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Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 2234 janabr 2019 DOR SOFRIMENTO E ESCUTA CLÍNICA Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo Resumo O objetivo deste texto é esclarecer como na escuta clínica a dor e o sofrimento aparecem como questões a serem acompanhadas na clínica psicológica Para tanto mostramos como os psicólogos estudiosos do tema tal como Frederick Buytendijk e William Brice tratam do tema seja em uma tentativa de diferenciar esses dois afetos seja para apontar para a essência que sustenta a dor do luto Recorremos aos escritos filosóficos de Kierkegaard Foucault Heidegger Han e Fogel para dialogar com esses autores sobre o tema Buscamos na literatura e na poesia intuições para que pudéssemos nos aproximar mais da experiência desses afetos Por fim esclarecemos sobre a escuta na clínica em duas situações em que a dor e o sofrimento aparecem pela perda de dois entes queridos Na primeira situação clínica a dor aparece nas suas expressões de tristeza aceitação e resignação Na segunda aparece o sofrimento pelo ressentimento frustração e revolta Palavraschave Dor sofrimento escuta psicologia clínica PAIN SUFFERING AND CLINICAL LISTENING Abstract The main of this text is to clarify how the clinical listening of the pain and the suffering appear as issues to be cared for in psychological clinic We show how psychologists to study theme such as Frederick Buytendijk and Brice think the theme it in an attempt to differentiate these two affections is to point to the essence that sustains the pain of grief We resort the philosophy of Kierkegaard Foucault Heidegger Han and Fogel to dialogue with these authors on the subject We seek also in literature and poetry insights so that we could get closer to the experience of these affections Finally we clarify about de clinical listening in clinic in two situations in which pain and suffering appear for the loss of two loved ones In the first clinical situation the pain shows thought in its expression of the sad acceptation and resignation In the second it appears thought the suffering by the resentment frustration and revolt Keywords Pain suffering listen clinical psychology Psicóloga Professora Associada do Departamento de Clínica e ViceDiretora do Instituto de Psicologia Universidade do Estado do Rio de Janeiro Membro do GT Psicologia Fenomenologia ANPEPP Coordenadora do laboratório de Fenomenologia e Estudos em Psicologia Existencial Endereço Institucional Rua São Francisco Xavier 524 Maracanã Rio de Janeiro RJ CEP 20550013 Email anamariafeijoogmailcom Dor sofrimento e escuta clínica Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 2234 janabr 2019 23 Introdução Com o tema Dor Sofrimento e Escuta clínica pretendemos trazer considerações oriundas da psicologia fenomenológica tal como desenvolvida por Frederick Buytendijk 18871974 da filosofia como esclarecida por Sören Kierkegaard 19131955 E ainda como apresentada por filósofos atuais Gilvan Fogel e ByungChul Han Por fim veremos com a literatura e a poesia tal como se apresenta em Machado de Assis e Fernando Pessoa dirigemse a questão da dor e do sofrimento Acreditamos que com essas reflexões que estabelecem a diferença entre dor e sofrimento apontaremos para o fato de que ao se tornar evidente a diferença entre dor e sofrimento nós possamos sustentar encaminhamentos distintos na relação que se estabelece na clínica psicológica Isso porque acreditamos que a dor como algo que afeta a pessoa de modo radical pode mobilizar a possibilidade de transformação Há relatos de pessoas que declaram que após uma dor profunda e radical tiveram uma experiência epifânica Han 2017 referese ao modo como a sociedade atual que ele denomina positiva vai pouco a pouco fazendo desaparecer a sociedade negativa Diz esse estudioso que na sociedade positiva as coisas se tornam rasas e planas as ações são operacionais subordinadas ao cálculo e ao controle O tempo tornase um presente disponível e as imagens desprovidas de todo sentido nada mais são que o contato imediato entre o agir e o olhar Como nos diz Han 2017 p10 a sociedade positiva tornouse um abismo infernal do igual no qual a pressão pelo movimento e aceleração caminha lado a lado com a desconstrução da negatividade p11 Com relação ao sofrimento e a dor em uma sociedade positiva diz Han 2017 p18 A sociedade positiva tampouco admite qualquer sentimento negativo Desse modo esquecemos como se lida com o sofrimento e a dor esquecemos como darlhes forma E ainda acrescenta que nos esquecemos de outra forma de lida possível com o sofrimento e a dor a não ser a que se apresenta na sociedade positiva ou seja tratamos logo de superá la transformandoas imediatamente em doença transtorno problema e como tal a dor e o sofrimento devem ser evitadas e curadas Han no trecho acima referese ao sofrimento e a dor como aspectos do sensível que guardam uma distinção não se aprofundando na temática Estudiosos do tema tal como Buytendijk 1958 Kierkegaard 2015 e Fogel 2010 investigam a dor e o sofrimento de modo a estabelecer distinções entre esses afetos Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo 24 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 2234 janabr 2019 Dor e sofrimento Segundo Silva e Goto 2017 Buytendijk foi um estudioso da Biologia da Psicologia e da Psiquiatria que se apropriou da fenomenologia filosófica de Husserl para construir uma psicologia fenomenológica Ele pretendia compreender os fenômenos da vida pelo método fenomenológico acreditando que a vida não poderia ser aprendida pela explicação causal própria dos fatos biológicos Silva e Goto apresentam nessa oportunidade as contribuições de Buytendijk sobre a dor e o sofrimento em uma perspectiva da psicologia fenomenológica em que a dor está presente na vivência intencional do sofrimento Por isso tornouse necessário diferenciar as sensações de dor do sofrimento da dor porque o sofrimento se refere à pessoa como ato intencional enquanto a sensação dolorosa pode permanecer independente do ato por ela fundamentado p153 No texto de Buytendijk 1958 sobre a dor ele se refere ao modo como a sociedade moderna lida com a questão da dor Diz Buytendijk 1958 p 102 O homem moderno considera a dor exclusivamente como um incômodo que como todo estado desagradável tem que ser combatida Este estudioso tenta mostrar como a lida com a dor que diz respeito ao sofrimento é um fenômeno que se constitui historicamente Diz ele Quem chegou em um país onde não existe absolutamente nenhum auxílio médico sabe que a resignação ao destino o encorajamento e a confiança dão mais satisfação interior que a possibilidade de chamar um médico a qualquer hora do dia p103 Já o homem moderno revoltase irrita se com a dor com a morte com a velhice dentre outras coisas mais do que aqueles homens que não conheciam a ação técnica com todas as mazelas da vida Essa revolta e ressentimento com a dor são características do sofrimento no homem moderno Kierkegaard 18442015 também estabelece a diferença entre dor e sofrimento apontando para uma diferença entre o modo como ela aparece na tragédia grega em que a dor consciência irrefletida é maior que o sofrimento e o modo que aparece na tragédia moderna em que o sofrimento dor da dor é maior que a dor p 11 Com isso Kierkegaard 2015 tenta por meio da tragédia de Sófocles denominada Antígona nos mostrar que a apresentação teatral da peça despertava em seus expectadores a dor os quais sem a mediação da reflexão eram tomados pela atmosfera da dor Já o homem moderno ao acompanhar a apresentação da sina de Antígona é tomado pelo sofrimento na tentativa de encontrar um culpado para a dor Há algo que se interpõe entre o sensível despertado pela trama e a interpretação do que acontece A dor referese à tristeza ao pesar à pena a dor da dor referese aos infortúnios que estamos passando mas Dor sofrimento e escuta clínica Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 2234 janabr 2019 25 acreditando que não deveríamos passar Tratase da revolta e da indignação pelo fato de nossa vontade e nosso controle não ter a soberania sobre aquilo que nos abarca Na própria tragédia SÓFOCLES 2006 aparece tanto a dor de Antígona por toda a sua situação como também a revolta e a lamentação pela sua miséria Podemos acompanhar a dor da heroína quando dilacerada com o fato de que seu irmão Polinices não seria sepultado Antígona pede ajuda a sua irmã Ismene com a seguinte declaração Vê se tu podes compartilhar dos meus trabalhos e da minha dor p 15 O sofrimento de Antígona ao modo da lamentação pode ser observado no seguinte trecho Acabas de ferir meu coração Avivandome as dores mais pungentes As aflições providas de meu pai E as desgraças que pesam sobre nós A célebre família dos Labdácias Ah Maldições do tálamo materno Ah Conúbio incestuoso de meus pais Da qual nasci desventurada filha Maldita sem esposo parto agora Para viver com eles Irmão meu Irmão no infortúnio embora eu viva Com tua morte me tiraste a vida SÓFOCLES 2006 p 78 Na e pela dor emerge a nobreza de Antígona Ao viver intensamente aquilo que a torna grande e forte Antígona em sua trama tornase nobre em sua dor Diferentemente do homem moderno em que a dor o envergonha uma vez que o torna frágil vulnerável e portanto fracassado Na tragédia a dor aparece como algo da ordem do inevitável na modernidade evitar a dor ou justificála é a promessa da ciência e da religião respectivamente Foucault 2006 considera que os modernos ao tratarem da tragédia renegam a sua estrutura essencial em uma tentativa de estabelecer uma síntese reconciliadora dos elementos trágicos Enquanto que no mundo grego trágico a experiência da dor não precisava de nenhuma justificativa nos modernos a dor sempre se justifica como consequência de algo que escapou ao controle Segundo Foucault esse movimento em direção à reconciliação e à promessa de tranquilidade encontra sua gênese na dialética tranquilizadora defendida por Sócrates Como legado deixado pelo filósofo grego os modernos continuam a se comportar em um ethos que renega a estrutura trágica Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo 26 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 2234 janabr 2019 Heidegger 2012 sem se ater ao esclarecimento da diferença entre a dor e sofrimento não se cansa de apontar para o caráter finito vulnerável e incontornável da existência como se referindo à dor Ele em síntese nos diz que o que faz viver também faz doer Fogel 2010 com inspiração nos estudos de Nietzsche estabelece a diferença entre dor e sofrimento utilizando duas expressões dor e dor da dor Para Fogel existir e dor são condições que se apresentam de forma inseparáveis A dor é inerente à existência humana em todos os tempos assim como em todas as suas etapas de vida Há a dor física como também outros sofrimentos relativos às perdas e às separações Há a dor das obrigações e aprisionamentos cotidianos o sofrimento das tentativas de conquistas que não se realizaram Defende esse estudioso que ainda cabe pensar para além dessa dor e continua afirmando que a dor a que ele se refere não é apenas a dor física a dor de dentes a do cálculo renal ou a da topada no pé da cama Antes é a dor do que o homem é à medida que ele é necessidade de ação de atividade necessidade de fazerse ou auto fazerse e assim cumprirse como tempo e história FOGEL 2010 orelha Após ver aquilo que nos dizem os psicólogos e filósofos sobre a dor e o sofrimento sigamos com a poesia O que afinal ela tem a nos dizer Fernando Pessoa 19152018 escreve Estou num daqueles dias em que nunca tive futuro Há só um presente imóvel com um muro de angústia em torno A margem de lá do rio nunca enquanto é a de lá é a de cá e é esta a razão íntima de todo o meu sofrimento Há barcos para muitos portos mas nenhum para a vida não doer nem há desembarque onde se esqueça Tudo isto aconteceu há muito tempo mas a minha mágoa é mais antiga sp A poesia de Fernando Pessoa parece dizer Viver dói Existir dói Pensar dói A vida dói Essa estrofe no mínimo é intrigante mobiliza o desejo de pensar de saber de esclarecer Surge então a questão dor e sofrimento não são o mesmo Ao tentar esclarecer que dor e sofrimento não são compreendidos como tendo o mesmo sentido recorreremos ao que Fogel diz ao utilizar duas expressões dor e dor da dor Com relação à primeira Dor sofrimento e escuta clínica Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 2234 janabr 2019 27 diz Kierkegaard referirse à tristeza pesar pena a segunda afirma o filósofo dinamarquês que é o desespero que nós denominamos sofrimento Sofrimento pelo fato de estarmos atravessando momentos de infortúnios pelos quais consideramos que não deveríamos passar Sofrimento é a doença do querer o que não se pode conquistar pela vontade A primeira dor é aquela pela qual a criança é tomada quando algo a atinge e a tristeza é infinitamente profunda A segunda é aquela em que o adulto sofre não apenas com a dor mas também com o fato de que ele vive a dor Esclarecemos que a primeira dor é o espinho na carne e a segunda é a dor porque se tem o espinho Tratase da perda ou a marca de algo que acreditamos que deveria ser da ordem do imaculado A dor é algo do qual o existente jamais pode se esquivar aliás quanto mais tenta mais dói A dor da dor é justamente aquela mais frequente no espaço da psicoterapia Cabe ao psicólogo acompanhar aquele que é tomado pela dor e pelo sofrimento E nesse acompanhar poder trazer a linguagem poética de modo que o mais essencial possa aparecer já que no mundo moderno a linguagem essencial encontrase encoberta E desse modo possa aparecer para aquele que quer se livrar definitivamente da dor que esta é inevitável e a luta insana na tentativa de escapar da dor é sofrimento que finaliza quando se para de lutar passando a aceitar de uma vez por todas que vida e dor são inseparáveis Dor sofrimento e escuta clínica Em um Seminário realizado pelo IFEN Instituto de Psicologia Fenomenológico Existencial do Rio de Janeiro junto ao LAFEPE Laboratório de Fenomenologia e Estudos em Psicologia ExistencialUERJ em dezembro de 2014 o tema Psicopatologia e Literatura foi apresentado de modo a mostrar que na literatura no caso Dom Casmurro de Machado de Assis 18992008 a dor era tratada como algo pertinente à vida Em Casmurro ficava claro o modo como ele recaíra na hybris Assim deslocandose da patologização da vida caminhávamos no sentido de mostrar por meio do conto que vida é dor Gilvan Fogel enalteceu a tarefa do psicólogo afirmando que a filosofia não alcançava aquilo que a psicologia poderia alcançar ou seja a lida com a dor do outro Por fim ele desafiou a plateia de psicólogos com a seguinte questão como afinal se dava a lida do psicólogo clínico com o sofrimento Esse desafio tornou pertinente que nos atentássemos mais detalhadamente ao tema da dor e do sofrimento Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo 28 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 2234 janabr 2019 Para falarmos da dor e do sofrimento tal como aparecem no espaço da clínica psicológica nós estabeleceremos como linha guia de nossas reflexões a experiência do luto Brice 1991 psicólogo americano que sustenta suas teses na fenomenologia apresenta o luto materno e suas expressões de dor e sofrimento concluindo que o luto materno é um para sempre logo é algo da ordem do insuperável Mas acrescenta o autor que isso não quer dizer que seja algo da ordem do patológico como defende na maioria das vezes a psicologia e a psiquiatria Vale ressaltar que o modo como atuamos na clínica em um exercício de escuta e fala FEIJOO 2000 referese a uma forma específica de discurso que se dá nesse contexto O diálogo analistaanalisando apresenta características peculiares no que diz respeito à atenção cuidadosa à paciência do analista à comunicação indireta e acima de tudo o cuidado em não emitir posições pessoais moralizantes e comprometidos com uma verdade seja ela da teoria seja do senso comum E ainda tal escuta implica em poder ouvir no silêncio aquilo que o outro tem a dizer A escuta clínica sabe aguardar e resguardar o acontecimento do outro Nessa escuta sabemos que precisamos ficar atentos à relação pois é nessa que a medida da existência pode aparecer FEIJOO 2017 Na escuta clínica sabemos que podemos aguardar a possibilidade de transformação daquele que busca no psicólogo clinico outra possibilidade frente àquilo que lhe vem ao seu encontro Para esclarecer e tornar concreta a experiência da escuta clínica da dor e do sofrimento mostraremos dois relatos de analisandas que trazem o modo como estão tomadas pelo luto de um ente querido Ambas ao falarem do acontecimento choram copiosamente intercalando aquilo que elas têm a contar com o choro A primeira a quem chamaremos de Rosa iniciou o nosso encontro com as seguintes palavras Perdi meu noivo nesse último acidente de avião Isso me deixou muito triste triste mesmo Sinto muita falta dele a todo o momento me lembro das coisas que fazíamos juntos Fico lembrando a última conversa do último beijo da última refeição que fizemos juntos e o último passeio Antes de sair de casa no dia do acidente pedi que ele trocasse a lâmpada Ele já estava saindo mas voltou e rapidinho trocou a lâmpada Essa cena é recorrente na minha memória e até nos meus sonhos Enquanto ele trocava a lâmpada combinamos o que faríamos no seu retorno Chora e diz Isso nunca mais vai acontecer Quando chegou o dia que ele retornaria da viagem doeu muito parecia que ele morrera pela segunda vez Era para ele estar de volta mas ele não voltou Dói a falta que sinto dele dói mais ainda o fato de que ninguém me compreende Tenho essa impressão tudo que as pessoas me dizem talvez para me consolar só piora a minha dor As pessoas dizem coisas absurdas como Você é jovem vai encontrar outra pessoa essa situação vai passar e você vai retornar a sua vida O luto dura seis meses depois você vai melhorar Além disso todos querem que eu tome remédio para dormir para Dor sofrimento e escuta clínica Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 2234 janabr 2019 29 parar de chorar e para ficar bem E por mais que eu diga eu não estou doente não preciso de remédios não tenho insônia choro e acordo durante à noite porque tenho saudade Sinceramente eu não velo o porquê de tomar remédio As pessoas pensam que eu me ressinto pelo fato de não mais concretizar o casamento como se qualquer casamento fosse suprir a presença de Antônio Esse tipo de comentário me faz mal como disse sintome incompreendida na minha dor Não é casamento o que eu quero não é um mero casamento que vai sanar o que sinto Estou com saudades Chora durante muito tempo Depois continua Às vezes acontece algo em minha rotina e eu imediatamente penso vou contar a Antônio imediatamente eu me lembro de que não posso mais contar nada a ele ele não está mais aqui Dói a sua ausência Outros dizem O tempo é o melhor remédio você vai ver Detesto ouvir isso sintome incompreendida Leio a mensagem como que dizendo Você vai esquecer Eu não quero esquecer Lembrarme dele ao mesmo tempo em que dói o mantem próximo a mim Procurei psicoterapia porque prefiro esse tratamento do que o psiquiátrico penso que neste espaço eu posso falar de tudo que me aconteceu e acontece sem que eu ouça que eu preciso parar de pensar na morte de Antônio A segunda analisanda a quem chamaremos de Flora também traz o luto pela perda do noivo Ela nos conta Perdi meu noivo em um acidente de trânsito faltava uma semana para o nosso casamento Tudo já estava pronto vestido de noiva festa os convites todos distribuídos muitos presentes recebidos É muito triste não poder realizar um sonho de tanto tempo Sonho que desde muito pequena povoa meu pensamento Tínhamos tudo planejado viagem de lua de mel filhos que teríamos em breve Ele era bem mais velho e não queria esperar muito e eu estava de acordo Eu também queria ter filhos ainda enquanto jovem Agora tudo isso acabou nem casamento nem lua de mel nem filhos Muito triste Chora por muito tempo e depois continua Pergunto a todo o momento Por que isso tinha que acontecer logo comigo Que mal eu fiz para merecer tamanho castigo Fiz sempre tudo direitinho fui boa filha boa namorada companheira e esse é o pago que eu tenho Chora por longo tempo Já fui ao psiquiatra e ele me medicou mas disse que eu não poderia prescindir da psicoterapia Eu realmente acho que a psicoterapia não vai valer de nada não vai trazer meu noivo de volta vai Já o remédio me ajuda a dormir me acalma Eu preciso mesmo é dos meus amigos eles são a minha salvação eles estão sempre comigo me enchem de esperança me distraem me animam O que podemos refletir sobre esses dois trechos das falas de duas analisandas Quais são as evidências videre ou seja o que aparece como aparece o que elas têm a dizer que se retrai naquilo que se mostra Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo 30 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 2234 janabr 2019 Precisamos primeiramente ver escutar sentir a própria experiência daquele que está frente a nós psicoterapeutas Para tanto precisamos ser tocados pela presença i mediata do outro Deixar que a linguagem no espaço clínico se faça presente e nós psicoterapeuta sejamos capazes de acompanhar compreensivamente ou seja apreender a realidade marcada pela experiência do aparecer sem deixar de evocar a expressão da experiência É preciso deixar que o sentido da experiência do outro se mostre no silêncio e se evidencie na linguagem Para tanto o analista precisa saber esperar escutar para que o silêncio possibilite a repetição a retomada enfim a revitalização Poderíamos arriscar dizer que em Rosa o que aparece é a dor uma vez que não há lamentação ela não pergunta por que logo comigo Flora lamenta o casamento não realizado os filhos que por agora não virão Rosa quer viver intensamente a sua dor e sabe que o que aconteceu independe totalmente do seu querer Ela não fala em frustração fala em saudade Flora vive o descompasso entre o que quer e o que pode sofre pela frustração de seus projetos julgase não merecedora Para finalizar com Rosa a atuação clínica se dá no sentido de confirmarmos a sua dor compreendêla na sua dor e aguardar que da dor surja a possibilidade de uma outra possibilidade Tentamos em uma fala essencial confirmar algo que ela já sabe em sua própria experiência em que ela Vê Sente e Pensa a dor como algo do qual não pode se esquivar aliás quanto mais tenta mais dói Por isso cabe ao psicólogo estar próximo a Rosa pacientemente aguardando o seu pensar em voz alta a sua dor Rosa fala da falta saudade amputação e vulnerabilidade Cabenos sustentar o espaço da dor para que esta possa se mostrar em toda sua potência E assim ao se perceber compreendida ele possa ter um espaço para compartilhar a sua dor Tratase de um poderquerer que se faz escuta obediência ao que o outro tem a dizer no tempo e nos termos em que ela pode dizer No encontro com Flora cabe também ao psicólogo acompanhar o que ela tem a dizer para que ela possa romper os lações da ilusão afinal possa darse a saber que a dor é inevitável a luta insana na tentativa de escapar da dor é sofrimento e que este se finaliza quando se para de lutar e se aceita que vida e dor são inseparáveis Flora não aceita ter seus projetos interrompidos Ela está tomada pelo ressentimento pela indignação frustração e fala de tudo isso por meio a lamentação Temos aqui um espaço clínico em que o dizer do clínico é um exercício de despertar daquilo que se encontra adormecido Tratase daquilo que Rosa estava habituada totalmente tomada pelo dever ser idealizado na cotidianidade mediana O querer de Flora é uma vontade que se enxerga soberana e ela não se entrega não se escuta na obediência É preciso evocar a experiência da escuta da entrega ao seu Dor sofrimento e escuta clínica Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 2234 janabr 2019 31 destino Tudo isso por meio da interpretação que como diz Heidegger 2001 é a arte do bem perguntar É preciso que Flora aprenda a ver como nos ensina Fogel 2017 Este saber ver o puro ou simples sentir é a própria coisa que põe e expõe Para tanto porém é preciso não ter a alma vestida Na verdade tratase de não têla vestida demais O demais que veste a alma é a cultura o saber a informação as teorias e interpretações já vigentes ou propostas é preciso não ter sobrecargas de interpretações p104 Por fim nas duas situações clínicas a atitude do psicólogo requer a conquista do poder estar em paciência na escuta na obediência daquilo que o outro tem a dizer E nesse exercício de escuta e paciência poder abrir uma atmosfera em que o analisando possa entregarse à existência e em paciência poder deixar aparecer o que afinal o toma o desola o desespera Sobre a paciência Ferro 2007 comenta a seguinte passagem dos Discursos Edificantes em Diversos espíritos Mas o que é então paciência Não é precisamente a coragem que livremente aceita o sofrimento que não pode ser evitado O inevitável é justamente aquilo que quer quebrar a coragem Há naquele mesmo que sofre a resistência traidora que se alia ao terror do inevitável e unidos querem esmagálo Mas apesar disso a paciência conformase com o sofrimento e por meio disso conformase livremente com o sofrimento inevitável p 38 Ferro 2007 afirma pela coragem o homem frente ao inevitável deixase livremente aprisionar Em paciência o homem livre deixase livremente aceitar o sofrimento Defendemos a tese de que aquilo que nos chega aos consultórios de psicologia na maioria das vezes é o sofrimento pela não aceitação daquilo que de algum modo macula uma determinada existência Ainda na maioria das vezes aquele que procura a clínica psicológica quer a saída da dor e é justamente querer sair da dor da finitude do incontornável e não poder sair dessas situações pelas suas próprias forças que se constitui em sofrimento Considerações finais Outra vez buscaremos a Kierkegaard 18432001 para uma orientação sobre o que fazer e como fazer clínica Diz o filósofo que é preciso que aquele que quer ajudar o outro a sair da ilusão se aproprie da adição de um diferencial Ele deve para isso no mínimo acompanhar as determinações de seu mundo saber delas para assim poder afastarse daquilo que tenta iludilo Seria algo como não se deixar encantar pelo canto da sereia E como saber daquilo que encanta conduz leva a uma cadência dada pela impessoalidade Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo 32 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 2234 janabr 2019 É nesse aspecto que precisamos andar lado a lado com a filosofia Kierkegaard Heidegger Foucault dentre outros Eles nos ajudam sobre como podemos pensar meditar enfim demorarnos nas coisas que nos vem ao encontro Caminhamos lado a lado com Kierkegaard 18442001 para poder conquistar o ser livre em paciência e assim abrir um espaço para a conquista do si mesmo em sua situação de vulnerabilidade Em paciência o clínico pode conquistar a si mesmo abrindo um espaço para que o outro também possa se conquistar Caminhemos com Heidegger 1959 para podermos saber mais sobre a serenidade ou seja poder estar no mundo sem ser dele Saber daquilo que nos determina podendo dar um passo atrás E ainda no filósofo alemão podermos compreender aquilo que ele nos diz sobre experiência de sentido HEIDEGGER 2012 Paciência e serenidade a serem conquistadas dizem respeito à arte do demorarse Ao demorarmonos já nos afastamos do ritmo acelerado do excesso de produtividade podendo deixar que a medida de cada existir possa aparecer Como coração simples singelo FOGEL 1998 dar tempo para a recordação dar tempo ao tempo dar tempo à existência que no final das contas é tempo Para poder ainda nos afinar mais à arte da escuta àquilo que o outro tem a nos dizer aprendendo a tarefa de nos concentrarmos com desprendimento como o que nos ensina Herrigel 2011 quando se refere a arte cavalheiresca do arqueiro Zen Kierkegaard na sua publicação de 1842 intitulada Repetição 2009 referese à experiência de Jó e a do poeta estético para nos mostrar a possibilidade do recomeço em um exercício na e a partir da experiência Ambos afetados pelo luto pela perda e pela dor poder retomar a vida de outro modo isso quer dizer ter fé no que virá Paciência serenidade e escuta frente à dor ao sofrimento à inquietação à indecisão daquele que busca o clínico é o modo de atuação daquele que tem como ofício a arte de escutar na própria relação experiência Dor sofrimento e escuta clínica Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 2234 janabr 2019 33 Referências ASSIS Machado de Dom Casmurro Em Machado de Assis Obra completa em quatro volumes Rio de Janeiro Aguilar 2008 Original publicado em 1899 BRICE Charles W What forever means an empirical existentialphenomenological investigation of maternal mourning Journal of Phenomenological Psychology v 22 n 1 p 1638 1991 BUYTENDIJK Frederik Jacobus Johannes El dolor Madrid Revista del Occidente 1958 FEIJOO Ana Maria Lopez Calvo de A escuta e a fala em psicoterapia uma perspectiva fenomenológicoexistencial São Paulo Vetor 2000 FEIJOO Ana Maria Lopez Calvo de Existência Psicoterapia da psicologia sem objeto ao saberfazer em psicologia clínica Rio de Janeiro IFEN 2017 FERRO Nuno S Kierkegaard adquirir a sua alma em paciência dos Três Discursos Edificantes de 1843 Lisboa Assírio e Alvim 2007 FOGEL Gilvan O Homem Doente do Homem e a Transfiguração da Dor Uma Leitura de Da visão e do enigma em Assim falava Zaratustra de Frederico Nietzsche 2 ed Rio de Janeiro Mauad 2010 FOGEL Gilvan O desaprendizado do símbolo ou da experiência da linguagem Rio de Janeiro Mauad 2017 FOGEL Gilvan Da solidão perfeita Rio de Janeiro Petrópolis Vozes 1998 FOUCAULT Michel A hermenêutica do sujeito Tradução Márcio Alves Da Fonseca Salma Tannus Muchail São Paulo Martins Fontes 2006 HAN ByungChu Sociedade do cansaço 2 ed Petrópolis Vozes 2017 HEIDEGGER Martin Ensaios e Conferências Tradução Emanuel Carneiro Leão Gilvan Fogel Márcia Sá Cavalcante Schuback Petrópolis Vozes 2012 HEIDEGGER Martin 2001 Seminários de Zollikon Maria de Fátima Prado Trad Petrópolis Vozes HEIDEGGER Martin Serenidade Tradução Maria Madalena Andrade Olga Santos Lisboa Instituto Piaget 1959 HERRIGEL Eugen A arte cavalheiresca do arqueiro Zen Tradução J C Ismael São Paulo Pensamento 2011 KIERKEGAARD Søren Aaybe Quatro discursos edificantes de 1843 Tradução e Edição Henri Nicolay Levinspuhl 2001 KIERKEGAARD Søren Aaybe Dois discursos edificantes de 1844 Tradução e Edição Henri Nicolay Levinspuhl 2001 Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo 34 Arquivos do IPUB v 1 n 1 p 2234 janabr 2019 KIERKEGAARD Søren Aaybe De la tragedia Tradução Julia López Zavalía Buenos Aires Quadrata 2015 KIERKEGAARD Søren Aaybe A repetição Lisboa Relógio DÁgua 2009 PESSOA Fernando Dóime a vida aos poucos 1915 Disponível em httpwwwcitadorpttextosdoimeavidaaospoucosfernandopessoa Acesso em 31 jul 2018 SILVA Marília Zampieri GOTO Tommy Akira Aportes de uma psicologia fenomenológica da dor e do sofrimento Em FEIJOO e LESSA Fenomenologia e práticas clínicas II Rio de Janeiro IFEN 2017 SÓFOCLES Antígona Tradução Domingos Paschoal Cegalla Rio de Janeiro Difel 2006 Recebido em 7 de julho de 2018 Aceito em 29 de julho de 2018