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ESTUDOS AVANÇADOS 30 86 2016 235 uando o jovem Gonçalves Dias já consagrado poeta indianista publica Meditação obra fragmentária escrita com uma prosa poética em tom de denúncia não é possível traçar automaticamente uma linha contígua entre suas leituras muitas depreendidas de suas traduções e seu estilo Nem posicionar o poeta maranhense na arena política carregada de rispidez entre o interregno a maioridade e o os primeiros anos de D Pedro II como impera dor Dessa forma para abordar uma obra tão rica quanto desatendida por boa parte da crítica especializada é necessário apresentar minimamente o contexto no qual se inscreve a Meditação sem esgotar as múltiplas leituras mas eviden ciando as contradições intrínsecas de um processo em cujo seio se encontra nada menos que a emergência da modernidade e das perguntas pela questão nacional Como agentes diretos da formulação e configuração da chamada invenção do Estado nacional brasileiro alguns dos escritores que figuravam nas listas das elites letradas reunidas em torno do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro IHGB encabeçado pelo imperador e mecenas D Pedro II enfrentaram uma ambiguidade de maneira particular Enquanto tentavam dar forma ao imaginá rio social sobretudo nos motivos indianistas ousavam buscar um lugar de au tonomia intelectual isto é fora do poder centralizador a partir do qual realizar suas críticas Tarefa arriscada e presumivelmente ingrata Pois resulta perigoso criticar aquilo a que se intenta dar forma ou melhor criticar a maneira em que está se realizando aquilo sobre o que se tem ideias pouco precisas de como de veria levarse adiante Ou talvez simplesmente tarefa romântica pois alberga a contradição no seu próprio seio Dialética da ambiguidade a chamou José Mu rilo de Carvalho 2008 p22936 Escrito originalmente após Gonçalves Dias regressar da Europa o frag mento de prosa poética Meditação está dividido em três capítulos e datado em dois lugares Os capítulos I e II estão datados em Caxias nos dias 23 de junho de 1845 e julho de 1845 respectivamente O capítulo III encerrase com a se guinte indicação Maranhão 8 de maio de 18462 escrito em São Luís Além dos modelos adjudicados à Meditação entre os quais se destacam Lamennais e Friedrich Schlegel este último pelos seus Fragmentos o certo é que prevalece a estrutura bíblica de versículos e não apenas na forma mas na quantidade de imagens e no vocabulário utilizado sem mencionar as constantes referências diretas como o Livro de Jó Alguns críticos têm indicado também alguma ana A Meditação de Gonçalves Dias A natureza dos males brasileiros1 DIEGO A MOLINAI Q DOI 101590S01034014201600100015 ESTUDOS AVANÇADOS 30 86 2016 236 logia com os diálogos platônicos que acreditamos resulta um pouco forçada Em primeiro lugar os diálogos platônicos têm um movimento uma dinâmica pois na Antiguidade andar e filosofar eram quase sinônimos E na Meditação o único movimento é o das imagens Em segundo lugar a profusão de persona gens além das figuras centrais de alguns dos diálogos como o Fédon é enorme em Platão e na Meditação se limita à dupla jovemvelho e a umas poucas vozes finais de sábios anciãos que vêm amenizar a narratio mas não formar um con senso Por último os diálogos platônicos costumam esmiuçar algum assunto a partir de diversos enfoques e tudo gira em torno dessa ideia central como o amor em O banquete já na Meditação a profusão é mais de temas que de perso nagens e apesar de aparecer constantemente como pano de fundo a história do Império brasileiro e a emergência do Estado nacional o contraponto de vozes do jovem e o velho discrepa sobre diversos temas a escravidão a desigualdade a erudição o ensino a história a meditação a nacionalidade o progresso a natureza o pensamento etc O texto teve de esperar alguns anos para ser publicado até sua inclusão em O Guanabara Revista mensal artística científica e literária cujo primeiro nú mero é de dezembro de 1849 publicação dirigida pelo próprio Gonçalves Dias Araújo PortoAlegre e Joaquim Manuel de Macedo Antes contudo Gonçalves Dias chegou a enviar os dois primeiros capítulos a seu amigo Teófilo Leal do Rio de Janeiro junto com uma carta na qual afirmava No vapor que daqui partiu antes deste te remeti o 2o capítulo da minha Meditação eu te irei mandando os outros capítulos cortem sem dó o que julgarem mau ou arriscado de se imprimir Gonçalves Dias 1964 p69 Ou seja o autor da Meditação já sa bia o arriscado que poderia ser a publicação do fragmento pelas críticas por momentos ferozes ao sistema escravista que contaminava a sociedade brasileira como um todo E contudo três anos depois quando Gonçalves Dias já tinha obtido dois cargos públicos como professor do Liceu Niterói agosto de 1847 e como membro do IHGB outubro de 1847 e seu nome como poeta brasi leiro e original tinha ganhado certo prestígio após a boa acolhida europeia dos Primeiros cantos com prefácio elogioso de Herculano ele publica a Meditação numa revista financiada por D Pedro II nos cinco primeiros números de O Guanabara Ainda engrenado no aparato burocrático imperial como funcioná rio e membro do IHGB decide publicar o texto Como quase todas as revistas literárias de ciência de modas de artes etc que desde a implementação da Imprensa Régia por decreto de D João VI em 1808 vinham praticando a tão prezada liberdade de expressão O Guanaba ra era um jornal que pretendia cativar um público leitor amplo Nesse esforço ciclópico pois o número real de leitores era ínfimo O Guanabara se somava à empreitada de suas antecessoras as revistas românticas mais destacadas da época como a pioneira Nitheroy publicada em Paris em 1836 que na historiografia literária brasileira é marco consensual do início do romantismo no Brasil junto ESTUDOS AVANÇADOS 30 86 2016 237 com a publicação dos Suspiros poéticos e Saudades de Gonçalves Magalhães e a Minerva Brasiliense 18431845 Desde um centro que não o circunda Gonçalves Dias publica sua Medita ção sem círculos que o assediem em perfeita geometria com seus deveres críticos Demais não sou cortesão não o quero ser não o pretendo ser não queria so bretudo aparecer ao público diverso do que sou Gonçalves Dias 1964 p108 A Meditação é uma radiografia que detecta o mal de que padece a jovem nação brasileira o vínculo colonial com Portugal ainda em vigor a escravidão a supos ta indolência indígena o laço ou as correntes nunca cortadas com o passado O texto começa com umas linhas de pontos de reticência na primeira parte do capítulo I e continua com um Então na segunda parte Isto é a primei ra palavra que lemos é esse Então o que nos permite arguir que Gonçalves Dias dá por pressuposto o começo o porquê da Meditação Deixemos de lado a possibilidade de censura por parte de Teófilo Leal ou própria cortem sem dó já que pela prossecução semântica nada de censurável pode haver antes desse Então Então a fragmentação da obra não apenas na publicação do Guanabara mas na sua totalidade os pequenos trechos que prefiguram a pró pria fragmentação suscitada pela modernidade abrem com uma linha de pontos colocando o relato espaçotemporalmente numa continuidade cuja origem é an terior e que o leitor facilmente reconhece ao ler os fragmentos Tratase da His tória do Brasil seu passado o presente elástico da epifaniadeolhosfechados e uma série de proféticas visões sobre um futuro nada alentador tudo no marco maior que poderíamos chamar sem estridências na época de História da civili zação Tratase então de entrever as glórias mas também os perigos que amea çam a Nação Essa amplitude que se desenvolve com os toques do velho nas pálpebras do jovem também pode funcionar como fator de indeterminação espaçotemporal da narrativa metaforizando cartograficamente a totalidade nacional Alves Cunha 2001 pXXXII A meditação do narradorjovem começa quando o ancião lhe impõe as mãos nas pálpebras dando início ao jogo de contrastes e oposições constantes apresentados ao longo do texto A visão começa justamente quando o jovem fecha os olhos logo toda vez que o narrador volta à vertigem de seu corpo extático ao abrir os olhos só há brumas e desfalece O poder da meditação terá elementos da epifania e da revelação porém apesar de que o ancião está sempre rodeado por uma luz tênue um fogo primordial similar ao das aparições divinas do Antigo Testamento o narrador não pode experimentar a onisciência e deve sucumbir a suas limitações embora consiga levantar a voz para emular não ape nas o que vê mas também e principalmente como o vê A onisciência de todo modo seria a impossibilidade de narrar pois a eternidade e a ubiquidade pres supõem a simultaneidade carecem de continuidade portanto são inenarráveis A experiência da meditação também é fragmentária não é possível aprender a totalidade ainda menos apreendêla ESTUDOS AVANÇADOS 30 86 2016 238 A visão abre com o espetáculo natural de árvores robustas e frondosas como se desde a criação presenciassem o incessante volver dos séculos Gon çalves Dias s d p53 A historização da natureza chega ao ápice pois ela estaria ali desde a criação desde sempre tratase como aclara o jovem de uma terra bendita Porém imediatamente lemos uma oração adversativa sem advérbio construída semanticamente Pois nessa terra de natureza esplêndida e magnífica nessa terra bendita instalase a diferença entre os homens Depois da natureza aparece pois a primeira e talvez mais vigorosa e efetiva crítica ao sistema escravista é uma imagem que se articula a partir do poder da multiplicação Vejo milhares de homens de fisionomias discordes de cor vária e de caracte res diferentes E esses homens formam círculos concêntricos como os que a pedra produz caindo no meio das águas plácidas de um lago E os que formam os círculos externos têm maneiras submissas e respeitosas são de cor preta e os outros são como um punhado de homens formando o centro de todos os cír culos têm maneiras senhoris e arrogantes são de cor branca ibidem p56 Mas além de realizar uma crítica à hierarquia a partir da imagem violenta da pedra na água como se tudo começasse a se agitar de repente Gonçalves Dias sugere uma advertência Essa dupla leitura é interessante e condiz com o resto do texto que oscila constantemente como mencionamos entre dois polos opostos A ambiguidade parece ser a forma escolhida por Gonçalves Dias para abordar criticamente a realidade que percebe mas se no seu indianismo há uma separação entre o poético índio ideal e o etnográfico índio real na Medi tação talvez pela própria forma de atravessar as fronteiras dos gêneros ou pelo tom ensaístico a duplicidade convive sem estremecimentos Porque a metáfora dos círculos pode ser uma denúncia da desigualdade social da desagregação da hostilização e da submissão do homem pelo homem sem dúvida mas tam bém pode representar um perigo ao configurar uma forma de assédio dos que estão nos círculos externos aos que se reúnem no centro isto é a elite branca econômica está rodeada É uma espécie de república platônica simplificada e o narrador parece estar do lado de fora contando os sucessos fora do nec otium um poeta autoexpulso Está claro que o público leitor de O Guanabara podia entrever ali uma ameaça porque apesar das maneiras submissas dos negros há uma supremacia física inclusive nos mais velhos e um grito no sangue enfim há uma rebelião em potência A terceira parte do primeiro capítulo abrese com uma cena humilhante é o ato do açoitamento o vexame a punição que um mancebo imberbe pratica contra outro de cor preta A imagem é a mais violenta do texto E no fim do suplício seguese esta descrição E o ofendido velho e curvado sob o peso dos anos cruzou os braços musculosos apesar da velhice e deixou pender a cabe ça no peito Gonçalves Dias s d p7 Há uma força física que permanece dominada a puro golpe de chicote mas as correntes que mantêm os negros sujeitos à sua condição de vassalos produzem o rugido de uma pantera Essa ameaça não é casual Porque por esses anos as rebeliões eram constantes não ESTUDOS AVANÇADOS 30 86 2016 239 só de negros mestiços ou índios também de elites locais de algumas províncias que numa onda de levantes assolaram o território imperial desde a década de 1830 Vale lembrar aqui a rebelião conhecida como Guerra dos Farrapos 1835 1845 com intenções separatistas no atual território do Rio Grande do Sul os focos rebeldes convergentes em Maranhão um de vaqueiros e outro de negros fugitivos ao mando de Cosme na chamada Balaiada 18381841 as rebeliões liberais e populares de 1842 em São Paulo e Minas Gerais etc Nesse contexto o perigo é iminente visível Além disso a entrada estimativa de escravos por esses anos tem um pico alarmante como se vê no Quadro 14 Quadro 1 Estimativa de ingresso de escravos no Brasil Ano Estimativa 1840 20796 1841 13804 1842 17435 1843 19095 1844 22849 1845 19453 1846 50324 1847 56172 Talvez haja ali uma explicação mais significativa da razão pela qual não houve censura imediata já que entre as linhas de uma crítica se entrelaça uma advertência a evidência de uma ameaça De todo modo o texto continua em forma de presságio E vi que o ferro resistia às suas tentativas mas também vi que a sua raiva era frenética e que o sangue que lhes manava das feridas cerceava o ferro como o enxofre incendido Gonçalves Dias s d p8 Isto é a liber dade está no sangue a natureza humana tende a essa liberdade e se o rugido da pantera animaliza os escravos a ação do enxofre incandescente os libera das correntes opressoras Na IV parte começa a ser delineada com maior detalhe o que se poderia chamar de visão negativa do império Essas verdades que Gonçalves Dias co loca dentro de um processo histórico na visão panorâmica configuram um per curso que se assemelha apenas no recurso ao flashback de A Confederação dos Tamoios de Gonçalves de Magalhães Mas diferentemente do romântico arre ESTUDOS AVANÇADOS 30 86 2016 240 pendido Magalhães na Meditação essa visão panorâmica que abarca a totalidade da óptica da revelação tende a historicizar tudo Isso está em comunhão com as poesias indianistas de Gonçalves Dias nas quais a conquista e o horror que suscitou a escravidão indígena a debilidade institucional e a violência dos por tugueses devem ser parte integral do passado histórico da Nação mas também agora visto da Meditação as raças que compartilham o solo a terra bendita que também é nomeada como terra da liberdade a escravidão negra a de sigualdade a mestiçagem O panorama não pode ignorar nenhum locus Nisso Gonçalves Dias é o oposto de Gonçalves de Magalhães mas também de Varnha gen que praticam elisões recortes e anulações de toda e qualquer importância de outros sujeitos históricos Embora com vaivéns argumentativos Gonçalves Dias busca sobretudo uma autonomia um lugar a partir do qual poder dizer a Nação Essa autonomia está marcada pela crítica e ao mesmo tempo pelo comedimento para realizála Pois o negativo se evidencia com maior clareza nos meios de produção atrasados e na falta de instrução crítica que estará balanceada e contraposta como quase tudo na Meditação pelos elogios e as saudações ao grande povo nascente Con tudo é nesta IV parte que a visão se torna unívoca porque o jovem narrador só enxerga um espetáculo horrendo diante de si vi somente escravos e por toda a parte escravos Gonçalves Dias s d p10 Embora a visão se torne unívoca não deixa de suscitar uma vez mais a dualidade Isso porque em nenhum momento é possível identificar o que causa no narrador o espetáculo da escravatura se repulsão ou vergonha Primeiro há uma menção ao juízo que os viajantes estrangeiros tinham ao chegar ao Brasil e ver tantos negros porque julga o estrangeiro que um vento inimigo o levou às costas dÁfrica dali a vergonha Contudo depois de notar que o estrangeiro descobre que está no Brasil na terra da liberdade irrompe um parágrafo inteiramente construído por adversativas Mas grande parte de sua população é escrava mas a sua ri queza consiste nos escravos mas o sorriso o deleite do seu comerciante do seu agrícola e o alimento de todos os seus habitantes é comprado à custa do sangue do escravo ibidem p10 grifos nossos Esses mas vêm embaçar a visão anterior que declarava o Brasil como Terra da liberdade colocando a es cravidão como impedimento de tal rótulo E no mesmo fragmento se cristaliza a crítica ao modo de produção pois o comércio e a economia toda parecem estar sujeitos a esse sistema colonial e atrasado e todo rédito vem à custa do sangue escravo Agora para compreender melhor a ambivalência entre vergonha e re pulsão da crítica de Gonçalves Dias seria de grande utilidade reproduzir alguns dos inúmeros relatos de viajantes estrangeiros que chegaram às costas do Rio de Janeiro ou Bahia principalmente na primeira metade do século XIX e deixaram suas impressões sobre o quotidiano brasileiro Essas narrativas de viagens eram leituras assíduas dos românticos A modo de exemplo bastem duas citações a primeira de um escritor argentino Domingo Faustino Sarmiento que passou ESTUDOS AVANÇADOS 30 86 2016 241 pelo Rio de Janeiro em 1846 data muito próxima da escrita da Meditação e a segunda dos conhecidos Spix Martius cujos textos eram reproduzidos na Revista do IHGB Escreve Sarmiento 1949 p50 Incorpórome pesadamente y los ruidos toman la forma neta y despejada de la realidad asómome a la ventana que domina la plaza y la esclavatura se me pre senta en toda su deformidad Larga recua de negros encorvados bajo el peso de la carga seguían al trote al madrin que en la delantera agitaba sonajas y cascabeles y campanillas Negros arrieros cerraban la procesión chasqueando sus látigos so noros para avivar el paso de las mulas humanas y aquella bestia en dos pies lejos de gemir bajo el peso canta para animarse con el compás de su voz De repente o pesadelo é real chamase escravidão e essa aparece emoldu rada em toda sua deformidade ao viajante Vale enfatizar que esse é o mesmo Rio de Janeiro que conheceu Gonçalves Dias por esses meses no mesmo ano de 1846 A crítica de Sarmiento é idêntica à de Gonçalves Dias A escravatura é como as fraldas da indústria escreve linhas depois o modo de produção no alvo novamente ou em chave romântica o impedimento do progresso que será tratado no final da Meditação Escrevem Spix Martius s d p46 Língua costumes arquitetura e afluxo dos produtos da indústria de todas as partes do mundo dão à praça do Rio de Janeiro feição europeia O que entre tanto logo lembra ao viajante que ele se acha numa parte estranha do mundo é sobretudo a turba variegada de negros e mulatos a classe operária com que ele topa por toda parte assim que põe o pé em terra Esse aspecto foinos mais de espanto do que de agrado A natureza inferior bruta desses homens insisten tes meio nus fere a sensibilidade do europeu que acaba de deixar os costumes delicados e as fórmulas obsequiosas das suas pátrias Os temores dos naturalistas europeus parecem calcados por Gonçalves Dias numa inversão notável desde já O que fere a escravatura não passa pelo físico em Spix Martius mas pelo ético e em última análise pelo estético a insistência de homens seminus produz espanto e fere a sensibilité do europeu de costumes delicados Imediatamente depois a visão do jovem continua apontando a escrava tura como a raiz de todos os males e embora os exemplos de civilizações que levantaram grandes monumentos perduráveis não sejam dos mais felizes5 a me ditação chega até um ponto crucial que é o anúncio de um Brasil que está por nascer que ainda está em formato embrionário apesar dos juízos do jovem O ancião é quem o anuncia do seguinte modo a sociedade brasileira é um feto gigante que começa a desenvolverse debaixo da influência poderosa do sol dos trópicos Gonçalves Dias s d p15 Com essa imagem estranha Gonçalves Dias introduz a ideia herderiana da Nação como ser vivo E nesse caso não se trata de um Brasil jovem mas de um Brasil por nascer Nesse caminho em direção do progresso há um sacrifício a ser realizado um sacrifício para atingir ESTUDOS AVANÇADOS 30 86 2016 242 o destino manifesto da nação embrionária Para tal o ancião que tudo sabia valese da figura bíblica de Isaac o filho de Abraão a ser imolado Eis o destino do Império um destino bíblico Não é do sacrifício indígena como entreviu Alencar mas do negro escravo que a nação se ergue e de forma nada ideal E se restam dúvidas do destino da nação emergente o capítulo II abre com uma epígrafe do Livro de Jó citado na versão vulgata por Gonçalves Dias Vir vanus in superbiam erigitur et tamquam pullum onagri se liberum natum pu tat embora Gonçalves Dias não coloque a referência tratase de Jó 1112 As traduções abundam os sentidos se multiplicam e o logos divino perde todo o pri vilégio da univocidade mas numa das versões em português podemos ler Até quem é tolo pode tornarse prudente embora ao nascer pareça um filhote de asno selvagem Assim sendo embora aquele feto seja o de um asno selvagem e embora o presente imperial seja tolo há um caminho para a prudência essa esperança está no sacrifício pois não existe personagem bíblico mais sacrifica do que Jó o qual apesar da sanha com que um acólito do demônio o priva de tudo o que ele obteve na vida com perdas materiais e afetivas com doenças e outras atrocidades ao final é recompensado por Deus Sacrificar o sistema de produção o favor e outras mesquinhezes coloniais que persistem no presente em nome da verdadeira liberdade é isso que parece reclamar a Meditação E para tal apresentamse um pensamento uma direção e um caminho na contracorrente da ideologia dominante num embate contraideológico que só será superado pelo ímpeto abolicionista de Joaquim Nabuco quatro décadas depois Estruturalmente no segundo capítulo após a epígrafe aparecem nova mente os pontos suspensivos Desta vez tudo indica que o recurso é para ocul tar o procedimento que prepara o jovem para as visões pois a parte II começa E eu continuei dizendo isto é o narrador já está extático A fórmula do estado de epifania fica no tinteiro do poeta Nesse capítulo principalmente a presença dos opostos isto é a tensão entre os polos que ganha vigor e volume parece sugerir uma espécie de conciliação que sem superação dialética reúne a forma da verdade na própria estrutura dos coincidentia oppositorum na seguinte fórmula Mas entre a severidade do velho e o devaneio do mancebo está a verdade Ou seja é no par velho mancebo mais do que no par severidade devaneio que se articula a verdade Na outra equação dessa fórmula está con tido também o próprio afazer crítico de Gonçalves Dias não se deve ser tão severo mas tampouco há que delirar devaneio Os opostos reaparecem cons tantemente ao longo deste capítulo como possível definição do ser humano de sua natureza e da própria vida condição que descreve de forma notável a ambi guidade do poeta Assim a vida também é uma alternativa de dor e prazer de luz e trevas de esperança e desesperação Gonçalves Dias s d p24 eis a fórmula condensada levada à máxima consequência Há na Meditação uma crítica tipicamente romântica a ambos os lados do Atlântico que Gonçalves Dias desenvolve com originalidade É a colocação em abismo da razão a desconfiança de seu domínio Mas nesse caso reformulada ESTUDOS AVANÇADOS 30 86 2016 243 em termos não de inexatidão mas de carência pois a razão por si só não pode atingir a verdade não serve como guia é pouca luz ou tanta que enceguece Insensatos Pois a mesma razão não vos diz que ela é insuficiente para guiarvos no caminho da vida ibidem p30 A virtude teologal completaria o caminho pois na união desses opostos razão e fé residiria a verdade da meditação Essa fé passa da religião à política com resultados esperados Pois dela nascem dois sentimentos modernos a fé no progresso e o sentimento da nacio nalidade As nações são comparadas novamente com indivíduos e dessa forma afirmase que como existiram homens sem gênio povos também existirão sem ele ibidem p31 O ancião adverte o jovem sobre os perigos da desídia por meio da inversão de um dos tópicos que mais força teria por esses anos o de terminismo geográfico ou o fatalismo telúrico em sua forma romântica com os postulados de Montesquieu pois não seria o território ou o clima a geografia ou a natureza os que incidem sobre os homens que ali habitam mas é a natu reza dos homens a que converte o entorno Essa ideia é muito mais moderna e revolucionária do que parece para a época em que foi escrita Por esses anos por exemplo do outro lado do Prata Domingo Faustino Sarmiento no conhecido Facundo Civilização e barbárie argumentava que o deserto dos Pampas ou seja o território era o responsável pela falta de laço social e pelo predomínio da barbárie na Argentina Gonçalves Dias inverte a direção do determinismo geográfico colocando em boca do ancião a fórmula da preguiça e da indolência dos povos sem gênio Então a novidade está dada por duas motivações A primeira sempre em boca do ancião é um chamado à ação à busca do próprio em detrimento da cópia Se não chamais Progressista ao homem que vai ser vilmente colocando os pés sobre as pegadas de outrem como chamais grande ou progressista ao povo que só imita ibidem p32 Não pode haver progresso na imitação na cópia porque o original só surge com o que é próprio ergo o nacional A segunda é a prodigalidade da natureza que não é hostil e que na verdade ao longo da visão é parte da grandeza e da originalidade do grande império sendo apenas o homem o culpado por não enxergar o futuro De fato natureza e nação também se justapõem na meditação do jovem Justaposição que lhe outorga historicidade do começo dos tempos e destino grandioso terra bendita ao império A crítica sempre recai sobre tudo o que se encontra debaixo da frondosidade e nobreza das matas seculares isto é recai sobre os homens Na última parte do capítulo II aparece um programa para levar adiante a nação e atingir o bem desejado o progresso Tratase da governabilidade Aqui Gonçalves Dias esgrime seus conhecimentos etimológicos e trabalha em vários planos a mesma ideia porque como metáfora do bom governo utiliza nada me nos que a navegação a nave para atravessar o oceano e Como es sabido el origen de la palabra gobierno se ubica en la voz egea del griego kubernao término en lo esencial propio del léxico marino y empleado para indicar el instrumento con el que se orienta la embarcación el acto de manejarlo y guiar la nave Colombo 2003 ESTUDOS AVANÇADOS 30 86 2016 244 p15 Tratase com efeito do timão e da forçaguia que o dirige que lhe dá di reção Ao longo dessa última parte os fragmentos vaticinam na voz do ancião as claves para o mencionado progresso os ventos são favoráveis avançarseá inexoravelmente mas sem direção sem timão isto é sem governo correse o risco de andar em círculos e cair em ciclos repetitivos Basta traçar o destino e depois fazei assim com o povo dailhe ideias do útil e do justo e ele irá cami nho do progresso ibidem p35 O ancião agrega a força necessária para tal empresa Dailhe Deus por base de sua instrução porque Deus é o caminho a luz e a verdade e fora dele não há progresso ibidem p36 A pergunta que subjaz a essas diretrizes é clara quem deveria dar todas essas coisas ao povo Pergunta que vem desembocar em outro turvo rio que na época começava a ganhar presença Gonçalves Dias se mostra mais uma vez adiantado aos problemas que suscitariam o surgimento das multidões e sua par ticipação política Porque se o sistema escravista fosse desmontado se o povo fosse educado fosse instruído fosse cristianizado e por esses anos isso podia significar civilizado isto é se o povo fosse incorporado à vida pública todos esses novos cidadãos ostentariam a igualdade mas sempre haveria alguém aci ma deles em pirâmide guiandoos marcando o rumo segurando firmemente o timão O círculo vira triângulo Embora no texto não apareça uma única men ção à palavra democracia pois no regime imperial isso causaria estridências e rápidas suspeitas falase modernamente dos problemas da igualdade Mas vós dissestes no vosso orgulho O povo manda o povo é soberano e eu governo o povo Porque eu o intimido com a minha presença e ele se curva diante de mim como um tigre diante do homem que o soube domar ibidem p37 A pantera e seu grito de liberdade é agora um tigre domado sem correntes mas curvado diante de o domador timoneiro Mas o ancião arremete com fúria contra essa néscia utopia pois a discórdia estará presente por culpa do passado escravista assim os perigos da igualdade são ameaças para os atuais senhores e aqui o leitor da Meditação também poderia encontrar entrelinhas outra adver tência enquanto se anuncia o ciclo iterativo E os que julgavam dominálo por todo o tempo da sua vida serão os primeiros ludibriados escarnecidos e martirizados porque ele se lembrará que obede ceu passivamente e serlheá grato saborear a vingança do escravo feito senhor Serlheá doce a vingança e a crueldade porque ambas são instintos da fera e tal como a fera é o povo que despedaça a obediência qual o tigre aos varões da sua jaula ibidem p38 Há uma moderação nessa visão da liberdade e nos possíveis usos da igual dade Ao parecer o povo é uma fera e a vingança poderia fazer rodar cabeças ecos da Grande Revolução Contudo em tom bíblico a solução estará nova mente em Deus porque o Senhor disse E se algum de vós quiser dominar sobre os seus irmãos tornarseá o último dentre eles E assim será por todo o sempre porque a palavra do Senhor é eterna ibidem p39 ESTUDOS AVANÇADOS 30 86 2016 245 O ancião cala e o jovemnarrador toma a palavra Seguese um confronto um contraponto de vozes em que o jovem anuncia a possibilidade de concreção do projeto apesar desses males enumerados pelo ancião É o momento central da Meditação o eu romântico se afirma tenazmente6 sem negar a contraparte mas elevando o próprio lugar colocandose de forma magistral como criador como indivíduo moderno Pois talvez que a verdade resulte da imaginação e da experiência a imaginação que é fogo e crê e a experiência que é gelo e duvida ibidem p42 Eis o lugar reclamado por Gonçalves Dias Não nega os opostos de fato combinaos mais uma vez como forma de conhecimento e verdade porém à voz da experiência ele lhe imprime o fogo da imaginação Ou seja reclama um lugar autônomo para os jovens isto é para si7 E dessa for ma Gonçalves Dias traz à tona antecipadamente um tópico que terá uma presen ça marcante na América Latina principalmente a partir da publicação do Ariel de José Enrique Rodó em 1900 é o tópico do juvenilismo a importância do ser jovem de representar o novo o possível câmbio e esperada mudança contra aquilo que está anquilosado e retrasado o antiquado A Nação jovem contra a anciã e degradante Colônia Observese como Gonçalves Dias impõe a voz do jovem que sem assumir o controle do timão vem anunciar o rumo a seguir Ancião tu enumeraste escrupulosamente os seus erros do povo e concluíste contigo o povo vanglorioso e impávido não pode durar muito Eu porém levantarei minha voz na tua presença e derramarei meu pensamento na tua alma para que escutes a minha voz e para que respondas ao meu pensa mento ibidem p43 grifo nosso E o que essa voz da imaginação vem dizer à experiência Pois bem nada menos que o anúncio do surgimento da nacionalidade uma coisa nova mo derna algo que o velho não conhecia e cuja ignorância o tinha levado a profe tizar Este povo acabará A voz do jovem narrador sempre sob os efeitos da meditação assevera Mas o que tu não sabes é que esse povo tem uma força que o ampara e que o sustenta validamente Que essa força é o seu centro de gravidade e que o seu centro de gravidade é o patriotismo E para ter certeza de que não haverá diferença entre as classes o jovem lembra ao ancião que essa força vem se ramificando por todas as grandes divisões políticas por todas as classes e por todas as famílias ibidem p45 O velho não pode conhecer valor tão moderno o amor à pátria A pátria resiste e tolera os opostos essa é a grande verdade anunciada pelo jovem que em forma de aforismo quase de máxima kantiana encerra o seu discurso com a seguinte sentença um povo com consciência dos seus direitos não pode perecer O ancião assente ao afir mar que nunca viu um povo no qual se ostente mais amor à pátria e à liberdade contudo com o tom monocórdio e sábio da voz da experiência adverte sobre o fingimento de tais sentimentos O último capítulo o terceiro difere dos anteriores em alguns aspectos Em primeiro lugar não se abre com a linha de pontos o efeito já foi desvendado ESTUDOS AVANÇADOS 30 86 2016 246 pelo leitor Em segundo lugar só as partes I a V foram publicadas o resto per maneceu inédito até a aparição das Obras póstumas Por último nesse capítulo vão surgindo novas vozes para dialogar com o par jovemancião Tratase de outros anciãos que formam um coral de vozes dissonantes A imagem do coral se impõe pois embora os anciãos se manifestem um de cada vez no conjunto parecem ter o papel da voz da consciência como era entendida no teatro grego clássico Na primeira parte desse último capítulo encontrase condensado todo o arsenal indianista que Gonçalves Dias desenvolverá depois no melhor de sua produção poética O jovem vislumbra o povo guerreiro e começa a dotálo de virtudes E vi que uma geração numerosa e não corrompida cobria a extensão do vasto Império ibidem p52 Os índios não estão corrompidos são be los guerreiros que suscitam uma comparação com o ar tranquilo das estátuas gregas beleza e atemporalidade os índios são a génesis do Brasil pensado por Gonçalves Dias E o seu amor era a independência a sua esperança a gló ria a sua vida o trabalho e o seu pensamento forte e livre como as vagas do oceano ibidem p523 Evidentemente essa declaração que coloca a vida do índio ligada ao trabalho é diametralmente oposta à imagem dada pelos viajantes europeus e vale mencionar à imagem recolhida pelo Gonçalves Dias 2002 etnógrafo às margens do Amazonas A degradação do homem americano e sua incapacidade fabril assim como sua indolência eram moeda corrente do pen samento pretensamente científico ao longo dos séculos XVIII e XIX princi palmente a partir das teses degenerativas dos naturalistas De Pauw e Buffon Gerbi 1996 Na Meditação há uma aberta oposição entre o índio que parece calcado do bon sauvage de Rousseau e os homens que chamamos civilizados colocando a ambos no mesmo lugar ocupantes do mesmo vasto Império Imediatamente compreendemos o porquê da expressão que chamamos pois todos os valores da civilização esperados são sistematicamente negados Trata se de uma crítica violenta contra a conquista portuguesa a colônia e as missões jesuíticas Aqueles homens que pregavam a igualdade tratando os indígenas como escravos ibidem p56 eram movidos pela avareza pela cobiça pelo ouro e não pelos altos valores da civilização e do cristianismo A comparação é imediata quase automática porque os tempos se misturam na visãomeditação então aquela escravização e violência avarenta da conquista têm ecos no presen te nos corpos subjugados dos negros africanos a violência é a mesma a avareza continua sendo o fim buscado A história se repete há um ciclo iterativo ergo a nave ainda navega em círculos embora o vento ideal e supostamente benéfico do progresso continue a soprar Na visão o indianismo de Gonçalves Dias chega a ser mais direto e efetivo que nas poesias ao chamar de primeiro Brasileiro que encontramos na Histó ria a um índio converso ibidem p58 morto nobremente o Brasil já estava latente na languidez colonial A guerra contra os índios foi movida pela cobiça ESTUDOS AVANÇADOS 30 86 2016 247 porém há uma imagem que devemos salientar E no chão que eles cavaram para o assento da cruz encontraram uma veia de ouro que os distraiu do seu traba lho ibidem Observese a inversão que opera a Meditação a conquista não foi movida pelo ouro foi o ouro que mudou distraiu a direção da conquista e apartou os conquistadores do trabalho A maldição de Deus para a nação con quistadora os lusitanos que tinham se pervertido encerra a segunda parte do capítulo final E só na IV parte os vencedores entendem que é preciso gênio além de incomparável força bruta para reverter os desígnios divinos Quando os vencedores incorporam o gênio local imediatamente uma voz sonora e re tumbante partiu do Ipiranga e foi do mar aos Andes e do Prata às margens do Amazonas ibidem p62 dessa forma se narra a separação da metrópole Por tugal fica para trás com sua força bruta o gênio local anuncia a independência Contudo a corrente que atava o povo nascente a Portugal permanecia visível havia sinais dela e ninguém tentava arrancála porque era forte e bifurcada ibidem p64 Quais seriam os sinais ainda visíveis dessa corrente Quais os elos que li gavam o povo brasileiro com esse passado ominoso de avareza e violência Pois bem a Meditação responde E os homens que se haviam congregado para per fazerem a obra da redenção dividiramse depois da lide em massas poderosas não segundo a diversidade das opiniões porém segundo a variedade das cores ibidem p65 Gonçalves Dias fecha o círculo de forma magistral leva o pro blema que desenvolveu na visão histórica condenando a conquista lusitana e o mau uso da religião da redenção até o presente a separação em cores que nos remete ao começo do texto os círculos concêntricos divididos pelas cores E deixa retumbar todas as expressões que justificam a escravatura E os homens que costumam a raciocinar sobre as coisas como elas são e não como devem ser levantaramse e disseram Os homens de cor preta devem servir porque eles estão acostumados à servidão de tempos mui remotos e o costume é também lei E os filósofos disseram Os homens de cor preta devem servir porque são os mais fracos e é lei da na tureza que o mais fraco sirva ao mais forte E os proprietários disseram Os homens de cor preta devem servir porque são o melhor das nossas fortunas e nós não havemos de as desbaratar ibidem p656 A força do costume a lei da natureza e a justificação da reificação do escravo com o estatuto da propriedade privada são todos os argumentos dos conservadores dos que vêm as coisas como são e não como devem ser Visão que sustentará anos depois o Alencar das Cartas de Erasmo E então como devem ser as coisas É a pergunta central e implícita da Meditação E ainda qual é o lugar que ocupam os outros nessa lógica manique ísta E por último quem são esses outros Nas páginas mais densas em termos ESTUDOS AVANÇADOS 30 86 2016 248 políticos lemos entrelinhas algumas respostas E os homens de raça indígena e os de cor mestiça disseram em voz alta E nós que faremos Qual será o nosso lugar entre os homens que são senhores e os homens que são escravos ibidem p66 Os outros são os mestiços e é aqui onde devemos colocar Gon çalves Dias além da identificação com o jovem narrador pois sua condição no momento de escrever a Meditação era a desses outros E o que se reclama nessas linhas é central para compreender o lugar buscado a autonomia intelectual Os brancos governam os negros servem bem é que nós sejamos livres ibidem p67 Mas que tipo de liberdade sugere para esse outros Tratase da liberdade de dizer de criticar desde um lugar autônomo É a liberdade dos modernos não já a liberdade para dos antigos como sugeria Benjamin Constant em Da liberdade dos antigos comparada com a dos modernos 1818 ver Bobbio 2000 Cap1 Por isso embora pareça contraditório lutase por um lugar insólito Vivamos pois na indolência e na ociosidade pois que não necessitamos tra balhar para viver e linhas depois Deixarnosão no ócio porque precisarão de nós e porque a nossa ociosidade lhes será necessária Gonçalves Dias s d p67 Se o negócio é a escravidão que divide a sociedade entre senhores e escra vos proprietários e propriedades quem não participar do nec otium pode bem viver sem essas afrontas nessa afirmação do ócio E nós seremos felizes Po rém o penúltimo fragmento dos publicados sugere um lugar fora do ócio e do negócio pois o governo esquecia que o ócio produz crimes ibidem p68 As partes que permaneceram inéditas levantam algumas questões interes santes mas não agregam nada em termos conceituais às ideais críticas da Me ditação As vozes de quatro anciãos marcam erros contradições ou sugerem problemáticas que deveriam levarse em consideração no momento de aceitar as coisas não como são mas como devem ou deveriam ser Há duas referências à monarquia que seguramente não poderiam ter passado sem produzir malestar no Rio de Janeiro A primeira aparece no discurso do terceiro ancião Curemos de nós somente porque a vida é breve precário o nosso lugar e instável a aura do povo e o favor do monarca ibidem p80 o favor e a palavra não carrega nenhuma inocência do monarca é instável não se encaixa na lógica dos méritos e sim na da arbitrariedade A segunda surge durante a intervenção do quarto e último ancião que pergunta e todos repetiam O Rei que faz a resposta produz o riso de todos O Rei dorme ibidem p84 Por último após ser delineado o perigo do próximo levantamento quando a rebelião se preanuncia ao longo da XI parte Gonçalves Dias consegue a ablução pessoal numa das passagens de maior denuncia pois se inscreve no presente da enunciação E o ancião me disse A vossa política é mesquinha e vergonhosa e milagroso é o homem que sai dela limpo de mãos e de consciência Os Delegados da Nação que não contam com o voto aturado e livre de povo vendemse impudicamente parte XII p87 ESTUDOS AVANÇADOS 30 86 2016 249 Dessa forma Gonçalves Dias prefigura a democracia e se sente suficien temente limpo de mãos e consciência pois fez a sua parte levantou a voz para falar a verdade ao poder A modo de conclusão desta leitura da Meditação e da natureza dos males da Nação no Brasil do Segundo Reinado podemos dizer que nos tempos dos Saquaremas quando ser conivente com o sistema escravista e com o favor impe rial era a regra de fato quando o favor e o nepotismo eram normas de ascensão e ainda quando o próprio imperador D Pedro II financiou a publicação de O Guanabara onde apareceu fragmentada a Meditação Gonçalves Dias se coloca firmemente do lado do progresso e marca um rumo sem anunciar o timoneiro para sair desse estado de política mesquinha que o cercava a escravidão Dei xando de lado aqui o meramente anedótico acerca do contrariado ou não que se sentiu o poeta com a outorga da condecoração da Ordem da Rosa Pela densidade teórica e pela qualidade literária numa prosa poética que não perde em análise a Meditação resulta um texto extraordinário apesar de ter sido relegado pela crítica Um ensaio denso preciso e precioso à altura de Nuestra América do poeta cubano José Martí Basta elencar alguns dos pos tulados da Meditação ao menos os mais eloquentes a saber a importância da imaginação da obra para dizer a história e a realidade política o contato com a divindade como momento central de qualquer progresso e os métodos para atingir ambas as coisas que neste caso estariam contemplados na verdadeira ciência que não se colhe dos livros ela vem com a meditação Motivos sufi cientes sem mencionar a incidência evidente de sua poesia para colocar Gonçal ves Dias entre os intelectuais mais lúcidos dos Romantismos na América Latina toda E dizemos intelectual e não apenas poeta sabendo que tal apelativo poderia ser motejado de anacrônico pois ainda Émile Zola não tinha acusado ao mesmíssimo presidente da república francesa para defender o injuriado Dreyfus Mas valemonos do termo com a convicção de que esse trabalho autônomo da crítica ao poder corresponde modernamente ao intelectual e Gonçalves Dias o representou de forma eloquente Como escreveu Edward Said 2005 p99 discurso que desejamos alinhar com o Gonçalves Dias da Meditação Minha questão é se para o intelectual contemporâneo vivendo numa época já confusa pelo desaparecimento do que parecem ter sido normas morais objetivas e autoridade sensível é aceitável apoiar simplesmente ou mesmo cegamente o comportamento de seu próprio país e fechar os olhos aos seus crimes ou dizer com bastante negligência Penso que todos fazem isso e é assim que o mundo funciona Ao contrário o que devemos ser capazes de dizer é que os intelec tuais não são profissionais desnaturados pela subserviência a um poder cheio de falhas mas repetindo são intelectuais com uma posição alternativa e mais íntegra que lhes permite de fato falar a verdade ao poder O poeta o etnógrafo o ensaísta enfim o intelectual Gonçalves Dias não fechou os olhos aos crimes cometidos no Brasil e se o fez momentaneamente foi apenas para tramar uma visão fragmentária que na sinédoque prefigura a to ESTUDOS AVANÇADOS 30 86 2016 250 talidade Ao agir assim mesmo num texto completamente periférico dentre os consagrados pela crítica do movimento romântico local Gonçalves Dias conse guiu confrontar embora mantendo a ambiguidade do olhar o maior horror que o Brasil monárquico não consegue dissimular a ominosa realidade do cativeiro dos escravos negros A Nação a jovem nação brasileira contudo é apresentada com um destino e um futuro de esplendor Porém esse devir se materializa na visão profética só se as críticas forem atendidas Críticas certeiras e bem ex plicitadas nessa forma ensaística que permite a soltura do estilo e a clareza de ideias numa prosa sempre próxima do poético Dessa forma contra a corrente8 no lado oposto ao de Alencar e ao da ampla maioria da elite letrada ao menos no final da década de 1840 quando o texto é escrito e no começo da década de 1850 quando o texto é publicado Gonçalves Dias é pioneiro ao gerar um espaço autônomo que lhe permite sair da lógica do favor e dessa forma com a voz clara mas com as dúvidas sobre sua periculosidade falar a verdade ao poder Notas 1 Este artigo originalmente é parte do capítulo 3 da tese de doutorado Naturaleza Nación y tensión en los romanticismos argentino y brasileño defendida na USP em 6 de agosto de 2015 Contudo algumas alterações foram realizadas para esta publicação 2 O capítulo 3 está subdividido em treze partes com números romanos As partes I a V fo ram publicadas na revista O Guanabara junto com o resto do texto As partes VI a XIII foram recolhidas por Antônio Henriques Leal nas Obras póstumas que aqui utilizamos 3 Todas as citações pertencem a esta edição Adaptamos a grafia original às normas vigen tes do português 4 Os dados para elaborar o quadro foram tomados de Jancsó 2000 5 O ancião fala dos egípcios dos árabes e dos gregos da monumentalidade de obras como as pirâmides e conclui que tudo aquilo foi possível porque eles eram livres nos atos e nos pensamentos sendo que como é sabido todas essas civilizações se serviram da escravatura para realizar tanto esses trabalhos como os mais domésticos 6 Para os românticos conhecer seu objetivo verdadeiro não é conhecer a verdade tal como concebida pelo pensamento iluminista segundo o qual primeiro descobrese a verdade depois aplicase ao invés disso sua ação em si expressa é una com suas con vicções Moral e política não são um conjunto de proposições são ação autodedicação a objetivos tornados concretos repara Isaiah Berlin 1999 p254 7 Até o próprio ancião acaba aceitando o valor da juventude pois seus dias já declinaram como a sombra mas não assim o mancebo Seus olhos são como um prisma seu coração como uma fogueira e o seu gênio impetuoso como a torrente ibidem p23 8 No único texto quase inteiramente dedicado à Meditação que encontramos Wilton José Marques 2010 coloca Gonçalves Dias já do título nesse revés de trama como o que pode dizer aquilo que os outros preferem calar apesar da evidência ESTUDOS AVANÇADOS 30 86 2016 251 Referências ALVES CUNHA C Introdução In GONÇALVES DIAS A Cantos São Paulo Mar tins Fontes 2001 BERLIN I O sentido da realidade Estudos das ideias e de sua história Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1999 BOBBIO N Liberalismo y democracia México Fondo de Cultura Económica 2000 BOSI A Dialética da colonização São Paulo Cia das Letras 1992 História concisa da Literatura Brasileira São Paulo Cultrix 2006 As ideologias e o seu lugar In Entre a literatura e a história São Paulo Editora 34 2013 CANDIDO A Formação da literatura brasileira Belo Horizonte Itatiaia 2000 CARVALHO M de A construção da ordem A elite política imperial Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2008 COLOMBO P Gobierno Léxico político Buenos Aires Nueva Visión 2003 GERBI A O novo mundo História de uma polêmica 1750 1900 São Paulo Cia das Letras 1996 GONÇALVES DIAS A Correspondência Ativa Anais da Biblioteca Nacional Rio de Janeiro v84 1964 Poesia e prosa completas Rio de Janeiro Nova Aguilar 1998 Gonçalves Dias na Amazônia Relatórios e Diários de Viagem ao Rio Negro Introdução de Josué Montello Rio de Janeiro Academia Brasileira de Letras 2002 Meditação In Obras posthumas de A Gonçalves Dias Rio de Janeiro Garnier s d Precedidas de uma notícia da sua vida e obra pelo Dr Antônio Henriques Leal GUINSBURG J Org O romantismo São Paulo Perspectiva 1978 JANCSÓ I Dir Cronologia de História do Brasil Monárquico 1808 1889 São Paulo Humanitas Departamento de História FFLCH USP 2000 MARQUES W J Gonçalves Dias e a burocracia imperial favores e afrontas In MOT TA OLIVEIRA P Org Figurações do oitocentos São Paulo Ateliê 2008 Gonçalves Dias o poeta na contramão Literatura e escravidão no romantismo Brasileiro São Carlos EduFSCar 2010 MORITZ SCHWARCZ L Dir História do Brasil Nação 18082010 Rio de Janei ro Objetiva 2013 v2 A construção nacional 18301889 coord José Murilo de Carvalho PEREIRA L M A vida de Gonçalves Dias Rio de Janeiro José Olympio 1952 SAID E Falar a verdade ao poder In Representações do intelectual As conferên cias Reith de 1993 São Paulo Cia das Letras 2005 SARMIENTO D F Viajes por Europa África y América 18451847 Buenos Aires Luz del Día 1949 SPIX MARTIUS Viagem pelo Brasil São Paulo Melhoramentos s d vI Libro 2 ESTUDOS AVANÇADOS 30 86 2016 252 resumo Este artigo tem o intuito de realizar uma leitura crítica da obra em prosa poéti ca Meditação do poeta maranhense Gonçalves Dias Dita obra publicada fragmentaria mente na revista O Guanabara no começo da década de 1850 foi relegada pela crítica especializada concentrada geralmente na produção poética de Gonçalves Dias e em menor medida na produção etnográfica Tratase de um texto no qual o autor exerce a crítica de forma eloquente num movimento contraideológico notável para a época palavraschave Gonçalves Dias Romantismo brasileiro Escravidão Intelectual Brasil Império abstract This article makes a critical reading of Meditação the work in poetic prose by Maranhãoborn poet Gonçalves Dias published piecemeal in the magazine O Gua nabara in the early 1850s Meditação was relegated by the critics who concentrated on Gonçalves Dias poetic production and to a lesser extent on his ethnographic pro duction It is a text in which the author is eloquently critical in a counterideological movement remarkable at the time keywords Gonçalves Dias Brazilian Romanticism Slavery Intellectual Brazil Empire Diego A Molina é licenciado em Letras Modernas com especialização em Literatura Argentina e Latinoamericana pela Universidade de Buenos Aires 2007 mestre em Literatura Brasileira e doutor em Literatura Hispanoamericana pela USP Atualmente realiza pósdoutorado em Literatura Brasileira na USP É pesquisador no grupo de Cultura e Literatura do Instituto de Estudos Avançados da USP E no grupo de pesquisa da Historia Comparada de las literaturas argentina y brasileña da Univer sidade de Buenos Aires diegomolinauspbr Recebido em 26102015 e aceito em 21122015 I Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas Universidade de São Paulo São PauloSão Paulo Brasil