da história e que leva a uma escatologia e a uma visão necessitarista do devir e a que considera fundamental a análise das condições materiais de exis tência numa dada sociedade e que insista no poder criador dos agentes históricos essas duas concepções coexistem As duas se manifestam a despeito de sua contradição intrínseca nas pesquisas sobre os mecanismos econômicos que governam a sociedade moderna às quais Marx irá doravante se consagrar A crítica da economia política o Capital como fundamento da sociedade burguesa A inteligibilidade das lutas políticas nesse início da segunda metade do sé culo XIX inteligibilidade que é a única capaz de permitir ao movimento operário a radicalização de seu combate passa pelo conhecimento rigo roso do sistema capitalista e de seus princípios de funcionamento Ora sur 124 História das ideias políticas giu uma ciência no século XVIII que assumiu como objeto um tal conheci mento a economia política Essa ciência indo mais fundo do que a chamada economia vulgar que se contentava em descrever as aparências soube colo carse questões essenciais em particular a seguinte que é decisiva o que faz o valor de uma mercadoria Os economistas compreenderam que aquém da lei da oferta e da procurà é preciso fazer referência à atividade do trabalha dor incorporada a essa mercadoria Ao mesmo tempo importa compreen der que numa época dada e num certo nível de civilização técnica podese medir a quantidade de trabalho social médio necessário à produção de tal mercadoria Eles viram ademais que esse trabalho do operário anônimo é ele mesmo uma mercadoria uma realidade que se compra E seu valor é me dido pela quantidade de meios de subsistência necessários à manutenção do trabalhador Ao fazer isso a economia política clássica descreveu exatamente o sis tema capitalista em seu conjunto o proprietário tendo utilizado seus capi tais para extrair da natureza matériasprimas e tendo construído uma fábrica onde funcionam as máquinas paga ao trabalhador o justo preço de seu tra balho conjunto de operações graças às quais ele põe no mercado bens pro veitosos a todos inclusive aos trabalhadores e retira da venda desses bens um lucro que de certo modo é a recompensa por seu ato empresarial e pelos riscos que ele implica Todavia colocase uma questão que não é abordada como pode ocorrer que um sistema tão equilibrado suscite crises cada vez mais violentas Crises internas nascidas por exemplo da superprodução de certos bens ou do jogo implacável da concorrência e também e sobre tudo crises externas provenientes do fato de que a ordem industrial não importa o que dela se diga é obrigada a arregimentar os operários a im porlhes condições de trabalho desumanas a deixar aumentar o exército de desempregados e a provocar assim a rebelião dos proletários A prática capitalista em seus efeitos desmente a teoria que melhor ex plica seu funcionamento Assim como as práticas governamentais tornaram indispensável a crítica da concepção hegeliana do Estado do mesmo modo convém empreender a crítica da economia política que é a teoria acabada do capitalismo Pois não se trata apenas de denunciar de um ponto de vista moral a injustiça desse sistema ou tendo constatado uma injustiça orga nizar complôs destinados a derrubála Ele é bastante poderoso marchà com muita eficiência a despeito de suas crises e graças a elas para que possa ser destruído sem que se conheçam os mecanismos que explicam ao mesmo tempo seu sucesso e a violência aberta ou larvar que ele é obrigado a manter definindo assim uma estratégia capaz de mobilizar contra ele a massa dos O EstadoSociedade 125 explorados Assim na opinião de Marx a crítica da economia política é mais do que a retificação de um erro é uma arma contra o poder burguês que deve servir como ajuda às lutas operárias Em que consiste a insuficiência teórica da concepção elaborada por Adam Smith Em deixar sem resposta o enigma do lucro Para resolver esse problema é preciso nada menos do que retomar a análise feita pela econo mia política clássica de um ponto de vista histórico É nisso que Marx se empenha a partir de 1857 2 Dez anos depois aparecerá o Livro 1 de O Capital cujo subtítulo é precisamente Crítica da economia política 3 Desses textos fervilhantes de reflexões incomparáveis sobre os proble mas econômicos iremos reter aqui apenas o que serve para esclarecer a con cepção política de Marx E antes de mais nada a teoria da civilização mer cantil que se encontra na Seção 1 de O Capital O trabalho social tem como finalidade a produção de bens esses se caracterizam pelo fato de possuir um valor de uso que decorre de suas propriedades empíricas A partir do momento em que numa sociedade realizamse trocas de bens aparece um termo abstrato comum às duas realidades trocadas em função do qual a tal quantidade de tecido corresponde tal quantidade de trigo esse termo mede o valor de troca A moeda quando é introduzida nesse circuito passa logo a ser o equivalente geral graças ao qual a troca entre as mercadorias se generaliza A civilização mercantil pode ser definida como a civilização na qual a moeda se torna o principal termo da troca não mais o ciclo merca doriadinheiromercadoria mas sim dinheiromercadoriadinheiro no qual a segunda quantidade de dinheiro é superior à primeira O próprio da civilização capitalista é levar a seu paroxismo a socie dade mercantil e organizar a totalidade da vida social segundo o princípio da produção de mercadorias cuja troca compreendida desse modo pro duz sempre mais dinheiro O dinheiro acumulado em capital permite essa extensão paroxística extração descontrolada de matériasprimas constru ção de instrumentos de produção cada vez mais aperfeiçoados mobilização cada vez mais ampla de massas trabalhadoras arregimentadas na produção mundialização do campo de ação do capital E isso com o objetivo de au mentar sempre esse último os Grundrisse descrevem essa sociedade na qual 2 Dessas pesquisas restou um precioso manuscrito publicado em 1939 sob o título Grundrisse des Kritik der politische Ôkonomie trad francesa sob o título Fondements de la Critique de lEconomie Politique Paris Anthropos 196768 3 Marx quando morreu deixou em manuscrito os Livros II e III eles foram publicados por Engels respectivamente em 1885 e em 1894 126 História das ideias políticas finalmente tudo se reduz a dinheiro lucros sob a dupla forma do lucro in dustrial e comercial e da renda fundiária e salários Todavia conservase o seguinte enigma por que a segunda quantidade de dinheiro é superior à primeira A habilidade do vendedor ou as flutua ções dos preços no mercado não poderiam ser tomadas como explicação de um fenômeno tão generalizado como a acumulação do capital Portanto é preciso examinar de mais perto a teoria clássica do salário Adam Smith viu corretamente que o trabalho é uma mercadoria que se compra o salário de um dia de trabalho equivale às mercadorias que permitem ao trabalhador reconstruir sua força de trabalho e manter sua família Mas não viu que na jornada de trabalho efetuada somente uma parte do trabalho dispendido é paga pelo salário assim calculado enquanto a outra parte que também produz valor é doadà ao capitalista pelo trabalhador Marx chama de trabalho excedente essa parte não paga de maisvalia ou valor excedente a quantidade de valor extorquido e de lucro o bene fício que os proprietários dos meios de produção retiram dessa extorsão A partir dessa análise essencial Marx nos Grundrisse e ao longo dos três li vros de O Capital desenvolve uma teoria dos mecanismos do capitalismo e de suas crises Politicamente retira dessa teoria um ensinamento decisivo a luta da classe operária só pode ter como objetivo a supressão dessa extorsão e a instituição de uma sociedade na qual os produtores seriam senhores de sua produção e organizariam seu trabalho de tal modo que o fim da atividade de trabalho não seria a troca simples meio mas o uso a fruição empírica Do Manifesto comunista à fundação e à posterior dissolução da Associação Internacional dos Trabalhadores Marx imaginara que traduzido nas principais línguas europeias O Capital poderia ser distribuído em fascículos à classe operária Com efeito durante a elaboração da crítica da economia política ele realizou junto com Engels uma resoluta atividade militante Depois da dissolução da Liga dos Comu nistas em 1852 em consequência do fracasso das revoluções de 1848 ambos se esforçaram no sentido de agrupar as forças sociais decididas a realizar o programa revolucionário de emancipação da humanidade através da instau ração do comunismo assim como no sentido de concretizar a estratégia e a tática desse movimento Textos como As lutas de classe na França 18481850 e O 18 Brumário de Luís Bonaparte de 1852 põem em evidência o fato de que economicamente a sociedade burguesa é dividida em duas classes pro O EstadoSociedade 127 prietários que dispõem dos meios de produção e trabalhadores livres para vender sua força de trabalho politicamente a situação é mais complexa na medida em que se introduzem diferenciações e matizes devidos aos interes ses a curto e médio prazos e às fixações ideológicas Eles sublinham também que no que diz respeito às lutas políticas a determinação em última instân cià do econômico constitui mais um horizonte em cujo interior operam livremente os desejos dos atores sociais do que uma realidade exercendo sua eficácia mesmo que longínqua Um outro traço pode ser sublinhado na correspondência nos encon tros nos artigos nas obras polêmicas Marx e Engels a despeito do seu projeto de reunir dão provas de uma intransigência teórica que os leva a afastar frequentemente por meio de uma frase injusta as teorias dos que participam dos combates contra a injustiça e a miséria são assim condenados sem apelo o sindicalismo inglês julgado incapaz de superar uma perspectiva reformista o blanquismo acusado de subscrever um comunismo abstrato e de confundir ação revolucionária com técnica de complô PierreJoseph Proudhon pequenoburguês que hesitava constantemente segundo eles entre a tese e a antítese e era mais metafísico do que economista etc Eles reforçam a ideia bastante tenaz a partir de então e da qual o mínimo que se pode dizer é que abandona os matizes de que tudo o que não é conforme à concepção deles qualificada como científica aproximase da utopia Essa atitude se fortalece ainda mais e se traduz em práticas de expulsão quando em 1864 é fundada por iniciativa deles a Associação Internacio nal dos Trabalhadores AIT Decerto tal como a Liga dos Comunistas essa associação não é um partido nem no sentido de facção da classe política que o termo possui nos regimes burgueses da época nem no sentido que mais tarde lhe dará Lênin Tratase de um agrupamento de indivíduos e grupos díspares unidos em torno de um objetivo geral Todavia seus congressos são ocasiões de lutas pelo poder onde as manobras de assembleia desempenham um grande papel Marx e Engels não são os últimos a utilizálas para elimi nar seus rivais os partidários de Ferdinand Lassalle inicialmente e depois os de Proudhon e de Bakunin No curso desses conflitos em particular do que opôs marxistas e bakuninistas revelamse outros traços da concepção política de Marx e de Engels Em primeiro lugar uma concentração do interesse nas partes avançadas da classe operária europeia em detrimento das outras camadas do proletariado do campo e das cidades Engels chegará ao ponto de apro var a repressão contra os eslavos do sul cujos movimentos inconsiderados apresentam o risco de frear o florescimento do movimento operário ale 128 História das ideias polfticas mão Em segundo lugar um eurocentrismo radical que considera ne cessário para o progresso dos povos não europeus que esses passem pelas mesmas fases que as nações brancas e que ao mesmo tempo justifica por exemplo a colonização inglesa na índia Finalmente manifestamse tam bém cada vez mais fortemente o temor da espontaneidade revolucionária das massas o desejo de controlar suas iniciativas e uma confiança na racio nalidade unificante a qual batizada de científica é colocada como garan tia de sucesso duradouro Marx não havia aprovado o movimento que esteve na origem da Co muna de Paris em 1871 Todavia aderiu ao mesmo e analisou seus méritos em A guerra civil na França 1871 A influência do evento aparece no último texto político de Marx a Crítica do Programa de Gotha 1875 Nele são denunciados os erros cometidos no estabelecimento do programa do Partido Operário Alemão idealismo o trabalho como fundamento da natureza humana moralismo o objetivo do partido definido como a dis tribuição equânime dos produtos do trabalho obreirismo exaltação das virtudes operárias estatismo nacionalista apologia do Estado popular livre alemão E são definidos a revolução a tomada do poder pelo povo em armas o poder transitório a ditadura do proletariado seu primeiro ato o socia lismo a socialização dos meios de produção seu objetivo a médio prazo o desaparecimento do Estado e a implantação de uma sociedade orga nizada pelos trabalhadores em benefício de todos seu objetivo a longo prazo comunismo realização da era da liberdade começo da história Nesse meiotempo em 1872 para evitar que os anarquistas se apossas sem da direção da AIT Marx decidira transferir sua sede para os Estados Unidos Logo depois irá dissolvêla De uma estranha diversidade de níveis apesar da unidade do seu pro jeto espantosamente inovadora e ao mesmo tempo profundamente tributá ria do espírito da época a obra de Marx e Engels contém em germe todos os marxismos que ulteriormente irão reivindicála alguns dos quais a trai rão no momento mesmo em que a reiteram literalmente Paradoxalmente o que permanece vivo nessa obra não é nem a filosofia da história nem o socialismo científico nem a estratégia da revolução mundial mas o desejo utópico de instaurar uma organização econômica que engendre não so mente os meios da liberdade mas a própria ação livre O EstadoSociedade 129 IN DICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Apresentaremos em seguida alguns dos escritos de Karl Marx significativos de sua con cepção da ação política Os assinalados com um asterisco são em colaboração com Frie drich Engels Contribution à la critique de la philosophie du Droit de Hegel Introduction 1844 Aubier Montaigne 1971 ed brasileira Crítica da filosofia do direito de Hegel Introdução in Temas de Ciências Humanas Grijalbo São Paulo 19n vol 2 p114 Theses sur Feuerbach 1845 in Manuscrits de 1844 Economie politique et philosophie Ed Sociales 1962 ed brasileira Teses contra Feuerbach in Os Pensadores Abril Cultu ral São Paulo volXXXV 1974 p559 Idéologie allemande 184546 Ed Sociales 1959 ed brasileira parcial Ideologia alemã Ciências Humanas São Paulo 1980 Engels F Situation des classes laborieuses en Angleterre 1845 Ed Sociales 1956 Manifeste du Parti Communiste 1848 Le Livre du Poche 1973 ed brasileira Manifesto do Partido Comunista in MarxEngels Obras Escolhidas AlfaÓmega São Paulo 1979 voli Les luttes de classes en France 18481850 1850 Ed Sociales 1967 ed brasileira As lutas de classe na França in ibid voli Le Dixhuit Brumaire de Louis Bonaparte 1852 Ed Sociales 1963 ed brasileira O 18 Brumário de Luís Bonaparte ibid voli Introduction générale à la Critique de lEconomie politique 1857 3 in Oeuvres Galli mard col Pléiade t I 1963 ed brasileira Introdução à crítica da economia polí ticà in Os Pensadores edcit p10931 Contribution à la Critique de lEconomie Politique 1859 Avantpropos ibid ed brasi leira Para a crítica da economia política Prefácio ibid p1338 Adresse inaugurale à lAssociation Internationale des Travaileurs 1864 ibid ed brasi leira Manifesto de Lançamento da Associação Internacional dos Trabalhadores in MarxEngels Obras Escolhidas edcit voli La guerre civile en France 1871 1871 Ed Sociales 1953 ed brasileira A guerra civil na França ibid vol2 Critique du programme du parti ouvrier allemand Programme de Gotha 1875 ibid ed brasileira Crítica do Programa de Gotha ibid vol2 Para o essencial desses textos cf F Châtelet E PisierKouchner JM Vincent Les marxistes et la politique 1ª parte PUF col Thémis No seio de uma abundantíssima literatura referente à obra de Marx e Engels encon tramse selecionadas a seguir algumas das leituras contemporâneas em língua francesa que parecem as mais significativas por ordem alfabética 130 História das ideias políticas Althusser L Pour Marx Maspero 1965 ed brasileira Em favor de Marx Zahar Edito res Rio de Janeiro 1980 Aron R Les étapes de la pensée sociologique Gallimard 1967 Axelos K Marx penseur de la technique Ed de Minuit 1961 Calvez JY La pensée de Karl Marx Ed du Seuil 1956 Châtelet F Logos et Praxis Sedes 1962 ed brasileira Logos e práxis Paz e Terra Rio de Janeiro 1972 Lefebvre H Pour connaftre la pensée de Marx Bordas 1947 Naville P Le nouveau Leviathan I Riviere 1957 Rubel M Karl Marx essai de biographie intellectuelle Riviere 1957 ÜS SOCIALISTAS UTÓPICOS O termo socialismo apareceu nos anos 1830 nem todos os homens e for ças que o reivindicavam faziam apelo à utopia Longe disso Todavia muito rapidamente uma santa aliança de movimentos de ideias muito contradi tória no plano político permitiu que a ligação dos dois termos socialismo e utopia servisse para desenhar no século XIX um conjunto muito díspar de concepções políticas condição para ingressar nesse conjunto era preocu parse com a questão social sem colocála nos quadros do liberalismo ou do marxismo Ironia da sorte e desforra do século XX o próprio marxismo foi designado assim por determinadas pessoas de modo que passou a se atri buir à utopia socialista o advento do socialismo real Socialismo e utopia Periodicamente a utopia é apontada como bode expiatório responsável pelo Terror e por qualquer Gulag E isso ocorre hoje tanto à direita quanto à es querda A utopia é considerada como uma eterna heresia cf Thomas Moi nar Zutopie Eternelle hérésie 1967 Beauchesne 1973 e mais precisamente a utopia socialista é acusada de engendrar em nome de um homem novo de uma sociedade novà um Estado totalitário Com efeito os caçadores da utopia correm com muita sede ao pote Incoerência e confusão presidem essa condenação bempensante Como su blinha Miguel Abensour o sonho de uma sociedade de plenitude de trans parência ou de liberdade irrompe constantemente na reflexão política e na verdade é preciso com máfé forçar os textos e contentarse com pers O EstadoSociedade 131 pectivas históricas apressadas para poder imputar a Fourier a responsabili dade pela explosão pornográfica a Cabet a organização do terror a Buchez a de qualquer Inquisição ou ler em Marx a sinistra vontade de impor o Gulag cf Miguel Abensour Le proces des maitres rêveurs Libre 78 4 e também Les formes de lutopie socialiste communiste Payot A condenação dos universos concentracionários é uma coisa a conde nação da utopia outra A pressa com a qual alguém se contenta com a última deve inspirar desconfiança a partir do momento em que não se percebe seu verdadeiro alcance ideológico Tanto à direita como à esquerda e mesmo levada pelas melhores intenções a condenação da utopia serve à glória do realismo político e em última instância da razão de Estado Na raiz da po sição utópica há uma atitude de revolta diante do estado de coisas estabele cido Quem ganha o quê em qualquer momento com essa denúncia Em nome da necessidade histórica dos imperativos do progresso do peso das circunstâncias da barreira dos fatos do respeito pelas limitações naturais das fraquezas de uma vontade humana decretada como impaciente impõese a ideia de um curso necessário das coisas e da obrigação em que se encon tra uma sociedade ávida de segurança de se conformar com a ordem esta belecida pela instância estática considerada sábia por definição Acusase o sonho um imaginário social sempre presente sem que se investigue mais sobre as modalidades de seu desvio O desafio nem sempre é claro mas na maioria dos casos chegase a estabelecer a mesma equação cuja gros seria do enunciado desafia a inteligência a luta pela igualdade é causa de desigualdade a luta pela liberdade é causa de opressão cf como exemplo esse modelo de sutilezas em La fin du socialisme Club de lHorloge Lettre dinformation n2 3 1981 Se o marxismo se encontra frequentemente no banco dos acusados de utopia contribui também para fornecer as armas da crítica Numerosos tex tos de Marx e Engels um dos quais de Engels apresenta o significativo título Socialismo utópico e socialismo científico tratase de três capítulos do AntiDühring publicados em separado e sob esse título com a concordância de Engels atacam vivamente os socialistas utópicos Aqui a oposição en tre a ciência e a utopia está carregada dessa pretensão cientificista cara ao sé culo XIX Somente o método marxista o materialismo dialético e histórico pode pretender ser verdadeiramente científico Qualquer outro método ou ausência de método o dos Fourier Leroux Cabet Owen e Louis Blanc é utópico ou seja ingênuo pueril irrealista idealista moralista metafísico até mesmo religioso e tal como a religião a utopia adormece o povo e amacia a sua consciência de classe Por sorte Marx venceu o socialismo utó 132 História das ideias políticas pico e esse é seu principal mérito não passa da infância do socialismo científico que aquele anuncia e para o qual abre caminho é um socialismo prémarxistâ Em seu livro Les formes de lutopie socialiste communiste opcit Miguel Abensour discute essa pretensão marxiana e marxista de constituir a matu ridade Além de ser refutável tanto na teoria como na prática essa afirmação de uma continuidade histórica entre um socialismo utópico precursor ul trapassado e um marxismo científico que revela ao movimento operário sua plena maturidade é reveladora dessa filosofia da história própria a todos os determinismos positivistas Sob esse aspecto o tom do Manifesto Comunista por exemplo é mais do que claro as latas de lixo da história estão cheias de utopia Podese tratar dessas primeiras tentativas de revolta no tempo da sociedade feudal Elas fracassam necessariamente em razão do estado em brionário do próprio proletariado e na ausência das condições materiais de sua emancipação que só podem ser realizadas na época burguesâ não po demos nos impedir de pensar nesses gênios inúteis por terem surgido an tes da hora positivista dos quais falava Auguste Comte Mas pode se tratar também desses sistemas socialistas de SaintSimon de Fourier de Owen os quais decerto apresentam algumas proposições úteis e positivas mas cuja importância é julgada como função inversa do desenvolvimento histórico Pois sempre segundo Marx a utopia é ahistórica por ignorar a luta de classes Os utopistas são capazes de crítica percebem o antagonismo das classes mas substituem a atividade social por sua própria engenhosidade as condições históricas da emancipação por condições fantasiosas Só con cebem o proletariado sob a forma da classe mais sofredora mas desejam melhorar a condição de todos mesmo a dos privilegiados Crendo na força do exemplo e penetrados de pacifismo são incapazes de conceber as leis da revolução Para além das acepções do senso comum podemos recordar que a uto pia termo inventado por Thomas More em 1516 pode significar em ne nhuma parte Esse lugar em nenhum lugar esse alhures tanto no tempo como no espaço ganha um alcance significativo é subversão de uma ordem estabelecida modelo sempre diverso e portanto crítica do modelo dado e considerado real insubmissão ao Estabelecido A utopia é arma contra o posi tivismo precisamente no ponto em que esse pela voz de Auguste Comte proclama a subordinação necessária e permanente da imaginação Desse modo se aceitamos esse alcance a força da utopia não pode ser medida por sua capacidade de realização argumento que querendo defen der a utopia termina por enfraquecêla mas por uma capacidade crítica O EstadoSociedade 133 que recusa as discussões no quadro imposto e se volta contra os princípios contra as aporias dos sistemas que emergem dos próprios sistemas Nesse sentido a utopia extrai sua força não da predição ou da previsão mas da in venção de uma alteridade crítica Todavia os utópicos do século XIX ao contrário de uma opinião banal não renegam em nada a ideia da ciência e muito pelo contrário pretendem valerse dela contra os falsos sábios contra as falsas ciências de todo tipo fa bricadas pelo espírito positivista Essa é também a origem de muitas confusões nesse particular esquecese que o terreno intelectual e social onde se elabo ram essas diferentes doutrinas é o mesmo deixando suas marcas de tal modo que não é possível distinguir muito claramente entre as várias posições No conjunto as doutrinas socialistas do século XIX têm em comum o fato de criticarem o liberalismo enquanto é incapaz de resolver a questão so cial e de proporem soluções práticas fundadas na dupla convicção da imo ralidade e da ineficácia da economia política clássica Indose além disso as divergências são tantas que agrupálas sob um mesmo qualificativo de utópi cos resulta numa impostura Ao contrário é preciso um minucioso e paciente trabalho de investigação sobre a parte de utopia contida em cada um dos sis temas propostos a fim de indicar posteriormente qual a significação principal de cada uma delas É esse por exemplo o trabalho ao qual se dedica Miguel Abensour op cit e a qual não temos intenção de nos entregar aqui Lembremos simplesmente por exemplo que Robert Owen industrial inglês prega a criação de comunidades agrárias que absorveriam a indús tria aboliriam a propriedade privada e levariam por contágio ao advento da felicidade e da virtude sobre a terra Étienne Cabet recorre ao cristianismo para justificar a criação de um mundo novo comunista O Evangelho prescreve a partilha dos bens e a su pressão da moeda Disso resulta uma dupla equação ninguém pode se dizer cristão se não for comunista os comunistas atuais são os discípulos imitadores e continuadores de Jesus Cristo Comunismo cristão em Cabet cristianismo socialista em Buchez e em Pierre Leroux os dois exsaintsimonianos sobretudo cristãos Buchez rein terpreta 17 93 à luz do Evangelho a Convenção quis realizar o princípio cristão enquanto a Constituinte fez uma obra protestante foi individua lista esquecendose do objetivo da atividade comum A teoria do bem comum comanda todo o sistema de Buchez Quanto a Pierre Leroux ele 134 História das ideias políticas propaga ou mesmo inventa a palavra socialismo mas como a bandeira de uma religião para a humanidade e não como a da luta de classes Cada um por todos todos por cada um por meio da ciência e do amor Três discursos Somos socialistas se se entender por socialismo a doutrina que não sacrificará nenhum dos termos da fórmula liberdade fraternidade unidade mas que conciliará todos eles ibid A ode a Fourier Se aceitarmos adotar a posição metodológica que consiste em sublinhar ape nas o traço da utopia então o modelo exemplar é certamente o de Charles Fourier 17721837 Encontramse na obra de Fourier os princípios de uma crítica radical não somente da ordem social existente em seu tempo mas da própria Civi lização bem como um conjunto de proposições para construir um Mundo Harmonioso Segundo Fourier a civilização se define por três constantes reprimir corrigir moderar Constantemente a civilização é apenas repressão corre ção moderação do real no qual ela não introduz senão desordem irrazão violência Como observou Roland Barthes cf Sade Fourier Loyola Paris Le Seuil 1972 a civilização é assim um conjunto teórico imperfectível ir remediável teoricamente e Fourier portanto não buscará estabelecer uma boa teoria da civilização mas somente as condições práticas da libertação desse real assim corrigido moderado reprimido Fourier não reivindica de nenhum modo a utopia só é utópico o sistema que crê suprimir cientifica mente os efeitos de contradições que ele ignora e em particular essa contra dição fundamental entre o real e a civilização A civilização é criticável no próprio princípio de toda organização social por ela induzida cada homem nela tem necessidade da infelicidade alheia Tanto em economia como em política os princípios do liberalismo fundados na concorrência concedem sempre o prêmio ao mais forte ao mais mentiroso ao mais astucioso ao mais egoísta a sociedade é organizada na incoerência e na fragmentação de modo a selecionar os piores parasitas tais como os que vivem de rendas os soldados os comerciantes os cientistas Incoerência em matéria de indústria O EstadoSociedade 135 Comecei a desconfiar de uma desordem fundamental no mecanismo industrial e disso nasceram pesquisas que me fizeram descobrir as leis do movimento universal esquecidas por Newton Poderseão contar quatro maçãs céle bres duas pelos desastres que provocaram a de Adão e a de Páris e duas pelos serviços que prestaram a de Newton e a minha Incoerência em matéria de comércio Experimentei por ele uma aversão secreta e fiz em sete anos a promessa que Aníbal fez em nove contra Roma jurei um ódio eterno ao comércio Incoerência em matéria política a liberdade política o sistema repre sentativo a separação dos poderes não passam de mentira e engodo e le vam sempre a resultados contrários aos que se busca com eles E há pior em civilização essa incoerência generalizada se duplica num sistema de coerção também generalizado Fourier não se contenta com uma crítica dos sistemas econômico e político Sua ironia minuciosa não deixa na sombra nenhum aspecto do que forma a vida cotidiana do indivíduo educação família sexualidade urbanismo poluição e por toda parte ele descobre o traço da coerção Sua crítica ao princípio familiar será tão radical que servirá de objeto a censuras de todos os tipos inclusive por parte de seus mais fiéis discípulos Para Fourier os princípios do mercantilismo e do casamento burguês coincidem assistese a um jogo de enganos onde todos são enganados tanto os mais fortes como os mais fracos homens mulheres e crianças coexistem na dissimulação e na agressividade reprimida Pois a civilização organizou o regime dos amores numa coerção generalizada e em seguida na falsidade generalizada pois há falsidade sempre que existe regime coercitivo A proibição e o contrabando são inseparáveis tanto no amor como na mercadoria Não há sombra de justiça na sorte reservada a essas jovens postas à venda a quem quiser negociar sua aquisição e propriedade exclusivà não há sombra de justiça na sorte reservada a essas crianças trancadas no verão e tão maleducadas por babás que não têm nem os recursos nem a pai xão nem os conhecimentos nem o discernimento necessários à educação delas Mas tampouco o sexo forte conhece a felicidade Fourier elabora por exemplo um irresistível quadro analítico do corneamento passando em re vista 76 espécies de cornos Em projeto ou antecipado marcial ou fanfarrão argutos ou cautelosos irreprochável ou vítima de resguardo saudável regenerador ou conservador auxiliar ou coadjuvante transcendente ou de alto voo federal ou coligado em nome próprio ou como testa de ferro apóstata ou transfuga de urgência ou como salvaguarda judicioso ou garantido E termina essa saborosa enumeração com uma breve constatação Moralistas se os senhores atacam um vício como o adultério denunciamno na mulher e o toleram no homem porque ele é o mais forte cf Vers la liberté en amour Gallimard col Idées 1975 O EstadoSociedade 137 ela tampouco o dinheiro é suprimido mas ele não é mais fonte de espolia ção se deixa de ser necessário A coletividade protege o indivíduo mas em última instância o indivíduo nada tem a temer da coletividade o urba nismo inventado por Fourier para o Palácio da Coletividade esforçase por proteger a existência ao mesmo tempo coletiva e particular A felicidade é uma questão de justiça Mínimo de bemestar assegu rado a cada indivíduo supressão do salário são esses os traços comuns a Fourier e aos socialistas Mas ele se separa da maioria deles pelo modo de distribuição que admite e por uma concepção da justiça onde a igualdade material não tem nenhum papel Mas ele se afasta ainda mais dos socialistas pelo papel que reserva para a liberdade cf Henry Michel Lidée de lEtat Hachette 3ª ed 1898 A liberdade com efeito está por toda parte em Fourier Como Roland Barthes observa sua Utopia não comporta nenhum traço de humanismo integrador o objetivo do falanstério não é proteger a sociedade do conflito pela associação segundo as semelhanças nem reduzir o conflito pela nor malização das paixões nem transcendêlo pela compreensão do outro mas talvez simplesmente deixálo atuar E Barthes tem razão ao notar que em Fourier a força subversiva reside antes de mais nada no estilo E se a uni dade é natural se não é necessário recorrer a nenhum artifício integrador o Estado tornase inútil Em vão se procuraria no sistema de Fourier a auto ridade o poder A hierarquia é muito desenvolvida os títulos de magnatas e os cetros graduados são abundantes Mas a posse desses títulos feita para contentar certas paixões não implica nenhuma potência coercitiva Mais audacioso do que os economistas e os liberais que se limitam a restringir a ação do Estado Fourier elimina até mesmo sua ideia e nunca emprega nem mesmo a palavra que traduz a ideià Henry Michel opcit É inútil medir a força da utopia de Fourier por sua capacidade de rea lização Com efeito o que importam os sucessos e os fracassos dos falans térios os sobressaltos periódicos do desejo comunitário os progressos da agricultura ou da telecomunicação O essencial reside nesse poder de imagi nação que permitiria aos homens entrever por um instante o futuro para se recusarem a ser criados de homens que nascerão nos dois mil anos INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Abensour M Les formes de lutopie socialiste communiste no prelo Beer M A History of British Socialism Londres Allen Unwin 1948 História das ideias políticas Buchez PJ Introduction à la science de lhistoire 1833 Histoire parlamentaire de la Révo lution française 183338 Traité de Politique et de Science Sociale 1866 Cabet É Voyage en carie 1842 Le vrai christianisme suivant ésusChrist 1847 Fourier C Oeuvres Anthropos 1966 6 vols Vers la liberté en amour coletânea de extratos apresentados por Daniel Guérin Gallimard col Idées 1975 Lacroix B Eutopie communautaire PUF 198i Leroux P De lHumanité 1840 Du christianisme et de ses origines démocratiques 1848 Owen R Le nouveau monde moral textos escolhidos apresentados por AL Morton Ed Sociales 1963 A SOCI EDADE FO RA DO ESTADO DE MAX STI R N ER AO ANARCOSS I N D I CALISMO O projeto de uma sociedade industrialistâ fundada na ciência como meio de dominação da natureza e como técnica de gestão da coletividade as sim como o contraprojeto da ditadura do proletariado primeiro momento da instauração de uma sociedade sem classes por mais opostos que sejam em sua orientação política têm em comum o fato de requerer o princípio de um poder unificador que tem como missão realizar a história É da in venção fraterna e de um imaginário mais realista do que o real miserável produzido pelo Estado burguês que se alimentam os artesãos da Utopia Em seu empreendimento a anarquia gostaria de unir a radical idade desses últimos com a exigência de revolução política que está no coração da con cepção de Marx O movimento anarquista do século XIX se inscreve numa tradição muito antiga marcada ao mesmo tempo pela reivindicação da independência do indivíduo que recusa a ordem sociopolítica imposta da qual os cínicos da Antiguidade pagã são os representantes mais audaciosos e pela afirmação de que os grupos humanos são capazes de se organizar de modo autônomo segundo seus desejos e suas vontades fora ou à margem da autoridade po lítica posições muitas vezes adotadas tanto pelas primeiras comunidades cristãs quanto pelos burgueses da Idade Média ou pelos diggers quando da Revolução Inglesa por exemplo Para a anarquia colocar a questão social é não somente recusar o Estado burguês e sua problemática política sem perspectiva mas também consi derar que os indivíduos e os grupos possuem em si mesmos a capacidade de O EstadoSociedade 139 engendrar uma outra forma de organização da sociedade que não a do Es tado ou de seu equivalente o diretório dos sábios o partido encarregado de representar o proletariado etc Nem Deus nem senhor o slogan significa antes de mais nada que nenhum princípio que se supõe imutável ainda que revolucionário é aceitável já que sua própria instituição é uma hipo teca para a liberdade Por isso o tema constante que anima o movimento anarquista é a luta antiautoritária sob qualquer forma que se apresente essa autoridade Essa luta toma como ponto de apoio o fato de que em todos os níveis da realidade social a única potência efetiva é a do indivíduo e sendo assim toda outra potência deriva dela e aquela que se separa de sua origem e se volta contra ela é uma usurpação fundada numa mentira A partir disso desenvolveuse uma corrente minoritária que se ateve a essa afirmação e chegou a negar o fato da sociedade e uma corrente majoritária que se esforça por reali zar uma dinâmica que visa a opor às coerções econômicas e políticas a força de potências individuais que organizam por si mesmas sua coalizão INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Dolléans E Histoire du mouvement ouvrier 1830 à nos jours A Colin 1953 3 vols Maitron J Dictionaire biographique du mouvement ouvrier français Ed Ouvrieres 1964 67 Histoire du mouvement anarchiste en France 18801914 SVEL 1951 Netlau M Histoire de lanarchie 19271931 Ed du Cercle 1971 Sergent A Cl Harmel Histoire de lánarchie Le Portulan 1949 Voline La révolution inconnue 1947 Belfond 1969 O individualismo e os paradoxos do niilismo de Max Stirner a Netchaiev Foi no seio do movimento dos hegelianos de esquerdà e portanto na vizi nhança de Marx e de Bakunin que apareceu em 1844 escrita por Max Stir ner 180656 uma obra estranha e caótica O único e sua propriedade que é o manifesto do individualismo absoluto Tratase de um texto filosófico que não pode ser compreendido se não é inserido em seu contexto de ideias Devese recordar que no centro das reflexões veementes desse grupo contestador encontramse personagens de elevada estatura GWF He gel e Ludwig Feuerbach O primeiro elaborou uma filosofia da história na 140 História das ideias políticas qual o homem tanto em seu ser coletivo como em seu ser individual é a encarnação do movimento do Espírito Razão cujo fim é a recon ciliação universal no seio do Estado mundial contra essa escatologia que julga idealista Feuerbach construiu uma concepção crítica que põe no centro a humanidade compreendida como materialidade que para se li bertar tem de lutar contra a alienação religiosa e sua expressão filosófica o hegelianismo Com uma fingida ingenuidade Stirner pergunta o que o indivíduo ga nhou com essa operação A resposta é clara uma nova alienação Feuer bach lhe impõe realizarse como homem e define tal como a religião a filosofia as doutrinas políticas novas tarefas uma nova missão Para convencerse disso bastalhe considerar o que ocorreu com o Eu depois que o liberalismo inscreveu em seu programa a liberdade e a igualdade politicamente a tirania do rei foi substituída pela tirania da nação sobe rana socialmente as hierarquias dos estamentos foram substituídas pela hierarquia do dinheiro e a coação ao trabalho mantevese idêntica quanto aos revolucionários disputam entre si para saber a quais instituições será submetida a sociedade futura Stirner apela a uma tomada de consciência que o Eu finalmente saiba se reconhecer ao mesmo tempo como única potência real e como originali dade irredutível que deixe de crer no direito que não é mais do que a expres são do querer do Estado que não entre em sociedade com os outros se não na medida em que disso vier a tirar satisfações e de modo sempre provisó rio que recuse toda missão todo destino e que conheça apenas uma única tarefa seu próprio florescimento e seu gozo pessoal Depois de um sucesso efêmero a obra não terá efeitos notórios em seu tempo Nietzsche que ao que parece não a conheceu reencontrará seus temas e lhes dará desenvolvimentos surpreendentes Será preciso esperar pelo século XX para que essa afirmação individualista que condena todos os ensinamentos científicos e éticopolíticos encontre sua ressonância To davia essa mesma atitude de desafio em face dos valores estabelecidos e dos projetos subversivos que eles suscitam esse niilismo surgiu novamente em circunstâncias diferentes e engendrou tomadas de posições individuais de estilo completamente diverso Foi no romance de Turgueniev Pais e filhos 1862 que o termo niilismo surgiu em sua atual acepção Na mesma época Nikolai Tchernichevski apre sentou em Que fazer um personagem extraordinário o sal do sal da terrà que calma e firmemente empenhase por suas palavras e condutas em destruir as ideias recebidas e em abalar os poderes Já duas décadas an O EstadoSociedade 141 tes Vissarion Bielinski 181148 opusera às ilusões românticas a força da crí tica realista e o projeto de uma subversão profunda das estruturas mentais e sociais Na mesma óptica Nikolai Tchernichevski 182889 que passou 37 anos de sua vida na prisão ou no exílio sonha com uma mulher que fosse uma completa cidadã imagina a fundação na Santa Rússia de cooperativas femininas de produção afirma um hedonismo completo e denuncia as impos turas da alma bela Escreve ao tzar para denunciar o odioso embuste que foi a abolição da servidão Seu discípulo Nikolai Dobroliubov 183661 analisa a partir do personagem de um romance de Gontchárov Oblomov a neurose coletiva que prolifera na Rússia à sombra do despotismo o oblomovismo é o desencanto a incapacidade de reagir a resignação e a veleidade ele prevê a explosão que porá fim a essa situação insustentável O poeta do grupo Dmitri Pisarev 184068 admite que os niilistas são fanáticos mas o que os fana tiza é uma sóbria vontade muito precisa e muito humana de proporcionar a todos os homens em geral a maior parte da felicidade terrena Todavia a explosão se faz esperar a repressão contra as forças da liber dade aumentou Dizendose anarquista convencido de ter recebido a aprova ção de Bakunin Serguei Netchaiev que morreu na prisão em Petersburgo em 1882 lançase numa ação de propaganda e de prática do terrorismo Em toda a Europa dos anos que se seguem ao esmagamento da Comuna de Paris até o início de nosso século desencadeiase uma vaga de assassinatos políticos que se pretendem exemplares e que têm como finalidade provar a liberdade do indivíduo inflexível e despertar o povo de sua letargia Se na ausência de qualquer filiação há uma lógica que leva de Stirner ao niilismo russo e às afirmações nietzschianas nenhuma lógica leva do pressuposto anarquista ao uso do terror esse decorre muito mais de uma técnica inteira mente subjetiva de ajuste de contas De resto o anarquismo escolheu outros caminhos INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Netchaiev S Catecismo do revolucionário 1970 Stirner M ZUnique et sa propriété 1845 in Oeuvres completes Lausanne IAge dhomme 1972 Tchernichevski N N Dobroliubov e D Pisarev Extraits in Les nihilistes russes Aubier Montaigne 1974 142 História das ideias políticas A capacidade política das classes operárias segundo PJ Proudhon Esse título de um livro póstumo de PierreJoseph Proudhon 180965 for nece o ponto de vista que permite introduzir uma certa unidade numa obra muito diversa quanto aos objetos e aos níveis de análise cuja leitura foi hipo tecada pela crítica de Marx crítica que o marxismo posterior irá radicalizar até chegar ao desconhecimento É verdade que as demonstrações de Proudhon são prejudicadas por im precisões históricas e por referências filosóficas pouco pertinentes e que lhe ocorreu dar sua confiança a empreendimentos duvidosos Mas há dois as pectos de sua atividade sobre os quais não poderia ser levantada nenhuma suspeição A constância e a firmeza de seu devotamento à causa do socialismo se por esse termo se entende a dinâmica de emancipação das classes subju gadas como pode ser testemunhado entre outras coisas por seu discurso à Câmara de 31 de julho de 1848 que valeu ao deputado Proudhon uma conde nação quase unânime da Assembleia O desejo de se manter o mais perto possível das iniciativas próprias da classe operária que se organizava para lutar contra a expressão capitalista contra a miséria e contra a apatia política bem como sua vontade de inscre ver seu projeto no quadro desse combate por uma autonomia máxima do proletariado Essa vontade de levar em máxima conta as diversas formas da reivindi cação empírica levou a análise proudhoniana a recusar as abstrações realiza das pelos economistas moralistas e políticos reformadores ou revolucioná rios Pois as ações operárias não separam os dados econômicos dos sociais ou políticos elas lutam contra a opressão e pela justiça sem prejulgar sobre a natureza da instâncià cuja transformação será decisiva Intervêm onde po dem quando podem com objetivos que evoluem em função dos episódios de suas lutas A economia política clássica não viu que a divisão social do trabalho no sistema capitalista implica uma espoliação um roubo que não pode deixar de ter como efeito o antagonismo entre proprietários e proletários Isolando o domínio econômico ela mascarou o fato de que o capital enquanto tal não produz nada que ele é apenas um suporte e que somente o trabalho é produ tivo Os jacobinos e seus sucessores mais ou menos radicais Louis Blanc e Auguste Blanqui ao privilegiarem o fator político tomando como objetivo O EstadoSociedade 143 a conquista do poder e desconhecendo a importância das relações sociais na produção abriram caminho para a onipotência do Estado que cedo terá por fim somente a sua manutenção e para isso o seu fortalecimento e a limitação das liberdades Quanto aos arautos da igualdade e da fraternidade universais eles desconhecem as relações empíricas de força O próprio funcionamento do capitalismo põe em destaque a interpre tação do econômico do social e do político o sistema da propriedade ca pitalista que se apropria do excedente do trabalho operário implica a cen tralização estatal e a ocupação do poder pelos governantesproprietários em todos os níveis da vida social E viceversa a constituição de uma instân cia soberana ainda que fosse o fruto da vontade geral como queria Jean Jacques Rousseau implica uma coerção política que impede os produtores de organizarem a produção segundo seus interesses e suas vontades e leva inelutavelmente a uma outra servidão Sendo assim o teórico preocupado com a realidade operária concebe a indispensável revolução como remanejamento que subverte todas as relações sociais Embora seja necessário por exemplo expropriar os capitalistas pro prietários das grandes unidades de produção industrial deve ser evitada a es tatização que reinstaura a dinâmica da opressão a socialização deve ser com preendida como controle dos produtores sobre sua atividade no próprio local que permita determinar o valor dos diferentes produtos mediante convenções nacionais constantemente revisáveis Do mesmo modo a fim de evitar a insti tuição de um princípio centralizador devese conservar o estatuto privado do artesanato do pequeno comércio e da pequena propriedade agrícola Pois se é preciso abolir a exploração tratase também de preservar a motivação motriz da atividade a competição limitada pela fixação de regras que definam o valor médio em função do custo social e que excluam qualquer possibilidade de monopólio Assim Proudhon empenhase em combinar do modo mais flexível possível o coletivismo aplicável às empresas de impor tância e função nacionais o mutualismo que é o fermento da invenção e da autoorganização operárias e um setor privado onde são garantidos os direitos da individualidade solitária Não é certo que Proudhon tenha tido razão quando se referiu à filosofia de Hegel para legitimar seu projeto a ideia da dialética aberta na qual os termos contraditórios se conservam sem sín tese e onde cada um desenvolve seus aspectos positivos e anula o que implica de negativo não tem nenhum sentido teórico Só pode funcionar como me táfora para denunciar as simplificações de uma filosofia da história que sob o pretexto de inteligibilidade obriga a classe operária a realizar uma missão previamente definida 144 História das ideias políticas A esse modo de organização diversificada único capaz de introduzir a justiça nas relações sociais corresponde a forma política do federalismo O empirismo de Proudhon reconhece como dados o fato da família e o da nação Mas é inútil em sua opinião que essa última se institua como poder de Estado Quanto ao poder central não poderia ser senão a emanação das comunas das regiões e das empresas coletivas ou mutualistas que já administrando a si mesmas necessitariam apenas de um órgão de coorde nação e de orientação que teria unicamente de estatuir acerca das questões comuns após debates em que partes interessadas discutiriam amplamente Decerto é ilusório pressupor uma harmonia qualquer entre as realida des constituintes Surgirão conflitos implicando relações de força sabese muito bem que o recurso à decisão dos que dizem representar a vontade geral leva a dar força de lei ao interesse do grupo mais forte É mais realista e conforme à justiça prever organismos de discussão no seio dos quais po deriam ser estabelecidos compromissos finalmente aceitáveis pelas partes em conflito Tão afastado do liberalismo quanto do socialismo autoritário o anar quismo de Proudhon recusa a existência formal ou real de qualquer princí pio que transcenda a sociedade Ele recusa o aparelho de Estado encarregado de executar os decretos da vontade geral desconfia das lições que a com petência política pretende dar aos produtores não reconhece a autoridade de um partido por mais revolucionárias que sejam suas proclamações Não admite senão uma única transcendência a da ideia de justiça Ela intervém como valor regulador no duplo sentido de que constitui a motivação con creta dos movimentos operários que lutam contra a espoliação a humilhação e a impotência às quais a irracional idade e a violência burguesas condenam os trabalhadores e o ideal a que eles devem visar INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Ansart P Naissance de lanarchisme PUF 1970 Langlois J Défense et actualité de Proudhon Payot 1976 Proudhon PJ Questce que la propriété 1840 De la création de lordre dans lhumanité 1843 Philosophie de la misere 1846 ldée générale de la Révolution du XIX siecle 1851 Du principe fédératif 1865 De la capacité politique des classes ouvrieres 1865 Proudhon coletânea de textos por C Bouglé Alcan 1930 O EstadoSociedade 145 Do anarquismo libertário de Bakunin ao anarcossindicalismo O pensamento e a ação de Mikhail Bakunin 181476 situamse em linha de continuidade direta com o pensamento de Proudhon Mas Bakunin distin guese de Proudhon por um lado agressivo e abrupto característico também das tomadas de posição dos libertários espanhóis catalães e jurassianos cujas federações ficaram ao lado de Bakunin nos conflitos que o opuseram a Marx no seio da Primeira Internacional Bakunin que também fez parte dos hegelianos de esquerdà acreditouse obrigado a definir suà dialética ao contrário de Proudhon ele privilegia a negatividade A posição do homem é sua animalidade a negação é a revolta contra esse estado de dependência por meio do pensamento a negação da negação é a realização da liberdade humana pela destruição das limitações impostas pelo pensamento Mas depois de se ter empenhado nos movimentos que militavam em favor da constituição de Estados nacionais eslavos contra a hegemonia tza rista aderiu ao campo antiautoritário quando em 1861 conseguiu fugir do seu exílio siberiano Até sua morte durante 15 anos participou fisicamente dos combates travados contra a opressão e polemizou tão vivamente contra Marx que esse se amedrontou e conseguiu expulsálo da AIT em 1872 Sua perspectiva histórica é incisiva a religião e a ideia de Deus o Estado e a autoridade de um princípio político e a propriedade e os sistemas econô micos que lhe correspondem talvez tenham contribuído no passado para a emancipação do homem do seu estatuto animal Hoje estão superadas e constituem freios à emancipação humana e ao florescimento da liberdade A crítica da religião ao modo de Feuerbach ou de Marx é insuficiente Para afirmar o homem é preciso negar Deus O ateísmo e o que dele resulta normalmente o niilismo prático a recusa das morais constituem o fun damento do pensamento libertário Piotr Kropotkin 18421921 que possuía uma boa formação científica irá desenvolver esse tema pretendendo darlhe uma legitimação científica segundo ele a organização físicoquímica é anár quica sem princípio unificador e apresenta em cada um dos seus campos fatos de associação O Estado sob qualquer forma que se apresente bem como o que ele implica a autoridade centralizada a administração a legislação a represen tação dos cidadãos não pode deixar de se opor ao livre florescimento da humanidade Qualquer que seja o modo pelo qual é designada a instituição que detém a potência de decidir pela sociedade se opõe a essa e a coage A ditadura do proletariado dos partidários de Marx não poderia ter outro História das ideias políticas fim além da ditadura de uma burocracia sobre o proletariado precisa Mikhail Bakunin Ele se vincula à ideia proudhoniana de uma federação de comunas Pois se é preciso suprimir a propriedade privada dos meios de produ ção é preciso também construir formas de organização de tal tipo que as di versas liberdades individuais possam se fortalecer uma às outras e explicitar suas capacidades fora de qualquer coerção econômica global O comunismo libertário tem como elemento de base nessa óptica a comuna livre e a em presa dirigida coletivamente O fracasso da Comuna de Paris o constante fortalecimento dos poderes imperialistas no terceiro terço do século XIX o desenvolvimento massivo do capitalismo industrial que arregimenta massas cada vez maiores de traba lhadores as ilusões eleitoralistas alimentadas pelos partidos socialistas que se unem no seio da Segunda Internacional Operária em 1889 todos esses fa tos atingem duramente o movimento libertário O terrorismo individual ou especulações sobre o emprego ético da violência de massa como as de Ge orges Sorel em suas Reflexões sobre a violência 1906 pretendem fornecer uma resposta a essa situação bloqueada Todavia o anarquismo encontra um ponto de enraizamento mais adequado e seus objetivos na ação que empre ende nos sindicatos operários Sobretudo na Itália na Catalunha e na França a concepção proudhoniana readaptada às circunstâncias encontrase na origem de poderosas ações que visam a obter ao mesmo tempo em cada empresa em cada profissão um melhoramento das condições de trabalho e dos salários a manutenção da combatividade dos trabalhadores e o agrupa mento nas Bolsas do Trabalho da classe operária no nível de cada cidade a fim de garantir a emancipação e a formação de cada um e de constituir uma força capaz de intervir globalmente na luta econômica O objetivo consiste em forjar fora dos partidos políticos uma força que esteja nas mãos dos operários e que controlada por eles possa se contrapor à política do Estado burguês e ao mesmo tempo lutar concretamente contra o poder capitalista Tratase não de conquistar o poder do Estado mas de fabricar uma máquina autônoma de onde deve brotar uma nova sociedade Na França a Carta de Amiens adotada pela CGT Confederação Ge ral dos Trabalhadores em 1906 especifica bastante bem o sentido político desse apoliticismô E a violência da repressão que se abateu sobre as gran des greves nacionais entre 1900 e 1914 testemunha o temor que ele suscita entre os governantes Tal como o enquadramento dos sindicatos por Lênin e Trotski após a Revolução Bolchevique Tal como a batalha iniciada em 1980 na Polônia sobre os sindicatos livres O EstadoSociedade INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bakunin M Oeuvres completes 6 vols Stok 190722 Guérin D IAnarchisme Gallimard col Idées 1965 Kaminski HE Bakounine la vie dun révolutionnaire Ed Montaigne 1938 Kropotkin P Paroles dun révolté 1885 Flammarion 1885 147 Idealismo crença ingênua no homem otimismo inconsiderado no que diz respeito à capacidade das coletividades de se encarregar de seus conflitos espírito pequenoburguês e culto da individualidade realismo grosseiro exaltação das tendências materialistas gosto pela expressão violenta e pelo ato excessivo coletivismo que não hesita em ironizar os sentimentos na turais complacência culpável em face do desvio e da anormalidade Essas críticas foram dirigidas ao mesmo tempo contra o anarquismo No melhor dos casos falam em nome de um poder presente ou futuro fortalecido por um saber sobre o homem a sociedade e a história Desconhecem precisamente a singularidade do ponto de vista libertário propor uma perspectiva de emancipação sem por causa disso ter de cons truir uma política elaborar uma Constituição ou um programa econômico e nomear um governo considerar que a questão social não pode ser posta e ter sua solução encaminhada a não ser pela própria sociedade sociedade feita de indivíduos e de grupos inteiramente diferentes e não préformada como povo nacional classe sábia ou produtiva ou proletária ou con senso saco onde cada político põe o que convém a suas ambições e seus in teresses aceitar a palavra liberalismo quando ela implanta uma dinâmica de liberdade mas recusar as instituições que ela assume já que destinada a fortalecer a potência do Estado denunciar o socialismo autoritário que pre tende pôr como objetivo a libertação da sociedade como tal mas começa por subjugála aos imperativos da eficácia econômica e do sentido da história Uma tal posição assumida no jogo político é frágil É preciso também constatar que os anarquistas perderam suas batalhas políticas no século XX Mas o pensamento libertário não deixou e não deixa de continuar ativo no Leste e no Oeste nas lutas contra o totalitarismo burocrático e nas que são travadas contra a ordem industrial capitalista Ele se desenvolve não como doutrina mas como estado de espírito e como prática cotidiana Ele se en contra espontaneamente em relação de cumplicidade com as formas de cul tura literária artística filosófica mais ricas e mais vivas do mundo contem porâneo O materialismo prático que tal pensamento tentou implantar a História das ideias políticas imprescritível liberdade que tomou como eixo de suas afirmações estão em grande parte na origem das atuais investigações que visam a definir a demo cracia como organização da liberdade fora da potência do Estado I N D I CAÇÕES B I B LIOG RÁFI CAS GuyGrand G La philosophie syndicaliste Grasset 1951 H Dubief Le syndicalisme révolutionnaire textos escolhidos A Colin col U 1969 Labriola A Socialisme et philosophie Lettres à Georges Sorel Giard 1899 Lefranc G Histoire du mouvement syndicalfrançais Libr syndic 1937 Les expériences syndicales internationales Aubier 1952 Pelloutier F Histoire des Bourses du Travail 1902 Costes 1946 Sorel G Réflexions sur la violence 1908 Riviere 1946 Poder de um só poder de um grupo poder do povo a classificação tripartite exposta pela primeira vez por Heródoto revelase hoje particularmente inoperante Em grande número de Estados contemporâneos a legitimidade proclamada é de tipo democrático ao passo que a aparência política confere o poder a uma espécie de monarca temporário às vezes eleito e o funcionamento político real é de tipo oligárquico Quanto às classificações que tendem hoje a distinguir os Estados de acordo com o fato de serem o produto do liberalismo do socialismo ou do fascismo tratase de algo construído com finalidades de propaganda ou destinado a registrar debates ideológicos tendo apenas no mais das vezes um valor polêmico Desse modo no que se refere ao conjunto dos Estados líderes do bloco ocidental ditas democracias ocidentais liberais ou avançadas o termo gerência parece o menos apropriado para designar o corpo de concepções políticas que os sustenta O termo liberalismo habitualmente contraposto a socialismo ou comunismo engendra numerosas confusões tanto mais porque se refere a um conjunto de proposições doutrinárias dominantes no século XIX mas de nenhum modo permanentes O termo gerência pode permitir pôr fim a essa oposição equívoca ele designa elementos doutrinários do liberalismo tanto em sua gênese como em seus desenvolvimentos mas também do socialismo cuja especificidade tende frequentemente a ser anulada quando se faz dele um subproduto doutrinário do marxismo Com efeito o termo gerência tal como o entendemos aqui implica a renúncia a uma concepção do liberalismo inteiramente contida na ideologia de uma classe social ou confundida com um programa socioeconômico limitado ao laisserfaire laisserpasser Em sua História da teoria política 150 História das ideias políticas George H Sabine constata no fim do século XIX uma convergência de princípios entre os pensamentos liberais e socialistas e tenta avaliar o que a evolução das democracias ocidentais deve a essa convergência É certo que em final do século XIX os liberais parecem dispostos a con siderar o mercado livre como uma instituição social e a pôr fim à oposição sistemática entre o econômico e o político O Estado tornase menos sus peito a concepção da liberdade menos negativa Entre certas tendências do liberalismo e do socialismo em particular a fabiana a fronteira é muito tênue Produzse uma espécie de osmose a segurança e a estabilidade são também condições da liberdade e a competição entra em acordo com a pre visão planned society não se renuncia ao individualismo mas esse é ra cionalizado Essa evolução impõe o abandono do termo liberalismo a não ser que lhe seja conservado o estrito sentido que tem na luta eleitoral para distingui la das posições conservadoras ou socialistas ou a não ser ainda que se lhe permita monopolizar sob sua sigla o conjunto das concepções democráti cas às quais aderem outras correntes particularmente socialistas Mas nesse caso para evitar qualquer confusão é melhor falar em gerêncià Não pretendemos ocultar as dificuldades metodológicas e os riscos teó ricos em que incorremos com essa escolha e que são pelo menos de duas diferentes ordens inclusive contraditórias Por um lado para levar a sério um acordo mínimo sobre um certo número de valores e de práticas devese evitar a tentação de apagar as dife renças de negar os antagonismos políticos tomandose ao pé da letra o mito do consenso Por outro lado e inversamente para levar em conta esses antagonis mos internos ao EstadoGerente devese evitar considerálo como um sim ples quadro informe e não específico a partir do qual emergem outras for mas de Estado essas específicas de modo que a gerência captada como tecido de ilusões e suporte de mentiras transformarseia num princípio de causalidade e de responsabilidade O EstadoGerente existe encontramolo todos os dias o fato de que esteja grávido de tentações fascistas tecnocráti cas ou de outro tipo não diminui sua especificidade mas ao contrário con tribui para mantêla O termo gerência implica a ideia de uma separação necessária entre o poder e uma realidade que é dada ao mesmo tempo de modo natural e histó rico a saber a sociedade civil Em consequência a sociedade civil não pode ser considerada como matériaprima oferecida às experiências políticas O EstadoGerente 151 Georges Burdeau pois tanto os indivíduos como os grupos que a consti tuem possuem antes e fora do Poder direitos que esse tem de respeitar Todavia o Poder é considerado como a própria expressão dessa sociedade cuja independência ele figura e garante Essa posição do Poder posição de exterioridade ao dado social que ele tem a missão de regular já que ele tam bém é seu tutor designado faz do Estado o gerente da sociedade A expressão EstadoGerente testemunha o equívoco que caracteriza essa concepção e reforça o silêncio teórico de que ele se tornou objeto no sé culo XX não tendo em seu favor salvo exceções senão testemunhas muito medíocres ou dissertações despojadas de amplitude e de sabor Mar cel Prélot com o risco de abandonar o terreno ideológico aos opositores FP Bénoit A gerência é silenciosa as grandes vozes do século passado se calaram tudo se passa como se na ordem política os princípios tivessem se tornado objeto de tão grande consensus que podem dispensar as doutrinas Salvo se resolvermos tomar esse silêncio como sinal de um malestar malestar em aceitar o equívoco da gerência malestar em aceitar a espe cificidade desse EstadoGerente trabalhado de dentro pelas tentações mais antagônicas A gerência implica ao mesmo tempo a obrigação para o que gere de es tar a serviço de seu mandante o corpo dos cidadãos na maioria dos casos e a precariedade essencial do mandato fixado pelas regras do jogo político em vigor Todavia cada ato do gerente é marcado pelo timbre da potência soberana O EstadoGerente é um ser duplo limitado pela obrigação de ser viço para a qual foi instituído e levado a usar uma potência que multiplique seu título de legitimidade Essa duplicidade introduz disjunções significativas nos valores constitu tivos da concepção política da gerência como por exemplo para citarmos as mais notórias o humanismo o pluralismo e o reformismo A gerência faz apelo ao humanismo reconhece uma essência comum a todos os homens quaisquer que sejam suas condições de onde ela faz de rivar direitos fundamentais que tem por missão garantir no quadro de um Estado de direito Mas tanto no interior como no exterior o Estado de di reito contém sua própria contradição legalizando a exceção e a derrogação como partes integrantes do sistema Exacerbados esses efeitos do colonia lismo e do nacionalismo acumulamse os desmentidos às proclamações hu manistas A NaçãoEstado terá triunfado sobre o EstadoGerente Outra característica da gerência a afirmação da necessidade do plura lismo político Separado da sociedade o Poder emana dela é portanto o produto de sufrágios livremente expressos Todavia se pluralismo e consenso 152 História das ideias políticas exigemse reciprocamente também se contradizem A sociedade é múltipla e conflitual o poder que a gere não poderia representála sem tentar reduzi la à uniformidade e perpetuar sua gerência pela manipulação o EstadoPar tido é uma ameaça constante Finalmente implícita na própria fonte do liberalismo a vontade de re formismo está incluída na ideia e na atividade da gerência Mitos progressis tas e desenvolvimentos tecnológicos decuplicam a necessidade do interven cionismo estatal de modo que hoje em nome da racionalidade técnica o EstadoCientista avança em todo EstadoGerente INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bénoit FP La démocratie libérale PUF 1979 Burdeau G Le libéralisme Le Seuil 1979 Prélot M Histoire des idées politiques Dalloz 1966 Sabine GH A history of political theory Dryden Press Hinsdale Illinois 41 ed revista por Thomas L Thorson 1973 0 H U MAN ISMO O humanismo é entendido aqui em seu sentido mais amplo e designa o con junto de doutrinas e mesmo de atitudes que tendem a considerar o homem como fim e valor superiores Quer seja datado do Renascimento ou do sé culo XIX o termo para além dos grandes debates filosóficos e antropológi cos pode designar uma ideia simples em comunidade o individualismo se veste de moral e essa moral de certo modo sustentará o político É nesse sentido que a permanência do protesto humanista é um traço do EstadoGe rente Uma tal permanência não implica nem sua realidade nem sua men tira Mas implica efeitos de discurso que devem ser relacionados com um ordenamento jurídico o EstadoGerente se organiza em Estado de direito A raiz não é nova o humanismo contém o universalismo no sentido de que a particularidade individual garante o respeito pelo universal Sendo assim o humanismo leva a recusar a fundação de uma definição da humanidade com base em distinções e diferenças de raça ou de classe por exemplo e a proclamar todos os homens que vivem no seio de uma comunidade política como iguais diante da lei que garante seus direitos O EstadoGerente 153 Do humanismo ao Estado de direito A questão do Estado de direito encontra suas fontes filosóficas na obra por exemplo de Kant cf cap III Mas ela restringiuse por muito tempo ao terreno jurídico cf no direito administrativo francês as discussões relativas ao princípio da legalidade Conheceu há pouco uma nova voga no seio da teoria política que a utiliza por vezes como meio para possibilitar uma abor dagem da especificidade das Democracias Ocidentais em relação aos Estados ditos totalitários O debate que assim se instaurou deu lugar a interessantes aberturas mas apresenta o risco de levar a um duplo impasse sobretudo se não for capaz de transcender as considerações puramente polêmicas Primeiro impasse a tentação de autossatisfação A palavra é tomada em sua realidade o Estado de direito é aquele que inteiramente submetido a um Direito considerado como justo trata seus cidadãos em função de uma estrita legalidade Desse modo a simples alusão a esse paraíso jurídico per mite ocultar as discriminações as injustiças as exceções internas cometidas em seu próprio nome e a reflexão tornase deliberadamente cega diante das contradições do sistema Melhor na medida em que nada justifica a expor tação do Estado de direito um certo ambiente internacional é dissolvido o colonialismo e o imperialismo em qualquer de suas formas não têm ne nhum papel na explicação do Estado de não direito o que se faz é simples mente uma exortação ao grande combate pelos direitos do homem Com bate utilizado para fins políticos grosseiros Mas assistese ao delineamento de um risco mais insidioso na atitude dos que de boafé chegam a atribuir à própria forma estatal os méritos do Direito valendose do fato de que não existe nem histórica nem sociologicamente Estado de direito sem Estado e que a contrario a carência de Direito em outras partes nasce da ausência de Estado Além de não repousar em nenhuma consideração séria uma tal análise fornece seus argumentos de autoridade às doutrinas da Segurança cuja propaganda se fortalece ao agitar contra a delinquência e o terrorismo os espectros da insegurança Mas o debate dá lugar a um segundo impasse ligado dessa feita à escola do ceticismo Retirando argumentos das hipocrisias das insuficiências e dos crimes do Estado de direito superando até mesmo a crítica marxista de seu formalismo chegase a recusar a distinção entre os Estados a renunciar a dar seu nome às democracias e portanto a compreender o que nelas se passa ainda que se trate da incerta sorte da liberdade Política da mescla indiferen ciada que alimenta os positivismos e impede a inteligibilidade do político 154 História das ideias políticas Assim para além das discussões polêmicas é preciso voltar a essa ques tão fundamental que segundo Claude Lefort está contida na expressão Es tado de direito ou seja a operação de separação entre o poder e a Lei nos termos da qual um novo ponto de sustentação é fixado o homem Assim o direito encontrase categoricamente estabelecido na natureza do homem uma natureza presente em cada indivíduo nos termos da qual o Estado de direito implica certamente quaisquer que sejam os meios de dominação postos à disposição de uma classe a possibilidade de uma oposição ao po der fundado no direito O conjunto dos discursos que sustentam o EstadoGerente é portador dessa proclamação humanista que alimenta os fundamentos e os desenvol vimentos do Estado de direito discursos inteiramente ideológicos mas que contribuem para a constituição dessas forças simbólicas específicas de uma certa realidade política INDICAÇÃO BIB LIOGRÁFICA Lefort C Droits de lhomme et politique Libre 807 Payot reeditado in Cl Lefort Einvention démocratique les limites de la domination totalitaire Fayard 1981 ed bra sileira A invenção democrática os limites da dominação totalitária Brasiliense São Paulo 1982 A inspiração cristã Embora a Igreja viva no mais das vezes separada do EstadoGerente ela con tribuiu poderosamente para inspirar os seus fundamentos ideológicos e em particular participou na promoção do humanismo A questão do desenvolvi mento das tendências das tentações das hesitações do cristianismo político no século XX supera por sua amplitude a investigação puramente dou trinária Nesse domínio a reflexão não pode dispensar estudos ao mesmo tempo históricos e teológicos aos quais o presente livro não pode aludir Contentarnosemos em recordar as observações de Hegel relativas ao alcance do monoteísmo esse instituindo um Ser perfeito infinitamente po deroso e bom como criador de todas as coisas fazendo do homem uma criatura livre libertou o humano ao mesmo tempo de sua submissão ao capricho das divindades pagãs e de sua inclusão no dado natural o homem criatura livre é doravante um ser liberado para sua desgraça ou felicidade O EstadoGerente 155 para sua danação ou salvação A ajuda da Igreja fundada por Deus permite fazer com que as potências da salvação triunfem sobre as da danação A Igreja é instituída para socorrer os homens a política cristã participando do poder ou se apoderando dele tem como objetivo facilitar essa ação salvadora da humanidade Na realidade como se sabe a questão não é assim tão óbvia e a voca ção humanista cede frequentemente lugar às exigências de mediação política Mesmo quando algumas vezes como em 1978 com a eleição de João Paulo II a Igreja colocou em sua direção um verdadeiro papa político A primeira encíclica do pontificado Redemptor Humanis de 1979 rea firma fortemente a ideia de que a Redenção envolve a humanidade inteira pois cada homem traz em sua particularidade o valor divino A seu modo a Igreja parece se alinhar com a defesa dos direitos humanos que por tanto tempo combateu em sua formulação revolucionária e republicana e que ten tará compatibilizar com as múltiplas proibições emanadas de sua ordem moral Aqui o humanismo não sofre apenas o desmentido cotidiano de uma realidade exterior ele está ainda nos balbucios de uma reivindicação concreta Os filósofos cristãos desse século de Simone Weil 190943 a Gus tave Thibon 19032001 de Unamuno 18641936 a Gabriel Marcel 1889 1973 de Teilhard de Chardin 18811955 a Maritain 18821973 buscam apaixonadamente fazer com que recuem os limites da indiferença diante da condição temporal o sofrimento humano continua em busca de seu esta tuto a partir do momento em que o mandamento da caridade não contém indicação precisa sobre a organização da justiça Ora a humanidade que se pretende proteger enquanto tal não é reconhecida como livre em suas escolhas entregue a seu próprio orgulho de resto ela não soube organizar mais do que a opressão do egoísmo individual ou da barbárie coletivista O humanismo cristão implica uma ambiguidade específica O homem decerto é por ele considerado como valor supremo já que feito à imagem de Deus Nesse sentido ele apela a um universalismo A pessoa humana é pro tegida sem distinção de sexo raça classe cultura Mas é à Igreja que cabe manifestar o mistério de Deus desse Deus que é o fim último do homem assim como ao mesmo tempo revelar ao homem o sentido de sua própria existência ou seja sua verdade essencial Encíclica Gladium et Spes 1965 Entre Deus e o homem se interpõe a Igreja ou em outras palavras uma organização com seus interesses sua burocracia suas estratégias sua polí História das ideias polfticas tica Essa especificidade organizacional particularmente forte no caso do ca tolicismo o Soberano Pontífice é de direito o chefe de um Estado explica por que de acordo com o caso o cristianismo apareça como o defensor dos direitos do Homem diante dos poderes políticos que o amea çam essencialmente Estados socialistas ateus o promotor dos direitos da Igreja ao lado de poderes políticos que o acei tam EstadosGerentes laicos A proclamação humanista de toda uma parte da corrente cristã por tanto serviu para uma acomodação com regimes cuja conformidade aos valores do cristianismo não é evidente nacionalsocialismo hitleriano di taduras de Mussolini e Franco etc Essa aparente anomalia não se explica apenas pela atuação dedicada aos direitos da Igreja mas também pelas ca racterísticas do humanismo cristão que propaga as virtudes da ordem e da autoridade incitando assim à submissão Nos EstadosGerentes esses cris tãos se alinharam entre os mais conservadores defendendo o nacionalismo o racismo e o colonialismo Como exemplo basta lembrar que no fim do século a divisão entre os dreyfusistas e os antidreyfusistas era em ampla medida a mesma que havia entre não católicos e católicos O humanismo contudo pode levar a uma atitude inversa tanto por parte de cristãos que o tomam ao pé da letra como inclusive em certos contextos por parte das Igrejas que podem se tornar instrumentos últimos de oposição à ditadura como na América Latina Fundado por Emmanuel Mounier o movimento personalista represen tou o mais interessante esforço intelectual para tentar retirar o humanismo cristão de seus impasses Enquanto pessoa o indivíduo é apreendido em sua relação com o outro e é essa relação que funda tanto seu sentido originário como sua vocação Em determinado sentido o personalismo abre caminho para um engajamento o ideal cristão incita a uma revolução espiritual con tra a despersonalização das relações humanas num mundo dominado pelo egoísmo pelo materialismo pelo capitalismo Mas Mounier recusando à burguesia capitalista o direito de monopolizar o Evangelho denuncia tam bém qualquer tentação marxista A ortodoxia marxista deu provas mais sangrentas da selvageria da Razão do que os excessos da Inquisição o fez em relação à conservação do fanatismo O imperialismo proletário ameaça suceder duramente com a dialética na mão os imperialismos capitalistas Mais ainda do que a ditadura de um interesse que é frequentemente temperada pela prudência e por um certo relativismo O EstadoGerente 157 devese temer uma primazia do espiritual que serviria apenas para encobrir um regime autoritário da abstração A Razão impessoal não pode respeitar as pessoas INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Maritain J Christianisme et Démocratie Hartmann 1943 ed brasileira Cristianismo e democracia Agir Rio de Janeiro Humanisme intégral Aubier 1936 ed brasileira Humanismo integral Cia Ed Nacional São Paulo Zhomme et lEtat PUF 1954 ed brasileira O homem e o Estado Agir Rio de Janeiro Mounier E Manifestes au service du personalisme Le Seuil 1936 Les certitudes difficiles Le Seuil 1951 O humanismo republicano Contra o coletivismo e o fascismo contra o materialismo e o reino da má quina denunciando o compromisso das Igrejas com os Estados no racismo e na guerra o humanismo tem também sua voz laica As correntes liberais do século XX quando não confessam oficialmente um conservadorismo cris pado na defesa de seus privilégios ou quando não se entregam às tentações do organicismo cientificista pretendem apelar à herança das Luzes e repetir ainda que o homem é finalidade suprema e não poderia ser tratado como uma coisa que ele tem em relação ao Estado direitos fundamentais que a República protege Herdeiro do utilitarismo o radicalismo por exemplo crê poder resolver as ambiguidades cristãs no que se refere ao sofrimento humano a felicidade é deste mundo Mas no século XX o otimismo se faz mais matizado O do mínio da natureza a ampliação das riquezas o desenvolvimento da educa ção não triunfaram contra a malvadez humana É preciso mais Léon Bourgeois primeiro Presidente do Conselho radical 1895 esfor çouse no sentido de elaborar uma teoria social e política a partir do conceito de solidariedade Tratase de tornar historicamente aceitável a tese do con trato social no sentido de uma superação na origem da soberania estatal não poderia estar um contrato no sentido estrito do termo já que a realização de um tal ato supõe uma sociedade já organizada mas há algo como um quase contrato O fato de se nascer numa sociedade humana compromete imedia tamente o indivíduo em relação a tal sociedade Mas o compromisso é bila História das ideias políticas teral a sociedade se compromete a reparar as injustiças que resultam de sua existência Desse modo as leis atos da vontade coletiva têm de remediar as injustiças e restabelecer a igualdade Essa é a função do Estado que não é nada mais do que o fiador de todos os contratos e que por conseguinte deve pagar aos que são credores e fazer com que os devedores paguem A ideia de solidariedade assim substitui a ideia muito mais vaga na opinião de Léon Bourgeois da fraternidade e confere ao Estado um verdadeiro dever de as sistência e de intervenção Nos termos do quase contrato social a autoridade é uma gestão de negócios que deve impor à propriedade encargos funcionais desenvolver a solidariedade progressiva e generalizar a previdência Diante da questão social esse solidarismo em sua pretensão de renovar os funda mentos do radicalismo acantonase num reformismo prudente tentando ao mesmo tempo promover uma ideia mais concreta dos direitos do homem Em seu livro A democracia diante da ciência 1925 Célestin Bouglé tenta ampliar as bases filosóficas do solidarismo demonstrando que no quadro da República a democracia será aplicada à sociedade o resultado do de senvolvimento da racionalidade cartesiana e dos progressos científicos que farão com que recuem definitivamente o elitismo o autoritarismo o racismo permitindo finalmente a afirmação concreta dos direitos do homem INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bourgeois L La solidarité A Colin 1896 Essai dune philosophie de la solidarité Alcan 1902 O socialismo h umanista Para a socialdemocracia o humanismo é algo óbvio O conjunto de suas declarações humanistas carece de qualquer originalidade teórica em compa ração com as que emanam dos outros sustentáculos do EstadoGerente No máximo ela se contentará com uma atitude de vigilância crítica diante das distorções entre as intenções proclamadas e as práticas manifestas de seus adversários na competição política Todavia é essa reivindicação humanista que a distingue especificamente em primeiro lugar das correntes marxistas leninistas Assim Eduard Bernstein nesse início do século XX abriu o dossiê do revisionismo em nome de um retorno ao humanismo em nome mais O EstadoGerente 159 precisamente de um retorno a Kant contra Hegel para condenar sem ape lação os fundamentos materialistas e dialéticos da teoria de Marx Bernstein expressa por exemplo seu desacordo com a célebre fórmula de Marx Não é a consciência do homem que determina sua existência ao contrário é sua existência social que determina sua consciência Embora o fator determi nante da evolução social resida na produção e na reprodução dos meios de existência objeta Bernstein a consciência do homem fonte de conheci mento e de vontade não pode ser subordinada à matéria O conhecimento permite ao homem mudar o curso das coisas pois a necessidade só é cega na medida em que não é compreendidà É preciso em particular reabilitar contra Marx que a dessacralizou a Moral enquanto potência capaz de ação criadorà Contra Marx Bernstein demonstra que o desprezo pelo ideal a elevação dos fatores materiais ao nível de forças onipotentes no seio da evolução são uma ilusão Fiel continuador do pensamento de Bernstein o socialista belga Henri de Man pretende também demonstrar que a hipótese materialista de Marx é radicalmente superável e superada a luta de classes só tem sentido se trans ferida do plano econômico para o plano ético a não ser que se deixe de lado o objetivo final do projeto socialista Para que a emancipação de uma classe implique realmente a emancipação da humanidade em seu conjunto é pre ciso que ela justifique seus objetivos e seus métodos não em nome do inte resse particular mas através de juízos de valor de validade humana geral Ademais o marxismo enganase quanto a seus inimigos e às causas do mal não são os princípios do humanismo burguês ou do cristianismo que devem ser denunciados mas apenas a insuficiência de sua realização desse modo o movimento socialista é ao mesmo tempo o defensor da democracia da qual a burguesia desertou e o realizador do ideal cristão que foi traído pela Igreja Henri de Man tenta fundar suas exigências revisionistas no que ele mesmo chama de otimismo cultural humanistà a cultura proletária sem se aburguesar deve retomar o impulso dado na época cultural burguesa e estender o domínio do próximo em direções muito diferentes contra as barreiras de raça de nacionalidade de religião de sexo de idade e de classe Mas isso só é possível porque o proletariado não detém o monopólio do ideal socialista que é fundado em convicções morais de ordem universal O so cialismo é uma tendência da vontade no sentido de uma ordem social justa Ele considera suas reivindicações como justas porque julga as instituições e relações sociais segundo um critério moral universalmente válido 160 História das ideias políticas Na França é também em nome de uma reivindicação de humanismo que as duas grandes figuras da socialdemocracia Jean Jaures e Léon Blum pretendem repudiar o marxismo assim como de resto o liberalismo na medida em que esse é assimilado apenas ao capitalismo Embora pretenda se distinguir de Bernstein Jean Jaures tal como o revisionista alemão rejeita o materialismo histórico a doutrina da luta de classes o catastrofismo revolucionário e a tese da pauperização absoluta do proletariado Em sua célebre controvérsia com Lafargue ele invoca Spinoza Kant e Hegel para tentar reconciliar idealismo e materialismo O movimento da história é ao mesmo tempo uma afirmação idealista da cons ciência contra os regimes que rebaixam o homem e uma reação automática das forças humanas contra toda situação social instável e violenta É a huma nidade que através de formas econômicas que repugnam cada vez menos sua ideia realizase a si mesma E existe na história humana não apenas uma evo lução necessária mas uma direção inteligível e um sentido ideal A huma nidade se busca e se afirma ela mesma e qualquer que seja a diversidade dos ambientes das épocas das reivindicações econômicas é um mesmo sopro de lamento e de esperança que sai da boca do escravo do servo e do proletário é esse sopro imortal de humanidade que forma a alma do que chamamos de direito conferência de dezembro de 1894 recolhida em Iesprit du socialisme Paris Gonthier col Médiations 1964 O humanismo de Jaures referese aos direitos do homem e ao indivi dualismo consequente Somente o socialismo dará à declaração dos direitos do homem todo seu sentido e realizará o direito humano o socialismo é o individualismo lógico e completo Desde a primeira parte de sua obra e de sua ação Léon Blum é também independentemente do que por vezes se diz ele o militante de um socia lismo não marxista na perspectiva de uma ética universalista O socialismo nasceu da consciência da igualdade natural ao passo que a socie dade em que vivemos é inteiramente fundada no privilégio Nasceu da compai xão e da cólera suscitadas em todo coração honesto por esses espetáculos into leráveis a miséria o desemprego o frio a fome que ocorrem enquanto a terra como disse um poeta produz pão suficiente para alimentar todos os filhos dos homens enquanto a subsistência e o bemestar de cada homem deveriam ser garantidos por todos os outros O socialismo não é como já se disse tantas vezes o produto da inveja que é o mais baixo dos impulsos humanos mas da justiça e da piedade que são os mais belos O socialismo portanto é uma moral e uma religião tanto quanto uma doutrina É a aplicação exata no presente estado da sociedade desses sentimentos generosos e universais nos quais as morais e as religiões fundaramse sucessivamente Pour être socialisme 1919 citado em Jean Touchard La gauche en France depuis 1900 Le Seuil 1977 Amigo de Péguy e de Charles Andler discípulo de Benoît Malon e de Jaurès Léon Blum pronunciase em favor de um humanismo do coração e da razão cujas exigências são acentuadas à medida que ele desenvolve sua obra nem fatalismo nem determinismo na escolha dessa sociedade nem ressignificação nem cinismo nesse programa de socialismo humanista que deve liberar a pessoa humana de todas as servidões que a oprimem e garantir ao homem à mulher à criança numa sociedade fundada sobre a igualdade e a fraternidade o livre exercício de seus direitos e de suas faculdades naturais INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bernstein E Les présupposés du socialisme 1899 Le Seuil 1974 ed brasileira parcial Socialismo evolucionário Zahar Editores Rio de Janeiro 1964 Blum L A léchelle humaine 1946 Gallimard 1971 prefácio de René Rémond De Man H Zur Psychologie des Sozialismus 1922 trad francesa Audelà du marxisme 1933 Jaurès J Lesprit du socialisme antologia Gonthier col Médiations 1964 História das ideias políticas Hesitações cristãs Para além da proclamação de humanismo o cristianismo se vê posto em face da irritante questão do compromisso político Deve escolher entre os dife rentes regimes da Cidade dos homens Jacques Maritain convoca os fiéis a levarem a ação cristã para a Cidade O cristão não dá sua alma ao mundo Mas deve ir ao mundo deve falar ao mundo deve estar no mundo e no mais profundo do mundo não digo que deva fazer isso apenas com o objetivo de dar testemunho de Deus e da vida eterna mas também para realizar como cristão seu ofício de homem no mundo e para fazer com que a vida temporal do mundo avance para as margens de Deus Humanismo integral 1936 A novidade da ação política católica no século XX reside no fato de que ela supera o estrito conservadorismo antidemocrático dos séculos anterio res Em 1891 o papa Leão XIII encorajou o alinhamento com a Terceira Re pública encíclica Rerum Novarum Depois da Primeira Guerra Mundial uma parte dos católicos passou a aceitar a democracia liberal e o pluralismo O italiano Don Sturzo fundou o Partido Popular ancestral da Democracia Cristã e convocou à defesa de todos os pluralismos Pluralismo horizontal multiplicidade de grupos sociais defesa das células familiares poderes locais etc Pluralismo vertical diversidade das doutrinas políticas multiplicidade dos partidos tolerância etc Para além do princípio da tolerância é possível e desejável definir uma política cristã Os cristãos se dividem sobre esse ponto A organização dos cristãos conforme as normas da política clássica é pre gada à direita por Charpentier de Ribes e os democratas populares à esquerda por Marc Sagnier e depois ao centro por Georges Bidault e o MRP A primazia espirituaf é afirmada por Jacques Maritain que convida a de finir uma política nova onde o espiritual ilumine o temporal exatamente como o impulso democrático é uma manifestação temporal da inspira ção evangélicà A recusa de uma política cristã e a fortiori de um partido confessional é veemente em Emmanuel Mounier que prefere apelar para um novo Re O EstadoGerente 163 nascimento contra o indivíduo abstrato do cartesianismo Mounier pre tende desatrelar completamente o cristianismo da desordem estabelecidà No século XX a evolução da política do Vaticano orientase indubita velmente no sentido de uma acolhida das instituições democráticas Todavia devese matizar o julgamento segundo o qual por exemplo ao dar aos di reitos do homem uma importância primordial João XXIII tinha de ser con duzido pela lógica de seu pensamento a considerar favoravelmente as insti tuições do constitucionalismo democrático 1 Na realidade a Igreja Católica não se pronunciou claramente em favor do pluralismo eleitoral e continua por evidentes razões de clientelismo político a manter reservas importan tes Assim a encíclica Pacem in terris contém essa evidente ambiguidade A ideia de que os cidadãos podem tomar parte ativa na vida pública é um di reito inerente à dignidade das pessoas embora as modalidades dessa partici pação sejam subordinadas ao grau de maturidade alcançado pela comunidade política da qual são membros e na qual atuam João XXIll Pacem in terris Centurion 1963 O democratismo poliárquico No século XX o liberalismo não inventa nada e inova pouco tudo foi dito nos últimos séculos Uma dupla tradição herdada de John Cocke por um lado e de Hegel por outro permite ilustrar e enriquecer dois princípios combinados que podem ser superpostos e não são contraditórios o governo da sociedade é necessário o governo é necessariamente separado da sociedade O Poder é um lugar que deve ser ocupado A ocupação é legal e legítima quando é resultado de uma competição livre entre forças reconhecidas como plurais surgidas da sociedade e que o Poder representa mas não encarna Essa ideia não é nova ou seja ela está contida desde suas origens na reivin dicação democrática e referese ao mesmo tempo às fontes e aos limites do poder de Estado A necessária separação entre governo e sociedade implica a regra do pluralismo eleitoral diferente e constantemente evocada em todas as literaturas políticas do EstadoGerente 1 M Prélot e F GallouédecGénuys Le libéralisme catholique Paris Armand Colin 1969 p416 A luta política é não somente explícita mas institucionalizada Aceitando como fundamento do poder a coletividade em sua diversidade esse regime põe freios à autoridade governamental O poder deve ser encarado no sentido de que nenhuma equipe dirigente está instalada para sempre que nenhum programa pode ser considerado definitivo que toda política só é oficial provisoriamente Essa abertura ou melhor essa disponibilidade do poder é comandada por uma filosofia pluralista que faz da oposição uma força tão legítima quanto os governantes do momento Não somente todas as tendências e todos os interesses podem se expressar mas todos têm a esperança de acessar ao governo e de utilizar suas prerrogativas segundo seus pontos de vista Georges Burdeau Démocratie Encyclopaedia Universalis Surgida das tradições liberais a regra do pluralismo eleitoral que afasta a encarnação em favor da representação põe fundamentalmente em xeque o projeto totalitário Assim entre as doutrinas políticas é importante reconhecer as que teorizam como projeto de fundo e não como pura tática a designação dos governantes a partir da sanção do pluralismo eleitoral Com efeito por mais manipulado que seja em alguns casos por mais aproximativo que seja sempre em suas aplicações o ato do sufrágio possui antes de mais nada uma eficácia simbólica a questão da democracia pode então ser enunciada como a de uma sociedade que acolhe o conflito de classe a fragmentação das experiências do mundo a heterogeneidade das culturas e dos costumes a coexistência de normas e de valores irredutíveis Claude Lefort Eficácia simbólica que não ratifica em nenhum caso a tese do consenso pacífico e generalizado as intenções pluralistas do EstadoGerente sabem combinar o projeto democrático com um certo projeto de dominação Ao mesmo tempo em que acolhe o conflito combinase desde sua origem com uma organização quase militar do proletariado no quadro da indústria ao mesmo tempo em que acolhe a heterogeneidade cultural a variedade das crenças e dos costumes combinase ainda com o colonialismo e o racismo ao mesmo tempo em que permite a manifestação de uma fragmentação das experiências do mundo combinase ainda com um discurso ideológico que tende a erigir como modelo a figura burguesa do verdadeiro do belo do bem do real Claude Lefort O EstadoGerente 165 Pois tudo se passa como se se tratasse de apagar a significação real dessa confissão de diversidade que constitui simbolicamente a liberdade de elei ção Com os progressos do sufrágio universal a dominação menos do que nunca poderá aparecer como tal A partir de então multiplicamse as jus tificações doutrinárias fundadas no consenso ou no princípio majoritário destinadas em nome frequentemente de uma maior fidelidade da Repre sentação a mascarar o fato de que esse pluralismo leva a um elitismo polí tico e social porque o sufrágio universal não exclui nem a formação de uma classe política nem a prática do voto censitário oculto conforme a expressão de Daniel Gaxie Le Seuil 1978 No século XX a gerência assume o fato oligárquico mas disserta so bre a qualidade das elites das quais ao mesmo tempo critica a insuficiente representatividade e a falta de eficiência Pois o EstadoGerente sofre de uma constante crise de sua representação cf por exemplo Joseph Barthélemy La crise de la démocratie représentative Revue de droit public 1928 mas essa crise que sob diferentes formas lhe é inerente certamente a ameaça me nos do que as diversas tentativas doutrinárias que pretendem resolvêla e se inscrevem no coração de uma longa reforma do Estado O sufrágio univer sal é acusado de levar a uma poliarquia eletivà Giovanni Sartori agravada pelo regime partidário Decerto o pluripartidarismo aparece como a verdadeira garantia do pluralismo político Enquanto os partidos aparecerem com representativos do maior número de ci dadãos ou seja enquanto eles oferecerem por sua diversidade uma expressão satisfatoriamente fiel das diversas opiniões entre as quais hesitam os indivíduos e os grupos a liberdade definida como escolha dos governantes continua a existir ainda que não seguramente de modo total mas ela já o foi alguma vez em certo sentido ela é maior hoje do que ontem na medida em que o sufrá gio universal e a necessidade de convencer as multidões não enquadradas pelos notáveis atenua o caráter oligárquico dos regimes representativos Raymond Aron Essai sur les libertés Mas ligado ao pluralismo o sistema partidário é constantemente acu sado de falsear o jogo democrático agravando a passividade das massas e manipulando as verdadeiras opções políticas Basta pensar na crítica exem plar de Michels ou de Ostrogorski da militância à profissionalização política a atividade partidária secreta uma elite rapidamente inamovível desencora jando qualquer participação popular de modo que a estrutura oligárquica 166 História das ideias políticas do edifício esmaga o princípio democrático fundamental Inércia das mas sas e especialização dos chefes reforçamse mutuamente A partir de então e com uma argumentação sólida o discurso crítico so bre as imperfeições do pluralismo e do pluripartidarismo termina inapela velmente por apelar à democracia para jogála contra si mesma ao povo real contra o povo legal e partidário aos grupos reais orgânicos contra os grupos artificiais Sob o pretexto de clarificar as escolhas ou de corrigir as imperfei ções da representação jogase o consenso contra a divisão o controle contra a decisão o plebiscito contra a eleição o Executivo contra o Parlamento não repugna ao discurso liberal a emergência do EstadoCientista Ele chega até a apelar para ele em nome mesmo da democracia subrepticiamente a eficiên cia governamental tornase o corretivo de todas as crises de representação O socialismo pluralista Sustentáculo do EstadoGerente a socialdemocracia faz da defesa do plu ralismo eleitoral uma linha de ruptura tanto com o fascismo quanto com o bolchevismo mesmo quando ela pretende representar apenas uma parte operária da população eleitoral A originalidade da socialdemocracia em relação ao leninismo reside no fato de que ela considera que a democracia após a conquista do poder pela via eleito ral deve continuar a funcionar para todos os membros da sociedade De mocracia significa portanto para os partidos socialdemocratas democracia para todos tanto burgueses como trabalhadores Por conseguinte a social democracia aceita a divisão social em toda a sua profundidade A socialde mocracia se caracteriza de fato pelo compromisso com o poder econômico e pela competição pacífica ou seja a democracia pelo poder político O com promisso garante a competição no sentido de que a preserva A opção pela de mocracia é bem mais do que uma estratégia de acesso ao poder é um projeto político de fundo sobre a própria natureza da sociedade a construir A so cialdemocracia reconhece a existência do conflito de classe sua força chega mesmo a resultar do fato de ser partido da classe operária e isso a distingue dos partidos políticos de direita que se apoiam também no reconhecimento do pluralismo O caráter específico da socialdemocracia reside no fato de que funda seu projeto na existência do conflito de classe entre os trabalhadores e a burguesia Isso a distingue dos partidos de direita e a aproxima dos partidos comunistas Mas ela não pretende resolver esse conflito pela eliminação do ad O EstadoGerente versário e nisso ela aceita como a direita liberal o pluralismo da sociedade Alain Bergounioux Bernard Manin La socialdémocratie ou le compromis Pa ris PUF 1979 p199 e ss Essa observação vale para o conjunto das correntes socialdemocratas no século XX quaisquer que sejam suas divergências doutrinárias ou suas hesitações eventuais Citaremos como exemplo o socialismo fabiano depois trabalhista que rapidamente assimilou esse princípio mas podemos citar também o so cialismo escandinavo para o qual o referido princípio é óbvio embora não seja objeto de grandes desenvolvimentos teóricos Vamos tomar o poder e falar menos sobre ele a partir do momento em que se está de acordo sobre o princípio da democracia capitalista De resto e principalmente nos países onde existe uma forte organização leninista o debate doutrinário suscita maiores discussões e é marcado por mais ambiguidades Pelo menos podese constatar que para além das hesi tações de linhà e dos compromissos estratégicos próprios das organizações as vozes que sustentam a concepção socialdemocrata não hesitam em recor dar a necessidade do pluralismo eleitoral e o respeito a suas consequências em matéria de liberdades políticas É o caso de Bernstein certamente A crítica humanista do marxismo prolongase em crítica política Bernstein recusa assimilar a democracia à dominação da classe burguesa A democracia é a ausência da dominação de classe ou seja um estado social onde nenhuma classe desfrutará de um privilégio qualquer em face da comunidade a democracia portanto é a supressão da dominação de classe embora não seja a supressão efetiva das próprias classes Longe de se reduzir a uma simples liberdade para os proprietários de escravos a democracia é uma conquista moderna preciosa para todos que o proletariado deve desenvolver e não destruir A democracia é simultaneamente o meio e o fim Ela é o meio para estabelecer o socialismo e ao mesmo tempo é a forma de sua realização Karl Kautsky a partir do momento em que se tornou renegado foi ainda mais longe ao afirmar para além das considerações de aritmética eleitoral a consubstancialidade da democracia e do socialismo É em termos extrema mente claros que ele toma posição contra os métodos bolcheviques quando da Revolução de 1917 fazendo da democracia a linha de demarcação 168 História das ideias políticas A oposição entre as duas correntes não se funda em mesquinhas rivalidades pessoais mas repousa na oposição de dois métodos radicalmente diferentes o método democrático e o método ditatorial As duas correntes querem a mesma coisa a emancipação do proletariado e com ela a da humanidade através do socialismo Mas o caminho escolhido por uns é considerado pelos outros como falso e capaz apenas de levar à ruína Karl Kautsky La dictature du prolétariat 1918 Paris Bourgeois col 1018 1972 Do mesmo modo na França para além das oscilações das organizações e qualquer que seja a influência persistente de correntes hostis à democracia parlamentar cf as divisões sobre o caso Millerand Jean Jaures e Léon Blum por exemplo não deixaram nunca de lutar contra a tentação perni ciosa de renegar as conquistas democráticas Assim Jean Jaures inquieta se com o jogo duplo dos que não aceitam o pluralismo eleitoral a não ser como compromisso tático e mandam delegados ao Parlamento mas decla rando previamente que não terão nele mais do que um papel ridículo de impotência e corrupção Para Jaures a defesa de Dreyfus não pode dei xar o proletariado indiferente do mesmo modo como a democracia não pode ser abandonada à burguesia a democracia não é burguesa e a defesa das liberdades políticas na República é a filha da classe operária O que seria das liberdades políticas nesse país se há 120 anos a classe operária não tivesse consagrado a todos os movimentos de emancipação sua valentia sua força seu desinteresse É o eco desses princípios que podemos encontrar na obra de Léon Blum ainda que a distinção entre conquista exercício e ocu pação do poder tenha por vezes dado lugar a algumas ambiguidades Com efeito desde 1920 Léon Blum denunciou o bolchevismo como blanquismo e reafirmou até o fim da vida seu apego aos princípios essenciais da demo cracià Não pode estar em jogo qualquer atentado ao princípio eletivo nem à lei do sufrágio universal que é o próprio símbolo da democracià Léon Blum A léchelle humaine 1946 Todavia apesar desse seu apego ao pluralismo apesar de suas reiteradas críticas aos regimes fascistas ou bolcheviques a socialdemocracia dá fre quentemente provas de cegueira teórica Isso resulta do fato de que ela foi conquistada para a ideia de uma boa estatização de que ela ignora que tra balha sob a aparência de nobres motivos em favor de uma separação cada vez maior entre o poder administrativo regulamentador policial por um lado e por outro a sociedade sobre a qual atua Claude Lefort Jinvention démocratique opcit Seu mais nobre motivo o reformismo O EstadoGerente INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Aron R Essai sur les libertés CalmannLévy ed revista 1976 Burdeau G La démocratie Bruxelas 1956 Le Seuil col Points 1978 Sartori G 1héorie de la démocratie A Colin 1973 0 REFORMISMO Quando o EstadoGerente age o reformismo tornase a legitimação prin cipal de sua ação É preciso articular aqui duas observações distintas mas convergentes por um lado o reformismo não é suplementar mas sim com plementar ao pluralismo por outro esse complemento tem uma dimensão histórica e é bem enunciado numa convergência progressiva dos discursos liberais e socialistas sobre a necessidade da intervenção estatal na sociedade civil ou na sociedade pura e simplesmente A primeira observação vai de encontro a certas análises clássicas se gundo as quais o liberalismo originário dito puro ou verdadeiro ex cluiria toda intervenção do Estado exclusão de onde se deduz sua especifi cidade essencial Em seu comentário da obra de Benjamin Constant Marcel Gauchet demonstra com rara finura que a dinâmica da liberalização é si multânea e indissociavelmente a dinâmica do fortalecimento do Estado ad ministrativo que a emancipação liberal da sociedade civil foi e continua a ser o próprio vetor da estatização no seio de nosso mundo Desse modo somente por cair numa ilusão originária é que Benjamin Constant por exemplo podia imaginar que a autonomização da sociedade civil podia conter para sempre a intervenção estatal Ele não previa que a posição de exterioridade do Estado ao mesmo tempo em que preservava a liberdade na sociedade podia legitimar sua ação sobre a sociedade Tanto mais que para o EstadoGerente não se trata de opor mas de combinar os valores da Ordem e do Progresso que não se trata somente de manter mas de fazer surgir Desse modo não é por causa do abandono progressivo de sua posição de exterioridade que o Estado conquista sua capacidade de ação é precisamente essa posição que contém o princípio dela a instância política conquistoua ganhando precisamente uma posição de exterioridade gestionária Inci tar em vez de proibir doravante passou a ser esse o horizonte Contido nas premissas o reformismo se impõe progressivamente à medida que se processa a ampliação das conquistas democráticas Desse modo no século XX combinado com a democracia política que no mesmo processo o limita e o amplia o reformismo tornase a base dos projetos comuns que asseguram a convergência do liberalismo e do socialismo no sentido da gerência Convergência que evidentemente não exclui diferenças muito importantes nos projetos e sobretudo convergência que não exclui a luta política muito pelo contrário Por isso convém examinar de mais perto aspectos dessa convergência tal como resulta dos efeitos dessa referência comum ao reformismo O EstadoGerente melhorar enormemente o destino da classe operárià sem cometer o pecado de intervencionismo Ele o fará em todo rigor do seu direito e sem ter de temer ser admoestado por ingerência pois precisamente em virtude de seu ofício o Estado deve servir ao interesse comum A Igreja busca no arsenal de sua própria temática os argumentos mais bem apropriados para lutar ao mesmo tempo contra o egoísmo do econo micismo liberal e contra a ameaça socialista Em 1931 na encíclica Quadrage simo Anno o papa Pio IX lembra que os esforços de Leão XIII tinham como objetivo ultrapassar com audácia as barreiras nas quais o liberalismo con tivera a intervenção dos poderes públicos quando já estavam abalados os falsos dogmas do liberalismo que há muito paralisavam toda ação eficaz dos poderes públicos A Igreja oficial se desforrava da ideologia dos direitos na turais a propriedade privada não é intocável e dado que não há ordem sem autoridade a do Estado pode remediar eficazmente as desordens sociais De certo a Igreja evita uma condenação radical do capitalismo condenação da qual ela não queria nem podia assumir as consequências políticas Tratase apenas de pregar um reformismo prudente Quando ela concilia o direito de propriedade com as exigências do interesse geral a autoridade pública longe de se mostrar inimiga dos que possuem prestalhes um benéfico ser viço impedindo a propriedade privada de provocar males intoleráveis e de preparar seu próprio desaparecimento é preciso portanto que a livre con corrência contida em limites razoáveis e justos e mais ainda o poder eco nômico sejam efetivamente submetidos à autoridade pública Na primeira parte do século XX a Igreja apela ao Estado para reformar o social Apelo muito moderado sem nenhuma dúvida em face dos valores dominantes já que não se trata de uma arbitragem Georges Burdeau observa justamente Admitindo a propriedade privada o salariato a concorrência motivada pela busca do lucro o cristianismo social conta sobretudo com uma restauração dos valores cristãos para humanizar as relações sociais As sim a arbitragem do Estado aparece como uma forma derivada de proteção a assistência oficializa a caridade modela o seu espírito Georges Burdeau Le libéralisme opcit No conjunto todavia um certo tom é dado uma condenação é feita o liberalismo econômico não é considerado capaz de barrar o caminho ao marxismo Mas a exegese das teses papais leva a diferentes políticas cris tãs algumas correntes em nome de um corporativismo autoritário dos mais elementares colaboram abertamente com governos militares e fascistas outras em nome de uma espécie de socialismo comunitário aliamse em certos contextos históricos ou geográficos determinados a forças políticas 172 História das ideias políticas até mesmo marxistas contanto que se digam de libertação Mas no con junto essas teses papais permitem sobretudo aos partidos democratacris tãos para além de alguns sobressaltos contribuir para a sustentação do EstadoGerente e de seus equilíbrios Com efeito seria um erro ver no reformismo pontifício apenas a marca de uma hostilidade arcaica aos capitalismos enquanto a república laica leva ria ao reformismo progressista Assim na França o movimento solidarista prega firmemente a revisão do liberalismo econômico é preciso ampliar a fraternidade até tornála solidariedade Ainda que os radicais pela voz de Alain por exemplo continuem a manifestar sua desconfiança em relação ao Estado todos apelam agora a esse mesmo Estado para que faça reinar maior justiça social através de uma melhor distribuição dos bens para que proteja o cidadão contra o risco social através da generalização dos sistemas de previdência Uma banalidade aceita a guerra de massa do século XX acompanhada por seus efeitos econômicos e sociais transforma irremediavelmente as úl timas ilusões do liberalismo Quaisquer que sejam as divergências nas pro postas há um apelo generalizado ao Estado Com Keynes em particular o EstadoGerente com a GrãBretanha à frente descobre o grande medo de males sociais como o desemprego contra os quais os automatismos da li berdade nada podem A partir de então os três grandes princípios do pensa mento econômico clássico o estalãoouro o equilíbrio orçamentário e o li vrecambismo parecem postos em questão Em nome mesmo da liberdade a autoridade central deve ser restaurada por meio da economia dirigida Keynes propõese descobrir o que num sistema econômico dado deter mina a todo momento a renda nacional e o que é quase o mesmo o volume do emprego É certamente o fim do liberalismo John Maynard Keynes 1he end oflaisserfaire Londres 1926 que se manifesta nessa busca de uma nova avaliação das relações entre autoridade e liberdade Quanto à nossa tarefa final ela poderia consistir em escolher no tipo de sistema em que real mente vivemos as variáveis cujo controle ou manobra podem ser assegura dos conscientemente pela autoridade central Nos Estados Unidos a gerência teoriza um pouco mais em nome do pragmatismo a reforma se estende lentamente do sistema educacional para o sistema econômico ao mesmo tempo em que diante da crise desenvol vemse as críticas ao capitalismo tradicional Franklin Roosevelt 18821945 defende a propriedade privada e a livreempresa mas declara firmemente que somente a intervenção do Estado pode corrigir as leis naturais no sen tido do BemEstar geral Com a experiência da Tennessee Valley Authority O EstadoGerente 173 o reformismo encontra seu presidente Na Europa por outro lado a referên cia a essa experiência norteamericana libera a ideia de plano até mesmo de planejamento pelo menos indicativo Confirmado em sua necessidade pela Segunda Guerra Mundial o intervencionismo introduz no EstadoGerente os germes do EstadoCientista cf cap IX Mais do que qualquer outra por sua amplitude teórica inigualável nessa época de grandes silêncios a obra de Bertrand de Jouvenel é exemplar Ela dá as chaves das autotransformações progressivas do liberalismo tornando legíveis os efeitos de uma inquietação dominando pouco a pouco suas con tradições nostálgicas maldita em si mesma a concentração do poder polí tico encontra sua justificação na necessidade de enérgicas previsões econô micas e de medidas sociais adequadas Ao longo dessa obra a crítica mais lúcida dos malefícios do poder Du pouvoir Histoire naturelle de sa crois sance 1945 reed Hachette 1972 o diagnóstico de seu crescimento natural agravado pelas doutrinas individualistas De la souveraineté A la recherche du bien politique Paris Médicis 1955 a análise realista da concentração do executivo em detrimento da representação parlamentar Du Principat Paris Hachette 1972 o apelo ao desenvolvimento de contrapoderes destinados a multiplicar os focos de autoridade no seio da sociedade esses tópicos or ganizam um sistema teórico a partir do qual se efetuam opções doutrinárias cuja coerência final para além de suas diversidades pode ser apreciada cf Evelyne Pisier Autorité et liberté dans les écrits poli tiques de Bertrand de Jouvenel Paris PUF 1967 Partidário entusiasta do New Deal impressio nado por Keynes adepto dessa arte de governar que é o planejamento pre gando a economia dirigida cf Léconomie dirigée Paris Valois 1928 Ber trand de Jouvenel cedeu por algum tempo à tentação fascista e isso porque o capitalismo só pode ser destruído por uma ditadurà e o papel histórico do fascismo é pôr fim à decomposição social do Ocidente Embora dure pouco em Bertrand de Jouvenel essa tentação merece ser sublinhada pois é típica desses desvios comuns a várias correntes neoliberais desvios que podem ser justificados por uma certa vontade de reforma cf por exemplo seus artigos publicados em La lutte des jeunes ou em Iémancipation nationale Depois da Segunda Guerra Mundial a reação de Bertrand de Jouvenel permite ilustrar ainda essas derrapadas dos conservadores desesperados com o crescimento estatal Todavia Bertrand de Jouvenel continuou convencido da necessidade de uma boa intervenção estatal contanto que fosse praticada por elites competentes e sábias Já que não existe na natureza do Estado ne nhuma fatalidade que o torne um incapaz no domínio econômico e que portanto ele pode gerir a produção melhor do que o concurso das iniciati 174 História das ideias políticas vas privadas já que o alto funcionário é o senhor de hoje que destronou as antigas elites que se tornaram desfuncionais já que é um erro associar os termos cesarismo e burocraciâ pois a burocracia pode ser mais um corretivo do cesarismo do que um seu dócil instrumento já que a ciência econômica deve superar o horizonte do mercado e se orientar para uma ver dadeira estratégia prospectiva da economia social por tudo isso o Estado pode ser esse gerente cientista capaz de reformar a sociedade INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS De Jouvenel B Du pouvoir Histoire naturelle de sa croissance 1945 reed Hachette 1972 Encycliques et Messages sociaux textos coletados por H Guitton Dalloz 1948 Keynes JM The end of laisserfaire Londres 1926 Teoria geral do emprego do juro e da moeda 1936 Rumo ao controle social Desde o fim da Primeira Guerra Mundial uma questão se resolve no seio do EstadoGerente a questão do reformismo Tudo se passa como se se as sistisse à progressiva e profunda vitória da socialdemocracia quaisquer que sejam as conjunturas eleitorais Por um lado a economia se socializou a um grau que não poderia sequer ser imaginado há cinquenta anos Além de se tores inteiros da produção cuja propriedade se tornou pública as transferên cias sociais operam uma redistribuição permanente das rendas e dos capitais Louis Salleron Libéralisme et socialisme Por outro lado a consagração dos direitos sociais de todo tipo bem como a generalização da previdência con firma o avanço das concepções socialdemocratas Esse julgamento implica diversas controvérsias Periodicamente escuta mos a voz dos que alarmados ou satisfeitos diagnosticam uma real crise da socialdemocracia Mas esse diagnóstico ainda que tivesse algum funda mento não invalidaria a tese de conjunto ao contrário Com efeito é claro que em diversos períodos no curso desse século a socialdemocracia pareceu se comportar mal incapacidades crônicas da so cialdemocracia alemã do Labour ou dos socialistas franceses diante de um certo número de crises internacionais e internas A análise é bastante conhe cida para que tenhamos de insistir aqui nessa questão O EstadoGerente 175 Todavia essas crises testemunham em última instância um processo de adaptação a estruturas capitalistas que elas mesmas contribuíram para transformar através da superação progressiva da mística revolucionária mar xista e com a ajuda desse projeto de reformas de estrutura cuja coerência só lentamente se desenha Decerto ambiguidades e ambivalências se multipli cam aceitando a regra do pluralismo o socialismo democrático teve dificul dades eleitorais para concretizar sua ruptura com o marxismo pregando sistematicamente o projeto de uma transformação progressiva da sociedade com a ajuda de um conjunto de reformas de estrutura teve dificuldades para adquirir e conservar uma especificidade própria Desde os anos 1930 um certo número de portavozes da socialdemo cracia passou a preconizar um reformismo nitidamente diferente dos pro jetos marxistasleninistas um reformismo segundo o qual o planejamento não tem como objetivo a apropriação coletiva É por exemplo a posição de Henri de Man Outros adotam posições mais ambíguas Assim em Audelà du réformisme Léon Blum erguese contra o planismo preconizado por De Man e acredita poder propor um reformismo revolucionário reformas não reformistas expressando assim as dificuldades próprias à socialdemocracia francesa dominada pela herança do guesdismo e pela referência ambígua à ideia de revolução Ainda em 1951 na declaração de Frankfurt a Interna cional Socialista se contenta com uma síntese ambígua que permite às dife rentes correntes socialdemocratas opções diversas entre diferentes formas de propriedade coletiva contanto que subsista um amplo setor privado cf sobre tais pontos a obra de Alain Bergounioux e Bernard Manin opcit Mas em seguida a maioria dos partidos socialdemocratas pronun ciouse mais claramente contra a socialização da produção em favor da aceitação dos mecanismos de um capitalismo organizado e dirigido tese que foi consagrada no Programa de Bad Godesberg 1959 Finalmente qualquer que seja a diversidade da situação em cada país podese afirmar Assim como a Primeira Guerra Mundial tornara inevitável a intervenção do Estado a Segunda realizou determinados princípios da economia mista e durante certo tempo deu uma orientação socializante às economias oci dentais mediante formas de planificação controles estatais e acordos entre empresas De modo mais duradouro durante a guerra as democracias oci dentais aceitaram as principais reivindicações do movimento socialdemo crata dos anos 1920 A exigência de segurança social e de proteção era agora admitida os socialdemocratas fizeram dela um objetivo próprio mas o mesmo não estava ausente das políticas conservadoras Bergounioux e Manin Em outras palavras a ideia de uma vitória das concepções socialis História das ideias políticas tas sobre as concepções liberais tem certamente um sentido mas na condi ção de vinculála à ideia de um compromisso progressivo que acompanha a evolução das estruturas do capitalismo É preciso lembrar ainda que uma tal vitória só foi obtida com o surgimento e fortalecimento desse novo parceiro social essencial o sindicalismo Em sua origem o sindicalismo não poderia ser confundido com o ad vento da socialdemocracia pelo menos não em todos os casos Ao contrário ele ganha forma doutrinária e organizativa no seio de um entrecruzamento de concepções filosóficas políticas e sociológicas que mantêm uma espécie de confusão natural entre a questão social e a questão operária Desde o final do século XIX a autocrítica do liberalismo pôs radicalmente em questão os dogmas sagrados do individualismo e do subjetivismo tomada de consciên cia que provoca e acelera por toda parte lutas operárias cada vez mais deter minadas Como Tocqueville previra a questão da igualdade subverte defini tivamente os dados da liberdade Em sua origem e durante algumas décadas a concepção sindical da política oscilou entre diversas tendências e em certos países em particular na França na Itália ou na Espanha sofreu a influência do anarquismo Filósofos como Antonio Labriola 18431904 ou Georges Sorel 18471922 tentaram criar uma teoria da autonomia sindical em relação à política clássica marcandoa com perspectivas radicalmente antiestatistas Sobretudo na França como observa Jean Touchard a referência Sorel acompanha e prolonga a referência Prou dhon Os sindicalistas devem ser capazes através do mito da greve geral e da ginástica da ação direta de constituir uma elite revolucionária posta na van guarda das massas operárias suscetível de derrubar o chamado Estado demo crático e parlamentar A ação sindical portanto deve ser autônoma Numerosas correntes numerosos líderes continuam influenciados por essa mitologia teórica e prática O Estado tem como razão de ser tão somente a salvaguarda de interesses po líticos supérfluos e prejudiciais E o sindicalismo não visa a uma simples modificação do pessoal governante mas sim à redução do Estado a zero trans ferindo para os organismos sindicais as poucas funções úteis que criam a ilusão sobre seu valor e suprimindo pura e simplesmente as demais Pelloutier A famosa Carta de Amiens 1906 à qual aderiu a maior parte do mo vimento sindical francês traz a marca dessas concepções verdadeira decla ração de desconfiança em face do Estado do tradeunionismo dos partidos políticos ela pretende consagrar os princípios da autonomia sindical diante do patronato assim como agrupar independentemente de qualquer escola política todos os trabalhadores conscientes da luta a ser travada em prol do desaparecimento do salariato Pronunciase em favor da ação direta e da greve geral contra a colaboração de classe e o eleitoralismo político em suma contra o reformismo estatal e a gerência Mas apesar da marca profunda das concepções libertárias o sindicalismo sofreu também a influência do marxismo assim na França depois da guerra de 1914 e sobretudo depois da cisão de 1921 os comunistas tiveram êxito onde os guedistas tinham fracassado uma parte do sindicalismo operário tornouse correia de transmissão do Partido Comunista e suas teses não mais apresentam originalidade em relação às concepções leninistas do Estado de classe Todavia para além dessas influências ambivalentes e contraditórias o fato sindical no século XX tem um outro alcance defendendo os temas da democracia industrial e social em estreita associação com as forças políticas influenciado pelo empirismo tradeunionista o sindicalismo ocidental em seu conjunto apela para a arbitragem do Estado nos conflitos com o patronato por intermédio de convenções coletivas suscetíveis de assegurar seu reconhecimento como novo parceiro social e de entender as medidas de reforma econômica e social Em alguns lugares as práticas de participação ou de cogestão associam os sindicatos à gerência e transformam no sentido de uma proteção social cujo reverso obrigatório é a extensão do controle social O sindicalismo que sonhara integrar o Estado a si integrase agora nele sob o duplo signo da unidade e da obrigação Parceiro do Estado o sindicalismo não escapa da burocratização seus portavozes estão em posição de compromisso A emergência e a potência do sindicalismo tornamse componentes essenciais do EstadoGerente Expressão suplementar e ambígua da divisão social o fato sindical marca a derrota das soluções corporativistas que teorizavam seu desaparecimento mas são ao mesmo tempo uma vitória certamente diferente mas parcialmente semelhante em seus objetivos do corporativismo História das ideias políticas tinadas objetivamente a reforçar o Estado e a lutar sutilmente contra a influên cia do sindicalismo operário Foi o caso do corporativismo maurrassiano até sua versão Vichy ou mais simplesmente de todos os corporativismos fas cistas versões Salazar Franco ou Mussolini Mas ocorre o mesmo na linha da maior inclinação no caso das concepções desses juristaspoliticistas ainda que sinceramente animados por um desejo descentralizador convencidos de que o individualismo liberal arruína as possibilidades da democracia consti tucional e de que a representação parlamentar deve ceder lugar à representa ção profissional cf por exemplo as ambiguidades das opções de Léon Du guit Acompanhando um desejo de reforma do capitalismo com o objetivo de disciplinar a concorrência e reorganizar a economia o corporativismo deixa ouvir uma voz social que se trata de controlar o melhor possível Parado xalmente no seio do EstadoGerente ele só tem êxito onde fracassa ou seja com a vitória do sindicalismo da qual se pode dizer que foi sem dúvida o grande fato da história do pensamento político francês no século XX Jacques Droz E decerto do conjunto dos EstadosGerentes Ligada ao crescimento dos partidos socialdemocratas a integração progressiva do fato sindical deu lugar a uma forma políticâ nova na qual certos autores veem o advento de uma espécie de neocorporativismo tradu ção institucional do compromisso triangular permanente entre o Estado o patronato e os sindicatos Uma tal evolução permite à palavra de ordem da reforma social conti nuar na ordem do dia a divisão social não é cancelada Mas a cada etapa do compromisso político ou econômico o acordo traduz uma maior interven ção do Estado Assim concebida e praticada a gerência anuncia o fim das ideologias INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bergounioux A e Bernard Manin La socialdémocratie ou le compromis PUF 1979 BuciGlucksmann C e Gõran Therborn Le défi socialdémocrate Maspero 1981 Sorel G Réflexions sur la violence 1908 Riviere 1946 Matériaux dune théorie du prolé tariat 1919 Riviere 1921 Sobre o fim das ideologias A tese se apoia em algumas evidências às quais se concede em geral um esta tuto sociológico O EstadoGerente 179 evolução do capitalismo ocidental no sentido da socialização relativa integração das classes operárias por intermédio das forças políticas e sindicais gestionárias importância dos fatores tecnológicos que determinam objetivamente as decisões políticas e paralelamente a ascensão das elites técnicas A socialdemocratização progressiva das sociedades industriais é de tal ordem que o conflito não tem mais razão de ser Essa é por exemplo a tese defendida na França por Raymond Aron acompanhando diferentes traba lhos americanos no mesmo sentido Um certo número de valores ou de mecanismos considerados como socialistas foram efetivamente realizados ou utilizados nas sociedades europeias Os me canismos de funcionamento o controle parcial do comércio exterior a sociali zação da poupança a ação do Estado sobre o volume de investimentos são fe nômenos que a linguagem comum chama de socialistas Ademais alguns dos chamados valores socialistas realizaramse nas sociedades ocidentais a de sigualdade das rendas foi atenuada os sindicatos operários são relativamente livres as discussões sobre as condições de trabalho entre sindicatos operários e sindicatos patronais tornaramse um costume a tributação progressiva parece ser uma evidência as leis de previdência social são aceitas pelos mais reacioná rios Dixhuit leçons sur la société industrielle Gallimard col Idées 1962 Desse modo o conjunto desses fatores reforça o consenso ou o que dá no mesmo a apatia política e ideológica dos cidadãos As grandes lutas ideo lógicas são reservadas ao Terceiro Mundo Na sociedade industrial do século XX a desvalorização dos conflitos ideológicos do século XIX parece algo definitivo não há nenhum sinal de retorno ou de despertar no horizonte Inaugurada nos anos 1960 essa controvérsia se esgotou por si mesma à força de argumentos válidos e contraditórios mas sempre surgidos de pro jetos ideológicos característicos cf Jean Meynaud Le déclin des idéologies curso na Universidade de Lausanne 196061 Só levaremos em conta aqui nas concepções políticas atuais os sintomas de nova desconfiança em face do Estado surgiu um novo liberalismo que pretende reabilitar o laisser faire E também um novo socialismo que pretende reabilitar a causa da autogestão Em torno da Escola de Chicago que se inspira nos trabalhos de Hayek cf em particular O caminho da servidão 1945 a palavra de ordem é a do retorno às leis do mercado a fim de combater o mal essencial ou seja o Es 180 História das ideias políticas tado Assim Milton Friedmann retomando de Hayek a ideia de que as crises econômicas do século XX não resultaram do excesso de capitalismo mas do excesso de intervencionismo contesta vigorosamente os pretensos benefí cios do EstadoPrevidência moderno O inimigo é Keynes A planificação inclusive a indicativa abre o caminho para a servidão A intervenção dos poderes públicos não é de modo algum necessária para o desenvolvimento tecnológico Quanto à legislação social mais do que diminuir a exploração reforça o Estado e ao contrário a melhor garantia contra todas as explora ções é o mercado As melhores estruturas sociais se fundam no máximo de estruturas de troca A lógica do mercado portadora em si mesma de pro gresso tecnológico pode na condição de que todos os seus mecanismos se jam respeitados levar a uma redução exemplar do mal ou seja do domínio de intervenção do Estado sobre todos esses pontos cf Henri Lepage De main le capitalisme 1979 e Demain le libéralisme 1980 É muito cedo para afirmar que esse conjunto de proposições tem um alcance mais significativo do que no melhor dos casos um debate sobre o uso obrigatório do cinto de segurança e se é capaz de ressuscitar um liberalismo que se tinha por morto e desonrado cf Georges Burdeau Le libéralisme opcit Parece que também na esquerda se assiste a uma renovação teórica da inquietação em face do Estado A autogestão não é uma invenção recente Tem suas raízes na confluência entre as intenções descentralizadoras do libe ralismo e as doutrinas proudhonianas Desde a origem é marcada por equí vocos No século XX servirá para designar experiências muito diferentes No seio das correntes socialdemocratas corresponde na maioria dos casos a uma vontade de democratização da empresa ou da administração von tade que evidentemente se acomoda com um dirigismo ampliado ao nível do Estado por vezes corresponde ao desejo de evitar o risco de uniformi zação ideológica e portanto de crise de identidade Transparecem então sinais de uma verdadeira inquietação em face do socialismo administrativo e planificador que traz cada vez mais Estado bem como as marcas de uma verdadeira sensibilidade em face das burocracias de todo tipo Sinais não ne gligenciáveis decerto mas que não devem gerar ilusões Sobretudo se engen drarem apenas uma análise tão falsa quanto otimista do Estadocrise ou de uma crise histórica do modelo keynesiano cf Christine BuciGlucksmann e Gõran Therborn opcit mesmo que animada pela melhor das intenções a de liberar o social do EstadoGerente mas o preservando das tentações do EstadoPartido CAPÍTULO VI O Estado Partido No século XX o socialismo muda desdobrase O projeto socialista é dora vante ideologia e instituição Ele se organiza realizase Dois fatores radical mente novos são responsáveis por essa alteração 1 O marxismo qualquer que seja sua variante tornase a ideologia oficial de todos os partidos socialistas europeus Depois da expulsão de Bakunin da Primeira Internacional 1872 da unificação dos socialistas alemães Gotha 1875 e da criação por Guesde e Lafargue do Partido Operário Francês 1879 nasceu o marxismo o marxismo triunfou tornouse o referente doutriná rio supremo em relação ao qual determinamse todos os matizes e todas as rupturas inclusive após 1917 inclusive após a ruptura sinosoviética 2 O marxismo através dos que o reivindicam institucionalizase Po derosas organizações Estados ou partidos se estruturam tornandose do ravante parte integrante da realidade do socialismo Nenhuma definição de socialismo escapa agora a uma referência organizacional Nas vésperas da Primeira Guerra Mundial todas as nações europeias são representadas nos congressos da Segunda Internacional com dois partidos dominando o con junto a socialdemocracia alemã Kautsky e a Seção Francesa da Interna cional Operária Jaures A partir de 1917 o polo de atração do movimento socialista tornase um Estado a União Soviética Depois da Segunda Guerra Mundial novos Estados vêm reforçálo e constituem o campo socialistà Em 1949 o Estado mais populoso do mundo a China tornase por sua vez socialista Ideologia e instituição o socialismo se enuncia após Marx e lhe pede que responda a questões que ele não se colocou ou que não resolveu Disso resultam quatro ambiguidades do legado marxista 1 O estatuto do texto de Marx e Engels tornase equívoco Ele oferece uma filosofia da história ou uma teoria da revolução 181 182 História das ideias políticas uma concepção do homem onde o Ser é o devir único e necessário de uma humanidade que se encaminha inelutavelmente para a sociedade final mente transparente ou uma análise da contingência das ações e da complexidade dos organis mos sociais uma estratégia da mudança social onde o devir só é necessário retrospectivamente 2 A significação das teses marxistas parece contraditória Tratase de uma leitura da evolução das sociedade como algo determinado pela economia onde a infraestrutura é a causa da superestrutura e determina suas rupturas ou do recurso à luta de classes como simples chave de inteligibilidade da referência às relações de produção para definir as condições históricas da ação política de um necessitarismo onde a causalidade é econômica ou de um voluntarismo onde o eficaz é a política 3 A natureza da força que fará a Revolução é imprecisa É necessário um poder que dirija o movimento decrete expulsões funcione como um tribunal detenha o duplo privilégio de representar a classe operária e de possuir o saber do devir ou um Partido que seja apenas uma liga um organismo sem função diri gente um centro de coordenação das informações e das pesquisas que deixe a cada movimento proletário sua autonomia suas ideias e seus ritmos 4 As modalidades da Revolução não parecem mais claras Leremos Marx que imaginava a Revolução baseado no modelo das insurreições que deram por certo tempo o poder ao povo 1793 1830 1848 1871 ou seja a conquista violenta do poder pelo povo em armas ou o velho Engels que diante dos sucessos eleitorais do socialismo mar xista na Alemanha e do crescimento dos sindicatos julgava ter chegado o momento da ação política legal Essas ambiguidades não são estranhas ao espantoso resultado que co nhecemos a consolidação desse outro Leviatã que é o Estado socialista cada vez mais forte e cada vez mais centralizado que não oferece nenhuma pers pectiva de extinção salvo para quem ainda quer crer na fábula de uma fun ção dialética da defesa e da extinção do Estado O paradoxo convida a estu dar sucessivamente a crítica do Estado burguês e a gênese do Estado socialista para melhor apreender esse monstro que é o EstadoPartido A crítica do Estado burguês Embora não tenham elaborado uma teoria do Estado Marx e Engels empreenderam a crítica mais radical no século XIX de todas as teorias do Estado Todo Estado é o produto da divisão da sociedade em classes antagónicas o Estado burguês não é mais do que o produto do capitalismo e por isso um instrumento de opressão de exploração e de domínio de uma classe burguês sobre outra proletária O socialismo substituirá a dominação do homem sobre o homem pela administração das coisas o que implica a crítica de um Estado que consagra a exploração econômica e a dominação política Um sistema de exploração econômica A burguesia desempenhou um papel revolucionário mas não é mais segundo Marx uma força de progresso Revelase incapaz de controlar o formidável desenvolvimento industrial que suscitou e que vai inequivocamente conduzir à sua própria ruína O operário produz o capital O capital produz o operário A burguesia negando o proletariado nega a si mesma o proletariado não pode se negar a não ser negando a burguesia A burguesia produz seus próprios coveiros Sua queda e a vitória do proletariado são igualmente inevitáveis Essa profecia do Manifesto Comunista encontrase confirmada e argumentada nos principais textos de Marx e de Engels Mas a crise geral na qual o capitalismo deve entrar em colapso tardará a se produzir o capitalismo evoluirá e o movimento socialista conhecerá um certo número de ajustes e de debates sobre a natureza da exploração capitalista História das ideias políticas lho A teoria do valor não estabelece norma para a justiça ou a injustiça da divisão do produto do trabalho do mesmo modo como a teoria dos átomos não estabelece nenhum critério para julgar sobre a beleza ou o não valor de uma obra de escultura O valor de um produto depende também de sua utilidade fator subje tivo Segunda crítica a teoria da pauperização é desmentida pelos fatos A formação de sociedades anônimas contrapõese à centralizacão das fortunas que resulta da concentração das empresas Não há maior concentração de capi tal O número de possuidores aumenta A terceira crítica decorre dessa a polarização das classes anunciada por Marx não se realizou As classes médias não se proletarizam e se ampliam O crescimento contínuo da produção colocanos portanto diante da seguinte alternativa ou uma elevação progressiva do bemestar do proletariado ou uma classe média numerosa No conjunto o capitalismo moderno tornouse capaz de evitar a crise Seus elementos novos permitemlhe fazêlo a extensão gigantesca do mer cado mundial a redução do tempo necessário à transmissão de informações a circulação cada vez mais rápida das mercadorias o aumento da riqueza dos países capitalistas europeus a flexibilidade do sistema de crédito e o apa recimento dos cartéis Crises gerais semelhantes às de outrora tornaramse improváveis O caminho da catástrofe econômica está fechado Isso obriga a voltarse para o caminho político Kautsky assumiu a tarefa de refutar as teses de Bernstein Ele o fez atra vés da defesa de um marxismo ultraortodoxo Estranho debate no qual Kautsky critica Bernstein por ter inflado até mesmo inventado as posições de Marx mas em seguida ele retoma por sua conta essas inflações Ele contradiz assim ponto por ponto as revisões de Bernstein O agravamento da exploração É algo incontestável e Marx não falou em pauperização absoluta mas sim relativa A riqueza aumenta mas a parte do proletariado em sua divisão não aumenta A concentração capitalista negada por Bernstein É que ela se polari zou em relação ao número das empresas O fenômeno é qualitativo Alguns grupos dominam cada vez mais em todos os setores inclusive na agricultura O EstadoPartido A polarização das classes O desenvolvimento da classe média não passa de uma ilusão sua proletarização é uma realidade Os pequenosbur gueses que proliferam mascates mercadores ambulantes etc são apenas desempregados disfarçados A crise do capitalismo É absolutamente inelutável cientificamente de monstrada pelas leis do desenvolvimento econômico e essas leis se impõem tão necessariamente como as leis da natureza o homem não pode escapar delas O teórico da socialdemocracia alemã defende assim um marxismo quase darwinista no qual a práxis revolucionária não tem lugar já que as leis objetivas do desenvolvimento governam por si sós o mundo e levam di retamente ao socialismo Kautsky não varia seu evolucionismo intangível levao a se opor ao idealismo direitista de Bernstein no final do século XIX assim como o levará a condenar os bolcheviques que violam de modo es querdista as leis da história INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bernstein E Les préssupposés du socialisme 1899 reed Le Seuil 1974 ed brasileira par cial Socialismo evolucionário Zahar Editores Rio de Janeiro 1964 Kautsky K Le marxisme et son critique Bernstein 1899 Stock 1900 A revolução mundial Rosa Luxemburgo Kautsky não teve o monopólio da réplica a Bernstein A revolucionária po lonesa que se tornou alemã Rosa Luxemburgo assumiu igualmente a defesa do marxismo ou mais exatamente da revolução socialista que as teses de Bernstein apresentavam como algo inútil O erro de Bernstein resulta do es quecimento dos três dados fundamentais do capitalismo revelados pelo so cialismo científico ou seja que o socialismo pode se apoiar tll Na crescente anarquia da economia capitalista que a levará fatalmente ao colapso 22 Na socialização crescente do processo de produção que cria os primeiros fundamentos positivos da ordem social vindoura 3ll Finalmente na organização e na crescente consciência de classe do proleta riado que constituem o elemento ativo da revolução iminente 186 História das ideias políticas Bernstein elimina o primeiro elemento o que lhe permite desembara çarse da revolução Para além dessa resposta Rosa Luxemburgo apresenta uma análise mais pessoal do desenvolvimento capitalista à luz do imperialismo Elabora uma teoria da acumulação do capital que traz uma nova justificação para a tese da crise fatal do capitalismo Rosa Luxemburgo parte de uma leitura de O Capital precisamente do seu Livro II Nele Marx realiza uma admirável demonstração dos mecanis mos de criação da maisvalia mas não explica a reprodução ampliada do capitalismo não indica como a maisvalia se realiza como uma vez con cluído o processo de produção as mercadorias portadoras de maisvalia podem ser compradas Pelos operários Eles não dispõem de meios suficien tes Pelos capitalistas São pouco numerosos para absorver toda a maisva lia Então como Pelas zonas não capitalistas O capitalismo está condenado à mundialização Só subsiste arruinando as estruturas não capitalistas Tem necessidade delas como de um solo nutriz às expensas do qual a acumula ção prossegue absorvendoo Compreendese que o capitalismo esteja condenado à morte Ele sobre vive tão somente estendendo sua dominação às camadas não capitalistas nos países capitalistas aos países não capitalistas através do mundo Uma vez concluída essa extensão ele não disporá de nenhum fruto para se alimentar e deverá morrer Ao contrário de Kautsky Rosa Luxemburgo não toma esse inexorável fim como pretexto para pregar uma atitude de espera passiva O próprio mecanismo da acumulação favorece a irrupção de revoluções antes da agonia final A mundialização implica uma concorrência violenta para se apoderar das últimas porções do ambiente mundial não capitalistà e essa encarniçada luta implica uma série de catástrofes econômicas e políticas crises mundiais guerras revoluções Acrescentemos que no seio dessas análises de economia política ti nham lugar disputas políticas precisas Bernstein milita em favor do refor mismo que pouco a pouco conquistava a classe operária alemã através de seus sindicatos e fustigando as contradições entre a fraseologia e a prática socialdemocratas queria pôr a teoria de acordo com os comportamentos políticos do proletariado Kautsky apegavase a um determinismo ortodoxo do qual fazia profissão de fé Se se revelasse um dia que a concepção ma terialista da história e a concepção do proletariado como força dirigente da revolução vindoura haviam se tornado obsoletas eu deveria então admitir que tudo terminara para mim e que minha vida não teria mais sentido Di fícil dizer mais Acrescentemos ainda mais uma vez que paralelamente O EstadoPartido às disputas políticas são também temperamentos que se enfrentam O de Rosa Luxemburgo lhe fazia dizer A revolução é grandiosa e tudo o mais não passa de besteira INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA Luxemburgo R Reforme ou révolution 1898 Maspero 1971 ed brasileira Reforma ou revolução Elipse São Paulo sd A acumulação do capital 1913 ed brasileira Zahar Editores Rio de Janeiro 2 ed 1981 A etapa imperialista Lênin No curso de suas refutações das teses revisionistas Lênin foi levado a elabo rar uma nova análise do capitalismo ou se se prefere um prolongamento da análise marxista do capitalismo através da teoria do imperialismo O regime capitalista entrou numa nova etapa a última antes de seu colapso a etapa imperialista O imperialismo se caracteriza por quatro fatores principais 1 O capitalismo de monopólio O capitalismo em sua fase imperialista aproximase estreitamente da socialização integral da produção 2 O capitalismo financeiro O imperialismo é o capitalismo que atingiu o estágio de desenvolvimento no qual se exerce a dominação dos monopó lios e do capital financeiro Os bancos tornaramse senhores da economia mediante a interpretação entre capital industrial e capital bancário 3 A exportação dos capitais O que caracterizava o antigo capitalismo no qual reinava plenamente a livre concorrência era a exportação de merca dorias O que caracteriza o capitalismo atual no qual reinam os monopólios é a exportação dos capitais 4 A luta pela partilha do mundo luta entre os grupos capitalistas pela conquista de novos setores luta entre Estados capitalistas pela ocupação de colônias Os trustes internacionais começam a dividir entre si o mundo a superfície do globo já está dividida entre os grandes países capitalistas As consequências que Lênin atribui a essa transformação do capitalismo não são exatamente as indicadas por Rudolf Hilferding ou Rosa Luxem burgo nos quais ele se inspirou para conceber a teoria do imperialismo Lê nin recusa a visão apocalíptica da revolucionária alemã As contradições do sistema mundial não desembocarão na autodestruição do regime enquanto 188 História das ideias políticas a luta de classes não puser termo à existência do capitalismo Esse manifesta capacidade de adaptação a constituição de uma oligarquia financeira nas cida do imperialismo permite a melhoria econômica da classe operária a atenuação da luta de classes e a recuperação de uma parte do movimento operário a corrupção de uma aristocracia operária O estágio imperialista contudo favorece as perspectivas revolucioná rias Ele apressa o advento do socialismo antes de mais nada por multiplicar os riscos de guerra Com efeito não se pode conceber outra base para a partilha das zonas de influ ência dos interesses das colônias em regime capitalista além da força dos participantes da partilha força econômica financeira militar Da teoria do imperialismo decorre sobretudo a lei do desenvolvimento desigual O desenvolvimento desigual e por saltos das diferentes empresas das diferentes indústrias e dos diferentes países são inevitáveis em regime capitalista É preciso saber encontrar a cada momento dado o elo preciso que deve ser preso com todas as forças para que se possa segurar toda a cadeia e preparar solidamente a passagem para o elo seguinte Essa concepção do elo mais fraco da cadeia imperialista irá justificar te oricamente a possibilidade de uma revolução socialista num país atrasado como era a Rússia tzarista Lênin assim distinguese de Rosa Luxemburgo para a qual a revolução socialista se desencadeará inicialmente nas metrópoles avançadas do capita lismo Mas ele se opõe sobretudo a Kautsky duplamente A teoria leninista do imperialismo recusa a teoria kautskyana de um ultraimperialismo no qual se imporia a cooperação pacífica entre Estados que houvessem partilhado o mundo entre si Contradiz também a estrita ortodoxia de um Kautsky se gundo a qual a revolução não poderia irromper num país feudal o sucesso do leninismo é o fracasso do marxismo INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA Lênin Vladimir Ilitch Ulianov O imperialismo estágio supremo do capitalismo 1916 ed brasileira in Obras Escolhidas AlfaÓmega São Paulo 19791980 vol 1 Socialismo soviético e imperialismo Stálin A teoria leninista do imperialismo e sua lei do elo mais fraco anunciam a tese stalinista do socialismo num só país Lênin com efeito influiu a perspectiva imaginada por Marx e Engels de uma revolução socialista mais ou menos simultânea nos principais países capitalistas A lei do desenvolvimento desejável implica que esta conclusão que se impõe o socialismo não pode vencer simultaneamente em todos os países ele vencerá inicialmente num só país ou em vários países Esse ponto de vista serviu em sua origem a uma posição revolucionária não esperar o incêndio do Ocidente para sublevar o proletariado russo Opondose a Zinoviev e Kamenev Lênin escreveu ao Comitê Central em 6 de novembro de 1917 Gostaria de convencer os camaradas que tudo depende hoje de um fio de cabelo Seria o maior dos crimes por parte de revolucionários deixar escapar o momento Esperar para agir é a morte Stálin saberá canonizar essa posição para fazer dela um instrumento a serviço da defesa do Estado soviético Stálin utiliza as diferentes análises do imperialismo em função das necessidades políticas Num primeiro momento defende a posição moderada de Bukharin Esse último opunha ao catastrofismo de Rosa Luxemburgo a possibilidade de uma passagem para o capitalismo de Estado como forma de adaptação do capitalismo à fase imperialista Disso resultaria uma estabilização relativa dos regimes capitalistas uma tese que Stálin podia usar contra a teoria trotskista da Revolução permanente A partir de 1929 Stálin desautoriza Bukharin e endossa oficialmente a tese da crise geral do capitalismo combinandoa astuciosamente com a realização do socialismo num só país A industrialização e a potência crescentes da União Soviética estreitavam geograficamente e economicamente o mercado mundial aberto à economia capitalista Por isso elas aceleram o seu colapso Em outras palavras o crescimento da potência do Estado soviético e ao mesmo tempo de Stálin cria as condições necessárias para a queda do capitalismo A luta pela revolução se identifica com a defesa da União Soviética E quanto mais o Estado soviético for forte tanto mais o capitalismo será fraco 190 História das ideias políticas O esquema geral é conservado mas infletido depois da Segunda Guerra Mundial Tratase menos de reforçar o Estado soviético coisa já feita do que abrir caminho para uma primeira forma de coexistência pacífica A difi culdade consiste em justificar esse amolecimento sem renunciar ao discurso revolucionário do qual a União Soviética ainda retira sua legitimidade Stá lin portanto recusa as análises do economista Varga segundo o qual a nova partilha do mundo entre Estados capitalistas e socialistas abria uma era de paz relativa sem crise previsível do capitalismo Ao contrário a existência de Estados socialistas exacerbaria a concorrência imperialista provocando um novo estreitamento de suas bases Essa restrição dos escoadouros provo cará conflitos internos e externos A crise geral do capitalismo continua tal e qual Mas continua por si mesma sozinha sem que a União Soviética tenha necessidade de fazer a Revolução em escala mundial ou de qualquer modo sem que ela tenha necessidade de destruir esse sistema através da guerra Das análises do Estado burguês como sistema de exploração econômica passase assim insensivelmente para a justificação da política de Estado posta em prá tica pela União Soviética Ou melhor as análises do capitalismo justificam essa política INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bukharin N Imperialismo e acumulação de capital 1925 D Kaisergruber Jaffaire Bou kharine Maspero 1980 Stálin Joseph Vissarionovitch Djugatchvili Problemas do leninismo 1926 há várias edi ções brasileiras Varga J As mudunças da economia capitalista 1946 O pósStálin O capitalismo monopolista de Estado A descongestão representada pela desestalinização permitiu um certo ques tionamento da teoria coagulada em que se convertera a explicação leninista stalinista do imperialismo a qual condenava o capitalismo à lenta agonia de seu estágio último e os revolucionários do mundo inteiro à defesa prioritária dos Estados socialistas Não é que a crítica do Estado burguês tenha se alte rado radicalmente mas a tese do capitalismo monopolista de Estado opera um certo retorno à fonte leninista ao mesmo tempo em que se abre a uma maior diversidade de interpretações O EstadoPartido 191 O retorno constrangido a Lênin corresponde a uma leitura mais atenta de sua análise do imperialismo A interpretação stalinista insistia ex cessivamente sobre a qualificação de estágio supremo último estertor úl tima solução antes do colapso final Deixava de lado o fato de que Lênin via igualmente nesse estágio imperialista uma transição para o socialismo já percebida por Engels A relação capitalista não é suprimida ao contrário é levada às suas últimas ins tâncias Mas atingido esse ponto ela se inverte A propriedade do Estado sobre as forças produtivas não é a solução do conflito mas contém em si mesma o meio formal o modo de se aproximar da solução Lênin foi mais longe vendo no capitalismo de Estado um présocia lismo O capitalismo de Estado é a preparação material mais completa do socialismo a antessala do socialismo a etapa da história que nenhuma etapa intermediária separa do socialismo Em 1960 a Conferência dos 81 Partidos Comunistas reunida em Moscou seguiu essa pista e adotou uma fórmula que rompe com as teses stalinistas As contradições do imperialismo aceleraram a transformação do capitalismo monopolista em capitalismo monopolista de Estado Reforçando o poder dos monopólios sobre a vida nacional o capitalismo monopolista de Estado reúne a potência dos monopólios e a do Estado num mecanismo único destinado a salvar o regime capitalista a aumentar ao máximo os lucros da burguesia im perialista por meio da exploração da classe operária e da pilhagem das cama das da população A história do capitalismo é assim dividida em três estágios e quatro fases Estágios Capitalismo Período Europa Primitivo Manufatureiro Séc XVIIXVIII Clássico Concorrencial Séc XIX Imperialismo Monopolista Início do séc XX Monopolista de Estado Meio e fim do séc XX Quanto às consequências políticas da teoria do capitalismo monopolista de Estado elas tendem a aproximar os comunistas dos não leninistas e em particular dos movimentos socialistas na medida em que a extrema concentração de poder econômico e político reduz ainda mais o campo dos inimigos e aumenta correlativamente o dos aliados potenciais Com boa lógica as análises do CME militam em favor das amplas alianças antimonopolistas da união do povo etc Assim os especialistas do Partido Comunista Francês propuseram em 1970 uma nova representação da estrutura social da França que opõe mais de 95 da população ativa vítimas mais ou menos diretas dos monopólios a uma pequena minoria que a compõe ou a serve 45 Classe operária 30 Camadas intermediárias assalariadas na qual se incluem os intelectuais 21 Camadas médias não assalariadas na qual se incluem o pequeno e o médio campones 4 Burguesia dirigentes de empresas e capitalistas auxiliares da burguesia NB No XXII Congresso do PCF em 1976 Georges Marchais reduziu a população dos donos da França a menos de 250 pessoas Os 4 caíram para 00001 O fato mais importante é que se a estatização do capitalismo prepara formalmente Engels e materialmente Lênin o socialismo perspectivas mais imediatas do que a crise final se abrem em princípio aos comunistas Faltalhes apenas controlar o Estado o mecanismo único Estadomonopólios para substituílo então por um mecanismo Estadoclasse operária O EstadoPartido 193 natureza está inteiramente contida no sistema de exploração econômica Ao insistirem demasiadamente na originalidade do materialismo histórico seus adeptos correm o risco de se contentarem com uma análise simplista do po lítico se o matizarem em excesso temem estar fazendo concessões à ideo logia burguesà Muitos debates entre marxistas caem nesse círculo vicioso algumas construções tentam escapar dele e buscam melhorar a inteligibili dade das superestruturas tornar mais preciso o lugar que a teoria concede ao político ao jurídico e o ideológico em relação ao econômico A investigação sobre a natureza das superestruturas começa com Berns tein que contesta a tese do simples reflexo do econômico pelo político e isso é feito no quadro da revisão do marxismo por ele proposta Para tentar resolver o problema do economicismo sem renunciar ao materialismo histó rico Gramsci apresenta uma noção nova a de hegemonia na qual Althusser irá se inspirar para a criação do conceito de aparelhos ideológicos de Estado Reflexos e ideologias Bernstein Bernstein combate o núcleo do materialismo marxista ou seja a ideia de que a estrutura econômica determina tudo assim resumida por Marx Na produção social de sua existência os homens entram em relações determi nadas necessárias independentes de sua vontade relações de produção que correspondem a um grau determinado de desenvolvimento das forças produti vas A estrutura econômica da sociedade constitui a base concreta sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas de consciência social determinadas Portanto não é a consciência social dos homens que determina seu ser Ao 1 contrário é seu ser social que determina sua consciência Marx Prefácio a Para a crítica da economia política 1959 Bernstein vê nessa colocação uma superestimação do econômico cada vez mais inexata O interesse privado já está recuando diante do interesse coletivo e precisa mente por causa desse fato os fatores econômicos deixam de desempenhar um papel de primeiro plano As causas econômicas são um substrato sobre o qual nascem as ideias mas a difusão dessas ideias a forma que assumem depende de uma multidão de outros fatores 194 História das ideias políticas A multiplicidade dos fatores que escapam à economia termina por modifi car o caráter da necessidade histórica Les pressupposés du socialisme p40 Desse modo ele convida a superar nossa concepção primitiva do ma terialismo histórico e para isso invoca Engels contra Marx carta a Conrad Schmidt 1890 Diante de nossos adversários tivemos de afirmar o princípio essencial que eles rejeitavam a influência dos fatores econômicos Foi assim que nem sempre ti vemos ocasião ou tempo para esclarecer a importância dos outros fatores que participam do processo histórico Contudo Bernstein não se contenta com a imagem do bastão que para ser posto na posição certa é excessivamente inclinado no sentido oposto Ele chega a repudiar qualquer materialismo O materialismo é um calvinismo ateu que embora negando a ideia da predes tinação admite que tudo é determinado pela totalidade da matéria A dialética é uma metafísica não científica indemonstrável Hoje podese provar tudo mediante os escritos de Marx ou de Engels situação ideal para os apologistas e os rábulas Recusando a importância primeira da economia reabilitando o papel da ideologia e da moral Bernstein prega um retorno a Kant contra Hegel A obra de Marx e Engels deve demasiadamente ao hegelianismo mas ela só é grandiosa onde se afasta dele E o erro blanquista do marxismo encontra sua fonte e sua justificação na própria dialética Ele chega assim a distinguir duas correntes no movimento socialista mo derno ideia que em seguida irá conhecer um certo sucesso o socialismo dos teóricos construtivo utópico societário e pacifista evolucionista idealista kantiano e o socialismo das sublevações destrutivo demagógico conspirativo terrorista materialista hegelianoblanquista O EstadoPartido 195 A teoria marxista seria apenas uma tentativa de síntese entre essas duas tendências mas um compromisso fracassado um dualismo não superado já que o marxismo deslizou para o blanquismo para o socialismo político estatista antidemocrático É preciso retornar à versão moral do marxismo ou lhe opor a versão democrática do socialismo Bernstein insiste um dos primeiros junto com Jaures a fazêlo na complementaridade entre socialismo e democracia Ele avança fórmulas que algumas décadas mais tarde florescerão no euroco munismo A democracia é ao mesmo tempo um meio e um fim É um instrumento para instaurar o socialismo e a própria forma de sua realização O socialismo em última instância é apenas a aplicação da democracia à totalidade da vida social Que sentido há em ficar apegado à ideia da ditadura do proletariado quando por toda parte os representantes da socialdemocracia participam do jogo da representação proporcional e do Poder Legislativo práticas que são o oposto da ditadura As inflexões bernsteinianas inspiraram ao mesmo tempo a moderni zação do movimento comunista ocidental mais ortodoxo e os esboços he terodoxos de um socialismo humanista o de um Henri de Man onde o socialismo tornase a forma moderna da filosofia antiga da moral cristã do humanismo burguês O Estado hegemonia revestida de coerção Gramsci Decerto os socialistas humanistas reabilitam a moral e a política mas atra vés de um abandono mais ou menos completo do marxismo reduzido a uma vaga sociologia das classes sociais Os trabalhos do comunista italiano Antonio Gramsci ao contrário mantêmse no quadro do socialismo mar xista ao mesmo tempo em que lhe aportam uma contribuição original no sentido de flexibilizar as relações entre o ideológicopolítico e o econômico Essa renovação da concepção marxista do político passa por uma redefini ção do Estado e por uma atenção particular ao papel dos intelectuais Gramsci propõe uma definição extensiva do Estado que se distingue tanto de sua apreensão puramente econômica Marx quanto de sua caracte rização como aparelho de repressão Lênin De modo mais amplo História das ideias políticas o Estado é a sociedade civil mais a sociedade política uma hegemonia reves tida de coerção A direção intelectual e moral da sociedade as instituições que a asseguram a Igreja a escola os partidos políticos a imprensa etc a ideologia dominante somase à máquina administrativa a serviço da exploração às estruturas re pressivas que protegem a classe dominante o exército a política a justiça etc O Estado moderno funciona por consenso e não somente por violência Uma tal concepção é plena de consequências políticas Se o Estado não se reduz a uma simples máquina de opressão não é possível reduzir a revolução à tomada do instrumento para voltálo contra os opressores Nesse ponto Gra msci contradiz diretamente Lênin Com a ressalva de que ele concede que sua definição vale sobretudo para o Ocidente desenvolvido A Gramsci sublinha que no Oriente Rússia a sociedade civil é gelatinosà enquanto a sociedade política é quase tudo Portanto cabe aqui limitarse a uma insurreição que se apodere do Estado strictu senso a uma estratégia leninista Mas no Ocidente onde a sociedade civil é diferentemente desenvolvida onde o Estado lato sensu se apoia menos em seu versante repressivo do que em sua face ideológica é pre ciso também inicialmente quebrar esse edifício intelectual e moral aniquilar a hegemonia da burguesia garantir a hegemonia da classe operária Os efeitos teóricos da problemática gramsciana põem em questão as in terpretações sumárias da relação entre infraestrutura econômica e superes truturas Para explicar essa relação ele constrói a noção de bloco histórico a saber a articulação precisa numa situação histórica determinada entre a estrutura social as classes e a superestrutura ideológica e política Em vez de falar de determinação da superestrutura pela estrutura ou da ação de re torno da estrutura sobre a superestrutura Gramsci considera que estrutura e superestrutura são organicamente soldadas entre si A ligação orgânica entre a estrutura social e o ideológicopolítico é asse gurada pelos intelectuais funcionários da superestrutura São eles que assegu ram a hegemonia da classe dirigente elaboram e difundem sua concepção do mundo em todas as classes por intermédio da filosofia da religião do folclore ou simplesmente do senso comum Mas eles não são simples la caios formam uma camada social relativamente autônoma cujos laços com a classe dirigente são aqui também orgânicos e não mecânicos Eles devem se destacar da classe dominante para se unirem a ela mais intimamente para serem a verdadeira superestrutura e não somente um elemento inorgânico e indistinto da estrutura econômicà O gramscismoleninismo Althusser e Poulantzas Na perspectiva traçada por Gramsci um certo número de marxistas contemporâneos tem se esforçado no sentido de salvar o marxismo tornandoo mais complexo o que apresenta pelo menos o mérito de libertálo do que se convencionou chamar de economicismo Nicos Poulantzas apefeição assim a análise marxista das bases sociais do poder político e Louis Althusser a do Estado A noção gramsciana de bloco histórico afastase singularmente da dicotomia grosseira que vê apenas a burguesia exploradora e o proletariado explorado Nesse sentido ela explica necessariamente melhor a complexidade do capitalismo da revolução científica e técnica Serve igualmente como ponto de partida para o questionamento da ortodoxia marxista Roger Garaudy por exemplo inspirouse nessa noção para propor a formação de um bloco histórico novo que agrupasse operários e intelectuais Supõese que a camada dos operários altamente qualificados deverá ter o papel de cimento nessa nova aliança Não tendo preocupações políticas tão imediatas Nicos Poulantzas retoma a noção de bloco no poder para tornar mais sutil a chave para a inteligibilidade das sociedades contemporâneas Ele distingue diferentes tipos de classes sociais ou frações de classes A classe hegemônica é a que detém a hegemonia política A classe dominante é a que exerce a direção econômica A classe reinante é a que ocupa principalmente o governo A classe de apoio é aquela em cujo seio se recruta o aparelho de Estado Essa primeira série pertence ao princípio do bloco no poder Além disso existem As classes aliadas que se beneficiam de certos compromissos com o bloco no poder As classesapoi o que sustentam o Estado por ilusão ideológica e sem proveito As classes subalternas excluídas do bloco no poder e diretamente exploradas Chegase assim a um esquema muito complexo tanto mais que a mesma classe pode ocupar várias posições exemplo a pequena burguesia sob a Terceira República ao mesmo tempo classe reinante e classe aliada Faltaria ainda aplicar o esquema L Althusser retoma igualmente a distinção feita por Marx entre o poder de Estado que pertence à classe que domina na produção e o aparelho de Estado que é o instrumento de exercício do poder estatal não necessariamente em mãos da classe que detém o poder de Estado Mas a noção de aparelho de Estado deve ser repensada Os marxistas insistem tradicionalmente nos aparelhos encarregados da repressão exército polícia tribunais enquanto existem também o que ele chama de aparelhos ideológicos de Estado AIE as igrejas as famílias a escola os partidos as organizações sindicais ou socioprofissionais etc Os AIE garantem a reprodução das relações de produção mas a garantia através da ideologia Portadores e administradores das ideias da classe no poder eles modelam as consciências e o inconsciente dos indivíduos e dos grupos Valemse de seu caráter privado de suas formas diversificadas de sua aparente neutralidade e da tradição humanista de que desfruta para reforçar sutilmente o poder tornandoo aceitável Conforme a época determinado aparelho ideológico de Estado desempenha um papel de primeiro plano O pá IgrejaFamília que reinava na vida cotidiana na época medieval foi hoje substituído pelo EscolaFamília Os AIE e seu indispensável pluralismo são locais atravessados pela luta de classes e portanto alvos decisivos do combate pelo socialismo INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Althusser L Positions 19641975 Ed Sociales 1976 ed brasileira Posições 1 e 2 Graal Rio de Janeiro 1978 e 1980 Poulantzas N Pouvoir politique et classes sociales Maspero 1968 ed brasileira Poder político e classes sociais Martins Fontes São Paulo 1976 Ranciè re J Les leçons dAlthusser Gallimard col Idées 1974 A gênese do Estado socialista Em outubro de 1917 o Império dos tsares tornouse o primeiro Estado socialista Estado socialista a ideia se complica acrescentase a ela o referente real um Estado um verdadeiro e que dura prossegue a obsessiva questão do Estado Isso significa que depois da queda da antiga sociedade haverá uma nova dominação de classe resumindose num novo poder político Não A classe trabalhadora no curso de seu desenvolvimento substituirá a antiga sociedade civil por uma associação que excluirá as classes e seu antagonismo e não haverá mais poder político propriamente dito Marx escreveu essas frases Miséria da filosofia 1847 e elas foram lidas por todo mundo O socialismo extrai sua força de persuasão dessa escatologia o anúncio do fim do Estado do fim da dominação do homem pelo homem É a verdadeira solução do antagonismo entre o homem e a natureza entre o homem e o homem a verdadeira solução da luta entre existência e essência É o enigma resolvido da história e sabe que é essa solução afimou Marx em 1844 Todavia uma dificuldade no curso de seu desenvolvimento Os socialistas não são anarquistas o Estado não será suprimido do dia para a noite a revolução se inscreve numa evolução a passagem para o comunismo se faz por etapas um Estado socialista é provisoriamente necessário E tudo se complica com o parêntesis na teoria e na prática Como conceber esse provisório Por que ele se institucionaliza Por que ironia o socialismo anuncia a extinção do Estado ao mesmo tempo em que organiza o fortalecimento do Estado Não será o momento de elucidar o que bem poderia ser uma das maiores estratégias da história e do pensamento políticos 200 História das ideias políticas A revolução bolchevique Plekhanov Trotski Lênin Uma sociedade não pode nem superar com um salto nem abolir por decreto as fases de seu desenvolvimento natural Se seguirmos a letra de Marx em O Capital não haveria necessidade de ou teria sido impossível fazer a revolu ção na Rússia atrasada As sociedades devem passar por cinco estágios i Comunidade primitiva onde não existe propriedade privada 2 Regime escravista onde aparece a dominação do homem pelo homem 3 Regime feudal propriedade principalmente fundiária florescimento das forças produtivas 4 Capitalismo caracterizado pela propriedade privada dos meios de pro dução 5 Socialismo socialização dos meios de produção extinção do Estado Somente após esses cinco estágios é que pode e deve aparecer o comu nismo Lênin não desmente esse determinismo ajustao para fazer a revolução através por um lado de sua teoria do imperialismo e por outro da tese do primado do político Nesse sistema a autonomia do político figura apenas como uma falsa janela em relação à inevitabilidade a dialética fornece uma simetria artificial O marxismoleninismo que vê a lei social com espírito dialético mostra que ela opera sob a forma da tendência dominante da evolução das re lações sociais dadas Isso significa que a lei determina a orientação geral do mo vimento que decorre necessariamente dessas ou daquelas condições objetivas Mas a marcha concreta dos eventos depende não somente das leis gerais mas também da correlação real das forças de classe da política das classes em luta e de muitas outras condições específicas Alguns desses fatores podem apressar ou retardar o sucesso definitivo da luta da classe operária Todavia a vitória da classe operária e do socialismo continua inevitável Apressar ou retardar o inevitável esse é o magro lugar concedido ao po lítico pelo manual de marxismoleninismo editado em Moscou Para além dos debates filosóficos sobre determinismo e dialética ne cessidade e liberdade Lênin vêse diante de um problema histórico preciso O EstadoPartido 201 a atualidade ou o caráter prematuro da Revolução na Rússia Para resolvêlo é preciso estudar duas questões frequentemente confundidas 1 Tratase para um país semifeudal de se poupar do estágio capitalista 2 Tratase no estágio capitalista de evitar o poder da burguesia e desse modo de transformar qualitativamente esse estágio capitalista para acelerar a transformação ao socialismo A primeira questão opõe os populistas russos aos mencheviques e aos bolcheviques Os primeiros Tchernichevski Herzen Tkatchev consideram que a ausência de escoadouros externos e a estreiteza do mercado interno tornam impossível a implantação do capitalismo na Rússia Além disso a estrutura comunitária das terras o Mir oferece uma base para construir o socialismo imediatamente A Rússia agrária evitará assim os males da in dustrialização e do capitalismo Para Lênin tratase de heresia e de absurdo O campesinato comunitário russo não é o antagonista do capitalismo ao contrário é sua base mais profunda e mais sólidà O desenvolvimento do capitalismo na Rússia 1896 Quanto à segunda questão o lugar do proletariado na revolução capi talista ela divide a socialdemocracia russa que estava de acordo apenas contra o comunismo agrário dos populistas O debate toma forma quando da Revolução de 1905 Três correntes três posições Num polo Plekhanov e a maioria dos mencheviques O socialismo não está na ordem do dia Não é preciso tomar o poder mas sim apoiar a burguesia Já que a sociedade russa não é suficientemente desenvolvida o proletariado russo não é suficientemente maduro Uma re volução prematura levaria a um desastre como o demonstra a Comuna de Paris e Marx teria sido contra No outro polo Trotski e os mais revolucionários Não ao tzar governo operário A revolução socialista é possível É pre ciso tomar o poder O proletariado pode conduzir sozinho uma revolução permanente ou seja ininterrupta burguêsproletária e colocar o coleti vismo na ordem do dià Entre os dois Lênin mais matizado Como para Plekhanov o capitalismo lhe parece necessário o socialismo é prematuro A ideia de buscar a salvação da classe operária em outra coisa que não o desenvolvimento do capitalismo é reacionária Em países como a Rússia a classe operária sofre menos com o capitalismo do que com a insuficiência de desenvolvimento do capitalismo A classe operária tem 202 História das ideias políticas todo o interesse no desenvolvimento mais amplo mais livre e mais rápido do capitalismo Contra Plekhanov e Martinov e com Trotski ele acredita que a burguesia russa é incapaz de realizar uma revolução burguesa assim o proletariado deve tomar o poder Mas com os camponeses e para realizar as reformas burguesas república liberdades democráticas separação entre a Igreja e o Estado transformações econômicas Isso só poderá ser feito mediante a ditadura revolucionária democrática do proletariado e do campesinato Em 1917 Lênin se alinha com a posição de Trotski a do socialismo ime diato Hoje quem falar apenas da ditadura democrática revolucionária do proleta riado e do campesinato está atrasado em relação à vida e passou na prática para a pequena burguesia merecendo ser relegado aos arquivos A revolução democrático burguesa é uma fórmula que envelheceu Está morta Todo po der aos sovietes Teses de Abril Podese considerar que atento à evolução histórica Lênin tornouse trotskistà ou seja que retomou por sua conta o ponto de vista da revolução permanente Podese também afirmar que ele não mudou que continuou convencido da necessidade do encadeamento das etapas capitalismo socia lismo comunismo Nesse caso o socialismo se encarrega na Rússia daquilo que o capitalismo não é capaz de fazer o socialismo nada mais é do que um monopólio capitalista de Estado instituído em benefício de todo o povo e que por isso perde seu caráter de monopólio capitalistà O Estado e a Revolução 1917 E Lênin jamais duvidou da necessidade de uma evolução capitalista da economia de uma espécie de capitalismo sem capitalistas O socialista ale mão Arthur Rosenberg escreveu O programa econômico de Lênin poderia ter sido aprovado naquele momento por políticos burgueses de esquerda na Europa e na Rússia se não tivesse sido combinado com uma democracia po lítica ilimitada Sobre esse último ponto podese e devese discutir mas é verdade que Lênin resolveu o problema da revolução na Rússia mediante a política em termos políticos INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Lênin Duas táticas da socialdemocracia na revolução russa 1905 Teses de Abril 1917 eds brasileiras in Obras Escolhidas AlfaÓmega São Paulo 197980 respectiva mente tomos 1 e 2 A teoria leninista do Partido Lukács Trotski Lênin A teoria do Partido ou da organização revolucionária é o verdadeiro cadinho do leninismo Constitui o principal acréscimo feito por Lênin e Marx ao mesmo tempo em que oferece a solução política para a superação do economicismo e permite a Revolução na Rússia Parte de uma certa concepção da consciência de classe e leva a um certo tipo de organização do proletariado É na prática que o homem deve provar a verdade ou seja a realidade é a potência de seu pensamento E em nome da unidade dialética entre pensamento e real Lênin não deixará de revisar Marx ao mesmo tempo em que não cessa jamais de lutar contra o revisionismo O marxismo não é uma filosofia especulativa mas uma ciência para transformar o mundo Essa transformação só se realizará através de uma dialética da teoria e da prática O agente dessa dialética será o Partido Cabelhe preencher as insuficiências quantitativas e qualitativas do proletariado russo Lukács explica como a teoria leninista da organização funciona como resposta política ao evolucionismo Lênin não considera que a vitória do socialismo seja inelutável O proletariado só é revolucionário na medida em que se eleva à consciência de classe E essa elevação não se dá nem automaticamente nem espontaneamente Lukács faz aqui uma distinção entre consciência psicológica e consciência atribuída O proletariado imediatamente possui apenas uma consciência psicológica conjunto dos pensamentos empíricos efetivos psicologicamente descritivos e explicativos que os homens elaboram acerca de sua situação vital Os operários portanto são capazes de reações de defesa contra a burguesia Mas não de fazer a Revolução Lukács e Lênin criticam o espontaneísmo de Rosa Luxemburgo bem como sua convicção dogmática segundo a qual se produz ao mesmo tempo que a necessidade social real também o meio de sua satisfação ou seja ao mesmo tempo à tarefa e sua solução A verdadeira consciência de classe do proletariado não é sua consciência psicológica mas uma consciência atribuída a consciência que a classe teria se fosse capaz de captar a situação histórica do ponto de vista de seu in teresse de classe ou seja com uma compreensão da totalidade da sociedade A classe operária pode chegar a esse ponto de vista mas não o faz necessariamente e nem sozinha Lênin insiste de acordo com Kautsky sobre essa incapacidade A história de todos os países atesta que por suas próprias forças a classe operária pode atingir apenas a consciência tradeunionista defensiva reivindicativa A consciência socialista é um elemento importado de fora na luta de classe do proletariado Que fazer 1902 A consciência atribuída a adequação à evolução objetiva global é trazida ao proletariado pelo Partido e mais precisamente pelos intelectuais revolucionários que o dirigem Esses intelectuais egressos da burguesia mas que romperam com ela põem a serviço da classe operária as conquistas teóricas da humanidade INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Lukács G Histoire et conscience de classe 1923 Ed de Minuit 1960 Weber H Marxisme et conscience de classe col 1018 1975 Colas D Principes du léninisme La théorie du parti et ses implications politiques tese 1980 PUF 1982 Essa concepção importadora da consciência de classe segundo a qual o proletariado deve importar seu saber implica a concepção elitista e antidemocrática da organização revolucionária apresentada por Lênin Lênin se inspira nos métodos herdados do capitalismo e da burguesia pelos quais como Marx ele não esconde sua admiração ao mesmo tempo em que os condena A fábrica capitalista essa fábrica que a alguns parece ser um espantalho é precisamente a forma superior da cooperação capitalista que aglutinou e disciplinou o proletariado ensinoulhe a organização colocouo à frente de todas as outras categorias da população laboriosa e explorada Foi o marxismo ideologia do proletariado educado pelo capitalismo que ensinou e ensina aos intelectuais volúveis a diferença entre o lado explorador da fábrica disciplina baseada no temor de morrer de fome e seu lado organizador disciplina baseada no trabalho em comum resultado de uma técnica altamente desenvolvida ibid O EstadoPartido 205 O Partido sabe graças aos intelectuais rompidos com a burguesia Rosa Luxemburgo Léon Blum e muitos outros criticaram Lênin por seu blanquismo Blanqui com efeito foi um dos primeiros apóstolos do van guardismo Eram burgueses os que primeiro levantaram a bandeira do proletariado que formularam as doutrinas igualitárias que as difundem mantêm e soerguem depois da queda Em todo lugar são burgueses que dirigem o povo em suas batalhas contra a burguesia O Partido organiza e dirige de modo militar a luta política da classe operária Rosa Luxemburgo denuncia esta subordinação A classe operária reclama o direito de aprender por seus próprios esforços a dialética da história Os erros cometidos pelo movimento operário revolucio nário são historicamente muito mais fecundos que a infalibilidade do melhor comitê central O Partido é composto de uma elite aguerrida de combatentes de van guarda de revolucionários profissionais que comandam os operários É or ganizado de modo predominantemente antidemocrático nem publicidade nem eletividade dos funcionários rigorosa seleção de membros e disciplina de ferro Na época em que Lênin apresentou esses princípios Que fazer 1902 Trotski os recusou Estão presentes dois métodos de construção do Partido o fato de querer pen sar pelo proletariado o substitutismo político do proletariado e sua mobiliza ção política para exercer uma pressão racional sobre todos os grupos e parti dos políticos Com o centralismo leninista em primeiro lugar a organização do Partido substitui o conjunto do Partido depois o Comitê Central substitui a própria organização e finalmente um único ditador substituirá o Comitê Central Era premonitório Todavia em 1917 Trotski alinhouse com a posição de Lênin com o centralismo A dominação revolucionária do proletariado supõe no próprio proletariado a dominação de um Partido dotado de um programa de ação bem definido e de uma forte disciplina interna No conjunto Lênin e Trotski que se opunham em 1905 sobre a possibilidade de uma revolução socialista e sobre a organização do Partido puderamse de acordo em 1917 Trotski adotou o centralismo leninista Lênin adotou a possibilidade de uma revolução proletária Notemos que o movimento dessas convergências corresponde ao endurecimento de cada um deles no qual Stálin encontrará seu elemento LÊNIN 1905 Revolução democrática porém Partido ditatorial 1917 Revolução proletária e ditadura de Partido TROTSKI Revolução proletária porém Partido democrático 1917 Revolução proletária e ditadura de Partido INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Blanqui A Textes choisis Editions Sociales 1956 Luxemburg R Grève de masse parti et syndicats 1906 Maspero 1971 La révolution russe 1918 Maspero 1971 Trotski L Terrorisme et communisme 1920 col 1018 ed brasileira Terrorismo e comunismo Saga Rio de Janeiro 1969 A ditadura do proletariado o Estado e a Revolução A teoria da extinção do Estado é exposta do modo mais completo na obra capital escrita por Lênin às vésperas da insurreição de outubro O Estado e a Revolução Texto de leitura essencial para os que querem compreender a teoria e a prática do socialismo fácil porque claro difícil porque aberto a uma pluralidade de interpretações A escolha entre essas interpretações condiciona nada menos do que a explicação do stalinismo a relação entre Lênin e Stálin as causas do socialismo ditatorial as possibilidades de um socialismo libertador Dois tipos de versão se opõem uma com uma variante stalinista que aceita o todo e com uma variante antistalinista que rejeita o bolchevismo e seus emulos estabelece as fliações teóricas entre leninismo e stalinismo A outra ao contrário sublinha a ruptura radical entre eles e inocenta Lênin do pecado stalinista A leitura libertária de O Estado e a Revolução conservase próxima do texto de Lênin Lucio Coletti distingue assim no livro três pontos principais O EstadoPartido 207 uma exposição da teoria marxista do Estado uma concepção da conquista destruição do Estado burguês e depois da abolição de todo Estado Ou seja Apresentação leninista da teoria marxista do Estado O Estado é o pro duto e a manifestação da inconciliabilidade das contradições de classe É pre ciso evitar o contrassenso funcionalista que acredita que o Estado surge por causa das contradições de classe verdadeiro e tem por função por causa disso resolvêlas falso a existência do Estado prova a inconciliabilidade entre as classes É preciso igualmente evitar o contrassenso revisionista que admite ser o Estado um fenômeno de dominação de classe mas crê que sua transformação é possível sem sua destruição através apenas de sua conquista pela classe dominada Conquistadestruição do Estado burguês Marx escreveu Todas as revoluções políticas não fizeram mais do que aperfeiçoar a máquina do Estado em vez de quebrála O iB Brumário de Luís Bonaparte Engels escreveu e concretizou no AntiDühring O proletariado se apodera do poder de Estado e transforma os meios de produ ção inicialmente em propriedade do Estado Mas ao fazer isso ele se suprime a si mesmo como proletariado suprime todas as diferenças de classe e oposi ções de classe e igualmente suprime o Estado enquanto Estado A intervenção de um poder de Estado nas relações sociais tornase supér flua progressivamente nos vários terrenos e desse modo ele vai naturalmente minguando O governo das pessoas cede lugar à administração das coisas e à direção das operações de produção O Estado não é abolido ele se extingue Lênin o cita interpretao puxao para o lado do bolchevismo Engels fala aqui da supressão do Estado pela revolução proletária da burgue sia enquanto o que se fala sobre a extinção referese ao que subsiste do Estado proletário depois da revolução socialista O Estado burguês segundo Engels não se extingue é suprimido pelo proletariado no curso da revolução O que se extingue depois dessa revolução é o Estado proletário Abolição do Estado proletário Depois de ter evitado uma interpreta ção anarquistà de Engels destruição definitiva do Estado pela revolução Lênin volta a ser libertário A tarefa principal da ditadura do proletariado é abolir o Estado A democracia da burguesia tornase proletária e o Estado se transforma em algo que não é mais um Estado Somente o comunismo é capaz de realizar uma democracia realmente completa e quanto mais ela for completa mais rapidamente se tornará supérflua e desaparecerá por si mesma Pela primeira vez na história as massas são chamadas ao governo A revolução transforma os organismos representativos em organismos autênticos Segundo o modelo da Comuna os sovietes substituem o mandato representativo pelo mandato imperativo Passase assim da ditadura democrática para a democracia direta e da democracia direta para o fim do Estado Esse belo encadeamento não se realizou Uma leitura estatista de O Estado e a Revolução pode pelo menos reivindicar o argumento da realidade A passagem do leninismo para o stalinismo foi historicamente possível Isso significa portanto que ela foi também teoricamente ou seja segundo a ordem do raciocínio A interpretação estatista do leninismo sublinha que por trás de seus acentos libertários Lênin reencontra o Estado e por trás da chegada das massas ao poder a dominação de uma vanguarda Todo o poder aos sovietes a fórmula é vazia ou excessivamente cheia Ela confunde tudo com uma das mãos concede a destruição do Estado mas com a outra reintegra os sovietes na teoria repressiva Pois através dos sovietes é o Partido que toma o poder ou o Partido que exerce o poder o Partido que constrói seu Estado Os socialistas antistatistas opõem então o par ditatorial LêninStálin ao par libertário MarxEngels A ditadura do proletariado oferece o argumento privilegiado dessa oposição Uns se contentam em contar a ditadura do proletariado noção central do leninismo desempenha em Marx um papel apenas secundário já que ele pouco a evoca somente duas vezes segundo Boris Souvarine 11 vezes no máximo segundo H Draper Mas Marx fala dela em seus principais textos políticos Chegou mesmo a escrever O que eu trouxe de novo foi provar que essa luta de classes leva necessariamente à ditadura do proletariado Carta a Weydemeyer 1852 Dirseá então que Marx não teorizou essa ditadura e lhe conferiu um conteúdo incerto cf Kautsky ou Maximilien Rubel Finalmente terceiro argumento utilizado a significação da ditadura do proletariado não é a mesma em Lênin que lhe retira o conteúdo democrático O pensamento político de Marx não teria deixado de ser democrático Já o Manifesto definia a Revolução como o movimento espontâneo da imensa maioria O EstadoPartido 209 em proveito da imensa maioria Quanto à ditadura do proletariado é apenas um poder democrático revolucionário conforme o modelo da Comuna O filisteu socialdemocrata foi recentemente tomado por um sagrado terror ao ouvir as palavras ditadura do proletariado Pois bem senhores querem saber com o que se parece essa ditadura Olhem para a Comuna de Paris é a dita dura do proletariado Engels Prefácio de 1891 a Marx A guerra civil na França 1871 Qualquer pessoa pode constatar que o poder soviético há muito não se inspira mais nas características da Comuna sublinhadas por Marx regime democrático A Comuna foi composta de conselheiros municipais eleitos por sufrágio uni versal nos diversos bairros da cidade Eram responsáveis e revogáveis a qual quer momento Destruição do Estado destruição dos poderes do poder clerical A Comuna colocouse como tarefa quebrar o instrumental espiritual da opres são o poder dos padres Esses foram devolvidos ao tranquilo retiro da vida privada para lá viver da esmola dos fiéis tal como seus predecessores os apóstolos Destruição da polícia da administração da justiça cujos funcionários tornamse responsáveis e revogáveis a qualquer momento Destruição da centralização O regime da Comuna uma vez estabelecido em Paris e nos centros secundários faria com que o antigo governo centralizado também nas províncias fosse substi tuído pelo autogoverno dos produtores Marx A guerra civil na França 1871 Última crítica Lênin substitui a ditadura majoritária da classe majoritá ria pela ditadura minoritária do partido de vanguarda Reencontramos aqui a acusação de blanquismo Marx disse aos blanquistas sim nós queremos a ditadura ao mesmo tempo audaciosa e enérgica para defender a revolução mas somos contra o que vocês desejam como ditadura queremos a ditadura da classe ou seja do proletariado e não a do partido revolucionário Engels 1874 210 História das ideias políticas INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Châtelet F Evelyne PisierKouchner e JeanMarie Vincent Les marxistes et la politique PUF 1975 col Thémis Coletti L De Rousseau à Lenine Gramma 1972 Gorter H Réponse à Lénine Librairie ouvriere 1920 ed brasileira Carta aberta ao com panheiro Lênin 1920 in M Tragtenberg org Marxismo heterodoxo Brasiliense São Paulo 1981 p1474 Kautsky K La dictature du prolétariat 1918 col 1018 1972 ed brasileira KautskyLê nin A ditadura do proletariado A revolução proletária e o renegado Kautsky Ciências Humanas São Paulo 1979 p387 O fortalecimento do Estado Ditadura do Partido justificada em teoria exacerbada na prática com Lênin já se torna problemático traçar a fronteira entre o teórico e o empírico Stá lin proclamase herdeiro direto de Lênin não sem razões não sem abusos Convém revelar a falsificação e indicar o que a autoriza Em outras palavras elucidar a continuidadedescontinuidade entre Lênin e Stálin o que permite avaliar melhor as críticas ao stalinismo assim como o novo rumo seguido pela oposição no pósstalinismo a dissidência De Lênin a Stálin Trotski Zhdânov Stálin Antes de mais nada uma realidade o nascimento do Estado soviético não deu lugar nos fatos a nenhum salto qualitativo ou ampliação da demo cracia mas desde Lênin ao seu contrário redução progressiva da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão proibição oficial da greve não se pode fazer greve contra si mesmo recusa de admitir os comunistas de esquerda no Conselho de Comissários do Povo criação da Tcheca polícia política para reprimir os heterodoxos proclamação oficial do Terror Vermelho para defender a Revolução subordinação dos sindicatos o trabalho deles é convencer as massas Lênin funcionarização da administração burocratização dos sovietes dissolução da Assembleia Constituinte onde os bolcheviques eram mino ritários O EstadoPartido 211 proibição do pluripartidarismo inclusive limitado aos defensores do so cialismo supressão autoritária das frações no seio do Partido único justificação do recurso à ditadura Cada uma dessas medidas deu lugar a inumeráveis debates na literatura socialista A tendência dominante as justifica em nome das necessidades práticas e das ameaças contra a Revolução agredida realidades políticas que seria difícil negar ou álibis de uma engrenagem fatal O debate em certo sentido é puramente empírico em outro imortal Não seria possível deixar de sublinhar as peças teóricas que constituem a trama do fortalecimento do Estado os dois principais pontos de articulação entre Stálin e Lênin o socia lismo em um só país o agravamento da luta de classes O socialismo em um só país Com Trotski Lênin acreditou durante muito tempo que a salvação só é possível pelo único caminho da revolução socialista internacional Sua lei do desenvolvimento desigual introduziu a primeira brecha a Revolução podia começar num só país Mas ela deveria rapidamente se estender ao restante da cadeia imperialista em particular através da transformação da guerra internacional em guerra revolucionária mundial A partir de 1918 Lênin vê nessa ideia nada mais do que um conto de fadas Passase assim da revolução em um só país ao socialismo em um só país O ponto de vista tornase tese oficial somente sob Stálin mas tem sua origem no leninismo H Lefebvre Esse deslizamento permite passar subrepticiamente do leninismo trotskista ao stalinismo leninista e do so cialismo internacional ao socialismo nacional A doutrina de Stálin leva a esse notável resultado ela suprime aparentemente a contradição que existe na Rússia soviética entre o mito socialista e a realidade É a ditadura do proletariado que reina na Rússia e sua tarefa consiste em reali zar o socialismo integral com a eliminação total dos elementos capitalistas Desde i925 o mito da Rússia soviética consiste no fato de que a teoria bolche vique oficial faz passar o socialismo nacional tal como existe na Rússia pelo socialismo marxista ortodoxo A Rosenberg Histoire du bolchevisme cit INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Korsch K Paul Mattick Anton Pannekoek Otto Rühle e Helmut Wagner La contreré volution bureaucratique Ch Bourjois col 10ls 1973 Lefebvre H Pour connaitre la pensée de Lenine Bordas 1957 reed 1977 212 História das ideias políticas Nos anos 192829 o stalinismo se afirma O socialismo em um só país é elevado ao nível de teoria completase com um projeto de industrializa ção acelerada que impõe destruir os kulaks e realizar a coletivização for çada da agricultura Para isso Stálin retoma de Lênin a tese segundo a qual a ditadura do proletariado se justifica pela intensificação da luta de classes O Estado socialista o meioEstado da ditadura do proletariado esvaziase então de todo conteúdo democrático Sobre o socialismo transição entre o capitalismo e o comunismo Lênin escreveu O período de derrubada e supressão completa da burguesia é necessaria mente marcado por uma luta de classes de intensidade sem precedentes O Estado desse período portanto deve necessariamente ser democrático de um modo novo e para os proletários ditatorial de um modo novo contra a burguesia Stálin conserva apenas a parte ditatorial da frase para melhor justificar a repressão inclusive contra os comunistas moderados Bukharin supõe que sob a ditadura do proletariado a luta de classes deve se ex tinguir e desaparecer Ora Lênin nos ensina que as classes só serão abolidas depois de uma luta de classes mais perseverante mais encarniçada ainda sob a ditadura do proletariado do que antes dela O stalinismo força assim os textos de Lênin para chegar à identificação teórica entre Estado socialista e Estado soviético O fortalecimento do Es tado inscrevese então em linha de continuidade direta com o leninismo já que é na União Soviética que se constrói o socialismo e as condições particulares de seu desenvolvimento impõem o afastamento de qualquer referência à extinção do Estado Dito isso é certamente necessário que o socialismo progrida que a abolição das classes termine por se delinear no horizonte sem o que a referência ao marxismoleninismo perderia qual quer verossimilhança Disso resulta a nova tese sobre o advento da socie dade sem classes A sociedade soviética de nossa época ao contrário de qualquer sociedade capi talista não tem mais em seu seio classes antagônicas inimigas as classes exploradoras foram liquidadas Stálin 1939 O EstadoPartido 213 Mas como justificar a persistência do Estado quando desapareceu o an tagonismo das classes que é o seu fundamento Por um atalho engenhoso o cerco capitalista Se o esquema da extinção do Estado não funciona exa tamente como previsto apesar dos progressos do socialismo na União So viética a culpa é do outro do inimigo do mundo capitalista hostil sempre pronto a intervir militarmente para restaurar o capitalismo O Estado sovié tico está cercado portanto não pode desaparecer A Constituição de i936 proclama o fim de toda função de repressão in terna Os opositores mudam de qualidade Não são mais inimigos de classe mas cúmplices do imperialismo É assim que se explica o fato de que a repressão tenha podido atingir o proletariado e os próprios comunistas O Partido é por excelência o órgão dessa repressão Stálin pode se proclamar sobre esse ponto continuador de Lênin para ganhar a luta de classes inten sificada ou a luta contra os agentes do estrangeiro o Partido deve reforçar o seu monolitismo Ele exerce seu poder tirânico e confere legitimidade em todos os domínios inclusive na arte Jdanov ou na biologia Lysenko Ele sabe e diz o Verdadeiro o Belo o Bem E sua autoridade se estende a todos os cidadãos pois o Estado é o Partido o Partido é o Estado INDICAÇÃO BIBLIOGRÁFICA Jdanov A Sobre a literatura a filosofia e a música 1947 e Stálin Joseph Vissarionovitch Dju gatchvili Quesitos do leninismo artigos 1926 A crítica do stalinismo Luxemburgo Trotski Djilas A avaliação do stalinismo é condicionada pelo menos à esquerda pelo ba lanço das continuidades e descontinuidades entre MarxLêninStálin O en cadeamento salta aos olhos porque cada um pôde com certa credibilidade reivindicar o precedente Marx autoriza Lênin que autoriza Stálin Mas as rupturas teóricas não deixam por isso de existir e elas permitem fazer uma escolha no cardápio De Marx a Stálin sobre as questõeschave da Revolução e do Estado há uma sucessão de inflexões MarxEngels O EstadoPartido 215 A crítica trotskista se antecipa a todas as outras já que ganha corpo à medida que Joseph Stálin ascende Todavia outros revolucionários soube ram denunciar a ameaça burocrática antes mesmo que ela se manifestasse em toda sua dimensão E souberam fazêlo em termos de uma nitidez que Trotski jamais alcançará É assim que Rosa Luxemburgo lembra aos bolche viques que eles têm o dever de substituir a democracia burguesa pela democracia socialista e não suprimir qualquer democracia fazer com que a democracia socialista não comece somente na Terra Pro metida quando a infraestrutura da economia socialista houver sido criada lembrar que a liberdade somente para os partidários do governo somente para os membros do partido por mais numerosos que sejam não é liber dade A liberdade é sempre pelo menos a liberdade de quem pensa diferen temente Trotski não podia sequer ter acesso a essas evidências sua luta contra a burocracia carecia de base porque Trotski era objetivamente um artesão dessa burocracià Cl Lefort Em 1921 ele condena as teses da Oposição Operária sobre a democracia no partido e sobre a gestão operária confiada aos sindicatos aprova os bombardeios dos insurrectos de Kronstadt que re clamavam eleições livres para os sovietes Só a partir de 1923 é que a oposição de esquerda trotskista evoca os sintomas de degenerescêncià e as ameaças de um Termidor Trotski funda sua condenação sobre a denúncia da tese do socialismo em um só país e portanto limita sua crítica ao stalinismo ainda que a torne mais complexa com o passar dos anos Qualquer que seja a amplitude de sua análise da burocracia ele se recusa a ver nela um novo sistema de explora ção uma nova classe dirigente Ela é apenas uma casta parasitária Quando a burocracia rouba o povo estamos diante não de uma exploração de classe no sentido científico da palavra mas de um parasitismo social ainda que em grande escala O clero da Idade Média era uma classe na medida em que sua dominação se apoiava num sistema determinado de propriedade fundiária e de servidão A atual Igreja não é uma classe exploradora mas uma corporação parasitária A burocracia corresponde evidentemente a muito mais do que um sim ples parasitismo Trotski porém não o admite por temor de pôr em questão 216 História das ideias políticas o próprio bolchevismo Para valorizar as conquistas de Outubro de 1917 ele subestima o stalinismo O Estado stalinista é assim um Estado operário de generado degenerado mas operário Dizer mais para pior seria considerar que não havia sido necessário fazer a Revolução de 1917 No Leste emergiram outras críticas mais radicais Na Iugoslávia Milo van Djilas expulso da Liga dos Comunistas em 1954 por desvio burguês considera a burocracia uma nova classe dirigente Classe ela toma posse das riquezas nacionais em nome da coletividade Nova ao contrário das precedentes que só obtiveram o poder depois da formação de novas estruturas econômicas no seio da velha sociedade a buro cracia não tomou o poder para completar uma ordem econômica renovadà mas para estabelecer seu próprio sistema econômico e instaurar desse modo seu poder sobre toda a sociedade Na Polônia Kuron e Modzelewski anunciaram em 1964 uma crise geral da economia e choques entre as forças revolucionárias e a classe dominante do socialismo burocrático Classe dominante de tipo original ligada às ne cessidades de industrialização de um país subdesenvolvido A burocracia é a única a responder a essas necessidades porque é a única a poder fazer da industrialização ou seja da produção pela produ ção seu interesse de classe A burocracia política central é uma classe dominante tem o poder exclusivo sobre os meios de produção de base compra a força de trabalho da classe ope rária tomalhe através da força bruta e da coerção econômica o produto exce dente que explora para objetivos hostis ou alheios aos operários ou seja com o objetivo de ampliar e de reforçar seu poder sobre a produção e a sociedade Na Alemanha Oriental Rudolf Bahro filósofo comunista condenado a oito anos de prisão em 1977 depois de ter escrito A alternativa para uma crítica do socialismo realmente existente desenvolve uma análise marxista dos países ditos socialistas A análise nos leva a definir um conceito geral de via não capitalistà que com preende a maioria dos países que se intitulam socialistas bem como a buscar a origem dessa via não capitalista na herança do chamado modo de produção asiático É sobre isso que se funda a análise da evolução da Rússia que pas sou de um despotismo agrário a um despotismo industrial O EstadoPartido 217 Todas essas tentativas teóricas foram reprimidas já que todas iam de masiadamente longe condenando as raízes do sistema muito além dos limi tes aceitos pela chamada desestalinização INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bahro R Ialternative 19n Stock 1979 ed brasileira parcial A alternativa Paz e Terra Rio de Janeiro 1980 Djilas M La nouvelle classe dirigeante Plon 1957 ed brasileira A nova classe dirigente Agir Rio de Janeiro 1958 Kuron Modzelewski Lettre ouverte au Parti polonais 1964 Maspero 1969 Trotski Novo curso 1923 A Quarta Internacional e a URSS 1933 A revolução traída 1936 Stálin 1940 A desestalinização Em i956 o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética conde nou oficialmente mas de modo secreto o stalinismo considerado como um culto à personalidade Expressão de uma incontestável verdade mas de extrema pobreza teórica para caracterizar o sistema stalinista A autocracia de Stálin foi certamente o coroamento do sistema mas foi sobretudo sua verdade A onipotência e a onisciência de Stálin são a conclu são lógica do delírio que é a interpretação do marxismo como filosofia da história de tipo agostiniano O paralelismo com a visão providencialista de um Bossuet é chocante nessa visão um certo número de encarnações devem levar ao Fim do Tempo Em Bossuet Deus se encarna em Cristo o Cristo na Igreja a Igreja no papa aqui as massas se encarnam no proletariado o proletariado em seu partido o partido em seu secretáriogeral O chefe parteiro genial da sociedade comunista Foi necessário o de saparecimento físico do tirano e o vazio assim criado para que esse delírio fosse substituído sob a pressão das camadas de técnicos por um Estado igualmente autoritário mas que atua de modo mais matizado 218 História das ideias políticas Os limites teóricos da crítica oficial do stalinismo são diretamente de terminados pelos limites práticos da desestalinização Tratase de mudar os procedimentos sem subverter o sistema Portanto o regime stalinista conti nua a ser considerado como globalmente positivo e suas bases socialistas estão intactas Kruschev atribui exclusivamente à personalidade e aos méto dos de direção de Stálin os malefícios do período No seio dos partidos comunistas ocidentais alguns julgaram a análise um pouco limitada em função dos fatos revelados manipulação petrifica ção dos dogmas esmagamento da democracia estabelecimento de normas infernais nas fábricas deportação de populações inteiras liquidação física de milhões de pessoas comunistas ou não Assim Togliatti dirigente do Partido Comunista Italiano sublinha Supor que uma personalidade ainda que tão importante como Stálin tenha po dido mudar nosso regime social e político é contradizer os fatos o marxismo a realidade é cair no idealismo Dessa suposição Togliatti extrai importantes consequências políticas os elos que levarão ao eurocomunismo o policentrismo a afirmação de que existem caminhos nacionais para o socialismo o caminho italiano consti tucionalista democrático pluralista eurocomunista por antecipação O Partido Comunista Francês não irá tão rápido nem tão longe reser vando essas audácias a alguns dos seus membros mais ou menos marginais Roger Garaudy inspirase em Gramsci e prega um novo bloco histórico entre operários e intelectuais É expulso do PCF em 1970 Jean Ellenstein não o é Ele estuda o fenômeno staliniano segundo uma problemática na qual as condições históricas particulares da Rússia substituem o culto da perso nalidade como chave explicativa A história explica e o comunismo francês será diferente No outro polo do PCF Louis Althusser propõe um conceito ainda que provisório o desvio stalinista Ele caracteriza a Segunda Interna cional socialdemocrata pelo par humanismoeconomicismo e sugere que o stalinismo é uma forma de desforra póstuma da Segunda Internacional INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Althusser L Réponse à John Lewis Maspero 1973 ed brasileira Resposta a John Lewis in Posições 1 Graal Rio de Janeiro 1978 p1371 Ellenstein J Le phénomene stalinien Grasset 1976 O EstadoPartido 219 Garaudy R Le grand tournant du socialisme Gallimard 1970 col Idées ed brasileira A grande virada do socialismo Civilização Brasileira Rio de Janeiro 1971 Lazitch B Le rapport Khrouchtchev et son histoire Seuil 1979 col Points Togliatti P Le Testament de Togliatti Maspero 1964 ed brasileira Memorial de Ialta 1964 in Togliatti Socialismo e democracia Obras escolhidas 19441964 Muro Rio de Janeiro 1980 p22535 Dissidências Os eurocomunistas e alguns outros discutem ainda sobre a natureza do sta linismo seus efeitos suas sequelas Mas a margem se estreita até onde é possível empenharse na denúncia de um regime para o qual se conserva a etiqueta de socialista A dissidência se situa além ela indica uma ruptura Os dissidentes se colocam fora do sistema e de seu fundamento ideológico Não esperam mais a liberalização da desestalinização não sonham mais com uma reforma interna Indicam diretamente o caráter monstruoso do Estado socialista que perdura e se fortalece Hungria 1956 Polônia 1956 Tchecoslováquia 1968 Polônia 1970 Po lônia 1980 em todos os casos revoltas antitotalitárias sublevações da classe operária contra si mesma ou seja contra o Estado que pretende encarnála em todos os casos fermentos da dissidência dilacerações flagrantes dos dis cursos sobre o Estado da classe operária em processo de extinção Ao mesmo tempo paradoxalmente imenso sofrimento indizível ironia a dissidên cia se apodera da arma legalista A partir do processo contra Siniavski e Da niel 1966 criamse comitês que reclamam a aplicação das Constituições das leis da Declaração Universal dos direitos do homem Desse movimento surge também uma obra literária e política Também aqui só há novidade para os que se recusavam a saber Desde os anos 1930 Boris Souvarine denunciava o assassinato das liberdades e o extermínio da elite camponesa Ele apresenta a incrível cifra de dez a 15 mi lhões de deportados Hoje a dissidência quebrou a intransponível barreira entre o amigo e o inimigo o silêncio não dita mais a lei Os testemunhos e análises se multiplicam Sob formas novas Vejamos o que diz Zinoviev em Os cumes escarpados 1977 Não é de se excluir que existam situações onde todo um povo é culpado de um crime contra um único indivíduo Isso é casuística diz ela É essa casuística que funda toda a civilização do Direito diz ele Mas se os interesses do povo diz ela Então todo o código não passa de uma grande palhaçada diz ele Uma sociedade cujo slogan oficial é que os interesses do povo estão acima dos interesses dos indivíduos é uma sociedade sem Direito Pura e simplesmente Anticomunismo radical que não evita apreciações heréticas Na época do stalinismo o país conheceu uma promoção sem precedentes na história da humanidade milhões de pessoas deixaram as camadas inferiores da sociedade para se tornarem contramestres engenheiros professores médicos atores oficiais pesquisadores escritores etc Victimes et complices Le Monde 22 de dezembro de 1979 A despeito de todos os seus horrores o stalinismo foi um autêntico poder do povo Zinoviev ibid Em 1976 Pinochet e Brejnev trocaram seus dissidentes o comunista chileno Corvalán e o louco soviético Bukovski Confissão que a seu modo Bukovski revela Por que você não se levanta quando um chefe entra Economizo minhas forças Sete dias de prisão como castigo Por que você não quer trabalhar Com 450 gramas de pão não se resolve muita coisa Lembrese de que durante a guerra no tempo do bloqueio os habitantes de Leningrado recebiam apenas 200 gramas por dia e apesar disso trabalhavam Ou seja eles mesmos se comparavam aos fascistas INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bukovski V Et le vent reprend ses tours Laffont 1978 Soljenitsin A Larchipel du Goulag Le Seuil 3 vols 197476 ed brasileira O arquipélago Gulag Difel São Paulo Zinoviev A Lavenir radieux LAge dhomme 1978 CAPÍTULO VII O Estado Força Estado total poderíamos dizer se a expressão não convidasse a confundir fascismos e socialismos Estado racial se ela não induzisse a uma assimilação abusiva da Itália mussoliniana com a Alemanha de Hitler EstadoPovo se essa tradução do alemão volklisch não privilegiasse apenas um termo povo em detrimento do outro raça quando precisamente a palavra volklisch os funde Portanto usaremos EstadoForça embora todo Estado funcione em maior ou menor medida com base na coerção e o faremos porque o na zismo os fascismos e as doutrinas contrarrevolucionárias que os precederam ou os acompanharam têm em comum a luta por um Estado forte que não seja limitado pelo direito sem nem mesmo apresentar a desculpa ou o pre texto de sua futura extinção Isso não anula que entrecruzamentos ocorram nem que toda classifica ção tome partido Ainda que no caso em pauta seja possível reivindicar a seriedade da análise para escapar à alternativa corrente em virtude da qual seria preciso ou confundir stalinismo e nazismo sob todos os pontos de vista ou passar por um defensor do Gulag É verdade que Mussolini começou como socialista revolucionário e que não precisou de nenhuma ruptura radical para chegar ao fascismo como também é verdade que Maurras por suas nostal gias ligase mais a Chateaubriand do que a Hitler A história das ideias con vida a uma pluralidade de associações mas como se disse o jogo das filiações importa menos do que a revelação dos efeitos reais produzidos por esse ou aquele pensamento Charles Maurras não atraiu ninguém para o liberalismo democrático ao contrário ele não foi estranho à aceitação do nazismo por boa parte das elites políticas econômicas e intelectuais francesas O mesmo problema se coloca mas com um risco ainda maior de arbi trariedade no que se refere às ideologias mais novas mais recentemente formuladas as quais por definição são excessivamente jovens para ter produzido seus efeitos sobretudo na medida em que permanecem margi nais ou minoritárias A nova direita não reivindica sua inclusão de resto 221 222 História das ideias políticas contestável na linhagem nazista O elitismo argumentado pela biologia ins crevea indubitavelmente na continuidade contrarrevolucionária mas alguns liberalismos também se construíram com base no culto da elite Contudo ela será incluída nesse capítulo porque na configuração ideológica do século que acaba ela ocupa um lugar análogo ao dos contrarrevolucionários do fim do século XIX e dos fascistas dos anos 1930 A nova direita remete à antiga sem que o fascismo possa ser considerado como um simples parêntese A D I REITA CONTRARREVO LUCIONÁRIA DO NACIONALISMO AO RACISMO O nacionalismo integral A direita francesa da primeira metade do século XX é dominada pela perso nalidade de Charles Maurras Uma das maiores forças intelectuais de nosso tempo Malraux um dos mestres de nossa geração Mauriac meu mes tre Montherlant Num período marcado pela crise das democracias parla mentares e do capitalismo na Europa o papel desempenhado pela doutrina maurrasiana revelouse complexo para não dizer contraditório É habitual sublinhar as diferenças até mesmo as incompatibilidades entre o naciona lismo integral e as ideologias fascistas Com efeito veremos que o aspecto rea cionário do maurrasismo opunhase à revolução fascistâ mas em seguida iremos precisar como a direita francesa foi igualmente revolucionária e pré fascista No final das contas se o nacionalismo francês afastou a França do fas cismo não deixou por isso de forjar as origens francesas do fascismo 1 A unidade do pensamento maurrasiano e mais ainda da direita fran cesa anterior à Segunda Guerra Mundial repousa em sua determinação con trarrevolucionária Contra a Revolução Francesa antes de mais nada contra a revolução bolchevique como é evidente mas na maioria dos casos de modo acessório contra o igualitarismo que as une a Ação Francesa pregou uma contrarrevolução política e social Contra julho de 1789 em favor de julho de 1940 Ela aspira a um Estado forte talvez cúmplice do Estado fascista mas diferente dele A contrarrevolução política condena os ideais da Revolução Francesa e lhes opõe as virtudes da monarquia 1 Para retomarmos o pertinente subtítulo do livro de Zeev Sternhell La droite révolutionnaire 18851914 Paris Le Seuil 1978 col TUnivers Historique O EstadoForça 223 Por um lado Maurras se contenta em retomar os argumentos do tradi cionalismo contra a democracia Como Burke Bonald e Maistre 1789 lhe pa rece antinatural na medida em que a natureza se identifica com a continui dade da ordem histórica Mas o historicismo de Maurras é laicizado Sabese que Maurras não chegou a crer e recusouse a abandonar seu ateísmo2 em bora ele contivesse grandes inconvenientes políticos 3 O cristianismo lhe era particularmente insuportável Há no Evangelho um almanaque para formar um bom demagogo anarquistà Ele depôs os poderosos Ele cumulou os famintos de bens Ele expulsou os ricos depois de têlos despojado etc Todavia se Maurras recusava o Cristo judeu cercado de judeus obscuros cobria de louvores a Igreja Católica por ter implantado uma construção de or dem de razão de sabedoria de autoridade e de conservadorismo a partir de uma mensagem confusa judaica oriental anarquista A Igreja soube defor mar violar e trair as Escrituras subversivas essa foi sua genialidade política Vêse aqui a roupagem modernista de Maurras o seu positivismo Pouco lhe importa em última instância ter de crer em Deus para apoiar a Igreja já que a influência política dessa é benéfica Do mesmo modo ele denuncia o irracionalismo da Revolução Decerto Burke já voltara a Razão contra seus filósofos mas através de uma definição da razão pelos preconceitos reto mada por Taine a natureza e a história escolheram previamente por nós ou Barres vamos nos vestir com nossos preconceitos eles nos aquecem ou em outras palavras através de uma recusa da inteligência essa pequena coisa na superfície de nós mesmos Ao contrário Maurras apela para a in teligência clássica para a razão positiva experimental prática e é em nome da civilização laboriosa construção da razão que ele denuncia a Revolução Foi pela análise dos últimos erros literários do romantismo que fomos le vados e até mesmo arrastados ao estudo do erro moral e político de um Estado em revolução Odiando o romantismo bárbaro por ser estranho às letras clássicas preferindo os impulsos à razão a desordem e a indisciplina à ordem grecolatina Maurras chega a recusar a Revolução já que o roman tismo não passa de uma consequência literária filosófica e moral da Revo luçãd Raciocínio surpreendente pouco suscetível de arrastar as massas e referência à razão positiva que pretenderá ser um dique contra as torrentes irracionais do fascismo 2 Se deixamos de lado sua conversão in extremis arrancada em seu leito de morte pelo abade Cormier e ao qual Maurras concedeu Estou cansado de raciocinar 3 A Ação Francesa recrutava o grosso de sua clientela nos meios católicos O ateísmo de Maurras implicou a condenação do seu movimento e a excomunhão de seus membros entre 1927 e 1939 224 História das ideias políticas Esse moderantismo reacionário reencontrase no monarquismo da Ação Francesa A monarquia é necessária pois somente o rei pode salvar a França O princípio monárquico é superior é imposto pelo nacionalismo pela here ditariedade Uma vez colocada a vontade de conservar nossa pátria francesa como postu lado tudo se encadeia tudo se deduz de um movimento inelutável A fantasia a própria escolha não desempenham nisso nenhum papel se você está resol vido a ser patriota terá obrigatoriamente de ser monarquista A razão o quer É preciso seguila e ir até onde ela conduz Charles Maurras Mes idées poli tiques 1937 p280 Essa geração marcada pela derrota de 1870 imputava a responsabilidade de tal derrota à deriva democrática impotente em face do autoritarismo prus siano Um país democrático não pode ser bem governado bem adminis trado bem comandado Ernest Renan La Réforme intellectuelle et morale de la France 1871 Se o nacionalismo exige a pirâmide das obediências e por tanto a hierarquia monárquica a hereditariedade a justifica Nascese juiz ou mercador militar agricultor ou marinheiro O príncipe é assim uma varie dade social do tipo do homem A hereditariedade confere ao poder a força a duração e a continuidade das quais carece cruelmente o regime democrático Em que o monarquismo maurrasiano se afastaria do fascismo Em pri meiro lugar ele desviaria os seus adeptos dos movimentos de massa fascis tas O monarca hereditário não tem muito a ver com o chefe carismático que inflama suas coortes Os caininhos propostos pela Ação Francesa para a to mada do poder permaneciam relativamente tranquilos pelo menos no plano verbal O momento doutrinário predominava sobre tudo política antes de mais nada Advertido pela derrota boulangista Maurras tirou a seguinte conclusão Não há nenhuma possibilidade de restauração da coisa pública sem doutrina Os partidários do nacionalismo integral portanto eram con vidados a propagar a doutrina Num segundo momento com os progressos da mentalidade conspirativà chegou a hora do golpe de forçà Maurras atrasa um século e oferece como modelo Mademoiselle Monck publicado em 1910 com um prefácio de Andre Malraux uma bela mulher convencida por seu amante a apoiar Luís XVIII e que soube persuadir Talleyrand a ade rir aos Bourbon Assim como se lamentava Georges Valois Maurras em vez de organizar as forças nacionais para a conquista do poder sempre con siderou que atuaria através do espírito sobre o Homem militar ou civil que daria o golpe O EstadoForça 225 Por outro lado a concepção maurrasiana do Estado monárquico está bastante longe da concepção do Estado fascista Ela não se apoia numa mo bilização popular o que lhe tira a componente de massa própria dos fascis mos Barres compreendera isso afirmando que uma inteligência julgando in abstracto adota o sistema monárquico que constituiu o território francês Resposta a Maurras in Enquête sur la monarchie 1900 mas considerava indispensável aceitar a Revolução Para além da questão do regime Maurras desejava a restauração de um Estado forte mas evitava o estatismo e não aderiu à concepção totalitária do Estado Quando o Estado se torna tudo o Estado não é mais nada Embora tenha apreciado Mussolini não aceitou a estatolatria mussoliniana segundo a qual tudo está no Estado nada contra o Estado nada fora do Estado Maurras considera ao contrário que a socie dade tanto espiritual como temporal é anterior lógica e historicamente ao Estado Se retomarmos a classificação dos tipos de Estado proposta em 1934 pelo jurista nazista Ernst Rudolf Huber veremos que Maurras se situa em última instância na categoria não fascista4 A Sociedade domina o Estado Estado dos partidos democracias Estado de um partido bolchevismo O Estado domina e forma a sociedade Estado absoluto Itália fascista Estado e Sociedade reunidos numa unidade nova Estado volklisch Alemanha nazista O nacionalismo integral se alimentava mais da fonte liberal afirman do que o Estado e a sociedade são coisas distintas A sociedade começa pela família sua primeira unidade Continua no município na associação profissional e confes sional na variedade infinita de grupos corporações companhias e comunida des na ausência dos quais toda vida humana desapareceria O Estado é apenas um órgão indispensável e primordial da sociedade O Estado qualquer que seja ele é o funcionário da sociedade Maurras Mes idées politiques 1937 p122 E Maurras irá encontrar acentos tocquevillianos para pregar uma monar quia descentralizada O corporativismo só aparentemente aproxima o na 4 Sobre essa tipologia ver JeanPierre Faye Langages totalitaires 1972 226 História das ideias políticas cionalismo francês do fascismo pois se trata de dois tipos diferentes de cor porativismo Natureza da corporação Extensão do corporativismo Criação Estruturas e poderes Designação dos dirigentes Corporativismo fascista Engrenagem política Conjunto da sociedade Obrigatória Decididos pelo Estado Homologados pelo Estado Corporativismo associacionista Instituição social Domínio profissional Facultativa Definidos pelos interesses Designados pelos interessados No sistema fascista as corporações são um instrumento em mãos do par tido único para permitir ao Estado estender seu controle sobre a sociedade subordinada A política estende sua dominação sobre todas as esferas da vida Para o nacionalismo integral tratase ao contrário de subtrair o domínio so cial das paixões e dos interesses da políticà Nesse sentido e mais uma vez é por se pretender reacionário que o nacionalismo francês impedese de ser fas cista A modernidade do estatismo levado às suas mais extremas consequên cias pelo fascismo ele opõe a nostalgia das corporações do Antigo Regime Dito isso e recordadas essas diferenças Maurras não teria interessado tanta gente se se limitasse a lamentar o desaparecimento das corporações profissionais ou a defender o retorno do duque de Orléans ao trono Se o dis curso nacionalista dessa direita se limitasse aos arcaísmos evocados acima não teria feito mais do que abalar o consenso sobre a democracia parlamen tar Mas ele carreava igualmente um delírio racista tanto mais aceitável na medida em que era acompanhado pelas abstrações mais moderadas sobre as virtudes do classicismo INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Barres M Les déracinés 1897 Scenes et doctrines du nationalisme 1925 Maurras C Enquête sur la monarchie 1900 Mes idées politiques 1937 Dictionnaire politi que et critique editado por Pierre Chardon Fayarcl 193235 5 vols Sternhell Z Maurice Barres et le nationalisme français Colin 1972 Weber E EAction Française Stock 1962 O EstadoForça 227 O racismo préfascista Era algo corrente no século XIX se ser racista e não ocultar demasiadamente o fato A esquerda teve seus antissemitas entre os quais várias figuras do so cialismo francês Fourier observou Os judeus se arrogam o título de povo de Deus e foram o verdadeiro povo do inferno Seu discípulo Alphonse de Toussenel publicou em 1845 Os judeus reis da época História da feudali dade financeira em 1848 participou na Comissão de Trabalho implantada por Louis Blanc Proudhon ia mais longe O judeu é o inimigo do gênero humano É preciso fazer com que essa raça volte para a Ásia ou teremos de exterminála E moderando sua posição diz Tole rar os anciãos que não geram mais Blanqui não está longe de partilhar esse ponto de vista O sufrágio uni versal é uma coisa já julgada É a entronização definitiva dos Rothschild o advento dos judeus Seu adjunto o comunardo Tridon publicou Sobre o molochismo judeu Bruxelas 1884 cujo programa exorta a raça indoariana a combater o espírito e as ideias semíticas Com Edouart Drumont o racismo passa para a direita O antissemi tismo deixa de ser um complemento primitivo mas secundário do antica pitalismo para se tornar seu sustentáculo A França judaica 1885 pretende demonstrar que os judeus introduziram o capitalismo na França por causa de sua qualidade racial O antissemitismo jamais foi uma questão religiosa foi sempre uma questão econômica e social Não nos deixemos enganar se o judeu é o inimigo social isso resulta de sua raça O semita é negociante por instinto tem a vocação para o tráfico a genialidade para tudo o que for troca para tudo o que for oportunidade de enganar seu semelhante O ariano é agricultor monge e sobretudo soldado a guerra é seu verdadeiro elemento ele corre alegremente para o perigo desafia a morte La France juive Flammarion 1885 p10 Essa dicotomia delirante dirigiase ao mesmo tempo às massas oprimi das pelo capitalismo e aos aristocratas expropriados pela burguesia A Ação Francesa não se enganou de modo algum As duas paixões plebiscitária e antissemita são certamente as únicas forças revolucionárias que o naciona 228 História das ideias políticas lismo pode opor atualmente ao parlamentarismo que nos entrega ao estran geiro Henri Vaugeois Os judeus não são somente responsáveis pelo capi talismo mas também pela Revolução Francesa Com efeito Maurras escreve sem rir que a Revolução procede na França de um esforço do Estran geiro e de seus prepostos com o objetivo de expulsar o indígenà Ela nos submete às dinastias judaicas e metecas O racismo maurrasiano pregava quatro grandes exclusões atacando os metecos ou seja os estrangeiros quaisquer que sejam mas sobretudo os que vêm do Leste desse Oriente que obcecava Maurras o Oriente obscuro apaixonado de influências dissolutas hostil à Razão contra os grandes bárbaros brancos surgidos em cerrado turbilhão da floresta das Ardenas os francomaçons malditos pelo antidemocratismo numa época em que a francomaçonaria era a armadura ideológica da República em que todo professor tendia a ser o padre racionalista da Igreja democrática os protestantes ainda que esses fossem mais liberais do que revolucionários e por vezes até conservadores no cenário político francês basta pensar em Guizot que morreu afirmando O sufrágio universal nunca mas que eram individualistas e adeptos de uma teologia que suprimia a Igreja a melhor para deixar cada cristão em sua subjetividade diante de Deus o pior os judeus que concentravam todas as taras metecos já que frequente mente recémimigrados alemães pois frequentemente provenientes dessa Alemanha odiada usurários e por isso responsáveis pelas dificuldades da aristocracia rural bolcheviques já que Marx Trotski Rosa Luxemburgo Zinoviev etc eram judeus Veremos as justificações apresentadas por esse racismo cf infra a bioi deologia do darwinismo social à sociobiologia O importante aqui é subli nhar que ele ia de mãos dadas com uma tentativa de recuperação do socia lismo que fará precisamente a originalidade do fascismo mussoliniano ou hitlerista A aliança dos sorelianos e dos maurrasianos franceses suscitou na Itá lia um entusiasmo que dificilmente se pode imaginar hoje Sternhell No início do século XX foi na França que se operaram ou foram tentadas as primeiras junções entre o movimento operário e o nacionalismo entre a ex trema direita e a extrema esquerda Maurras considera que um socialismo libertado do elemento democrático e cosmopolita pode casarse com o na cionalismo como uma luva benfeita com uma bela mão um socialismo an tidemocrático um socialismo nacional Georges Valois organizará então essa Partido Popular Francês 230 História das ideias políticas abertura operária da Ação Francesa Ele escreve A monarquia e a classe ope rária 1914 para justificar a recuperação corporativista do sindicalismo O movimento sindicalista substitui a poeira de indivíduos que quer encontrar acima dela o Estado republicano por agrupamentos profissionais sobre os quais se apoia a tradicional monarquia francesa Outros monarquistas so ciais como Firmin Bacconier elaboram os princípios do Estado corporativo que serão aplicados pelo fascismo italiano Em outras palavras se a França não conheceu regime fascista foi pro vavelmente por causa de suas estruturas mentais e sociais de seu desenvol vimento histórico próprio não foi certamente por não ter possuído inte lectuais fascistas nem por não ter conhecido doutrinários corporativistas nacionalistas e racistas Podese admitir que esse racismo constituiu um préfascismo No pe ríodo entre as duas guerras ele reaparecerá na maioria dos grupos fascistas ou de extrema direita franceses hoje esquecidos mas dos quais se pode re sumir a existência Com exceção de Doriot egresso do Partido Comunista todos esses mo vimentos sofreram em maior ou menor medida a influência do maurra sismo Numerosos de seus aderentes chegaram a colaborar com a Alema nha nazista apesar de seu nacionalismo apesar da germanofobia da Ação Francesa O antissemitismo levará o próprio Maurras a desejar a vitória do inimigo eterno pois se os angloamericanos ganhassem isso significaria o retorno dos francomaçons dos judeus e de todo o pessoal político elimi nado em 1940 IAction française 8 de maio de 1944 Na prática portanto o nacionalismo francês levou à aceitação do nazismo considerado como preferível às perversões da democracia parlamentar Na prática a ideologia racista difundida pela direita francesa sob a Terceira República tornou o na cionalsocialismo aceitável FASCISMOS NAZISMOS 1 NTERPRETAÇÕES Hitler vê o jovem judeu de cabelos negros espiar durante horas com o rosto iluminado por uma alegria satânica a jovem inconsciente do perigo que ele suja com seu sangue emasculando assim o povo de onde ela provém As sim como ele corrompe sistematicamente as mulheres e as moças não teme derrubar as barreiras que o sangue põe entre os outros povos Lendo essas linhas neuróticas em Mein Kampf o historiador das ideias tende a negligenciar a importância da ideologia nazista e a buscar em outro O EstadoForça 231 ponto a explicação de seu sucesso Uma oportunidade histórica prodigiosa deu uma força de penetração e uma celebridade extraordinária a uma obra intrinsecamente medíocre JJ Chevalier Como se a nulidade de uma ideo logia devesse levar à sua ineficácia A vantagem desse tipo de reação é que ela estimulou a pesquisa plural de explicação dos fascismos o inconveniente é que afastou a questão da ideologia O fascismo contudo não se reduz a um evento do qual seria preciso buscar as causas nem a um fenômeno do qual caberia revelar as manifestações é também uma ideologia Uma O fascismo italiano e o nazismo diferem de modo evidente e seria absurdo assimilar a doutrina de extermínio do segundo ao nacionalismo principalmente gro tesco inclusive em seu totalitarismo do primeiro Independentemente dessa oposição um e outro foram objeto de tentativas de explicação idênticas cujo inventário mesmo simplificado permite descobrir a diversidade das abor dagens de uma concepção política Sem pretender resumir todas as obras publicadas sobre o problema do fascismo podese a partir das sínteses historiográficas mais recentes5 de duzir cinco tipos de explicação que se aplicam prioritariamente ao nazismo frequentemente ao fascismo italiano por vezes aos outros fascismos da Eu ropa e inclusive a manifestações situadas em outros locais A explicação culturalista O procedimento consiste em buscar inicialmente a chave do fascismo nas especificidades nacionais dos países que o adotaram Esse tipo de interpre tação é aplicada à Itália mussoliniana dos primeiros anos tanto mais facil mente na medida em que a Alemanha ainda não era nazista Sob sua forma mais rudimentar a análise remete ao desvendamento de um mal nacional do qual o fascismo seria a manifestação paroxística O sucesso dos grupos fascistas italianos tornase assim a última explosão de um mal enraizado entre os italianos constituído pelo hábito da insubordinação pela ausência de sentimento cívico pela corrupção em suma por vícios nascidos de séculos de governo despóticd N Valeri A tese do mal italiano ou alemão ou espanhol não remonta forçosamente até a penumbra da psicologia dos povos Pode também explicálo pelas particularidades da história nacional 5 Cf Renzo de Feiice Comprendre le fascisme Paris Seghers 1975 e Pierre Ayçoberry La question nazie Les interprétations du nacionalsocialisme 192275 Paris Le Seuil 1979 232 História das ideias políticas com o risco de cair no ultradeterminismo histórico tudo o que o precedeu levou quase inevitavelmente ao fascismo O historiador americano Dennis Mack Smith vê assim na história da Itália entre 1861 e 1922 a continuidade de uma ditadura parlamentar italianà que apresentou somente diferenças de grau sob Cavour Depretis Crispi ou Giolitti Mussolini tornase o herdeiro legítimo deles Um enfoque análogo pondo o acento nas culturas políticas buscou a chave do nazismo no espírito alemão inclusive na alma germânica Uma fi liação é então estabelecida entre o luteranismo e o nacionalsocialismo A so ciologia empírica constata que o voto nazista foi maciço nas regiões protes tantes a história factual confirma que uma maioria dos membros da Igreja Protestante aceitou a depuração dos pastores não arianos o historiador das ideias explicará o todo pelos efeitos políticos da religiosidade luterana que reserva a liberdade à consciência individual e convida à submissão ao poder exterior qualquer que seja ele Supõese que o próprio misticismo protes tante tenha favorecido a submissão ardente dos alemães à mística profanà que foi o nazismo O prussianismo é igualmente invocado na medida em que teria engendrado a uniformização a submissão irrefletida em face das autoridades todos os tipos de pulsões e de paixões malsãs Meinecke Bismarck prepara Hitler ao inculcar o culto da razão de Estado A versão mais explosiva dessa tese foi elaborada pelo germanista fran cês Edmond Vermeil segundo o qual toda a história alemã é dominada pelo romantismo organizado Antes da chegada de Hitler ao poder romantismo e organização enfrentaramse incessantemente e na verdade existem duas Alemanhas a do Nordeste racional uniformizada sob o jugo dos fidalgos e portanto prussiana e a do Sudeste particularista fragmentada povoada por pequenos camponeses romântica O nazismo teria germinado a partir desse dualismo fundamental que ele integra em sua dinâmica e sua agres sividade tende a resolver a dilaceração criada ao longo da história alemã Tratase de um militarismo radical que induz a Alemanha à exaltação ab surda de suas taras mais inveteradas Vermeil A explicação alemã conhece variantes mais grosseiras apesar das aparências O sociólogo americano Tal cott Parsons assim irá explicar o sucesso hitleriano pela crise do sistema de valores tipicamente alemão que resultaria de sete características germânicas um persistente feudalismo uma poderosa burocracia um estilo de governo luterano a dominação dos lobbies sobre os partidos uma indústria burocra tizada uma inclinação particular pelos títulos honoríficos e finalmente re O EstadoForça 233 lações familiares muito formais compensadas por amizades viris A Alema nha traumatizada pela derrota de 1918 e pelas crises que se seguiram teria ingressado num estado de anomia de ruptura do sistema de valores de onde surgiu então o nazismo Levado ao limite esse tipo de problemática chega a explicar o comportamento dos oficiais SS como o fez um psiquiatra fran cês no Processo de Nuremberg ele não descobria nos SS nenhum sintoma de doença mental mas um temperamento profundamente mau devido ao choque da civilização clássica e cristã com uma forma particularmente te mível e aguda de germanismo A interpretação do nazismo então passa a ser claramente dominada pelas exigências da luta contra a Alemanha INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Meinecke F Die deutsche Katastrophe Wiesbaden 1946 Vermeil E IAllemagne essai dexplication Paris 1945 A explicação pelo totalitário À guerra mundial cedo sucedeu a guerra fria Mudam as necessidades e aparece a explicação totalitária Nos antípodas das análises precedentes o nazismo não é mais relacionado às profundezas da alma alemã mas confun dido com as ditaduras de massa dos tempos modernos quer sejam negras ou vermelhas fascistas ou comunistas Portanto a denúncia do totalitarismo supõe pelo menos implicitamente que um só sistema político deve ser reco nhecido como legítimo a democracia pluralista ocidental Compreendese por que os precursores da explicação pelo totalitário situavamse na direita antifascista Hermann Rauschning antigo governador nazista de Danzig hoje Gdansk é também um dos primeiros a enxergar por trás da cruz gamada a bolchevização o socialismo de Estado o Império militar e totalitário As sim como certos homens de direita aceitaram o nazismo porque o avaliaram num primeiro momento como um anticomunismo outros conservadores o rejeitam por ver nele antes de mais nada um criptocomunismo No furor dos anos 1930 ainda é a Revolução de Outubro que determina as reações diante de Hitler A década que se seguiu deu a palavra aos politólogos os quais constroem modelos mais abstratos aparentemente mais neutros Hans 234 História das ideias políticas Kohn dera o tom ao ser o primeiro a sistematizar os pontos comuns e as di ferenças entre comunismo e nazismo Seu modelo ditatorial pode ser assim resumido Identidade social chefes apoio Identidade ideológica Diferenças no tipo de ditadura Comunismo Nazismo Egressos das classes inferiores Grupos sociais opostos às classes dirigentes Luta contra todas as religiões Pretensão à verdade absoluta Vontade de ser a juventude do mundo Ditadura racional inter nacionalista provisória em nome da liberdade Ditadura carismática nacionalista permanente em nome da nação A medida que a tese do totalitarismo toma corpo as diferenças entre sovietismo e hitlerismo são cada vez mais minimizadas ou mesmo intei ramente silenciadas Suas condições de emergência são apresentadas como idênticas centralismo estatal ascensão das massas crises da religião e da democracia derrotas militares tudo isso se conjuga para deixar o campo aberto à ditadura Seus resultados se confundem monopolização da dire ção de todas as atividades humanas públicas ou privadas pelo partido e seu chefe apoio nas classes médias inferiores para fundir todas as classes cria ção de uma Igreja missionária inteiramente voltada para seu novo Deus o do sangue e do solo ou o do materialismo Hannah Arendt que foi quem melhor aprofundou a noção de totalita rismo concebeo em última instância como uma lógica da demência Pouco importam a tradição nacional ou a fonte particular de sua ideologia o regime totalitário transforma sempre as classes em massas substitui o sistema de partidos não por ditaduras de partido único mas por um movimento de massa desloca o centro do poder do exército para a polícia e instaura uma polí tica exterior que visa abertamente à dominação do mundo A demência o não senso ou o supersenso supersense resulta do fato de que a racionalidade não explica as opções totalitárias Quando Heydrich escreveu a Hitler para lhe pedir que adiasse o extermínio dos judeus tche cos porque ele precisava de mão de obra e quando propôs que eles fossem O EstadoForça 235 transformados em carne para salsichas mas somente dentro de um ou dois anos recebeu uma resposta negativa Quando quadros nazistas justificaram a eutanásia para eliminar bocas inúteis foram chamados à ordem a elimina ção dos deficientes físicos ou mentais justificase apenas por considerações éticas O terror totalitário não busca tanto conquistar o mundo por motivos de potência mas antes para provar a legitimidade de seu movimento para tornar o mundo coerente ou seja conforme à concepção que dele têm os totalitários Outro modo de dizer a mesma coisa esses dementes são recrutados en tre os marginais O sociólogo americano Daniel Lerner estudou a origem so cial dos quadros nazistas a partir do Anuário do Terceiro Reich e construiu um índice de marginalidade pelo acúmulo de várias variáveis instabilidade profissional casamento em idade anormal precoce ou tardia juventude fracassos escolares e universitários nascimento numa região de fronteira etc Aplicando esse índice às diferentes categorias de responsáveis nazistas encarregados da administração da propaganda ou da repressão descobriu que todos os grupos possuíam um índice de marginalidade superior a 75 Os animadores do totalitarismo eram recrutados na nova classe média fun cionários profissionais liberais gerentes e mais especificamente entre os marginais desses grupos intermediários Alguns anos mais tarde D Lerner aplicou o mesmo método aos partidos comunistas russo e chinês Obteve re sultados análogos com o que se demonstra que a elite totalitária é marginal tem a mesma composição tanto entre os vermelhos como entre os negros cf Daniel Lerner The Nazi Elite Stanford 1951 The coercitive ideologists in perspective in World revolutionary elites 1965 Último modo de chegar à mesma conclusão fascismo e comunismo decorrem de um único sistema o sistema totalitário Carl J Friedrich o ca racteriza segundo um modelo de cinco faces o que se poderia chamar uma sociedade pentagonal ou melhor uma destruição pentagonal da sociedade Pela primeira vez na história um regime político acumula cinco monopó lios e controla sozinho a ideologia o Estado a política o Exército e os mass media Os três últimos monopólios tornaramse possíveis graças ao desen volvimento técnico os dois primeiros aos progressos educacionais os quais segundo Friedrich aumentam as necessidades de certeza e portanto a pre disposição à submissão As sociedades totalitárias levam ao limite máximo as taras das sociedades técnicas do mundo contemporâneo das quais se dis tinguem apenas pela unificação dos instrumentos que nos regimes demo cráticos conservamse separados Monopólio ideológico milenarismo oficial Monopólio dos media controle dos meios de comunicação Monopólio político partido único Direção centralizada da sociedade pelo Estado História das ideias políticas Monopólio policial controle terrorista da população Monopólio militar controle dos meios de combate A acumulação desses monopólios por uma só força leva ao quase de saparecimento da sociedade civil e a uma supressão do homem privado O conteúdo social dos regimes decerto pode variar a finalidade que eles atri buem às suas ideologias pode ser oposta mas seus métodos são tão idênticos que é possível caracterizálos através dessa maneira totalitária de agir Não se trata apenas de uma aproximação formal de violações da democracia já que os totalitarismos diferem dos despotismos tradicionais e organizam ditadu ras de massa de tipo inteiramente inédito Ao pentágono de Friedrich 6 poderia corresponder o triângulo de Carl W Deutsch 7 O totalitarismo tende a funcionar segundo três fases 2 Unidade de comando 1 Mobilização total 3 Eficiência da execução 6 Carl J Friedrich Totalitarianism 1954 Dictature totalitaire 1956 7 Carl W Deutsch in ibid Cracks in the Monolith and pattern of desintegration in totalita rian systems O EstadoForça 237 Mas cada uma dessas fases põe problemas a primeira exige a destruição permanente sob pena de esclerose a segunda sobrecarrega o chefe a última oscila entre o terror e a persuasão O totalitarismo cria assim suas próprias divisões e as condições de sua desintegração Conclusão otimista à qual se opõe o esquema bipolar de Zbigniew Brzezinski racionalidade e objetivo revolucionário constituem os dois polos do totalitarismo decerto eles estão em estado de tensão quase permanente mas tecnocratas preocupados com a conservação e fanáticos da uniformização permanecem solidários É em conjunto que eles fazem com que o sistema funcione e seria absurdo supor uma liberalização desse sistema somente por causa da ascensão dos tecno cratas O assessor do presidente Carter irá se recordar do que escrevera 20 anos antes quando não era mais do que um politólogo 8 Curiosamente foram historiadores da Alemanha Ocidental que puse ram em questão algumas simplificações da teoria do totalitarismo subli nhando as oposições entre comunismo e nazismo Nazismo Comunismo Sociedade industrial agrária Classe dominante defesa do capital destruição do capital Ideologia racismomanipulação socialismoprodução Classe dirigente fechada elite ampliação progressiva Terror militar selecionador policial inquisitorial exterminador confissão Resultado pura destruição construção de uma sociedade INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Arendt H Le systeme totalitaire Le Seuil 1972 terceira parte de The origins of Totalita rism Nova York 1951 col Politique Besançon A Présent soviétique et passé russe Le Livre de Poche 1980 Kohn H Dictatorship in the Modern World Minneapolis 1935 Rauschning H La révolution du nihilisme 1937 reed Gallimard 1980 8 Z Brzezinski Totalitarism and rationality American political science review 1956 O ex purgo permanente 1956 A explicação econômica Bettelheim Guérin Poulantzas Nos antípodos das confusões institucionais ou das assimil ações segundo os procedimentos o economicismo opõe radicalmente o fascismo à revolução socialista até colocar essa oposição antes de qualquer outra coisa o fascismo do qual o nazismo é apenas uma variante constitui a contrarrevolução do século XX o tipo contrarrevolucionário novo que corresponde à nova fase do capitalismo o imperialismo monopolista Os marxistas desse modo deslo cam a análise para um terreno mais favorável que apresenta a imensa vant agem de eludir os pontos comuns entre os Gulags e a peste marrom e de sublinhar ao contrário a incontrolável diferença entre eles ou melhor seu antagonismo Last but not least privilegiar o econômico permite denunciar ao mesmo tempo as cumplicidades do capital no advento do fascismo e uma das mais sensíveis debilidades da tese totalitária como confundir a estatização soviética e a manutenção da propriedade privada dos meios de produção na Alemanha na Itália ou na península Ibérica O núcleo invari ante das análises marxistas do fascismo relacionao à crise estrutural do capitalismo desenvolvido a ditadura fascista corresponde a uma solução para o capital ameaçado Essa problemática sublinha corre tamente o parentesco democapitalismo dos fascistas Ainda está grávido o ventre de onde saiu a besta imunda Bertolt Brecht Se o Gulag provém do socialismo o mussolinismo o salazarismo o hitlerismo e o franquismo provêm certamente do capitalismo Mas o risco é que a simples recordação dessa verdade deva a uma denúncia bastante simplista do fascismoagentedograndecapital Na origem desses esquemas o simplismo desemboca no absurdo Foi o caso da teoria do socialfascismo formulada pela Terceira Internacional por ocasião da conquista do poder por Mussolini e logo estendida à Alemanha Com esse vocábulo Stá lin transpos grossiramente a teoria leninista do so cialimperialismo que explicava a traição nacionalista dos socialdemocra tas quando a Primeira Guerra Mundial através da formação de uma nova coalizão entre a burguesia monopolista e a aristocracia operária O socialfascismo prolonga o socialchauvinismo e leva à ideia de que há fascismo por toda parte ou seja que todas as forças políticas com exceção dos co munistas estão contaminadas pelo vírus fascista Molotov Malinski e Stá lin condenam assim a busca de alianças entre socialistas e a fortiori com essa ou aquela tendência burguesa Todo mundo é fascista Brüning diret o do Centro Católico chancelar alemão em 193032 é fascista von Papen suces O EstadoForça 239 sor de Brüning assumiu a liderança de um golpe de Estado fascista final mente a socialdemocracia é objetivamente a ala moderada do fascismo Stálin Esse esquerdismo teórico e prático ia de mãos dadas com uma interpre tação ultraotimista das potencialidades revolucionárias do período Os co munistas podiam se permitir lançar todo o mundo no mesmo saco fascista já que a revolução estava na ordem do dia Dois meses depois da subida de Adolf Hitler ao poder a cúpula da Internacional Comunista afirma ainda sem temor A instituição da ditadura fascista aberta que destrói as ilusões democráticas das massas e as liberta da influência socialdemocrata acelera a marcha da Alemanha para a revolução proletária Como a sequência da história entrou em choque frontal com a inani dade dessa expectativa a tese da ultrarreação substituiu a do socialfascismo O fascismo é a ditadura aberta e terrorista dos elementos mais reacionários mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro G Dimítrov VII Congresso do Komintern i935 Inversão total ditadura abertà e por tanto as democracias burguesas não são fascistas dos elementos mais nem todo mundo é mais fascista do capital financeiro ou seja existe um capital não fascista uma burguesia democrática novas alianças podem ser concebidas entrase assim na era das Frentes Populares Decerto a nova definição aparece tão abertamente política quanto a velha definição por ela afastada Assim a referência ao capital financeiro característico da fase im perialista do capitalismo e portanto de sua fase última ou seja a mais moderna no desenvolvimento histórico não deixa por isso de ser qualificada como ultrarreacionária Mas o que importam essas incoerências Ninguém pediria à Terceira Internacional que adotasse um ponto de vista científico não seriam os seus dirigentes que iriam ter essa pretensão Os outros adeptos do materialismo científico professores universitários eou políticos sem abandonar a correlação entre fascismo e crise do capi talismo desenvolvido irão pôr o acento em diferentes graus na autono mia relativa do fenômeno fascista Dois clássicos se destacam nessa matéria Charles Bettelheim que estudou A economia alemã sob o nazismo e Daniel Guérin que publicou Fascismo e grande capital Para a economia marxista o nazismo corresponde às necessidades da infraestrutura a insuficiência do mercado interno torna indispensável a obtenção de novos escoadouros inicialmente através do rearmamento depois pela conquista militar de mer cados externos Quanto ao materialista libertário que é Daniel Guérin ele considera que num primeiro momento o fascismo era o instrumento da indústria pesada contra a indústria leve embora essa distinção desapareça 240 História das ideias políticas com a crise e a conquista do poder pelas forças fascistas A burguesia re corre à solução fascista para se proteger menos contra as perturbações de rua do que contra as perturbações de seu próprio sistema econômico No essencial portanto os fascistas aparecem como os agentes do grande capital e sua autonomia parece das mais limitadas Contudo Guérin considera que a independência do exército italiano ou alemão prova que a burguesia sabe se manter autônoma em relação aos regimes fascistas chegando mesmo quando as circunstâncias o exigem a se opor a ele prisão de Mussolini em 25 de julho de 1943 atentado contra Hitler em 24 de julho de 1944 Quando os marxistas querem ir adiante no reconhecimento da especi ficidade do fascismo podem recorrer ao esquema bonapartista Esboçado por Marx em O 18 Brumário de Luís Bonaparte a explicação afirma que em situação de crise a burguesia pode ser levada a abandonar o poder político para melhor conservar seu poder social ameaçado Transposto para o caso fascista o bonapartismo significa então que o fascismo corresponde a uma expropriação política da burguesia mas em seu próprio interesse Assim apresentando a teoria do fascismo em Trotski Ernest Mandel explica como o fascismo constitui ao mesmo tempo uma realização e uma negação das tendências do capital monopolista A essa primeira especificidade de resto acrescentase uma evidência por muito tempo negada pelos comunistas or todoxos mas sublinhada por Trotski a saber que o fascismo se apoia num movimento de massas da pequena burguesia o que o diferencia de outros ti pos de Estado policial Nicos Poulantzas insiste também na originalidade do regime fascista cujo aparecimento resulta de uma crise de representação ou seja de uma crise do sistema político na qual os partidos e a ideologia tra dicionais não conseguem mais garantir a hegemonia burguesa O fascismo se apresenta então como o mediador indispensável para restabelecer essa hegemonia o que ele faz mediante a criação de um partido de massa a con servação de uma dualidade entre partido e Estado e o recurso privilegiado à família e à propaganda para perpetuar a dominação último eco da explicação econômica a busca da inteligibilidade do na zismo pode renunciar a toda causalidade infraestrutura e deixar de lado o grande capital mas descobrir os traços industriais da ideologia nazista Nesse sentido Joseph Billig chama a atenção para a organização industrial dos campos de concentração nos quais ele vê um modelo caricatural de ca pitalismo de Estado A verdade nazista então seria encontrada menos em Hitler fanático mas conservador do que na exaltação da ciência e da técnica de um Rosenberg o homem luciferiano germanonórdico traz consigo uma visão industrial da história O EstadoForça 241 INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Bettelheim C Eéconomie allemande sous le nazisme Riviere 2 vols 1946 reed Mas pero 1971 Billig J Lhitlérisme et le systeme concentrationnaire PUF 1967 Guérin D Fascisme et grand capital Gallimard 1936 2 ed 1945 reed Maspero 1965 Mandel E Préface a Leon Trotski Comment vaincre le fascisme BuchetChastel 1973 Poulantzas N Fascisme et dictature Maspero 1970 Le Seuil 1973 A explicação psíquica Reich Horkheimer Fromm Do sistema fascista passase assim ao homem fascista do economicismo ao psiquismo Para compreender uma realidade tão demencial como o Holo causto é tentador referila à demência de seus atores A elucidação do misté rio pode então ser buscada ou na psicobiografia dos dirigentes ou na psicos sociologia das massas arrebatadas pela aventura AdolfHitler prestase muito bem a uma psicanálise do chefe esse frus trado extraordinariamente preguiçoso pensionista vitalício de um refúgio para ociosos artista demitido essa caricatura do incapaz incapaz de montar a cavalo incapaz de dirigir incapaz de procriar Thomas Mann esse protó tipo de neurótico o que fez senão aliviar suas neuroses senão vingar a moça emporcalhada numa rua de Viena Todavia resta explicar por que ele conseguiu chegar aonde chegou Dir seá que se beneficiou de uma situação excepcional na qual suas neuroses pessoais correspondiam às predisposições psicológicas dos alemães Os jo vens alemães dos anos 1930 haviam conhecido em sua infância o trauma tismo de 191418 difícil de ser imaginado por quem não o viveu Tinham enfrentado ao mesmo tempo a fome e a derrota dos pais A grande crise de 1929 operou como uma perturbação externa de tal violência que desenca deou segundo um processo já assinalado por Freud um retorno ao trauma tismo da infância A juventude alemã reconduzida às suas angústias infan tis oferecia assim a Hitler uma oportunidade única de projetar nas massas alemãs os conflitos inconscientes que havia constituído sua própria infâncià Robert Waite 1he Psychopatic God Adolf Hitler Nova York 1977 Quanto a Mussolini ele escapa mais facilmente à psicobiografia na me dida em que ninguém lhe atribuiu a condição de sifilítico ou suspeitou que fosse impotente Os estudos que não vão além das perturbações da persona 242 História das ideias políticas lidade do chefe parecem assim um pouco limitados e a explicação psíquica apoiase melhor na análise dos comportamentos coletivos Antes de recorrer à psicologia das massas alguns historiadores interpre taram o fascismo italiano como uma doença moral É o caso de Benedetto Croce para quem esse fascismo foi um obscurecimento da consciência uma crise de depressão cívica e uma embriaguez produtos da guerrà Mas foi mérito de Wilhelm Reich ter explicado o fascismo através da psicologia das massas sexualmente frustradas Não existe um só homem vivo que não traga em sua estrutura de caráter os elemen tos da sensibilidade e do pensamento fascistas O fascismo se distingue de todos os outros partidos reacionários pelo fato de ser aceito e preconizado pelas massas W Reich prefácio à 31 edição de Psicologia de massas do fascismo 1946 O fascismo soube responder à angústia das massas dilaceradas entre seu desejo de liberdade e seu medo da liberdade Ele representa a segunda camada caracterial a dos impulsos secundários crueldade sadismo etc é a atitude emocional fundamental do homem oprimido pela civilização ma quinista autoritárià seu racismo é uma forma de repressão e de angústia sexuais que emanam elas mesmas da sociedade patriarcal e autoritárià Essa pista iria ser explorada por filósofos e sociólogos alemães da cha mada Escola de Frankfurt Max Horkheimer foi o primeiro a aplicar a teoria critica e a psicanálise às mediações que ligam os interesses de uma classe a infraestrutura à sua cultura a superestrutura Ele aprofundou a hipótese de Reich segundo a qual o pai de família está no coração dessas mediações Tendo perdido sua autonomia econômica na passagem do capitalismo liberal para o capitalismo monopolista o pai de família desfruta apenas um prestí gio irracional e frágil Reich mostrara que o pequenoburguês socialmente reprimido por seu superior hierárquico reprimia por sua vez sexualmente seus filhos Horkheimer acrescenta que a aura do pai foi transferida para o Estado Erich Fromm pôde então avaliar a personalidade autoritária do homem subjugado A aspiração ao poder não é produto da força mas o filho abas tardado da fraqueza Para demonstrar isso Fromm não se contenta em afirmar que o fascismo teve êxito por permitir que as massas satisfizessem seus impulsos sadomasoquistas através da identificação com os poderes do minantes Ele sugere não sem razão que o problema fundamental de todo indivíduo reside no aparentamento na busca de uma identidade social na necessidade de pertencer a uma comunidade O aparentamento se opera em face da família e em face da sociedade mas o capitalismo tende a destruir esses laços de identidade As relações sociais perderam seu caráter direto e humano Em todas as relações sociais e pessoais as leis do mercado são a regra O homem moderno sofre a despersonalização O indivíduo vende a si mesmo e sente que é uma mercadoria No mundo moderno as ligações fa miliares que outrora proporcionavam segurança afrouxaramse e as condi ções econômicas por seu turno impedem o seu florescimento Confrontado com essa despersonalização o indivíduo põe em ação mecanismos de evasão para tentar escapar a sua instabilidade e à sua solidão Busca fugir de sua liberdade tornada um fardo intolerável tratase de uma fuga no confor tismo dos automátos na destrutividade na eliminação do outro e no au toritarismo com seu duplo aspecto masoquista dissolverse num conjunto e sádico agir segundo as regras desse conjunto Essa fuga da liberdade não se processa de modo indiferenciado em todas as classes sociais A classe mé dia entregase a ela com maior intensidade na medida em que sua frustração social é mais viva ela combina a nostalgia da submissão e a sede de poder A perseguição ao homossexual ao marginal ao judeu ao outro e a guerra colonial ou mundial satisfazem seus impulsos sádicos A personalidade au toritária reencontra segurança e identidade no fascismo Esquematicamente o processo pode ser assim resumido Destruição da autoridade paterna FUGA À LIBERDADE FUGA À LIBERDADE INDIVÍDUO FASCISTA SUBMISSÃO AO ESTADO Sociedade Derrota Crise econômica Racismo Guerra 244 História das ideias políticas INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Fromm E Escape from freedom 1941 ed brasileira O medo à liberdade Zahar Editores Rio de Janeiro 121 ed 1980 Reich W Psicologia de massas do fascismo 1933 trad francesa 1972 As explicações sociológicas Lipset Moore A sociologia confirma a banalidade do fascismo S Lipset falará assim de um extremismo do centro para caracterizar o nacionalsocialismo Nos antípodas dos estudos que insistem na marginalidade Lipset conclui suas análises de so ciologia eleitoral indicando que os nazistas obtiveram seus principais sucessos nos meios estáveis mais nas pequenas cidades do que nas grandes mais no campo do que nas metrópoles ganhando eleitores centristas mais do que elei tores de direita Portanto não haveria um fascismo mas três extremismos o extremismo de direita da classe superior nos países de economia atrasada exs Horthy Dolfuss Salazar o extremismo de centro da classe média nos luga res onde o capitalismo e o movimento operário são desenvolvidos ex Hitler o extremismo de esquerda da classe operária nos países em processo de industrialização rápida ex Perón Sem entrar nos detalhes das análises sociológicas do fascismo gostaría mos de mencionar a tentativa de síntese que reconhece nele uma das vias para a modernização O totalitarismo hitleriano ou mussoliniano seria um dos caminhos para a modernização do mesmo modo como as ditaduras do Terceiro Mundo que hoje parecem se inspirar neles em maior ou menor medida A ideia originária exposta em 1965 por F Kenneth Oranski esta belece relações entre as diferentes etapas do desenvolvimento econômico e a evolução das estruturas políticas Esquematicamente distinguemse quatro fases na história da Europa desde o século XVI Desenvolvimento econômico i Unificação primitiva 2 Industrialização 3 Prosperidade nacional 4 Abundância Desenvolvimento político Unidade nacional e centralização Nova classe dirigente Participação das massas democracia Revolução da automação O EstadoForça 245 A primeira e a última fase do desenvolvimento não contam para o fas cismo que só é suscetível de intervir na segunda e na terceira Ainda nesse último caso não se trata de fascismo propriamente dito já que segundo Organski o fascismo é apenas uma das variedades da política de indus trialização Hitler era um ditador autoritário um nacionalista um agres sor e um louco mas não era um fascista já que a Alemanha era plenamente industrializada quando ele subiu ao poder O sistema nazista não era uma forma da política de industrialização mas uma variante da política de prosperidade Quanto ao segundo estágio três formas de poder podem lhe corresponder conforme a intensidade da acumulação de capital e o ritmo imprimido à industrialização L rápida stalinismo INDUSTRIALIZAÇÃO progressiva democracia burguesa lenta fascismo O fascismo representa um compromisso típico entre duas elites com vocação de poder a coexistência entre uma elite agrícola tradicional forte mas em declínio e uma elite industrial ascendente mas ainda débil uma aliança entre a antiga e a futura classe dominante com o objetivo de impe dir uma afirmação muito rápida das massas a última vitória da aristocracia rural que consegue efetivamente exonerar a elite agrária do pagamento dos custos econômicos e sociais da industrialização A categoria fascista encontrase assim consideravelmente ampliada co bre todas as espécies de ditaduras de desenvolvimento e Organski por sua vez a inclui na categoria mais ampla de regimes sincráticos Barrington Moore Jr prolonga esse afresco sóciohistórico observando que as dita duras fascistas se implantaram nos países de burguesia débil e portanto aliada às classes dirigentes retardados em sua industrialização a qual foi imposta por uma revolução pelo alto deixando subsistir a estrutura social tradicional Disso resulta todo paradoxo do fascismo uma modernização conservadora tradução de um atraso histórico e da tentativa de superálo recurso aos arcaísmos e às nostalgias préindustriais mas para realizar a modernização forçada movimento dos que perdem com a industrialização mas graças ao qual os que vão ganhar podem por fim obter sua vitória anor malmente adiada História das ideias políticas I N D I CAÇÕ ES B I B LI O G RÁFI CAS Moore Jr B Social Origins of Dictatorship and Democracy Lord and Peasant in the making of the modern world Boston 1966 Les origines sociales de la dictature et de la démocratie Maspero 1969 Organski FK The Stages of Political Development 1965 A B I O I D EO LOG IA DO DARWI N ISMO SOCIAL À SOCI O B I O LOGIA Para justificar a dominação de um pequeno grupo de homens sobre a mul tidão a atribuição de privilégios a uma ordem em detrimento das outras o exercício do poder político por governantes aos quais os governados se sub metem a detenção dos meios de produção por uns poucos para os quais o grosso da população trabalha para justificar tudo isso é tentador encontrar fundamentos científicos a partir dos quais se afirma que essas hierarquias se riam inelutáveis e que a vontade de suprimilas seria utópica No Antigo Re gime os germanistas já defendiam a superioridade dos nobres invocando as origens germânicas da nobreza franca Os nobres se consideravam superio res por causa da pureza de sua linhagem da especificidade de sua raça Em 1789 Sieyes convocava o Terceiro Estado a se sublevar contra esse racismo Por que não mandar de volta para as florestas da Francônia todas essas fa mílias que conservam a louca pretensão de provirem da raça dos conquista dores A raça dos Conquistadores a raça dos Senhores é sempre a mesma coisa há uma certa continuidade de resto entre Boulainvilliers Augustin Thierry Taine Gobineau Chamberlain e Hitler E é nesse sentido que um Maurras podia aparecer ao mesmo tempo como o último dos reacionários e o primeiro dos totalitários como o elo que liga o velho preconceito racial da aristocracia francesa ao antissemitismo moderno com a única reserva de que lhe faltava o germanismo O darwinismo social Darwin Taine Le Bon No final do século XIX a busca de uma justificação científica da dominação tenta recorrer às descobertas da biologia e defende um darwinismo social A hereditariedade é invocada contra a igualdade a biologia é usada para defen der a raça O EstadoForça 247 Em 1859 Darwin publicou Da origem das espécies por meio da seleção natural Ele revolucionou a biologia O homem é o codescendente de al guma forma antiga inferior e extintà de uma mesma fonte primata da qual veio o macaco E sobretudo o desenvolvimento biológico é governado pela lei da seleção natural a saber A persistência do mais apto à conservação das diferenças e variações individuais favoráveis e à eliminação das variações prejudiciais Dessa seleção do mais apto a direita nacionalista deduz que a igualdade é um absurdo Uma sociedade pode tender à igualdade mas na biologia a igualdade só existe no cemitério Quanto mais o ser vive e se aperfeiçoa tanto mais a divisão do trabalho implica a desigualdade das funções a qual leva a uma diferenciação dos órgãos e à sua desigualdade A igualdade pode estar no degrau mais baixo da escala no início da vida ela é destruída pelos progressos da própria vida O progresso é aristocrático É impossível que as leis da sociedade e a política é uma ciência positiva não sejam da mesma ordem que as leis da vida e não concordem em lançar todo sistema de democracia nas causalidades do mal e da morte Charles Maurras Mes idées politiques cap De la biologie à la politique O darwinismo social contudo irá mais longe que o simples desigualita rismo Ele postula o determinismo racial Em 1863 Taine considera que na origem e no mais profundo da região das causas aparece a raça Histoire de la littérature anglaise 1863 tIII p616 As capacidades dos homens são uma função de suas raças Há naturalmente variedades de homens assim como há variedades de touros e de cavalos Dois grandes tipos se opõem um su perior e outro inferior Nas raças arianas o espírito inteiro é tomado pelo belo e pelo sublime e concebe um modelo ideal capaz por sua nobreza e sua harmonia de conquis tar para si a ternura e o entusiasmo do gênero humano Nas raças semíticas falta a metafísica O espírito é muito tenso e inteiro o homem se reduz ao entusiasmo lírico à paixão irrefreável à ação fanática e limitada ibid tI pXIX O peso da biologia é reforçado pelo da psicologia A emergência da no ção de inconsciente é utilizada para confirmar a predestinação dos povos O dr Gustave Le Bon triunfa na psicologia dos povos A ciência propõese aqui a combater o racionalismo da filosofia das Luzes já que essa chamada liber dade do homem não é mais do que ignorância das causas que o subjugam à engrenagem das necessidades que os dirigem a condição natural de todos História das ideias políticas os seres é estarem subjugados Les lois psychologiques de lévolution des peu ples 1895 p 170 Os mortos dominam os vivos e forjam os povos A cadeia das determi nações pode ser assim resumida MORTOS RAÇA INCONSCIENTE ALMA DOS VIVOS DOS POVOS Na época moderna mais do que nunca um povo é um organismo criado pelo passado pois a era das multidões é a dos primitivos A multidão é conduzida quase exclusivamente pelo inconsciente Seus atos estão muito mais sob a influência da medula espinhal do que sob a do cérebro Ela se aproxima nisso dos seres inteiramente primitivos ibid p43 Última componente desse cientificismo racial é a antropossociologia de Vacher de Lapouge Tal como seu amigo alemão Ludwig Woltmann ele pro mete uma síntese entre marxismo e darwinismo entre determinismo his tórico e determinismo biológico entre a luta de classes e a luta de raças O caráter fatal da evolução social desmente o ideal democrático is ficções de Justiça Igualdade Fraternidade a política científica prefere a realidade das Forças das Leis das Raças da Evolução Infelizes os povos que perdem tempo com seus sonhos Laryen et son rôle social 1899 pIX O homem livre não existe A psicologia da raça domina a do indivíduo Essa é a noção fundamental do monismo darwiniano e a contrapartida do sonho da alma virgem forjado pelos filósofos O indivíduo é esmagado por sua raça ele não é nada A raça a nação são tudo O biohistoricismo Paralelamente às referências de Darwin um outro racismo encontra seus ar gumentos no biohistoricismo Uma raça se vê atribuir uma missão histórica superior O economista alemão Friedrich List 17891846 explica assim que a raça germânica foi designada pela Providência por causa de sua natu O EstadoForça 249 reza e de seu próprio caráter para resolver este grande problema dirigir as questões do mundo inteiro civilizar os países selvagens e bárbaros e povoar os ainda desabitados Arthur de Gobineau 181682 efetua uma sombria meditação sobre o declínio da humanidade ligado ao fato de que a espécie branca desapareceu presentemente da face do mundo Essai sur linégalité des races humaines 1853 O percentual de civilização é proporcional ao percentual de sangue ariano na população em questão Ora a parte desse sangue que é o único sustento do edifício de nossa sociedade se encaminha para os termos extre mos de sua absorção Hitler retoma o tema em Mein Kampf afirmando que os judeus querem destruir pelo abastardamento que resulta da mestiçagem essa raça branca que eles odeiam querem destronála do alto nível de civilização e de orga nização política ao qual ela se elevou e tornaremse seus senhores O judeu tornase pior do que inferior é a negatividade absoluta um Outro diabó lico Os eslavos ou os negros são subhomens dos quais os Senhores devem dispor a seu belprazer os judeus devem ser exterminados já que são res ponsáveis pela derrota de 1918 pelo liberalismo plutocrático pelo marxismo pela corrupção mundial em suma pela Decadência do Ocidente Nessa obra publicada entre 1915 e 1920 Oswald Spengler defendia uma visão biológica da história ls culturas são organismos A história universal é sua biologia geral Nascimento infância juventude maturidade e velhice se sucedem nas civilizações e a decadência se caracteriza pela mistura das culturas e das al mas já que cada cultura possui sua alma a cultura antiga a alma apolínea a árabe a alma mágica e a ocidental a alma faustiana Falando propriamente não há racismo em Spengler mas a combinação de seu biohistoricismo com o darwinismo social será a realização do mestre ideológico do nazismo Alfred Rosenberg Ele explica em O mito do século XX 1930 que a história é animada pelo conflito entre a raça ariana e a raça semítica a qual contaminou o cristianismo judaicizado por são Paulo e são Mateus o liberalismo e o marxismo A Reforma corresponde à revolta dos germanos contra a tirania judaicoromana Os franceses não compreenderam isso e a França se abastardou ao expulsar os huguenotes Seu tipo racial se modificou até se tomar braquicéfalo com o crânio achatado e arredondado A exploração das ciências humanas a serviço do EstadoForça culmina com o recurso à geografia Friedrich Ratzel o fundador da geopolítica parte igualmente de uma concepção biológica do Estado para dela deduzir que cada povo tem o direito de explorar os territórios que correspondam a seu espaço vital A geografia física tornase ciência da conquista O general geó grafo Karl Haushofer transmite a mensagem a seu amigo Rudolf Hesse e a teoria do Lebensraum toma lugar no corpus nacionalsocialista Depois da derrota do totalitarismo nazista ninguém mais pensará no Ocidente em defender abertamente uma doutrina racista O quadriplo ab surdo do racismo parece mais bem conhecido 1 As raças puras não existem todos os grupos humanos resultam de uma mestiçagem Mas supondose que elas existam 2 a pureza não representa nenhuma superioridade biológica a própria noção de abastardamento é absurda E isso tanto mais porque 3 uma eventual superioridade genética não implica nenhuma superioridade psicológica e cultural da qual fosse automaticamente deduzível E mesmo admitindose essa última hipótese 4 uma superioridade cultural não justifica por si só a hegemonia polí tica Não há nenhuma evidência de que os maiores ou os mais musculosos ou os mais belos ou os mais inteligentes governem os outros homens A sociobiologia Sem pregar um racismo que se tornou incontestável em qualquer variante uma corrente científica e política contemporânea procede de modo com pa rável aos adeptos do darwinismo social de final do século XIX transpondo pura e simplesmente os resultados ou leis das ciências naturais para as ciên cias sociais e mais particularmente as descobertas da biologia para a ciência política Além de uma tal transposição ser cientificamente absurda ela pre tende levar a um aniquilamento científico da liberdade de opções políticas A Ciência no caso a sociobiologia demonstra que os comportamen tos sociais são determinados em bases biológicas Somente os obscurantis tas então pretenderiam transformar sociedades cujas bases fundamentais estão inscritas nos genes O futuro pertence à família tradicional O altruísmo provém do egoísmo genético As leis da vida condenam o nivelamento mundial Essa é a mensagem revolucionária de 300 dos maiores cientistas ingleses e americanos os sociobiologistas como escreve Alain de Benoist Le Figaro Magazine 30 de junho de 1979 A nova direita se refere em primeiro lugar à etologia que aplica certas ligações tiradas da teoria da evolução à análise do comportamento dos ho mens e dos animais Alain de Benoist Vu de droite Paris Copernic 1977 p156 Antes dos sociobiologistas os zoológos mostraram o caminho O EstadoForça 251 Nossas sociedades integram a si os tarados os semiloucos os crimino sos os pedagogos dopam os menos bemdotados de inteligência recuperam os débeis mentais e todos esses anormais entram no ciclo reprodutor Disso resulta obrigatoriamente uma queda da saúde intelectual moral até mesmo física de nossos contemporâneos escreve o padre Pierre Grassé para pregar o eugenismo Konrad Lorenz demonstra que o homem possui como os ani mais comportamentos inatos entre os quais a agressividade a hierarquia a territorialidade Em consequência o espírito de competição o gosto pelo risco o sentimento de honra a vontade de empreender e até mesmo o dina mismo industrial são do mesmo modo que a guerra subprodutos de uma pulsão agressiva inscrita nas estruturas mais sutis do organismo Combater essa pulsão significaria retirar da espécie seu gosto pela luta sua vontade de viver ibid p50 Se você não adota os valores capitalistas está condenando a espécie Alain de Benoist retoma as elucubrações de um Gustave Le Bon No indivíduo normal as pulsões que se formam no nível do paleocórtex são em geral mais ou menos controladas pelo neocórtex Em caso contrário o hipotálamo bloqueia o córtex e a razão é como que paralisada o que explica certas características da psicologia das multidões ibid p156 O fundador da sociobiologia EO Wilson é também zoólogo professor na Universidade de Harvard Ele deduz do estudo das sociedades de insetos os princípios primeiros que governam a evolução dos sistemas sociais Le Monde 24 de fevereiro de 1980 O núcleo de sua demonstração reside numa teoria da seleção de parentesco O parentesco seria a estrutura prepon derante das sociedades primitivas porque se trataria de um fato biológico e não cultural A ideia central é que os seres vivos buscam antes de qualquer outra coisa otimizar seus ganhos genéticos ou seja assegurar a reprodução do máximo de seus genes ser os melhores na batalha da hereditariedade O altruísmo social traduz assim um egoísmo genético os sacrifícios têm como objetivo salvar vários parentes e desse modo aumentar a quantidade de nos sos genes que irá sobreviver O altruísmo é inclusive condicionado por essa vantagem genética é função do grau de parentesco e portanto é limitado e reintegrado na teoria evolucionista seletiva O egoísmo genético tornase a causa primeira dos comportamentos sociais As conclusões políticas da bioideologia variam ao sabor das descober tas e das preferências de seus adeptos Cedo estaremos em condições de identificar a maioria dos genes que intervêm no comportamento Wilson WD Hamilton sugere que a discriminação racial repousa em fundamentos nitidamente genéticos um gene racista de qualquer modo Podemse ima ginar outros De todo modo as consequências sociais dessa mudança de 252 História das ideias políticas perspectiva são imensas Já que o teorema central da sociobiologia é a regra universal da otimização dos comportamentos isso implica por si mesmo a rivalidade e a competição entre os indivíduos e por conseguinte a estratifi cação social Alain de Benoist Le Figaro Magazine 30 de junho de 1979 O que seria preciso demonstrar A ordem social é biologicamente fundada I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFICA Wilson E Lhumaine nature Essai de sociobiologie 1978 Stock 1979 e contra Marshall Sahlins Critique de la sociobiologie 1976 Gallimard 1980 CAPÍTULO VI 1 1 A Nação Estado O EstadoNação nascido na idade clássica continua a ser hoje a reali dade política essencial Decerto ele foi afetado por profundas transforma ções considerase como gerente cf cap V ou se revela partidário cf cap VI pôde se apresentar como pura força cf cap VII e reivindica agora a técnica e a ciência cf cap IX O EstadoCientistà Mas conserva seu núcleo nacional Os EstadosNação devem também ser considerados como soberanias voltadas para o exterior envolvidas nas relações internacionais Constatase então que os mais fortes e avançados dentre eles desenvolveram sua polí tica colonial até transformála em expansionismo imperial e que ainda hoje depois da descolonização a partilha do mundo em dois blocos dificilmente esconde a efetividade de impérios de tipo novo Mas povos e nações outrora subjugados acederam à independência política de tal modo que se impôs a formaEstado Estudaremos sucessivamente os Impérios e os problemas das novas nações a fim de compreender o nascimento das NaçõesEstado1 Os I M PÉRIOS Os EstadosNação quando sua potência lhes permite buscam estender ao conjunto do mundo sua ação de dominação Disso resultam os imperialis mos Nos tempos modernos os Estados capitalistas efetuaram a legitima ção do mais completo imperialismo o da conquista Disso resulta o colo nialismo O pensamento socialista condenouo sem saber sempre que ele mesmo instalava um outro tipo de imperialismo Disso resulta o socialin ternacionalismo 1 Sobre a diferença entre EstadoNação e NaçãoEstado cf infra neste capítulo 253 254 História das ideias políticas I mperialismos O imperialismo não esperou o estágio supremo do capitalismo para se ma nifestar Tucídides já ensinava que ele é inerente a toda formação de tipo es tatal No seio do EstadoNação as coisas são mais complicadas do que o di zem Hobson Hilferding ou Lênin Os interesses dos que controlam o poder econômico nem sempre coincidem com os interesses dos que detêm o apa relho de Estado E o imperialismo não se explica apenas por razões econô micas ele se alimenta também da ideia de Império Ademais essa doençà da dominação internacional não poupou a União Soviética que se resolveu alegremente a participar da partilha do mundo Nem mesmo os Estados que conquistaram recentemente sua independência deixaram de ser contamina dos pelo vírus Portanto menos que nunca é possível levar a sério isto é como moeda corrente as teorias que os Estados liberais depois os Estados socialistas de pois os Estados do Terceiro Mundo apresentaram para justificar seus direitos históricos à preeminência Não faltaram os mitos e as filosofias da história ou do homem para defender as práticas nacionalimperialistas A questão começa no século XIX século do homem branco adulto civi lizado produto da história passada e agente do futuro O Estado centralizado e constitucional a ciência a religião a indústria o exército convertido em missionário todos se reconciliam e dividem as tarefas A pilhagem interna cional dos conquistadores e pioneiros cede lugar a uma administração siste mática que extermina índios da América maoris cafres ou subjuga África Oriente conforme o caso mas sempre em nome da civilização Cristóvão Colombo singrava os mares rumo às Índias Ocidentais para manifestar a po tência de seu soberano conseguirlhe um butim e evangelizar as populações que desconheciam a Boanova O branco do século XIX com seus geógrafos etnógrafos cartógrafos e missionários não fez outra coisa Ao Evangelho re ligioso acrescentase o Evangelho segundo Auguste Comte o aventureiro é substituído pelo administrador colonial O essencial não muda ecumenismo cristão e universalismo europeu andam de mãos dadas Dos Fundamentos geográficos da história universal de Hegel 1811 até as Memórias de Henry Kissinger 1980 a perspectiva não se altera Tudo parte dos Estados bran cos e tudo volta a eles A filosofia da história materialista e dialética não passa em última ins tância de uma variedade dessa consciência progressista Marx e Engels de certo enunciaram a célebre fórmula Um povo que oprime outro jamais poderá ser um povo livre O marxismo na versão da Segunda Internacio nal porém nem por isso deixou de introduzir a ideia de que o proletariado A NaçãoEstado 255 industrial e portanto o das nações cientificamente avançadas detém a ponta de lança da Revolução mundial As sublevações dos povos coloniais não são mais do que forças de apoio O Estado soviético reforça essa ideolo gia existem mundialmente dois campos o da justiça do direito e do progresso que têm à frente a União Soviética e agrupa os proletários as nações e os povos que sofrem a exploração capita listaimperialista o da exploração da mentira e da reação cosmopolita dirigido hoje pelas corporações multinacionais e submetido à hegemonia militar política e econômica dos Estados Unidos da América Essa visão da realidade mundial é essencialmente a mesma que serviu como horizonte de pensamento nos Estados liberais de Disraeli e Jules Ferry a John Kennedy e a Nixon As tropas soviéticas intervêm no Afeganistão de zembro de 1979 para libertar o país do jugo feudal A filosofia das Luzes serviu como cobertura para a civilizaçãocolonização do mundo O mar xismo serve como cobertura discursiva para as práticas nacionalistas do Es tado soviético Os dois progressismos brancos surgidos no século XIX procedem se gundo a mesma lógica de ideias herdada de santo Agostinho e de Hegel messianismo da Igreja da cultura do Estado burguês messianismo do proletariado de seu partido do Estado socialista O Terceiro Mundo o não alinhamento pareceram oferecer um caminho para superar essa alternativa que conserva a sujeição internacional A Confe rência de Bandung 1955 despertou essa esperança em torno de Chu Enlai Nasser Nehru e Sukarno Os pobres do mundo de fato no caso concreto da ÁfricaÁsia expressam uma tomada de consciência de sua eminente dig nidade o que faria do fato o evento mais importante desde o Renascimento Léopold Sendar Senghor A condenação do colonialismo a afirmação do não alinhamento a busca da coexistência entre as nações se inspiravam no Panch Shilâ na não violência ensinada por Gandhi Em 1961 Tito organi zou em Belgrado a primeira conferência de cúpula dos não alinhados que aduziu aos princípios de Bandung a libertação econômica Os povos têm o direito para suas finalidades pessoais de dispor livremente de suas riquezas e recursos naturais Em 1966 Fidel Castro acrescentou o terceiro A com a conferência de so lidariedade dos povos da Ásia África e América Latina reunida em Havana História das ideias políticas O terceiromundismo estendeu então ao mundo o raciocínio que o jo vem Marx formulara a respeito do proletariado Os povos que sofreram as maiores injúrias e alienações a espoliação a servidão e a humilhação têm de querer a supressão de todas as formas de violência internacionais e interes tatais para eles mesmos e para todos os outros Por seu destino infeliz eles representam a consciência ética e política da humanidade Através deles do Terceiro Mundo triunfarão o imperativo da paz e portanto a independên cia dos povos a exploração em comum dos recursos nacionais a igualdade dos indivíduos a defesa das liberdades no quadro das tradições e sobretudo serão recusadas reprimidas destruídas as forças imperialistas Quantas aná lises foram feitas na época para provar que o Islã autêntico ou a organização tribal praticavam originariamente o socialismo e a democracia Todavia o terceiromundismo não resiste às circunstâncias cerco dos dois campos sobrevivência de um passado muito próximo fraqueza material das nações envolvidas o não alinhamento não consegue ser mais do que uma estratégia a serviço dos nacionalismos pobres e exaltados prontos a fazer causa comum com uma das duas hegemonias quando uma vantagem mate rial os incitasse a tanto Isso resulta também do fato de que o Terceiro Mundo jamais quis nem pôde se desprender do modelo de Estado europeu e sua liber tação significou para eles o ingresso na competição internacional Quaisquer que tenham sido as modalidades da independência constituiuse um Estado de tipo europeu cujo eixo central era o nacionalismo e como sua imediata consequência o imperialismo A República Popular da China até mesmo em seu período mais esquerdistà atuava como qualquer outra grande potên cia ou talvez até com menos pretextos no cinismo Os nacionalismos mais recentes revelamse mais sólidos do que a comunidade de língua a tradição éticoreligiosa e a desforra contra o inimigo comum a nação árabe unificada pelo menos do Eufrates ao Atlântico jamais viu a luz Duas potências ainda dominam o mundo o número de Estados soberanos não deixa de crescer os conflitos devidos aos nacionalismos e imperialismos locais se multiplicam Nenhuma filosofia da história explica essa realidade todas servem como jus tificação a liberal a marxista a humanista terceiromundista I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFICAS Lichtheim G De limpérialisme 1971 CalmannLévy 1972 Mahatma a grande alma Gandhi Mohandas Karamchand Gandhi Leur civilisation et notre délivrance Denoel 1957 A NaçãoEstado 257 O colonialismo O imperialismo moderno se distingue do imperialismo clássico o dos anti gos gregos do ecumenismo militar de Roma do espírito de conquista e de evangelização da primeira vaga da colonização europeia pela mundializa ção da sociedade burguesa que se realiza ao lado da extensão da dominação política dos Estados Por sua vez a colonização se transforma Com efeito não se trata de uma mas de três colonizações a colonização da evangelização e da pilhagem inaugurada por Cristóvão Colombo a colonização comercial na qual os ingleses tomam o lugar dos holan deses a colonização administrativa na qual os Estados Unidos estabelecem pac tos e tratados Colônia pura ou Estado submetido à penetração econômica não há mais nenhum hectare de terreno que escape ao mundo branco ou ao seu imitador japonês A grande vaga da colonização do século XIX teve seu caminho aberto pela GrãBretanha Colônias de exploração foram estabelecidas ao longo de toda a rota das índias uma frota comercial cobria a maior parte das tro cas intercontinentais Disraeli chegou a criar um consenso em torno desse novo tipo de colonização que garante a hegemonia mundial da nação Um conjunto de ideias serve como embasamento para essa política Inicialmente um sofinationalism um nacionalismo seguro de si mas sem agressividade nem ressentimento Depois a certeza de ter razão que é conferida pelas filo sofias da história tanto pelo pensamento missionário dos anglicanos como pela vontade de melhorar o conhecimento do mundo que anima as socie dades científicas tanto pelo desejo de produzir dos positivistas como pelo evolucionismo de Spencer Com Spencer o imperialismo recebe o reforço do darwinismo político cf supra cap VII As leis que regem os organismos vivos aplicamse igual mente às sociedades princípio de evolução crescimento dos mais capazes atrofia dos inúteis Portanto é normal que o homem civilizado conquiste o mundo Spencer continua individualista Benjamin Kidd é mais abertamente racista e opõe o interesse a longo prazo da raça ao interesse mesquinho do indivíduo A forma moral e a grandeza religiosa da raça inglesà fundam sua superioridade e sua missão imperial No fim das contas o Império é con História das ideias políticas siderado como o produto da Providência da Raça do Espírito Humano e serve como abertura para os Novos Tempos da Indústria Aquém das ideias que acompanham o imperialismo inglês é preciso re montar ao pensamento liberal sob cuja égide se constituiu o EstadoNação do qual a GrãBretanha é a pérola Reencontrase então John Locke e sua concepção do Estado como pacto como contrato entre proprietários que transferem a uma autoridade soberana o direito de punir e de cuidar dos negócios comuns O imperialismo resulta disso o Estado é um contrato entre proprietários é proprietário quem ocupou um terreno e soube fazêlo dar frutos o Estado portanto é um território um conjunto de proprietários prós peros por conseguinte os nômades são excluídos do pacto civil do mesmo modo os improdutivos devem aceitar a tutela dos produtores civilizados para ingressar na civilização O dinamismo imperial triunfa sem grande dificuldade na GrãBretanha no Japão na Rússia e nos Estados Unidos Mas ele tem de superar obstáculos no seio da Terceira República francesa De imediato tem de encontrar justifica ções mais precisas A tarefa de legitimação do colonialismo aparece com mais clareza A França saiu muito desgastada na guerra de 1870 Perdeu o bona partismo a Alsácia e a Lorena reencontrou as facções monarquistas e a con testação socialista esmagou a Comuna reencontrou a divisão Dois caminhos parecem se abrir a desforra contra a Alemanha ou a aventura colonial O partido colonial triunfa e recebe múltiplos apoios A Igreja Católica se felicita por poder evangelizar contra o anglicanismo e o protestantismo E os colonizadores se felicitam com as justificações morais trazidas pelos católi cos tais como o abade Raboisson Em todo lugar onde o francês pôs o pé ainda que por um instante tornou fran cês o solo que pisou É o caso de Maurício de Trinidad da Luisiânia do Ca nadá Da própria Alsácia Portanto podese construir uma França africana uma França oriental uma França polar Études sur les colonies et la colonisation au regard de la France 1877 Monsenhor Lavigerie arcebispo de Argel lançou pessoalmente expedi ções contra a África negra e apelou em 1871 aos metropolitanos para que se fizessem colonos A NaçãoEstado 259 Vinte contribuindo para estabelecer sobre esse solo ainda infiel uma população laboriosa moral cristã vós sereis os verdadeiros apóstolos diante de Deus e diante da pátria Aux Alsaciens et aux Lorains exiles Os geógrafos veem finalmente reconhecidos sua utilidade e seu patrio tismo O almirante La Ronciere Le Noury declara em 1875 diante do presi dente MacMahon A Providência nos ditou a obrigação de conhecer a Terra e de conquistála A geografia a ciência que inspira um tão belo devotamento e em nome da qual tantas vítimas se sacrificaram tornouse a filosofia da terra Jules Ferry republicano e laico presidente do Conselho entre 1880 e 1885 sistematiza a argumentação em favor da colonização com argumentos econômicos A política colonial é filha da política industrial Para os Estados ricos onde os capitais abundam e se acumulam rapidamente a exportação é um fator es sencial da prosperidade humanitários Será que alguém pode negar que há mais justiça mais ordem material e moral mais equidade mais virtudes sociais na África do Norte depois que a França a conquistou políticos na Europa tal como foi feita nessa concorrência de tantos rivais que vemos crescer em torno de nós numa Europa ou melhor num universo assim feito a política do isolamento ou da abstenção é simplesmente o grande cami nho para a decadência é cair do primeiro nível para o terceiro ou quarto Mais de um século depois a problemática da concorrência e do nível ainda serve para justificar uma política como a única política possível Por muito tempo a temática da colonização será humanà democrá ticà republicanà e progressistà como o atesta a intervenção do professor 260 História das ideias políticas universitário radical Albert Bayet no Congresso de 1931 da Liga dos Direitos do Homem a colonização é legítima quando o povo que coloniza leva consigo um te souro de ideias e de sentimentos que enriquecerá outros povos sendo assim a colonização não é um direito mas um dever Pareceme que a França moderna filha do Renascimento herdeira do século XVIII e da Revolução re presenta no mundo um ideal que tem seu valor próprio e que ela pode e deve difundir pelo Universo Um tal discurso pode ser pronunciado por para todos os imperia lismos I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁ F I CAS Disraeli B Ver RJ White 1he Conservative Tradition Londres N Kaye 1950 Ferry J Le Tonkin et la mere patrie 1890 Girardet R Lidée coloniale en France de 1871 à 1962 1972 Poche 1979 Kidd B Social Evolution 1894 O socialinternacionalismo O socialismo nascido no século XIX e difundido no XX pretende ser uma concepção política do internacionalismo e na grande família dos socialis mos o marxismo pretende mais que qualquer outro rimar com internacio nalismo Ao mesmo tempo a nação serve verdadeiramente de pretexto para o reforçamento estatal o interesse nacional legitima o Estado soberano ou expansionista O socialismo não pode senão redobrar sua pretensão inter nacionalista As coisas se complicam contudo com a doutrina leninista que pretende efetuar em cada caso a análise concreta de situações concretas e também com a concretização do projeto comunista no qual o socialismo se reduz provisoriamente a um só país ou a uma só zona Finalmente somase o fato de que no século XX a questão nacional se fragmenta em significações diversas e frequentemente contraditórias O enfoque da questão nacional assume então uma ambiguidade fundamental e levanta uma verdadeira di ficuldade insuperável e insuperada Como explicar que o socialismo inter nacionalista tenha sempre triunfado numa luta contra o estrangeiro numa situação de guerra eou tornandose um movimento de libertação nacional contra a dominação estrangeira Rússia 1917 Europa do Leste 194548 China 1949 Vietname 194573 Cuba 19591962 Angola 1975 Nicarágua 1979 etc Como explicar que em cada oportunidade a tomada do poder pelos socialistas implicou o fortalecimento da NaçãoEstado É preciso buscar a resposta a essas questões na obra dos primeiros teóricos do socialismo científico antes de seguir as superstições do social e do político a outra face da subestimação teórica do nacional 262 História das ideias políticas A Segunda Internacional e a superestimação da questão social Se vocês abolirem a exploração do homem pelo homem abolirão a explora ção de uma nação por outra nação essa era portanto a mensagem do Ma nifesto Comunista A Segunda Internacional a recebeu bem superestimando por sua vez a questão social Foi o caso diante do problema das nacionalida des sefá o caso em face do problema das colônias Uni debate opunha no início do século XX os internacionalistas in transigentes aos defensores da ortodoxia marxista Rosa Luxemburgo defende o proletariado polonês Seus interesses reais na matéria a liberdade de vida e do desenvolvimento na cional cultural a igualdade dos cidadãos a abolição de toda opressão nacional encontram sua única expressão possível completa e ao mesmo tempo eficaz nas aspirações gerais de classe do proletariado a uma maior democratização dos países ocupantes Mas ela não defende a independência nacional da Polônia A necessidade de possuir o aparelho de um Estado de classe independente que é uma outra arma para oprimir os operários é tão somente nas circunstân cias atuais levandose em conta o caráter utópico dessa aspiração um interesse imaginário dos operários assimilado de uma concepção pequenoburguesa do mundo tão estranha aos interesses reais do proletariado quanto ao modo de pensamento do socialismo científico em geral A questão polonesa e o movi mento socialista 1905 Karl Kautsky opõe a isso uma versão estatista de Marx que compõe com o Estado nacional A unidade nacional decorre inelutavelmente do desen volvimento econômico e não pode ser entravada assim como não o pode esse mesmo desenvolvimento Onde as tendências nacionais ainda lutam por seu reconhecimento todo partido do progresso deve levar em conta esse caráter inelutável e defender a aspiração à unificação num Estado e à in dependência das nações nas quais vive e atuà Contra o internacionalismo intransigente de Rosa Luxemburgo e de Pannekoek o fato nacional é um fato ideológico burguês os marxistas ortodoxos da socialdemocracia consideram a aspiração nacional como uma etapa necessá ria da revolução socialista e chegam assim a um nacionalismo tático A NaçãoEstado A superestimação da questão social é também encontrada no exame da questão colonial e é acompanhada por um etnocentrismo percepção dos grandes problemas somente do ponto de vista do centro do Ocidente pouco capaz de captar a significação da colonização e os desafios da descoloniza ção A partir desse viés comum o movimento socialista se divide em duas grandes tendências Os alemães Eduard Bernstein ou Eduard David 18631936 e o belga Van dervelde 18661938 são as principais figuras da primeira tendência que considera o colonialismo como uma necessidade histórica o desenvolvimento das forças produtivas o exige a propagação da civilização o justifica So mente os métodos do colonialismo são atrozes A Segunda Internacional não condena em princípio e para sempre qualquer política colonial mo ção do Congresso de Stuttgart 1907 E Bernstein precisa Temos o dever de praticar uma política colonial socialista positiva Devemos abandonar a ideia utópica de entregar as colônias a consequência extrema dessa atitude levaria a entregar os Estados Unidos da América aos índios As colônias estão aí é preciso aceitar esse fato Os socialistas devem também reco nhecer a necessidade que têm os povos civilizados de exercer uma certa tutela sobre os povos não civilizados Essa é a tese dominante no seio dos partidos socialistas da Europa Uma segunda tendência condena mais nitidamente o colonialismo Kautsky defende e faz com que se adote uma tese complementar segundo a qual a política colonial capitalista por sua própria essência leva necessariamente à sujeição ao trabalho forçado ou ao extermínio das populações indígenas do domínio colonial A missão civilizadora reivindicada pela sociedade capi talista servelhe apenas como pretexto para encobrir sua sede de exploração e de conquista Somente a sociedade socialista poderá oferecer a todos os povos a possibilidade de desenvolver plenamente sua civilização Sem estar isento de paternalismo esse ponto de vista contém uma to mada de consciência da questão colonial Seus adeptos reclamam sem mais tardar a criação de partidos socialistas nos países colonizados a fim de es tabelecer laços políticos entre a classe operária dos países dominantes e os povos dominados A renovação da problemática do imperialismo contudo para nisso é a classe operária dos países colonizadores que mostra o cami nho do socialismo História das ideias políticas A Terceira Internacional a superestimação da questão política Lênin Stálin Lênin não rompe brutalmente com as teses da Segunda Internacional He sita longamente apoia amplamente Kautsky e concorda com ele quanto ao elemento central da matriz marxiana o primado da classe sobre a nação Todavia mostrase mais atento ao potencial revolucionário dos movimentos nacionais Lênin e Stálin privilegiam assim a tática a utilização política da aspiração nacionalista inicialmente para fazer a revolução depois para de fender o Estado revolucionário Desde 1913 Lênin encarrega Stálin este maravilhoso georgiano de elaborar uma solução proletária para a questão nacional Disso resulta a cé lebre definição de Stálin da nação como uma comunidade estável historicamente constituída comunidade de língua de território de vida econômica e de formação psíquica que se traduz na comuni dade de cultura Definição que condena as reivindicações autonomistas Basta que um só desses índices falte para que a nação deixe de ser uma nação O mesmo para os judeus ou para os armênios Lênin como Stálin não reconhece qualquer fato nacional O federa lismo inicialmente foi recusado depois o direito de autodeterminação foi admitido a fim de acelerar a decomposição do Império tzarista finalmente a reconstrução unitária foi imposta em nome da autodeterminação dos tra balhadores e quando necessário pela força ataque à Geórgia em 1921 O nacionalismo pôde ser útil à tática revolucionária ele não tem lugar no es quema bolchevique sobretudo quando se trata do nacionalismo das regiões pobres e periféricas A base política da ditadura do proletariado é constituída inicialmente e de modo essencial para as regiões industriais do centro e de modo algum para os limites representados pelos países agrários Stálin 1923 A questão colonial foi tratada segundo a mesma lógica Lênin reivindica a unidade dos pontos de vista cf Sobre o direito de autodeterminação das na ções 1914 Paralelamente ele integra suas análises sobre a questão colonial à sua concepção do imperialismo Lênin esboça uma concepção mundial da A NaçãoEstado Revolução podese dizer que ele tenta mundializar o esquema legado por Marx mas sem chegar a se desfazer do eurocentrismo Em igual nível de intensidade o golpe desferido contra o poder da burguesia inglesa pela insurreição na Irlanda tem uma importância política cem vezes maior do que se tivesse sido desferido na Ásia ou na África Balanço de uma discussão sobre a autodeterminação 1916 Na prática a Terceira Internacional reconhece a justeza das lutas colo niais mas ajusta suas posições em função dos interesses da União Soviética Camaradas irmãos chegou o momento no qual vocês poderão começar a or ganização de uma guerra popular justa e sagrada contra os bandidos e os opres sores Viva a união fraternal dos povos do Oriente com a Internacional Co munista Zinoviev Congresso de Baku 1920 Na luta contra a burguesia mundial a República Soviética deve agrupar em torno de si ao mesmo tempo os movimentos soviéticos conselhistas dos operários avançados de todos os países e os movimentos de libertação nacional das colônias ou das nacionalidades oprimidas Disso resulta uma tese intermediária entre a velha tese economicista segundo a qual os Estados colonizadores devem inicialmente exportar o capitalismo antes de pensar no socialismo nas colônias e a nova tese asiocêntrica segundo a qual a Revolução cresce a partir do Oriente e emergem nações proletárias nas quais a libertação é possível imediatamente A Internacional deve estabelecer acordos temporários até mesmo alianças com a democracia burguesa das colônias e dos países atrasados Acordos temporários já que toda fusão com a burguesia nacional está excluída o objetivo continua a ser a ditadura do proletariado I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFICAS Châtelet F Evelyne PisierKouchner e JeanMarie Vincent Les marxistes et la politique PUF 1975 col Thémis DEncausse HC Eempire éclaté Flammarion 1978 266 História das ideias políticas Haupt G Michael Lõwy e Claude Weill Les marxistes et la question nationale 18481914 Maspero 1974 Schram S e Hélene Carrere dEncausse Le marxisme et fAsie Colin 1966 AS N OVAS NAÇÕ ES Os Impérios têm seus imperialismos as novas nações seus nacionalismos Esse fato não justifica nenhuma confusão os povos que enfrentam a desco lonização não formam uma totalidade homogênea e não existe por mais que se tenha sonhado com ele um pensamento do Terceiro Mundo As con cepções das novas nações de resto fragmentamse no tempo e no espaço desde o século XIX em alguns visionários latinoamericanos até os anos 1980 nos países ainda sob dominação colonial de Cuba à África do Sul ou de Porto Rico à Namíbia Ademais as modalidades de acesso à independên cia variam consideravelmente entre a retirada voluntária do colonizador e as lutas armadas vitoriosas Todavia permanece um fundo comum os movimentos de libertação na cional e suas justificações as técnicas de fundação de um Estado e as razões apresentadas situamse num mesmo quadro o do jugo colonial com suas mesmas consequências sociais materiais e ideais subdesenvolvimento des truição das estruturas da sociedade esmagamento da cultura nacional Trata se aqui e ali de fazer com que exista um Estado contra as sequelas do passado colonial e apesar do novo imperialismo Aqui e ali a referência obrigatória é a do Estado industrial desenvolvido em seu resultado liberal americano ou em seu resultado socialista soviético Era e continua a ser inimaginável que africanos vivendo num mesmo território decidamse a se organizar em agrupamentos anárquicos de comunidades de diferentes formas sem rei ou presidente sem Constituição subscrevendo um simples direito costumeiro praticando o escambo e buscando a autarquia econômica Um tal desvio polí tico teria sido continua sendo imediatamente punido com a intervenção das grandes potências ou dos vizinhos mais razoáveis A formaEstado domina Os fatores ideológicos no sentido mais simples da palavra os valores as palavras de ordem as representações ou em suma as ideias têm um peso bastante grande Mais hoje do que outrora na Europa Quando da constituição dos EstadosNação da Europa as ideias não cum priam senão uma função de catálise Hegel depois de Locke e de Smith con corda nisso com Karl Marx o Estado moderno implantouse numa nação A NaçãoEstado onde a sociedade civil já estava em processo de unificação e de organização Simplificando a nação precede o Estado o social precede o ideal Com a constituição das NaçõesEstado do Terceiro Mundo as ideias têm de cumprir uma função decisiva A instrução colonial desestruturou as socie dades civis dos países ocupados O recurso à ideologia deve compensar a ausência de uma sociedade civil organizada Simplificando o Estado precede a nação o ideal precede o social Quais são essas ideias esses valores Podese agrupálos em quatro gran des categorias ou princípios gerais de inteligibilidade que explicam em nome e em função de que ideias se travaram os combates pela independência e se processam as ações no sentido da formação ou do fortalecimento do Estado a identidade a luta armada o povo a religião Dáse por suposto que em cada caso histórico singular o dos argelinos ou dos cubanos dos chineses ou dos ganenses etc essas categorias se combi nam ou se opõem de modo específico A identidade Independentemente da diversidade das situações a problemática da liberta ção colocouse por toda parte em termos de busca de identidade A análise puramente econômica dos efeitos do imperialismo não basta é preciso de modo mais amplo denunciar a alienação colonial E o que o colonialismo divisou precisa ser reunificado por meio de novas solidariedades E quando como é frequente a identidade reencontrada se pretende socialista isso ocorre num sentido que não é o habitual A identidade perdida a alienação Césaire Fanon O processo contra o Ocidente não se limita à acusação de pilhagem O eu ropeu consagrase também à destruição das culturas tradicionais não por causa de um ingênuo complexo de superioridade mas para interiorizar no 268 História das ideias políticas colonizado o sentimento de sua inferioridade A difusão forçada do modelo cultural ocidental iria então de mãos dadas com o racismo O colonialismo portanto não é simples despossessão mas também humilhação ofensa atentado contra o ser Desde meados do século Aimé Césaire denuncia esse processo de de sumanização que arrancou milhões de homens de seus deuses e de sua terra de seus hábitos de sua vida da vida de sua classe de sua sabedoria Falamme de progresso de realizações de doenças curadas de níveis de vida elevados Eu prefiro falar das próprias sociedades esvaziadas de terras confiscadas de religiões assassinadas de coisas magníficas esmagadas de ex traordinárias possibilidades suprimidas Discours sur le colonialisme 1950 Frantz Fanon tentou sistematizar a alienação a partir de uma análise psiquiátricà das funções e dos efeitos do racismo Sartre afirmara que foi o antissemitismo que criou o judeu Fanon afirma que é o racista que cria a inferioridade E a discriminação racial não é uma excrescência mas a base de toda a ins tituição colonial O racismo determina os comportamentos individuais e cole tivos dos colonizados Ele introduz o conflito no próprio ser do colonizado Conflito biológico Comigo tudo assume uma face nova Nenhuma oportunidade me é permitida Sou sobredeterminado do exterior Não sou escravo da ideià que os outros têm de mim mas de minha aparência Chego lentamente no mundo habituado a não mais pretender o surgimento Ando rastejando Os olhares brancos os úni cos verdadeiros me disseram Sou fixado Tendo ajustado seu micrótomo rea lizam objetivamente cortes de realidade Sou traído Sinto vejo nesses olhares brancos que não é um novo homem que entra mas um novo tipo de homem um novo gênero Um negro ora Deslizo pelos cantos Resto em silêncio as piro ao anonimato ao esquecimento Vejam eu aceito tudo contanto que não me percebam mais Peau noire et masques blancs p113 Conflito cultural Como para ilustrar o caráter totalitário da exploração colonial o colono faz do colonizado uma espécie de quintessência do mal A sociedade colonizada A NaçãoEstado 269 não é descrita apenas como sociedade Sem valores O indígena é decla rado impermeável à ética ausência de valores mas também negação dos va lores Os costumes do colonizado suas tradições seus mitos sobretudo seus mitos são a própria marca dessa indigência dessa depravação constitu cional ibid p252 Conflito linguístico tão bem descrito por Kateb Yacine Jamais deixei de sentir no fundo de mim essa segunda ruptura do cordão um bilical esse exílio interior que só aproximava o escolar de sua mãe para dela arrancálo cada vez mais aos frêmitos reprovadores de uma língua banida secretamente por um mesmo acordo rompido tão logo estabelecido As sim eu perdera ao mesmo tempo minha mãe e sua língua os únicos tesouros inalienáveis e apesar disso alienados Le polygone étoilé Paris Le Seuil 1962 p181 I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFI CAS Césaire A Discours sur le colonialisme Paris 1950 Fanon F Peau noire et masques blancs Paris Le Seuil 1952 prefácio de JeanPaul Sartre Les damnés de la terre Paris Maspero 1961 ed brasileira Os condenados da terra Civilização Brasileira Rio de Janeiro 1967 A unidade reencontrada as solidariedades Guevara Senghor Embora evitando as visões redutoras da história e da geografia podese cons tatar uma vontade comum de superar independentemente das experiências e dos continentes a balcanização imposta pelo imperialismo Luta revolu cionária continental Ernesto Guevara chamado de Che retoma o sonho de Simon Bolívar libertador do jugo espanhol Para o Che a Cordilheira dos Andes será a Sierra Maestra2 do continente sulamericano Cada país tem sua particularidade mas os continentes também as têm e os fatores de uni dade são numerosos língua costumes religião e sobretudo 2 Nome da montanha onde Fidel Castro e Che Guevara iniciaram a guerrilha em Cuba 270 História das ideias políticas uma identidade tão grande entre as classes desses países que eles chegam a uma identificação de caráter internacionalamericanô muito mais completa do que em outros continentes Em todas as partes temos o regime de latifúndios o subdesenvolvimento a fome dos homens e o mesmo senhor A guerra de guerrilhas 1962 O projeto guevarista pretende ser também uma réplica ao pseudo americanismo da Organização dos Estados Americanos e da Aliança para o Progresso implantada por John F Kennedy E o caráter continental da luta não deve difundir a ilusão continentalistà A existência das nações americanas separadas até mesmo hostis entre si é um ato irreversível e a luta revolucionária só pode ser um combate pela libertação nacional Estabelecer para os processos revolucionários nacionais a condição prévia da unidade continental é adiálos para as calendas gregas Régis Debray Essais sur tAmérique Latine Maspero 1967 Guevara fracassa o argentino herói da revolução cubana morre em 8 de outubro de 1967 na Bolívia assassinado por militares treinados no Pa namá pelos Estados Unidos A busca da unidade árabe parece mais ambivalente Decerto ela cris taliza desde o século XIX o protesto contra o colonizador ao qual se opõe a ideia de uma comunidade árabe fundada ao mesmo tempo num critério religioso o Islã e na noção mítica de povo Será que não vale a pena na opinião de vocês abrir escolas a fim de nelas edu car seus filhos de instruílos de erguer uma barreira graças a essas escolas contra a influência europeia que as escolas europeias semeiam nos espíritos de les É melhor roubálos aos europeus do que perdêlos Ensinemlhes que vo cês são os pais deles antes que eles antes reneguem Transmitam a eles a religião que é a sua antes que eles se ergam contra vocês Abdallah AlNadim Rapidamente a ideologia da unidade árabe irá assumir um uso nacional e se expressar antes de mais nada no quadro do EstadoNação Na África negra mais arbitrariamente fragmentada pelo colonizador o retorno a uma identidade comum se opõe à vontade dos novos dirigentes de preservar o quadro territorial de seu poder ainda que esse seja precário O haitiano PrinceMars evocou em 1928 as civilizações africanas cujo esplen dor espalhouse para além dos limites da estepe e do deserto Aimé Césaire e Léopold Senghor fundam em 1934 a revista ZEtudiant Noir A NaçãoEstado 271 O primeiro canta sua raça raisin mur pour pieds ivres3 O segundo confere à negritude o seu universalismo A emoção é negra como a razão é helênica O que nos liga está para além da história Está enraizado na préhistória Per tence à geografia à etnia e portanto à cultura É anterior a qualquer coloni zação Tratase de uma comunidade cultural que chamo de africanidade Eu a definiria como o conjunto dos valores africanos de civilização Jeune Afrique 9 de junho de 1963 I N D I CAÇÕ ES B I B LI O G RÁFI CAS Césaire A Cahiers du retour au pays natal 1947 Présence Africaine 1971 Che Guevara Journal de Bolivie Maspero 1968 ed brasileira Diário da Bolívia Coor denada Brasília 1968 Nkrumah K A África Negra deve se unir 1964 Senghor LS Liberté Le Seuil 1964 A identidade nova a idiossincrasia socialista Socialismo nacional sempre nominal na maioria dos casos algo destinado a armar o Estado novo Em certas regiões árabes a ideologia socialista na cional pretende conciliar a permanência do passado islâmico com os impe rativos tecnológicos do progresso Busca de uma autenticidade perdida bandeira erguida com finalidades diversas pelo Poder e pelos intelectuais opositores essa ideologia pretende superar a oposição entre a eternidade e a história Na verdade ela consiste em arabismo mais industrialização Ab dallah Laroui Lidéologie arabe contemporaine Maspero 1973 Se há um ponto comum entre os socialistas do Terceiro Mundo é essa função consensual o socialismo reconciliará o Estado nacional com sua so ciedade e condenará previamente toda expressão conflitual Assim Sékou Touré socialista guineense chega a negar a luta de classes O marxismo foi amputado desse elemento para permitir a todas as camadas africanas travarem em conjunto a luta geral anticolonialista citado por Yves Benot Idéologies des indépendances africaines 3 Uva madura para pés bêbados NT 272 História das ideias políticas O socialismo africano imagina para si justificações específicas A África é essencialmente comunocrática A vida coletiva a solidariedade so cial emprestam a seus hábitos um fundo de humanismo que pode ser invejado por muitos povos Sékou Touré ibid p81 O continente negro tem um socialismo já pronto sob medida O negro resolvera o problema num sentido humanista O solo assim como tudo o que ele traz consigo é um bem comum dividido entre as famílias e em alguns casos entre os membros da família que têm uma propriedade tem porária e usufrutuária sobre ele Senghor Liberté 1 Nesse socialismo africanizado nessa africanidade socializada a aboli ção do Estado tornase supérflua A sociedade socialista confundindose com o Estado não poderia dissolver o Estado em si já que é ela que gera é o povo gerador é o povo construtor é o povo sábio que rege organiza e dirige a sociedade e isso em função do seu devir Numa tal sociedade o Estado é algo permanente mudará apenas a sua natureza que se tornará social Se cabe falar de extinção é apenas do Estado capitalista imperialista ou neocolonialista Sékou Touré ibid No limite a referência ao socialismo já reduzida a uma pele de cha grém tornase ela mesma inútil a africanidade decomposta se necessário é suficiente Vocês vocês são um mundo de oposições mas nós zairenses nós somos um mundo de justaposição Citemme uma única aldeia zairense onde haja dois chefes um dos quais oposição Não existe isso Criando vários parti dos políticos os zairenses pecariam contra a Autenticidade Mobutu Sese Seko chefe de Estado do Zaire citado por Y Bénot op cit p72 O socialismo terceiromundializado nem sempre se torna esse álibi aglutinante no qual a adaptação às idiossincrasias nacionais elimina todos os elementos subversivos da luta de classes à destruição do Estado para conservar apenas a justificação do unanimismo Um Fanon um Depestre um Cabral denunciam essa busca ilusória da identidade perdida e apelam para a formação de uma identidade radicalmente nova Buscando a iden A NaçãoEstado 273 tidade reencontrase a submissão Busquem a libertação encontrarão a identidade O que importa não é dar prova da especificidade ou não especificidade da cul tura de um povo mas sim a luta de libertação que é ato de culturà e ne cessariamente prova de identidade Amilcar Cabral A arma da teoria ed francesa Maspero 1975 A luta de libertação não restitui à cultura nacional seu valor e seus contor nos antigos Ela visa a uma redistribuição fundamental das relações entre os homens É a libertação nacional que torna a nação presente na cena da histó ria Frantz Fanon Les damnés de la terre 1961 I N D I CAÇÕ ES B I B LI O G RÁFI CAS Bénot Y Idéologies des indépendances africaines Maspero 1969 Chaliand G Mythes révolutionnaires du Tiers Monde Seuil 1976 A luta armada Dupla justificação da violência elemento necessário do processo de desa lienação resposta ao imperialismo de fato e necessariamente agressivo A ideologia da libertação nacional passa assim pela afirmação da necessidade da violência única arma capaz de dar à luz a nação antes que a nação seja Estado Condenado pela história o pacifismo parece agora desonrado e de sonrante A NaçãoEstado arma o povo e todo o povo até as crianças O fu zil equivale à virilidade o heroísmo é patriotismo a morte é prova suprema Da guerrilha à guerra popular da guerra justa à guerra santa as palavras de ordem se militarizam a violência é sacralizada o terrorismo é ritualizado Frantz Fanon tentou explicar essa necessidade do princípioviolência en quanto Guevara na América Latina e Mao na China criaram duas estraté gias da violência revolucionária O princípioviolência A descolonização é sempre um fenômeno violento Fanon Não se trata apenas de uma constatação mas também da expressão de uma necessidade 274 História das ideias políticas psicossociológica A violência segundo o psiquiatra antilhano preenche uma dupla função de libertação em face do opressor e de reconhecimento de si mesmo Ele o explica em Les damnés de la terre O aparecimento do colonialismo significou sincreticamente morte da socie dade autóctone letargia cultural petrificação dos indivíduos Para o colonizado a vida só pode surgir do cadáver em decomposição do colono Portanto essa é a correspondência termo a termo dos dois raciocínios Abater o colono permite ao colonizado matar tanto o opressor quanto o oprimido A coisà colonizada tornase homem no próprio processo pelo qual se liberta O ato de violência é constitutivo da luta sinal de sua irre versibilidade e de sua exemplaridade Assim ninguém podia ser admitido nos grupos terroristas da FNL argelina senão depois de ter cometido um atentado A violência é também necessidade política que os comunistas chineses nos anos 1960 opõem à coexistência pacífica pregada pelos soviéticos O velho debate reforma ou revolução ressurge assim na zona das tempesta des É um erro dos comunistas kruschevianos privilegiar a contradição entre proletariado e burguesia no seio dos países capitalistas é um erro considerar como eles fazem que o regime colonial já desmoronou As modificações ocorridas no mundo confirmam que as contradições entre a política de subordinação buscada pelos imperialistas americanos e os povos do mundo e por outro lado as contradições que opõem a política de expansão mundial praticada pelo im perialismo americano e as outras potências imperialistas constituem o ponto de convergência das contradições no mundo depois da Segunda Guerra Mun dial PékinInformation 18 de março de 1963 As regiões da Ásia da África e da América Latina constituem o elo mais fraco do imperialismo a principal fonte de revolução mundial atual que ir rompe tempestuosamente ibid Portanto não cabe mais ao proletariado dos países ocidentais arrastar os povos oprimidos à luta mas ao contrário é a luta dos povos na zona das tempestades que determinará a causa revolucionária do proletariado mun dial Não reconhecendo isso os soviéticos servem ao neocolonialismo e são adeptos do socialreformismo antes de se tornarem adeptos do socialim perialismo pior ainda que o Império americano A NaçãoEstado 275 A guerra popular Mao Zedong A concepção maoista da luta mundial transpõe para o plano internacional um dos pontos centrais da teoria maoista da conquista do poder a saber o cerco das cidades pelo campo Ásia América do Europa Ásia Norte Ocidental CIDADES CAMPO América África Latina Essa visão ultraterceiromundista não sobreviverá a Lin Biao eliminado em 1971 Quanto a Mao Zedong4 antes de ser um teórico da guerra popu lar foi um prático quem não fez pesquisa não tem direito à palavra O maoismo surgiu de 30 anos de lutas revolucionárias na China cada etapa das quais trouxe seu ensinamento O primeiro período 192127 revelou a Mao o limite de uma estraté gia leninista de insurreição do proletariado urbano e a necessidade de mo bilizar prioritariamente os camponeses Ele publicou em 1926 Análise das classes na sociedade chinesa um texto que põe o acento nas capacidades re volucionárias do campesinato e cujas conclusões são rechaçadas pelo Par tido Comunista Chinês dirigido por Chen Duxiu Dois anos mais tarde o V Congresso do PCC recusou as teses defendidas por Mao em seu Informe sobre uma pesquisa acerca do movimento camponês de Hunan favoráveis às revoltas espontâneas das massas Mas o fracasso da insurreição operária de Xangai 1927 a virada do Kuomintang Partido Nacional do Povo anterior mente aliado do PCC confirmaram Mao em sua convicção de que devia se apoiar nas massas camponesas O segundo período 192737 ensinou a necessidade de construir um exército revolucionário A insurreição de 1927 terminou num massacre as tropas de Chiang Kaishek triunfaram sobre os comunistas 1934 e Mao criticou a ofensiva geral então desencadeada Ele organizou a retirada para 4 Mao Tsétung A transcrição dos caracteres chineses é hoje uniformizada de acordo com o sistema Pinyin pouco conhecido dos franceses e dos brasileiros História das ideias polfticas o noroeste seguido pela maioria dos combatentes dez mil quilômetros de uma Longa Marcha que se tornou lendária No final da mesma 1935 Mao quebrou o cerco do Kuomintang e assumiu o controle do PCC O terceiro período 193745 permite elaborar a concepção da guerra po pular prolongada Temse novamente uma frente comum entre comunistas e nacionalistas contra o invasor japonês Contudo Mao recusa a fusão das tropas e dos comandos com o objetivo de preservar as perspectivas revolu cionárias Disso resultam as múltiplas facetas da guerra maoista nacional aliança com a burguesia nacional inicialmente mobilizada con tra o imperialismo e por isso alinhada com a revolução revolucionária vanguarda confiada ao proletariado o que respeita pelo menos nas fórmulas a ortodoxia leninista popular apoio nas massas camponesas e nas bases rurais o que constitui a contribuição específica do maoismo e da revolução chinesa O quarto período 194549 vê o triunfo da revolução Depois da capitu lação dos japoneses Mao se recusa a formar um governo de união nacional com o Kuomintang e organiza a luta militar para a conquista do poder reto mada dos combates recuo do Exército Popular de Libertação contraofen siva proclamação da República Popular da China em 111 de outubro de 1949 em Pequim Em seu conjunto essa longa luta revolucionária cheia de reviravoltas levou Mao a ressaltar a originalidade da estratégia de guerra popular pro longada Primazia do político Mao novo Clausewitz recorda que a guerra é a continuação da política por outros meios mas uma continuação indispensá vel para garantir uma tomada revolucionária do poder A tarefa central e a forma suprema da revolução é a conquista do poder pela luta armada Esse princípio do marxismoleninismo é válido em toda parte mais ainda na China do que em outros países A necessidade da guerra não poderia implicar a subordinação do Partido O poder está na ponta do fuzil Essa célebre palavra de ordem possui uma dupla significação na estra tégia A NaçãoEstado 277 recurso indispensável à luta armada A experiência da luta de classes na época do imperialismo mostra que a classe operária e as massas trabalhadoras só podem vencer os proprietários fundiá rios e a burguesia armada com a ajuda dos fuzis subordinação do exército ao Partido O Partido manda nos fuzis Não se pode permitir jamais que os fuzis mandem no Partido Mao Ze dong Sobre a guerra popular prolongada 1938 Importância dos camponeses a China contava com menos de 3 milhões de operários mas com 500 milhões de camponeses e com dois milênios de tradição de lutas camponesas Disso resulta a constância da exaltação dos movimentos camponeses em Mao por motivos de eficiência revolucionária Eles quebrarão todas as cadeias e se lançarão na via de sua libertação Te mos de nos pôr à frente dos camponeses e dirigilos 1927 por motivos quase morais Durante anos não tivemos nada que se assemelhasse a um salário Tínha mos apenas nossa ração alimentar Agora entramos nas cidades E uma boa coisa Se não tivéssemos entrado nas cidades Chiang Kaisheck as ocuparia Mas foi também uma coisa ruim pois nosso Partido começou a se degradar Mao Intervenção no Pleno do Comitê Central do PCC abril de 1969 Guerra prolongada travada com o sentido do tempo O sinólogo Stuart Schram insiste nessa notável ponderação nesse sentido do possível em cada momento determinado Mao parle au peuple PUF 19n p34 A guerra é de longa duração e passa por várias fases 1 Sublevar as massas atear fogo à pradariâ mediante a mobilidade Quando o inimigo avança nós recuamos quando o inimigo para fustigamo lo quando o inimigo cansa atacamos quando o inimigo recua nós o perse guimos Desde esse primeiro estágio convém ter o sentido da contradição História das ideias políticas de dispersar as forças para sublevar as massas A guerra revolucionária é a guerra das massas populares só é possível fazêla mobilizando as massas apoiandose nelas Mao 1934 de concentrar as forças para enfrentar o inimigo Os combates de aniquila mento produzem imediatamente profundas repercussões no adversário qual quer que seja ele Vale mais aniquilar uma divisão do adversário do que pôr dez em fuga de empreender conjuntamente uma luta de guerrilha e uma estratégia de aniquilamento 2 Construção de um Exército Popular colocado sob a direção do PC que organiza uma sociedade nas zonas rurais libertadas O Exército Vermelho não se limita apenas às atividades militares Assume inclusive o estabelecimento das organizações do Partido O exército comba tente deve ser utilizado para uma dupla tarefa combater e produzir Paralelamente ao acento colocado no aniquilamento Mao insiste na de fensiva e na economia dos meios atacar inicialmente com forças dispersas em cada combate concentrar uma força superior à do inimigo jamais com bater quando a vitória não estiver garantida 3 Conquista das cidades a partir do campo das grandes cidades a partir das pequenas Defensiva consolidação contraofensiva sublevação das mas sas acumulação de forças guerra de longa duração cerco das cidades etc a concepção maoista não tem muito a ver com a insurreição bolchevique I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFI CA Zedong M Écrits militaires Pequim Ed em línguas estrangeiras 1964 La guerre révo lutionnaire Paris UGE col 10is 1965 Há várias edições brasileiras de obras de Mao Zedong O foquismo CastroGuevara Como o maoismo o guevarismo recusa ao mesmo tempo a coexistência pa cífica e o caminho pacífico Como Mao e Lin Biao Fidel Castro e Che Gue A NaçãoEstado 279 vara efetuam uma teorização da prática revolucionária cubana com a dife rença de que no último caso a distância em relação à ortodoxia soviética não é mascarada mas ao contrário exagerada Entre 1921 e 1949 os comunistas chineses tiveram o cuidado de não se chocar frontalmente com o grande ir mão soviético Entre 1953 e 1958 os comunistas cubanos não se preocuparam com isso Também aqui portanto a recordação das grandes etapas da con quista do poder pelos revolucionários cubanos é indispensável à inteligibili dade da teoria do foco ou seja da estratégia da guerra de guerrilha Cuba foi uma das últimas colônias espanholas na América Latina a se tornar independente depois de duas guerras de libertação 1868 e 1895 um desembarque de fuzileiros navais americanos impediu que a última con cluísse numa capitulação dos espanhóis em mãos dos rebeldes Os america nos conservaram assim um estreito controle sobre a ilha que se acentuou com o golpe de Estado de Fulgencio Batista em 10 de março de 1952 Foi contra essa ditadura que começou a epopeia castrista Primeira etapa Moncada 26 de julho de 1953 Um golpe de força es querdista militarmente fracassado o ataque ao quartel de Moncada na ex tremidade leste da ilha província de Oriente onde já haviam se iniciado as guerras de independência Cento e setenta insurrectos quase todos com menos de 30 anos Noventa e um mortos Castro preso depois obrigado a se exilar Em suma o fracasso Segunda etapa Granma 29 de novembro de 1956 Uma tentativa insur recional totalmente fracassada o desembarque de 83 revolucionários vindos do México a bordo do Granma A maioria morreu ou foi presa Somente uma dúzia escapou ao exército de Batista Janeiro de 1957 12 homens perdi dos nas montanhas de Oriente Janeiro de 1959 atravessaram a ilha de leste a oeste e tomaram Havana com vários milhares de rebeldes Terceira etapa a Sierra Maestra onde tudo se passou a montanha de Oriente onde se construiu o Exército Rebelde Romantismo e eficiência em cinco fases i Formação do núcleo guerrilheiro dezembro de 1956maio de 1957 O grupo sobrevive instalase 2 Conquista da Sierra junho de 1957novembro de 1957 O Exército Rebelde se eleva a uma centena de homens Castro confia uma segunda co luna a Che Guevara 3 Propagação da luta armada novembro de 1957março de 1958 Na pla nície os políticos estão divididos Na montanha o Exército Rebelde está unido e cresce Os rebeldes passam da guerra de guerrilha à guerra de colunas 280 História das ideias políticas 4 Fracasso da greve geral e revés abriljunho de 1958 Em 9 de abril o golpe decisivo fracassa o trabalho não para O fracasso leva a uma su bordinação maior do movimento urbano à Sierra Batista decide lançar uma contraofensiva contra ela 5 A conquista do país julho de 1958janeiro de 1959 O Exército Re belde expulsa o exército regular da Sierra instaura seu poder de fato em Oriente consolida suas alianças políticas os comunistas só aderirão em ou tubro e subleva a ilha A progressão militar se dá por colunas de través de leste para oeste e em espirais cerco das pequenas cidades pelos campos das capitais provinciais pelas cidades de Havana pelas províncias Em 5 de janeiro de 1959 uma greve geral abre a capital ao Exército Rebelde Os cas tristas chegam ao poder A partir dessa experiência dessa história e dessa geografia políticas fa bricase um modelo cubano com o objetivo de ser aplicado ao restante da América Latina A leitura geográfica ou seja dá nascimento a uma teorização política parcial que cobre apenas um as pecto da realidade a luta na montanha a guerra de guerrilha o Exército Rebelde mascarando um outro a luta nas cidades as greves os movimentos propriamente políticos e que nega que o sucesso da revolução castrista re sulte precisamente da articulação dos dois Para resumir as coisas de modo esquemático ver o quadro a seguir o modelo cubano mostra apenas a parte esquerda quando a revolução cubana na verdade abarca o conjunto A teoria do foco sistematizada por Régis Debray de acordo com Castro e que foi aplicada em 1967 por Che Guevara na Bolívia não simplifica as coi sas pelo simples prazer de valorizar o papel dos guerrilheiros da Sierra mas cumpre funções políticas precisas todas centradas em torno de um objetivo criar dois três vários Vietnãs desencadear a Revolução na América do Sul Para esse fim A NaçãoEstado Movimento armado no campo Guerra de guerrilha Exército rebelde Guerra de posições e movimentos Vitória militar Dirigente revolucionário guerrilheiro 281 Movimento político na cidade Propaganda Manifestações Sabotagens Frentes urbanas Greves de massa Greve geral O foquismo se opõe ao golpismo muito familiar aos latinoamericanos afasta o golpe de Estado recusa qualquer arbitragem do exército insiste na necessidade de destruir o aparelho militar do Estado O foquismo se opõe ao eleitoralismo pondo o acento na ação revolucioná ria ainda que desencadeada por um pequeno grupo O foquismo se opõe ao mito da greve geral que suprime o momento mili tar e afasta as massas camponesas da sublevação O foquismo se opõe aos partidos comunistas burocratizados imersos nas cidades essas incubadeiras mornas que infantilizam e aburguesam Ré gis Debray Révolution dans la révolution Ele dispensa o Partido substi tuindoo pelo Exército Rebelde e mais precisamente por seu comandante cuja pessoa basta para unificar o político e o militar O foquismo se opõe à expectativa passiva mostrando apenas os elemen tos novos da revolução cubana e antes de mais nada seu incrível volunta rismo que passaria por pura loucura se não tivesse triunfado Che Guevara resume assim as principais lições da experiência cubana i As forças populares podem ganhar uma guerra contra o exército regular 2 Não se deve esperar sempre que estejam reunidas todas as condições para fazer surgir a Revolução o foco insurrecional pode criálas 3 Na América subdesenvolvida o terreno fundamental da luta armada deve ser o campo História das ideias políticas I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFICAS Castro F Révolution Cubaine textos Maspero 1968 Che Guevara La guerre de guérilla 1960 ed francesa Maspero 1968 Debray R Révolution dans la révolution Maspero 1967 La guérilla du Che Le Seuil 1974 La critique des armes 1 e II Le Seuil 1974 O povo Na luta armada o povo já está presente É o grande presenteausente É em seu nome que se opera o distanciamento com relação à ortodoxia marxista a começar pelo deslocamento da cidade para os campos Mas é também em seu nome que emergem as críticas do foquisrno guerrilha urbana pregada por Carlos Marighela no Brasil luta armada cornbinadà proposta por Dou glas Bravo na Venezuela É ainda em seu nome que R Debray refuta suas próprias teses em 1974 o erro do foquisrno seria não indicar os elos entre a vanguarda clandestina e as massas populares Mas é para além da estratégia revolucionária que a NaçãoEstado precisa do povo Corno proclamar a própria independência diante de forças que a impe dem Corno consolidála diante dos que só a admitem corno independência formal Contra eles contra o Outro é preciso erguer o Si Mesmo o Si Mesmo torna o nome de Nação e reivindica urna forma política o Estado Então vem o Estado que prova ser Nação Mas a palavra remete a urna realidade de so ciedade civil cuja existência deve ao mesmo tempo ser inventada e masca rada pelo Estado inventála corno unà mascarála em suas dilacerações para conservála assim unà Urna nova categoria ideológica aparece então para permitir essa dupla operação de invenção e de camuflagem o Povo Independentemente das diferenças segundo os regimes e as sociedades diferenças que devem sempre ser conservadas na mente reencontrase as sim a proclamação da primazia dos fatores ideológicos embora nem por isso todos reivindiquem o populismo A primazia da ideologia Nkrumah Kadhafi Guevara Mao Na África negra a primazia da ideologia é encarregada de mitigar as defici ências da Nação A palavra ideologià assume um sentido positivo o debate só intervém para escolher a melhor ideologia Significativa a esse respeito A NaçãoEstado é a evolução do Senegal Num primeiro momento a ideologia da negritude se opõe às ideologias ocidentais como caminho para o Um em face dos Outros Tratase de escolher entre a ideologia da Negritude e as ideologias que na Eu ropa Ásia e na América estão a serviço dos imperialismos em luta pela domi nação do Mundo quer se trate do capitalismo liberal do socialismo demo crático ou do marxismoleninismo ao modo russo ou chinês Num segundo momento 1976 o mesmo Senghor restaura o multipar tidarismo mas limitado a quatro grandes correntes ideológicas com obriga ção de vincularse ao conservadorismo Movimento Democrático Senegalês Boubacar Gueye liberalismo Partido Democrático Senegalês Abdolaye Wade socialismo democrático Partido Socialista LS Senghor marxismo Partido Africano de Independência Majhemouth Diop Mais recentemente 1981 o multipartidarismo livre e desvinculado das ideologias foi estabelecido por Abdou Diouf sucessor designado por Sen ghor já que a unidade do país parece estar assegurada Esse caminho contudo não fez escola a primazia da ideologia e a cons tante referência ao Povo vão de mãos dadas na maioria dos casos com a conservação de um partido único A ideologia está acima de tudo o Partido levaa à prática As ideias devem servir como motor A revolução cultural deve preceder e preparar a Revolução política econômica e social Somente ela garantirá o sucesso do salto qualitativo e quantitativo no interior do regime Sékou Touré Guiné Além de se esforçar para promover atitudes e fins comuns a toda a sociedade a ideologia dominante é também a que decide sobre a forma que as instituições devem assumir Nkrumah i90972 Gana O Partido único então permite a equação Estado Povo A referência ao povo é quase inversamente proporcional à sua realidade Sabese que nas democracias ocidentais a nacionalização do poder foi no mais das vezes algo que se deu paralelamente com sua apropriação ainda que parcial pelos governados pelo povo As coisas não podem se dar assim nas sociedades dominadas História das ideias políticas Em primeiro lugar porque o povo não está constituído a nova reali dade estatal decorre de fronteiras artificiais herdadas da colonização 1878 ata de Berlim partilha da África ao sul do Saara entre as potências colonizadoras e em função da correlação de forças entre elas 1963 carta de Adis Abeba constitutiva da Organização da Unidade Afri cana que coloca o princípio da intangibilidade das fronteiras coloniais Os Estados cobrem realidades pluriétnicas que a sublimação do PartidoPovo tem o objetivo de negar e ou superar A União nacional feita para que a luta política seja posta em latência sic im plica que para o chefe de Estado o Partido Democrático do Gabão continua a ser o instrumento da política de unidade nacional AB Longo 1970 Em segundo lugar porque as tradições políticas africanas combinam se mal com a designação dos governantes por uma multidão de indivíduos indiferenciada mas parece ao mesmo tempo mais e menos democrática isto é mais direta do que representativa porém reduzida a entidades ligadas pela vida em comum as linhagens agrupamse no quadro de base que forma a aldeia as linhagens que veneram o mesmo ancestral e o mesmo totem for mam o clã os clãs que possuem uma língua e tradições comuns formam a tribo Em cada nível o poder é detido por um chefe cercado por uma as sembleia que reúne o conjunto dos membros do grupo reconhecidos como maduros por terem passado pelos ritos de iniciação O poder não é somente político mas social e religioso A própria ideia de sua distribuição parece portanto absurda o tribalismo pode certamente ser denunciado como um legado do imperialismo mas na verdade o precede e torna mais necessário o recurso à retórica do povo Nos países que reivindicam o Islã não é o povo propriamente dito que serve como referência ideológica para cimentar a unidade mas o Umma termo intraduzível como tal que é habitualmente transcrito como Comu nidade e algumas vezes como povo crente ou mesmo como nação O importante é captar a especificidade da noção e seu alcance consensual é sublinhar o que ele não é e o que ele é Repousando numa filiação religiosa o Umma reúne todos os muçulmanos Implica a obediência a Deus Aceita o poder de Deus Une a família muçulmana Exclui todos os não muçulmanos Não confere nenhum direito político Não atribui nenhum poder humano Negligencia as divisões políticas A partir desse fundo comum as utilizações políticas do Islã variam cf infra final deste capítulo de acordo com a orientação dos regimes A unidade poderá ser garantida por um monarca e se combinar com o multipartidarismo É o caso do Marrocos onde o califa engendrou o sultão e o sultão intitulase rei Em suma onde o Estado é dirigido por um zaïm chefe religioso militar e político comandante dos crentes Hassan II Se não é rei o chefe da comunidade Uma pode se apoiar num partido único como o Partido Socialista Desturiano na Tunísia Nosso sistema é fundado no partido único O Estado é uma emanação do partido único Burguiba 1970 Todo partido mesmo único pode finalmente ser suprimido para proclamar o governo somente do povo como o fez Kadhafi guia da revolução líbia A solução é que o povo seja o aparelho de governo mas a Lei da sociedade é o costume tradição ou a religião 286 História das ideias políticas é também uma arte de classe mais profundamente capitalista talvez do que a arte do século XX na qual transparece a angústia do homem alienado A eliminação progressiva do dinheiro afirmada na célebre controvérsia sobre os estímulos materiais aos quais Guevara opõe os estímulos ideológicos entu siasmo revolucionário participação na edificação do socialismo exemplaridade da vanguarda tudo isso para promover a visão do homem socialista A aceleração e radicalização da história As botas de sete léguas da revolu ção cubana podem e devem queimar as etapas e forçar a marcha dos eventos A consciência dos homens de vanguardà pode compensar um atraso das condições objetivas Compensar as lacunas da história forçar seu decurso esse voluntarismo revolucionário marca igualmente o maoismo Mao Zedong com a teoria das contradições inflete o marxismoleni nismo mediante uma valorização do papel das ideias Querendo recordar o caráter universal e geral das contradições Mao indica dois pontos essenciais Que as contradições se estendem à superestrutura a ponto algumas vezes de tornar o ideológico ou político algo essencial ou mesmo deter minante Decerto as forças produtivas a prática a base econômica desempenham em geral o papel principal determinante e quem o nega não é materialista Todavia em certas condições a teoria a superestrutura manifestamse por seu turno no papel principal e determinante Sobre a contradição 1937 Que as contradições subsistem no seio da sociedade socialista Mao especifica isso 20 anos depois no momento das Cem Flores Sobre a justa solução das contradições no seio do povo 1957 Podem mesmo existir contra dições entre as práticas burocráticas de certos funcionários do Estado e as massas Disso resulta o apelo à eclosão das críticas à liberdade de expressão à liberação das iniciativas individuais Disso se deduz decerto a legitimidade dos choques políticos o que à diferença da União Soviética do povo inteiro não implica considerar todo opositor como louco e aplicarlhe um trata mento psiquiátrico Mas seria errado e esse erro foi cometido concluir a partir disso sobre o caráter não repressivo do maoismo A linha durà chamada do Grande Salto à frente que sucedeu a aberturà das Cem Flo res insistia igualmente na ideologia A China é uma página branca que se oferece à inspiração de Mao para que ele nela caligrafe o poema inesperado A NaçãoEstado de sua revolução Simon Leys 1971 A revolução cultural desencadeada em 1966 levou a luta ideológica ao seu paroxismo ao mesmo tempo em que permitiu a Mao recobrar o controle do poder Dois ditados simbolizam na China o desacordo sobre a extensão do reino da ideologia vermelha o se gundo dos quais valeu a Deng Xiaoping ter sido afastado e depois reabili tado 19n eliminação do bando dos quatro Que importa que o trem chegue ou não no horário contanto que seja socia lista Que importa que o gato seja branco ou preto contanto que pegue o rato Populismos Todos os regimes revolucionários ou que se dizem tais reivindicam o povo e o socialismo o que não impede que as diferenças entre eles sejam consi deráveis Não é certo que sob esse aspecto a referência ao marxismoleni nismo trace a linha de demarcação fundamental E não é insignificante o fato de que a maioria dos Estados dominados quando pretende dar um conteúdo real à sua independência tenha necessidade da categoria povo O exemplo de Cuba atesta os limites da importância de uma simples re ferência ideológica ao marxismo Decerto é possível opor os primeiros anos da revolução cubana 195961 aos que se seguiram Nem eu nem o movimento são comunistas Fidel Castro 13 de janeiro de 1959 Serei marxistaleninista até o último dia de minha vida 2 de dezembro de 1961 Contudo independentemente do efeito de contraste acima provocado as diferenças são maiores entre a monodemocraciâ revolucionária da pri meira década e a ditadura do proletariado e portanto do Partido de tipo soviético institucionalizada nos anos 1970 Mas mesmo depois da normali zação o povo continua a ser um referente necessário O problema é que nos países não industrializados a matriz proletária do marxismo deve ser adap tada Já vimos como todos os desvios do maoismo em relação à ortodoxia visam a reintroduzir os camponeses no processo revolucionário Essa é a eficácia primeira da noção de povo Ela permite associar clas ses sociais normalmente antagônicas para criar uma nova unidade nacional Além disso como segunda função mas não das menores ela legitima uma relação direta entre o dirigente e as massas 288 História das ideias políticas Esses dois aspectos podem ser também encontrados no que na ausência de um termo melhor chamaremos de populismo de direità Ele promove uma integração da classe operária a um sistema dominado pela burguesia mas do qual a massa era anteriormente excluída Será essa a característica por exemplo do justicialismo de Juan Perón na Argentina mais quando de seu primeiro período de poder 194655 de resto do que quando do se gundo 197375 O discurso justicialista pronunciado de modo extremo por sua mulher Evita expressa o amor pelo povo Fui buscar no fundo do meu coração um sentimento fundamental que domina totalmente meu espírito e minha vida esse sentimento é a indignação diante da injustiça Meu sectarismo é uma reparação e uma compensação Durante um século os privilegiados exploraram a classe operária A justiça exige que durante um século os privilegiados sejam agora os trabalhadores Mutatis mutandis o socialismo árabe de Gamal Abdel Nasser incluise num populismo análogo mais radical porém temperado pela referência ao Islã e pela conservação parcial da propriedade privada dos meios de produção Não sou contra a propriedade privada mas contra a propriedade que explora as massas Em nossa sociedade socialista há lugar para todos os trabalhadores mas não para os milionários e os feudais Nasser discurso de 3 de outubro de 1961 A unidade nacional constituída pela aliança das forças populares que represen tam o povo trabalhador a saber os camponeses os operários os soldados as pessoas instruídas e o capitalismo nacional institui a União Socialista Árabe que constitui a autoridade que representa o povo artigo 32 da Proclamação Constitucional de 23 de março de 1964 No outro polo o populismo de esquerdà amplia ao campesinato e à burguesia nacional a conquista e o exercício do poder cuja ponta de lança só pode ser já que a Revolução impõe a classe operária mas que não poderia já que o subdesenvolvimento impõe chegar sozinha ao poder Disso resulta a atenção que já sublinhamos concedida por Mao aos camponeses o olho do camponês vê certo Disso resulta a sua teoria da ditadura democráticà que incorpora uma parte da burguesia ao povo A retórica AmigoInimigo simplista mas rica de eficácia política pode então funcionar plenamente tanto na ordem interna quanto na internacional A NaçãoEstado O povo a classe operária o campesinato a pequena burguesia urbana a burguesia nacional se opõe aos inimigos do povo aos cães de fila do imperialismo à classe dos proprietários fundiá rios e à burguesia burocrática Em chinês a palavra povo yen min é formada a partir de duas raízes a primeira significa homem a segunda as massas A etimologia corres ponde bastante bem à ambivalência do vocábulo povo na ideologia das Na çõesEstado revolucionárias onde se trata de apelar a menos que ao todo so cial porém a mais que somente às classes exploradas Stuart Schram assim vê na concepção maoista da ditadura democráticà um desejo de falar em nome da maioria esmagadora da população uma espécie de metamorfose da teoria da vontade geral O dirigente revolucionário retira sua legitimidade não tanto do fato de representar o povo mas do fato de servirlhe Servir ao povo de todo o coração sem desligarse das massas por um só ins tante partir em tudo dos interesses do povo e não dos interesses do indivíduo ou de um pequeno grupo é isso o que inspira nossos atos Citações do pre sidente Mao Tsétung Le Petit Livre Rouge Pequim Ed em línguas estrangei ras 1966 cap XVII Servir ao povo Segundo procedimentos diferentes o povo desempenha um papel idên tico em Cuba Foi ele que fez a Revolução Um dia o povo ergueuse contra a tirania um dia o povo uniuse e um dia o povo venceu mas essencialmente o povo operário o povo camponês o povo estudante E as diferentes forças se uniram como fios dágua provenientes das diferentes fontes e que se encontram num mesmo rio no grande rio da revolu ção Fidel Castro discurso de 22 de agosto de 1975 A identificação entre o processo revolucionário e o povo assume uma extrema importância já que justifica a recusa de instaurar um regime de mocrático fundado na disputa eleitoral Assim na Nicarágua o sandinismo vitorioso derrubada do ditador Somoza em 19 de julho de 1979 afastou em 1980 o recurso às eleições que havia sido anteriormente previsto Os prin cipais líderes da Revolução Daniel e Umberto Ortega argumentam sobre a inutilidade dos mecanismos da democracia burguesà pois o povo já es colheu a Frente Sandinista de Libertação Nacional quando se sublevou a seu lado contra a ditadura somozista 290 História das ideias políticas Finalmente o vaivém que se supõe permanente entre a vanguarda e o povo transcende a oposição entre democracia e ditadura Autoriza o uso do que o escritor argentino Borges chama de oximoro uma fórmula explosiva mente contraditória ditadura democrática ditadura do proletariado poder popular etc O poder do Partido fundase então sobre o que Mao chama de linha de massas O povo somente o povo é a força motriz o criador da história universal Mao 1945 em Citações op cit cap XI A linha de massas Recolher as ideias das massas concentrálas e leválas novamente às massas a fim de que elas as apliquem firmemente e chegar assim a elaborar justas ideias para o trabalho de direção esse é o método fundamental de direção Mao 1943 ibid A onipotência reconhecida ao povo pode então ir de mãos dadas com o poder absoluto de um grupo dirigente ou com o poder monocrático do chefe Em Cuba o socialismo desde o início da rebelião não podia ser outra coisa que não o fruto de um diálogo não institucionalizado de homem para homem entre a vanguarda e o povo Tudo isso sei muito bem não está de acordo com o esquema de Karl Marx Violamos as leis da história ao fazer nossa revo lução Será que não deveríamos fazêlo Fidel Castro março de 1968 citado por KS Karol Les guérrilleros au pouvoir Paris Laffont 1970 O religioso O fator religioso intervém na luta das NaçõesEstado para conquistar o estatuto estatal e pôr termo à colonização para afirmar a coesão da NaçãoEstado reconstituída O religioso preen che várias funções e opera de diversas maneiras comunitário por definição ele se impõe às consciências individuais e re úne os fiéis em torno de uma fé comum esboça uma geografia e uma história sagradas enraíza a língua e a men talidade num solo originário e num momento inicial a partir dos quais tudo advém e para os quais tudo retorna A NaçãoEstado inscrevese materialmente pontilha o calendário e portanto a memória o território a existência social Seu ritual ritma a vida as lembranças li gamse a suas cerimônias mais profundamente regula as famílias as relações de parentesco a edu cação dos filhos os sentimentos éticos que dele derivam políticas as religiões e em particular as religiões reveladas a judaica a cristã a muçulmana são tais na medida em que ensinam aos fiéis o modo pelo qual devem se comportar diante dos poderes O cristianismo está associado principalmente ao espaço dos Estados Nação constituídos há muito precisamente os que aperfeiçoaram a forma Estado precisamente os que empreenderam a colonização do mundo E se a religião cristã serviu de meio de penetração para a ideologia branca não existe exemplo inverso de NaçãoEstado cujos dirigentes se tenham servido do cristianismo para quebrar seus laços com as antigas metrópoles Isso não significa que os cristãos e suas Igrejas não possam jamais constituir contra poderes o Brasil militarizado e a Polônia sovietizada atestam o contrário mas simplesmente que ele não pode por causa de sua face ocidental servir à constituição das NaçõesEstado O budismo e o bramanismo em troca desempenharam um certo papel na história da China e da península indochinesa mas se deixarmos de lado a índia e a Birmânia não parecem ter intervindo diretamente nas lutas de libertação do século XX Podese mesmo perguntar se o budismo não terá ensinado a submissão e o afastamento dos combates políticos por serem de masiadamente bélicos Há 2500 anos que a pregação de um príncipe pouco importante do Nepal mar cou inumeráveis gerações do Oriente não fomentou nenhuma guerra e ensi nou aos homens a serenidade e a tolerância Citemos alguns textos dos livros canônicos O ódio jamais pode parar o ódio somente o amor pode parar o ódio essa lei é antiga Se numa batalha um homem vencesse mil homens enquanto um outro vencesse a si mesmo o maior vencedor seria o segundo Nenhum fogo pode igualar a paixão nenhum mal pode igualar o ódio ne nhum sofrimento é comparável ao provocado por essa vida carnal não há feli cidade maior do que a paz Jorge Luís Borges Questce que le boudhisme 1976 Gallimard 1979 col Idées 292 História das ideias políticas Restam então como exemplos o judaísmo e o islamismo diretamente implicados nos conflitos políticos do século XX pelo menos no que se refere à constituição de NaçõesEstado Do judaísmo ao sionismo Herzl Judaísmo e nacionalismo mantêm relações tão particulares que a termino logia habitual não é conveniente para o caso O Estado de Israel complica o problema ao mesmo tempo em que o exacerba já que a questão sionista duplica a questão judaica Na origem uma aberração a saber a sobrevivên cia da comunidade judaica embora toda a sua história objetivà se encami nhasse no sentido do desaparecimento dela Antes de evocar as controvérsias sobre a relação entre judaísmo e Estado de Israel é preciso inicialmente in vestigar a estranha relação entre a religião judaica e uma certa ausência de Estado É preciso então insistir no fato de que a primeira versão do mono teísmo possui dois elementos essenciais muito específicos o formalismo e o messianismo O formalismo judaico é original no fato de que leva muito mais a uma moral da Lei do que a uma moral da Fé para retomar a distinção de Blandine BarretKriegel A religião judaica supõe que a cidade de Deus tem uma vocação terrena sem esperar o juízo final a ética comunitária deve ser preser vada a identidade judaica reside no res peito pela Lei pelos valores aceitos por todos e para todos e muito mais do que a salvação indivi dual prometida não na afirmação da Fé na simples crença em Deus e em sua Igreja Tu tu perseguirás a justiça Deuterônomo IV 8 Moral da Lei lei e moral direito e religião vão de mãos dadas e a comu nidade judaica observa preceitos precisos em matéria de legislação familiar socioeconômica política e cultural e até regras alimentares ou profiláticas detalhadas O messianismo judaico é igualmente específico O Deus dos judeus é o que e Jesus Cristo não é seu Messias O Messias virá mas na verdade ele não vem e não poderia receber uma encarnação terrestre É a Espera contra toda espera a recusa de toda consolação no Além o ancoradouro da espe A NaçãoEstado 293 rança colocado na vida O povo eleito portanto não deve ser interpretado como a pretensão a uma superioridade intrínseca sobre os outros homens O povo só é eleito pela liberação de todos os homens seu particularismo é universalismo a redenção de Israel é a salvação da humanidade o retorno à Terra Prometida equivale a uma promessa de terra para todos da vitória do Bem a vitória de Jeová o reino da justiça Tudo poderia ficar nisso não fosse a história a começar pelo perfeito su cesso e pelo total fracasso da assimilação Do século XVII ao século XIX os judeus do Ocidente aderiram à filosofia das Luzes e defenderam o processo de emancipação Numerosos foram os judeus que quiseram tornarse cida dãos e portanto assimilarse ao mesmo tempo em que simetricamente a lógica do EstadoNação e da modernidade tende à anulação da especifici dade judaica A Constituinte quando da Revolução Francesa revoga todos os adiamentos reservas exceções inseridos nos decretos anterio res relativos aos indivíduos judeus que fizeram profissão de fé cívica que será encarada como uma renúncia a todos os privilégios e exceções introduzidas an teriormente em favor deles A assimilação só teve êxito parcial porque renasceu o antissemitismo Desde o fim do século XIX o caso Dreyfus revelou quanto a sociedade fran cesa é antissemita Desde a invasão alemã o regime de Vichy recordou an tecipando as exigências nazistas o antissemitismo da direita francesa e por exemplo decretou um estatuto dos judeus já em 3 de outubro de 1940 O Estado francês decide excluir os judeus dos postos de direção no exército na função pública no ensino na imprensa no rádio no teatro e no cinema e introduzir cotas para eles nas profissões liberais Permite que 7 5000 judeus sejam deportados entre os quais no verão de 1942 crianças mulheres e ve lhos o que impede crer que se se tratasse de uma simples deportação de trabalho e dos quais somente 2500 escaparam dos campos de extermínio Na Europa do Leste o advento do socialismo não impediu a persistência do antissemitismo por vezes encorajado pelos dirigentes Por seu lado Lê nin inicialmente favorável às reivindicações autonomistas pronunciouse com virulência em favor da assimilação A cultura nacional judaica eis a palavra de ordem dos rabinos e dos burgue ses Quem formular direta ou indiretamente a palavra de ordem da cultura nacional judaica quaisquer que sejam suas boas intenções é um inimigo do proletariado partidário do que é antigo citado por Annie Kriegel Les Juifs et le monde moderne Le Seuil 1977 294 História das ideias políticas A persistência no Leste como no Ocidente do antissemitismo contri buiu para o advento do sionismo político Em 1896 Theodor Herzl escritor húngaro publicou O Estado ju daico Procura de uma solução moderna para a questão judaica Um ano mais tarde reuniu em Basileia o congresso constitutivo da Organização Sionista Mundial nascera o sionismo Herzl pregava a criação de um Estado judaico a partir da constatação do fracasso da assimilação Por toda parte tentamos lealmente nos fundir com as coletividades nacionais que nos cercavam salvaguardando apenas a fé de nossos pais Inutilmente so mos patriotas fiéis até mesmo em certos países de exuberantes patriotas inutil mente aceitamos os mesmos sacrifícios em dinheiro e sangue que nossos com patriotas inutilmente nos esforçamos para elevar a glória de nossas respectivas pátrias no domínio das artes e das ciências assim como para aumentar suas riquezas através do comércio e da troca Os povos entre os quais vivem os judeus são sem exceção aberta ou enver gonhadamente antissemitas Portanto é certamente o antissemitismo que impõe o sionismo o rea grupamento do povo judeu num território com vistas a nele construir um Estado judeu Somos um povo uno ainda que sejamos um povo apesar de nós A Palestina continua a ser nossa pátria histórica inesquecível Seu simples nome constituiria um grito de alinhamento de irresistível poder de atração para nosso povo Quanto aos lugares sagrados da cristandade poderíamos concor dar uma forma de extraterritorialidade Formaríamos a guarda de honra em torno dos Lugares Sagrados garantindo com nossa própria existência o cum primento desse dever Essa guarda de honra simbolizaria para nós a solução da questão judaica depois de dezoito séculos de cruéis sofrimentos No projeto de Theodor Herzl o Estado de Israel quer se situe na Pa lestina como seria desejável ou em outra parte se for preciso deverá ser um Estado constitucional não ditatorial que sirva como modelo Herzl imagina uma República aristocráticà um governo dos melhores recusando qualquer solução teocrática Se nossa fé cria nossa unidade a ciência nos torna livres Por conseguinte não admitimos que se acentuem as veleidades teocráticas de nossos chefes religio A NaçãoEstado 295 sos Saberemos mantêlos em seus templos assim como manteremos em suas casernas nossos soldados de carreira As ideias de Herzl foram vigorosamente contestadas no próprio seio da comunidade judaica Seriam necessários os campos de extermínio nazistas para suspender muitas restrições mas não para afastar a resistência árabe subestimada pelo fundador do sionismo Mesmo com esses alguns milhões de cadáveres a mais a comunidade religiosa judaica não se tornou unânime alguns criticaram esse pequeno retorno em vez de um grande retorno Os judeus foram coagidos ao Estado Não se terá operado uma inversão pela qual o Estado já não é o instrumento do sionismo mas o sionismo o instru mento do Estado Nesse caso o judaísmo perderia sua especificidade I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFI CAS Eisenberg J Une histoire des Juifs CAL 1970 Poche Herzl T IÉtat juif 1896 Jerusalém 1954 Poliakov L Histoire de lantisémitisme CalmannLévy 1977 Do Islã ao islamismo Afghani Khomeini Kadhai A importância da religião manifestase de imediato nas dificuldades termi nológicas As confusões que frequentemente se estabelecem entre muçulma nos e árabes entre o islã e o mundo árabe decorrem precisamente do papel motor da religião na civilização árabe Isso não impede que a maioria dos muçulmanos não seja árabe e que numerosos árabes não sejam muçulma nos o que implica a necessidade de recordar as definições Os árabes eram originariamente um conjunto de povos que viviam na Arábia possuindo uma língua e cultura comuns Nesse sentido os árabes existem pelo menos desde nove séculos antes de Cristo e quinze séculos antes de Maomé sempre nesse sentido estrito existem hoje menos de 30 mi lhões de árabes puros Foi com Maomé 570632 fundador da religião muçulmana islã que o religioso e o político se imbricaram já que foi em nome do islã e pelo islã que os árabes efetuaram suas grandes conquistas dos séculos VI e VIII Em 750 eles dominavam regiões que se estendiam dos Pireneus aos portos da China História das ideias políticas Os árabes designam hoje um conjunto de homens que reconhecemse como tais árabes puros arabizados arabófonos consideram a língua árabe sua língua natural julgam pertencer a uma só nação a nação árabe Nesse sentido havia em 1980 cerca de 150 milhões de árabes Os muçulmanos são os adeptos da religião islâmica da qual Maomé Muhammad ou Mahommed em árabe é o profeta Muçulmano é uma tra dução do árabe moslem que significa crente fiel O termo é estritamente si nônimo de maometano hoje em desuso Em sentido estrito e com minúscula islã é o nome dessa religião dos muçulmanos palavra árabe que significa paz superior piedade divina Por extensão e com uma maiúscula Islã designa a comunidade dos po vos que professam a religião muçulmana o islã e a civilização que com ela se relaciona Havia em 1980 cerca de 550 milhões de muçulmanos Portanto convém distinguir vários tipos de situação i Indivíduos árabes mas não muçulmanos sempre existiram judeus cristãos ou ateus exemplos no Líbano ou em Israel 2 Países muçulmanos mas não árabes cujo Estado é laico Turquia depois da proclamação da República por Mus tafa Kemal em 1923 Senegal Mali Afeganistão cujo Estado é isldmico Somália Paquistão depois de 1978 Irã desde a Re volução de 1979 etc 3 Países árabes e muçulmanos principalmente na África do Norte e mais ainda no Oriente Próximo cujo Estado é laico embora em alguns os dirigentes se refiram ao Islã Egito Sudão Kuwait Bahrein Qatar Emirados Árabes Unidos Tunísia Argélia Sudão enquanto outros pregam um laicismo mais radical Ira que Síria Iêmen do Sul cujo Estado é islc1mico Arábia Saudita Iêmen do Norte Omã Líbia Mar rocos e com contestações sobre seu caráter árabe Mauritânia Essas distinções todavia não devem ocultar a imbricação entre o fato linguístico árabe e o fato religioso islâmico O alcance político do islã reside em primeiro lugar nessa realidade histórica ele serviu como vetor para o expansionismo árabe e como núcleo para uma civilização Um traço A NaçãoEstado 297 singular da religião muçulmana desempenha aqui um papel determinante O Corão o texto da revelação é a própria palavra de Deus ditada ao profeta Entre 612 e 632 Deus transmitiu suas palavras ao último de seus profetas Muhammad Maomé 570632 Disso resultou o Livro composto por 114 suratas ou capítulos divididos por sua vez em versículos Em outras pala vras a doutrina religiosa social e política do islã é enunciada pelo próprio Alá ela é sagrada como é sagrada a língua árabe que a expressa Portanto o programa do islã se identifica com uma civilização árabe conquistadora Comporta ao mesmo tempo uma purificação política e mo ral Muhammad em nome de Deus denuncia a decadência das tribos árabes que perderam sua frugalidade e sua honra passadas sacrificadas ao culto do dinheiro à desigualdade à corrupção O islã exalta assim a renovação árabe exaltação que lhe permite ser as sociado às lutas de libertação O ideal muçulmano assim foi contraposto sucessivamente à dominação turca e ao colonizador europeu A relação entre o Império Otomano e o islamismo é ambivalente foi a Turquia que garantiu do século XI ao século XVI a unidade do mundo mu çulmano graças ao seu império centralizado mas essa unidade se operou em detrimento do antigo Império Árabe que precisamente o islã soubera constituir contra o Império Bizantino e que atingira o seu apogeu entre os séculos IX e X Assim um dos primeiros levantamentos árabes contra a po tência turca se fez em nome do islã O waabismo do nome do seu fundador Muhammad ibn 1bdalWahhab 170392 pregava na Arábia o retomo à pureza do islã Provocou uma insurreição vitoriosa nas cidades sagradas Meca e Medina que só será derrotada ao cabo de uma guerra de sete anos 1818 No final do século XIX foi igualmente em nome do retorno a um islã puro que Abd alRahman alKawâkibi 18491902 exaltou o nacionalismo árabe cujo renascimento deveria passar pela regeneração do califado árabe Instituiçãochave do islã o califado aparece como igualmente ambiva lente teocrático porque o califa é sucessor do profeta lugartenente de Deus e o Livro Sagrado lhe impõe obediência Quem obedece ao profeta obedece a Deus Corão IV 80 democrático porque o califa deve ser designado ou pelo menos aceito pela comunidade dos crentes o Umma Somente o povo reunido diz o Corão está certamente de posse da verdade História das ideias políticas Desse modo o acento pode ser colocado conforme as circunstâncias e as forças sociais envolvidas na submissão ou na reconstituição da comu nidade A purificação política e moral permite também se opor à dominação eu ropeia e o islã cumpriu essa função mais no Oriente Próximo de resto do que na África do Norte Sabese que a penetração europeia foi inicialmente comercial e começou desde o século XVI O panislamismo só apareceu no final do século XIX em face da colonização propriamente dita 1830 con quista da Argélia pela França 1839 ocupação de Aden pela Inglaterra 1882 ocupação do Egito Gamal adDin Afghani 183997 um dos fundadores do panislamismo preparou esse deslocamento da luta contra o Império Otomano para a luta contra os ocidentais mas essa dualidade de adversários dividiu precisamente os movimentos islâmicos já que à divisão entre reli giosos integristas e muçulmanos modernistas superpôsse a opção entre o apoio aos turcos contra os ocidentais ou mais raramente o inverso e o combate contra todos os estrangeiros Nem no século XIX nem hoje a invocação do islã pode ser reduzida a uma só concepção política Podemos opor ao preço de algumas simplifica ções pelo menos dois polos 1 Um islã ocidentalizado no qual a religião muçulmana deve permitir a modernização política e econômica no qual a referência ao Corão elimina todos os seus arcaísmos e rigorismos Essa orientação dá lugar a duas variantes Liberal quando a ocidentalização é concebida como uma moderni zação econômica que se inspira no esquema capitalista Essa corrente pode defender uma monarquia constitucional foi o destino do Istiqlal partido da independência animado pelo marroquino Allal alFassi que se tornou o principal sustentáculo de Muhammad V depois Hassan II ou uma repú blica como no Egito de Anwar el Sadat Socialista ou socializante quando o acento é posto sobre a busca de um modelo de desenvolvimento redistributivo por exemplo no Marrocos a União Nacional das Forças Populares cisão de esquerda do Istiqlal animado em 1959 por Mehdi Ben Barka ou ainda o Egito de Gamal Abdel Nasser 191870 e o que frequentemente ocorre ao mesmo tempo a afirmação de um nacionalismo árabe mais laico do que islâmico é o caso do Baas ou Partido Socialista da Ressurreição Árabe cujos dois ramos rivais exercem o poder desde 1963 na Síria e desde 1968 no Iraque Mesmo nesse último caso a referência ao islã não desaparece completamente já que na Síria A NaçãoEstado 299 e também na Argélia a Constituição reserva a detenção do poder supremo a um muçulmano 2 Um islã integrista para o qual o retorno ao Corão não deve ser objeto de nenhuma modernização mas levar até seu termo a purificação moral e po lítica Esse polo rigorista é também terceiromundistà o que mostra como não é possível compreendêlo com categorias políticas do tipo direitaes querdà Ele conduz ao mesmo tempo ao ultraconservadorismo religioso e por vezes social e à mais radical rejeição do Ocidente satânico e corrupto É o caso da Irmandade Muçulmana associação criada no Egito em 1928 pelo xeque Hassan alBanna para concorrer com o Partido Wadf criado dez anos antes por nacionalistas considerados excessivamente ocidentalizados É o caso a partir de 1979 do Irã onde a revolução que derrubou a di tadura do xá Muhammad Reza Pahlavi é animada pelos líderes religiosos xiitas dirigidos pelo aiatolá Ruhollah Khomeini e cuja legitimidade decorre exclusivamente do islã O xiismo confere uma autoridade talvez maior ainda aos religiosos do que o sunismo islã dominante do qual ele se separou quando Ali genro do profeta Maomé foi afastado do califado em 657 O xiismo com efeito distinguese do sunismo pela importância atribuída à razão na interpretação dos textos pelas gnoses do Corão com o objetivo de revelar sentidos ocultos pela espera do retorno antes da ressurreição e do juízo final pela atribuição ao imã aiatolá supremo da legitimidade absoluta en quanto descendente do profeta e depositário do sentido real do Corão O imã portanto é superior a qualquer outro poder um poder tempo ral que contradiga o chefe da comunidade religiosa é por esse simples fato usurpador Uma hierarquia religiosa extremamente poderosa desenvolveuse com base nesses princípios e manifestou várias vezes sua potência contra o es trangeiro 1826 desencadeamento do jihad guerra santa contra a Rús sia tzarista 1889 greve dos fumantes desencadeada pelo aiatolá Chirazi até a denúncia da concessão do tabaco persa a uma sociedade inglesa 195053 apoio a Mossadegh em favor da nacionalização do petróleo 1979 derrubada do xá Khomeini restaura o despotismo teocrático do islã Todo o povo deve ser islâmico é preciso unidade de opinião unidade de expressão unidade de ação 300 História das ideias políticas Obedeçam a Deus e aos que dentre vocês detêm a autoridade di vina O único governo aceito por Deus no dia da ressurreição deve ser organizado segundo as leis divinas e isso só é possível com o controle dos religiosos Disso resulta que o governo islâmico não é um governo cons titucional onde as leis sejam subordinadas à aprovação das pessoas ou da ma1ona Finalmente parece ser essa a inspiração do coronel líbio Muammar alKadhafi ainda que esse ponto seja muito controverso pois a revolução líbia agrupa elementos muito díspares Ela começa pela derrubada de uma monarquia islâmica tradicional 1969 e empreende um caminho nasserista Mas a República líbia restabelece o código penal da charia a lei islâmica que resulta do Corão Exemplos Os homens têm autoridade sobre as mulheres Censurem aquelas de quem vocês temem a infidelidade releguemnas em quartos isolados e batam nelas Mas não continuem a recriminálas se elas lhes obedecerem Deus é supremo e grande Surata IV 34 Cortem as mãos do ladrão e da ladra será uma retribuição pelo que eles cometeram e um castigo de Deus Deus é poderoso e justo Surata V 38 Sob outros aspectos a revolução líbia parece ligarse mais ao islamismo reformista inspiração rousseauniana do Livro Verde advento proclamado em 19n da era das massas dissolução do partido único enquanto partido e da República Árabe Líbia enquanto Estado nascimento do poder das massas Jamahir e da ahahiriya Árabe Libia Popular e Socialista referência apenas ao Corão e recusa da tradição a Sunna enquanto fonte do direito pers pectiva da abolição do salariato e supressão imediata de qualquer forma de aluguel a começar pela dos apartamentos etc No conjunto o gaddha fismo kaddhafismo ou quadhdhâfismo mistura o islamismo o socialismo terceiromundista e a democracia direta para levar a um discurso sincrético e a um poder que por ser qualificado de popular nem por isso deixa de pos suir virtualidades totalitárias A NaçãoEstado 301 O exemplo líbio atesta os limites da distinção integrismomodernismo ao mesmo tempo em que mostra que as combinações de ambos não se si tuam necessariamente emsobre uma posição intermediária mas podem misturar os extremismos Finalmente ele revela que as referências ao islã em geral e ao povo em geral são suscetíveis de acumular as abstrações para manter agrupada a NaçãoEstado Para de imediato sacralizar o ca ráter arbitrário de uma política incapaz de exibir no presente as provas de sua validade Marx pensava em 1843 que a crítica da religião estava no es sencial concluídà Enganavase redondamente A crítica da religião deve ser constantemente retomada nem mais nem menos que a crítica do Estado I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFICÁS Berque J Les Arabes dhier à demain Le Seuil 1960 Carré O La légitimation islamique des socialismes arabes Presses de la FNSP 1979 Gardet L Les Hommes de lIslam Hachette 1977 O Corão ed francesa Gallimard 1980 2 tomos col Folio Pouvoirs n2 12 Les régimes islamiques PUF 1980 Rodinson M Mahommet Le Seuil 1968 col Politiques A expressão EstadoCientista corresponde a um dado característico das sociedades contemporâneas a convivência entre Estado e a ciência que institui uma ordem singular e radicalmente nova Por um lado as atividades científicas assumem uma crescente importância até se tornarem uma questão de Estado Saber e poder se articulam e o seu vínculo engendra uma nova mentalidade uma nova sacralidade Por outro lado as chamadas sociedades pósindustriais tornamse tão complexas que são obrigadas a se pensar a se compreender a fim de se governarem É preciso inventarlhes uma sociologia e encontrar uma ciência da política Uma ciência da sociedade Ciência e sociedade O EstadoCientista começa com a reconciliação da ciência e da indústria O capitalismo exige que a técnica abandone o domínio da fabricação artesanal e que a ciência deixe de ser especulativa para descer à terra Não se trata mais de opor quem tem uma profissão a quem tem conhecimento de opor saber e poder Nos séculos XVII e XVIII ainda se perpetua a separação entre O EstadoCientista 303 conhecimento se estende à livre investigação científica e a ciência se torna ex perimental Nos séculos XIX e XX organizase progressivamente a fusão entre a ciência e a sociedade ambas visando à dominação da natureza Estabelece se uma continuidade entre os cultores da ciência pura e os engenheiros da ciência aplicada entre as leis descobertas pelos primeiros e os aparelhos in ventados pelos segundos Não se trata de uma cumplicidade política na qual físicos e capitalistas se dariam a mão mas de evoluções complexas e complementares de uma transformação concomitante das práticas científicas e dos estatutos da in dústria Até a Primeira Guerra Mundial essa convergência se fará fora do Estado contentandose com sua episódica tutela A partir dos anos 1920 o Estado se torna o organizador do par saberpoder Ele distribui o dinheiro define os segredos cimenta as hierarquias A ciência e a produção formam uma coisa só pois é única a cadeia que parte dos laboratórios do Massachu setts Institute of Technology e leva às fábricas de Hong Kong a cadeia que produz submarinos nucleares ou a ração para cães Uma transformação dessa amplitude passava por uma revisão radical da ideia de conhecimento Do mesmo modo como a revolução copérnicoga lileiana fez nascer a física moderna e essa ciência foi parte decisiva da revo lução industrial assim também foi indispensável transformar novamente a terra em pátria do saber e orientar o conhecimento para a inteligibilidade do mundo real Como dominar a natureza sem conhecêla Ou melhor conhe cer é dominar é fazer com que desapareça o mistério do objeto é entregálo à vontade dos homens que poderão transformálo O desenvolvimento das ciências sociais portanto processase em liga ção com o do Estado industrial Essa é uma primeira razão para abordar so ciólogos e politólogos numa história das ideias políticas Mais diretamente os cientistas não se libertarão nunca apesar do que por vezes afirmam de uma pretensão política Eles querem e vão fornecer um instrumento à polí tica vão extrair lições da observação social vão oferecer uma técnica cientí fica para o governo dos homens A ideia consiste decerto em formular uma ciência da sociedade contra as filosofias da história Aqui o empirismo triunfa e a sociologia toma corpo como disciplina de observação Mas se trata também de elaborar uma polí tica racional para que desmontar as engrenagens das sociedades políticas se não para fazer com que a máquina funcione melhor Acrescentemos que se a sociologia nasce com a industrialização há razão para sublinhar que ela se liga à Revolução Francesa esse evento tão radical quanto surpreendente depois do qual o Estado busca novos valores e os governantes tentam encontrar certezas que se sustentem Já que a subversão social é possível a ciência social tornase necessária direto Ela é política por seu excesso de neutralidade que toma a sociedade como um todo préconstituído O racionalismo de observação adotado por Durkheim evita certamente a superficialidade do empirismo ou os a priori da filosofia da história Mas definindo a sociedade como uma consciência coletiva pretendendo explicar o todo social Durkheim explica a vida coletiva tal como ela existe explicaa até legitimála Empréstimos a sociedade industrial sua coesão invocando sua totalidade Propõe assim sua estabilidade e subestima os conflitos que não são anomias casos patológicos 306 História das ideias políticas liza e busca uma finalidade E essas ações têm lugar numa sociedade ou seja numa cultura Como decodificar esse contexto Buscando o sistema de valo res adotado pela sociedade a fim de compreender por exemplo como um protestante inglês do século XVII podia ser levado a comprar bens e a fazê los frutificar Weber pôde então escrever sobre A ética protestante e o espírito do ca pitalismo explicar o aparecimento do capitalismo europeu e ligálo à con cepção calvinista do mundo O puritanismo proíbe o homem de conhecer os decretos de Deus mas o obriga a engrandecer seu Reino cá embaixo O trabalho então confirma a fé dos predestinados Ele é oração A organização racional do trabalho e a acumulação do capital enriquecem a vida humana não porque proporcionam dinheiro ao homem mas por lhe provarem que ele é um eleito de Deus Por conseguinte o capitalismo não nasceu apenas quando um capital foi acumulado quando ocorreram transformações técnicas e quando uma classe tomou consciência de seu interesse econômico Nasceu quando os ho mens o desejaram quando homens conceberam o mundo diferentemente e quando o submeteram a essa nova concepção Para confirmar a validade de sua interpretação Max Weber sublinha que a China pôde conhecer acumulação de capital e revolução técnica sem que lá nascesse a revolução industrial faltava a ética suscetível de mover o con junto Todavia seria abusivo concluir que Max Weber opõe ao Econômico de Marx um Religioso que determinaria sempre o curso da história Ele se contenta em revelar uma configuração singular na qual o fator religioso teve essa primazia Para além da gênese do capitalismo Max Weber pôs a nu a dimensão do político no Estado O andamento de sua investigação consiste então em cons truir categorias abstratas que ajudem a captar sociedades concretas quando essas são confrontadas com tais categorias O sociólogo imagina assim dois tipos de sociedade dois modelos que enquanto tais não existem nunca mas oferecem pontos de apoio a comunidade Gemeinschaft na qual os indivíduos são fortemente integrados no todo social e atuam se gundo a tradição e os dados afetivos de natureza religiosa e a sociedade Gesellschaft à qual os participantes aderem calculando seus interesses mútuos e na qual atuam com o objetivo de obter os acordos mais vantajosos O EstadoCientista A Gesellschaft tornase agrupamento quando um contrato explícito une seus membros empreendimento quando sua finalidade é determinada de modo racional instituição se o empreendimento puder impor aos membros seus comportamentos mediante decretos ou leis Qualquer que seja sua racionalização a ordem política permanece mar cada pela dualidade entre a tendência ao conflito e a tendência à integração Ela se caracteriza pela emergência da potência a Herrschaft ou dominação pela qual dominantes e dominados constituemse em grupo político O Es tado então é essa instituição que exerce a dominação no espaço um territó rio e no tempo a história esse monopólio da violência física legítima Uma vez estabelecida essa especificidade do político e restabelecida a evidência em virtude da qual o Estado exige obediência Max Weber elabora uma tipologia da dominação Ele distingue o poder carismático no qual a legitimidade remete a uma transcendência a um princípio com o qual o líder mantém uma relação privilegiada O líder carismático detém sozi nho a autoridade seus fiéis não podem receber senão delegações excepcionais Exemplo o bonapartismo o poder tradicional cuja legitimidade é fundada no peso do passado e em sua aceitação o qual dita as regras particulares Os titulares da autoridade devem obediência pessoal a seus superiores O poder deles é arbitrário Exemplo as monarquias absolutas o poder racional A legitimidade é fundada num corpo de regras legais de regras gerais Os ti tulares da autoridade estão limitados a uma esfera definida de competência O poder deles é estabelecido pelo direito Exemplo os Estados burocráticos Qual é a lição política desse trabalho Max Weber não formula nenhuma Ele se atém ao corte de princípio entre a reflexão científica que anuncia ape nas juízos de fato e a atividade política que fabrica ou reproduz valores As conclusões científicas não induzem a nenhum valor e ao contrário o esta belecimento das verdades deve repudiar todo valor Apesar dessa separação entre o cientista e o político o acento que o sociólogo alemão coloca na uni versalidade da burocracia no Estado moderno e portanto implicitamente no caráter secundário das oposições capitalismosocialismo ou ditadurade 308 História das ideias políticas mocracia não podem deixar de ter efeitos políticos As perspectivas traça das por suas análises tendem a privilegiar bem mais o melhoramento da so ciedade burocrática do que o advento de uma impossível democracia Todavia não é simples resumir as ideias políticas de Max Weber Ou melhor seria simplista utilizar suas formulações sobre o chefe carismático para fazer dele um hitleriano precoce ou referirse à Ética protestante para considerálo um antimarxista radical E de resto não importa saber se Max Weber era antimarxista ou amarxista ou se teria ficado fascinado ou horro rizado com Hitler Mais segura revelase sua desesperança em face da socie dade burocrática que elimina o indivíduo o apelo secreto de Weber a reen contrar o sagrado Max Weber foi o primeiro a compreender a sociedade pósindustrial e a ver como ela perdeu a dimensão religiosa de suas origens para não funcionar senão segundo sua própria gravidade Máquina vazia que gira em torno de si mesma ela abandona a cultura e se submete a uma racionalização extre mada que esmaga todos os valores E Weber não crê que as sociedades hu manas possam progredir sem valores contentandose com a verdade prática não crê que elas possam avançar sem um Deus É aqui que sua visão aparece radicalmente oposta ao desafio marxista Ele interpela o EstadoCientista excessivamente cientista para que ele se salve por meio de novos valores e se eleve através de novos heróis I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFI CAS Aron R Les étapes de la pensée sociologique Gallimard 1967 Weber M A ética protestante e o espfrito do capitalismo 19041905 ed brasileira Pio neira São Paulo 1967 A política e a ciência como vocação 1919 ed brasileira in Ensaios de sociologia ed por HansGerth e C Wright Mills Zahar Editores Rio de Janeiro sd p97183 Economia e sociedade 1922 ed brasileira parcial Ensaios de Sociologia cit Vilfredo Pareto ou a propaganda pelo fato Como todos os estudiosos do social Pareto pretende ser científico e acredita obter isso por meio de um ultrapositivismo A ciência é apenas lógicoexpe rimental o observador é neutro somente os fatos é que contam Constituir um conceito é inútil ou perigoso pretender estabelecer núcleos de inteligi O EstadoCientista 309 bilidade que só se justificariam pela pura racionalidade corresponde a uma ilusão filosófica A observação científica e as opções políticas de resto não teriam nenhuma relação entre si Uma mesma doutrina pode ser recusada do ponto de vista experimental e admitida do ponto de vista da utilidade social ou viceversa Portanto restam os fatos que o pesquisador irá agrupar Conhecese a célebre imagem do bêbado que perdeu sua chave numa rua e passou a buscá la debaixo do poste sob o pretexto de que aí havia luz O empirismo radical de Pareto cede a essa embriaguez a rua não existe a sociedade não existe como objeto há apenas fatos sociais zonas de luz nas quais o sociólogo pode operar aproximações fazer triagens propor classificações Nesse jogo de classificação indispensável para passar à posteridade Pareto brilha não sem talento Tudo parte da distinção entre ações lógi cas e ações não lógicas essas últimas em princípio são mais raras dada a paixão raciocinante do homem mas uma ação não lógica pode consistir em introduzir uma lógica onde não existe nenhuma onde meios e fins se contradizem Para classificar as ações convém conhecer os principais instintos do ho mem o que Pareto chama de resíduos Ele distingue dois instintos funda mentais o instinto de combinação pelo qual o homem espírito lógico gosta de calcular e o instinto de inércia em virtude do qual o homem de natureza conservadora opõese a que as coisas que estão unidas se sepa rem Acrescentamse a esses outros quatro instintos manifestação de seus sentimentos sociabilidade e conformismo piedade individualismo As so ciedades apelam predominantemente para esse ou aquele tipo de instinto Atenas cultivava o instinto de combinação próprio às sociedades democráti cas já Esparta cultivava o de conservação e isso tornava inevitável o conflito entre as duas cidades Os efeitos políticos desse edifício que nós simplificamos ao extremo são claros A distinção fundamental entre condutas lógicas e não lógicas permite denunciar as ilusões democráticas ou a fortiori socialistas condenadas à con tradição entre os fins de libertação e os meios autoritários Toda sociedade é dirigida por elites que se apoderaram do poder graças à sua arte combinatória Mas as elites que fazem a história correm o risco de se perder nela Desgas tamse combinam excessivamente esquecemse do instinto de inércia negli genciam a preocupação com a persistência dos agregados intelectualizamse separamse das massas A história é um cemitério de aristocratas Pareto recomenda aos dirigentes do século XX que se acalmem orga nizem a circulação das elites renovem seus membros para melhor se man 310 História das ideias políticas terem E já que é um fato que as elites fazem as sociedades já que é um fato a necessidade de uma elite viril para dirigir a massa Pareto será de fato liberalfascistà representante do governo Mussolini na Sociedade das Na ções mas defensor da liberdade de imprensa Sobretudo será um dos pri meiros doutrinários do antidoutrinarismo desses fanáticos do fato para os quais as massas devem inexoravelmente se submeter ao que é I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFICAS Busino G Introduction à une histoire de la sociologie de Pareto Genebra 1966 Pareto V Les systemes socialistes 1903 Traité de sociologie générale 1916 Genebra 1968 Eric Weil ou a política da razão O ponto de partida da concepção política desenvolvida por Eric Weil 1904 77 é filosófico no sentido estrito da palavra Renovando as perspectivas do pensamento especulativo clássico e apoiandose nos resultados adquiridos por Kant por Hegel e pelo que há de hegeliano nas investigações de Marx a con cepção de Weil considera fundamental o fato de que o homem animal social e histórico é razoável nem racional as provas de suas loucuras são demasia damente frequentes nem irracional ele busca constantemente a coerência de seu discurso e de sua conduta mas simplesmente capaz de razão Como tal ele busca a satisfação a vida plena e transparente mas porque é social porque fala essa satisfação só vale se for reconhecida por aqueles com quem ele vive e no limite pela humanidade inteira Assim o homem visa ainda que não o saiba ao universal a própria ação egoísta quer a dimensão universal Sendo assim a política é definida como a ciência da ação razoável ela diz respeito à ação universal a qual embora seja por sua origem empírica ação de um indivíduo ou de um grupo não vísa ao indivíduo ou ao grupo enquanto tais mas ao gênero humano Nessa óptica é claro que as ciências sociais por mais úteis que sejam na medida em que estudam as condições empíricas da ação são incapazes de definir a ação razoável Essa como ação política só pode ser compreendida em função de uma dupla referência ao indivíduo sujeito normal que busca O EstadoCientista 311 quer queira ou não o acordo consigo mesmo e o gênero humano histórico lugar de toda satisfação possível e duradoura O indivíduo quer ao mesmo tempo a satisfação e o universal como ser moral ele se pretenderia universal Mas não poderia estar só por causa disso não pode deixar de pôr problemas políticos Talvez se possa pensar que lhe basta estar de acordo com seu grupo histórico e portanto que não existam problemas políticos mas somente soluções Mas o que acontece quando o grupo contradiz a exigência de universalidade Quando ele se recusa a co locar a questão de sua inserção no gênero humano universal concreto A resposta é dada por Sócrates é preciso em nome da moral julgar a política Em outras palavras o direito positivo de uma dada sociedade histórica não pode ser aceito como norma transcendente Pelo menos é o que a histó ria estabelece ela está repleta de rebeldes que para estarem de acordo con sigo mesmos tomam o partido de julgar sua sociedade e suas regras preci samente em nome da universalidade que buscam ao buscarem a satisfação O problema político surge inelutavelmente a partir do momento em que se compreende que o direito positivo tem de ser referido a esse direito universal que é subjacente à sua própria essência Esse direito universal assume de acordo com a época diferentes figuras está sempre presente como instância e impõe uma tarefa ao sujeito ou seja a tarefa de definir por exemplo para além das normas em uso o que seria a justiça Assim Eric Weil dá uma representação da antiga ideia de direito natural que assegura o dinamismo da mesma as condições da justiça da liberdade da dignidade etc não são em cada época as mesmas mas essas reivindicações em cada época intervêm como exigência de superação de recusa do dado e como fermento Nesse sentido o indivíduo moral já é um educador a partir do momento em que aceita o problema político isto é o questionamento do direito posi tivo E o filósofo que tampouco pode deixar de se ocupar de política que é concebido por Eric Weil conforme a tradição clássica como o homem que compreende a si mesmo é o educador por excelência se quer ser coerente deve considerar que é responsável pela liberdade A tarefa de filósofo educador consiste em discernir a razão no mundo ou seja em descobrir as estruturas do mundo em vista da realização da liberdade razoá vel Philosophie politique p57 Sua atividade pertence ao terreno do conhecimento Ora o que ele co nhece na época atual é a comunidade humana organizada como comunidade 312 História das ideias políticas de trabalho seu sagrado é a dominação da natureza é a razão calculadora materialista e mecanicista Essa comunidade que existe de direito é por um lado dividida em povos e em Estados é comandada de diversas maneiras por mecanismos sociais que subjugam os indivíduos Para esses últimos tais mecanismos constituem uma segunda natureza quer a economia seja libe ral ou dirigistà os indivíduos se encontram diante de uma única neces sidade a de se valorizarem de se tornarem preciosos uns aos outros id p77 eles estão submetidos à pressão das circunstâncias à ameaça de desemprego de falência ameaça de ir para o campo de trabalho for çado de ser processado por sabotagem id p78 Sendo assim a competi ção é a regra de conduta deles A essa situação acrescentase o fato da divisão do gênero humano em nações cada uma delas vê as outras nações como situadas numa exteriori dade natural que deve ser combatida Lutas de classes lutas internacionais o indivíduo preso pelo racional é mergulhado na absoluta irracionalidade Por causa disso na sociedade moderna o indivíduo está completamente insatisfeito id p93 Há conflito no seio da moral viva entre a determina ção racional da eficácia e a vontade de cada um de dar um sentido à sua vida aqui e agora Essa insatisfação levao a se comprometer na ação histórica com o ob jetivo de realizar o universal concreto Nesse empreendimento chocase com um Estado cuja função histórica é assegurar a sobrevivência da comuni dade contra a derrota externa e a dissolução interna Para obter isso o Estado edita leis e se apoia numa administração Segundo Eric Weil os debates sobre os regimes são abstratos e anedóticos porque os regimes resultam do pró prio dado histórico Contra esse dado o filósofoeducador não pode muita coisa sua missão é lutar contra os dogmatismos tecnocráticos e políticos e denunciar os envolvimentos passionais Tratase sobretudo na época atual de recordar que o cálculo de eficácia inelutável não poderia desconhecer o sentimento de justiça que permanece constantemente presente a despeito do egoísmo imposto pelas circunstâncias e que a expressão desse sentimento su põe a possibilidade de uma discussão livre dos cidadãos e de uma educação que permita a cada um dar sua opinião com conhecimento de causa O ob jetivo do filósofo político portanto consiste em assegurar uma organização mundial de tal natureza que nela possa existir a satisfação dos indivíduos razoáveis no interior dos Estados particularmente livres id p240 Fortemente marcado pelo ensinamento hegeliano Eric Weil não crê ser possível escapar de uma visão em última instância necessitarista da histó ria e da formaEstado como quadro obrigatório da vida razoável Mas ele co A ciência como força social Os filósofos como Eric Weil os sociólogos como Max Weber os engenheiros como Taylor e os revolucionários como Lênin concordam em maior ou menor medida na ideia de que o mundo se unifica em torno do princípio do trabalho ou mais exatamente que o trabalho moderno tornouse o elemento essencial de todas as sociedades qualquer que seja o tratamento social que eles lhe aplicam 314 História das ideias políticas cimento do Estado é idêntica a lógica é a mesma ditada pelo imperativo do desenvolvimento científico técnico industrial O questionamento difuso da civilização industrial tende hoje a fazer esquecer a dinâmica filantrópica do EstadoCientista Dominar a natureza diziase racionalizar o trabalho para ajudar o operário pensavase Taylor começou como operário depois tornouse capataz terminou como enge nheiroassessor em organização Quando no início do século concebeu a organização científica do trabalho Taylor pretendeu ao mesmo tempo livrar o operário de seu cansaço e poupar ao patrão as distrações dos operários Quis assim criar uma nova camada de trabalhadores cuja única função fosse pôr ordem nos comportamentos Taylor chega ao ponto de quantificar a re lação ótima entre departamento de pessoal capatazes e operários que seria igual a um para três um organizador para três produtores ou se se prefere um vigilante para três executantes Graças a essa racionalização do trabalho industrial os operários são ex propriados de suas habilidades técnicas savoirfaire Os conhecimentos tra dicionais outrora concentrados em suas cabeças incorporamse ao capital Taylor implanta o que Marx anunciara a fragmentação sistemática dos ges tos de trabalho a militarização científica das empresas na qual os operários se tornam a engrenagem automática de uma operação única de modo que termina por se realizar a absurda fábula de Menenius Agrippa que repre senta um homem como fragmento de seu próprio corpo a grande indús tria faz da ciência uma força produtiva independente e colocaa a serviço do capital K Marx O Capital Livro 1 Em favor da produtividade a ciên cia penetra na fábrica tanto no Ocidente como no Leste I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFI CA Chaplin C Tempos Modernos 1935 filme Taylor FW La direction scientifique des entreprises Verviers 1967 Lênin e o taylorismo Somos lentamente apressados costumava dizer Lênin A ideia justificou a NEP restauração parcial do capitalismo para salvar a perspectiva socialista Lênin defendia em virtude da mesma dialética a ideia de que a supressão da distinção entre trabalho manual e trabalho intelectual passava pelo fortaleci O EstadoCientista 315 mento dessa distinção Com efeito o agravamento da divisão do trabalho e com ele da natureza autoritária do processo de trabalho justificase se aparecer como condição para uma eficiência muito maior do trabalho produtivo e portanto do encurtamento do tempo de trabalho e portanto da participação do proletariado nas tarefas políticas e nas questões do Es tado Lênin Oeuvres Ed de Moscou tXX p93 Se o trabalho organizado e cronometrado permite ganhar quatro horas por dia devese recorrer a ele e utilizar essas quatro horas para o aprendizado da autogestão Lênin foi além desse raciocínio em termos de eficácia O dirigente bol chevique considerou o taylorismo como uma forma transitória de prepara ção ao socialismo A estandardização do trabalho manual lhe apareceu como uma transição possível para o socialismo através da generalização do traba lho manual a toda a sociedade Não esqueçamos que malgrado sua teoria do imperialismo Lênin partilha com Marx a certeza de que o comunismo marcha paralelamente com a opulência ou em outras palavras que a ex tinção do Estado passa por um aumento considerável da produtividade e no caso concreto da Rússia que é preciso construir a base econômica do comunismo Decerto é fácil criticar o monstruoso acoplamento da instauração de uma real democracia econômica e da instalação de uma não menos real ditadura técnica Decerto era audacioso recorrer ao modelo capitalista da grande indústria mecânica acreditando ser suficiente confiar a sua direção às mesmas pessoas que sofrem seus efeitos para com isso evitar seus perigos Mas seria preciso sofrer de amnésia para ignorar que a tentativa de superar essas contradições não pode ser mantida por muito tempo o que complica o balanço A história sacudiu o projeto e a guerra civil fez o mesmo com o proleta riado Nem por isso deixa de ser verdade que o stalinismo irá ganhar corpo a partir desses imperativos técnicos Não existem rupturas entre o taylorismo o stakanovismo a exaltação da racionalidade técnica a prioridade concedida à indústria pesada a afirmação de uma camada de engenheiros e de técni cos destacada do proletariado e o fortalecimento da autoridade organizadora do Estado Um problema verdadeiro encontrou uma solução catastrófica De qualquer modo Lênin se ateve à equação comunismo poder dos sovietes eletrificação o que permite ver nele um promotor do EstadoCientista E a dimensão industrial do bolchevismo foi tão negligenciada que vale a pena insistir aqui sobre a disjunção que se operou entre a revolução tecnológica e a revolução política Um tecnocrata giscardiano confessou um dia sua rela tiva admiração pelos dirigentes soviéticos que em meio século realizaram 316 História das ideias políticas uma revolução industrial mais rápida e menos custosa do que a ocorrida nos países capitalistas A classificação comparada só teria sentido se se somassem numa coluna as crianças mortas nas minas e na outra as crianças mortas nos campos Mas não é verdade que todos em nome do trabalho morreram pelo EstadoCientista James Burn ham a irresistível ascensão dos gerentes Burnham se situa entre Lênin e Taylor Não somente porque foi trotskista até 1933 e publicou The managerial revolution em 1940 porém mais ainda na medida em que retomou a ideia da importância da organização do trabalho generalizou seus efeitos integrouos numa concepção economicista do po der e no conjunto respondeu a Marx com Taylor Como os marxistas poderiam negar que as condições da produção de terminam a posse do poder político E Burnham constatou a uniformização crescente das infraestruturas no Hemisfério Norte O taylorismo triunfa da Califórnia aos Urais O crescimento industrial o ordenamento do mercado de trabalho e das riquezas assim como a produtividade máxima tornaram se os valores das nações avançadas As sociedades modernas se estruturam então segundo uma nova hierarquia social dominada pelos managers os organizadores Somente esses técnicos muito superiores possuem ao mesmo tempo com petências técnicas conhecimentos científicos e sobretudo capacidades psico lógicas e sociais indispensáveis para dominar já que os seres humanos são instrumentos de produção tão importantes quanto as máquinas e é preciso saber manejálos O poder na sociedade não pertence aos financistas muito especializados não passou para as mãos dos técnicos de laboratório cujo sa ber permanece excessivamente científico é detido pelos organizadores que coordenam o conjunto e dirigem o todo inclusive os homens Os managers já exercem o poder real é inelutável que se apoderam do poder legal e também aqui os marxistas não diziam outra coisa quando consideravam que na mo narquia francesa do século XVIII os burgueses já detinham o poder A era dos organizadores culminará assim em um regime ditatorial que triunfará por todo o mundo As superestruturas variarão em função das tradições his tóricas e Burnham considera apenas três dessas variações a soviética estati zada a alemã nacionalsocialista e a americana depois do New Deal Indicar quem detém o poder é conferilo a esse alguém Se se responder afirmativamente a distinção entre o cientista e o político desaparecerá De O EstadoCientista 317 resto o fato de que Burnham acreditasse na vitória da Alemanha nacional socialista não quer dizer que a desejasse Também seria apressado convertê lo no simples ideólogo dos managers James Burnham inscrevese antes na linha dos sociólogos desiludidos e sua obra pretende ser antes de mais nada uma desmistificação do comunismo Se o capitalismo está morrendo o po der dos produtores é impossível A lição política que disso resulta não deixa lugar a dúvidas é inútil esperar a revolução socialista acessoriamente seria reacionário empenharse na preservação do regime capitalista Resta então um reformismo tecnocrático que levará ao management Como observava Léon Blum a revolução será feita mas a revolução ditatorial substituirá a revolução social e no que toca à imensa massa dos proletários que não farão mais do que mudar de senhor e de explorador ela será feita para nadà I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFICA Burnham J The managerial Revolution 1940 trad francesa Eere des organisateurs CalmannLévy 1947 com prefácio de Léon Blum The Machiavelians Defenders of Freedom 1943 Les Machiavéliens CalmannLévy 1949 JK Galbraith Onde você trabalha A ascensão dos organizadores ultrapassa o estreito quadro da empresa O manager de um partido de uma administração ou de um sindicato par ticipará na direção do regime ditatorial John Kenneth Galbraith não de senvolverá essa generalização das teses de Burnham na medida em que irá preferir analisar o sistema econômico americano O autor de O novo Estado industrial investiga as motivações desses novos responsáveis Mais precisa mente ele pergunta que milagre faz com que suas motivações correspon dam às das grandes empresas nas quais trabalham Por que mecanismo os organizadores querem o que o EstadoCientista quer O que impulsiona a tecnoestrutura O dinheiro muito pouco as gratificações mais o social narcisismo 1 certamente A rentabilidade econômica é legitimada pela consciência de trabalhar numa empresa poderosa 1 A expressão é de Étienne Allemand in Pour une éthologie générale tese Paris VIII 1976 318 História das ideias políticas A grande sociedade continua a ser o símbolo do sucesso e do êxito na ordem da civilização Ela transmite esse prestígio a seus membros vale mais evidente mente pertencer à General Motors ou à Western Eletric do que ser um isolado A pergunta que automaticamente se fazem dois homens que acabam de se co nhecer na Flórida ou num avião é onde você trabalha E a tal ponto que se esse detalhe não for conhecido o outro é um enigma não se pode situálo num contexto ninguém sabe que grau de consideração ele merece Se o mana ger capitula diante da organização é porque essa faz mais por ele do que ele mesmo poderia fazer Le nouvel Etat industriei Gallimard 1968 p155 O que vale para determinada multinacional vale igualmente para uma certa administração mais ou menos apoiada no mito do serviço público Apesar da persistência de algumas diferenças a distinção entre público e pri vado tornase cada vez mais anacrônica Galbraith admite que cientistas e administradores se associam para constituir uma tecnoestrutura que governa Notemos que as teses do economista americano pretendem ser críticas Ele constata o desaparecimento do liberalismo econômico e com ele a elimi nação do poder do capitalismo na empresa e do consumidor no mercado A economia moderna é então dominada por algumas grandes firmas que invertem a lei da oferta e da procura e criam artificialmente necessidades irracionais a fim de aumentar indefinidamente o próprio crescimento Além disso a simbiose entre tecnoestrutura e burocracia permite ao conjunto apo derarse de toda a sociedade Uma interpretação esquerdista poderia fazer de Galbraith um defensor do capitalismo monopolista de Estado Uma leitura direitista veria nele um nostálgico da era liberal Na verdade o economista keynesianokennediano prega uma reorientação do papel do Estado na qual a burocracia se des tacaria das tecnoestruturas para satisfazer necessidades sociais Galbraith sobretudo inscrevese nessa série de autores americanos que com Daniel Bell ou Zbigniew Brzezinski veem na evolução dos Estados Unidos o fu turo do mundo I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFI CAS Bell D Les contradictions culturelles du capitalisme PUF 1979 Brzezinski Z A revolução tecnetrônica 1971 Galbraith JK A era da opulência 1961 O novo Estado industrial i968 ed brasileira Civilização Brasileira Rio de Janeiro i968 O EstadoCientista 319 A ideologia tecnoburocrática Foram os mesmos sociólogos americanos que inventaram a expressão sociedade pósindustrial e proclamaram o fim das ideologias É que o Es tadoCientista execra a ideologia contestável por natureza e a política que pressupõe oposição Preferelhes a gestão da sociedade pelos homens mais competentes Essa ideologia que tende a se tornar dominante tomou corpo nos anos 1930 e difundiuse entre as elites em oposição à política tradicional Para compreendêla talvez não seja inútil lembrar em que ela se definia contra a política antes de ver como esse dualismo simplista desembocou em novos valores Originariamente portanto temos duas orientações Uma salutar a promover Ciência verdadeiro Administração administrador Interesse geral Serviço público Neutralidade técnica Consenso unidade O Estado o público Permanência dos funcionários A outra nefasta a eliminar Ideologia falso Política político Interesses particulares Opções partidárias Compromissos sociais Divisões conflitos A Sociedade o privado Instabilidade dos governos Sob essa forma caricatural a ideologia tecnocrática não tinha nenhuma possibilidade de triunfar Apesar de seu modernismo ela contradizia de modo excessivamente brutal a legitimidade democrática de que os Estados ocidentais têm também e ainda necessidade Portanto ela se atenuou para melhor concordar com os novos valores dos governantes A conver gência foi facilitada por eventos históricos e transformações estruturais Na França a Resistência abalou as velhas elites obrigou altos funcionários ao compromisso desgostou a nova geração política dos partidos Em menor medida 25 anos mais tarde o Maio de 1968 produzirá efeitos análogos so bre a nova vaga de enarcas2 Além dessas importantes peripécias a diversifi cação dos papéis do Estado implicou uma politização da administração ao 2 Énarques no original ou seja pessoas formadas pela École Nationale dAdministration ENA que é conhecida por fornecer os quadros superiores da administração pública na França NT 320 História das ideias políticas mesmo tempo em que o fortalecimento do Poder Executivo favorecia uma funcionarização da política Desde a Libertação de resto altos funcionários e dirigentes políticos são recrutados no mesmo viveiro o da Escola Nacional de Administração Os enarcas que se tornam políticos reivindicam o mono pólio do saber sobre a técnica de decisão como os altos funcionários eles são capazes de decidir Os enarcas que continuam administradores reivindi cam a legitimidade representativa o diretor de música do Ministério da Cul tura representa os músicos melhor do que qualquer deputado saberia fazer o intendente de Jura representa os jurassianos pelo menos tanto quanto o deputado que eles elegeram para a Assembleia Nacional No final das contas os tecnodirigentes concordam no essencial A polí tica la politique politicienne e a administração executiva estão mortas Viva o político le politique e a gestão As opções partidárias cedem lugar à re solução dos problemas Revolucionários e conservadores são afastados em conjunto para deixar o caminho aberto aos animadores da mudança social O EstadoCientista será dirigido por negociadores e técnicos Especialistas técnicos e técnicos da negociação podem se dar as mãos para decidir o resto não passa de falatório I N D I CAÇÕ ES B I B LI O G RÁFI CAS Association française de Sciences politiques Administration et politique en France sous la Ve République Presses de la FNSP 1982 Bell D 1he End of Ideology 1960 ed brasileira O fim da ideologia Ed da Universidade de Brasília Brasília 1980 Chevalier JJ e D Loschak Science administrative LGDJ 1978 2 tomos Variations autour de lidéologie de lintérêt général vários autores editado por JJ Cheva lier e Danielle Loschak PUF 1979 OS J U RISTAS O D I REITO E O ESTADOCI ENTISTA Taylor Durkheim e Duguit foram contemporâneos Os juristas são confron tados com o mesmo mundo com o qual se deparam engenheiros e sociólogos O problema específico deles consiste em edificar uma teoria geral do direito compatível com esse mundo em salvar a ciência jurídica construindoa A tarefa é dura tanto no Leste como no Ocidente lá porque Marx não se en carregou disso limitandose por falta de tempo à crítica do direito burguês O EstadoCientista 321 e não se aventurando na edificação de um direito socialista aqui porque o EstadoCientista surgiu e arruinou os belos sistemas do pensamento liberal exigindo em seu lugar uma doutrina jurídica capaz de explicar e justificar o intervencionismo estatal Nessa tarefa tão difícil os juristas terão um relativo êxito e isso por caminhos diferentes dos quais os três principais são a socio logia a lógica formal e o materialismo Léon Duguit o socorro da sociologia Duguit começa por uma subversão Ele recusa o direito subjetivo quer esse resulte do individualismo postulado pelo direito natural ou do ordenamento jurídico criado pelo Estado Toda metafísica jurídica é assim afastada a regra do Direito não provém nem da vontade individual nem do Estado É antes de mais nada uma regra social O princípio da obrigação que caracteriza o imperativo jurídico decorre da norma social é ela quem dita a obrigação de respeitar a solidariedade social e de trabalhar para sua realização Diante do Estado e num primeiro momento Duguit não carece de audácia Ele o des creve como um fenômeno de pura força retirandolhe assim qualquer legi timidade jurídica Ao mesmo tempo ele afirma também a submissão do Es tado ao Direito a força porque é força não pode fundar o Direito portanto ela pode apenas submeterse a ele Quanto à doutrina jurídica tradicional atravessada pelo idealismo por ficções individualistas e por intricadas exe geses ela se espantaria com a ideia de que o Direito e o Estado devem ser definidos a partir da realidade social Temores arcaicos já que a dualidade de Estado e Direito termina por reforçar o Estado Léon Duguit é incapaz de determinar a autoridade quali ficada para precisar o conteúdo do Direito na ausência de um acordo geral das consciências Seu sociologismo recai nos trilhos do direito natural sim plesmente substituído pelo direito objetivo ou se supõe que o direito posi tivo lhe corresponde o que por princípio justifica o que existe ou então é preciso confrontar o direito positivo com o direito natural ou objetivo Mas quem realiza esse confronto O autor postula sabiamente que a lei positiva emanada do Estado beneficiase de uma presunção de conformidade com o direito objetivo Duguit reencontra assim o idealismo jurídico respeitoso da ordem esta belecida mas o que ele legitima é a nova ordem Sua concepção sociológica do Direito com efeito liberta o Estado liberal dos entraves que o impediam de se converter em EstadoCientista O Estado não é mais uma potência sobe 322 História das ideias políticas rana mas uma cooperação de serviços públicos organizados e controlados pelos governos para cumprir funções de gestão A potência estatal é menos comprometida do que justificada nesse seu novo impulso A gestão dissimula a dominação e permite a intervenção do Estado em todos os domínios INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Duguit L Traité de droit constitutionnel Boccard 3 ed 1927 reed CNRS em 3 volumes PisierKouchner E Le service public dans la théorie de lEtat de Léon Duguit LGDJ 1972 Hans Kelsen o Direito o Estado a norma Se a sociedade sugere que não se deve matar a norma jurídica não enuncia a obrigação de não matar Ela somente ordena ao juiz que inflija uma sanção ao assassino A sanção não é distinta da obrigação e o Direito tampouco é disso ciado do Estado O pensamento de Kelsen muito racional visa a construir a teoria purà do Direito libertandoo definitivamente de toda ideologia O Direito é uma pirâmide de normas As normas jurídicas formam o objeto da ciência do Direito ou o que dá no mesmo o Direito é um sis tema de normas O Estado não criou o Direito Não está submetido a ele Ele é o Direito Para fazer com que essa afirmação seja compreendida o ju rista austríaco compara o problema das relações do Estado com o Direito ao das relações entre Deus e o mundo notando que foi preciso muito esforço para convencer o homem de que Deus não é mais do que a personificação da natureza concebida como um sistema de leis O Direito é uma ordem que tem como função regulamentar o emprego da força nas relações entre os ho mens o Estado também Portanto eles coincidem já que uma só e mesma comunidade social não pode ser constituída por duas ordens diferentes A ordem estatal possui uma estrutura piramidal pois aparece como uma série de graus jurídicos uma hierarquia cujos diferentes estágios são ligados entre si pelo princípio da delegação Cada norma é obrigatória na medida em que é conforme a uma norma superior Kelsen assim apresenta o Direito en quanto forma A teoria pura do Direito põese acima da ideologia o que explica as nu merosas oposições que encontrou Um jurista democratacristão ou socia lista fica indignado se alguém lhe sugere Hitler é o direito Um advogado conservador considera inconcebível que a República dos Sovietes seja consi O EstadoCientista 323 derada como uma ordem jurídica As oposições foram particularmente vee mentes na França já que a ideologia francesa há muito confunde as opções políticas e as análises jurídicas Cada um deseja ter a legalidade de seu lado incapaz de se satisfazer com a legitimidade A ciência jurídica contudo iro niza a justiçà do Direito A norma jurídica pode muito bem ser injusta ou ilegítima esse é um problema do político não do jurista Esse último consi dera apenas a coerência da pirâmide normativa Um primeiro obstáculo não tarda a surgir a pirâmide deve certamente ter um topo a norma superior deve se ligar a uma norma suprema Kelsen responde que se trata de uma norma hipotética ou norma fundamental hi pótese necessária à ciência do Direito Outra dificuldade as normas estão contidas nos textos e esses textos têm de ser objeto de uma interpretação O órgão de aplicação escolhe dar um sentido ao texto entre outros sentidos possíveis Os sentidos ligamse necessariamente ao conteúdo o que quebra a estrutura da ordem jurídica separada da sociedade Kelsen ao separar o di reito da ideologia corre o forte risco de reduzilo a um formalismo abstrato I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFICA Kelsen H 1héorie pure du droit 1934 Dalloz 1962 A democracia 1923 Socialismo e Estado 1923 Pashukanis e Vichinski a degenerescência da teoria marxista do direito Pashukanis concorda com Kelsen quanto à especificidade da relação jurídica e à necessidade de levar em conta a forma jurídica enquanto tal Ao contrá rio dos marxistas juristas que completam a história das formas econômicas com algumas decorações jurídicas e ao contrário dos juristas marxistas que propõem uma história das instituições salpicada de luta de classes Pashuka nis busca uma teoria geral do direito Seu acordo com Kelsen contudo para nisso já que essa teoria geral irá se tornar materialista Ela condena a teoria kelseniana por voltar as costas a priori para as realidades efetivas ou seja para a vida social ela cuida de normas sem se ocupar com a origem delas ou com suas relações com quaisquer interesses materiais O jurista soviético se esforça portanto para examinar o conteúdo mate rial do direito através da história Mas ele quer igualmente dar uma explicação materialista da regulamentação jurídica como forma histórica determinadà 324 História das ideias políticas Aparecelhe então que as categorias jurídicas não são simples generalizações teóricas destinadas a ordenar uma matéria social sem vida nem história Ao contrário são a expressão de formas sociais que organizam o comportamento de grupos sociais num contexto dado O Direito não nasce do Estado nasceu das relações sociais O Estado lhe confere clareza e estabilidade mas suas pre missas se enraízam nas relações materiais nas relações de produção Pashukanis desse modo relaciona o direito com a economia a ordem jurídica com a organização das classes sociais Pode assim extrair dessa re lação a conclusão política esperada ou seja de que o desaparecimento dos antagonismos de classe permitirá que a extinção do Direito acompanhe a extinção do Estado Conclusão esperada não por todos não por muito tempo O Estado sta linista não se extinguiu A Constituição de 1936 diz que o Estado é de todo o povo ao mesmo tempo em que o reforça Pashukanis foi eliminado em 1937 Vichinski tornouse o teórico soviético do Direito O direito positivo deixa de ser um mal necessário em processo de extinção uma sobrevivência do direito burguês mas tornase um Direito de tipo novo Vichinski justa põe as velhas banalidades um conjunto de costumes e de regras de vida em comum confirmadas pela autoridade estatal e o marxismo mais gros seiro um conjunto de regras de conduta que expressa a vontade da classe dominante Como coroamento do todo temos a força Um e outro são garantidos pela força coercitiva do Estado A coerção reconquista seus di reitos e a especificidade do Direito desaparece Vichinski não se preocupa com ela Preocupase em troca com a harmonização de suas teses com as de Stálin segundo as quais a luta de classes desapareceu na União Soviética Bastalhe proclamar nesse caso que as leis soviéticas expressam a vontade do povo unânime já que os eleitos para os sovietes o são por unanimidade acrescentando que a vontade da classe operária emerge da vontade do povo O direito não é mais do que um instrumento acionado por uma vontade a qual desliza progressivamente da classe para o Partido do Partido para o Es tado e do Estado para o Intérprete O Gulag encontrou o seu Direito I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFI CAS Pashukanis E La théorie générale du droit et le marxisme EDI 1970 Stoyanovitch K La philosophie du droit en URSS LGDJ 1965 Vincent JM Fétichisme et société Anthropos 1973 O EstadoCientista 325 As TEO RIAS DO ESTADOCI ENTISTA Existem inúmeros pensadores do EstadoCientista mas esquematica mente é possível agrupálas em dois tipos por um lado no coração da conivência entre Saber e Estado os que com talentos diversos querem edificar a ciência do governo por outro colocandose deliberadamente fora dessa racionalidade os que querem elaborar a crítica do EstadoCientista A análise sistêmica e depois as reflexões de Raymond Aron ilustrarão o primeiro tipo as da Escola de Frankfurt o segundo Deutsch e Easton a pilotagem sistêmica Como suprimir o que há de político na política Reduzindoa a uma técnica entre outras Substituindo a política pelo político Há o que faz parte do me cânico do químico do biológico do cultural Há também o que pertence ao político já que os conjuntos sociais têm necessidade de ser governados Daí a metáfora náutica de Karl Deutsch Nossa palavra governo provém de uma raiz grega que se refere à arte de pi lotar um navio O mesmo conceito subjacente se reflete do duplo sentido da palavra inglesa governor que significa ao mesmo tempo uma pessoa encarregada do controle administrativo de uma unidade política e um dispositivo mecânico que controla a marcha de uma máquina a vapor ou de um automóvel Olhando as coisas mais de perto constatamos que existe efetivamente uma certa similaridade subjacente entre o modo de governar um navio e a arte de governar as organizações humanas Pilotar um navio significa guiar o seu comportamento futuro a partir de informações que se referem por um lado à sua marcha no passado e por outro à posição que ele ocupa no presente com relação a um certo número de elementos que lhe são externos em particular rota meta ou alvo The nerves of Government Nova York 1963 Elaborar a teoria do EstadoCientista implica então paradoxalmente apagálo enquanto poder de Estado tomálo como simples organismo de funcionamento encarregado de alocar autoritariamente valores Easton 326 História das ideias políticas O sistema político deve ser considerado em seu ambiente Disso resulta a célebre frase de Easton sobre a caixa negra O sistema recebe o sistema pro duz Recebe inputs insumos que podem ser classificados em exigências ou apoios Produz outputs produtos que podem ser classificados em decisões ou ações Bem entendido os outputs retroagem feedbacks sobre os inputs Para que o sistema funcione bem é preciso um bom piloto que saiba receber as demandas organizar os apoios converter os insumos em produtos A análise sistêmica põe assim o acento nas capacidades de adaptação dos sistemas políticos Por isso foi acusada de ser conservadora mas Deutsch e Easton puderam objetar com pertinência que um sistema que se perpetua não é nem conservador ele integra as mudanças nem revolucionário em tal caso haveria substituição de um sistema por outro mas antes de um pro gressismo calculado Essa é a lei de evolução do EstadoCientista a gestão calculada dos homens A política é reduzida a uma função Encontrase assim avalizada a ideia de que o caráter obrigatório dos comportamentos impostos aos cidadãos resulta de um cálculo efetuado por um organismo habilitado para essa tarefa Uma regulamentação legítima e necessária substitui assim a noção de poder extorquido ou consensual A classe política é doravante desideologizadà e despersonalizada ou pelo menos esse é o destino de sua modernidade Reduzse à sua função que é de simples gestão Segundo os sistemistas essas conclusões baseiamse na simples constatação Quer goste mos ou não é assim que as coisas se passam no EstadoCientista I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFI CAS Birnbaum P e F Chazel Sociologie politique textos Colin 1971 2 vols ed abreviada 1979 1 vol col U Deutsch K 1he nerves of Government Nova York The Free Press of Glencoe 1963 Easton D Analyse du systeme politique 1965 A Colin 1974 Varieties of political theory Englewoods PrenticeHall 1966 Raymond Aron a teoria da sociedade industrial Raymond Aron não gosta das ideologias e se recusa a dureza do marxismo soviético nem por isso se entrega à moleza do liberalismo Preferindo a aná lise fria dos dados sociais não deixa por isso de buscar influenciar os deten tores do poder econômico político intelectual ou militar Nesse sentido ele O EstadoCientista 327 pretende também se ater ao corte weberiano entre a pesquisa factual e os compromissos individuais mas pode refletir o curso do EstadoCientista ao se fazer seu teórico É nessa perspectiva que ele encara a sociedade industrial do século XX na tríplice linha de Tocqueville Marx e Weber Inicialmente Tocqueville menos por uma preferência liberal do que por prazer sociológico com essa excitação secreta da inteligência quando desco bre o que não ama Tocqueville constata um movimento quase irresistível como que desejado pela Providência no sen tido da democracia cujo significado é o anulamento progressivo das diferenças de status a tendência ao nivelamento das condições de vida Marx observa no início do século XIX o desenvolvimento acelerado das forças produtivas mas crê que esse crescimento no quadro do capitalismo implica necessaria mente uma luta de classes de intensidade cada vez maior R Aron La lutte des classes nouvelles leçons sur la société industrielle A previsão de Tocqueville realizouse formalmente todos os países do mundo se dotaram de Constituições que afirmam a igualdade de direitos mas a seu modo também o marxismo teve êxito já que se tornou a ideo logia oficial de um dos maiores Estados atuais Num sentido mais marxista do que liberal muito marcado pelas análises de O Capital Raymond Aron insiste no considerável desenvolvimento das forças produtivas na sociedade industrial contemporânea As sociedades ocidentais e soviéticas aderem em maior ou menor proporção ao mesmo modelo de crescimento e subordi nam cada uma a seu modo as forças sociais aos imperativos econômicos Tanto na União Soviética como nos Estados Unidos a sociedade industrial impõe a mesma distribuição das profissões diminuição considerável do nú mero de agricultores aumento do número de trabalhadores na indústria proliferação dos empregados nos serviços Sob esse aspecto capitalismo e socialismo são apenas dois métodos diferentes para construir a mesma mo dernidade econômica Malgrado essa convergência Aron sublinha igualmente as diferenças en tre o Leste e o Ocidente É aqui que ele se inspira em Weber e em particular na explicação tipológica O sociólogo não poderia distinguir os regimes por suas ideologias oficiais já que eles podem concordar no plano dos princípios por exemplo a afirmação da soberania do povo ou não corresponder à rea lidade a classe operária não dirige os Estados socialistas os Estados Unidos 328 História das ideias políticas não são governados pelo povo Os partidos políticos constituem em troca um critério mais seguro O autor de Democracia e totalitarismo assim opõe os regimes de partido único voltados para o futuro revolucionários e violentos onde o Estado absorve a sociedade o que é próprio do totalitarismo A ideologia partidária não admite a existência de conflitos O regime monopolista funciona pelo medo e pela fé aos regimes de partidos múltiplos preocupados em conservar respeitosos da legalidade nos quais a sociedade continua a ser diferente do Estado condição do pluralismo A ideologia plu ralista se funda na existência de conflitos O regime pluralista funciona pelo pluralismo Qualquer que seja a preocupação de objetividade do sociólogo é evidente que sua tipologia não incita a adotar o totalitarismo Aron aproximase aqui da tradição liberal e se revela como o último dos sociólogos clássicos e ao mesmo tempo como um dos primeiros sociólogos do EstadoCientista I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFICA Aron R Dixhuit leçons sur la société industrielle curso na Sorbonne 195556 Galli mard 1962 La lutte des classes nouvelles leçons sur la société industrielle Gallimard 1964 Démocratie et totalitarisme Gallimard 1965 Les étapes de la pensée sociologique Gallimard 1967 A Escola de Fran kfurt a contestação do EstadoCientista Desde os anos 1930 um certo número de filósofos alemães que emigraram no momento da instauração do nazismo agrupados na chamada Escola de Frankfurt amplamente inspirados no pensamento de Hegel e no mar xismo questionaram com um vigor e uma profundidade jamais desmen tidos e cujos efeitos se fazem sentir até hoje a pretensão moderna de racio nalizar a existência social no quadro do Estado e de suas instituições Georg Lukács 18851971 em História e consciência de classe 1923 e Karl Korsch 18861961 já se haviam distanciado do uso dogmático que o leninismo fi zera da racionalidade científica e da negatividade dialética o segundo che gara mesmo à ruptura em Marxismo e filosofia 1923 O EstadoCientista 329 A Escola de Frankfurt é mal designada Com efeito ela não forma um corpo doutrinário a teoria críticà que ela desenvolve movese em vários ní veis encontra expressões diversas conforme os autores e nisso fiel a Marx recusa separar a investigação filosófica dos desafios políticos aos quais se aplica Por isso não somente chegou a conclusões não convergentes mas também evoluiu em função das situações históricas Todavia o que permite tratar em conjunto pensadores tão diferentes como Max Horkheimer 18951973 Herbert Marcuse 18981979 Theodor Adorno 190369 e Jurgen Habermas 1929 para citar apenas os mais co nhecidos é a tríplice vontade de não separar a teoria da prática e da história e por conseguinte de tomar como tema essencial de reflexão o totalitarismo das sociedades atuais sob qualquer forma que se exerça de investigar constantemente as relações existentes entre o domínio cada vez maior da Razão a dos filósofos mas também a das ciências da na tureza e das ciências sociais sobre o pensamento a ideologia e as técnicas governamentais por um lado e por outro as restrições cada vez maiores impostas hoje às liberdades individuais e coletivas e ao recuo sofrido pela es perança em uma emancipação geral da humanidade esperança que alimen tara o racionalismo clássico de recusar firmemente as tentações sempre recorrentes do irraciona lismo mantendo a exigência de verdade como algo indissociável da exigên cia de liberdade e de reativar a negatividade dialética com o objetivo de em prestar novamente à Razão sua força libertadora Disso resulta que para esses pensadores o que até aqui foi chamado de EstadoCientista e suas práticas constituem o objeto por excelência da crítica É o que ocorre por exemplo com Herbert Marcuse em O homem unidimensional 1965 e de Jurgen Habermas em A técnica e a ciência como ideologia 1964 O primeiro constata que o ponto de vista definido por Max Weber o de uma sociedade racional na qual os cientistas estudariam os meios enquanto os políticos em função de uma reflexão ética definiriam os fins tornouse caduco se é que algum dia teve fundamento A Razão técnica que classifica calcula e organiza ainda que fosse aplicada apenas à matéria natural implica inelutavelmente com o processo de dominação da natureza um processo de dominação dos homens por outros homens e uma alienação de uns e de outros O próprio objeto da ciência tal como definido por Descartes estabelece uma concepção da existência social no seio da qual misturamse a hierarquia racional e a hierarquia social O homem unidi mensional p189 330 História das ideias políticas A partir disso H Marcuse não mais recusando a dimensão utópica imagina a possibilidade de um outro projeto científico de um projeto que preservaria a busca da inteligibilidade mas excluiria a perspectiva de domi nação e de destruição Eros e civilização 1955 desenvolveu temas análogos a propósito dessa feita do sujeito cognoscente que deixaria de se pensar como corpo hierarquizado mas aceitaria viver e agir como corpo erotizado Jurgen Habermas investigando a significação realista das perspectivas assim abertas revolução cultural tecnologia doce observa que a emer gência da racionalidade técnica deve ser compreendida a partir do enfraque cimento da Razão clássica Essa organizava a dominação e se empenhava em definir fins legítimos Seu eclipse para retomarmos a expressão de Max Horkheimer corresponde a um primado da ordem econômica que implica a intervenção autoritária do Estado e a utilização da ciência como força pro dutiva A dominação política se reforça e substitui a pesquisa dos fins pela simples manipulação técnica e administrativa As próprias democracias libe rais se organizam segundo o modelo plebiscitário e os regimes ditos socialis tas exercem uma unificação integral da vida social que abole toda diferença entre público e privado A ideologia da técnica e da ciência nos dois casos e com meios diferentes elimina qualquer eventualidade crítica e recusa em nome de uma dialética fraca longo prazocurto prazo o poder emancipa dor contido no pensamento dialético Aderindo à contestação do EstadoCientista já realizada com perspec tivas diferentes pelo clássico Léo Strauss por um lado e pelo marxistà Ernst Bloch por outro os pensadores da Escola de Frankfurt abrem cami nho para um questionamento do Estado enquanto forma obrigatória do ser social e para uma crítica da Razão como totalização alienante I N D I CAÇÕ ES B I B LI O G RÁFI CAS Bloch E Droit naturel et dignité humaine 1961 Payot 1978 Habermas J La technique et la science comme idéologie 1964 Gallimard 1973 Horkheimer M Théorie critique 19301970 Gallimard 1978 cf em particular a apre sentação desses textos por Luc Ferry e Alain Renaut Marcuse H Eros et Civilisation 1955 Minuit 1963 ed brasileira Eros e civilização Zahar Editores Rio de Janeiro 8ª edição 1981 IHomme Unidimensionnel 1965 Minuit 1968 ed brasileira Ideologia da socie dade industrial Zahar Editores Rio de Janeiro 5ª edição 1979 CAPÍTULO X O Estado em questão O EstadoCientista forma privilegiada da autoridade soberana dos países industrializados organizase como estrutura total da sociedade Pretende ser uma síntese entre os três níveis constitutivos das coletividades o domínio privado a atividade econômica e a ordem estatal A dominação política pe netra a realidade até constituíla Fortalecida por seu aparelho técnicocien tífico e industrial ela impõe seu poder fabricando o tempo e o espaço cons truindo a terra e o céu O conceito de sociedade industrial desenvolvido por Raymond Aron dá conta dessa situação de modo imperfeito Supõe uma causalidade em virtude da qual a infraestrutura tecnológica implicaria um fortalecimento inelutável do poder estatal um fortalecimento que sofre inflexões em função do con texto ideológicopolítico fortalece o Estado nos regimes socialistas nos re gimes capitalistas a organização política e a filosofia pluralista contrabalan çam esse fortalecimento Mas o EstadoCientista é virtualmente totalizante pois é um complexo militarindustrial que engloba o político e o econô mico num campo técnico autoritário O Estado cobre toda a realidade As noções de dominação referida ao atributo político e de exploração referida ao atributo econômico têm uma importância primordial mas não bastam para analisar a situação contemporânea Novos conceitos são neces sários novos campos de estudo devem ser explorados talvez os índios da Amazônia nos ensinem mais sobre o stalinismo do que os textos de Marx As discussões sobre a natureza da União Soviética interessam ao historiador e ao economista mas também à reflexão política Com efeito importa saber se se trata de um Estado operário degenerado de um capitalismo de Es tado de uma restauração revisionista ou de um desvio economicista a não ser que assimilemos tudo considerando que a administração americana e a burocracia soviética exercem uma dominação e uma exploração da mesma natureza cada uma utilizando práticas de poder que melhor se adaptam ao seu contexto 331 332 História das ideias polfticas Essas noções novas EstadoCientista sociedade sem Estado não são entidades concretas mas características abstratas para construir juízos de inteligibilidade Designam condutas de dominação e exploração condutas governamentais que produzem efeitos sociais constatáveis que penetram a totalidade da vida coletiva As novas teorias que vão ser evocadas agora não se preocupam em saber que classe social ocupa as posições de autoridade mas antes em elucidar o problema político da dominação em compreender como o poder se impõe tão profundamente A questão do Estado pode ser posta em quatro pontos ou seja a par tir de quatro debates O primeiro referese ao totalitarismo não mais como simples explicação do fascismo mas como algo inerente ao EstadoCientista O segundo referese à história e ao lugar que lhe cabe na reflexão política O terceiro se empenha em detectar o poder por toda parte O último dirigese para o Estado e investiga o enigma da obediência A QU ESTÃO DO TOTALITARISMO Não terá chegado o momento de considerar o Estado totalitário como o fenômeno que domina o nosso século como a novidade por excelência de nossa época tal como se coubesse uma comparação foi o caso da Revo lução Industrial em relação ao século passado1 A pergunta sobre o totali tarismo começa com o nacionalsocialismo e o stalinismo mas não se limita ao problema da pertinência da aproximação entre essas duas ditaduras ou à explicação do sucesso das mesmas Um dos primeiros teóricos do totalita rismo Hans Kohn sublinha As ditaduras totalitárias são fenômenos próprios do século XX por causa de seu caráter democrático são fenômenos de massa Embora tenham começado por uma conquista do poder por parte de minorias tiveram êxito porque deram forma aos sonhos nebulosos das massas nacionais e porque fizeram eco às suas aspirações confusas e pouco conscientes Não se pode compreender as massas que seguiram homens como Stálin e Hitler recorrendo unicamente ao argumento do terror Uma afinidade funda mental une o chefe a seu povo bem mais do que o magnetismo pessoal do chefe Hitler não conquistou as massas alemãs ele as representou The Twentieth Century 1949 p99100 1 Marcel Gauchet Lexpérience totalitaire et la pensée de la politique in Esprit julhoagosto de 1976 p3 O Estado em questão 333 Alexandre Zinoviev explicará no mesmo sentido que o stalinismo é um autêntico poder do povo A questão que assim se coloca é saber se esse fenômeno radicalmente novo constitui um acidente uma exceção desaparecida ou em desapareci mento ou se existe virtualmente aqui e agora O enfoque liberal o totalitarismo como acidente superado Sartori Aron O pensamento liberal e erudito assume a noção de totalitarismo para conde nar radicalmente o nazismo e o stalinismo mas não consegue elaborarlhe um conceito A definição do termo se revela impossível como o reconhece Spiro a propósito dos seus traços principais que ele enumera i O universalismo O sistema totalitário quer refazer o gênero humano à sua imagem há uni versalização do objetivo Mas o crescimento tecnológico homogeneiza as sociedades modernas To das tendem para o universal 2 A participação forçada Os eleitos das organizações públicas oficiais obtêm até 100 dos votos nin guém escapa à aprovação política O desenvolvimento das técnicas de comunicação e a diminuição da esfera privada arrastam todos os cidadãos para o jogo político 3 A supressão das organizações não oficiais Os regimes totalitários não toleram nenhuma associação contrária à polí tica oficial Em caso de crise grave ou de guerra os próprios Estados liberais proíbem a oposição 4 A violência militar ou paramilitar Nenhum regime constitucional liberal conhece uma tal brutalidade in terna nem mesmo em tempo de crise ou de guerra Todos os regimes modernos utilizam procedimentos análogos contra o inimigo externo 5 A insegurança das regras A norma é imprevisível já que depende da vontade pessoal A inflação normativa e a arbitrariedade administrativa afetam todas as so ciedades modernas 334 História das ideias políticas 6 A unicidade do objetivo Um único objetivo racismo ou advento do proletariado uma única expli cação da realidade recusa total de qualquer explicação diferente O pluralismo se opõe a esse aspecto do totalitarismo mas as sociedades políticas modernas tendem a uniformizar os programas Os grandes tipos de explicação do totalitarismo não são mais sufi cientes i Controle da economia O totalitarismo ligase ao socialismo Alguns regimes socializantes não são absolutamente totalitários Suécia alguns Estados africanos trabalhismo etc 2 Sociedade de massa A era das massas implica a manipulação política totalitária Os Estados Unidos sociedade de massa não são totalitários 3 Filosofia política O totalitarismo seria a conclusão lógica da regra da maioria exacerbada até a vontade geral da qual o marxismo seria o protótipo O totalitarismo conhece uma grande diversidade ideológica e não há por que exagerar a influência das doutrinas 4 O racismo O ditador totalitário chega a impor a ideia da não importância das vidas humanas Alguns países como a França e muitos outros conheceram o racismo mas não o totalitarismo Em conclusão Spiro admite que é preciso renunciar à noção de totali tarismo Podese observar de resto que para concluir de outro modo ou seja para refutar essas objeções seria necessário estender o totalitarismo ao conjunto das sociedades modernas pelo menos enquanto virtualidade Portanto o totalitarismo permanece como uma exceção histórica O Estado liberal terminou para sempre com o nazismo e saberá resolver o problema do stalinismo acidente de um Estado não liberal em processo de possível liberalização Os traços dessa dupla tese podem ser encontrados de modo mais ou menos explícito nos pensadores liberais atuais como Sar tori e Raymond Aron O primeiro ao contrário dos observadores críticos da massificação democráticà anexa a democracia ao liberalismo A demo O Estado em questão 335 cracia não é somente um modo de governo é uma forma de governo um sistema político Governar parà o povo é demofilia não democracià essa se funda no assentimento popular e na concorrência entre as elites arbitrada pelas massas R Aron insiste igualmente na oposição democraciatotalitarismo e faz do regime dos partidos a principal variável de onde se deduzem os cinco traços do fenômeno totalitário o regime confere a um partido único o monopólio da atividade política o partido monopolista impõe uma ideologia oficial verdade do Estado o Estado se reserva o duplo monopólio dos meios de força e de persuasão as atividades econômicas e profissionais estão submetidas ao Estado tudo se torna atividade do Estado submetido à ideologia de onde resulta o terror A partir dessa definição R Aron considera que esses elementos foram reunidos no curso de certos períodos na história soviética sem dizer que todo regime de partido monopolista deve levar a essa forma extrema de ter ror Disso ele deduz um prognóstico tendencialmente otimista Se excluir mos um abalo no regime soviético que deu à União Soviética a grandeza a potência progressos econômicos de ano para and sua transformação pro gressiva parece plausível os fenômenos extremos corresponderiam às fases iniciais da industrialização Lá e cá a realidade triunfa sobre a ficção Os construtores do futuro se resignarão a ser apenas o que são gestores de uma sociedade hierárquica e administrativa desejosos não mais apenas de alcan çar o Ocidente mas de imitálo I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFI CAS Aron R Démocratie et totalitarisme Gallimard 1965 col Idées Sartori G 1héorie de la démocratie A Colin 1973 Spiro H Totalitarianism in International Encyclopaedia of the Social Sciences 1968 voli6 Investigações críticas o totalitarismo como virtualidade permanente Reich Arendt É preciso voltar à análise de Hannah Arendt que supera o ponto de vista li beral ao pôr a nu a banalidade do mal totalitário que espreita o século XX 336 História das ideias políticas Para além do paralelo entre nazismo e stalinismo cf supra cap VIII Hannah Arendt mostra que o totalitarismo destrói a alternativa clássica da filosofia política entre regime sem lei e regime submetido a leis entre po der legítimo e poder arbitrário O regime totalitário jamais opera sem ter a lei como guia ou melhor ele pretende obedecer sem equívocos às leis da Natureza e da História das quais todas as leis positivas sempre pretenderam emergir Mas ele o faz desconfiando de todas as leis positivas inclusive das suas próprias pretende fazer do próprio gênero humano a encarnação da lei A lei totalitária não assegura mais nenhuma função de estabilização não é mais do que lei de movimento Lei da Natureza para os nazistas ou lei da História para os bolcheviques a lei mudou de sentido não é mais o quadro instável onde veem se inscrever os movimentos humanos é a expressão do próprio movimento Quanto às condições de advento do totalitarismo elas resultam da mo dernidade Os movimentos nazistas e comunistas dos anos 1930 germinam na massificação no colapso do sistema de classes e de suas barreiras proteto ras na sociedade atomizada A propaganda totalitária labora nesse terreno preparado elevando o cientificismo ideológico e sua técnica profética a um grau desconhecido de eficiência no método e de absurdo no conteúdo Socialismo e racismo são esvaziados de seu conteúdo utilitário e assumem a forma de uma previsão infalível O homem da era totalitária não é apenas o indivíduo isolado átomo da massa mas o homem desolado A dominação totalitária fundase na desolação na experiência de uma absoluta não participação no mundo estreitamente ligada ao desenraizamento e à inutilidade que envolveram as massas modernas desde o começo da Revolução Industrial O fascismo é um fenômeno internacional que atinge todos os organis mos da sociedade humana em todas as nações do mundo Wilhelm Reich estende ainda mais o campo totalitário É preciso dizer que ele bateu o triste recorde de ser expulso ao mesmo tempo do Partido Comunista Alemão e da Associação Internacional de Psicanálise em 1933 e além disso 20 anos mais tarde de ver sua revista queimada e seus livros proibidos nos Estados Unidos Condenações exemplares para um homem que queria reconciliar marxismo e psicanálise Com tal objetivo propôs superar o projeto freudiano e o economicismo marxista Freud tem razão ao considerar que as neuro ses são o produto da repressão imposta às pulsões sexuais mas está errado quando defende a equação Repressão Sublimação Civilização pois ela leva a justificar a repressão do desejo Quanto aos marxistas eles não compreendem a complexidade das determinações que aplicam à consciência humana A família autoritária e patriarcal é o primeiro local de repressão uma fábrica de estruturas mentais conservadoras é a correia de transmissão entre a estrutura econômica da sociedade burguesa e sua superestrutura ideológica Esquematicamente Estrutura econômica relações de produção Família patriarcal proibição do Édipo Ideologia repressiva Marx Freud A repressão sexual é um fator permanente e cotidiano portador do fascismo em diferentes sociedades A Escola de Frankfurt aprofundou a crítica filosófica do totalitarismo Max Horkheimer fundador da Escola em 1923 parte do ponto de vista racional o totalitarismo corresponde a uma vitória dos mitos sobre a razão para chegar a uma crítica da razão contemporânea a própria razão tornase totalitária degenera em razão de Estado ou em razão científica O totalitarismo aparece assim como uma recuperação da razão a serviço da dominação Abandonar a própria existência em favor do Estado cujas leis garantem o seu legado não é ir contra a conservação de si o sacrifício tornase racional Horkheimer denuncia o papel da ciência nessa deriva da razão São a ciência e a técnica que assumem hoje a função de emprestar à dominação o que a legitima Na posteridade de uma esquerda hegeliana e de um marxismo crítico a Escola de Frankfurt opta por uma dialética negativa Segundo Marcuse Hegel conservouse prisioneiro de uma concepção da Razão e do progresso que compreende tudo e finalmente absolve tudo porque toda coisa tem seu lugar e sua função no Todo e porque a totalidade está além do Bem e do Mal da verdade e da falsidade Em última instância essa concepção inclui a escravidão a Inquisição o trabalho das crianças os campos de concentração as câmaras de gás e os preparativos nucleares Esses termos talvez façam parte integrante da racionalidade que regeu a história da humanidade Horkheimer nota então que a Razão renunciou à Razão que ela foi tão completamente expurgada de toda espécie de tendência ou de preferência específica que no final das contas renunciou à tarefa de julgar as ações e o modo de vida do homem O culto da ciência e da tecnologia inaugura a barbárie moderna O positivismo encorajou a submissão do espírito ao que ele chama de realidade e que funda como ordem O anônimo o inautêntico o uniforme se estende 338 História das ideias políticas dem e estendem a desumanização O progresso ameaça aniquilar o próprio fim para o qual em princípio ele tende a ideia do homem Horkheimer Theodor Adorno desmascara a potencialidade totalitária em todas as estru turas de poder no seio de todas as hierarquias E convida a exercer o pen samento negativo a que se busque em cada ideia e em cada coisa sua ne gação a que se adote um ponto de vista sistematicamente crítico a que se retorne ao juízo filosófico à condenação de princípio do e dos poderes a uma distância permanente em face da ação que sempre apresenta o risco de levar ao autoritarismo a um radicalpessimismo I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFI CAS Adorno TW Dialectique négative 1966 Payot 1978 Mínima moralia réflexions sur la vie mutilée 1974 Payot 1980 Habermas J La technique et la science comme idéologie 1968 Gallimard 1973 Le pro blême de la légitimité dans le capitalisme avancé 1963 Payot 1975 ed brasileira O problema da legitimidade do capitalismo tardio Tempo Brasileiro Rio de Janeiro Horkheimer M Eclipse de la raison 1947 Payot 1974 ed brasileira Eclipse da razão La bor São Paulo 1978 Les débuts de la philosophie bourgeoise de lhistoire 1930 Payot 1978 Jay M Jimagination dialectique Payot 1977 Marcuse H Raison et révolution 1941 Ed Minuit 1969 ed brasileira Razão e revolu ção Paz e Terra Rio de Janeiro 2 ed 1976 Vincent JM La théorie critique de lÉcole de Frankfurt Galilée 1976 A QU ESTÃO DA H ISTÓ RIA Com a Escola de Frankfurt a indagação sobre o totalitarismo surgida do desenvolvimento das ciências sociais retornou à filosofia Os filósofos do apósguerra buscaram compreender a modernidade e os fundamentos da tirania Sob esse aspecto dois debates merecem ser recordados ambos reco locam a questão do sentido da história o debate entre Léo Strauss e Kojeve sobre a tirania e o debate entre MerleauPonty e Sartre sobre a dialética Tratase de questões teóricas cujas implicações políticas concretas devem ser evidenciadas Paralelamente a esses confrontos uma nova investigação cien tífica ganhava corpo com o estruturalismo que pareceu dissolver a história O Estado em questão 339 Sobre a tirania StraussKojêve Léo Strauss voltouse para os antigos em especial para Xenofonte a fim de analisar o regime tirânico A leitura do diálogo de Xenofonte no qual Hie ronte tirano de Siracusa debate com Simônides o poeta indica que a tira nia é um perigo que aparece já nas ordens da vida políticà Decerto a tirania moderna possui suas especificidades sobre as quais Strauss insiste Ela dispõe da tecnologià e da ideologià Pressupõe a existência de uma certa ciência enquanto a ciência antiga não tinha como objetivo a conquista da natureza e não queria ser nem vulgarizada nem difundidà Apesar dessa sobredetermi nação tecnoideológica a tirania atual não é mais do que uma modalidade da antiga por isso Xenofonte continua a ser pertinente Ao contrário do que se supõe o tirano é infeliz Hieronte explica ao sá bio que ele não conhece nem amores confiáveis nem amizades verdadeiras mas sim o temor constante do complô e do assassinato a solidão Simônides lhe sugere que renuncie à tirania e se torne um rei benevolente para não mais ser infeliz Hieronte objeta que uma tal mudança não abolirá os seus crimes a recordação dos seus crimes A maior miséria da tirania é que não pode mos mais nos desfazer dela O Simônides de Xenofonte não responde nada Tratase certamente do pior dos regimes Seria melhor renunciar a qual quer tirania antes mesmo de se ter tentado instauráIa Alexandre Kojeve contesta essa concepção de XenofonteStrauss O Si mônides deles não passa de um poeta ou pior de um intelectual que fala sem meditar O fato de que uma tirania não possa ser popular ou iluminada não quer dizer que se tenha de renunciar a ela pois há casos em que a sobre vivência do Estado a possibilidade do progresso exigem uma tirania Kojeve hegeliano evoca Napoleão erigido por Hegel em modelo da modernidade mas também Salazar e Stálin A desgraça do tirano resulta de que cansado de ser temido deseja ser amado Nero em Britanicus Mas precisamente porque temido ele não pode ser amado Xenofonte antes de Hegel põe em evidência a dialética entre o Senhor e o Escravo O que faz a diferença en tre o homem e os outros animais é o desejo de honra Ora as homenagens ditadas pelo temor não são honras mas atos servis O Senhor empenhado num combate de vida ou morte a fim de fazer com que seu adversário re conheça sua dignidade humana exclusivà percebe que quem lhe cede grita por clemência e prefere a submissão à morte não vale mais nada é digno precisamente de viver como escravo Hieronte e Simônides perdem o cami nho Em política não se trata de amor nem de felicidade É melhor se ater à fórmula precisa de Hegel que fala de reconhecimento O desejo de ser reconhecido é o móvel último de toda emulação entre os homens e portanto de toda sua luta política Esse é o verdadeiro estatuto do desejo de honra em política a vontade de fazer com que a própria autoridade seja reconhecida Se o tirano não é feliz não é absolutamente por não ser amado mas porque não foi reconhecido Insatisfação à qual está condenado todo governante digno desse nome o desejo de reconhecimento é ilimitado a vontade de autoridade quer se aplicar a todos os homens ele só ficaria satisfeito com o controle de um Estado não apenas universal mas também política e socialmente homogêneo Inevitavelmente assassinato o político busca legitimamente ser confortado por um sábio o qual deve lhe dar tal conforto com realismo Duas concepções se enfrentam nitidamente Por um lado o hegelianismo de Kojevë onde a luta pelo reconhecimento que se desenvolve através da História até sua solução final no Estado universal e homogêneo desculpa os tiranos exige que em determinados momentos se cometem crimes e pede a compreensão do filósofo Por outro lado a moral de Strauss a recusa de justificativas da tirania que seja através das necessidades da História ou das explicações das ciências sociais através do devir da Razão ou da prova dos fatos ele coloca a necessidade de reencontrar uma filosofia política que como os antigos saiba julgar os bons e os maus regimes Indicações bibliográficas Kojevë A Introduction à la lecture de Hegel Gallimard 1948 reed na col Tel 1980 Strauss L Droit naturel et histoire conferências de 1949 Plon 1954 De la tyrannie Gallimard 1954 Comunismo e sentido da história Sartre MerleauPonty Não é verdade que as boas intenções justifiquem tudo nem que se tenha o direito de fazer o contrário do que se deseja Em 1946 Maurice MerleauPonty era um desses intelectuais da revista Les Temps Modernes Raymond Aron Jean Paulhan JeanPaul Sartre que entraram na política sem renunciar à exigência de verdade e de liberdade A política separou os que deveria reunir Aron Malraux e Koestler foram afastados pela crítica aos Estados Unidos e pela oposição a De Gaulle Camus pelo anticomunismo virulento O Estado em questão 341 lento Mas o principal debate opôs Sartre a MerleauPonty tratouse de uma controvérsia entrecruzada sobre o comunismo e o sentido da história na qual um defendia a União Soviética sem a ajuda do marxismo enquanto o outro recusavaa sem se afastar da dialética histórica Albert Camus foi o protagonista do primeiro conflito Recusouse a to mar partido entre o capitalismo e o comunismo stalinista e transpôs para o domínio político o pessimismo de O mito de Sísifo O homem revoltado perdeuse nos Tempos Modernos2 Nos tempos ingênuos onde os tiranos arrasavam as cidades para sua maior glória onde o escravo amarrado ao carro do vencedor desfilava pelas cidades em festa onde o inimigo era lançado às feras diante do povo reunido a cons ciência podia ser clara e o julgamento claro Mas os campos de escravos instaurados sob a bandeira da liberdade os mas sacres justificados em nome do amor ao homem ou o gesto da superhuma nidade em certo sentido desamparam o julgamento No momento em que o crime se paramenta com os despojos da inocência numa inversão que é pró pria de nossa época é a inocência que tem de apresentar suas justificações As conclusões estão à altura da proposição Ainda que a constatação de Camus seja justa ele não oferece nenhuma saída política A não ser com bater em si em torno de si os excessos escutar René Char A obsessão da colheita e a indiferença pela história são as duas extremidades de meu arco Mas será Sartre a ser escutado Entre Sartre e MerleauPonty o choque foi mais complexo mais para doxal Sartre toma posição em favor do Partido Comunista Francês mas o faz em nome dos princípios do existencialismo e sem recorrer ao marxismo teórico MerleauPonty combate tanto o comunismo stalinista como o ultra bolchevismo sartriano mas em nome da dialética do sentido da História Sartre Nação PC Classe Operária Liberdade Paz 2 Um evidente jogo de palavras com o título de uma importante obra de Camus Ihomme révolté e o título da revista dirigida por Sartre Les Temps Modernes NT A partir de 1950 compreendeuse que não se tratava de escolher o que se pode amar Era preciso colocarse do lado dos que corriam o risco daqueles cujo interesse levava a querer a paz do lado portanto dos soviéticos O PC é a expressão necessária e exata da classe operária O partido é aquilo sem o que não há unidade da massa operária ele é a mediação constitutiva da classe operária Na França de hoje a classe operária é a única classe que dispõe de uma doutrina é a única cujo particularismo está em plena harmonia com os interesses da nação O partido que a representa e a constitui deve ser monolítico o organismo da ligação deve ser ato puro se ele implicar o menor germe de divisão se conservar em si qualquer passividade qualquer peso interesses opiniões divergentes quem irá então unificar o aparelho unificador Portanto é preciso lutar ao lado da classe operária e de seu partido no campo da União Soviética MerleauPonty Comunismos Antidialéticos sartreano e stalinista Stalin é o déspota sangrento de um novo imperialismo Ele não encerra nem a liberdade nem a paz O comunismo stalinista explica uma concepção não dialética da história A eficácia tornase o único critério O sentido virá mais tarde sabe Deus como No momento tratase apenas de colocar os fundamentos através de meios sem relação com nenhum fim Uma vez construído o aparelho de produção veremos o humanismo e a dialética brotar e florescer enquanto o Estado murchará Isso seria muito bom se para criar o aparelho de produção a sociedade cívica não instaurasse um aparelho de coação e nãoOrganizasse privilégios que tornamse pouco a pouco a verdadeira figura de sua história O bolchevismo sartreano justifica a ação comunista recusando qualquer produtividade à história fazendo dela o resultado imediato de nossas vontades um comunismo ultravoluntarista sem relação com o marxismo Esse comunismo não se justifica mais pela filosofia da história e pela dialética mas por sua negação pela criação pura Tornase um empreendimento indeterminado Subtraído a qualquer prova a qualquer controle a qualquer sentido ação sem critérios o comunismo não pode obter mais do que uma presença ausente INDICAÇÕES BIBLIOGRÁFICAS Camus A Lhomme révolté Gallimard 1951 Actuelles 3 vols MerleauPonty M Les aventures de la dialectique Gallimard 1955 Para posição contrária cf Simone de Beauvoir MerleauPonty et le PseudoSartrisme Les Temps Modernes julho de 1955 Sartre JP Les communistes et la paix artigos publicados em Les Temps Modernes 195254 agora em Situations VI Gallimard 1964 O estruturalismo e a dissolução da história O peso da historicidade contestada por Léo Strauss o sentido revolucionário da história quebrado pela lógica do Estado socialista a essa crítica filosófica e a essa deriva prática é preciso acrescentar uma contestação epistemológica da história As ciências sociais com o estruturalismo assumem uma orientação nova que parece pronunciar a dissolução da História O estudo do estruturalismo exigiria confrontar os trabalhos do linguista Roman Jakobson do biólogo François Jacob dos filósofos Louis Althusser e Michel Foucault do psicanalista Jacques Lacan e do etnólogo Claude LéviStrauss Contentarnosemos aqui em evocar as objeções que LéviStrauss levanta contra o historicismo LéviStrauss recorda a existência de povos ditos primitivos a cujo pensamento repugna a história ou pelo menos nossa concepção da história factual cumulativa progressista lugar por excelência da legitimação Esses povos pensam antes através do mito que conta histórias atemporais Portanto esse pensamento será qualificado como primitivo enquanto tais povos serão ditos sem história ao mesmo tempo produto e sinal de sua fraqueza de sua incapacidade para acolher os progressos tecnológicos A pesquisa etnológica desmente essas conclusões Esse pensamento não é tanto primitivo não civilizado quanto selvagem não domesticated Ele não ignora a história A equivocada distinção entre povos sem história e os demais poderia ser vantajosamente substituída por uma distinção entre 344 História das ideias políticas sociedades frias que buscam graças às instituições que constroem para si anular de modo quase automático o efeito que os fatores históricos poderiam ter sobre seu equilíbrio e sua continuidade e sociedades quentes que interiorizariam resolutamente o devir histórico para fazer dele o motor de seu desenvolvimento O reconhecimento da historicidade portanto ligase a uma escolha operada pela sociedade a uma ideologia e a disposições institucionais pre cisas A sucessão no tempo encontrase assim privilegiada em relação ao espalhamento no espaço a dimensão temporal desfruta um prestígio es pecial como se a diacronia fundasse um tipo de inteligibilidade não apenas superior ao fornecido pela sincronia mas sobretudo de natureza mais espe cificamente humana Imaginase que graças à dimensão temporal a his tória nos restitua não estados separados mas sim a passagem de um estado para outro sob uma forma contínuà Criticando a concepção sartriana LéviStrauss denuncia as pretensões da história total e revela sua preferência pelas histórias parciais Na medida em que a história aspira à significação ela se condena a escolher regiões épocas grupos de homens e de indivíduos nesses grupos e a fazer com que se destaquem como figuras descontínuas contra um contínuo capaz pre cisamente de servir como pano de fundo Por trás da História o que Lévi Strauss pretende desqualificar é a filosofia da história Ele substitui a oposi ção historicidadepermanência pela oposição diacroniasincronia A história não é mais o ponto de chegada da inteligibilidade mas seu ponto de partida O projeto sartriano de deduzir a historicidade de compreendêlà para dela fazer um instrumento da liberdade é assim desmantelado As sociedades de história lenta nas quais as estruturas os elementos intemporais dominam são ricas de ensinamentos políticos Talvez elas não sejam melhores do que a nossa embora estejamos inclinados a crer nisso não dispomos de nenhum método para proválo Todavia conhe cendoas melhor ganhamos um meio de nos distanciar da nossa não absolu tamente porque essa seja completamente ou apenas má mas porque é a única da qual nos devemos libertar Desse modo seremos capazes de sem nada reter de nenhuma sociedade utilizálas todas para extrair os princípios da vida social que poderemos aplicar à reforma de nossos próprios costumes O Estado em questão 345 I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFICA LéviStrauss C Tristes tropiques Plon 1955 Anthropologie structurele Plon 1958 ed brasileira Antropologia estrutural Tempo Brasileiro Rio de Janeiro 1967 La pen sée sauvage Plon 1962 ed brasileira O pensamento selvagem Cia Editora Nacional São Paulo 1969 A história indeterminada As novas correntes científicas e políticas portanto buscam menos eliminar a história do que lhe restituir sua diversidade e indeterminação O problema da revolução é então colocado de um ponto de vista diferente A tentativa de uma apreensão pósmarxista da revolução anima assim os trabalhos de Cor nélius Castoriadis Eles partem de uma refutação do materialismo histórico para chegar a uma nova concepção da relação entre tempo e sociedade A história é essencialmente poiésis contingente autocriação dos ho mens É preciso livrarse do marxismo como filosofia da história como saber do devir e de sua necessidade Uma libertação necessária pois esse marxismo revelouse inteiramente inexato perigoso e inútil Inexato a causalidade do econômico explicação pela infraestrutura o princípio da tomada de consciência como acesso à verdade e da classe social como encarnação de um momento do progresso jamais chegaram a explicar uma sequência histórica precisa Só contribuem para explicála na condição de serem transgredidos Inútil Se para ter uma teoria da história for preciso excluir da História quase tudo salvo o que se passou durante séculos numa pequena faixa de terra que cerca o Atlântico Norte o preço a pagar é verdadeiramente muito alto é melhor olhar para a história e recusar a teoria Mas não estamos reduzidos a esse dilema Não temos necessidade enquanto revolucionários de reduzir a história anterior da humanidade a esquemas simples Temos necessidade em primeiro lugar de compreender e interpretar nossa sociedade E isso só pode ser feito se a relativizarmos mostrando que nenhuma das formas da alienação social presente é fatal para a humanidade já que sempre existiram Perigoso essas prescrições metodológicas levam a justificar e mesmo sacralizar o presente em relação a um passado arbitrariamente reconstruído e a um futuro radioso assegurado O totalitarismo soviético não passa da apli cação da ideia de que há uma teoria verdadeira da História Se existe uma racionalidade em operação nas coisas é claro que a direção do desenvolvi História das ideias políticas mento deve ser confiada aos especialistas dessa teoria aos teóricos dessa ra cionalidade O poder deles deve ser absoluto qualquer democracia não passa de uma concessão à falibilidade humana dos dirigentes ou um proce dimento pedagógico cujas doses corretas podem ser administradas somente por esses dirigentes O fracasso do sistema marxista contudo não implica o fracasso do pro jeto revolucionário contanto que se admita a ideia central da revolução a de que a humanidade tem diante de si um verdadeiro futuro e que esse futuro não deve apenas ser pensado mas também feito Para tanto convém reabilitar a históriacontingência a políticavontade a revoluçãoautono mia Nossa sociedade imobilizou a temporalidade o tempo é negado já que é percebido como identitário o hoje é continuação do ontem do já feito Com esse tipo de apoio com tais categorias sendo utilizadas para compreender a história as de causalidade finalidade sucessão lógica a sociedade se pensa na sucessão e chega a negarse enquanto autocriação Ela não confessa que se criou não se reconhece como instituinte Contudo toda sociedade é ao mesmo tempo instituinte e instituída Cas toriadis convoca a uma compreensão do que ele chama de socialhistórico Por um lado estruturas dadas instituições e obras e por outro o que estrutura institui materializa Compreensão que passa pela do indivíduo so cial encontro entre dois mundos o mundo privado e o mundo comum en tre duas histórias a história da psique imaginação radical do inconsciente e a da ação da sociedade sobre essa psique Somente então os homens poderão autoinstituir abertamente sua sociedade I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFI CA Castoriadis C Einstitution imaginaire de la société Le Seuil 1975 ed brasileira A insti tuição imaginária da sociedade Paz e Terra Rio de Janeiro 1982 A QU ESTÃO DO PODER A história não dita mais a solução o Estado socialista não se extingue o Estado liberal se totalitariza A política não pode ser pensada nessas pers pectivas habituais Depois desses desmentidos que interesse há em buscar o bom governo o Estado legítimo ou tipo de Estado que se extinga Qual é o bom Estado A questão não é mais essa Por que o poder Já é tempo de le vantar essa indagação O Estado em questão 347 O poder e não somente o Estado já que a questão do poder parece mais pertinente mais ampla mais profunda já que essa simples mudança de termo desloca o ponto de vista O que faz com que as pessoas obedeçam Como explicar que certos homens se instituam como dominantes e decidam por todos fabricando os meios de perenizar sua dominação e de aplicar suas decisões O que faz com que eles obtenham a obediência de uma comuni dade por vezes muito ampla onde as relações empíricas entre dominantes e dominados parecem por vezes tão tênues E o que faz com que por vezes alguns já não obedeçam mais Colocar essas questões procurar por toda parte o poder e seus pontos de apoio é nisso que se empenha uma problemática nova na pesquisa social particularmente na França Nos anos 195060 a filosofia política girou em torno da questão do comunismo nos anos 196070 as ciências humanas se renovaram com o estruturalismo os anos 197080 põem o poder em ques tão Problemática do pósmarxismo no qual o fracasso soviético é levado em conta o fracasso ou seja não apenas o Gulag mas também o fato de que a Revolução Russa teve êxito tão somente nos casos em que com outros meios de resto mais discretos o próprio capitalismo também teve êxito de senvolvimento industrial e científico potência militar Fracasso amargura dúvidas Emerge a recusa recusa radical que afasta teorias e práticas socialistas e liberais assim como seus avatares do Terceiro Mundo Em nome das liberdades todo poder é posto em questão através do estudo das rebeliões que suscita Marcuse das sutilezas onipre sentes de seu exercício Foucault de suas maquinações do desejo De leuzeGuattari do desafio niilista a lhe opor Lyotard Baudrillard Rebeliões FreudMarcuse Contestações inesperadas surgiram à luz do dia rebeliões contra os poderes que Herbert Marcuse empenhouse em teorizar Movimentos novos entram em choque com a ordem social sem se inscreverem na perspectiva da luta contra o poder central Essas sublevações não foram previstas pela ciência política que não as compreende de modo algum não foram controladas pe las instituições políticas incluídos os partidos das quais elas se desviam não podem ser explicadas pelas categorias clássicas do marxismo Jovens americanos recusam fazer a guerra e preferem a prisão ou o exílio jovens alemães se insurgem em Berlim em abril de 1968 contra o magnata da im prensa sensacionalista jovens franceses desencadeiam uma revolta genera lizada em maio de 1968 os tchecos inventam a primavera na política para História das ideias poUticas libertar o socialismo do stalinismo e nos anos 1970 multiplicamse no Leste as dissidências de intelectuais que preferem correr o risco de ir para um hos pital psiquiátrico e pensar como bem entendem a ingressar nas academias pensando o que lhes ordenam pensar Para esboçar a teoria dessa espontaneidade Marcuse após Reich su pera Marx com Freud A referência a Freud parte das teses de O malestar na civilização mas para compreendêlas é preciso especificar em que a teoria freudiana destrói a concepção que o homem construiu de si mesmo desde a época clássica Freud destrói a visão tradicional do Eu Reduzida à sua expressão mais simples ela se resumiria na seguinte equação Essência do homem Personalidade Consciência Ego Moí Eu e Vontade livre Freud demonstra que o Ego não é essa bela unidade constituída por uma reflexão sobre si que não é uma consciência clara um ego cada vez mais eu uma vontade cada vez mais livre A consciência na verdade não é mais do que um elemento da individualidade o Ego não é mais do que um lugar de fronteira dependente de duas forças igualmente poderosas O inconsciente ou o ld conjunto de pulsões onde as experiências de terminantes e reprimidas se inscrevem como traços mnésicos permanentes O inconsciente funciona segundo uma lógica própria sem relação com os encadeamentos racionais ignorando as regras da sucessão temporal Lap sos sonhos atos irrefletidos as diversas manifestações de incoerência ou de loucuras tornamse assim objeto de um conhecimento específico O mora lismo da pessoa privada ou pública recebe um golpe fatal Tanto mais que a segunda força da qual o Ego resulta não é esse ideal idílico mas sim O Superego produto da estrutura familiar interiorização das proibi ções pela criança O homem não se contenta em reprimir as pulsões Cada um aprende a instalar para si um pequeno tribunal pessoal através da identificação com os pais Esse tribunal o Superego exerce uma constante vigilância fabrica modelos favorece a aceitação das coerções e desenvolve a culpabilidade Os homens e as mulheres são sacudidos entre as pulsões do Id e os ide ais do Superego As coisas se complicam ainda mais por causa do caráter con traditório das pulsões A constituinte dinâmica fundamental é a libido pul são profunda que anima cada um desde a infância pulsão sexual que emana do corpo inteiro Mas às pulsões sexuais de Eros opõemse as pulsões do Ego o Tanatos que visam a poupar a energia desencadeada da sexualidade Reencontrase essa contradição no plano coletivo na civilização A civiliza O Estado em questão 349 ção opõe o princípio de realidade ao princípio de prazer o princípio de reali dade é a exigência de adaptação que se impõe ao Ego consciente tornandoo tributário do mundo exterior e ao mesmo tempo frágil angustiado Disso resulta o sofrimento do homem na civilização É o princípio de prazer que determina a vida que governa desde a origem as operações do aparelho psíquico Nenhuma dúvida pode subsistir quanto à sua utilidade Mas apesar disso o universo inteiro busca contestar o seu programa Seríamos tentados a dizer que não fez parte do plano da criação que o homem fosse feliz A civilização impõe ao homem que renuncie a seus desejos que os repri ma O homem tornase neurótico porque não pode suportar o grau de re núncia exigido pela sociedade em nome de seu ideal cultural A civilização do progresso da dominação da natureza da felicidade e da razão é assim um de plorável fracasso inclusive em seus sucessos Pois cada conquista da racionali dade encontra seu duplo no aparecimento de um sofrimento mais pesado Marcuse acredita que na civilização contemporânea a repressão da li bido é acrescida pela competição e pelo imperativo do rendimento As classes produtoras são atingidas por uma maisrepressão são cada vez mais integra das ao sistema tanto ideológica como materialmente Assim o proletariado industrial cuja alienação tornase cada vez mais difusa e acompanhada por fenômenos compensatórios perde sua força revolucionária A revolta então virá das margens das camadas sociais rejeitadas e por isso capazes de negação e de oposição radical Marginalizadas por seu esta tuto excluídas das compensações do rendimento tais camadas recusam o jogo da sociedade industrial e conservam a dinâmica do princípio do prazer Somente elas podem lutar por uma revolução fundamental que acabe com a exploração e promova uma erotização geral da existência I N D I CAÇÕ ES B I B LI O G RÁFI CAS Freud S Totem et tabou 1912 Payot 1947 ed brasileira Totem e tabu Delta Rio de Janeiro 1955 Malaise dans la civilisation 1929 PUF 1971 ed brasileira Malestar na civilização Imago Rio de Janeiro 1973 Marcuse H Ihomme unidimensionnel 1964 Ed de Minuit 1968 ed brasileira Ideolo gia da sociedade industrial Zahar Editores Rio de Janeiro 8ª ed 1981 350 História das ideias políticas O poder como estratégia Foucault Ao contrário de Marcuse Michel Foucault não se identifica com um movi mento político preciso Seus trabalhos contudo contribuem para a contesta ção da ordem política tradicional por meio da redefinição do poder que eles propõem Deixando de ser um atributo o poder é compreendido como um exercício Uma tal concepção parte de um novo enfoque sobre a cumplici dade entre saber e poder para levar a uma visão que privilegia as resistências em face da Revolução O poder é um exercício o saber seu regulamento Os primeiros traba lhos de Foucault se situam no quadro da epistemologia a ciência das ciên cias Ele procede a uma crítica da ciência da filosofia da ciência das cate gorias implícitas ou explícitas que são subjacentes às ciências à constituição dos saberes Foucault desmonta assim o mito do progresso e seus corolários as noções de filiação de continuidade de sucessão de influência de matu ração na medida em que o estudo da formação das disciplinas científicas revela que elas ao contrário avançam através de diferenças de nível descon tinuidades e rupturas O deus ex machina da dialética se encontra desqualifi cado ao mesmo tempo que seu par a consciênciasujeito Fazer da análise histórica o discurso do contínuo e fazer da consciência humana o sujeito de todo devir e de toda prática são as duas faces de um mesmo sistema de pensamento O tempo em tal sistema é concebido em termos de totalização e as revoluções que nele ocorrem nunca passam de tomadas de consciência Compreendese que aqui Foucault referese a Marx Nietzsche e Freud ou seja aos três pensadores que operaram os principais descentramentos em relação ao papel fundador do sujeito a partir do qual se pensava o mundo Marx opõe a tal sujeito a categoria do modo de produção Nietzsche a inves tigação genealógica Freud o inconsciente em todos os três casos o sujeito deixa de ser central Uma nova apreensão do poder então toma forma O poder é uma es tratégia o poder está em toda parte O poder é uma estratégia As concepções tradicionais resolvem o pro blema simplificandoo excessivamente O formalismo jurídico põe como postulado que não há poder duradouro que não seja legítimo Ele remete à Lei e à autoridade que a edita Então temse apenas de discorrer sobre as condições formais da legitimidade e no máximo de glosar sobre a norma A sociologia durkheimiana assume uma perspectiva mais ampla mas ao considerar que o fato social é coercitivo por natureza reduz os poderes a O Estado em questão 351 pontos de aplicação da dimensão repressiva inerente à sociedade Quanto à sociologia marxista em lugar de buscar a Lei ela busca a classe social que a manipula o que no caso dá no mesmo Nos três casos do formalismo jurídico da sociologia durkheimiana e da sociologia marxista deixase de lado o essencial esquecese que o exercício do poder é em cada oportuni dade algo singular em seus mecanismos objetivos e efeitos A ideia de um poder maciço global do qual tudo parte ou ao qual tudo retorna não se sustenta Portanto é impossível elaborar uma física geral do Poder uniforme e que domina a sociedade Em vez de indagar sobre o Po der devese pesquisar as práticas disciplinares constituídas desde a época clássica com seus campos de operação seus poderes próprios e em função de saberes dotados de regras específicas Esses saberes e essas instituições ins talaramse com o objetivo de obter o adestramento dos corpos e das palavras de atingir o enquadramento da existência Portanto é preciso conceber uma microfísica do poder e essa microfísica supõe que o poder que se exerce não seja concebido como uma proprie dade mas como uma estratégia que seus efeitos de dominação não se mas a disposições manobras táticas téc jam atribuídos a uma apropriação nicas funcionamentos Esse poder se exerce em vez de ser algo que se possui não é mas o efeito de conjunto de suas dis privilégio adquirido ou conservado da posições estratégicas classe dominante Ele não se aplica pura e simplesmente ele os envolve passa por e através deles como uma obrigação ou uma proibição apoiase neles aos que não o possuem não se localizam nas relações do Es tado com os cidadãos ou na fronteira Essas relações deitam profundas raízes na espessura da sociedade dos corpos in La Volonté de savoir Todo poder se define como uma tecnologia política dos corpos As relações de poder operam sobre o corpo uma apropriação imediata in vestemno marcamno adestramno indicamlhe trabalhos obrigamno a cerimônias exigemlhe sinais O corpo só se torna força útil quando é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo subjugado E Michel Foucault explora os procedimentos ideais e técnicos de controle do corpo de controle do doente do louco do delinquente Assim os saberes correspondem a essa estratégia em que o poder consiste e devem ser relacionados a ela Por exemplo em vez de tratar a história do direito penal e a história das ciências humanas como duas séries separadas devese investigar se não há uma matriz comum a reorganização do poder de punir nascimento da prisão controle da delinquência por uma administração das penas como procedimento de prevenção dissuasão punição reabilitação reinserção Foucault penetra em domínios comumente negligenciados pela ciência política para neles descobrir as técnicas de amestramento Ele analisa a disciplina essa anatomia política do detalhe esse ensinamento da docilidade através de um sistema de micropenalidades que controla o tempo atrasos ausências interrupção do trabalho a atividade desatenção negligência falta de zelo a maneira de ser falta de polidez desobediência os discursos tagarelice insolência o corpo atitudes incorretas gestos impróprios a sexualidade imodéstia indecência Vigilância e penalidade têm como finalidade impor moral e materialmente o poder da Norma O urbanismo a psiquiatria a criminologia a sexologia a sociologia todos esses saberes servem ao mesmo tempo como legitimidade e como modos de emprego dos poderes O poder está em toda parte A soberania do Estado o quadro jurídicorepressivo ou a dominação de uma minoria não são os dados iniciais mas as formas termina O Estado em questão 353 I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFICA Foucault M Naissance de la clinique une archéologie du regard médicat PUF 1963 Les mots et les choses Gallimard 1966 Histoire de la folie à lilge classique Plon 1961 Surveiller et punir Gallimard 1975 ed brasileira Vigiar e punir Vozes Petrópolis 1979 La volonté de savoir histoire de la sexualité t I Gallimard 1976 ed brasileira História da Sexuali dade 1 A Vontade de Saber Graal Rio de Janeiro 21 ed 1979 As megamáquinas do poder Foucault vê no poder antes de mais nada um adestramento do corpo Gilles Deleuze e Félix Guattari tomam também o corpo como ponto de partida como dado fundamental como lugar pleno onde se exercem esses fluxos maquinais que são chamados de desejo Há máquinas em toda parte e não de modo inteiramente metafórico máquinas de máquinas com seus acoplamentos suas conexões Uma má quinaórgão ramifica se a partir de uma máquinafonte uma emite um fluxo que a outra corta O seio é uma máquina que produz leite e a boca uma máquina acoplada naquela outra É perigoso resumir uma obra tão densa como O AntiÉdipo na qual se elaboram conceitos novos vamos tentar definilos Desejo O desejo é esse conjunto de sínteses passivas que maquinam os objetos parciais os fluxos e os corpos e que funcionam como unidades de produção O real decorre dele é o resultado das sínteses passivas do desejo Ao desejo não falta nada a ele não falta seu objeto É antes o sujeito que falta ao desejo ou ao desejo que falta um sujeito fixo só há sujeito fixo pela repressão Anti Oedipe I p34 Fluxo Isto funciona em toda parte às vezes sem parar às vezes descontínuo Isto respira isto esquenta isto come Isto caga isto fode Que erro ter dito o isto Em toda parte são máquinas de maneira alguma metaforicamente má quinas de máquinas com seus acoplamentos suas conexões Uma máquina órgão é ligada em uma máquinafonte uma emite um fluxo que a outra cortà id p7 Máquina desejante As máquinas desejantes são máquinas binárias com regra binária ou regime associativo sempre uma máquina acoplada com uma outra A síntese produtiva a produção de produção tem uma forma conectiva e e de 354 História das ideias políticas pois É que sempre há uma máquina produtora de um fluxo e uma outra que lhe é ligada operando um corte uma extração de fluxo o seio a boca ibid pn Corpo pleno sem órgãos As máquinas desejantes fazemnos um orga nismo mas dentro dessa produção na sua própria produção o corpo sofre por estar organizado assim por não ter outra organização O corpo pleno sem órgãos é o improdutivo o estéril o ingendrado o incomensurável id p14 Codificação inscrição A sociedade não é primeiramente um meio de troca onde o essencial seria circular ou fazer circular mas um socius de inscrição onde o essencial é marcar e ser marcado id p166 Megamáquina social A máquina social tem como peças os homens mesmo se os consideramos com suas máquinas e os integramos e interiorizamos em um modelo institucional em todos os níveis da ação da transmissão e da motri cidade Assim ela forma uma memória sem a qual não haveria sinergia do ho mem e de suas máquinas técnicas Estas não contêm com efeito as condições de reprodução de seu processo remetem a máquinas sociais que as condicio nam e as organizam mas também limitam ou inibem o seu desenvolvimento id p165 Esses termos permitem recompor a história universal indicar os mo mentos importantes da produção social da produção da sociedade por ela mesma Todavia não há nenhum determinismo nessa sucessão a referência constante a Marx admite a importância do econômico mas entende como tal mais do que apenas a produção de bens e recusa qualquer causalidade direta ou dialética o econômico age como uma maquinação de fluxos e or ganiza o desejo Assim esboçamse três épocas principais Corpo pleno Acoplamento desejocorpo pleno Ação das megamáquinas sociais Ilustração Códigos Evolução limite o Dó C E megamáquina territorial codificação dos fluxos marcar os territórios Demarcação do território Marcação dos corpos inscrições filiações e alianças conjurar a troca que fluxos de troca e de produção não venham quebrar os códigos salvar o Estado é sob os golpes da propriedade privada e da produção mercantil que o Estado conhece sua extinção a Terra o Déspota megamáquina do Estado o Capital axiomática capitalista supercodificação dos fluxos apropriar a maisvalia O imposto não para alimentar o aparelho do Estado A burguesia decodificante tira da máquina um fluxo indiviso de rendas convertíveis em bens no qual se fundem os salários e os lucros a família pequena colônia que fixa os fluxos decodificados evitar a esquizofrenia o esquizofrênico se mantém no limite do capitalismo é sua tendência desenvolvida seu anjo exterminador 356 História das ideias polfticas Quanto às consequências da investigação deleuziana elas não poderiam se inscrever num programa político A despeito da axiomatização capita lista conservase o desejo não como carência espera do paraíso mas como energia A oposição é entre a classe entre os servos da máquina entre o regime da máquina social I N D I CAÇÕ ES B I B LI O G RÁFI CAS e os semclasse e os que a destroem ou destroem suas engrenagens e o regime da máquina desejante Deleuze G e Félix Guattari IAntiOedipe capitalisme et schizophrénie Ed de Minuit 1972 ed brasileira O AntiÉdipo Imago Rio de Janeiro 1979 Deleuze G e Claire Parret Dialogues Flammarion 19n Niilismos A energia do desejo é drenada para uma determinada configuração de rela ções sociais e não para uma outra em função dos arranjos maquinais de uma dada sociedade JeanFrançois Lyotard tal como Deleuze e Guattari é um adepto da política esquizoanalítica mas à diferença deles recusa qual quer pretensão teórica para pregar apenas a deriva libidinal A dualidade entre máquinas desejantes e megamáquinas sociais suge rida em O AntiÉdipo tem o erro de se inscrever ainda no esquema marxista no qual a existência social é considerada como fonte de alienação Portanto ela mantém ainda que no niilismo um pensamento político crítico Lyo tard considera necessário renunciar a qualquer ambição dessa natureza e abandonar o terrorismo da atitude crítica profundamente racional profundamente adequada ao sistema profundamente reformista a crítica se mantém na esfera do criticado pertencelhe supera ape nas um termo de posição não a posição dos termos E é profundamente hie rárquica de onde o crítico extrai sua força sobre o criticado Ele sabe mais É o professor o educador Portanto é a universalidade a unidade o Estado a Cidade inclinandose sobre a infância a natureza a singularidade o aleijado para eleválos até ele O Estado em questão 357 Em última instância apesar das intenções contrárias chegase à con servação intacta da relação autoritáriâ O que dizer O que fazer Derivar para fora da crítica assim como de riva o desejo que pouco a pouco destrói a ordem atual Para milhões de jovens o desejo não mais se inscreve no desenvolvimento kapitalista eles não se veem mais e não mais se comportam como força de trabalho a ser valorizada em função da troca ou seja do consumo têm re pugnância pelo que o kapital continua a chamar de trabalho de vida moderna de consumo por todos os valores de nação família Estado propriedade pro fissão educação valores que percebem como paródias do único valor o valor de troca O que a nova geração realiza é o ceticismo do Kapital seu niilismo não há coisas pessoas fronteiras saberes crenças não há razões para vivermorrer Mas esse niilismo é ao mesmo tempo a mais forte afirmação contém a liberta ção potencial das pulsões em face da lei do valor As pulsões contra o valor a libido contra o dinheiro a fruição contra a necessidade Freud diria o prazer contra a civilização mas não nos en ganemos não se trata para Lyotard de impor um princípio contra outro a ordem afetiva contra a ordem racional mas a desordem libidinal a deriva do desejo a absoluta liberdade de fruição sem o menor referente central sem excluir o amor pelo próprio capital Com que direito condenar o amor pelo dinheiro ou o fascínio pela mercadoria A partir de que vocês criticariam o fetichismo quando vocês sabem que não se pode criticar a homossexua lidade e o masoquismo sem se tornar um crápula vulgar no plano moral Pelo fato de que o capital dá lugar ao poder e à dominação à exploração e mesmo ao extermínio Isso é certo mas são as coisas ainda mais obscuras porque os proletários explorados fruem com sua exploração Vejam os proletários ingleses o que o capital ou seja o trabalho deles fez de seus corpos Mas vocês irão me dizer bem é isso ou morrer Será que vocês acreditam que essa é uma alternativa isso ou morrer E que se alguém faz isso ou seja tornase escravo de sua máquina máquina de máquinaodedor fodido por ela durante oito horas por dia doze horas há um século é por ser forçado obrigado por que se apega à vida A morte não é uma alternativa a isso é uma parte disso atesta que há gozo nisso Os desempregados ingleses não se torna ram operários para sobreviver eles gozaram com o esgotamento histérico masoquista sei lá o quê de permanecer nas minas nas fundições nas fábricas 358 História das ideias políticas no inferno gozaram em e com a louca destruição imposta a seus corpos orgâ nicos gozaram com a decomposição de suas identidades pessoais Mas apesar disso eles também se revoltaram Um tal gozo digo o dos proletários não é de modo algum excludente das mais duras e mais intensas revoltas O gozo é insuportável Portanto não resta mais do que a apatia te órica e a exaltação do gozo ainda que algumas vezes seja ele que nos assas sina Lyotard leva ao ultraniilismo É possível ir mais longe na recusa Baudrillard acredita que sim cri ticando Foucault Deleuze Lyotard e Cia de ainda participarem da lógica produtivista do imperativo da produção O libidinal substitui a economia política um modelo de socialização mais fluido através do psíquico e do se xual sucede o modelo de socialização violento e arcaico através do trabalho mas de um discurso a outro corre do mesmo ultimato de produção no sentido literal da palavrà Ninguém chega até o fim da crítica das ortodoxias marxista e freudiana reconhecer que o poder é um engodo que só existe na medida em que se modifica que só se efetiva num ciclo reversível de sedu ções de desafios e de astúcias A produção acabou a revolução é ilusória e a única coisa que está em jogo é a morte O fim da produção esse esquema dominante da era industrial está supe rado O Capital transcendeu a produção Seu poder lhe vem justamente de seu desenvolvimento simultâneo em todos os níveis de não se ter jamais confundido a fundo com a produção como o fez Marx e todos os revolucionários posteriores que foram os únicos a crer e continuar crendo na produção que com ela misturaram suas fantasias e suas mais loucas esperanças O capital quanto a ele contentase em ampliar sua lei com um só movi mento ocupando inexoravelmente todo o espaço da vida sem se preocupar com prioridades E se ele colocou as pessoas no trabalho também as colocou na cultura nas necessidades na informação e na comunicação colocouas no direito na liberdade na sexualidade colocouas no instinto de conservação e no instinto de morte adestrouas por toda parte ao mesmo tempo segundo mitos adversos e indiferentes É essa sua única lei a indiferença O trabalho não se explica pela produção ele não é mais uma força po rém uma atribuição um lugar doado O trabalho também sob a forma de lazer invade toda a vida como repressão fundamental como controle como ocupação permanente em tempos e lugares O Estado em questão 359 regulamentados de acordo com um código onipresente É preciso fixar as pes soas por toda parte na escola na fábrica na praia ou diante da TV ou na reci clagem Mas esse trabalho não é mais produtivo no sentido originário não é mais do que o espelho da sociedade seu princípio fantástico de realidade Portanto é impossível calcular o valor das mercadorias ou o justo preço do trabalho O salário não é mais equivalente ou proporcional ao que quer que seja é um sacramento tal como o batismo que faz de você um ver dadeiro cidadão da sociedade política do Capital A moeda primeira mer cadoria assume o estatuto de signo e afastase do valor de uso Afastase até mesmo do valor de troca Liberada do próprio mercado tornase simu lacro autônomo esvaziada de qualquer mensagem ou significação de troca convertida ela mesma em mensagem e trocandose por si mesmà O poder e a morte o poder é o dom o dom unilateral o dom de tudo até mesmo da vida O segredo do poder do capital é antes de mais nada o de se pôr na situação de ser a própria instância que doa doa trabalho bemestar segurança cidada nia e em segundo lugar o de implantar instituições mediações sociais tais que ninguém possa ter jamais a oportunidade de perceber o desafio representado por um tal dom O trabalho é uma morte lenta oposta à morte violenta É uma morte adiada portanto uma vida dada pelo capital Ou então essa morte lenta é uma tentativa desesperada para devolver o dom para desafiar o poder do ca pital Morte lenta adiada ineficaz A única réplica eficaz ao poder consiste em devolverlhe o que ele dá e isso só é possível simbolicamente por meio da morte A morte é a única arma absoluta e sua simples ameaça coletiva pode fazer com que o poder entre em colapso Diante dessa única chantagem simbólica barricadas de 1968 prisão de reféns o poder se desune já que ele vive de minha morte lenta eu lhe oponho minha morte violenta E é porque vivemos da morte lenta que sonhamos com a morte violenta Esse simples sonho é insuportável para o poder Ao poder que dá tudo podemos contrapor apenas a desobediência as resistências o desejo ou a deriva libidinal de que todos fazemos parte ao poder que dá tudo podese opor apenas a morte Hist6ria das ideias poUticas I N D I CAÇÕ ES B I B LI O G RÁFI CAS Baudrillard J Iéchange symbolique et la mort Gallimard 1976 Lyotard JF Économie libidinale Minuit 1974 A QU ESTÃO DO ESTADO A questão do poder foi dissolvida na indicação das redes que inervam o tecido social Foucault o exercício do poder foi considerado como um dado geral da existência a única resposta possível em face dessa inelutabilidade torna se então a ontologia niilista dos desejantes Deleuze libidinais Lyotard mortíferos Baudrillard Para tentar escapar dessas sombrias soluções ou mais modestamente para retomar a questão inicial da obediência será que não se deve evitar a diluição do político no poder e colocar a questão do Estado As interrogações contemporâneas reencontram então intuições mais antigas e buscam inspiração até mesmo nos primitivos Clastres e Lefort re leem La Boétie Legendre decifra o direito canônico Marcel Gauchet vincula o político ao religioso Claude Lefort reinventà a democracia Por que a obediência La Boétie Por que eles obedecem Por que nós obedecemos Por que vocês obedecem Étienne de La Boétie coloca a questão em 1548 em seu Discurso sobre a ser vidão voluntária Como é possível que tantos homens tantas cidades tantas nações suportem algumas vezes um único Tirano que apenas tem o poder que eles lhe atribuem que não tem possibilidade de causarlhes dano ao qual se quisessem pode riam resistir do qual não poderiam sofrer nenhum mal se não preferissem tudo sofrer dele em vez de contradizêlo Coisa verdadeiramente surpreendente e contudo tão comum que antes temos de lamentála do que nos espantar com ela Ver milhões e milhões de homens miseravelmente subjugados e submeti dos de cabeça baixa a um jugo deplorável e não porque sejam obrigados a isso graças a uma força irresistível mas porque são fascinados e por assim dizer enfeitiçados pelo único nome de um que não deveriam temer já que é único nem adorar já que é diante deles todos desumano e cruel O Estado em questão 361 Temos aqui a questão mais subversiva de todas comenta Pierre Clas tres espantarse com a servidão voluntária é supor que a liberdade é pos sível É também instituir um corte radical entre sociedades de liberdade e sociedades de servidão Não há deslizamento progressivo da liberdade para a servidão mas o brutal desencontro que faz com que o antes da liber dade entre em colapso na posterior servidão La Boétie afasta as diferen tes explicações naturais A covardia dos súditos Ela não explicaria o desejo de servidão Ademais os mesmos homens que se abaixam diante do tirano mostram o maior heroísmo na guerra impossível chamálos de covardes A vontade de ter A renúncia à liberdade para possuir em tranquilidade seria concebível mas não é esse o caso Pessoas pobres e miseráveis povos insensatos nações teimosas em seu mal e cegas em seu bem vocês deixam que lhes tomem diante de seus próprios olhos o mais belo e o mais claro de suas rendas deixam que pilhem os seus campos que devastem suas casas e lhes despojem dos velhos móveis de seus ancestrais Vocês vivem de tal modo que nada mais lhes pertence La Boétie exclui a explicação econô mica E então Então Lefort explica o vocês de La Boétie Esse vocês se dirige ao povo a cada homem Mas seria um engano crer que ele aponta para a comu nidade do povo ou para os indivíduos percebidos como exemplares de uma mesma natureza humana ele designa um entrevocês o plural que se desfaz na produção do Um a renúncia recíproca de onde surge o Outro Contra Um esse era o título original do Discurso da servidão voluntária porque esse é o erro o Um a articulação de cada um com cada um numa totalidade para dar um conteúdo à vida comum a necessidade de uma identidade encon trada no outro A fonte da dominação ligase ao desejo existente em cada um qualquer que seja a escala da hierarquia que ocupa de se identificar com o tirano ao se fazer senhor de um outro O UmNós portanto faz o tirano A servidão voluntária repousa numa dupla cadeia de identificação a primeira pela qual a comunidade se reco nhece no Um e aceita assim o comando dele a segunda que multiplica o comando e através da qual se constituem grupos que exercem o poder para ele e em seu nome Assim a tirania atravessa a sociedade de lado a lado La BoétieClastresLefort colocam assim o problema da dominação po lítica a partir da soberania estatal tipo de dominação dos mais poderosos mas insistem eles não necessário A organização política não implica obrigatoriamente a cisão entre dominantes e dominados Os homens pode riam recuperar sua liberdade 362 História das ideias políticas Disponhamse a não mais servir e vocês serão livres Não quero que vocês o combatam nem que o derrubem mas somente que não o sustentem e verão que tal como um grande colosso do qual se retira a base ele tombará por seu próprio peso e se quebrará Para melhor elucidar o mistério da submissão Pierre Clastres não se contenta em reler La Boétie Também se esforça no sentido de renovar a an tropologia política e de extrair algum ensinamento do estudo das sociedades primitivas as quais apresentam em alguns casos um modelo único de so ciedade sem Estado A óptica contemporânea produtivista e evolucionista deduz desse fato que se trata de sociedades incompletas e portanto implici tamente inviáveis Todavia a observação das mesmas revela uma tecnologia adaptada aos seus problemas Para o homem das sociedades primitivas a atividade de produção é exatamente mensurada delimitada pelas necessidades a satisfazer entendendose que se trata essencialmente de necessidades energéticas a produção se baseia na re constituição do estoque de energia dispendida É a vida enquanto natureza que funda e determina a quantidade de tempo de trabalho consagrada a re produzila Disso resulta uma sociedade livre na qual os homens são senhores de sua atividade igualitária na qual a economia não se constitui em domínio autônomo ociosa na qual o homem só trabalha algumas horas apenas para viver e não para fazer com que os que não trabalham vivam No caso contrá rio aparece o Estado Quando a produção não é mais primitiva isso significa que ela se tornou uma sociedade dividida em dominantes e dominados em senhores e súditos sig nifica que ela deixou de exorcizar o que está destinado a matála o poder e o respeito pelo poder A revolução estatal revelase então o corte decisivo a grande divisão en tre selvagens e civilizados o incancelável corte para além do qual tudo mu dou já que o tempo se transformou em histórià Muito mais importante do que a revolução neolítica que trouxe a domesticação dos animais a agricul tura a tecelagem a cerâmica a sedentarização mas não necessariamente o Estado Também aqui a determinação da superestrutura pela infraestrutura cara aos marxistas não funciona há sociedades de nômades com Estado e sociedades de agricultores sem Estado A verdadeira linha de divisão O Estado em questão é a revolução política é o surgimento misterioso irreversível mortal para as so ciedades primitivas daquilo que conhecemos sob o nome de Estado Uma única reviravolta estrutural abissal pode transformar destruindoa enquanto tal a sociedade primitiva a reviravolta que faz surgir do seu seio ou de fora aquilo cuja ausência é precisamente o que define essa sociedade a autoridade da hierarquia a relação de poder a sujeição dos homens o Estado Mas então de onde provém o poder político de onde provém o Es tado Antes de mais nada é preciso saber que seu não aparecimento é pos sível e por exemplo que os chefes primitivos não detinham um poder de tipo estatal O espaço da chefia não é o lugar de um poder e a figura muito mal designada do chefe não prefigura em nada a de um futuro dés pota O chefe das sociedades ameríndias não possui nenhuma autoridade no sentido contemporâneo da expressão ele não faz a lei Ele é investido ao contrário de deveres e servidões tem de assegurar relações pacíficas no seio do grupo ser generoso com seus bens expressar o consensus omnium na linguagem conveniente é uma espécie de prisioneiro da coletividade O chefe é venerado em sua impotência sua opulência é o sonho diurno do grupo Todavia ocorre que o poder da chefia aumenta que os chefes tentam se tornar reis com sucesso em alguns casos Mas paralelamente a essa emer gência do poder político um estranho fenômeno desde o início das últimas décadas do século XV agitava as tribos tupiguaranis as pregações inflamadas de certos homens que de grupo em grupo convocavam os índios a abandonar tudo e a se lançar em busca da Terra sem Mal do paraíso terrestre Esse movimento expressava a insistente ideia segundo a qual o lugar de nascimento do Mal da fonte da infelicidade era o Um Ele convidava a abolir a infelicidade através da recusa radical do Um como essência univer sal do Estado A oposição radical entre dois tipos de sociedade com ou sem Estado corresponderia assim a uma oposição metafísica decisiva conforme o fato de que o Um figura o bem ou o mal O pensamento dos profetas selvagens e o dos gregos antigos pensam a mesma coisa o Um mas o índio guarani diz que o Um é o mal enquanto Heráclito diz que é o bem História das ideias políticas Em que condições o Um é pensado como Bem Essa se torna então a questão crucial da antropologia política para compreender seriamente o fato do Estado I N D I CAÇÕES B I B LI O G RÁFI CAS Clastres P La société contre lEtat Minuit 1975 De La Boétie É Discours de la servitude volontaire 1548 Payot prefácio de Pierre Clas tres posfácio de Pierre Clastres e Claude Lefort 1976 ed brasileira Discurso da ser vidão voluntária Brasiliense São Paulo 1982 As armadi lhas da teologia Legendre Os homens aceitam obedecer ou melhor escolhem obedecer identificando se todos com Um É assim que nasce o Estado que esse se pereniza Mas como se mantém essa dominação estatal Pierre Legendre tenta responder a partir de uma análise do direito canônico o poder pontifício forneceria de certo modo a chave para o Estado moderno Desde a Idade Média até nossos dias a ação da teologia garante a do minação da instituição estatal centralizadora Ontem religiosa hoje secular e radicalmente laica é sempre a teologia que está em operação A Igreja e sua lei canônica presentearamnos com um Ocidente antes do capitalismo elas ensinaram ao Estado como utilizar o desejo sexual como lhe impor a ordem de uma censura mas também como oferecêlo como objeto de amor A composição moderna do Poder sob as figuras da teocracia pontifícia é instaurada a partir do século XII com a fundação do discurso canônico O direito canônico organiza uma simbólica onde transparece o objeto erótico e que realiza imaginariamente o desejo segundo uma combinação muito complexa característica da cultural ocidental O pontífice único e so berano ocupa nessa simbólica um lugar central Ele é o Ausente Mostrase no lugar de um outro é autenticamente apresentado para represen tar o Ausente Recebeu o encargo inumano de comandar de cima a baixo Conserva chaves místicas Sua sentença declara a Lei e mantém a sacros santa Igreja O Estado em questão Ele é Roma Uma transferência do Império teve lugar e o soberano pontífice aparece na ca deia dos signos como um duplo do imperador romano a ponto de receber as mesmas fórmulas simétricas Ele é o pai castrado A doutrina do pontífice inclui uma remissão ao estatuto geral do clero O que suja as mãos do padre é definido em três temas a mulher o sangue o dinheiro A obrigação sacerdotal de castidade retira o clérigo do universo laico marcado pelo tema da mulher e da punição Desse modo o soberano pontífice enquanto representa a onipotência e a privação sexual resolve uma antinomia é o pai mas castrado Ele inscreve o objeto sexual sob a ameaça depois o desejo é realizado imaginariamente pela castração fictícia infligida ao pai Ele é o intérprete É o portador do direito canônico Se ele é senhor é para transmitilo é o portavoz da instituição Constituise assim uma experiência arquetípica sig nificativamente difundida e depois modernizada na Europa as grandes buro cracias nacionalistas do Ocidente conquistaram igualmente as massas através dessa ficção da monarquia de um chefe sacrossanto ditando sob sua lógica os estereótipos de uma crença Sem esse título de autoridade rigorosamente con trolado segundo os procedimentos estabelecidos pela chefia religiosa os Esta dos não teriam nascido E cabe ao jurista comentar a Lei escamotear o desejo glosar esse objeto de amor recitar a palavra magisterial A censura se tornará efetiva apta a manipular todos os súditos até leválos a amar a Lei como autêntico objeto do desejo O dispositivo surgido há oito séculos continua a funcionar segundo as mesmas regras com as mesmas consequências Somente as peças mudaram o Estado substituiu o pontífice o pai de família o confessor a Lei econômica do rendimento a Lei divina as ciências humanas as ciências morais o na cionalismo a religião o Estado centralista o monoteísmo a Lei a palavra do pontífice Tratase sempre de inocular amor à subordinação no coração do povo por meio do amor à Lei A administração está no centro dessa orga História das ideias políticas nização tirânica lugar de angústia que deve fixar o ciúme e gratificar com alguma coisà Ela é Mãe nutriz generosa e perseguidora como antes a Mãe Igreja Sua primeira função é produzir lugares fazer entrar proteger por meio da submissão E aos tiranizados cabe exigir sempre mais justiça por meio do bom Estado I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFICA Legendre P Lámour du censeur Le Seuil 1974 Jouir du pouvoir traité de la bureaucratie patriote Minuit 1976 A dívida em face do divino Gauchet As sociedades primitivas indicam que o Estado não é necessário o direito canônico revela os sustentáculos de sua dominação e esses ensinamentos aparentemente díspares talvez tenham algo em comum Marcel Gauchet de certo está mais próximo de Clastres do que de Legendre mas isso se dá por causa de sua insistência na relação entre religião e política Ele mostra como a religião tornou possível o Estado antes de investigar os meios de se libertar do totalitarismo Depois de muitos outros Gauchet retoma a busca da origem a procura do fundamento da sociedade Para isso propõe uma nova leitura da religião primitiva A constância do fenômeno religioso com efeito parece enigmá tica Por quê A forma mais elementar e ao mesmo tempo a razão mais geral da crença re ligiosa não é mais do que a dívida do sentido o que durante milênios os ho mens reconheceram que deviam aos deuses Compreender por que os homens se pretenderam universalmente devedo res por que as sociedades pensaram tão obstinadamente que suas razões de pendiam de algo que não era eles é compreender por que existiu um Estado possível num dado momento do devir humanosocial Ao contrário do postulado positivista ou marxista a religião não é uma instituição consequência da fraqueza dos meios de produção ela não era uma necessidade É preciso pensar o fato religioso como instituído como uma decisão da sociedade E perguntar por que os primitivos pensaram desse O Estado em questão modo e quais foram os efeitos desse pensamento Por que eles decidiram pôr os eventos como resultados dos ancestrais ou dos deuses negar a evidência sensível dividir a realidade em dois domínios hierarquizados o das potên cias invisíveis e misteriosas o da atividade sensível inteiramente sob a de pendência do primeiro É o caçador que atira a flecha mas são os espíritos que ele soube apaziguar que o fazem atingir o animal Por que esta vontade afirmada e sistemática de despossessão Por um parti pris que preenche uma função política A religião não é apenas um modo mistificado de explicar o universo e o enca deamento dos fenômenos Através da religião instalase uma linha de di visão entre os homens e as modalidades de sua organização em sociedade As razões que presidem à organização da sociedade têm sua raiz fora da sociedade E isso com o objetivo de impedir que algum homem possa falar em nome da legi timidade última da coisa coletiva a partir do local onde se situa o fundamento ou seja de impedir que se exerça o poder A exterioridade simbólica do funda mento social contra a separação efetiva da autoridade política é essa a filosofia da religião primitiva A religião serve assim para conjurar o risco de uma separação no inte rior da sociedade entre dominantes e dominados A existência de potências exteriores à organização social implica o reconhecimento de uma desapro priação irremediável e definitiva O desejo de poder assim é aniquilado O poder existe não é para os homens é preciso deixar de ser homem a fim de passar para o lado do poder por exemplo morrendo Não há separação política possível dentro da sociedade sendo assim não há homem que possa se tornar o outro do restante dos homens Tudo se deve ao invisível Essa despossessão que invocava o Estado era ao mesmo tempo grávida do Estado já era a estrutura da separação instalada A exterioridade do fun damento da sociedade não foi criada pelo Estado mas o precedeu o pre parou De instrumento de igualdade o corte entre os vivos e as potências fundadoras e legisladoras que regulam sua existência tornase o suporte de sua sujeição Assim a religião foi historicamente a condição da possibilidade do Estado o fundamento do Estado é o mesmo da religião 368 História das ideias polfticas Estamos em sociedade porque devemos a outro que não a nós a existência da sociedade e a existência dessa sociedade tal como ela é Essa é a raiz do estra nho mal que leva inevitavelmente as sociedades a se dissociarem do que acredi tam ser sua própria causa e a garantia de sua ordem legítima Prosseguindo sua lógica o Estado se realiza liquidando a religião pois ele se impõe como sendo o único recurso da sociedade Onde estava Deus deve aparecer o Estado Conhecer isso pensálo é começar a decifrar o enigma do social a compreender o que faz com que existam senhores con quistar a verdade do poder permite que se lhe impeça o exercício I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFICA Gauchet M La dette du sens et les racines de lEtat politique de la religion primitive in Libre Payot 19772 Servidão e liberdade Lefort A atenção às relações entre sociedade e Estado permite uma apreensão nova do totalitarismo como oposto à democracia Esse é o sentido dos trabalhos de Claude Lefort da reinvenção subversiva do combate democrático na qual esses trabalhos se empenham O fato totalitário definese pela consubstancialidade entre o Estado e a sociedade civil M Gauchet sublinha que o totalitarismo é o filho natural do Estado moderno já que desenvolve sua lógica a seu ponto extremo ele nasce no momento em que a cisão da sociedade consigo mesma revelase pela primeira vez na história humana em estado puro sem a justificação de uma alteridade divinâ O Estado moderno dispensa Deus estabelece uma sociedade una agrupada por trás de seus governantes que exclui todo con flito de interesses em conjunção íntima com seu saber sobre si mesmâ Tratase em última instância tão somente do prolongamento de uma opção muito antiga da espécie humana da recusa de reconhecer o dado irredutível da cisão entre os homens da vontade inacessível de fazer com que a socie dade exista como Una C Lefort desmonta os mecanismos através dos quais o Estado soviético exacerba essa lógica da unificação A ideologia da pretensa ditadura do proletariado O Estado em questão empenhase em tornar evidente a presença do Estado em toda a extensão do espaço social ou seja em veicular através de uma série de representantes o princípio do poder que informa a diversidade das atividades e as contém no modelo de uma fidelidade comum O Partido é o órgão por excelência do totalitarismo Nele se encarna em todo lugar o princípio do poder propaga a norma geral que fornece a garantia de um tipo de reflexão da sociedade sobre si mesma e simultaneamente da polarização no sentido de um objetivo livrandoa da surda ameaça da inércia do instituído tornando sensível sua identidade sob o imperativo do ativismo A Egocracia se organiza o poder se destaca dos locais da socialização efetiva tal como ela se dá aqui e ali em relação com uma prática determinada e se concentra cada vez mais nos Órgãos nos aparelhos desses Órgãos até refluir para uma fonte única o Egocrata O Egocrata não é um déspota comum não é um senhor que governa só acima das leis mas alguém que concentra em sua pessoa a potência social e aparece e aparece a si mesmo como se nada exis tisse fora de si como se tivesse absorvido a substância da sociedade como se Ego absoluto pudesse se dilatar indefinidamente sem encontrar resistência das coisas Un homme en trop Stálin o maior revolucionário mas também o maior soldado biólogo poeta etc A unidade da sociedade é restaurada a totalidade do poder e do saber se encarna em um Só o fantasma da sociedade Una realizase no Um que concentra a potência a vontade e o saber Ao contrário a democracia reinventada corresponderia à vontade de unificar a sociedade sem abolir suas divisões à determinação de um espaço político no qual a divisão une Lefort se apoia nas experiências contemporâ neas de luta pela democracia e pela reconquista das liberdades nos combates contra o Gulag narrados por Soljenitsin nas resistências dos dissidentes nas revoltas húngara tcheca polonesa nas múltiplas combinações da criação de conselhos sovietes da reivindicação de direitos e liberdades da luta pelo 370 História das ideias políticas estabelecimento das garantias fundamentais da lei Um movimento é revo lucionário não por seus objetivos mas por suas formas de luta a ação de massa a ruptura com a legalidade estabelecida a instauração de uma nova legalidade associada a procedimentos de decisão e controle coletivos O que caracteriza a democracia O fato de que o poder é nela estabelecido de tal modo que não pode ser apropriado por aquele ou por aqueles que o exercem que ele não pertence a ninguém A sociedade como tal aparece numa indeterminação última ao mesmo tempo relacionada a si mesma circunscrita numa identidade nacional porém não mais orgânica e sim foco de geração de relações múltiplas cuja finalidade não existe O Poder o Saber e a Lei são dissociados enquanto espaços autônomos que se entrecruzam mas se contestam O social tornase uma instituição em ato a atração pelo Um recua diante do desejo de liberdade I N D I CAÇÃO B I B LI O G RÁFICA Lefort C Eléments dune critique de la bureaucratie Genebra Droz 1971 Un homme en trop Réflexions sur IArchipel du Goulag Le Seuil 1975 Iinvention démocratique les limites de la domination totalitaire Fayard 1981 ed brasileira A invenção demo crática Brasiliense São Paulo 1983 comunismo 1921 412 1189 130 2023 233 3401 Comte 109 110 1123 132 Condorcet MJ de 109 Constant Benjamin 989 169 constituição 16 201 2930 601 71 778 823 989 117 contrato social 456 47 53 70 1578 corporativismo 1767 2256 cosmopolitismo 245 74 756 934 cristã política 27 1545 162 1701 2578 2901 3056 Darwin C 115 247 darwinismo social 247 2578 Debray R 281 Deleuze G e Guattari F 353 De Man H 159 175 democracia 156 201 989 1012 122 108 169 1923 3267 333 3345 368 desejopolítica 1920 50 1334 304 3367 3467 3534 355 despotismo 60 3534 Deutsch CW 236 Deutsch K 325 Dimitrov G 239 direito e poderes políticos 434 46 478 745 767 118 3201 364 direito naturalestado de natureza 223 457 50 53 66 3101 direitos do homem 81 219 Disraeli B 255 dissidência 219 Djilas M 216 Dobroljubov N 141 dominacãoobediência 1920 401 478 678 745 360 Doriot J 229 Dracón 14 Drumont E 227 Duguit L 3212 Dumézil G 24 Durkheim E 304 Easton D 326 economia politicapoderes políticos 634 767 1089 1201 141 183 3056 332 353 355 377 GEORGES DUBY A História Continua PETER BURKE A Fabricação do Rei A construção da imagem pública de Luís XIV NORBERT ELIAS O Processo Civilizador vol 1 Uma história dos costumes vol 2 Formação do Estado e civilização A Sociedade dos Indivíduos 371 Índice analítico e onomástico Este índice não é exaustivo mas contém as referências essenciais aos autores doutrinas e ideias políticas apresentados ao longo do livro As referências mais significativas e desenvolvidas aparecem em números grifados O leitor não deve se surpreender com a ausência dos termos Estado liberdade Legitimidade essas nocões estão presentes ao longo de toda a obra AbdalWahhab 297 Adorno Th 338 Afghani 298 Agostinho Santo 278 43 122 Althusser L 193 198 218 anarqruísmo anarcsindicalismo 1389 1423 145 347 antisemitismo 127 249 2934 Arendt H 234 3356 Aristóteles 14 20 43 Aron R 179 3267 3345 autoraidade autoritas 245 30 434 45 656 734 3067 Bakunin M 109 117 127 139 141 145 181 Barrès M 225 Baudrillard J 358 Bielinski V 141 Bell D 318 Bentham J 89 109 352 Bernstein E 159 160 167 183 186 185 193 195 263 Bettelheim C 238 239 243 Blanc L 131 142 227 Blanqui A 143 205 227 Bloch E 330 Blum L 161 168 175 Bodin J 44 bolchevismo 199200 2067 3356 Bourgeois L 72 157 lndice analítico e onomástico imaginário social 117 134 345 imperialismo 967 117 1878 2534 Império Romano 223 Internacionais Primeira 127 181 Segunda 145 1589 166 1745 181 262 Terceira 1812 2123 264 Islã 26 29 270 285 288 295 Jaures J 160 168 Jouvenel B 173 judaísmo 26 2923 justiça 1920 667 1045 108 1712 Kadhafy M 285 300 Kant E 72 901 153 159 310 Kautsky K 167 1845 204 264 Kelsen H 322 Keynes JM 172 180 Khomeini R 299 Kidd B 257 Kohn H 332 Kojeve A 339 Kropotkin P 145 Kruschev N 218 Kuron Modzelewski 216 La Boétie E de 41 42 364 Labriola A 176 Le Bom G 2467 Lefort C 154 164 168 215 360 361 3689 Legendre P 364 leis 134 15 301 323 434 45 478 51 54 58 71 153 2256 364 36970 Lenin VI 119 146 187 2001 210 264 314 Lerner D 235 Lerom P 131 LéviStrauss C 343 liberalismo 53 57 634 767 989 lll 1189 149 193 333 Lipset S 244 List F 248 Locke J 53 82 100 163 258 266 luta armada 273 Lutero M 38 Lmemburgo R 1856 187 188 189203 205 213 215 228 262 Lyotard FJ 356 Maistre J de 89 223 Mao TséTung 273 2867 290 Maquiavel N 36 42 43 Marcílio de Pádua 33 43 Marcuse H 32930 337 3478 Marighela C 282 Maritain J 155 162 373 Marx KEngels F 109 115 116 131 132 159 181 261 306 310 327 materialismo histórico 1189 191 2001 254 3456 Maurras C 221 222 228 246 Mazzini G 934 MerleauPonty M 340 341 Michelet J 93 Mill JS 109 111 monarquia monarquismo 167 412 601 778 2223 3078 Montesquieu 57 Moore Jr B 245 moral e política 712 86 1723 3345 340 341 More T 41 132 Mounier E 156 1623 Muhammad Maomé 29 295 Münzer T 39 Mussolini B 221 225 nação 36 56 634 81 87 8990 92 253 nacional libertação 266 nacional questão 261 nacionalismo 8990 222 256 nacionalsocialismo 221 2312 3356 Napoleão Bonaparte 88 307 Nasser DA 255 288 298 Netchaiev S 141 Nietzsche F 140 niilismo 140 356 Nkrumah K 283 ordem espiritualordem temporal 30 38 364 365 Organski FK 245 Owen R 132 Pareto V 3089 Parsons T 232 paparalismo 271 284 298 partido único 1267 181 203 212 2812 328 368 Pashukanis EB 323 374 pátria 734 912 956 Paulo são 27 Perõn JD 244 288 Pisarev D 141 Platão 16 17 41 49 Plekhanov G 201 pluralismo político 1501 162 328 Políbio 23 poderes políticossociedade 30 32 56 656 734 77 108 149 1923 195 2256 2312 2678 3056 3089 332 3478 360 368 populismo 13940 2001 282 2878 positivismo 112 222 povo 223 31 324 43 69 85 967 219 245 273 282 3323 Poulantzas N 197 240 progresso 27 667 734 110 1134 propriedade proprietário 1920 667 1201 Protágoras 18 protestantismo 38 3056 Proudhon PJ 109 142 227 Quesnay F 63 racismo 221 227 246 radicalismo político 1578 163 Ratzel F 97 249 rebeliões 54 82 3478 reformismo 1501 1689 regimes classificação dos 156 24 589 71 149 221 Reich W 42 242 335 336 religião e política 30 38 1545 162 16970 2901 3056 3667 Renan E 95 224 representação representantes 601 71 823 100 120 151 164 2078 2401 República 36 44 578 81 revolução 119 1212 1278 1846 199200 2067 214 237 2734 Revolução Americana 82 101 Revolução Francesa 83 1023 1112 Ricardo D 65 Robespierre M de 85 87 Roosevelt FD 172 Rosenberg A 249 Rousseau JJ 54 66 91 100 História das ideias políticas saberpoder 178 301 734 1012 110 1545 237 246 302 331 357 370 SaintJust 85 SaintSimon CH de 109 112 132 Salazar A de 244 Sangnier M 162 Sartori G 165 333 Sartre JP 340 341 Sékou Touré 272 283 Sêneca 25 Senghor LS 255 270 283 Sieyes E 83 87 101 246 sindicatos sindicalismo 11920 1278 144 1756 210 Sismondi S de 108 Smith A 108 126 soberania potestas 234 30 36 42 434 478 512 53 66 778 823 1023 3067 312 3201 331 360 3667 socialdemocracia 1589 1667 1745 socialismo 111 117 130 14950 1589 1667 1745 181 2334 271 2856 301 364 sociologia 250 sociologia e política 1135 304 319 325 3534 sofistas 178 Sólon 13 Sorel G 146 176 Spencer H 109 1145 257 Spengler O 249 Spinoza B 51 Spiro H 333 Stalin J 189 191 210 211 238 239 264 339 Stirner M 138 Strauss L 330 339 Tácito 25 Taine H 94 246 Taylor FW 313 Tchernichevski N 140 201 tecnocracia 316 3178 31920 326 32930 333 teologiapolítica 26 30 Terceiro Mundo 255 256 2734 terror 86 88 130 210 tirania clássicatotalitarismo moderno 339 Tito 255 Tocqueville A de 81 102 327 Togliatti P 218 Índice analítico e onomástico Tomás de Aquino Santo 31 43 44 totalitarismo 2334 3267 332 368 tradição tradicionalismo 88 923 2223 246 Trotski L 146 201 205 211 214 228 240 Tucídides 16 utilitarismo 110 1578 utopia utopismo 1920 412 756 130 3467 Vacher de Lapouge 248 Valois G 2289 Varga E 190 Vichinski AI 3234 Voltaire 56 Weber M 72 305 306 327 Weil E 312 Wilson EO 251 Xenofonte 20 339 Zinoviev A 219 333 375 Este livro foi composto em Minion Pro e Meta Pro e impresso por Paym Gráfica e Editora em julho de 2013