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Direito Penal

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raça 4 Aproximações entre tipos de gênero e raça 5 A interseccionalidade na população negra da cidade do Rio de Janeiro 6 Classes sociais e interseccionalidade 3 Gênero Feminismos e Sistema de Justiça Interseccionalidade no enfrentamento das desigualdades de gênero raça e classe 3 1 Conceito de interseccionalidade A interseccionalidade traduz a compreensão de que as relações sociais de opressão e dominação estão articuladas na vida das pessoas por meio de várias categorias como gênero raça classe social nacionalidade sexualidade entre outras O conceito traz uma mensagem importante a multiplicação das discriminações ocorre na vida dos sujeitos sociais em diferentes situações que acabam se tornando únicas Dessa forma garante que as políticas públicas possam atender a todos sem excluir ninguém Para ilustrar esse conceito geral vamos trazer a explicação da autora que cunhou este conceito a jurista feminista afroamericana Kimberlé Crenshaw Na sua análise de casos de mulheres negras nos EUA que tiveram seus direitos violados simultaneamente por ser mulher e negra em razão das práticas discriminatórias que a sociedade instalou Crenshaw empregou o termo interseccionalidade O conceito surgiu para indicar que ser mulher negra cria uma realidade diferente de ser mulher branca negra ou homem negro A autora analisa que um indivíduo pode ser discriminado por vários fatores mas cada um deles por si só não consegue explicar a situação específica de uma mulher negra No Brasil não há estudos específicos mas podemos pensar que o mote do feminismo negro as vidas negras importam como um importante vetor para o entendimento da interseccionalidade racial e de gênero 4 5 Gênero Feminismos e Sistema de Justiça Interseccionalidade no enfrentamento das desigualdades de gênero raça e classe 4 Aula 1 Interseccionalidade gênero raça e classe social Leia o quadro abaixo para compreender as diferenças entre as formas de análise das categorias abordadas até aqui Gênero Raça Classe Análise classista Produz imprecisão pois a análise torna invisível a opressão específica do racismo em indivíduos racializados Não percebe o preconceito racial e a sua dimensão estrutural Por outro lado a análise racial e seu papel para explicar a dimensão material da discriminação não conseguem dar conta das características de classe A análise centrada somente na classe produz um apagamento das discriminações em função do gênero e da raça Análise racial Produz um apagamento das discriminações de classe e gênero Não consegue explicar a situação específica das mulheres em consequência do racismo estrutural Análise feminista Produz um apagamento das discriminações em função da raça e da classe social Trata a questão racial como um tema secundário e pouco importante para o debate Na interseccionalidade Quando o foco está em mulheres negras a análise considera tanto o gênero quanto a raça Análise prima pela multiplicidade das opressões que se articulam E ainda O debate feminista convive com o racismo o debate racial convive com a falta de perspectiva feminista e o debate de classe carece da discussão dos sexismos e racismos 5 6 Gênero Feminismos e Sistema de Justiça Interseccionalidade no enfrentamento das desigualdades de gênero raça e classe 5 Aula 1 Interseccionalidade gênero raça e classe social 2 De onde vem o conceito O conceito foi formulado pelas feministas negras norte americanas nos anos 1980 com o objetivo de discutir as discriminações e opressões a partir da perspectiva de mulheres negras e outras minorias Uma das tarefas das feministas negras é mostrar que só a luta contra o sexismo preconceito de gênero não resolve a questão de desigualdade e que o racismo tem uma presença estrutural nas sociedades capitalistas Para impôr esta perspectiva grupos de ativistas negros e mulheres negras foram os que criaram e levaram o conceito à academia Na teoria feminista este conceito foi amplamente tratado por Audre Lorde Patricia Hill Collins e Angela Davis e constitui uma perspectiva que desafia o feminismo hegemônico que se caracterizava pelo foco em mulheres brancas e de classe média A autora feminista ativista e jurista americana Kimberlé Crenshaw cunhou o termo em 1989 A seguir alguns aspectos da discussão feita na teoria jurídica para entender a importância da interseccionalidade para as políticas públicas referentes ao sistema de justiça 6 7 Gênero Feminismos e Sistema de Justiça Interseccionalidade no enfrentamento das desigualdades de gênero raça e classe 6 Aula 1 Interseccionalidade gênero raça e classe social 3 Cor e raça O conceito de cor e raça não é necessariamente o mesmo apesar de serem utilizados como sinônimos pelas políticas públicas brasileiras A cor parece mais uma categoria descritiva de aparência e a raça uma categoria social associada a relações de poder e posições sociais No estudo do racismo há uma distinção importante entre a noção de raça e etnia que pode ser explicada conforme Desmond Cole Raça é uma categoria social usada para diferenciar e hierarquizar já a etnia significa a pertença a um grupo cultural ou nacional Apesar disso o uso das duas categorias pode subir e descer na escala dos processos raciais Para lidar com as questões de raça no Brasil o Constructo Raça tem duas perspectivas para análise uma deles é o sistema de classificação racial como a autodeclaração e outras formas de classificação como cor da pele fenótipo exame facial etc e a outra é a dimensão social da raça considerada na sua discriminação ininteis Exemplo no Brasil ser negro pode não ser considerado um fato biológico mas um fato social 7 8 Gênero Feminismos e Sistema de Justiça Interseccionalidade no enfrentamento das desigualdades de gênero raça e classe 7 Aula 1 Interseccionalidade gênero raça e classe social 4 Aproximações entre tipos de gênero e raça As categorias gênero e raça apesar de constituírem processos de opressão e discriminação que se cruzam apresentam características diferentes em especial quanto à sua identificação e percepção social A raça pode ser percebida visualmente quase sempre e produz efeitos discriminatórios diretos No Brasil o racismo se manifesta de maneira mais forte do que o sexismo em muitas situações contra mulheres negras Apresentamos abaixo o resultado da PNAD Contínua VIH Íntima 2019 segundo o informante e informada si 11 Lea Negro Rouca Goa Paula A B C D A cor e raça de mulheres negras seguidas por mulheres negras heterossexuais são as que apresentam maior risco de violência seja ela violência física psicológica sexual ou econômica As mulheres brancas em especial as mulheres brancas heterossexuais são as que apresentam menor risco de violência 8 9 Gênero Feminismos e Sistema de Justiça Interseccionalidade no enfrentamento das desigualdades de gênero raça e classe 8 Aula 1 Interseccionalidade gênero raça e classe social 5 A interseccionalidade na população negra da cidade do Rio de Janeiro Entre os anos de 2018 e 2019 a Secretaria Municipal de Assistência Social Trabalho e Renda desenvolveu um trabalho em parceria com a Secretaría Municipal de Políticas de Promoção da Igualdad Racial que avaliou o impacto da interseccionalidade nas populações negras do munícipio do Rio de Janeiro Foram utilizadas as informações da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios PNAD para avaliar indicadores sociais para a população negra frente à população branca O estudo analisou a renda per capita nível de escolaridade níveis de ocupação e percepção de segurança pública por áreas de residência 9 10 Gênero Feminismos e Sistema de Justiça Interseccionalidade no enfrentamento das desigualdades de gênero raça e classe 9 Aula 1 Interseccionalidade gênero raça e classe social 6 Classes sociais e interseccionalidade Em um estudo de 20181 sobre as desigualdades raciais na população do Rio de Janeiro foi possível observar que em todas as classes sociais as pessoas negras apresentam condições menos favoráveis quando comparadas às pessoas brancas nas mesmas condições socioeconômicas Em especial as pessoas negras que vivem nos bairros da Região Metropolitana do Estado do Rio de Janeiro No quesito escolaridade é possível concluir que a população negra em todas as classes tem níveis educacionais inferiores aos da população branca Na ocupação homens negros têm menor ocupação do que homens brancos em todas as classes e o mesmo ocorre com as mulheres negras quando comparadas às mulheres brancas Os dados reforçam o argumento da interseccionalidade mostrando que a discriminação racial está presente em todas as classes No alvo das políticas públicas para ser efetivo o enfrentamento do racismo precisa considerar as condições socioeconômicas das pessoas negras 10 11 Gênero Feminismos e Sistema de Justiça Interseccionalidade no enfrentamento das desigualdades de gênero raça e classe 10 PLANO DE ENSINO AÇÕES DO MPRJ PARA ENFRENTAR A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E A DISCRIMINAÇÃO RACIAL Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro Coordenadoria de Políticas para as Mulheres e Cidadania LGBT Contato cmpccidadaniamprjmpbr Este material foi produzido por Luciana Boiteux Professora permanente do Programa de PósGraduação em Direito PUCRio Procuradora de Justiça Coordenadora da Coordenadoria de Políticas para Mulheres e Cidadania LGBT Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro Patricia Carlos Magno Procuradora de Justiça Coordenadora da Coordenadoria de Políticas para as Mulheres e Cidadania LGBT Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro Laize Benevides Mestranda no Programa de PósGraduação em Direito PUCRio Coordenadora Adjunta da Coordenadoria de Políticas para as Mulheres e Cidadania LGBT Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro 11 12 GÊNERO FEMINISMOS E SISTEMAS DE JUSTIÇA DISCUSSÕES INTERSECCIONAIS DE GÊNERO RAÇA E CLASSE GÊNERO FEMINISMOS E SISTEMA DE JUSTIÇA DISCUSSÕES INTERSECCIONAIS DE GÊNERO RAÇA E CLASSE ORGANIZADORAS Luciana Boiteux Patricia Carlos Magno Laize Benevides Freitas Bastos Editora GÊNERO FEMINISMOS E SISTEMAS DE JUSTIÇA ORGANIZADORAS Luciana Boiteux Patricia Carlos Magno Laize Benevides DISCUSSÕES INTERSECCIONAIS DE GÊNERO RAÇA E CLASSE DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO CIP Freitas Bastos Editora Tel 21 22764500 freitasbastosfreitasbastoscom vendasfreitasbastoscom www freitasbastoscom Copyright 2018 by Luciana Boiteux Patricia Carlos Magno e Laize Benevides Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9610 de 1921998 É proibida a reprodução total ou parcial por quaisquer meios bem como a produção de apostilas sem autorização prévia por escrito da Editora Direitos exclusivos da edição e distribuição em língua portuguesa Maria Augusta Delgado Livraria Distribuidora e Editora Editor Isaac D Abulafia Diagramação Jair Domingos de Sousa Projeto de Capa Rômulo de Oliveira e Raquel Alves Ilustração da Capa Didi Helene crocomila Comissão Científica dos Anais Aline Pancieri Ana Miria Carinhanha Elida Lauris Heloisa Melino Igor Soares Juliana Chichierchio Laize Benevides Larissa Fontes Luciana Boiteux Maíra Fernandes Maysa Carvalhal Natália Santanna Patricia Carlos Magno Rachel Gouveia Raquel Alves G326 Gênero feminismos e sistemas de Justiça discussões interseccionais de gênero raça e classe Luciana Boiteux Patricia Carlos Magno Laize Benevides Orgs Rio de Janeiro Freitas Bastos 2018 1312 p 23 cm ISBN 9788579873348 1 Direito 2 Gênero 3 Feminismo 4 Sistemas de Justiça I Boiteux Luciana II Magno Patricia Carlos III Benevides Laize IV Título 20181166 CDD 342162522 CDU 34396 Dedicamos esta obra in memorian à Marielle Franco mulher de luta AÇÕES DO MPRJ PARA ENFRENTAR A VIOLÊNCIA DE GÊNERO E A DISCRIMINAÇÃO RACIAL 12 PLANO DE ENSINO VII SUMÁRIO Apresentação 1 Cecilia Caballero Lois Introdução 3 Vanessa Batista Berner Nota do Apoiador 7 Articulação Fórum Justiça Editorial 11 Luciana Boiteux Laíze Gabriela Benevides e Patricia Carlos Magno Parte I FEMINISMOS ANTIPUNITIVISMO E ENCARCERAMENTO FEMININO Página 17 Seção 1 Encarceramento Feminino 17 Gênero e Tráfico de Drogas Um Estudo SócioJurídico da Aplicação da Pena às Mulheres Encarceradas no Norte Fluminense do Estado do Rio De Janeiro 19 Raquel Alves Rosa da Silva Mulheres Presas Por Tráfico de Drogas Entre Protagonismos e Figurações nas Tramas do Punitivismo e das Desigualdades de Gênero 37 Luisa Bertrami DAngelo Revista Vexatória e o Controle dos Corpos das Mulheres Porque no Princípio Eva Comeu a Maçã 54 Tani Maria Wurster e Camille Vieira da Costa VIII Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Encarceramento e Gênero Impactos da Política Repressiva Contra as Drogas no Chile 72 Alicia Alonso Merino Presas Que Não Mestruam Uma Visão Crítica Sobre a Aplicabilidade das Disposições Legais Positivadas ao Encarceramento Transgênero Feminino 89 Larissa do Vale Teixeira Uma Leitura Abolicionista das Regras De Bangkok Entre o Desencarceramnto Feminino e a Reforma Das Prisões 108 Carolina Soares Nunes Pereira A Divisão Sexual do Trabalho no Tráfico De Drogas e o Encarceramento das Mulheres As Especificidades da Guerra às Drogas em Relação ao Sexo Feminino 120 Aila Fernanda dos Santos Despatriarcalizar e Descolonizar A Criminologia Crítica Um Diálogo Necessário 138 Rayane Marinho Rosa e Humberto Ribeiro Júnior Seção 2 Antipunitivismo 161 Violência Sexual Contra a Mulher Uma Análise Criminológica 161 Natália SantAnna Figueiredo Virgem Honesta Adúltera Prostituta Quando o Direito Penal Classifica Mulheres 181 Renata Saggioro Davis Feminicídio no Brasil O Que Vem Depois da Tipificação 196 Ana Carolina de Sá Juzo e Ivo Mendes Feminicídio Uma Análise da Recente Exposição de um Antigo Problema nos Discursos Jurídicos 210 Bruna Fortunato Barcelos e Larissa Barbosa Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça IX Parte II SABER PSIQUIÁTRICO GÊNERO E PRIVAÇÃO DE LIBERDADE Página 221 A Reforma Psiquiátrica e Privação de Liberdade 225 Renata Verônica Côrtes Lyra Mulheres em Transtono Psiquico e Destituições de Poder Familiar 247 Alessandra de Andrade Rinaldi e Geovana Siqueira Costa Grupo de Mulheres em Situação de Violência Análise da Experiência em um Serviço de Saúde Mental de Pernambuco 265 Kalline Flávia S Lira Relações de Gênero Raça e Classe e a Saúde Mental a Experiência de uma Formação Interseccional na Universidade Federal Rural do Rio De Janeiro 281 Isabella Afonso Leal Carolayne Ferreira dos Santos Clara Azevedo de Araújo e Rachel Gouveia Passos SujeitasHaldol um estudo sobre o uso da camisa de força química como docilização de corpos no cárcere 294 Patricia Carlos Magno Diálogos enodados para uma aproximação entre a saúde mental e mulheres 315 Melissa de Oliveira Pereira X Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Parte III PESSOAS LGBTQIA E SISTEMAS DE JUSTIÇA Página 315 A Incompatibilidade de Práticas Homofóbicas com a Constituição e os Tratados Internacionais 331 Bruno de Assis Pimentel Carvalho Daiana Seabra Venancio A Implementação da Decisão da Corte Europeia de Direitos Humanos no Caso Vallianattos e Outros Vs Grécia A Luta Contra o Autoritarimo e Busca pelos Direitos Sociais 351 Milena Queiroga Silva Camila Soares Lippi O Sistema de Determinação da Condição de Refugiado LGBTIQA como Instrumento Colonizatório 365 Natalia Cintra de Oliveira Tavares Vinicius Pureza Cabral O Movimento Lgbt e a Criminalização da Homofobia entre Perspectivas da Criminologia Crítica e uma Demanda Já Cansada de Esperar 378 Priscila Cristine Silva de Souza Feminismos e Movimentos LGBT a Revolta de Stonewall como marco de lutas pela despatologização e as semelhanças com o cenário acadêmicoativista brasileiro 397 Heloisa Melino O Reconhecimento da Identidade de Gênero das Pessoas Trans No Brasil um olhar sobre as iniciativas do Poder Legislativo Executivo e Judiciário 423 Flora Hilário Mendes Pereira Marina Barbosa de Freitas Reflexões Epistemológicas sobre a Formação da Criminologia Queer 441 Isaac Porto dos Santos Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça XI Gênero Poder Judiciário e Mulheres Transexuais e Travestis Lei Maria da Penha e Garantia de Direitos 457 Henrique Rabello de Carvalho Transgêneros Remédios Transformativos e Combate à Violência 476 Ana Carolina de Azevedo Caminha Raisa Duarte da Silva Ribeiro Parte IV SISTEMA DE JUSTIÇA PENSADO POR MULHERES Página 499 Seção 1 Violência Doméstica 495 Violência doméstica enfrentando o problema em rede 497 Michelle Moraes Santos Violência doméstica e interseccionalidade apontamentos sobre os limites do sistema punitivo estatal 514 Elisa Borges Matos e Zilda Onofri Patente A limitação da sexualidade feminina pelos códigos penais como forma de manutenção do patriarcado 532 Júlia Somberg Não me vejo na palavra fêmea alvo de caça conformada vítima a insuficiência do sistema de justiça frente às demandas de violência doméstica 547 Laura Gigante Albuquerque e Domenique Assis Goulart Seção 2 Mulher e Sistema Penal 565 Controle Social e Pena como continuum no processo de dominação das mulheres 567 Ana Carolina de Oliveira Marsicano XII Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Sistema de justiça criminal instituições personagens e gênero 577 Mariana Pinto Zocca Justiça restaurativa e medidas socioeducativas no contexto escolar um estudo de caso do instituto superior de educação do rio de janeiro589 Agatha Lorena Seixas Abordagens Interdisciplinares entre as Relações Internacionais e o Direito Internacional Uma Perspectiva Feminista 606 Camila Soares Lippi O Sistema Penal enquanto instrumento de perpetuação da prática autoritária 619 Juliana Costa Chichierchio da Silva Parte V PRISÕES INVISÍVEIS SITUAÇÃO DE MATERNIDADE E SISTEMA DE JUSTIÇA Página 637 Maternidade e Violência Atrás das Grades 639 Maíra Fernandes e Mariana Paganote Gravidez na Prisão Gravidez de Risco 657 Aline Cruvello Pancieri Maternidade e Cárcere no Sistema de Justiça Criminal Patriarcal 673 Barbara Gaeta Dornellas de Lima e Sandra Maria Pinheiro Ornellas Mulheres e Maternidade no Cárcere 683 Anna Paula de Moraes Bennech e Fernanda da Silva DÁvila Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça XIII O Fortalecimento de Vínculos Familiares de Mulheres Presas em Situação de Maternidade 700 Ana Clara Gomes Picolli e Karla Ingrid Pinto Cuellar Análise das decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a possibilidade de concessão de prisão domiciliar da Lei 1325716 717 Vanessa Ferreira Lopes e Mário Bani José Valente A culpabilização de mães de adolescentes em privação de liberdade no sistema socioeducativo do Rio de Janeiro 736 Mariana Nicolau Oliveira Políticas de saúde para mulheres privadas de liberdade no Brasil uma revisão de literatura 753 Flávia Ferreira dos Santos e Cristiane Batista Andrade Maternidades Sequestradas pelo Poder Punitivo destituição do Poder Familiar de Mulheres Presas 772 Mariana Lins de Carli Silva Parte VI CIDADE REDES ARTICULAÇÕES MOVIMENTOS SOCIAIS FORMULAÇÕES DE POLÍTICAS PÚBLICAS E CONTROLE SOCIAL Página 791 Formação de Multiplicadores para o Acolhimento de Mulheres em Situação de Violência de Gênero Relato de uma Experiência Extensionista em Educação Feminista 793 Paula Land Curi e Luciana da Silva Oliveira A Ocultação do Protagonismo Feminino Como Fato Social e Produto da Desigualdade Econômica 807 Beatriz Mattar XIV Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Mobilização Feminina para a conquista de direitos da população com alergia alimentar 815 Maria Cecilia Cury Chaddad e Fernanda Mainier Hack Insurgências Negras e a Negação do Direito à vida trajetórias políticas de mulheres frente ao genocídio da juventude negra do luto à luta 830 Dayana Christina Ramos de Souza Juliano Combate à Violência de Gênero nos espaços públicos na América Latina muito além das leis Uma análise crítica das respostas do Estado ao assédio sexual em espaços públicos 842 Alice Junqueira Terra Caffaro e Ana Carolina Almeida Santos Nunes As Ocupações Estudantis como afirmação radical da democracia o movimento dos estudantes paulistas no ano de 2015 859 Carlos Eduardo Cunha Martins Silva Interrupção Voluntária da Gravidez a teoria feminista e as críticas de Ronald Dworkin 884 Layana Izabel Aguiar Silva Relendo a Cidade sob a perspectiva de gênero as gestões feministas na Prefeitura de Santo André entre 1989 e 2016 892 Silmara Conchão e Sonia Alves Calió A feminicidade uma análise sobre a ausência das mulheres no discurso urbanístico e a despatriarcalização das cidades 912 Letícia Graça Generoso Pereira e Gabriela Mendes Cardim Feminismos do século XXI uma construção de conceitos sob a ótica dos discursos nas redes sociais 924 Suhed Acioli Mansur Lopes Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça XV Não vem pra rua negação do direito à cidade aos LGBTs e o enfrentamento à violência e à invisibilidade nos espaços urbanos brasileiros 931 Gabriela Mendes Cardim e Letícia Graça Generoso Pereira Segregação e Hostilidade a cartografia da Cidade Excludente 945 Helenice Pereira Sardenberg e Renan de Souza Cid O Acesso à Justiça da Pessoa de Baixa Renda 961 Rodrigo Galvão do Amaral Duque de Caxias projeto de superação do marco de poder clientelista masculino e branco pela ação social feminista 976 Yasmin de Melo Silva e Daises Santos A Lei Maria da Penha no Tribunal de Justiça de Rondônia entraves e soluções para a efetividade legal nos casos de violência de gênero 993 Daniela Christina Klemz Eller Sityá As mulheres trabalhadoras o anarcossindicalismo as respostas da teoria jurídicotrabalhista crítica a necessidade de revisitar as narrativas e uma análise articulada a partir das teorias dos movimentos sociais 1006 Tieta Tenório de Andrade Bitu e Ariston Flavio Freitas da Costa Planejamento Urbano com Responsabilidade de Gênero a casa de referência da mulher e movimento de mulheres na cidade de Belo Horizonte 1024 Maria Walkíria de Faro Coelho Guedes Cabral e Ana Carolina Machado Amoni Girundi Desafios para a convivência entre direitos fundamentais ambiental com o cultural dos povos tradicionais em unidades de conservação 1043 Renata Vieira Meda XVI Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Parte VII RACISMO E SISTEMA DE JUSTIÇA Página 1057 Seletividade de gênero na letalidade policial por que as mulheres não são vítimas nos autos de resistência 1059 Diogo José da Silva Flora O Estado Burguês como Construção Estruturante do Encarceramento e Genocídio do Povo Preto no Brasil 1078 Caio Luis Prata e Taylisi de Souza Corrêa Leite O Acolhimento Institucional é a Solução Políticas Públicas Direcionadas às Crianças e aos Adolescentes em Duque De Caxias 1096 Vanessa Cristina dos Santos Saraiva BLACK PORN um breve ensaio sobre pornografia e mulheres negras 1113 Raissa Duarte e Lara Campos Parte VIII DEMOCRATIZAÇÃO DO SISTEMA DE JUSTIÇA GÊNERO E FEMINISMOS Página 1127 Perfil das Mulheres Processadas por Aborto no Rio De Janeiro 1129 Carolina Dzimidas Haber e Maria Gabrielle Albuquerque Presler Cravo Acesso à Justiça e a Transformação do Status de Submissão das Mulheres 1146 Carolina Soares Castelliano Lucena de Castro e Gisela Baer de Albuquerque Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça XVII Medicalização Do Corpo Feminino debates acerca do uso habitual de contraceptivos orais e seus impactos na saúde da mulher 1160 Janaína de Araújo Morais e Priscilla Cotti Paredes Dias Dos Limites e Possibilidades da Lei Maria da Penha no Enfrentamento às Violências Contra as Mulheres Negras Análises Criminológicas e Interseccionais da Música 100 Feminista de Mc Carol 1179 Elizabeth Tavares Viana e Luanna Tomaz de Souza Narrativas sobre a Violência Doméstica Uma Análise das Histórias de Vida das Vítimas de Violência Conjugal 1198 Flávia Hardt Schreiner Uma Análise Sobre o Crime de Ato Obsceno a partir de uma Perspectiva de Gênero 1218 Larissa Leilane Fontes de Lima Violência em regimes de exceção e insegurança em tempos de paz o papel do gênero e da justiça de transição na democratização do sistema de justiça 1235 Ana Carolina Costa Lacerda e Elídio Alexandre Borges Marques A Violência Sexual Contra as Meninas e Mulheres com Deficiência 1255 Deborah Prates Criminalização do Aborto Efeito do Patriarcalismo 1273 Paula Land Curi e Luciana da Silva Oliveira Cavalo de Troia uma análise da PEC 1812015 enquanto elemento do dispositivo de cerceamento da liberdade feminina 1286 Sabrina Cristina dos Santos e Tamara Octaviano Fernandes 7 9 X S 7 2 9 1 9 titi 3 2 si 9 o E X 23 1 ii 9 lli 9 fe 7 9 X 7 U 9 1 2 X C 2 Z 1 ft 9e lii e a si T 1 oi 79 X 7 2 9 1 9 ti 3 2 si 9 o E X 1m 1 tl 9 11 9 fe 7 9 X 7 U 9 1 2 XC 22 1 ft 9 11 e a a s 1 a i 1 oi 1 Apresentação Cecilia Caballero Lois1 Qual deve ser a função precípua de um Programa de PósGraduação em Direito Quais as marcas que devem distinguir um Programa de PósGraduação em Direito sediado em uma Universidade Pública que por sua vez se encontra em uma cidade marcada pela desigual dade política e a violência institucional Qual o papel que esse mesmo Programa deve desempenhar no combate as injustiças que atravessam tanto o sistema político quanto o sistema de justiça Todas essas e muitas outras são perguntas que o Programa de PósGraduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro PPGDUFRJ se faz diariamente Para respondêlas porém conhece apenas um cami nho Isso porque ao buscar se constituir como um programa plural e democrático o PPGDUFRJ acredita que somente rompendo com os muros da Universidade irá encontrar a sua identidade É por isso que muito nos honra apresentar o poderoso resultado do Seminário Gênero Feminismos e Sistema de Justiça organizado pela professora Luciana Boiteux e suas orientandasos e que dá ori gem a esta publicação Neste livro estão reunidos os trabalhos que resultam de um encontro que por ser fortemente comprometido com o feminismo transformador foi marcado por algumas das distinções que deveriam ser a tônica das atividades acadêmicas a solidariedade a horizontalidade e o pluralismo E aqueles e aquelas que lá estiveram ou que irão ter o prazer de ler este trabalho irão perceber isso em cada palavra Os trabalhos nas várias vertentes que representam refletem as inúmeras discussões que lá se fizeram presentes sempre conside 1 Dra em Filosofia do Direito Professora Associada IV do Departamento de Teoria do Direito da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro Coordenadora do Programa de PósGraduação em Direito da Universi dade Federal do Rio de Janeiro 2 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça rando a necessidade de democratizar o sistema de justiça que inclua uma perspectiva de gênero Não é possível falar do Seminário sem contudo mencionar a sua marca mais potente a força e a presença de Marielle Franco Ela es tava sendo esperada no Seminário Gênero Feminismos e Sistema de Justiça no dia 16 de março de 2018 mas na noite de 14 de março foi brutalmente interrompida Toda a dor daquela perda irreparável foi transformada em sororidade Todo choro foi aos poucos sendo trans formado em coragem No final o que sei viu naquele Seminário foi muita vontade de seguir lutando Essa capacidade de resistir só pode ser atribuída a mulheres e homens de muito comprometimento aca dêmico e político que fizeram de sua dor uma homenagem à Marielle e Anderson E eu encerro esta apresentação homenageando Luciana Boiteux Patrícia Carlos Magno Raquel Alves Natália SantAnna Rachel Gou veia Heloisa Melino Marina Ganzarolli Juliana Chichierchio May sa Carvalhal Maira Fernandes Aline Pancieri Igor Soares Fernanda Vieira Laíze Gabriela Benevides Ana Míria Carinhanha Larissa Fon tes Élida Lauris e Paola Bettamio pela força de levar o Seminário até o fim e dizendo com muitas vozes Marielle e Anderson presentes Hoje e sempre 3 Introdução Vanessa Batista Berner2 O Seminário Gênero Feminismos e Sistema de Justiça realizado entre 15 e 16 de março de 2018 foi o resultado de uma parceria entre o La boratório de Direitos Humanos da UFRJ e o Fórum Justiça Em dois dias foram abordados temas de enorme importância para a constru ção das teorias feministas e para a luta feminista O debate girou em torno dos seguintes Grupos de Trabalho Feminismos Antipunitivismo e Encarceramento feminino Saber Psiquiátrico Gênero e Privação de Liberdade Pessoas LGBTQIA e Sistemas de Justiça Sistema de Justiça pensado por Mulheres Prisões Invisíveis Situação de maternidade e sistema de justiça CIDADE Redes Articulações Movimentos Sociais Formulações de Políticas Públicas e Controle Social Racismo e Sistema de Justiça e Democratização do Sistema de Justiça Gênero e Feminis mos Realizado nos dois dias subsequentes ao trágico assassinato de Marielle Franco vereadora do município do Rio de Janeiro mulher negra feminista ativista dos direitos humanos originária do Comple xo da Maré uma aliada política na luta antirracista e antipunitivista que faria uma fala na abertura do evento o Seminário girou sobre assuntos que constituíam sua pauta na tribuna parlamentar Em meio à dor da perda da companheira o Seminário teve um significado mar cante para todas as pessoas envolvidas afinal o simbolismo da morte de Marielle Franco é uma triste demonstração da importância dos as suntos discutidos naqueles dois dias do quão eles são essenciais para pensarmos a situação das mulheres no Brasil hoje A maior parte da produção bibliográfica feminista no país atualmente gira em torno da Criminologia Não é um acaso Em um país extremamente misógi no e com uma brutal desigualdade social a pauta feminista é voltada 2 Professora Titular de Direito Constitucional da UFRJ e Coordenadora do Labo ratório de Direitos Humanos da UFRJ LADIH 4 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça prioritariamente para a violência contra a mulher E da eficiência do sistema depende de certa forma a efetivação de nossos direitos ou pelo menos a redução dos danos causados pelo sexismo e pelo ra cismo em nossa sociedade Precisamos portanto compreender nossa realidade sob as lentes da diversidade das teorias feministas para pro por soluções que sejam de fato eficazes E aqui estou falando de uma realidade que influi tanto sobre mu lheres quanto sobre homens pois as relações de gênero étnicas ra ciais ou de classe são uma consequência um ponto de partida das relações de poder E é aqui que entra a questão do sistema judicial aquele poder do Estado cuja função constitucional é a de decidir sobre as possibilidades de igualação e quebra de isonomias Se dermos uma simples olhadela nos ordenamentos jurídicos modernos percebemos rapidamente que a realidade se configura discriminando aberta ou veladamente as mulheres Tratase de uma construção de uma pe dagogia de identidade nas palavras da autora feminista mexicana Marcela Lagarde que considera natural que as mulheres ocupem os lugares próprios de mulheres os negros de negros os velhos de velhos etc Um dogma que não reside em uma essência sexual étni ca ou racial mas na imposição de um sistema de percepção política axiológica e sociológica que nos leva a crer que cada qual deve estar em conformidade com a determinação que lhe foi imposta Cabe à teoria feminista se empenhar em ressaltar esses procedimentos O Poder Judiciário foi concebido e funciona nesta perspectiva do patriarcalismo Ele tem um papel no marco do Estado Liberal Ca pitalista O modelo judicial do Estado moderno se assenta nas ca racterísticas do estado do período liberal que revelava seu reduzido peso político em contraste com os outros poderes soberanos o Poder Legislativo e o Poder Executivo O Poder Judiciário brasileiro não atuava de forma muito distinta de seus correlatos na Europa nos Es tados Unidos ou em outros países latinoamericanos até o advento da Constituição Federal de 1988 Porém sempre teve características próprias resultantes de uma evolução particular do sistema de pode res no país conformada em ambiente sociopolítico típico e em uma cultura jurídica específica O Estado brasileiro é essencialmente patrimonialista seguindo o esquema explicativo weberiano e falar dessa característica significa Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 5 elucidar o sentido do poder estatal ou seja implica em demonstrar como se organiza e se legitima o poder em uma determinada comu nidade sociopolítica Temse então uma formalidade legal e burocrá tica que encobre as práticas de um estado conduzido pela lógica do patrimonialismo Em outras palavras o sistema judicial não é neces sariamente eficaz quando se trata de efetivar direitos de minorias em função de sua própria concepção estrutural Ao mesmo tempo no caso brasileiro o bacharelismo elitista e conservador é um elemento de grande peso quando se procura compreender o processo de conformação dos magistrados e a ma neira como estes se veem e se colocam dentro da sociedade A for mação dos bacharéis no Brasil sempre transitou ao longo da his tória como uma concepção profundamente conservadora posto que adequada às posições sociais hegemônicas em lugar de favorecer a formação de uma consciência crítica que estimulasse processos de transformação das relações sociais injustas Conformase assim uma espécie de visão corporativa que rechaça as propostas políticas e so ciais emancipatórias É necessário que nos perguntemos quanto desta concepção sobre o papel do direito e dos atores do direito segue hoje vigente reproduzindo estruturas de poder antidemocráticas misóginas e racistas Em todo caso é preciso identificar esta matriz política conservadora e sua influência no perfil institucional do poder judiciário brasileiro A esta caracterização é necessária agregar a concepção elitista da magistratura derivada da participação política ativa que os magistrados sustentaram historicamente sendo possível afirmar que os membros do Judiciário constituem um estrato representativo no processo de construção do estado nacional No Brasil os titulares do poder político sempre estiveram em parelhados com os detentores do poder econômico privados ou com os agentes estatais de alto escalão Devese frisar que a consolidação estrutural do poder no Brasil se deu em um ambiente social e políti co conivente com a exploração do trabalho escravo existente no país por 400 anos dos 500 anos de nossa história moderna e que a es cravidão não se restringia ao setor empresarial mas permeava toda a vida doméstica e a Igreja Católica aqui situada Este fato traz consigo consequências que se refletem até hoje no cotidiano brasileiro na so 6 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ciedade a desigualdade social não constrange ou escandaliza mas é naturalizada vejase o trabalho doméstico não remunerado realizado pelas mulheres na política o que foi naturalizado é que a soberania popular é mera retórica posto que há uma convicção notória de que o poder só é eficientemente exercido pela elite da população É efeito da escravidão no Brasil a elasticidade de sua tolerância com o abuso de poder seja ele público ou privado fundado na imunidade concedida aos senhores de escravos Não por acaso ao final da Ditadura CivilMilitar 19641988 as oligarquias se valeram do instituto da anistia para encerrar a discussão sobre os regimes de exceção em ambos os casos com o consentimento do Judiciário Temos portanto que o modelo de estado liberal no Brasil tem um estado de caráter eminentemente patrimonialista cujo poder é exercido desde sempre pelas oligarquias sendo que o Poder Judiciário oriundo ou não deste estrato social consente com a predominância dos interesses da elite sobre os interesses públicos seja por sua formação jurídica desenhada para reproduzir este sistema seja por sua conformação ao modelo muito adequado aos interesses do capital no mundo con temporâneo Tal quadro se revela quando se analisa a realidade social dentro da qual está inserida a organização política definida por um lado pela efetiva estrutura de poder no seio da sociedade e por outro lado pelo conjunto de valores éticos que balizam estra organização social Em um ambiente capitalista portanto o poder é exercido pelos de tentores dos meios econômicos função reconhecida pelo próprio gru po social dominado E isto se reflete obviamente na feminização da pobreza Os Poderes neste país geralmente são ligados aos grupos dominantes Em outras palavras o Poder Judiciário é um poder bran co masculino heterossexual e elitista Cabe portanto à luta femi nista trazer para dentro do sistema as ferramentas para romper com o patriarcalismo capitalista instalado na estrutura do poder É nisto que reside a importância deste Seminário que traz as reflexões das mulheres sobre um sistema que nos oprime nos aprisiona e nos mata todos os dias Rio de Janeiro 15 de julho de 2018 7 Nota do Apoiador Articulação Fórum Justiça3 O Fórum Justiça FJ se constitui como um espaço aberto a organiza ções e movimentos sociais setores acadêmicos estudantes bem como agentes públicos do sistema de justiça e outros atores que se mos trem interessados em discutir justiça como serviço público Destinase a estimular o debate em torno da política judicial no Brasil observado o contexto ibero latinoamericano Visa desenvolver coletivamente avaliações estratégias e propos tas que avancem na construção de um modelo de justiça integrador a partir de políticas de redistribuição de recursos e bens entrelaçadas às de reconhecimento de especificidades pautado na incorporação de dinâmicas de participação popular Importa para tanto mapear os atores políticoinstitucionais dos quais emana a política judicial pre valente no sistema de justiça e analisar a posição funcional assumida por cada um deles diante dos nortes e projetos traçados em planos for mais Nesse sentido tornase necessário da mesma forma identificar as ferramentas práticas e conceituais capazes de assinalar as brechas internas do referido sistema pelas quais se poderia transitar e alargar canais de recepção das demandas sociais Esses canais são imprescindíveis ao desenvolvimento de arranjos democráticos que impulsionem as instituições componentes do siste ma de justiça a criarem estruturas de suporte a direitos e a ampliarem processos de cooperação e integração além da escuta popular Tais canais permanentes e estabelecidos segundo modelos de participa ção ativa inovadores propiciariam a segmentos organizados da po pulação efetiva incidência na formulação do desenho e de programas de ação correlatos às instituições do referido sistema A eles caberia ainda promover a interlocução intra e interinstitucional facilitando a 3 wwwforumjusticacombr 8 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça circularidade de políticas democratizantes de justiça Pretendese as sim contribuir para a constituição de uma nova tessitura na dinâmica judicial O Fórum Justiça acredita que é possível organizar pautas em con junto com organizações e movimentos sociais que resistem e refletem sobre alternativas para enfrentar os conhecidos obstáculos que o sis tema de justiça interpõe e propiciar a concretude dos direitos sejam estes referentes à políticas de reconhecimento e ou de redistribuição Enquanto articulação o FJ dá continuidade à mobilização origi nada no seminário ocorrido no Rio de Janeiro em 2009 Análise das 100 Regras de Brasília por Instituições do Sistema de Justiça do Brasil Argentina Uruguai Paraguai e Chile o acesso à justiça de pessoas ou grupos em condição de vulnerabilidade e reafirmada por ocasião do II Encontro Análise das 100 Regras de Brasília pelas Instituições do sistema de justiça de Brasil Argentina Uruguai Paraguai e Chile acesso à justiça de pessoas em condições de vulnerabilidade ho menagem ao catedrático Santos Pastor Prieto celebrado em Bue nos Aires no ano 2010 Esses seminários desencadearam novas ativi dades com a participação de diversos grupos temáticos antecedendo assim a instalação do Fórum Justiça que teve lugar em reunião geral realizada no Rio de Janeiro em dezembro de 2011 com a afirmação do Pacto Fórum Justiça Na atualidade o Fórum projetase em distintas regiões do país agregando dezenas de sujeitos interessados em discutir política judi cial e elaborar ações estratégicas para a democratização do sistema de justiça Portanto o Fórum Justiça é um espaço coletivo aberto derivado de livre articulação que conta com conselho consultivo e o aporte de apoiadorases e colaboradorases reunidos pelo mesmo compromisso Como construção coletiva de espaço suas ações assentamse em um tripé agentes do sistema de justiça Estado setor acadêmico e organizações e movimentos sociais Frisese que a aliança com setores acadêmicos mostrase essencial por fornecer suporte conceitual e me todológico à análise crítica de situações fáticas e levar a reflexões teó ricas que propiciem formar conjunto de ações programáticas de diver sas naturezas Além disso aponta a necessidade de se investir mais na produção de diagnósticos e pesquisas atinentes ao sistema de justiça Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 9 A articulação FJ além de se evidenciar crítica importa uma to mada de posição em ação sem abrir mão da reflexão teórica Ultra passa no entanto lugares comuns do debate reforçado por alguns setores acadêmicos sobre a judicialização das relações sociais O FJ vai além focando as práticas dos atores do sistema de justiça visando transformálas por meio da participação popular para a permeabili dade de demandas por redistribuição e de reconhecimento com vistas à concretude dos direitos Essa proposta de incidência tem tocado firmemente o tema gêne ro e incorporado de forma substancial a pauta feminista Essa preocu pação esteve presente desde a origem do Fórum Justiça com a criação do GT Gênero que de 2011 a 2013 buscou discutir em que medida o sistema de justiça tem sido forte elemento de manutenção da or dem discriminatória das mulheres fazendo reproduzir estereótipos e padrões de comportamento que há muito deveriam ter sido banidos de nossa sociedade Discutiu temas importantes como a proposta de Estatuto do Nascituro e outras iniciativas conservadoras contra os di reitos das mulheres A pauta ganhou um renovado impulso em 2016 com a realiza ção do curso Ação Estratégica para uma Perspectiva Interseccional da Defensoria Pública com Foco em Gênero e Raça realizado na Pon tifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro nos dias 23 e 24 de setembro de 2016 Naquela ocasião após a Roda de Conversa sobre Empoderamento Político Institucional da Mulher Defensora Públi ca as presentes a partir da percepção comum das dificuldades en frentadas no dia a dia institucional motivadas pela desigualdade de gênero e racismo estruturais nos alijando dos espaços de decisão e poder e que muitas vezes significam a perpetuação de uma ordem de coisas desigual tanto do ponto de vista da população usuária da Defensoria pública quanto de seu corpo interno resolveram instituir a Coletiva de Mulheres Defensoras Públicas do Brasil A Coletiva tem se dedicado à construção de pautas comuns e en contros nacionais com reuniões depoimentos propositura de medi das que identifiquem e superem o tratamento desigual de mulheres e que convirjam para soluções comuns e maior empoderamento e par ticipação das mulheres Defensoras Públicas nos espaços institucionais de poder Tratase de uma experiência inovadora na criação de coleti 10 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça vos feministas dentro do sistema de justiça operando avanços consis tentes como a construção de espaços próprios no Congresso Nacional de Defensoras e Defensores Públicos a realização de pesquisa sobre igualdade de gênero na Defensoria Pública do Rio de Janeiro e mais recentemente a simbólica alteração do registro da Associação Nacio nal dos Defensores Públicos para Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos O protagonismo das mulheres na concepção das ações do Fórum Justiça é dessa forma ínsito ao seu propósito contrahegemônico não só por ser uma articulação capitaneada e composta na sua imensa maioria por mulheres como também por destacar e promover polí ticas para mulheres O Seminário Gênero Feminismos e Sistema de Justiça dá o panorama acabado dessa formulação Ele operacionaliza o tripé academia movimentos sociais e sistema de justiça e promove a práxis da realização de diagnósticos com a construção de políticas para a inclusão do gênero em diferentes eixos relacionados ao sistema de justiça expressos nos seus grupos de trabalho O assassinato da vereadora Marielle Franco durante os dias do Seminário é contudo um marco trágico que recai de modo arrebata dor sobre todas e todos que se organizam para o progresso das pautas sociais de feministas Essa terrível violência deixa marcas profundas que devem levar à priorização das demandas de raça e gênero a pro teção de defensores de direitos humanos e a denúncia da violência de Estado A interrelação desses elementos é parte fundamental do legado de Marielle e a sua perda acende não só a luz de alerta mas alimenta também a luz de energia e vitalidade para todas as lutadoras Julho de 2018 11 Editorial à Marielle Franco in memoriam Luciana Boiteux4 Patricia Carlos Magno5 Laize Benevides6 Nos dias 15 e 16 de março de 2018 foi realizado o Seminário Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça organizado pelo Laboratório de Di reitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ ligado ao Programa de PósGraduação em Direito da mesma institui ção com apoio imprescindível do Fórum Justiça Das discussões ali realizadas resulta a publicação dos presentes Anais Científicos que ganharam a forma de livro ebook com o fito de fazer circular de modo consolidado a profunda troca de saberes que pesquisadoras e pesquisadores produziram sobre o encontro do gênero com o sistema de justiça analisado à luz dos feminismos e seu impacto no sistema de justiça A presente obra reúne os artigos completos relativos ao aludido encontro acadêmico que recebeu 568 inscrições e 256 resumos ex pandidos dos quais foram selecionados 173 e apresentados 130 pre sencialmente Garantir a etapa de apresentação dos grupos de trabalho 4 Professora Associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Programa de Pós Graduação em Direito da UFRJ Mestre em Direito pela UERJ Doutora em Direito Penal e Criminologia pela USP Email luboiteuxadufrj gmailcom 5 Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro na linha Sociedade Direitos Humanos e Arte da área de concentração Teorias Jurídicas Contemporâneas Mestre em Direito pela UERJ Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro titular da 20ª DP do NUSPEN Núcleo do Sistema Penitenciário Email contatopatriciamagnocombr 6 Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro na linha Sociedade Direitos Humanos e Arte da área de concentração Teorias Jurídicas Contemporâneas Mestre em Direito pela UFF Advogada da Comissão de Direi tos Humanos da ALERJ Email izebenevidesgmailcom 12 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça se deu no marco da resistência em meio à imensa dor sentida pela execução da nossa amiga e parceira de trabalho Marielle Franco na noite de 14 de março cuja participação estava inclusive confirmada para o segundo dia do seminário Essa dor que abateu todo o Bra sil foi sentida profunda e pessoalmente por cada membro da equipe do Seminário Mas se transformou em resistência e em homenagem que nos inspirou a seguir adiante conforme poderá ser constatado em cada linha dos trabalhos aqui reunidos porque é uma resistência que reverbera para propor uma nova forma de produzir saber Um saber comprometido com a praxis emancipadora e não aquele que se propõe a naturalizar a exclusão social Sob essa inspiração a presente obra está dividida em oito partes que sintetizam as discussões realizadas nas mesas e grupos de trabalho que compuseram o seminário de maneira que o leitor possa ter acesso à diversidade de temas abordados Consideramos que apesar da Criminologia Crítica produzida no Brasil a partir da década de 1990 ter se aproximado posteriormente de estudos de gênero o debate ainda tem reproduzido algumas con tradições como as demandas punitivistas nos crimes de violência contra mulheres bem como muitas vezes passar ao largo da mulher como autora de delito visto que aparece majoritariamente como víti ma Neste sentido a primeira parte intitulada Feminismos antipuni tivismo e encarceramento feminino se dedica a avançar nas reflexões e perspectivas feministas sobre o sistema criminal com especial ênfa se para as intersecções entre raça classe e gênero A segunda parte denominada de Saber Psiquiátrico Gênero e Privação de Liberdade dedicase a repensar a crítica mais adequada ao sistema de justiça estruturalmente elitista e racista perpassando as discussões alimentadas nos feminismos bem como os reflexos que a Lei n 1021601 produziu e produz na práxis do direito na perspectiva interdisciplinar com a saúde mental e atenção psicossocial O objetivo aqui é o de desvelar a participação das mulheres como alvo da lógica manicomial ou em sua captura como sujeito violador da norma da moral e dos bons costumes Assim contém textos que trazem subsí dios para a reflexão sobre a intersecção entre as relações de gênero a psiquiatria e a privação de liberdade em suas múltiplas expressões e temporalidades Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 13 Na terceira parte que denominamos Pessoas LGBTQIA e Sis temas de Justiça ao leitora encontrará artigos críticos que articulam teoria e prática para discutir como ampliar e renovar a mobilização social feminista e LGBTQIA para o combate às violências contra pessoas e a defesa dos direitos humanos face às agendas conservado ras de negação restrição e limitação esses direitos Há também artigos que pensam o acesso aos sistemas de justiça interno ou internacional no sentido da garantia desses direitos amplos bem como propostas epistemológicas e metodológicas para que tomadoras e tomadores de decisão possam buscar bases sólidas para decisões mais justas que combatam as desigualdades que as pessoas LGBTQIA vivem em so ciedade A quarta parte intitulada Sistema de Justiça pensado por Mulhe res busca dar conta do desafio que é articular reflexões sobre as estra tégias que fortalecem a ordem punitiva e enfraquecem o viés demo crático evidenciando os questionamentos acerca do sistema de justiça elaborado por mulheres partindo da perspectiva teórica da crimino logia crítica feminista do ponto de vista garantista do direito penal mínimo e do horizonte abolicionista Nela encontramos artigos que dialogam com questões relativas ao Sistema de Justiça envolvendo o Sistema Penal e que atravessem as questões de gênero A quinta parte que trata de Prisões Invisíveis Situação de ma ternidade e sistema de justiça é composta por trabalhos com enfo ques teóricos críticos que trazem elementos para uma discussão sobre encarceramento de mulheres em situação de maternidade e seus mais amplos aspectos Os artigos revelam discussões sobre o perfil dessas mulheres os tipos penais a elas imputados as sentenças criminais pro feridas o impacto do encarceramento em suas vida dos seus filhos da sua família e o papel do sistema de justiça no elevado índice de prisões contra esse grupo em situação de vulnerabilidade A sexta parte se articula a partir do título Cidade Redes Ar ticulações Movimentos Sociais Formulações de Políticas Públicas e Controle Social e reúne discussões em torno do Direito à Cida de pensadas a partir das diversas estratégias coletivas de ocupação do espaço público Reúne pesquisas no marco da intersecção gênero classe e raça dedicadas às seguintes temáticas redes e articulações na formulação de políticas públicas movimentos sociais participa 14 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ção popular e organização das lutas por mobilidade urbana moradia e dignidade Criminalização da pobreza e controle social assessoria jurídica popular diversidade pluralidade e a interseccionalidade no combate às Oopressões de raça gênero e classes sociais educação em direitos humanos e a integração entre universidade e sociedade O objetivo da sétima parte que denominamos Racismo e Siste ma de Justiça é refletir e interrogar os modos como o racismo opera tanto no âmbito legislativo quanto de não efetivação das leis pelos agentes do sistema de justiça Os trabalhos observam não só possíveis causas e efeitos como também visam levantar possíveis indicadores que nos permitam observar esta relação a fim de compreender as suas influências na oferta dos serviços judiciais e as suas dimensões per formativas na vida dos atores fornecedores e usuários que interagem neste sistema A oitava parte sobre Democratização do Sistema de Justiça Gê nero e Feminismos consolida profundas reflexões sobre a democra tização do Sistema de Justiça questionando a estrutura da sociedade a partir da qual e na qual este sistema atua Colocamse no centro do debate portanto as formas de violência estrutural e as relações de opressão e exclusão que ao perpassarem a sociedade seus fenômenos e instituições colocam em pauta o papel ocupado pelas excluídas e ex cluídos em especial pelas mulheres os impactos no sistema de justiça e problematiza as respostas que lhes são conferidas Por fim queremos agradecer à equipe que construiu esse semi nário a muitas mãos composta a partir do compromisso de mulheres que compuseram o corpo da coordenação dos Grupos de Trabalho do Seminário contando não apenas com a seleção dos trabalhos a serem apresentados mas também com a revisão cuidadosa de cada artigo recebido São elas Raquel Alves Natália SantAnna Rachel Gouveia Heloisa Melino Juliana Chichierchio Maysa Carvalhal Maira Fer nandes Aline Pancieri Igor Soares Ana Míria Carinhanha Larissa Fontes e Élida Lauris Muito especialmente agradecemos à artista plástica Didi Hele ne autora da bela ilustração que estampa a capa do livro e que nos inspirou desde o evento acadêmico de março de 2017 À artista cro comila em cujos traços se confudem militância e arte nosso muito obrigada Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 15 Esperamos que esta obra suscite ainda mais debates acerca dos temas tratados e que possamos cada vez mais evidenciar recortes de gênero e feministas nas discussões acerca do Sistema de Justiça Juntas somos mais fortes Boa leitura Rio de Janeiro julho de 2018 5 Parte I FEMINISMOS ANTIPUNITIVISMO E ENCARCERAMENTO FEMININO Seção 1 Encarceramento Feminino section 19 GÊNERO E TRÁFICO DE DROGAS UM ESTUDO SÓCIOJURÍDICO DA APLICAÇÃO DA PENA ÀS MULHERES ENCARCERADAS NO NORTE FLUMINENSE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Raquel Alves Rosa da Silva7 Resumo Nos últimos dezesseis anos o Brasil tem apresentado um aumento significativo na população de mulheres encarceradas prin cipalmente por tráfico de drogas A reflexão que ora se propõe e os dados que serão apresentados são fruto de pesquisa de mestrado rea lizada que a partir da compreensão de que o Poder Judiciário é parte essencial dessa dinâmica busca compreender como se dá o processo de criminalização de mulheres condenadas por tráfico de drogas no interior do estado do Rio de Janeiro A metodologia utilizada envolveu revisão bibliográfica e análise das sentenças das mulheres que esta vam encarceradas no dia 3 de junho de 2016 no Presídio Nilza da Sil va Santos Na pesquisa coletamos as sentenças e realizamos análises quantitativas e qualitativas com foco nas mulheres condenadas por delitos de tráfico a partir da perspectiva das Criminologias Críticas Feministas Como resultado essa pesquisa indica que a aplicação ju dicial da sanção penal reforça a lógica punitiva com a imposição de penas altas mesmo diante de um tráfico de drogas não violento além do uso de juízos de valor abstratos e discriminatórios que afastam di reitos e medidas alternativas à prismica endemizams casos 45 2016 alternativas indica que a aplicaçãos de trp2016 no Presevisum todo ou na cidade do Rio de Janão Palavraschaves encarceramento de mulheres tráfico de drogas in terior do estado rio de janeiro seletividade criminologias críticas fe ministas 7 Mestre em Direito PPGDUFRJ PósGraduada em Direito pela Emerj Gradua da em Direito pela UFRJ Pesquisadora do Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ LadihUFRJ Email quelfndgmailcom 20 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça INTRODUÇÃO A reflexão que ora propomos parte do fato de que o encarceramento de mulheres aumentou de forma significativa no Brasil nos últimos anos 656 apenas entre os anos de 2000 a 2016 notadamente em razão do delito de tráfico de drogas e se funda na criminalização de um perfil bem específico de mulheres negras pobres jovens de bai xa escolaridade solteiras que têm no mínimo um filho mesmo sem qualquer decisão condenatória em quase metade dos casos 45 IN FOPEN MULHERES 2018 Essa realidade entretanto não se dá ao acaso Isso porque o sis tema penal brasileiro é produto de uma sociedade machista racista e desigual que mantém e reproduz os privilégios de uma minoria de homens brancos burgueses que ocupam os espaços de poder sendo esse sistema um meio de selecionar criminalmente um perfil social específico de pessoas em um processo contínuo de elaboração das leis de aplicação das penas e de suas execuções desenhado para o so frimento desses que são tidos como socialmente indesejados Dessa forma o punitivismo aumenta a quantidade e a qualidade do controle sobre esses indivíduos e mantém a estrutura vertical da sociedade Nessa dinâmica a mulher é encarcerada por uma lógica punitiva que como salienta Angela Davis decorre de uma vigilância racial patriarcal e de classe DAVIS 2009 p 47 sendo meio de domi nação de um grupo sobre o outro Isso porque o aumento significativo de mulheres encarceradas pelo delito de tráfico de drogas é resultado dessa estrutura maior de opressões notadamente de desigualdade de gênero e de controle social que aliada a mudanças econômicas afeta sobremaneira a mulher A opressão de gênero se materializa dentre outros aspectos na di ficuldade de inserção no mercado de trabalho nos salários menores nas posições desvalorizadas e na chefia familiar cada vez maior das mulhe res sobre as quais ainda majoritariamente recai a responsabilidade do trabalho doméstico não remunerado IPEA 2015 p3 Esses são alguns dos problemas estruturais que em muito relegam à mulher os trabalhos informais nos quais também se situa o comércio ilícito de drogas No contexto do tráfico entretanto a desigualdade de gênero não é menos arrefecida Com atuações predominantemente subalternas e Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 21 sem poder de pagar eventuais propinas BOITEUX 2015 p4 MU SUMECI ILGENFRITZ 2002 p87 a seleção dessas mulheres pelos agentes estatais têm se dado cada vez mais criminalizando os mais vulneráveis qual sejam as mulheres com o perfil que delineamos aci ma Esses são alguns dos fatores sócioeconômicos fundamentais para entender o crescimento significativo de mulheres presas por trá fico de drogas nos últimos anos O processo de criminalização da mu lher se perfaz nessa dinâmica de desigualdades de gênero razão pela qual partimos da premissa de que uma visão criminológica crítica só pode realmente existir à luz da compreensão crítica sobre a estrutura patriarcal da sociedade brasileira Por essa razão militamos na im portância do estudo sobre mulheres a partir da perspectiva da mulher que se percebe integrante e se insurge contra essa sociedade patriarcal Nesse sentido a reflexão que ora propomos e os dados que serão apresentados são fruto de pesquisa de mestrado realizada que partindo da compreensão de que o Judiciário é parte essencial da dinâmica de criminalização busca compreender como se dá a sua atuação na con denação de mulheres por tráfico de drogas no interior do estado do Rio de Janeiro Em sendo a aplicação da pena um dos momentos de mate rialização das opressões que recaem sobre a mulher criminalmente se lecionada e considerando que as investigações sobre o encarceramento de mulheres se centram em geral no estado como um todo ou apenas na cidade do Rio de Janeiro nosso recorte é o Presídio Nilza da Silva Santos PNSS localizado no Norte Fluminense do estado onde à época dos dados coletados só eram encarceradas mulheres que praticaram o su posto fato típico no interior do estado do Rio de Janeiro Para tanto a metodologia utilizada envolveu pesquisa empírica com a busca a partir de uma lista que continha apenas o nome das 356 mulheres que estavam encarceradas no dia 3 de junho de 2016 no Presídio Nilza da Silva Santos Na pesquisa coletamos as sentenças e realizamos análises quantitativas e qualitativas com foco nas conde nadas por delitos da Lei de Drogas Utilizando o mecanismo de busca do endereço eletrônico do Tribunal de Justiça do estado do Rio de Janeiro TJRJ localizamos 318 das internas perfazendo estas nosso espaço amostral 22 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1 Por quais delitos respondem as mulheres encarce radas no Presídio Nilza da Silva Santos Inicialmente para identificar por quais delitos estavam encarceradas as mulheres presas no Presídio Nilza da Silva Santos PNSS identi ficamos todos os tipos penais pelos quais respondiam Nessa análise constatamos que as 318 mulheres presas respondiam por 440 tipos penais8 que não variavam muito9 tendo a maioria expressiva das condutas sido tipificadas na Lei de Drogas 271 incidências Gráfico 1 Incidência Típica10 8 Para tanto quando uma mesma mulher respondia por dois processos por exem plo foi contabilizado o número de capitulações nos tipos penais da Lei de Drogas e o número de incidências nos outros tipos penais em todos os processos para retratar de forma fiel o quanto determinado tipo penal tem sido invocado para legitimar o encarceramento feminino em massa que temos vivenciado nos últi mos anos Foram levados em consideração não apenas os processos diretamente responsáveis pela prisão da mulher no PNSS naquele momento mas todos que constavam do nome das mulheres que lá estavam encarceradas e que ainda não estavam arquivados Com base na denúncia e na sentença 9 Para efeitos de problematização foram excluídos os delitos que tiveram cinco incidências ou menos por representarem quantidade inexpressiva 10 Explicase a utilização de incidênciacapitulação se em um mesmo processo da Lei de Drogas por exemplo havia condenação ou denúncia no caso de presa pro visória pelo delito de tráfico de drogas artigo 33 da Lei 1134306 e pelo delito de associação criminosa artigo 35 da referida Lei contabilizamos duas incidências capitulações para verificarmos exatamente quais tipos penais estão sendo invocados para legitimar a criminalização das mulheres no interior do ERJ Da mesma forma se deu em relação a incidências em processos diferentes se em um processo a mulher respondia por tráfico e em outro processo diferente respondia por associação crimi nosa novamente houve a contabilização de duas incidênciascapitulações Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 23 Nesse cenário destacase o fato de que 82 são delitos não vio lentos Isso porque não representam qualquer perigo à integridade física de outrem já que foram constatadas apenas 34 condutas tipifi cadas como roubo 22 como homicídio e apenas 26 como tráfico de drogas com violência ou grave ameaça11 Dessa forma percebemos que apenas 18 das condutas criminalizadas foram perpetradas com violência ou grave ameaça uma vez que os delitos de furto corrup ção de menores estelionato e receptação prescindem de qualquer violência12 Essa análise vai ao encontro de pesquisas anteriores que já indicavam que os delitos pelos quais as mulheres são encarceradas são majoritariamente não violentos MUSUMECI ILGENFRITZ 2002 p 118 A análise até aqui apresentada se atém às condutas Entretanto para identificarmos exatamente quantas mulheres encarceradas no PNSS respondiam por delitos da Lei de Drogas independentemen te de responderem também ou não por outros delitos ou de apre sentarem mais de uma incursão na referida lei perpetramos uma nova análise na qual identificamos que das 318 mulheres presas no PNSS 243 respondiam por pelo menos um tipo penal da Lei de Dro gas13 Dessa forma 76 das mulheres presas no Presídio Nilza da Silva Santos estavam encarceradas por delitos da Lei de Drogas 11 Também não foi identificada nenhuma incidência na agravante genérica da alí nea e do inciso II do artigo 61 do Código Penal que agrava a pena em caso de emprego de veneno fogo explosivo tortura ou outro meio insidioso ou cruel ou de que podia resultar perigo comum 12 Notese que as 15 incidências no delito de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito artigo 16 da Lei 1082603 não identificam conduta típica vio lenta uma vez que se tivesse havido o emprego uso da arma de fogo o referido tipo penal teria sido afastado 13 A análise foi feita com base no nome de cada mulher de forma que se esta res pondia a mais de um processo sendo um deles por delitos da Lei de Drogas e um segundo por outro tipo penal o delito da Lei de Drogas foi contabilizado uma vez que o objetivo era identificar o quanto a referida lei capitaneava a criminali zação das mulheres no interior do estado 24 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Gráfico 2 Mulheres que respondem por delito da Lei de Drogas Essa é uma realidade que constatamos no interior do estado do Rio de Janeiro e que se sobrepõe ao cenário nacional no qual 62 das mulheres estão presas por delitos relacionados às drogas INFOPEN MULHERES 2018 e inclusive no que tange ao próprio estado do Rio de Janeiro como um todo onde esse número corresponde a 58 BOI TEUX 201814 Diante desse elevado número de mulheres encarcera das no PNSS por delito da Lei de Drogas analisamos especificamente tipos penais da referida lei têm legitimado tamanha criminalização no interior do estado Nesse estudo constatamos que a quase a totalidade de incidências se deu no delito de tráfico de drogas artigo 33 da Lei de Drogas Gráfico 3 Incidência Típica na Lei de Drogas 14 Pesquisa que vai ser publicada neste ano de 2018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 25 Entretanto destacouse o fato de que embora muitas respon dessem apenas por tráfico de drogas artigo 33 da Lei 1134306 a maioria foi incursa no delito de tráfico e também no de associação criminosa artigo 35 da referida lei no mesmo processo Esse é um dado importante porque a pena mínima do tráfico é de 5 cinco anos e da associação é de 3 três anos e uma vez somadas dificulta sobre maneira o desencarceramento dessas mulheres a título por exemplo de medidas alternativas que exigem uma condenação máxima de 4 quatro anos Além disso se a penabase é fixada além do mínimo ou mesmo se ocorre o agravamento da pena o aumento acaba por recair sobre a pena do tráfico e da associação dificultando ainda mais qual quer alternativa à pena privativa de liberdade 2 Como se dá a condenação da mulher encarcerada no PNSS por delitos da Lei de Drogas Feito esse panorama geral dos delitos pelos quais respondem as mu lheres que estão presas no Presídio Nilza da Silva Santos passamos à análise das sentenças condenatórias por delitos da Lei de Drogas que perfazem a realidade de 192 mulheres encarceradas no PNSS15 21 PenaBase além do mínimo com base em juízos de valor dis criminatórios Na análise das sentenças atemonos primeiramente à primeira fase da dosimetria momento em que percebemos reiteradas fixações da penabase para além do mínimo a título da natureza e da quan tidade da droga artigo 42 da Lei de Drogas Em verdade mostra ramse desarrazoadas muitas das digressões feitas pelasos magis tradasos que se deram diversas vezes com base em juízos de valor próprios e arbitrários sobre as drogas Não foram poucas as vezes em que discorreram sobre os danos que entendem serem produzidos pelo uso da cocaína por exemplo citando genericamente a existência de estudos nesse sentido embora não os indicassem e mostrando mais uma reprodução do discurso de 15 51 mulheres estavam presas no PNSS por delitos da Lei de Drogas sem qualquer decisão condenatória 26 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça senso comum e de um juízo próprio de valor do que um parâmetro sério e objetivo para aumentar a penabase Na análise das aplicações da pena percebemos que é reiterado o discurso entendendo que a penabase deveria ser aumentada para além do mínimo em razão de ao magistradao perceber o tráfico como deveras nocivo à sociedade o que é intrínseco ao tipo penal do tráfico de drogas Em um caso analisado por exemplo a penabase da ré em relação ao tráfico de drogas foi fixada em 7 sete anos um aumento de dois anos apenas em razão de um suposto potencial lesivo da droga e da reprovabilidade para além do tipo penal que o magistra do imprime ao tráfico16 Além disso embora tenham sido identificadas decisões em que ao magistradao andou bem ao assumir sua incapacidade técnica para analisar psicologicamente a ré e outros elementos do artigo 42 da Lei de Drogas e do 59 do Código Penal que entendemos incons titucionais não foram poucos os casos em que a penabase foi au mentada por exemplo ao argumento de que a personalidade da ré indicaria uma inclinação ao crime discurso lastreado em meras crenças pessoais sem qualquer laudo técnico ou científico que lom brosianamente17 atestasse isso 16 Processo número 00451997620158190014 17 No final do século XIX e início do XX emerge a Criminologia Positivista que tem o italiano Cesare Lombroso como seu principal pensador uma vez que se dedicou ao estudo das características biológicas e psicológicas dos indivíduos em instituições totais como prisões e manicômios objetivando encontrar o que pensava ser as características que distinguiriam o indivíduo normal do indiví duo criminoso Lombroso entendia que o crime existe porque há quem possua genes característicos da criminalidade bastaria a eliminação desses genes para que a sociedade estivesse a salvo de atitudes desviantes Dessa forma estudavase a pessoa do criminoso classificandoo em uma perspectiva de anormalidade trazendo para a criminologia a forma classificatória e generalizante além da su posta neutralidade do positivismo passando a supor uma neutralidade científica também para as pesquisas criminológicas Dessa forma estudavase a pessoa do criminoso classificandoo em uma perspectiva de anormalidade trazendo para a criminologia a forma classificatória e generalizante além da suposta neutrali dade do positivismo passando a supor uma neutralidade científica também para as pesquisas criminológicas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 27 22 Tráfico de drogas não violento Já na análise da segunda fase da aplicação da pena identificamos as capitulações no artigo 40 da Lei de Drogas que traz circunstâncias do tráfico que o legislador entende especialmente prejudiciais e que por isso ensejam o agravamento da pena como por exemplo o tráfico entre estados ou mesmo em hospitais e escolas18 Incursionando sobre o tema identificamos que dentre dos 271 processos em razão da Lei de Drogas em apenas 101 houve a capitula ção de agravante tendo sido contabilizado um total de 125 agravantes Dessa forma percebemos que em 63 dos casos não houve qualquer nuance mais gravosa passível de suscitar a capitulação do artigo 40 da referida Lei Gráfico 4 Capitulação de agravante do artigo 40 da Lei de Drogas 18 O artigo 40 da Lei de Drogas estabelece um agravamento de pena às penas dos artigos 33 ao 37 de um sexto a dois terços caso I a natureza a procedência da substância ou do produto apreendido e as circunstâncias do fato evidenciarem a transnacionalidade do delito II o agente praticar o crime prevalecendose de função pública ou no desempenho de missão de educação poder familiar guar da ou vigilância III a infração tiver sido cometida nas dependências ou ime diações de estabelecimentos prisionais de ensino ou hospitalares de sedes de entidades estudantis sociais culturais recreativas esportivas ou beneficentes de locais de trabalho coletivo de recintos onde se realizem espetáculos ou diver sões de qualquer natureza de serviços de tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social de unidades militares ou policiais ou em transportes públicos IV o crime tiver sido praticado com violência grave ameaça em prego de arma de fogo ou qualquer processo de intimidação difusa ou coletiva V caracterizado o tráfico entre Estados da Federaça Estados da Federaçriado ou qualquer processo de intimidaçreinserç se realizem espet sociais culturais recreativasão ou entre estes e o Distrito Federal VI sua prática envolver ou visar atingir criança ou adolescente ou a quem tenha por qualquer motivo di minuída ou suprimida a capacidade de entendimento e determinação VII o agente financiar ou custear a prática do crime 28 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Nos casos em que houve a incidência de agravante do artigo 40 constatamos que as capitulações que se apresentaram majoritárias fo ram em relação ao tráfico perpetrado em lugares elencados pelo inciso III do artigo 40 da Lei de Drogas ou pelo envolvimento de criança ou de adolescente na conduta tipificada como tráfico inciso VI Gráfico 5 Agravantes do art 40 da Lei de Drogas Dessa forma identificamos que a mulher encarcerada no interior do estado do Rio de Janeiro está presa por um tráfico de drogas não violento Isso porque das 271 incidências na Lei de Drogas apenas 26 incorreram no inciso IV do artigo 40 da Lei de Drogas que estabelece um agravamento da pena no caso de o tráfico ter sido perpetrado com violência grave ameaça emprego de arma de fogo ou qualquer pro cesso de intimidação difusa ou coletiva Essa constatação mostra que em apenas 10 dez por cento dos casos houve a ocorrência de um tráfico definido como violento Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 29 Gráfico 6 Tráfico de drogas e Violência Para além do artigo 40 da Lei de Drogas há ainda outras cir cunstâncias que agravam a pena e que constam dos artigos 61 ao 64 do Código Penal Entretanto o artigo 40 da Lei de Drogas da Lei de Drogas traz as circunstâncias particulares do tráfico de drogas que foram constatadas como vimos na minoria dos casos 37 Impor tante pontuar que especificamente a análise das agravantes se deu com base na sentença e quando não havia na denúncia então abarca pre sas provisórias e condenadas pela Lei de Drogas o que indica que o tráfico pelo qual respondiam as mulheres encarceradas no PNSS não se deu na maioria expressiva dos casos com a ocorrência de nenhu ma circunstância mais gravosa Além dessas identificações um outro ponto importante na se gunda fase da dosimetria é o fato de que assim como a primeira não poder haver a atenuação da pena para patamar aquém ao mínimo le gal estabelecido19 ou seja mesmo que na maioria dos casos não tenha havido a incidência de qualquer agravante sendo a penabase fixa da no mínimo a incidência de qualquer atenuante genérica do artigo 65 do Código Penal a exemplo da confissão ao magistradao ns pelo artigo 61 do Cela Lei de Drogas referentes apena aplicada aogas ns 51 mulheres que eram pserá indiferente para o quantum aplica do de pena Nesse caso a lei promove um engessamento da atividade judicial que fica limitada novamente ao mínimo legal trazido pelos preceitos secundários da Lei de Drogas não podendo valorar o caso concreto de forma equitativa como deve ocorrer em uma verdadeira individualização da pena 19 O enunciado 231 da Súmula do Superior Tribunal de Justiça enuncia que a in cidência de circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal 30 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 23 Sobrerepresentação da mulher nas organizações criminosas Um outro dado relevante na condenação das mulheres encarce radas no PNSS é a compreensão sobre o tráfico privilegiado Este se materializa em um dever de ao magistradao diminuir um sexto a dois terços a pena de quem incursionar no tipo penal do tráfico mas tiver bons antecedentes for primáriao não se dedicar a atividade criminosa nem integrar organização criminosa ao que é dado o nome de tráfico privilegiado que a jurisprudência caracteriza como um trá fico episódico ou ocasional Investigando a aplicação do tráfico privilegiado no contexto do PNSS identificamos que a 39 trinta e nove mulheres a causa de di minuição foi aplicada em sentença perfazendo um cenário em que 80 não tiveram a aplicação do parágrafo 4o do artigo 3320 Gráfico 7 Mulheres condenadas por tráfico privilegiado Notese que para compreender corretamente os dados ora apre sentados é importante perceber que a referida análise tratou apenas das mulheres que estavam presas no dia 3 de junho de 2016 e que já tinham sido sentenciadas Repisase esse fato uma vez que a diminuta identificação do tráfico privilegiado nessas sentenças não representa o cenário real de aplicação ou não da referida causa de diminuição uma 20 Na primeira coleta das sentenças foram identificadas 192 mulheres condenadas por delitos da Lei de Drogas Nesse universo foram contabilizados 261 proces sos em razão do artigo 33 da Lei de Drogas dos quais apenas em 39 houve e aplicação do tráfico privilegiado Como nenhuma mulher presa no PNSS teve a aplicação do tráfico privilegiado em mais de um processo esses 39 processos correspondem a 39 mulheres presas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 31 vez que como tem o condão de diminuir a pena para aquém do míni mo e possibilitar diversas medidas de desencarceramento muitas das mulheres que tiveram reconhecido o tráfico privilegiado em sentença já não estavam mais encarceradas ou sequer foram presas caso não tenham sido provisoriamente Dessa forma os dados identificados traduzem apenas a aplicação da causa de diminuição às mulheres que mesmo que condenadas por tráfico privilegiado continuaram presas Diante do quadro identificado no PNSS no qual em 80 dos ca sos não houve o reconhecimento do tráfico privilegiado mostrouse pertinente investigar as razões utilizadas para afastar a referida causa de diminuição Para tanto debruçamonos sobre a fundamentação das decisões judiciais condenatórias que não aplicaram o tráfico privile giado e identificamos que quase a metade das sentenças 46 negou a aplicação ao argumento de que a ré integrava organização criminosa Além disso em 19 das decisões a ré é definida como alguém que se dedica a atividade criminosa e em outros 19 das decisões o tráfico privilegiado não foi aplicado sem qualquer justificativa Gráfico 8 Fundamentação da não aplicação do tráfico privilegiado Notamos entretanto que em diversos processos ao magistra dao afastou o tráfico privilegiado por entender que a ré integrava organização criminosa apenas pelo fato de ter sido flagrada com de terminada quantidade de droga em uma favela dominada por facção criminosa Essa compreensão acrítica dos fatos esclarece a divisão típica do espaço na qual portar drogas no asfalto significaria uso 32 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ou tráfico mas portar droga na favela evidenciaria tráfico e também associação criminosa Esse cenário revela uma sobrerepresentação da real participação das mulheres em organizações criminosas uma vez que tanto o afas tamento do tráfico privilegiado quanto a condenação por tráfico e por associação criminosa são feitos com base em ilações sem um sólido arcabouço probatório Nesse sentido é importante que a verve mora lista e punitiva em torno do delito de tráfico de drogas não suplante a barreira da necessidade de provas decidindo em desfavor da ré com base em deduções frágeis ou mesmo sem qualquer justificativa como vimos em 19 dos casos A dedução de que a mulher se dedica a ati vidade criminosa ou integra organização criminosa foi usada majori tariamente a despeito de critérios mais objetivos como por exemplo maus antecedentes e reincidência que são passíveis de uma menor ingerência por parte do aplicador da lei embora também haja deba tes jurisprudenciais sobre o que pode e o que não pode ser levado em consideração para fins de maus antecedentes Tal avaliação é deveras importante uma vez que a terceira e der radeira fase da dosimetria é a única que tem o condão de diminuir a pena aquém do mínimo legal e com isso permitir a aplicação de várias medidas alternativas ao cárcere que trabalham com marcos quantita tivos de pena a exemplo da substituição por restritivas de direito21 e a fixação de regime menos gravoso22 Dessa forma a justa aplicação do 21 Caso a pena atinja 4 quatro anos ou menos ao magistradao pode se debru çar sobre a possibilidade de substituir a pena privativa de liberdade por pena res tritiva de direitos se atendidos os requisitos do artigo 44 do Código Penal crime sem violência ou grave ameaça e primariedade em crime doloso salvo no caso de reincidência não específica conjugada com recomendação social da medida além da observância da culpabilidade dos antecedentes da conduta social e da personalidade do condenado assim como se os motivos e se as circunstâncias indicam que a substituição é suficiente 22 O parágrafo 2º do artigo 33 do Código Penal preceitua que as penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva segundo o mérito do condenado observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso a o condenado a pena superior a 8 oito anos deverá começar a cumprila em regime fechado b o condenado não rein cidente cuja pena seja superior a 4 quatro anos e não exceda a 8 oito anos poderá desde o princípio cumprila em regime semiaberto c o condenado não reincidente cuja pena seja igual ou inferior a 4 quatro anos poderá desde o início cumprila em regime aberto Já seu parágrafo 3º preceitua que a de terminação do regime inicial de cumprimento de pena farseá com observância dos critérios previstos no art 59 deste Código Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 33 tráfico privilegiado significa a abertura de diversas possibilidades para a mulher criminalizada por tráfico de drogas no Brasil que na maioria expressiva dos casos se enquadra nesse cenário de tráfico episódico e de pouca ou nenhuma relevância para a estrutura organizacional e financeira do grande tráfico de drogas BOITEUX 2015 Dessa forma a condenação de uma mulher por associação crimi nosa ou mesmo o entendimento de que integra organização criminosa com base em abstrações arbitrárias como vimos parece ser um vetor fundamental para o processo de encarceramento em massa de mulhe res que temos vivenciado nas últimas décadas 24 Penas de 4 a 12 anos Diante desse contexto punitivo de aumento de penas e afasta mento de causa de diminuição identificamos que as mulheres presas no PNSS foram condenadas majoritariamente a penas entre 4 quatro a 12 doze anos o que diante da constatação de um tráfico essencial mente não violento e com poucas incidências em agravantes sugere que a condenação por tráfico e por associação criminosa conjunta mente tem sido uma das grandes responsáveis por essa quantidade discrepante de penas altas23 CONCLUSÃO Este artigo tratou das mulheres encarceradas por tráfico de drogas em especial quanto à aplicação da pena às presas no interior do esta do do Rio de Janeiro Por meio das sentenças a pesquisa identificou que 76 das mulheres que estavam encarceradas no Presídio Nilza da Silva Santos no dia 3 de junho de 2016 respondiam por delitos da Lei de Drogas Embora tenham perpetrado em 90 dos casos um tráfico não violento o cenário majoritário de penas altas de 4 a 12 anos pare ceu em um primeiro momento contraditório 23 25 foram condenadas a até 4 anos 74 foram condenadas de 4 a 8 anos 71 foram condenadas de 8 a 12 anos 23 foram condenadas de 12 a 16 anos e 5 foram con denadas de 16 a 20 anos 34 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Entretanto ao analisar a forma com que a pena foi aplicada essa discrepância entre o tráfico não violento e as altas penas aplicadas foi sendo esclarecida Isso porque foram observadas de forma reiterada ilações abstratas e até mesmo discriminatórias a fim de fundamentar o aumento das penas das rés Na fixação da penabase por exemplo houve a identificação do aumento para além do mínimo legal fundamentando em muitos casos na reprovabilidade da conduta da ré mesmo que esta tivesse sido perpetrada sem qualquer elemento extraordinário ao tipo penal Se o legislador determina que o tráfico é ilegal sendo penalizado por um preceito secundário mínimo de cinco anos não há razoabilidade na fixação de uma pena maior apenas pelo fato de ao magistradao en tender que o tráfico de drogas é um delito de alta reprovabilidade o que é ínsito à existência tipo penal Ademais não foram poucas as vezes em que houve a utilização de um mesmo fato para piorar a situação processual da ré em diversas fases da aplicação da pena Exemplo foi a natureza e a quantidade da droga que muitas vezes foram utilizadas para determinar não só que a conduta era tráfico e também associação criminosa mas também para aumentar a penabase e para afastar o reconhecimento do tráfico privilegiado Quanto aos motivos para não aplicação da causa de diminuição do tráfico privilegiado identificamos que a razão mais utilizada foi a dedução de que a então ré integrava organização criminosa Ao anali sarmos as decisões ficaram claras as diversas ilações subjetivas perpe tradas com base em juízos de valor discriminatórios que utilizavam até o local em que a mulher foi encontrada com a droga para determi nar que é traficante e associada a uma facção criminosa Verificouse assim uma verdadeira divisão típica do espaço na qual a mulher fla grada no asfalto pode eventualmente ser condenada como usuária ou traficante mas se presa na favela necessariamente será entendida como traficante e também como integrante de organização criminosa o que afeta sobremaneira sua pena e impossibilita alternativas à prisão A terceira fase da dosimetria por ser o momento da aplicação da pena em que ao magistradao pode diminuir a pena aquém do Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 35 mínimo legal é da máxima importância Entretanto esse juízo discri minatório que aqui chamamos de divisão típica do espaço é a repre sentação em sentença da seletividade do sistema penal que crimina liza condutas com base não nas nos fatos mas sim em estereótipos de gênero raça e classe razão pela qual observamos que em mais da metade dos casos de não reconhecimento do tráfico privilegiado este foi afastado por entender o juízo que a ré integrava organização crimi nosa mesmo que sem um acervo probatório categórico nesse sentido a despeito do in dubio pro reu A grande quantidade de condenações por tráfico de drogas e as sociação criminosa conjuntamente parece ser a causa de a maioria delas ter recebido penas altas que variam em sua maioria de 4 qua tro a 12 doze anos Isso porque como a pena mínima do tráfico é de 5 cinco anos e a da associação é de 3 três anos acabam por ensejar a aplicação de penas altas dificultando medidas de desencarceramen to como a substituição por penas alternativas ou suspensão da pena por exemplo que exigem como requisitos penas diminutas Diante de todos os dados identificados no que tange à aplicação da pena às mulheres encarceradas no Presídio Nilza da Silva Santos por condenação a delitos da Lei de Drogas a pesquisa indica que houve uma preferência judicial por medidas punitivas por meio de aumentos desarrazoados de pena afastamentos arbitrários de dimi nuição da pena e de conversão por restritivas de direito ou até mesmo de outras medidas de desencarceramento em razão da imposição de penas altas sem um arcabouço probatório que as justificasse A atuação do Poder Judiciário reforçou a criminalização da mu lher presa por tráfico de drogas que teve início com o olhar seletivo dos agentes policiais Estes atuam em locais específicos e sobre pessoas vulneráveis como é o caso das mulheres que são majoritariamente selecionadas e encarceradas por tráfico de drogas e a atuação do Judi ciário mostrase afinada com essa lógica punitiva Por certo que o sistema penal não é um projeto emancipató rio sendo produto das estruturas machistas racistas e classistas que o moldaram Entretanto mais do que isso está longe de apresentar qualquer nível de segurança jurídica uma vez que as decisões judiciais perfazem uma eficiente criminalização com uma clara preferência pela punição De todo jeito não propomos reformas para a construção 36 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça de um sistema penal menos opressor já que controle não promove emancipação Entendemos que a solução reside na desconstrução das opres sões Enquanto depositarmos esforços e crenças nas tintas condenató rias estaremos contribuindo mais e mais para a reprodução e para a manutenção dos valores patriarcais racistas e desiguais que insistem em oprimir para governar REFERÊNCIAS BOITEUX Luciana FERNANDES Maíra Org 2015 Mulheres e Crianças Encarceradas um estudo jurídicosocial sobre a expe riência da maternidade no sistema prisional do Rio de Janeiro LA DIH Rio de Janeiro DAVIS Angela 2009 A democracia da abolição para além do im pério das prisões e da tortura DIFEL Rio de Janeiro 2003 Are prisons obsolete Seven Stories Press New York 2003 INFOPEN MULHERES 2018 Levantamento Nacional de Infor mações Penitenciárias INFOPEN Mulheres junho Disponível em httpdepengovbrDEPENdepensisdepeninfopenmulheresin fopenmulheresarte070318pdf Acesso 10 junho 2018 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA IPEA Retrato das Desigualdades de Gênero e de Raça Disponível em httpwwwipeagovbrretrato Acesso em 20 mar 2017 LEMGRUBER Julita 1999 Cemitério dos vivos análise socioló gica de uma prisão de mulheres 2a edição Rio de Janeiro Forense MUSUMECI Barbara ILGENFRITZ Iara Prisioneiras vida e violência atrás das grades Rio de Janeiro Garamond Universitária 2002 37 MULHERES PRESAS POR TRÁFICO DE DROGAS ENTRE PROTAGONISMOS E FIGURAÇÕES NAS TRAMAS DO PUNITIVISMO E DAS DESIGUALDADES DE GÊNERO Luisa Bertrami DAngelo24 Resumo O presente trabalho tem como objetivo pensar a seletividade penal as desigualdades de gênero e os impactos da chamada guerra às drogas nas vidas e no encarceramento de mulheres presas por trá fico de drogas As discussões aqui propostas são fruto de pesquisa de mestrado realizada em uma unidade prisional feminina no estado do Rio de Janeiro com foco nas entrevistas realizadas com Hilda Jane Florbela Virginia Inês Carolina Ana Cristina e Clarice todas pre sas e condenadas por tráfico de drogas A partir das noções de pro tagonismos e figurações as trajetórias dessas mulheres podem ser lidas e contadas a partir do quanto e de como a guerra às drogas o encarceramento em massa e o punitivismo operam e fazem ver prota gonismos e figurações dessas mulheres frente a suas vidas o tráfico o sistema de justiça e a prisão Palavraschave guerra às drogas gênero aprisionamento de mulhe res 24 Doutoranda em Psicologia Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro Mestre em Psicologia Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro Psi cóloga formada pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais 38 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1 Guerra Às Drogas Seletividade Penal e o Aprisio namento de Mulheres no Brasil A guerra às drogas não é propriamente uma guerra contra as drogas Não se trata de uma guerra contra coisas Como quais quer outras guerras é sim uma guerra contra pessoas os produ tores comerciantes e consumidores das arbitrariamente selecio nadas drogas tornadas ilícitas KARAM 2013 p 4 A Lei n 1134306 a nova lei de drogas brasileira surge para subs tituir a antiga lei de drogas Lei n 636876 e uma das principais al terações propostas pelo Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas apresentada como o objetivo oficial da nova lei era des locar o usuário de drogas para o sistema de saúde ao mesmo tempo em que aumentava a punição para os traficantes Uma abordagem menos punitiva e mais preventiva focada agora na saúde do usuário de drogas CAMPOS 2017 p 139140 Marcelo da Silveira Cam pos 2017 busca discutir a respeito dos objetivos oficiais e os reais efeitos da promulgação da nova lei de drogas no Brasil em 2006 e suas relações com o encarceramento em massa a partir da noção de dis positivo médicocriminal por meio do qual o autor aponta como os saberes médicos e jurídicos foram articulados de modo a se produzir a atual política de guerra às drogas no Brasil A partir de um processo de apropriação da proposta de redução de danos o que essa lei faz na verdade é abrir mão do caráter de ilegalidade do uso de drogas para aumentar a pena por tráfico de drogas e manter a criminalização do porte para uso de drogas Para Campos o contexto no qual é possível a elaboração dessa lei está relacionado ao fortalecimento da ideia do comerciante de drogas como inimigo social e do usuário de drogas a partir da categoria drogado como alvo de acusações morais e polí ticas e é justamente na combinação dessa metade esvaziada de saber e práticas de redução de danos mas cheia do paradigma proibicionista que se formou uma política de drogas à brasileira CAMPOS 2017 p 143 Ainda de acordo o autor o ganho da separação entre usuário e traficante foi meramente ocasional e acidental na velha lógica da política criminal brasileira de coexistência entre pouca moderação e muita severidade no poder de punir CAMPOS 2017 p 141 Essa Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 39 separação ainda faz operar o campo das drogas a partir de um bi nômio reducionista e só aparentemente mutuamente excludente Na prática ela ocorre de maneira obscura dependendo quase exclusiva mente da polícia a quem cabe identificar caso a caso quando se trata de um usuário ou de um traficante Nesse regime de produção de verdade FOUCAULT 2011 sobre quem é traficante e quem é usuá rio no qual a polícia tem papel fundamental determinados sujeitos em determinados territórios parecem compor uma outra ponta dessa trama de saberes e poderes produzidos reorganizados e agenciados sobre as drogas Se enquanto as ações pretensamente relacionadas ao cuidado da saúde do usuário parecem escassas o mesmo não se pode dizer a respeito da punição impetrada àqueles e àquelas que vêemse conformadosas na categoria traficante Como apontam dados do Departamento Penitenciário Nacional DEPENMJ 2016 de 2006 até o momento do registro destes dados em 2016 o número de pessoas privadas de liberdade quase dobrou chegando a mais de 726 mil presos e presas Outros dados somam relevância a essa discussão no que diz respeito ao que o Ministério da Justiça chama de perfil da população prisional perfil este que não existe aprioristicamente ou seja não está dado para ser quanti ficadoqualificado pelo sistema mas pelo contrário é produzido por este sistema a partir de processos de seletividade penal 74 das pes soas privadas de liberdade têm entre 18 e 34 anos 64 são negras 51 não completaram o ensino fundamental Há hoje mais de 680 mil homens presos e mais de 42 mil mulheres presas Destas 42 mil mulheres privadas de liberdade número que representa uma taxa de ocupação de 1567 45 são presas provisórias ou seja ainda não foram julgadas Quando observamos os regimes nos quais as mulhe res condenadas cumprem pena 32 delas está em regime fechado 16 em regime semiaberto e 7 em regime aberto evidenciando que a prisão é uma pena aplicada em níveis elevados Os dados muitas vezes parecem enfadonhos e repetitivos entre tanto são importantes pois apontam que há um impacto específico da lei de drogas sobre determinados corpos chamando a atenção para a importância de se pensar essa lei e toda a política de drogas no Brasil sob uma perspectiva de gênero raça classe território e principalmen te que articule e analise os atravessamentos entre essas categorias que 40 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça mais do que categorias de análise são dispositivos que se articulam entre si e com outros dispositivos para produzir determinados dis cursos e engendrar determinadas práticas ou seja levando em conta que a maneira pela qual mulheres pobres e negras são tratadas pelo sistema criminal só pode ser completamente compreendida em fun ção da realidade material e ideológica de classe e gênero GREGORY 1993 p 316317 apud BARCINSKI 2009 p 1845 Considerando então que corpos generificados racializados e marcados pela classe e pelo território que habitam são alvos preferenciais da seletividade do sistema de justiça no Brasil e que na produção de uma determinada política de encarceramento e guerra às drogas dobraduras específi cas atuam sobre esses corpos e uma vez inseridas nesses contextos de privação de liberdade essas mulheres continuam sendo interpeladas por essa trama de discursos práticas moralidades poderes e saberes pensar o encarceramento de mulheres acusadas de tráfico de drogas significa articular todas essas categorias às narrativas e experiências de vida dessas mulheres Na discussão sobre seletividade penal e encarceramento gênero raça e território são pontos que tensionam o debate no sentido de pen sar as formas como a prisão faz operar os marcadores de desigualda des Pensar o gênero aqui implica em não tomálo como um conceito ahistórico Tratase de um conjunto de construções sociais a partir de práticas discursivas que organizam a sociedade e agem sobre os corpos dos sujeitos de modo a constituílos enquanto tal Como dis positivo está intrincado nas relações de poder FOUCAULT 2008 o que significa que falar de gênero é falar de jogos de força de poder e de interesses políticos RUBIN 1975 O gênero é assim produtor de subjetividades que envolve uma série de saberes poderes e forças que engendram e são engendrados por práticas específicas FOUCAULT 2010a Da mesma forma pensar a raça enquanto categoria de análise histórica e política REIS 2005 BORGES 2018 e o modo como o ra cismo de Estado FOUCAULT 2010b opera na produção de sujeitos perigosos é fundamental para acompanhar as linhas que compõem a atual política de segurança pública no Brasil O racismo de Estado en quanto estratégia biopolítica de fazer viver e deixar morrer é o modo como o Estado faz a gestão dos indesejáveis Segundo Célia Bernardes 2013 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 41 o racismo de Estado cumpre duas funções principais pri meiramente fragmenta o contínuo biológico dividindoo em raças de acordo com uma determinada hierarquia em segundo lugar faz atuar a antiga relação guerreira se você quiser viver é preciso que o outro morra de uma forma inteiramente nova e compatível com o exercício do biopoder BERNARDES 2013 p 71 No que diz respeito ao sistema de justiça criminal é via racismo que a raça é pautada pelas ações do Estado Em defesa da sociedade como aponta Foucault o racismo é um mecanismo do qual se lança mão da mesma maneira uma série de práticas como a abordagem policial e o posterior encarceramento de determinados sujeitos em determinados territórios parecem ser legitimadas na medida em que têm como objetivo garantir a segurança tanto de outros indivíduos como da sociedade Conforme aponta Juliana Borges 2018 O sistema de justiça criminal tem profunda conexão com o ra cismo sendo o funcionamento de suas engrenagens mais do que perpassados por esta estrutura de opressão mas o aparato reordenado para garantir a manutenção do racismo e portan to das desigualdades baseadas na hierarquia racial BORGES 2018 p16 Na operacionalização do racismo de Estado território é elemen to fundamental Fábio Araújo 2017 a partir de suas etnografias nos arredores do Complexo Penitenciário do Rio de Janeiro aponta para a importância de se pensar como o Estado se espacializa através de suas instituições punitivas e da sua centralidade na produção de ex periências particulares tanto da pena como dos territórios urbanos ARAÚJO 2017 p 49 Para o autor há relação entre políticas de Es tado e ocupações territoriais e urbanas Da mesma forma podemos expandir essa noção para pensar como mesmo antes da prisão o ter ritório é decisivo nos modos como o Estado atua e gere determinadas populações Esses territórios tanto aqueles nos quais se constrõem prisões quanto aqueles de onde vêm as pessoas que as lotam se apre sentam como espaços nos quais o estado de polícia é a forma que o Estado toma 42 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Ou seja gênero território e raça são mais do que fatores que per passam o sistema de justiça criminal a política de segurança públi ca a guerra às drogas e o encarceramento em massa são elementos estruturantes e que atuam de modo a reorganizar as forças de ma neira a garantir a manutenção das desigualdades Michelle Alexander 2017 aponta para como a máquina do encarceramento em massa atua como atualização da escravidão e opera valores discursos e prá ticas que reorganizam a partir do racismo as hierarquias raciais de modo a transformar um modo de desigualdade racial que não é mais aceito nas democracias ocidentais modernas em uma nova maneira de produzir as mesmas desigualdades A discussão colocada por Julia na Borges 2018 sobre este tema é de extrema relevância para pensar o contexto brasileiro uma vez que ela articula as problemáticas do encarceramento como atualização e aperfeiçoamento da tecnologia da escravidão às particularidades do regime escravocrata no Brasil e ainda ao colonialismo e aos modos específicos como o racismo opera num país fundado sobre um mito de democracia racial Tanto para Juliana Borges 2018 quanto para Michelle Alexan der 2017 a guerra às drogas é central para essa reorganização no modo de produzir desigualdade Desde 2006 mais unidades prisio nais foram construídas mais pessoas foram presas e ainda assim de acordo com dados do InfoPen de 2016 a taxa de encarceramento con tinua a crescer no país inclusive o Brasil é o 4º país com o maior número de mulheres presas mas o 3º no ranking mundial no que diz respeito à taxa de encarceramento Enquanto entre 2000 e 2016 a taxa de encarceramento cresceu 18 nos Estados Unidos 105 na China 14 na Tailândia e teve queda de 2 na Rússia no mesmo período no Brasil o crescimento desta taxa foi de 455 Os números também apontam para a centralidade do gênero na discussão sobre o encarce ramento em massa enquanto o crescimento da população masculina privada de liberdade neste mesmo período cresceu 293 a população feminina privada de liberdade teve um aumento de 656 Quando analisamos ainda o impacto da guerra às drogas no aprisionamen to de mulheres observamos que a incidência de prisõescondenações por tráfico de drogas é de 62 enquanto no caso dos homens esse percentual é de 26 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 43 Alinhada às leituras e propostas de Michelle Alexander e Juliana Borges e contribuindo para pensar as inflexões dessa guerra às dro gas na América Latina e consequentemente no Brasil Ludimila Car neiro 2013 aponta para três importantes consequências da adoção desta política proibicionista por parte desses países A primeira é que ano a ano além de engrossar as fileiras da produção de drogas estas nações têm também crescido en quanto consumidoras A segunda é que se criou ao redor deste grande mercado ilícito uma organização criminal extrema mente imbricada nas instituições sociais políticas econômicas e até mesmo na segurança pública dos países latinoamericanos a qual lucra com o comércio ilícito Esta rede se organiza pro porcionalmente à necessidade de dar conta da demanda tanto do mercado nacional quanto internacional criando estruturas capazes não só de produzir distribuir e de vender drogas mas de fazer frente ao que ou a quem se interponha neste percur so Esta organização utiliza atualmente dois recursos primor diais os vínculosarticulações internacionais dado o próprio movimento de globalização além de elevado e refinado uso de tecnologias e diversas formas de comunicação A terceira é que por consequência paulatinamente lançouse mão de uma série de estratégias repressivas que ocasionaram vertiginosas taxas de corrupção e violência CARNEIRO 2013 p 36 O que essas autoras apontam é que não é possível discutir guerra às drogas punitivismo aprisionamento de mulheres e encarceramen to em massa sem trazer para o centro essas lógicas de aprisionamento que se fazem ver em diferentes espectros aspectos e sentidos Quanto ao encarceramento de mulheres acusadas de tráfico de drogas o que proponho a seguir é acompanhar os modos como a política de drogas e o aprisionamento de mulheres acusadas de tráfico operam e fazem ver protagonismos e figurações dessas mulheres frente a suas vidas o tráfico o sistema de justiça e a prisão 44 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 2 Sobre a Pesquisa De 2015 a 2017 realizei pesquisa de mestrado em uma unidade femi nina do sistema prisional do Rio de Janeiro A análise buscou entre outras questões pensar de que modo se constrõem as experiências dessas mulheres na prisão e inevitavelmente antes dela uma vez que a prisão corresponde a um determinado corte de espaço e tempo em suas vidas e não sua totalidade e de que modo essas experiências podem ser compreendidas enquanto produções de feminilidades ou seja de que maneiras e intensidades a experiência da prisão e no caso do envolvimento ou não com o tráfico de drogas produz subjetivida des e vivências de diferentes femininos A pesquisa foi uma pesquisa cartográfica cujo objetivo era acom panhar processos KASTRUP PASSOS 2015 A cartografia mais do que escolha metodológica diz de uma escolha éticoestéticopolítica ROLNIK 1993 de pensar o mundo e o campo como processos em constante desconstrução de modo que na pesquisa a postura car tográfica implica em percorrer e construir no campo os caminhos possíveis de serem percorridos bem como acompanhar os movimen tos os fluxos e as diferentes linhas que se cruzam na tessitura de uma realidade A partir da noção de análise de implicação BAREMBLITT 1992 procurei acionar os modos como eu enquanto pesquisadora habitei o campo de pesquisa e assim o construí coletivamente junto das mulheres com quem conversei Para tanto foram pertinentes dis cussões referentes ao modo como o campo me afetou e como eu afetei o campo numa tentativa de além de propor uma cartografia deslocar e desestruturar as noções naturalizadas da ciência como campo de co nhecimento neutro e da realidade enquanto representação Dessa forma a pesquisa buscou descobrir e traçar as múltiplas e heterogêneas possibilidades de performar feminilidades e também as diversas maneiras como as experiências de privação de liberdade e inserção ou acusação de inserção no tráfico de drogas produzem subjetividades e feminilidades investigando a pluralidade de arranjos forças fluxos tensões e movimentos que produzem feminilidades em contexto de privação de liberdade Neste artigo trago alguns relatos de campo e das entrevistas rea lizadas com 8 mulheres que participaram desta pesquisa todas con Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 45 denadas por tráfico de drogas e cumprindo pena privativa de liber dade A partir de suas trajetórias e relações com o tráfico a prisão e o Estado elas nos mostram caminhos possíveis para entender como se articulam gênero sistema de justiça punitivismo seletividade penal protagonismo figuração e autonomia e como estas linhas traçam e tramam experiências singulares e complexas 3 Entre Protagonismos e Figurações Tecendo e Descobrindo Tramas São diversas as formas como as mulheres vêem suas vidas atravessa das pelo tráfico de drogas Se por um lado podemos dizer que o trá fico enquanto instituição engendra práticas estáveis e já estabeleci das que pretendem produzir determinadas subjetividades moldadas a partir de uma certa hegemonia operando o que Deleuze e Guattari 1996 chamariam de linhas duras ou molares em que tudo parece contável e previsto o início e o fim de um segmento a passagem de um segmento a outro DELEUZE GUATTARI 1996 p 6263 por outro as conversas com essas mulheres tornaram possível ver as linhas moleculares DELEUZE GUATTARI 1996 maleáveis cambiantes cujo funcionamento organizase no campo da micropo lítica das linhas de fuga cujos fluxos buscam rachar os segmentos duros das linhas molares expandir ir além Nesse sentido pensar a partir do gênero pode potencializar a criação de linhas de segmen taridade mais flexíveis capazes de produzir rachaduras rupturas nas segmentaridades molares O próprio termo tráfico de drogas parece dificultar a percepção dessas outras linhas menos duras na medida em que já evoca uma sé rie de valores e práticas que em geral pautando a ideia de traficante consideram pouco ou nada o fato de que a maioria dessas mulheres são vendedoras varejistas Ludimila Carneiro 2015 Mariana Bar cinski 2009 Manoela Ivone Cunha 2006 Gabriela Jacinto 2011 e muitasos outrasos pesquisadorases têm se debruçado sobre a pluralidade de experiências e envolvimentos de mulheres com o trá fico Com as mulheres com quem conversei não foi diferente elas apontam múltiplos caminhos sentidos e experiências com a venda de 46 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça drogas ilícitas Suas narrativas nos permitem acompanhar alguns dos movimentos que produzem o imbricamento dessas vidas com o cha mado tráfico de drogas No que diz respeito ao que chamo de figurações na trama tecida entre tráfico gênero e história de vida a experiência de Inês e Carolina deixa ver as arbitrariedades da guerra às drogas e suas articulações com gênero e território Mãe e filha Inês e Carolina foram presas jun tas Elas eram usuárias de drogas e um dia Inês saiu para comprar drogas para as duas usarem como mãe ela preferia comprar em vez de fazer a filha ir até a boca temendo que isso a colocasse em risco de alguma forma Enquanto voltava avistou policiais e nervosa e com medo lançou os 25g de cocaína em um matagal próximo Os policiais vendo seu comportamento suspeito a abordaram e ao encontrarem as drogas jogadas ao chão e R60000 em sua posse que supuseram ser dinheiro do tráfico mesmo ela tendo informado que ele vinha do bar do qual era dona deram voz de prisão Ela estava já bem perto de casa por isso Carolina ouviu o que estava acontecendo e interveio mas foi detida também Além das acusações de tráfico de drogas e associação para o tráfico de drogas foram acusadas de desacato à autoridade e agressão a um policial Carolina contou que por estarem sob efeito de substâncias e de álcool resistiram à prisão Cada uma foi sentenciada com 8 anos de prisão e na época desta conversa já haviam cumprido 1 ano e 7 meses da pena Inês insiste que nem ela nem a filha são traficantes e seus relatos deixam ver que essa não é uma categoria que engloba suas experiên cias com o tráfico e as drogas Atribuem o uso de drogas às dificulda des vividas econômica e afetivamente junto à família o dinheiro era pouco cuidavam de parentes doentes e tinham uma série de proble mas familiares que em suas palavras eram muita coisa pra aguentar A droga era o refúgio possível das dificuldades enfrentadas por muitas mulheres de camadas populares e suas duplas ou triplas jornadas de trabalho Gayle Rubin 1975 ao falar do sistema sexogênero e da di visão sexual do trabalho aponta para a função desse dispositivo qual seja a manutenção da dependência das mulheres que assim vêemse impelidas ou porque não obrigadas como diz Adriana Piscitelli 2003 a manter a instituição familiar que embasa a hetenormativi dade e as desigualdades de gênero Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 47 A leitura de Inês e Carolina como traficantes por parte da polí cia e do sistema de justiça articulase com gênero e território na medi da em que evidencia o modus operandi por meio do qual se dá a pre sença do Estado em territórios de periferia Serem mulheres usuárias de drogas e moradoras de um bairro periférico tornaram possível o acionamento das malhas da justiça para sua retenção e etiquetamento como traficantes O território assim aparece como linha fundamental para a tes situra da figura doa traficante Na história de Inês e Carolina um ponto que torna visível a centralidade do território para a guerra às drogas é a acusação de associação para o tráfico ponto que costura essa história à outra de Jane casada com um traficante termo evoca do por ela para se referir ao marido e que pelo que ela narra parece ter sentido para ambos Ele foi preso por tráfico e no mesmo proces so ela soube que havia pedido de prisão em seu nome por associação o que a fez se entregar para a polícia pois achava que sozinha não te ria condições de cuidar dos quatro filhos Ela conta que vez ou outra ajudou o marido com alguma tarefa relacionada ao tráfico de drogas e sabia de seu envolvimento mas nunca o denunciou porque mulher de bandido não vai denunciar o marido A associação para o tráfico parece ser acionada em determina dos territórios e ainda parece ter efeitos particularmente evidentes para as mulheres seja porque elas compartilham vidas com homens tidos como traficantes seja porque como moradoras desses terri tórios vêemse atravessadas pelos processos do tráfico muitas vezes independentemente de seu envolvimento Hilda por exemplo cum pre pena por tráfico de drogas e associação mesmo afirmando não ter envolvimento O pai de seu filho é gerente de uma boca e ela tem laços de amizade com outras pessoas que trabalham nesse local Um dia passava por lá conversando com amigos quando a polícia fez uma batida e levou todosas presosas Ou seja por ter uma rede de sociabilidade em locais e com pessoas que são lidos como parte do tráfico Hilda vêse exposta passível de ser lida também dessa forma Figuração aqui não está sendo tratado como passividade mas sim pensando que nos modos como se dão essas relações com o trá fico de drogas é possível habitar lugares mais ou menos participantes 48 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça não como numa linha na qual de um lado encontrase a figuração e do outro o protagonismo mas sim como num emaranhado de linhas com pontos pouco fixos que constantemente se articulam se atraves sam se modificam de modo que seria possível pensar uma figura çãoprotagonista ou um protagonismofigurante Um outro caminho por meio do qual podemos percorrer essas linhas é a partir da revista vexatória e do modo como ela movimenta essas linhas e as articula constantemente com o gênero A história de Florbela nos permite ex plorar esse caminho presa quando levava drogas na vagina para seu companheiro preso em um dia de visita por amor ao companheiro e pelo dinheiro que receberiam para tanto ela mostra como a partir da noção de mulher de bandido que de alguma forma também é acionado por Jane os corpos das mulheres são alvos preferenciais de revistas íntimas Nesse sentido podese dizer que não é propriamente o envolvimento com o tráfico que faz com que uma mulher morado ra de periferias favelas ou comunidades tenha seu corpo e sua vida capturados pelas malhas do sistema de justiça criminal Suas relações seus afetos suas redes de apoio e amizade também operam o funcio namento dessas malhas Quanto aos protagonismos é Virginia quem mostra a possibili dade de pensar uma inserção no tráfico de drogas vinculada à au tonomia Nascida no centrooeste brasileiro em uma família pobre diz ter tido uma criação muito sistemática Para sair desse ambiente casouse aos 17 anos com um homem muito machista em suas pala vras que a proibia de manter relações de amizade e estudar obrigan doa a trabalhar na propriedade da família Ela diz que desde cedo sentia a necessidade de se sentir livre necessidade esta que de acor do com ela foi suprida pela vida que pôde viver quando começou a vender drogas Foi por meio de um primo que ela começou a buscar drogas no Paraguai e vendêlas no Brasil Em uma dessas viagensVir ginia foi presa no Rio de Janeiro com dinheiro drogas arma e muni ção pela Polícia Federal alertada por um informante que Virginia não sabe quem foi A história de Clarice se assemelha à de Virginia vindo de uma família evangélica muito rígida saiu de casa aos 15 anos por se sentir muito presa Ela acredita que foi por causa desse sentimento que buscou no tráfico de drogas para ocupar espaços de protagonis Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 49 mo que a fizessem se sentir livre As duas contam que vivenciaram por serem mulheres situações de aprisionamento mesmo antes da prisão em si Para Virginia foi a adrenalina das atividades ilegais que praticava que deu sentido a essas experiências Ela diz que não precisava do dinheiro oriundo da venda das drogas entretanto realizar essas ativi dades permitia com que se sentisse importante animada com a vida Para Virginia há uma diferença moral entre traficar porque não se tem condições socioeconômicas favoráveis e o seu caso que ela eti queta como safadeza em sua fala a necessidade de se sentir livre depois de viver relações familiares restritivas e um relacionamento abusivo não justificavam sua decisão Ainda assim ela continuou pela adrenalina Ana Cristina por sua vez não buscou adrenalina no tráfi co mas sim o dinheiro rápido e fácil razão pela qual ela acredita que cada vez mais mulheres têm se envolvido com essa atividade Junto com ela foram presas outras 9 mulheres Ela diz que experienciou um tratamento diferenciado no tráfico por ser mulher tanto por par te de outros traficantes que têm um cuidado maior com ela por ser mulher quanto por parte dos clientes que respeitam mais porque sabem que tem muito homem atrás Essa relação com os clientes era bastante diferente para Virginia e para Ana Cristina enquanto para a última havia esse respeito ainda que movido pela garantia da honra de outros homens por parte de homens para a primeira as relações comerciais eram marcadas por desconfiança e falta de respeito por parte dos compradores que chegavam a fazer aproximações indevidas e indesejadas As tramas dessas vidas e narrativas como se vê se encontram e desencontram compõem um campo comum habitado por essas mu lheres nas suas relações com o tráfico mas também deixam ver as diferentes modulações e experiências possíveis Entre protagonismos e figurações as histórias dessas mulheres nos dão importantes pistas para pensar os processos de aprisionamento de mulheres a partir de seus envolvimentos com a venda de drogas ilícitas 50 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 4 Protagonizando Figurações Figurando Protagonis mos Caminhando por entre Estas Linhas Algumas Considerações Finais Provisórias Às vezes protagonistas aos olhos da lei 1134306 que as entende como perigosas traficantes internacionais às vezes protagonistas em suas vidas na família e na comunidade gerindo suas vidas da melhor forma que enxergam ser possível e construindo laços e afetos comunitários às vezes figurantes perante seus maridos também presos por tráfico de drogas para os quais levaram drogas para dentro de presídios masculinos mas também às vezes protagonistas perante esses maridos às vezes figurantes para a instituição do tráfico de drogas ocupando posições baixas na hierarquia do tráfico e assim rodando por transportarem pequenas quantidades de drogas de um ponto a outro Caminhando nessas linhas não excludentes que se atravessam em diferentes pontos essas mulheres narram vidas e experiências em constante movimento que constrõem a cada passo inúmeras possibi lidades leituras e sentidos Seja por meio do que é chamado de amor pelo companheiro seja pela ideia de fidelidade da mulher de bandido que não denun cia o marido seja por ter um companheiro envolvido com o tráfico e como desdobramento ser identificada também como traficante as entrevistadas Florbela Jane e Hilda deixam ver que o fato de serem mulheres produz um fragilizar diante do outro torna alguém fiel faz de alguém culpada Virginia por sua vez aponta que é possível construir trajetórias de autonomia e reconhecimento no tráfico de drogas deixando ver as complexas tramas que unem uma vida ao tráfico Com Clarice fala dos aprisionamentos para além das prisões e com Ana Cristina apresenta um pouco de como ser mulher atra vessa as relações de trabalho no tráfico de drogas Já Inês e Carolina mostram que para a lei o território aciona modos específicos por meio dos quais se lê alguém como traficante elas apontam para como constituíremse como mulheres em determinada localidade da cidade as coloca em determinadas posições perante a lei e a po lícia e as torna alvos do sistema de justiça criminal Inês Carolina Jane Hilda Florbela Ana Cristina Clarice e Virginia fazem ver en quanto constrõemcontam suas narrativas as linhas duras e as li Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 51 nhas flexíveis que se articulam e operam gênero território sistema de justiça e afetos nas tramas do punitivismo e das desigualdades de gênero e que as fazem ocupar diferentes lugares nas espirais dos pro tagonismos e figurações aqui abordados ora mais próximas de um ora mais próximas de outro e muitas vezes de maneira ambivalente tão próximas de um quanto de outro REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXANDER Michelle A Nova Segregação racismo e encarcera mento em massa Boitempo Editorial São Paulo 2017 ARAÚJO Fábio A prisão e a produção do espaço urbano territoria lidades carcerárias In MALLART Fábio GODOI Rafael Orgs BR 111 a rota das prisões brasileiras São Paulo Veneta 2017 BAREMBLITT G F Compêndio de Análise Institucional e outras correntes teoria e prática Rio de Janeiro Rosa dos Ventos 1992 BARCINSKI Mariana Centralidade de gênero no processo de cons trução da identidade de mulheres envolvidas na rede do tráfico de drogas Ciência Saúde Coletiva v 14 n 5 p 18431853 2009 BERNARDES Célia R O Racismo de Estado uma reflexão a partir da crítica da razão governamental de Michel Foucault Curitiba Juruá 2013 BORGES Juliana O que é encarceramento em massa Belo Hori zonteMG Letramento Justificando 2018 BRASIL Lei 11343 de 23 de agosto de 2006 Institui o Sistema Na cional de Políticas Públicas sobre Drogas Sisnad prescreve medi das para prevenção do uso indevido atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas define crimes e dá outras providências Disponível em httpwwwplanaltogov brccivil03ato200420062006leil11343htmArtigo Raquel Alves Rosa da Silva GT 1docx 52 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça BRASIL Departamento Penitenciário Nacional Levantamento Na cional de Informações Penitenciárias InfoPen junho de 2016 CAMPOS Marcelo da Silviera A atual política de drogas no Brasil um copo cheio de prisão In MALLART Fábio GODOI Rafael Orgs BR 111 a rota das prisões brasileiras São Paulo Veneta 2017 CARNEIRO Ludmila G S Mulas olheiras chegas Outros Tipos Heterogeneidade nas dinâmicas de inserção e permanência de mu lheres no tráfico de drogas em BrasíliaDF e na Cidade do México 2015 Tese Doutorado em Feminismos Relações de Gênero e Raça Instituto de Ciências Sociais Universidade de Brasília 2015 CUNHA Manuela I Os géneros do tráfico In Congresso da Associa ção Portuguesa de Antropologia Actas Lisboa APA 2006 DELEUZE Gilles GUATTARI Félix Mil platôs capitalismo e esqui zofrenia Vol 3 tradução de Aurélio Guerra Neto et alii Rio de Janeiro Ed 34 1996 FOUCAULT Michel Segurança território e população curso dado no College de France 19771978 Edição estabelecida por Michel Senellart São Paulo Martins Fontes 2008 FOUCAULT Michel História da sexualidade I a vontade de saber 1 ed Ed Graal 2010a FOUCAULT Michel Em defesa da sociedade Ed Martins Fontes São Paulo 2010b FOUCAULT Michel Microfísica do poder Ed Graal 2011 JACINTO Gabriela Mulheres presas por tráfico de drogas e a ética do cuidado Sociais e Humanas Santa Maria v 24 n 02 juldez 2011 p 3651 KARAM Maria Lucia Drogas dos perigos da proibição à necessidade de 389 legalização Seminário Drogas dos perigos da proibição à necessidade da legalização LEAP BRASIL Fóruns Permanentes de Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 53 Direitos Humanos e de Especialização e Atualização nas Áreas do Di reito e do Processo Penal Rio de Janeiro EMERJ Instituto Carioca de Criminologia 2013 Disponível em httpwwwleapbrasilcombr mediauploadstexto57SEMINC381RIO20LE KASTRUP Virginia PASSOS Eduardo Cartografar é traçar um plano comum In PASSOS Eduardo KASTRUP Virginia ESCÓSSIA Lilia na Pistas do método da cartografia Pesquisaintervenção e produ ção de subjetividade Porto Alegre Sulina 2015 PISCITELLI Adriana Comentário cadernos pagu v 21 p211218 2003 REIS Vilma Atucaiados pelo Estado as poíticas de Segurança Pú blica Implementadas nos bairros populares de Salvador e as Repre sentações dos gestores sobre JovensHomensNegros 19912001 FFCHUFBA 2005 ROLNIK Suely Pensamento corpo e devir Uma perspectiva ético estéticopolítica no trabalho acadêmico Cadernos de Subjetividade São Paulo v1 n2 p 241251 setfev 1993 RUBIN Gayle The Traffic in women Notes on the political economy of sex In REITER R ed Toward an Anthropology of Women New York Monthly Review Press 1975 pp157 210 Traduzido para o português e publicado por SOS Corpo e Cidadania 54 REVISTA VEXATÓRIA E O CONTROLE DOS CORPOS DAS MULHERES PORQUE NO PRINCÍPIO EVA COMEU A MAÇÃ Camille Vieira da Costa25 Tani Maria Wurster26 RESUMO A revista vexatória é uma inspeção prévia à entrada nos presídios que consiste no desnudamento do sujeito diante de terceiros com a exposição da vagina e ânus sobre um espelho podendo inclusi ve haver a introdução de objetos na genitália com o alegado propósito de garantir a segurança pública e evitar a entrada de objetos ilícitos ou proibidos no interior do estabelecimento prisional Caracterizase como instrumento de tortura uma vez que constitui ato administra tivo praticado no exercício do poder de polícia que não cumpre com a pauta de valores presentes na Constituição Federal e em tratados internacionais que o Brasil se comprometeu a cumprir de modo espe cial os princípios da legalidade da intimidade da dignidade da pes soa humana e da proporcionalidade Exerce na verdade uma função não declarada do direito penal o controle dos corpos das mulheres prática tão antiga quanto cruel Palavraschave Revista vexatória gênero sistema carcerário poder de polícia princípio da proporcionalidade flagrante ilegal controle dos corpos 25 Bacharel em Direito pela UniFMU mestranda em Direito pela UFPR Email camillevcgmailcom 26 Bacharel e mestranda em Direito pela UFPR Email taniwursterhotmailcom Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 55 1 Introdução O presente trabalho pretende analisar quais as circunstâncias legais sociais e culturais que atuam na decisão estatal de insistir na aplicação da chamada revista vexatória às mulheres que pretendem adentrar nos presídios e nos estabelecimentos socioeducativos para visitar paren tes ou amigos privados de liberdade apesar da existência de normas constitucionais contrárias a tal medida Pretendese denunciar a prática da revista vexatória como um instrumento de tortura A partir de sua caracterização como ato ad ministrativo praticado no exercício do poder de polícia será analisada a sua inadequação aos primados do Estado Democrático de Direito nomeadamente a violação aos princípios da legalidade da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade Nessa linha enquanto ato ilegal e instrumento de tortura cons titui prova ilícita nos termos do art 5º LVI da Constituição Federal o que torna ilegal o flagrante de crime de tráfico de drogas realizado mediante a prática da revista vexatória Por fim será abordada uma das razões pelas quais a revista ve xatória persiste no tempo e resiste a diversas decisões judiciais em âmbito nacional e internacional que a declararam ilegal e violadora de direitos humanos qual seja a função não declarada no direito penal o controle dos corpos das mulheres 2 A revista vexatória como ato administrativo exer cício do poder de polícia A revista vexatória é uma inspeção prévia à entrada nos presídios que consiste no desnudamento do sujeito diante de terceiros com a ex posição da vagina e ânus sobre um espelho agachamentos podendo inclusive haver a introdução de objetos na genitália com o alegado propósito de garantir a segurança pública e evitar a entrada de objetos ilícitos ou proibidos no interior do estabelecimento prisional O poder de polícia designa a atividade estatal que condiciona o direito de liberdade e de propriedade dos administrados ajustandoa 56 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça aos interesses coletivos podendo abranger tanto os atos legislativos quanto os executivos capazes de delinear a esfera de tutela jurídica da propriedade e da liberdade dos cidadãos MELLO 2015 p 846 Con forma o exercício individual ou coletivo das liberdades para permitir a satisfação de necessidades alheias JUSTEN FILHO 2013 p 590 Nessa perspectiva necessário reconhecer que a revista vexatória consiste em um ato administrativo que por suas características cons titui exercício do poder de polícia A administração pública exerce o poder de polícia em relação às pessoas que estão em situação especial de sujeição por ingressarem em estabelecimentos de privação de liber dade para visitarem os internos 21 Poder de polícia do arbítrio ao Estado Democrático de Direi to Há expressa menção ao termo poder de polícia na Constituição Federal no artigo 145 inciso II Contudo esse termo polissêmico en contra resistência em razão da sua trajetória histórica Tratase de terminologia utilizada no passado para designar po deres conferidos à administração pública não condizentes com o Es tado Moderno Sob tal perspectiva o termo poder de polícia partiria da premissa de que o Estado não estaria sujeito aos ditames da lei ou seja referirseia ao Estado de Polícia Essa forma de Estado encontrase relacionada a uma forte carga de discricionariedade facilmente associada à arbitrariedade e à ideia de que o Poder Público teria ampla liberdade para impor a força Essa interpretação do termo não é compatível com o sentido atual da Cons tituição Federal PIRES 2006 p 152155 Verificase portanto que sob o ponto de vista teórico o significado histórico do termo poder de polícia expressa premissas inconciliáveis com o atual estágio do Estado de Direito O Estado Moderno é marcado pela ênfase à garantia das liberda des individuais e à máxima efetivação dos direitos fundamentais as quais devem ser respeitadas e perseguidas pelo poder institucionali zado O Estado de Direito está submetido à imperatividade da lei ou seja está sujeito ao princípio da legalidade Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 57 Não é por outra razão que Marçal Justen Filho ao conceituar o poder de polícia inclui nele um aspecto finalístico Para o autor é atividade orientada a produzir a realização de direitos fundamentais mediante a limitação recíproca das liberdades JUSTEN FILHO 2013 p 589 O aspecto finalístico invocado pelo autor tem profunda relação com a realização do princípio democrático É que o poder de polícia utiliza a força para garantir a coerção dos particulares e promove a intervenção estatal na órbita individual de liberdades do sujeito Pos sui portanto grande carga antidemocrática Desse modo para que o exercício do poder de polícia esteja apto a cumprir os fundamentos do Estado Democrático de Direito é indispensável que se sujeite es treitamente aos princípios constitucionais e legais disciplinadores da democracia republicana Marçal Justen Filho reconhece ainda que o poder de polícia se orienta a realizar o princípio da dignidade da pessoa humana idem p 593 e que como toda a competência estatal de limitação de direitos o poder de polícia é norteado de modo essencial pelo princípio da proporcionalidade ibidem p 591 22 A revista vexatória violação ao princípio da legalidade e da dignidade da pessoa humana no contexto nacional e internacional As mulheres vítimas da revista íntima vexatória compõem um grupo de pessoas vulneráveis que têm dificuldade de acesso à justiça e que não detêm informações suficientes para identificar que a situação à qual estão sendo submetidas constitui uma violação de direitos Es sas pessoas estão na mesma condição da massa encarcerada no Brasil que tem a defesa dos seus direitos precarizada pela pouca estrutura do Estado para prover assistência jurídica integral e gratuita à população hipossuficiente Evidenciase a violação do princípio da dignidade da pessoa hu mana o direito à intimidade o princípio da pessoalidade da pena e a proibição de tratamento desumano ou degradante A revista vexatória pode ser caracterizada como uma pena ilegal injusta e ilegítima imposta aos parentes e amigos de pessoas privadas de liberdade Tratase de ato discriminatório e preconceituoso em re lação a essas pessoas que se exterioriza em nítida violação ao princípio 58 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça da pessoalidade da pena que ultrapassa os limites da pena imposta ao detento ou detenta e atinge por meios oblíquos pessoas estranhas ao seu cumprimento As formas já relatadas de como são feitos esses tipos de revista caracterizam formas degradantes desumanas e humilhantes de trata mento não condizentes com o nosso estágio civilizatório Segundo o depoimento de Cristina Rauter os efeitos psicológicos verificados em mulheres submetidas a estas práticas se equiparam a àqueles aferidos em vítimas de tortura da ditadura militar decorrente do golpe de 68 CÂMARA DOS DEPUTADOS 2018 A desídia do Estado brasileiro em tomar providências para que fossem cessadas as violações de direitos humanos das pessoas subme tidas a revistas íntimas vexatórias deram ensejo a recomendações do Relator Especial da Organização das Nações Unidas sobre a Tortura no ano de 2000 ONU 2001 e 2010 idem 2010 O Plano Nacional de Direitos Humanos Ministérios dos Direitos Humanos 2018 aponta a necessidade de que sejam adotadas medi das para tolher as práticas da revista vexatória As diretrizes 14 e 16 recomendam a necessidade de elaboração de procedimentos opera cionais padronizados respeitando os preceitos dos direitos humanos bem como a adoção de mecanismos tecnológicos para coibir a entrada de substâncias e materiais proibidos eliminando a prática de revista íntima nos familiares de presos A sistemática de proteção dos direitos humanos no ordenamento jurídico pátrio abrange não só os direitos expressos na Constituição Federal incluindo também os tratados e convenções internacionais dos quais o Estado brasileiro for signatário A revista vexatória além de violar dispositivos da Convenção Americana sobre Direitos Humanos também viola a Declaração Uni versal dos Direitos do Homem especialmente quanto à proteção à intimidade por meio de intromissões arbitrárias na vida privada dos indivíduos Importante registrar que tanto a Comissão Interamericana de Di reito Humanos Princípios e Boas Práticas para a Proteção das Pessoas Privadas de Liberdade nas Américas Organização dos Estados Ame ricanos 2009 como a Assembleia Geral das Nações Unidas Regras de Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 59 Bangkok COMISSÃO NACIONAL DE JUSTIÇA 2018 aprovaram regras sobre inspeções e exames corporais Além de afirmarem que estes devem ser feitos em condições sanitárias adequadas por pessoal qualificado do mesmo sexo e de forma compatível com a dignidade humana respeitados os direitos fundamentais exigem que exames in trusivos vaginais e anais devem ser proibidos por lei Sendo assim temse que a revista vexatória representa uma vio lência institucional contra os corpos das mulheres submetidas a esse procedimento humilhante e degradante de modo que pode ser clas sificado como violência de gênero considerando o disposto na Con venção para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher A violação do direito das mulheres em razão de revistas íntimas invasivas não é algo recorrente somente no Brasil O Estado argentino foi denunciado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos no caso no caso 10506 X e Y vs Argentina Organização dos Estados Americanos 1996 por violação dos direitos de uma mulher e sua filha de 13 anos que visitam seu marido e pai na Prisão de Réus Pro cessados da Capital Federal Reconheceuse a violação à dignidade e seu caráter penal de medida degradante que transcende a pessoa do condenado ou processado além de ser ato discriminatório em prejuí zo das mulheres A Corte Interamericana de Direitos Humanos julgou em 2006 o caso Castro vs Peru Corte Interamericana de Derechos Humanos 2002 em que o Estado peruano foi condenado em razão de uma ope ração denominada Operação Mudança ocorrida em 1992 no Presí dio Miguel Castro Na ocasião uma interna ao chegar a um hospital da polícia foi submetida brutalmente à revista vaginal invasiva reali zada por diversas pessoas encapuzadas No voto fundamentado do Juiz Cançado Trindade Corte Intera mericana de Direitos Humanos 2006 foi realçada a importância da análise de gênero no caso submetido à análise da corte uma vez que isso revelou o caráter sistêmico da discriminação contra a mulher e que estas se viram afetadas pelos atos de violência de maneira diferen te dos homens 60 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A Corte Europeia de Direitos Humanos analisou o caso de Lorsé contra a Holanda27 no qual entendeuse que revistas que impõem a retirada de roupas violam o direito à privacidade e à dignidade con cluindo que nem o detento e tampouco os seus familiares podem ser submetidos a tais práticas humilhantes e degradantes Concluise assim que a revista íntima vexatória é uma prática reconhecida tanto no Brasil como em outros países da América Latina e Europa como violadora de direitos fundamentais e direitos huma nos cuja perpetuação no tempo guarda relação com o desprezo aos corpos de mulheres pobres estigmatizadas e invisibilizadas pelo Po der Público 23 A revista vexatória violação ao princípio da proporcionalida de A principal finalidade do princípio da proporcionalidade é a con tenção do arbítrio estatal e controle dos excessos das escolhas discri cionárias do Estado promovendo critérios para o controle de medidas restritivas de direitos fundamentais ou de outros interesses juridica mente protegidos SOUZA NETO 2013 p 466 O princípio da proporcionalidade pode ser dividido em três sub princípios Assim um ato administrativo que pretenda limitar liber dades e direitos fundamentais somente será considerado compatível com o princípio da proporcionalidade se satisfizer simultaneamente os três subprincípios a adequação b necessidade e c proporciona lidade em sentido estrito O subprincípio da adequação exige que a medida restritiva se mostre apta a atingir os objetivos pretendidos Tratase de um exame de congruência idem p 472 entre os meios empregados e os fins ob jetivados pelo Estado É que o Estado quando pretende impor limita ções e restrições a direitos não está livre para escolher os meios pelos quais atingirá os seus objetivos Caso contrário restará configurado o desvio de finalidade 27 EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS Caso Lorsé contra a Ho landa 2003 Disponível em httpshudocechrcoeinteng22ite mid222200160916 22 Acessado em 14052018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 61 No caso específico da revista vexatória tal prática não cumpre com o subprincípio da adequação pois não é por meio dos visitantes que a vasta maioria dos objetos ilícitos adentram nas unidades prisionais Um relatório apresentado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo aponta que entre 2012 e 2013 foram realizadas 3047926 visitas nas unidades prisionais do Estado tendo sido apreendidos 493 celulares e 354 entorpecentes ou 0023 do total de apreensões Paralelamente no mesmo período foram apreendidos 11992 apare lhos celulares e 4417 entorpecentes nas unidades prisionais Ou seja 9633 dos celulares e 92 dos entorpecentes encontrados nas prisões paulistas entraram nas unidades por outros meios que não pelos visi tantes IBCCRIM 2015 Ou seja a medida utilizada pelo Estado para controle dos objetos que adentram no estabelecimento prisional não tem se revelado apta a impedir nem sequer minimamente a entrada de objetos ilícitos nos presídios A prática da revista íntima não cumpre ademais com o subprin cípio da necessidade o qual impõe que dentre as diversas medidas possíveis que promovam com a mesma intensidade uma mesma fi nalidade o Estado opte sempre pela menos gravosa SOUZA NETO SARMENTO 2013 p 474 Nesse caso buscase impedir o excesso estatal na escolha do meio empregado sempre que se demonstrar que uma restrição menor atingiria o mesmo objetivo Há alternativas à revista vexatória menos invasivas e que condu zem a um mesmo resultado a utilização de equipamentos de moderna tecnologia tais como detectores de metais aparelhos de raiox scan ners corporais que respeitam a integridade física psicológica e moral do revistado Tais medidas são amplamente utilizadas em aeroportos com ga rantida eficácia Nada justifica sob qualquer ângulo que se aprecie a questão mas de modo especial sob o aspecto do cumprimento dos princípios do Estado Democrático de Direito que os sujeitos que pre tendam adentrar em presídios sejam submetidos a uma determinada medida de controle diversa daquelas pessoas que utilizam os espaços dos aeroportos a menos que se considere a finalidade não declarada 62 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça do meio utilizado no caso a revista vexatória a humilhação e controle dos corpos das mulheres e parentes do preso É evidente que a alegação de ausência de recursos para a com pra dos equipamentos de tecnologia não pode servir de escusa para a utilização da revista vexatória Nas palavras de Conrado Hübner em termos de política social o diabo mora nas finanças HÜBNER 2018 p01 Embora o autor tenha utilizado a expressão em contexto diverso da prestação de serviços pelo Estado28 parece ser adequada mente aplicada no contexto da política penitenciária Se o propósito final e último da revista vexatória não é a garantia da segurança pública mas a manutenção dos padrões medievais de tratamento ao preso e sua família é evidente que o poder estatal não fará jamais a opção orçamentária de compra dos equipamentos que permitirão uma fiscalização dos objetos que adentram nos espaços prisionais mediante o cumprimento dos princípios do Estado Demo crático de Direito Por fim registrase que a revista vexatória não cumpre com o último subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito Tal prin cípio nas palavras de Cláudio Souza Neto e Daniel Sarmento demanda que a restrição ao direito ou ao bem jurídico im posta pela medida estatal seja compensada com a promoção do interesse contraposto Ele determina que se verifique se o grau de afetação a um direito ou interesse decorrente da medida questionada pode ou não ser justificado pelo nível de realiza ção do bem jurídico cuja tutela é perseguida SOUZA NETO 2013 P 476 No contexto da revista vexatória cuidase de analisar se a humi lhação se a violação do direito à intimidade com a procura invasiva de objetos na vagina das mulheres idosas e crianças mediante a exi gência de que as pessoas fiquem nuas na frente de agentes do estado 28 A expressão foi utilizada pelo autor no contexto da prestação de serviços do Sis tema Único de Saúde SUS e não tem no texto originário nenhuma relação com a política de segurança pública O artigo pode ser conferido em httpsepoca globocompoliticaConradoHubnernoticia201804susparapobreebolsa saudeparaquempodehtml Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 63 mediante a manipulação e revista dos órgãos genitais grau de afe tação do direito pode ser justificada em benefício da segurança dos presídios realização do bem jurídico cuja tutela supostamente é perseguida Colocado nesses termos resta evidente o arbítrio estatal A re vista vexatória expõe a intimidade física e fere a dignidade humana dos visitantes em favor do cumprimento de uma promessa vazia e de conteúdo indeterminado jamais cumprida a segurança pública É evidente portanto que a prática da revista vexatória não tende ao princípio da proporcionalidade e constitui desvio de finalidade e arbí trio estatal 3 A revista vexatória como prova ilícita e a ilegalida de do respectivo flagrante Cabe perquirir neste ponto a legalidade da prisão por crime cometi do pela visitante que mediante a prática da revista vexatória for fla grada na tentativa de adentrar ao estabelecimento prisional portando drogas ou celulares no interior da cavidade vaginal considerando a perspectiva da inadmissibilidade da prova ilícita No direito brasileiro a inadmissibilidade da prova obtida por meios ilícitos foi positivada com a edição do art 5º LVI na Constitui ção Federal são inadmissíveis no processo as provas obtidas por meios ilícitos Ainda o art 157 do Código de Processo Penal prevê que são inadmissíveis as provas ilícitas assim entendidas as obtidas em viola ção a normas constitucionais e legais Ada Pellegrini Grinover conceitua o gênero da prova ilícita afir mando que a prova é ilegal toda vez que sua obtenção caracterize vio lação de normas legais ou de princípios gerais do ordenamento de natureza processual ou material GRINOVER 2001 p 133 As teorias que advogam a inadmissibilidade da prova ilícita o fa zem sob o fundamento de que o princípio da busca da verdade real encontra limites nos princípios constitucionais de proteção da pessoa humana e de que somente a vedação absoluta do ingresso no processo 64 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça da prova resultante de violação dos direitos fundamentais pode servir de obstáculo eficaz às práticas ilegais para sua obtenção GOMES FILHO 2010 p 396 A respeito da revista vexatória a partir dos tópicos analisados anteriormente reconheceuse a inadequação da medida de controle frente às normas constitucionais especificamente em razão ao des respeito dos princípios da legalidade da dignidade humana e da pro porcionalidade bem como a sistemática violação de direitos humanos promovida pelo Estado Desse modo não há como fugir à conclusão de que é ilegal o fla grante de crime de tráfico de drogas obtido mediante a prática da re vista corporal invasiva considerando que o controle estatal é realizado mediante a lesão aos princípios da legalidade da dignidade da pessoa humana e da proporcionalidade conforme já referido 4 Revista vexatória e o controle dos corpos da mu lheres O método de controle dos objetos que adentram os presídios deno minado revista vexatória foi apreciado nos parágrafos antecedentes tendo como referência o sistema constitucional de valores Sob tal perspectiva reconheceuse a inconstitucionalidade da prática da re vista vexatória cujos métodos violam os princípios da intimidade e da dignidade da pessoa humana da forma mais cruel e degradante ao submeter os parentes dos presos ao constrangimento de permanece rem nus e ao serem submetidos à inspeção do interior dos seus órgãos genitais Em sendo assim cabe perguntar como sob as luzes de um Estado Democrático de Direito essa prática resiste ao tempo e a inúmeras decisões que a declararam ilegal e inconstitucional A insistência na utilização desse procedimento cruel e degradan te não reside na garantia da segurança pública Embora mulheres e homens crianças e idosos sejam submetidos à revista vexatória ela é rigorosamente aplicada a mulheres Daí porque não foi exterminada Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 65 dos portões dos presídios Ela é medida de controle dos corpos prá tica tão antiga quanto cruel voltada a mulheres que ousam manter vínculos de afeto decorrentes de parentesco ou amizade com pessoas privadas de liberdade A noção de que o corpo da mulher carrega o mal não é uma no vidade e remonta a um passado distante António Manuel Hespanha na obra Imbecillitas descreve que a ideia de ordem é central na ima ginação política e jurídica moderna Nesse contexto o relato da Cria ção descrito no Gênesis desempenhou um papel estruturante Deus dá ordem às coisas separando as trevas da luz o dia da noite as águas das terras o homem da mulher Esse relato fundamenta as hierarquias sociais e a ideia de uma ordem objetiva e indisponível das coisas passa a dominar o sentido da vida e as representações do mundo Segundo Hespanha a ordem das coisas fundamenta as hierar quias sociais no Antigo Regime e em sendo um fato dado e não cons truído histórica e socialmente é indiscutível e imutável Ou seja no Antigo Regime a cada ser humano cabia um lugar na ordem das coi sas lugar este a partir do qual se media ou determinava o status das pessoas seus direitos e deveres À mulher cabia um lugar especial na ordem das coisas o lugar da inferioridade e da indignidade Esclarece o autor que a indignidade da mulher HESPANHA 2010 p 105 estava fundada entre outros no seu papel no pecado original de onde se origina a ideia da impureza do seu corpo sempre marcado por essa mancha original a qual deve sempre ser lembrada e assumida Porque carrega o pecado original seu corpo deveria ser sempre vigiado O relato da criação da mulher e seu papel na tentação de Adão têm efeitos devastadores muito duradouros sobre a imagem da indig nidade da mulher idem p 107 É nessa mesma linha de compreen são que foi editada a obra Malleus Maleficarum de Heinrich Kramer e James Sprenger obra que serviu de guia para reconhecer capturar e punir bruxas pela Inquisição Na obra os inquisidores partem da premissa de que as mulheres por serem mais perversas e traiçoeiras por possuírem mais malícia e lascívia e por serem mais fracas na mente e no corpo seriam mais propensas a se entregarem aos atos de bruxaria 66 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Houve uma falha na formação da primeira mulher por ter ela sido criada a partir de uma costela recurva uma costela do pei to cuja curvatura é por assim dizer contrária à retidão do ho mem e em virtude dessa falha a mulher é animal imper feito sempre decepciona e mente HEINRICH 2016 p124 Para os inquisidores o corpo das mulheres porque mais ligadas à sexualidade seria utilizado com muita facilidade como instrumento do Demônio que busca seu domínio através do controle e da mani pulação dos atos sexuais Como Eva tentou Adão através da sua se xualidade seria esse o ponto mais vulnerável do homem O poder das feiticeiras proveria assim da cópula com o Demônio O corpo dessas mulheres perversas estaria impregnados portanto do sêmen do mal Dessa forma o pecado da mulher é o pecado contra Deus e por isso somente pode ser redimido pela tortura e a morte A causa de todos os males do mundo residiria portanto no cor po da mulher aquele que originalmente é o culpado pela expulsão do homem do paraíso Sendo um corpo impuro não surpreende que uma das precauções que segundo os Inquisidores deveria ser utiliza da pelos juízes para identificar uma bruxa seria a procura do pecado no corpo da mulher mediante tortura através de inspeções nos seus órgãos genitais A terceira precaução a ser observada nesta décima etapa é que os pelos e cabelos devem ser raspados de todo o seu corpo A razão para isso é a mesma porque se deve tirarlhes a roupa que já mencionamos pois para conservarem o poder do silên cio têm o hábito de esconder objetos supersticiosos nas roupas e nos cabelos até mesmo nas partes mais secretas do corpo cujo nome não nos atrevemos a mencionar HEINRICH 2016 p449 Embora tenha se passado mais de meio século desde que a obra Malleus Maleficarum tenha sido utilizada pela Inquisição para reco nhecer e punir as bruxas e feiticeiras a procura de objetos enfeitiçados escondidos nos corpos das mulheres embora seja uma prática medie val de tortura continua a ser utilizada pelo Estado desta feita para Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 67 localizar no corpo das mulheres o outro mal aquele que tem justifi cado a caça e o aprisionamento dos corpos dos indesejáveis do refugo humano excessivo e redundante BAUMAN 2005 p 12 os corpos daqueles que carregam as drogas o mal moderno As mulheres que carregam em seus corpos objetos ilícitos e proi bidos para serem entregues a parentes maridos e namorados na pri são os quais são em geral utilizados para pagamento de dívidas con traídas no presídio que são quitadas com drogas ou com a vida essas mulheres são as bruxas e feiticeiras do século XXI São mulheres portadoras do mal o que justifica que qualquer tipo de tortura ou procedimento ou seriam precauções para usar o termo mencionado no Malleus seja utilizado para a sua identifica ção e punição Afinal para combater o mal justificase lançar mão de qualquer meio disponível inclusive a vistoria de seus órgãos genitais para a erradicação daquilo que pode corromper o meio social A misoginia a compreensão de que a mulher é animal imperfeito porque oriunda de uma costela torta de Adão porque foi a responsá vel com a sua lascívia e malícia pela expulsão do homem do paraíso e não a proclamada segurança pública são os pilares que sustentam a manutenção e resistência da prática da revista vexatória no portão dos presídios brasileiros Assim não surpreende que o patriarcado tenha elegido o abuso institucionalizado do corpo da mulher para inflingir pena aos conde nados e sua família A revista vexatória não constitui um ato praticado com o propósito de garantir a segurança pública Tratase de medida estatal institucionalizada que cumpre uma função não declarada do direito penal promover e manter o controle dos corpos das mulheres prática tão antiga quanto cruel CONCLUSÃO A revista vexatória é uma inspeção prévia à entrada nos presídios que consiste no desnudamento do sujeito diante de terceiros com a ex posição da vagina e ânus sobre um espelho agachamentos podendo inclusive haver a introdução de objetos na genitália com o alegado 68 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça propósito de garantir a segurança pública e evitar a entrada de objetos ilícitos ou proibidos no interior do estabelecimento prisional A prática constitui evidentemente ato ilegal e abusivo que fere diversos direitos consagrados constitucionalmente entre eles o prin cípio da dignidade da pessoa humana a proibição de submeter alguém a tortura ou tratamento desumano ou degradante a inviolabilidade da intimidade da vida privada e da honra das pessoas e o princípio se gundo o qual a pena não passará da pessoa do condenado Além disso constitui prova ilícita donde decorre a ilegalidade do flagrante obtido mediante tal meio de prova A inspeção lesa ainda tratados internacionais de direitos huma nos a que o Estado Brasileiro se obrigou a cumprir entre eles o Pacto de San José da Costa Rica e a Convenção para Prevenir Punir e Erra dicar a Violência contra a Mulher Ademais tal prática já foi rechaçada tanto pela CIDH no caso XY vs Argentina no caso Penal Miguel Cas tro Castro vs Peru quanto pela Corte Europeia de Direitos Humanos no caso Lorsé e outros Vs Holanda A revista vexatória não atende ao princípio da proporcionalidade que deve nortear os atos de ingerência estatal na esfera jurídica dos sujeitos Não preenche portanto os requisitos de necessidade ade quação e proporcionalidade em sentido estrito Não é necessária porque há alternativas à revista vexatória me nos invasivas e que podem conduzir a um resultado satisfatório a utilização de equipamentos tais como detectores de metais aparelhos de raiox scanner corporal e outras tecnologias que respeitem a inte gridade física psicológica e moral do revistado Não é adequada porque não é por meio dos visitantes que en tra a maior parte dos objetos ilícitos encontrados em unidades prisio nais Um relatório apresentado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo aponta que 9633 dos celulares e 92 dos entorpecentes encontrados nas prisões paulistas entraram nas unidades por outros meios que não pelos visitantes Tampouco é razoável porque expõe a intimidade física e fere a dignidade humana dos visitantes em favor do cumprimento de uma promessa vazia e de conteúdo indetermina do jamais cumprida a segurança pública Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 69 A insistência na utilização deste procedimento cruel e degradan te não reside na garantia da segurança pública Embora mulheres e homens crianças e idosos sejam submetidos à revista vexatória ela é rigorosamente aplicada a mulheres Daí porque não foi exterminada dos portões dos presídios Ela é medida de controle dos corpos vol tada a mulheres que ousam manter vínculos de afeto decorrentes de parentesco ou amizade com pessoas privadas de liberdade Tratase de medida estatal institucionalizada que cumpre uma função não declarada do direito penal promover e manter o controle dos corpos das mulheres prática tão antiga quanto cruel REFERÊNCIAS BAUMAN Zygmunt Vidas desperdiçadas Tradução Carlos Alberto Medeiros Rio de Janeiro Zahar 2005 p 12 CÂMARA DOS DEPUTADOS Conferência nº 079906 01062006 Disponível em httpwww2camaralegbratividadelegislativacomissoesco missoespermanentescdhmdocumentosnotastaquigraficasnt01062006gpdf Acessado em 06052018 COMISSÃO NACIONAL DE JUSTIÇA Regras de Bangkok Disponível em httpwwwcnjjusbrfilesconteudoarquivo201603 a858777191da58180724ad5caafa6086pdf Acessado em 13052018 CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS Penal Miguel Castro Castro Vs Peru 2002 Disponível em httpwwwcortei dhorcrcfJurisprudencia2fichatecnicacfmnIdFicha197langeAcessado em 14052018 Caso do Presídio Miguel Castro Castro Vs Peru 2006 Disponível em httpwwwcnjjusbrfilesconteudoarquivo2016047ef9a6d 58703704d6c5e9a8a04cb09e9pdf Acessado em 14052018 EUROPEAN COURT OF HUMAN RIGHTS Caso Lorsé contra a Holanda 2003 Disponível em httpshudocechrcoeinteng22ite mid222200160916 22 Acessado em 14052018 70 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça GOMES FILHO Antonio Magalhães A inadmissibilidade das provas ilícitas no processo penal brasileiro In Revista Brasileira de Ciên cias Criminais N 85 2010 GRINOVER Ada Pellegrini As Nulidades no Processo Penal São Paulo Editora Revista dos Tribunais 2001 HEINRICH Kramer SPRENGER James O Martelo das feiticeiras tradução Paulo Fróes Rose Marie Muraro Carlos Byington 3ª ed Rio de Janeiro Bestbolso 2016 HESPANHA António Manuel Imbecillitas As bemaventuranças da inferioridade nas sociedades do Antigo Regime São Paulo Annablu me 2010 IBCCRIM Revista vexatória o estupro institucionalizado Boletim 267 Fev2015 Disponível em httpswwwibccrimorgbrboletim artigo5279Revistavexatoriaoestuproinstitucionalizado JUSTEN FILHO Marçal Curso de Direito Administrativo 9ª ed São Paulo Editora Revista dos Tribunais 2013 MELLO Celso Antônio Bandeira Curso de Direito Administrativo 32ª ed São Paulo Malheiros 2015 MINISTÉRIO DOS DIREITOS HUMANOS Programa Nacional de Direitos Humanos Disponível em httpwwwmdhgovbrassuntosdirei toparatodosprogramaspdfsprogramanacionaldedireitoshumanospndh3 Acessado em 13052018 ONU Comissão de Direitos Humanos Relatório sobre a Tortura no Brasil 2001 Disponível em httpwwwconteudojuridicocombrpdf cj044773pdf Acessado em 06052018 Report of the Special Rapporteur on torture and other cruel inhuman or degrading treatment or punishment Manfred Nowak 2010 Disponível em httpwwwunivieacatbimtordateiengeor giaunsrt2010followuppdf Acessado em 06052018 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS Comissão Inte ramericana de Direitos Humanos Princípios e boas práticas para a proteção das pessoas privadas de liberdade nas Américas 2009 Dis ponível em httpwwwcidhoasorgpdf20filesPRINCIPIOS20 PORTpdf Acessado em 13052018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 71 PIRES Luis Manuel Fonseca Limitações Administrativas à Liberda de e à Propriedade ed Quartier Latin 1ª ed 2006 São Paulo Relatório Anual 1996 1996 Disponível em httpswwwcidh oasorgannualrep96portCaso11506htm Acessado em 14052018 SOUZA NETO Cláudio Pereira de SARMENTO Daniel Direito Constitucional teoria história e métodos de trabalho Belo Horizon te Fórum 2013 72 ENCARCERAMENTO E GÊNERO IMPACTOS DA POLÍTICA REPRESSIVA CONTRA AS DROGAS NO CHILE Alicia Alonso Merino29 1 Introdução Nas últimas décadas o número de pessoas privadas de liberdade em nível mundial não parou de crescer O total da população reclusa fe minina aumentou 50 desde o ano 2000 sendo que o equivalente masculino aumentou 18 O total das mulheres30 aumentou propor cionalmente mais que o total de homes em todos os continentes Ins titute for Criminal Policy Reseach 2017 O uso da prisão como resposta ao tráfico de drogas está afetando de forma seletiva as mulheres WOLA IDPC DeJusticia y CIM 2016 pág 3 No Chile a situação não é diferente Concretamente desde a entrada em vigor no ano 2005 da Lei no 20000 que sanciona o tráfico ilícito de estupefacientes e substancia psicotrópicas as cifras de mulheres privadas de liberdade se multiplicou De 4270 condenadas em 2005 passaram a 9579 o número de condenadas em 2013 MInis terio de Justicia de Chile 2014 O presente artigo pretende realizar uma aproximação ao impacto de gênero da política proibicionista e repressiva da chamada guerra 29 Advogada pela Universidade de Salamanca Espanha especialista em gêne ro direitos humanos e sistema penitenciário Doutoranda pela Universidade de Buenos AiresUBA Argentina 30 O termo mulheres será usado referindose à categoria genérica formada por pessoas que estão reclusas em cárceres de mulheres sejam mulheres heterosse xuais lésbicas bissexuais e pessoas transgênero Excluímos dos dados as mulhe res transexuais que cumprem pena em cárceres de homens porque os dados que Gendarmería de Chile oferece não trazem esta informação Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 73 contra as drogas Seu objetivo é analisar os efeitos e consequências dessa política com relação ao encarceramento das mulheres no Chile Analisaremos desde o nível macro até os níveis micro mais con cretos Em primeiro lugar abordaremos de que forma o patriarcado e o androcentrismo afetam o Direito Penal instrumento preferencial que se utiliza na guerra contra as drogas Na sequência já adentrando ao próprio Direito Penal vamos mostrar como funciona a seletividade penal no caso das mulheres e dos delitos de tráfico de drogas Aborda remos algumas figuras jurídicas concretas tais como a prisão preven tiva e a limitação do direito de defesa Vamos enfocar que consequên cias a falta de perspectiva de gênero tem no uso e abuso dessas medidas Sobre a execução da pena nos centraremos em figuras como o livramento condicional e as saídas temporárias Se excluem especi ficamente as questões relativas aos delitos ligados ao consumo proble mático de drogas 2 O patriarcado no Direito Penal Abordar a relação entre as mulheres e o Direito Penal não é um tema fácil Segundo Pitch na verdade é uma relação controvertida e difí cil Pitch 2009 pág 117 Para Mackinnon o Direito vê e trata as mulheres como os homens vêm e tratam as mulheres Mackinnon 1983 pág 644 Se pode dizer que o Direito é um dos sistemas de disciplinamento mais poderosos cuja força simbólica é baseada na legitimidade dos seus postulados normativos Estes por sua vez são determinados a partir de uma sociedade patriarcal com um olhar an dro e etnocêntrico O Direito é gerado aplicado e tutelado a partir de pessoas deter minadas que têm crenças atitudes valores e conhecimentos concre tos o que necessariamente terá um impacto no alcance e significado que se atribui na sociedade às normas legais Fries Matus 2000 pág 32 O Direito Penal ao construirse a partir de um olhar androcên trico elabora uma imagem das mulheres delinquentes não só como infratoras da lei mas também refletindo as estruturas patriarcais e os 74 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça estereótipos que existem a respeito dos comportamentos referidos a cada gênero Larrauri 2008 pág 23 Para Zaffaroni o poder do sistema penal não é inofensivo para a mulher ao contrário precisamente a sua hierarquia o seu controle punitivo e vigilante é maior sobre elas que sobre os homens parti cularmente caso se perceba como um poder que ajuda a consolidar as formas de controle social mais ou menos informais Zaffaroni E 1992 pág 5 Nesse sentido também se expressa Andrade ao considerar que existe um continuum e uma interação entre o controle social infor mal que exercem as relações familiares trabalhistas profissionais ou sociais e o controle formal exercido pelo sistema penal O sistema de justiça penal funciona como um mecanismo público e integrado ao controle informal dirigido às mulheres que reforça o controle patriar cal ao criminalizálas em situações especificas Andrade 2007 pág 66 Por outro lado é preciso também ter em conta que as decisões que os juízes tomam em matéria penal tem consequências importantes para a vida das pessoas envolvidas As concepções culturais distorcem a suposta imparcialidade do juiz ou da juíza e tem como consequência situações de discriminação contra as mulheres Fries Matus 2000 pág 52 De tal maneira que os conteúdos que um juiz ou juíza atribui a uma norma estejam sujeitos a uma interpretação que pode ou não reproduzir uma cultura sexista Fries Matus 2000 pág 14 Em contradição com seus princípios declarados de igualdade e defesa do interesse social o funcionamento do sistema penal se revela notoriamente seletivo não apenas no recrutamento da sua clientela mas também na proteção de certos interesses jurídicos Ou seja o sis tema penal é um sistema de Direito desigual que exerce uma função de produção e reprodução da desigualdade social e de gênero Cam pos 2002 pág 521 O Direito Penal portanto não é uma ferramenta neutra mas cria e reproduz relações sociais de dominação não apenas patriarcais Bo delon 2009 pág 110 O primeiro passo para erradicar esta discrimi nação é ter em conta justamente isso sua falta de neutralidade Nem a norma nem a sua aplicação ou interpretação são neutras Questionar Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 75 a aparente neutralidade a partir da hermenêutica da suspeita Puleo 2013 é um primeiro passo para poder avaliar o impacto de gênero na perseguição dos delitos relativos às drogas ilegalizadas Vamos anali sar em primeiro lugar como o Direito Penal produz um recrutamento seletivo para as mulheres 3 Criminalização das mulheres e seletividade penal nos delitos relacionados com as drogas No Chile os delitos relacionados com a elaboração fabricação trans formação preparação extração distribuição transporte comerciali zação posse e obtenção de drogas que causem efeitos tóxicos ou danos consideráveis à saúde sem a devida autorização se encontram ampa rados pela Lei no 20000 do ano 2005 As sanções para as condutas que a lei estabelece como ilícitas vão desde a obrigação de assistir a programas de reabilitação ou ativida des em benefício da comunidade imposição de multas até penas de privação de liberdade que podem chegar a 20 anos de prisão Corpo ración Humanas 2017 pág 8 Do total da população penal presa no Chile as mulheres repre sentam 8 incluindo condenadas e indiciadas das quais 55 estão presas por delitos relacionados com a Lei 20000 enquanto 20 dos homens estão presos por este motivo Gendarmería de Chile 2017 À luz destes dados podemos observar que as mulheres são as mais afetadas pelas políticas repressiva às drogas posto que ainda que re presentem uma porcentagem pequena do total da população carce rária acumulam grande parte das condenações por tráfico de drogas ilegalizadas o que as afeta de forma significativa Puente Alba 2012 págs 100110 A dureza com que o sistema penal reprime o tráfico de drogas constitui um fenômeno geralmente aceito Observase que a faixa de cumprimento de pena mais habitual é de 3 a 10 anos para 54 das mulheres apesar de 46 delas estarem classificadas pelas autoridades penitenciarias como tendo um baixo compromisso criminal Gen darmería de Chile 2017 Essa situação nos revela uma desproporção 76 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça punitiva entre o tipo de condenação e o perfil criminológico das mu lheres privadas de liberdade As explicações do porquê as mulheres se implicam nesses delitos são muito diversas Algumas informam que se implicaram por vonta de própria sendo conscientes dos riscos que corriam Outras referem se a coerções feitas pelos companheiros ou por algum familiar o que é facilitado pela construção de vínculos sentimentais de dependência que tem a ver com os estereótipos de gênero e com as relações desi guais de poder que existem entre os homens e as mulheres WOLA IDPC DeJusticia y CIM 2016 pág 8 Outros relatos indicam que elas assumiram o crime para evitar a prisão de algum familiar questão também atravessada pelos mandatos de gênero e de cuidados Tam bém há relatos de terem sido enganadas de não ter conhecimento do que estavam fazendo ou de não serem conscientes à época das con sequências reais das suas ações Estes delitos muitas vezes têm a ver com a exclusão social a po breza e a violência de gênero A maioria das mulheres tem educação formal muito baixa ou nenhuma vive em condições de pobreza e são responsáveis pelo cuidado dos seus dependentes sejam estes fi lhos e filhas jovens pessoas idosas ou com algum tipo de incapacida de WOLA IDPC DeJusticia y CIM 2016 pág 8 Para Anthony esta situação poderia definirse como estado de necessidade Anthony Garcia 2002 pág 511 e reforça a ideia de vul nerabilidade Destacase o fato de que há um alto número de mulheres chefes de família o que vem aumentando na América Latina O fato de ser responsáveis economicamente por outras pessoas as leva a re correr a estes negócios que embora sejam ilegais são mais rentáveis Tendo em conta que as mulheres têm menos oportunidades trabalhos mais precários menores salários e que muitas vezes permanecem em suas casas nas chamadas tarefas do lar faz com que sejam elas que enfrentem as invasões da política em busca de drogas o que as coloca em uma situação de maior risco Anthony Garcia 2002 pág 512 As mulheres que permanecem em suas casas reproduzindo os mandatos de gênero são um objetivo fácil para flagrantes e capturas o que ajuda a incrementar as estatísticas de apreensão dos policiais Gia comello reforça esta ideia ao indicar que as mulheres também operam em lugares com maior exposição introduzindo drogas escondidas no Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 77 corpo nas prisões ou nos postos fronteiriços delitos passiveis de fla grante que não requerem níveis de investigação policial muito sofisti cados Giacomello 2017 pág 360 É o que Zaffaroni denomina criminalização secundaria a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas Como não é impossível perseguir todos os delitos que abrange o Código Penal as agências executoras polícias exercem um poder seletivo sobre as pessoas e criminalizam o que está mais a mão Aqui os preconceitos sexistas racistas classistas e xenófobos vão configurando uma fisionomia das pessoas que delinquem no imaginário coletivo que se vê reforçado pelas agências de comunicação Zaffaroni Alagia Slokar 2015 pág 12 A álgebra do delito acaba reforçando os processos de criminali zação mais suspeita mais detenções mais encarceramento Martin Palomo Miranda Lopez Vega Solis 2005 pág 24 Algumas autoras vêm também nesta perseguição especifica às mulheres com iniciativa e que buscam autonomia econômica uma espécie de castigo Como expõe Holgado Fernández tratase da pena lização de iniciativas econômicas e de mobilidade das mulheres mais autônomas Holgado Fernandez 2004 pág 16 Outra questão a levar em conta é que estas mulheres não fazem parte da direção das organizações do tráfico nem se encontram entre as líderes destes grupos Ainda que façam parte dessas organizações ocupam o seu último e mais precário escalão cuja mão de obra é alta mente descartável e substituível com nenhuma incidência na cadeia de comercialização Quando uma mulher é detida no dia seguinte há outra realizando o seu trabalho Sobre isso Maqueda Abreu indica que boa parte das atividades delitivas que protagonizam as mulheres são de natureza subalterna e se situam no escalão inferior das tare fas que se distribuem na hierarquia criminal Maqueda Abreu 2014 pág 247 No Chile os dados confirmam esta realidade de exclusão social pobreza e violência de gênero entre as mulheres presas de cada qua tro três não completaram sua educação escolar inclusive 8 não sabe ler nem escrever e somente 5 tem educação superior Gendarme ría de Chile 2017 Entre as mulheres condenadas 62 relata algum tipo de maltrato durante a infância e 70 reconhece que foi agredida por seu companheiro Outro dado é que 84 declara ser mãe e 20 78 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça tem em média três filhos e filhas menores de 18 anos Ademais 17 declara ter vivido em situação de rua quando menores de idade Insti tuto de Sociología Universidad Católica ISUC 2017 Por outro lado existem alguns grupos entre as mulheres mais propensos a ser objeto de discriminação na aplicação da lei de drogas como é o caso das estrangeiras indígenas afrodescendentes e pessoas com orientação sexual identidade ou expressão de gênero diversas WOLA IDPC DeJusticia y CIM 2016 pág 10 No caso chileno as estrangeiras privadas de liberdade são mais propensas a esta criminalização pois representam 17 do total de mulheres encarceradas enquanto a população total de estrangeiros no Chile se situa em torno a 3 o que demonstra uma clara sobre representação carcerária das mulheres migrantes Entre as migrantes presas em 94 dos casos devese a crimes relacionados com drogas sendo bolivianas peruanas e colombianas as nacionalidades mais fre quentes A zona norte do país concentra a maior quantidade de mu lheres estrangeiras chegando a alcançar a 37 das mulheres privadas de liberdade Gendarmería de Chile 2017 A fronteira norte do país é amplamente reconhecida por ser um dos lugares de entrada de dro gas ilegais no Chile e por isso 1 entre 3 mulheres privadas de liberda de no norte do país são estrangeiras Tendo em conta a seletividade penal sexista da política repressi va contra as drogas vemos a seguir como esta se manifesta em duas figuras jurídicas a medida cautelar de prisão preventiva e o direito de defesa 4 A seletividade do Direito Penal na prática 41 A prisão preventiva Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos CIDH o uso da prisão preventiva se converteu em um problema crônico na região se constituindo em um dos sinais mais evidentes do fracasso da admi nistração da justiça Comisión Interamericana de Derechos Huma nos 2017 pág 11 No Relatório sobre medidas para reduzir o uso da prisão preventiva a CIDH lembra aos Estados que a privação de liber dade de pessoas processadas só pode ser fundamentada na certeza de Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 79 que a pessoa processada impedirá o desenvolvimento do processo e eludirá da ação da justiça As medidas punitivas estatais que buscam castigar as condutas relacionadas com as drogas têm implicado um aumento notável de pessoas privadas de liberdade por atos ilegais relacionados com esta questão Com um olhar desagregado por gênero encontramos que a par tir da promulgação da Lei no 20000 já referida houve um aumento rápido e constante do uso da prisão preventiva para pessoas indicia das Em 31 de agosto de 2017 24 do indiciamento de mulheres se deu por infrações à Lei de Drogas sendo 12 por furto e 4 por roubo Gendarmería de Chile 2017 Do total de mulheres privadas de liberdade 46 estão indiciadas são mulheres inocentes à espera de decisão judicial entre os homens 31 são indiciados Destas 64 são por delitos relativos â Lei de Drogas Portanto quase 2 de cada 3 mulheres que estão privadas de liberdade à espera de julgamento o estão por conta da Lei de Drogas o que afeta significativamente a esta população A literatura especializada e os organismos internacionais já co mentaram sobre o impacto diferenciado que a aplicação da pena de privação de liberdade implica sobre as mulheres reconhecendo as vulnerações particulares de seus direitos derivadas de sua condição de gênero O encarceramento tem consequências devastadoras não só para elas mas também para suas famílias e comunidades em particular quando são mães e tem pessoas dependentes sob seus cuidados Con sequências que se estendem muito além do seu período de reclusão WOLA IDPC DeJusticia y CIM 2016 pág 6 devido a que habi tualmente se rompem os laços de proteção que existiam e as pessoas que estão sob seu cuidado ficam expostas a situações de desamparo vulnerabilidade pobreza e abandono Comisión Interamericana de Derechos Humanos 2017 pág 138 Puente Alba 2012 pág 112 O encarceramento de mulheres pode paradoxalmente aumentar as probabilidades de que as pessoas sob seus cuidados consumam drogas ou se vinculem às redes de tráfico WOLA IDPC DeJusticia y CIM 2016 pág 3 80 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Como consequências do encarceramento se reforçam as causas pelas quais as mulheres tiveram que delinquir pois sua passagem pela prisão as empobrece e agrava ainda mais as circunstancias pessoais e sociais que fizeram com que ser envolvessem no tráfico de drogas Perpetuando assim um círculo vicioso ou espiral entre o empobre cimento e a transgressão penal que faz com que atualmente 47 das mulheres condenadas sejam reincidentes Gendarmería de Chile 2017 O Subcomitê para a Prevenção da Tortura no relatório de sua visita ao Chile a única até o momento também mostrou preocu pação Pelas consequências da prisão preventiva que afeta às mulhe res de forma desproporcionada já que tem um grave impacto psicológico para as mães com filhos sob sua responsabilidade em particular se elas são as únicas que se encarregam deles r 84 No Relatório se faz um chamado ao Estado do Chile para que considerasse o princípio de interesse superior do menor e as Regras de Bangkok sobre as medidas alternativas à prisão preventiva para as mulheres r 85 Também se reconhece os efeitos discriminatórios que tem a aplicação da Lei no 20000 para as mulheres r 102 Subcomité para la Prevención de la Tortura 2016 pág 14 Para a aplicação da prisão preventiva se deveria levar em conta fatores como as condições de pobreza e exclusão social a maternida de e o papel de cuidado com relação a outras pessoas dependentes a chefia do lar o analfabetismo o nível de educação a pouca formação profissional a migração a violência de gênero e as doenças físicas ou mentais que incidiram na execução dos delitos WOLA IDPC De Justicia y CIM 2016 pág 19 Os sistemas de justiça deveriam con siderar as circunstancias atenuantes no caso de mulheres grávidas ou responsáveis por outras pessoas A Assembleia Geral das Nações Unidas estimula a que se vá além questionandose sobre as causas que levam as mulheres a entrar em conflito com a lei penal Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 81 Os Estados devem deixar de pegar atalhos passando por cima das causas estruturais que contribuem ao encarceramento da mulher e buscar as causas e os fatores de risco relacionados com a delinquência e a vitimização por meio de políticas sociais econômicas sanitárias educativas e judiciais Asam blea General de Naciones Unidas 2013 pág p 84 Mas a realidade como vimos está bem distante dessas recomen dações Como veremos a seguir os direitos das mulheres privadas de liberdade nos casos relacionados com a Lei de drogas também so frem outras limitações 42 O direito à defesa O direito à defesa está previsto na Constituição Política chilena art 193 e em tratados internacionais como a Convenção Americana de Direitos Humanos art 8 e 25 e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos art 21 e 141 A Lei no 20000 já citada no seu artigo 61 restringe o direito de defesa ao estabelecer que Os advogados que atuem como funcionários ou empregados contratados em todas as suas formas nos serviços da Admi nistração do Estado ou em instituições ou serviços descentra lizados territorial ou funcionalmente não poderão patrocinar nem atuar como responsáveis ou mandatários de acusados de crimes simples delitos ou faltas contempladas nesta lei Se tratarse de atuações relativas a crimes ou simples delitos a infração desta proibição se sancionará administrativamente com a destituição do cargo ou com o término do contrato Se tratarse de faltas será considerado infração grave das obriga ções como funcionário podendo disporse de sua destituição ou término do contrato 82 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça São excluídos desta proibição os advogados da Defensoria Pena Pública e da Corporação de Assistência Judicial ou pessoas estagian do nessas instituições Esta incompatibilidade pressupõe uma discriminação ao direito de defesa para as pessoas indiciadas ou condenadas por estes delitos um dos pilares fundamentais do processo penal Sua vulneração aten ta contra o princípio da inocência e aprofunda a desigualdade estru tural que atinge a todas as pessoas indiciadas ou condenadas por estes delitos já que lhes limita o acesso a uma defesa especializada Corpo ración Humanas 2017 pág 14 Se levarmos em conta os dados segundo os quais as mulheres es tão maioritariamente indiciadas e condenadas por esta Lei podemos concluir que esta restrição afeta de forma significativa a um grande número de mulheres privadas de liberdade Outras figuras jurídicas também são afetadas por esta lei É o caso do livramento condicional e das saídas temporárias como veremos a seguir 43 O livramento condicional e as saídas temporárias De acordo com a legislação chilena o livramento condicional se estabelece como Uma recompensa para pessoas condenadas a uma pena pri vativa de liberdade de mais de um ano que por sua conduta e comportamento inatacáveis e pelo seu interesse em instruir se e por seu empenho em adquirir uma profissão tenham demonstrado que se corrigiram e se reabilitaram para a vida social Tratase portanto de uma forma de seguir cumprindo a condenação em liberdade sob determinadas condições art 1 e 2 do Regulamento da Liberdade Condicional Esta instituição está regulada pelo Decreto Lei No 321 sobre Li vramento Condicional e pelo Decreto Supremo No 2442 sobre o Re gulamento da Lei do Livramento Condicional Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 83 O artigo 4 do Regulamento estabelece os requisitos para a obten ção do livramento condicional assinalando a conduta inatacável a assistência com regularidade e proveitosa à escola ter aprendido uma profissão e também um requisito temporal geral de ter cumprido pelo menos metade da pena Este requisito temporal está estabelecido para os delitos comuns e há uma série de exceções Para estas exceções en tre as quais está a elaboração ou tráfico de estupefacientes junto com outros delitos como parricídio homicídio qualificado roubo com ho micídio estupro ou sodomia com morte e infanticídio se estabelece que somente se pode ter acesso a esta instituição quando se tiverem cumprido dois terços da pena Como vimos o delito mais comum entre as mulheres condena das a penas privativas de liberdade no Chile corresponde àqueles ti pificados como drogas o que significa que para quase metade das mulheres cumprindo pena não será possível solicitar o livramento condicional quando tiverem cumprido a metade da pena como ocor re nos crimes comuns Só poderão solicitar esse benefício após de corrido o cumprimento de dois terços da pena apesar do seu baixo compromisso com a criminalidade como vimos anteriormente uma vez que o seu delito será considerado grave O requisito da temporalidade para o livramento condicional sem levar em conta o enfoque de gênero faz com que as mais afetadas por esta exceção sejam as mulheres privadas de liberdade No ordenamento jurídico chileno se enquadram dentro das ativi dades e ações para reinserção social regulandose no Regulamento de Estabelecimentos Penitenciários aprovado pelo Decreto Supremo No 518 de 1998 art 96 e seguintes As saídas temporárias também estão vinculadas a este requisito de temporalidade Tratase de Atividades de reinserção destinadas às pessoas que cumprem condenações privativas de liberdade que proporcionam gra dualmente maiores espaços de liberdade a quem se lhes outor ga ao permitirse que saiam do recinto penitenciário em ho rários previamente definidos prévio cumprimento de alguns requisitos especiais art 96 84 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça As para saídas temporárias além de outros requisitos como o Relatório favorável do Conselho Técnico e 3 bimestres de comporta mento muito bom exigem uma temporalidade vinculada à do livra mento condicional A saída dominical se outorgará a partir dos doze meses anteriores ao dia em que cumpram o tempo mínimo para optar pelo livramento condicional art 103 A saída de fins de semana se outorga a pes soas condenadas que durante três meses contínuos tenham cumprido plenamente todos os requisitos que se exigem para a saída dominical art 104 A saída controlada ao meio livre se outorga a partir dos seis meses anteriores ao dia em que cumpram o tempo mínimo para optar pelo livramento condicional art 105 Porém para solicitarse acesso a esses benefícios no caso de delitos vinculados à Lei de drogas será necessário que tenha sido cumprido dois terços da pena e não a meta de como nos delitos comuns No caso das mulheres estrangeiras a situação se vê agravada por não residirem ou ter menos vínculos no país onde são detidas o que faz com que seja muito mais difícil mostrar que têm vínculos fami liares sociais e institucionais requisitos também necessários para a concessão das saídas temporárias art 110 d Ao não poder cumprir com esses requisitos se sentem discriminadas com relação às outras mulheres Todas estas dificuldades no acesso aos benefícios vinculadas à Lei 20000 fazem com que somente 8 das mulheres presas estejam fazendo uso de algum benefício e que 47 delas não tenham direito a acessar esses benefícios Gendarmería de Chile 2017 5 Conclusões Nos últimos anos se produziu um aumento no número de mulheres encarceradas vinculado à política proibicionista e de perseguição aos delitos de tráfico de drogas ilegalizadas No entanto como as mulheres são uma minoria dentro do siste ma penal e penitenciário não obtiveram a atenção especifica que sua Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 85 situação requeria É necessário desvelar como certas medidas como a política repressiva na perseguição dos delitos referentes às drogas ilegalizadas têm impactos diferenciados sobre elas A seletividade punitiva se volta para as mulheres que atuam nas cadeias do narcotráfico Por conta da sua maior exclusão e empobreci mento elas se tornam mais expostas à ação policial O papel que cum prem por conta dos mandatos de gênero e como cuidadoras também faz com que sejam mais facilmente detidas em flagrante Sua discri minação é ainda mais grave devido a fatores como a nacionalidade Uma aplicação aparentemente neutra da norma jurídica demons tra discriminações práticas que afetam às mulheres já que o direito não está isento do viés de gênero Vemos que o que ocorre no Chile não é diferente do restante da América Latina Como a maioria das mulheres estão privadas de li berdade devido a delitos vinculados com a lei de drogas sofrem de forma mais acentuada as consequências das políticas repressivas a este tipo de delito Assim elas têm limitado o acesso ao direito de defesa mesmo quando apenas indiciadas estarão mais sujeitas à declaração da prisão preventiva no caso das mulheres condenadas terão menor acesso ao livramento condicional e às saídas temporárias As consequências do encarceramento vão muito além do perío do na prisão pois o próprio encarceramento empobrece e gera maior exclusão social No caso das mulheres que são mães e cuidadoras as consequências sociais se multiplicam ao afetar a todas as pessoas que são cuidadas e à comunidade onde vivem As recomendações interna cionais são claras nos casos de mães com filhos e filhas sob sua res ponsabilidade ou que tenham sido presas por delitos não violentos se deveria optar por medidas alternativas à pena de prisão Apesar de existir vários relatórios de organismos e organizações internacionais com propostas para os governos e operadores jurídi cos que incluem o impacto de gênero na perseguição aos delitos vin culados com as drogas ilegalizadas a verdade é que hoje em dia no Chile isto não está sendo considerado Acreditamos que estas reco mendações por si mesmas não acabarão com as causas desse encar ceramento massivo mas sim moderariam as consequências que esta política repressiva tem sobre as mulheres 86 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Haveria que questionarse o paradigma proibicionista para que as mulheres deixem de ser as que com sua prisão pagam a cota de encarceramento comprometida pelos países a nível internacional É preciso mudar o enfoque da política de drogas em direção aos direitos humanos à saúde pública e ao desenvolvimento Necessita mos opções e alternativas que levem em conta as consequências de sastrosas desta guerra Necessitamos avançar para a descriminalização e despenalização das condutas vinculadas com a produção tráfico e consumo de todas as drogas sua legalização e regulação o direito ao auto cultivo à promoção dos usos tradicionais de plantas que hoje são proibidas e o fomento a programas de redução de danos A seletividade penal a política de drogas proibicionista e repres siva junto com a falta de perspectiva de gênero acabaram por conver terse como indica ChesneyLind em uma guerra contra as mulheres REFERÊNCIAS Andrade V 2007 A soberania patriarcal o sistema de justiça cri minal no tratamento da violência sexual contra a mulher Revista de Direito Público17 5275 Anthony Garcia C 2002 Reflexiones sobre los procesos de crimina lidad y criminalización de las mujeres de América Latina implicadas en delitos relacionados con drogas En A Facio L Fries Género y Derecho págs 511516 Santiago LOM La Morada Bodelon E 2009 Feminismo y derecho mujeres que van más allá de lo jurídico En G Nicolas E Bodelon C Desafíos Ed Género y domincación críticas femnistas del derecho y el poder págs 95116 Barcelona Anthropos OSPDH Boiteux L 2015 Mujeres y encarcelamiento por delitos de drogas Colectivo de Estudios Drogas y Derecho CEDD Campos C 2002 Criminología feminista un discurso Imposib le En A Facio L Fries Género y derecho págs 517532 Santiago LOM La Morada Carlen P Septiembre de 2012 Womens imprisonment an intro duction to the Bangkok rules Critica Penal y Poder 148157 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 87 Centro de Estudios Legales y Sociales 2015 El impacto de las políti cas de drogas en los derechos humanos La experiencia del contienente americano Buenos Aires CELS ChesneyLind M 2003 Imprisoning Women The Unintended Vic tims of Mass Imprisonment En M ChesneyLind M Mauer Invis ible Punishment The Collateral Consequences of Mass Imprisonment New York New Press Comisión Interamericana de Derechos Humanos 2017 Informe so bre medidas dirigidas a reducir el uso de la prisión preventiva en las Américas CIDH Washington OAS Corporación Humanas 2017 Guía nacional de recomendaciones para la incorporación del enfoque de género en las políticas de dorgas en Chile SantiagoChile Humanas Drug Policy Alliance 2016 Mujeres prisión y guerra contra las dro gas New York Drug Policy Alliance Facio A Fries L 1999 Género y Derecho Santiago Chile LOM La Morada Fries L Matus V 2000 La ley hace el delito Santiago Chile Lom La Morada Fusero Mariano 2016 Por qué nadie grita Opinión en Portal de noticias httpwww24bairescomopinion48569porquenadiegri ta consultado el 24 de enero 2018 1702 Giacomello C 2017 Mujeres privadas de libertad una perspectiva sobre derechos y género en la ejecución penal En J Di Corleto Gé nero y justicia penal págs 349 370 Buenos Aires Ediciones Didot Gendarmería de Chile 2017 Informe de caracterización de la pobla ción femenina en el subsistema cerrado y abierto Unidad de estudios Santiago de Chile Genchi Holgado Fernandez I 2004 Les dones construim poder Cap a un procés dempoderamente per la defensa dels sesu drets entre les dones treballadores del sexe a Cataluya Barcelona Institut Catalá de la Dona Institute for Criminal Policy Research 2016 World Prison Popula tion List London University of London 88 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Instituto de Sociología Universidad Católica ISUC 2017 Estudio de reinserción desistimiento y reincidencia en mujeres privadas de li bertad en Chile Fundación San Carlos de Maipo y Fundación Colun ga Santiago ISUC Karam M L janabr de 2013 Proibição às drogas e violação a direi tos fundamentais Revista brasileira de estudos constitucionais RBEC 725 169189 Larrauri E 2008 Mujeres y Sistema Penal Violencia Doméstica Buenos Aires Argentina Euroeditores Mackinnon C 1983 Feminism marxism method and State To wardd Feminist Jurisprudence Signs 84 644651 Maqueda Abreu M 2014 Razones y sinrazones para una criminolo gía feminista Madrid Dykinson SL Martin Palomo M Miranda Lopez M Vega Solis C 2005 De litos y fronteras Mujeres extranjeras en prisión Instituto de Investiga ciones Feministas Universidad Complutense de Madrid ed Madrid Editorial Complutense Ministerio de Justicia de Chile 2014 Programa de Género en Gen dramería de Chile Santiago de Chile MINJUS Pitch T 2009 Justicia penal y libertad femenina En G Nicolas E Bodelon OOSPDH Ed Género y dominación Críticas feministas del derecho y el poder Colección Desafíos ed págs 117126 Barce lona Anyhropos y OSPDH Puente Alba L 2012 Perspectivas de género en las condenas por tráfico de drogas Oñati Sociolegal series on line 26 97121 Puleo A 2013 El concepto de género como hemenéutica de la sos pecha de la biología a la filosofía moral y política Arbor 189763 a070 WOLA IDPC DeJusticia y CIM 2016 Mujeres políticas de drogas y encarcelamiento Una guía para la reforma de políticas en América Latina y el Caribe Washington OEA Zaffaroni E 1992 Mujer y poder punitivo Lima CLADEM Zaffaroni E R Alagia A Slokar A 2015 Manual de Derecho Penal Parte General Segunda ed Buenos Aires Ediar 89 PRESAS QUE NÃO MENSTRUAM UMA VISÃO CRÍTICA SOBRE A APLICABILIDADE DAS DISPOSIÇÕES LEGAIS POSITIVADAS AO ENCARCERAMENTO TRANSGÊNERO FEMININO Larissa do Vale Teixeira31 Resumo Este artigo vislumbra realizar uma análise crítica quanto à aplicabilidade dos aparatos jurídicosnormativos ao encarceramento feminino com o enfoque nas mulheres transexuais e travestis priva das de liberdade Apesar destas possuírem seus direitos fundamentais resguardados em dispositivos legais positivados específicos o Estado ainda se omite frente à essa conjuntura deixandoas à margem de sua proteção sujeitas a um âmbito prisional reprodutor de opressões es truturais em decorrência do não cumprimento das disposições vigen tes Isso permite que cada vez mais esses corpos sejam violentados em diversos aspectos e a eficácia do sistema jurídico seja questionada Palavraschave criminologia crítica sistema carcerário brasileiro encarceramento feminino mulheres transexuais travestis transgene ridades 31 Aluna de Graduação do 6º Período de Direito da Universidade Federal de La vras UFLA Brasil email larissavt6gmailcom 90 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1 INTRODUÇÃO Compreendendo o cárcere brasileiro a partir de uma concepção críti ca oriunda das análises de seu contexto histórico de formação visto que o saber da história nos condiciona a um conhecimento que nos permite orientarse no presente ZAFFARONI 200032 conseguimos analisálo à luz de uma perspectiva que atribui a esta instituição um caráter normalizador que objetiva a manutenção de um status quo so cial influenciado por preceitos de cunho burguês e hegemônico além de exercer uma função repressiva e uniformizante BARATTA 2003 Essa manutenção nos remete aos resquícios da função do cár cere em meados do século XVI na Inglaterra com as denominadas Casas de Correção que retirava das ruas asos indesejáveis ou seja aquelases que não atendiam aos interesses das classes dominantes e explorava a mão de obra dasos internasos CORTINA 2015 Com isso observamos que a mesma lógica de aprisionamento é concebida através de uma concepção constituída de valores morais que se es tendem até hoje sendo eles de diversos aspectos desde os moralistas conservadores até os de cunho patriarcal sexista racista e heterocis normativo Tendo em vista que o sistema carcerário é um reflexo do macro espaço social essa instituição também propaga e naturaliza opressões que atingem grupos contramajoritários visto que adequou a heteros sexualidade e cisgeneridade como uma diretriz e norma excluindo do sistema as outras leituras de gênero e sexualidade BUTLER 2017 E é sobre outras configurações identitárias dissidentes dessa norma su pracitada que iremos abordar neste presente artigo Contemplaremos a população transgênero do Brasil com o recorte interseccional de gênero para mulheres transexuais e travestis privadas de liberdade e à margem do respaldo e proteção estatal sendo este em decorrência principalmente da omissão frente ao cumprimento das disposições legais positivadas garantidoras de seus direitos fundamentais Para tanto realizamos a compilação de documentos jurídicos viabilizadores da análise crítica da maneira como o Estado parcial mente assegura as garantias presentes na Constituição e seus direitos 32 ZAFFARONI Eugenio Raúl apud BATISTA Nilo Matrizes Ibéricas do Siste ma Penal Brasileiro Rio de Janeiro Freitas Bastos e ICC 2000 p 11 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 91 fundamentais Essa atuação se materializa e se consagra em leis pla nos governamentais princípios norteadores do direito penal brasilei ro assim como estudos doutrinários Entretanto apesar do aparato ju rídiconormativo acima citado a inaplicabilidade dos mesmos é clara quando observamos a real situação do cárcere em que se encontram mulheres transexuais e travestis vez que apesar de serem resguarda dos seus direitos nestes documentos a utilização do nome social ves timentas adequadas ao gênero tratamento hormonal realocação para celas e alas específicas são demandas ainda pouco atendidas ou até mesmo sequer observadas 2 TRANSGENERIDADES E A FORMAÇÃO IDENTITÁRIA NUMA SOCIEDADE BINÁRIA A formação identitária dasos sujeitasos sociais tende a ser lida sob uma perspectiva universalizante e naturalizada ou seja considera se legítima e tão somente válida a consonância entre cromossomos e posteriormente a expectativa de papeis sociais correlacionados a estes tornando globalizada as diferenças entre os sexos masculino homem e femininomulher A busca pela classificação identitária de uma pessoa se dá antes mesmo de seu nascimento quando ao médi cao ao analisar aquele corpo em desenvolvimento na pessoa gestante lhe atribui uma identidade pautada em suas configurações corporais sendo elas internas aparelhos reprodutores por exemplo ou externas pênisvagina As expectativas geradas a partir do atestado daquele sexo vigente se estenderão para toda uma vida subsequente e atribui rão características específicas de comportamentos para aquele sexo A interpelação é uma meninoa não apenas cria expectativas e gera suposições sobre o futuro daquele corpo que ganha vi sibilidade através dessa tecnologia seus efeitos são protéticos faz corpos O gênero portanto é o resultado de tecnologias so fisticadas que produzem corpossexuais As interpelações doa médicoa fazem parte de um projeto mais amplo que não ante cede ao gênero mas o produz A suposta descrição do sexo do feto funciona como um batismo que permite ao corpo adentrar na categoria humanidade Quando se diz é um menino não 92 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça se está descrevendo um menino mas criando um conjunto de expectativas para aquele corpo que será construído como me nino O ato da linguagem nessa perspectiva não é uma repre sentação da realidade mas uma interpretação construtora de significados BENTO p 550551 2011 A partir desse contexto e com a inserção do indivíduo no âmbito social a materialização de sua existência se dará através do cumpri mento das normas de gênero envoltas de construtos históricocul turais como podemos exemplificar em premissas recorrentes que afirmam que é natural a mulher ter que gostar de rosa e deter um personalidade mais docilizada e o homem gostar de azul e possuir uma postura agressiva e mais imponente Muito se pode perceber a respeito do interesse em se manter de terminadas normas inalteradas perante à sociedade principalmente ao que tange as diferenças sociais em relação ao sexo Pensar para além do determinismo biológico faz com que se emerja problemáticas ine rentes à essa diferenciação sendo portanto necessário trazer o gênero enquanto uma categoria de análise SCOTT 1990 Estudos feministas evidenciam a importância em pensarmos nas desigualdades que são desencadeadas por essa diferenciação decorrente do sexo produtora de feminilidades e masculinidades que agem no contexto político de forma a subjugar mulheres e o que esteja atrelado ao feminino Nessa perspectiva compreendese que o conceito de gênero e suas performatividades se constroem partindo do pressuposto da compreensão de um Estado de caráter colonizador visando uma re gulação social heterocisnormativo que dá legitimidade àquilo que esteja ao seu alcance de manipulação ou seja binarismos rígidos com características já prédeterminadas perpetuando relações de poder e consequentemente predominando o poder cismasculino às demais categorias VERGUEIRO 2016 Sendo essa premissa inclusive legi timada através de um discurso do biopoder de cunho essencialista e biologizante A cristalização das identidades de gênero de formas fixas ho menspênis e mulheresvagina contribui para a manutenção dos dis cursos discriminatórios para com os gêneros e configurações corporais Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 93 tidas como dissidentes sendo aqui trabalhado no presente trabalho as mulheres transexuais e travestis que tão somente com a existência de seus corpos são de forma política um rompimento com estruturas hegemônicas regulamentadoras Essa sociedade heterocisnormativa reproduz de forma incisiva a violência contra os corpos transgêneros perpassando a física psico lógica para desaguar até mesmo na própria patologização dessas iden tidades tratadas como abjetas a transexualidade está presente como transexualismo no CID 10 F640 do rol de patologias da Organização Mundial de Saúde OMS Todo esse contexto resulta na margina lização dessas pessoas dos espaços sociais sendo segregadas e estig matizadas dos âmbitos escolares hospitalares trabalhistas religiosos dentre outros evidenciando o ideário de que não se enquadram em um padrão social aceitável O cenário atual para existência da população transexual no Bra sil é de uma expectativa de vida em média de 35 anos metade da média nacional IBGE201633 no país que mais mata pessoas tran sexuais e travestis no mundo de acordo com a ONG Transgender Europe34 com relações empregatícias precarizadas sendo também em decorrência de uma defasagem educacional com a evasão ou po demos considerar enquanto expulsão escolar na infância motivada por discursos de ódio e discriminação sendo este o reflexo de uma sociedade higienista que tenta minar dos espaços estas sujeitas e suas possibilidades de progressão O preconceito estrutural que estas pessoas sofrem tanto no âmbi to privado quanto no público cerceiam suas escolhas de vida Ao que tange a esfera profissional mulheres transexuais e travestis primor dialmente estão inseridas ou podemos dizer condicionadas para prostituição por exemplo como sendo a única atividade laboral lícita a ser exercida por estas 33 Disponível em httpswww12senadolegbrnoticiasespeciaisespecialcida daniaexpectativadevidadetransexuaisede35anosmetadedamediana cionalexpectativadevidadetransexuaisede35anosmetadedamediana cional Acesso em 01 mar 2018 34 Em 1º lugar temos o Brasil em 2º o México e 3º Estados Unidos Vale ressaltar que o levantamento de casos são apenas aqueles que podem ser encontrados através da pesquisa na Internet e através da cooperação com organizações e ati vistas trans locais TGEU 2016 94 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça In a number of countries for many trans people their low lev el or lack of education and the perceived difference between a persons gender expression and data in personal documents also put legal employment and fair payment out of reach As a result they are exposed to poverty homelessness and inad equate access to healthcare including the inability to finance gender reassignment These factors all contribute to the large number of trans people among sex workers in several contexts TGEU 201635 Falase aqui de uma realidade majoritária dessas mulheres na sociedade Ao ingressarem na prostituição de acordo com uma pes quisa realizada pelo Nuh36 Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT da Universidade Federal de Minas Gerais de 73 mulheres transexuais e travestis na prostituição 82 sofreram violência por conta da população 60 pela polícia e 1367 por uso de drogas De 141 entrevistadas em outra ocasião relatando motivações que as levaram a ter problemas com a polícia 43 foram em decorrência da prostituição 352 por suas vestimentas 31 sem motivo algum 155 por rouboassalto 57 por uso de drogas Notamos portanto que as consequências de uma discriminação por gênero durante toda uma vida são capaz de alterar significamente o destino dessas mulhe res cerceando suas escolhas e deixandoas à mercê de uma violência também institucional quando abordamos inclusive a própria repres são policial para com elas Não há uma produção sistêmica quanto aos dados que demons tram as motivações de ingresso das mulheres travestis e transexuais ao cárcere principalmente pelo fato de a princípio serem tratadas como homens cisgênero cometendo delitos no entanto ao compreender o histórico de vivência o direcionamento social imposto à elas de um padrão a ser vivido e a própria atuação desmedida dos agentes da 35 Disponível em httptgeuorgfaqdec17 Acesso em 02 mar 2018 36 Esse relatório é resultado do projeto intitulado Direitos e violência na expe riência de travestis e transexuais na cidade de Belo Horizonte construção de um perfil social em diálogo com a população que teve como foco a população de travestis e mulheres transexuais que exercem trabalhos sexuais no município de Belo Horizonte e região metropolitana Pesquisa realizada entre os anos de 2011 a 2015 Disponível em httpwwwnuhufmgcombrgdeufmgindex phpprojetotrans Acesso em 02 mar 2018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 95 polícia perante suas existências podemos refletir quais causas e reais motivações norteiam essa marginalização que desagua no aprisiona mento dessas Toda essa exclusão social que estigmatiza determinadas identi dades e as segregam dos espaços nada mais é que o reflexo da própria clientela do sistema prisional brasileiro em que há uma seletividade daquelases marginalizadasos e de determinadas condutas a serem criminalizadas para manutenção de uma escala vertical de poder e o direcionamento destases para um espaço que asos privam de liber dade e consequentemente higienizam os ambientes públicos dasos indesejáveis aos interesses burgueses CORTINA 2015 As maiores chances de ser selecionado para fazer parte da população criminosa aparecem de fato concentradas nos níveis mais baixos da escala social subproletariado e grupos marginais A posição precária no mercado de trabalho deso cupação subocupação falta de qualificação profissional e de feitos de socialização familiar e escolar que são características dos indivíduos pertencentes aos níveis mais baixos e que na criminologia positivista e em boa parte da criminologia liberal contemporânea são indicadas como as causas da criminalidade revelam ser antes conotações sobre a base das quais o status de criminoso é atribuído BARATTA 2013 p165 3 FORMAÇÃO IDEOLÓGICA DO CÁRCERE E AS OPRES SÕES INSTITUCIONAIS As condições contemporâneas do encarceramento no Brasil e de um ideário punitivista carregam alguns resquícios provenientes da for mação histórica do cárcere Antes mesmo do surgimento do sistema prisional predominantemente na Europa eram recorrentes as puni ções em formato de suplício coerção e torturas físicas perdurando por longas datas durante o período monárquico até serem substituí das em meados do século XIX por uma época de sobriedade punitiva FOUCAULT 1987 Não havia qualquer intuito de preservação da dignidade daquelesas consideradasos delinquentes o que prevale cia era tão somente o poder do soberano sobre os demais sujeitos de 96 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça forma inquisitorial mitigando os próprios direitos fundamentais ine rentes à cada pessoa O poder simbólico exponencial na figura do soberano atribuía uma condição de submissão à população constituindo uma caracte rística que permeia até os dias atuais agora na figura do Estado diante dos cidadãos e das cidadãs como uma forma de perpetuar o poderio de uma elite e uma docilização dos corpos FOUCAULT 1987 tidos como subservientes Todo esse processo de sujeição que a princípio deveria possuir o intuito de conter a criminalidade para manutenção de uma paz social passa a ser um instrumento estratégico à fim de ga rantir a ordem de acordo com os preceitos de normatividade advindos das classes dominantes Ao analisarmos dados do sistema prisional sendo aqui abordado o encarceramento feminino podemos observar que a conjuntura na qual se insere as mulheres encarceradas nada mais é que o reflexo de uma sociedade capitalista governada por um poder hegemônico como já supracitado que em seu interior os indivíduos mais débeis são constrangidos a papéis de submissão e exploração BARATTA 2013 De acordo com dados levantados pela INFOPEN 201637 no Brasil temos um total de 42355 apenadas ocupando a posição de 4º lugar no mundo em relação ao encarceramento da população femi nina com apenas 27029 vagas em penitenciárias para as mesmas ocorrendo um déficit em 15326 Em relação à faixa etária 50 das mulheres privadas de liber dade estão entre 18 e 29 anos Em relação à corraça 62 é negra e 37 é branca Quanto à escolaridade 45 tem o Ensino Fundamental Incompleto Sobre os crimes tentadosconsumados 62 estão envol vidas no tráfico seguido de 11 no roubo e 9 no furto Ou seja ao fazer uma análise sobre esse conteúdo fornecido pelo Ministério Público podemos chegar à conclusão da face da mulher encarcerada brasileira negra jovem com baixa escolaridade e envolvida no tráfi co Confirmando assim a ideia de BARATTA acerca da população carcerária que seriam aquelesas provenientes dos estratos inferiores a minoria marginalizada 37 Disponível em httpdepengovbrDEPENdepensisdepeninfopenmulhe resinfopenmulheresarte070318pdf Acesso em 2 mar 2018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 97 E para além das características intrínsecas ao sistema carcerário há de se analisar a distribuição de estabelecimentos prisionais existen tes no país em decorrência de gênero Dos 1449 74 1067 são des tinados à homens 17 244 são mistos 7 107 são para mulheres e 2 31 não tem informação concluindo portanto já a concepção sexista enraizada no sistema carcerário como sendo um espaço idea lizado para homens Ao depararmos com esse quadro informacional conseguimos compreender a invisibilidade do aprisionamento feminino e como a concepção do gênero é latente quando examinamos a formação ins titucional e a quem se destina a face criminológica do sujeito em so ciedade Nesse viés a criminologia feminista vem se consolidando ao longo das décadas evidenciando os posicionamentos sexistas presen tes no âmbito criminológico e na atenção quanto à produção de dis cursos e lógicas androcêntricas que perpetuam o patriarcado em suas estruturas de poder punitivo Notoriamente percebemos que a opressão de gênero age de for ma incisiva nos corpos das mulheres em penitenciárias brasileiras Entre as precariedades das penitenciárias brasileiras des tacase o fato de as mulheres terem um tratamento similar ao dos homens sem acesso à saúde e cuidados com higiene O po der público parece ignorar que está lidando com mulheres e oferece um pacote padrão bastante similar ao masculino nos quais são ignoradas a menstruação a maternidade os cuidados específicos de saúde entre outras especificidades femininas QUEIROZ 201338 Mas será que ao pensarmos na categoria de mulher no âmbito prisional estamos pensando em um conceito único de mulher De fato sim Como já fora mencionado estamos sujeitasos à uma cons trução identitária universalizante através de uma diferença sexual natural dos gêneros BENTO 2017 Se ao presídios atualmente mal estabelecem os subsídios necessários para contemplar mulheres cis 38 Disponível em httpwwwihuunisinosbrentrevistas522685penitenciaria femininaeopacotepadraoentrevistaespecialcomnanaqueiroz Acesso em 2 mar 2018 98 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça gêneras e suas demandas específicas certamente não irão construir os espaços pautados em um discurso dessencializante empáticos aos corpos plurais e às auto percepções de identidade Portanto a partir dessa perspectiva podemos constatar a dupla invisibilidade dessas inseridas no contexto prisional seja pelo fato se rem mulheres e estarem em um espaço criado para homens seja por serem transgêneros ou travestis e possuírem sua identidade de gêne ro deslegitimada submetidas à diversas violências tanto fora quanto dentro do sistema prisional 4 O PROCESSO E A EXECUÇÃO PENAL NO ENCARCE RAMENTO TRANSFEMININO Através da perspectiva da criminologia feminista o caráter do siste ma prisional passa a ser visto enquanto um estabelecimento criado por homens e para homens sustentando uma lógica patriarcal com a reprodução sistemática de estereótipos de masculinidades Mesmo que houvessem significativas mudanças ao longo da história quanto a busca por resguardo de direitos fundamentais de sujeitasos inseridas os neste espaço essas alterações ainda sim estão acompanhadas de preceitos morais enraizados Quando falamos de características detentoras de valores que se atrelam à determinadas condutas podemos mencionar as alterações dos Sistemas Processuais e suas novas formas condizentes com níveis democráticos que o Estado à cada época detinha Do acusatório para o inquisitório até um possível transicionamento para o misto39 em meados do século XIX até os dias atuais notase que o modelo vigente atual almeja um processo penal mais justo atuando principalmente sob o princípio da garantia de jurisdicionalidade de forma a zelar pela eficácia dos dispositivos Constitucionais Mas é no direito proces sual penal que as manipulações do poder político são mais frequentes e destacadas até pela natureza da tensão existente poder de penar versus direito de liberdade JUNIOR 201640 ou seja as jogadas de 39 O conceito misto é passível de discussões doutrinárias podendo ser conside rado também enquanto neoinquisitório JUNIOR P159 2016 40 MAIER apud JUNIOR p143 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 99 influência para a manutenção de uma ideologia vigente elitizada po dem ser fatores para a obstaculização de um processo integralmente justo às classes tidas como estigmatizadas pela diferença abordando aqui as mulheres transexuais e travestis O processo penal se faz deficitário em outros setores ao que tange o cumprimento de dispositivos Constitucionais relacionados aos di reitos fundamentais destas cidadãs reclusas a partir do momento que deslegitimam suas existências e suas demandas específicas sendo o principal deles o referente à Dignidade da Pessoa Humana Art 1º III Constituição Federal além do Art 5º XLVIII dispondo que a pena será cumprida em estabelecimentos distintos de acordo com a natu reza do delito a idade e o sexo do apenado e o inciso XLIX onde é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral Podemos mencionar também o Art 38 do nosso Código Penal discorrendo que o preso conserva todos os direitos não atingidos pela perda da liber dade impondose a todas as autoridades o respeito à sua integridade física e moral Elencando estes aparatos esperase que as etapas processuais que abarcam desde a abordagem das autoridades policiais realização de um inquérito da passagem ao Ministério Público Juízes até a Ad ministração Penitenciária garantam o exercício pleno da dignidade dessas mulheres Porém a realidade é que por exemplo mesmo posi tivado através do Decreto Presidencial Nº 87272016 dispondo sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal sequer o nome da mulher transexual e travesti é garantido no decurso processual expondoas ao nome de registro e configurando como mais uma violência simbólica acometida contra estes corpos Fora outras discriminações inerentes à suas condições que colocam por terra todo e qualquer dispositivo legal que vislumbre protegêlas Além das violações de Direitos Humanos que acometem a to dos os presos brasileiros as mulheres transexuais e travestis nos presídios masculinos ainda sofrem humilhações torturas estupros exposição de sua intimidade a uma população dife rente de seu gênero por exemplo a obrigatoriedade de a presa transexual tomar banho de sol sem camisa expondo seus seios o corte obrigatório dos cabelos femininos nos presídios mas 100 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça culinos a proibição do tratamento com hormônios a revista íntima vexatória ROSA 201641 E não só ao processo penal é atribuído a responsabilização pelo agravo do sofrimento destas mulheres a própria execução penal é parte fundante na perpetuação de discriminações A priori a postu ra dos juízes frente à estas questões reflete uma formação de cunho conservadora punitivista sexista e elitizada sendo participantes da produção de um sistema penal não enquanto sendo um locus de ga rantia de direitos humanos mas sim de uma violação e reprodução de opressões Porém para além da atuação do judiciário este em conjunto com o executivo administrativo exercem exímia função no cumprimento da individualização da pena sendo tanto para o comando de execução da pena quanto para o efetivo funcionamento dos estabelecimentos inclusive norteando discussões doutrinárias acerca da natureza jurí dica dessa execução O entendimento puramente administrativista acabava por se chocar com a imperiosa necessidade de intervenção judicial nos chamados incidentes da execu ção basicamente no livramento condicional gerando dogmaticamente uma concepção híbrida qual seja de que a natureza da execução penal seria tanto adminis trativa como jurisdicional CARVALHO p166 200342 A Lei de Execução Penal 721084 tem por objetivo como dis põe em seu Art 1º efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração so cial do condenado e do internado O sujeito ativo da execução é o Estado cabendo ao Ministério Público intervenções pontuais se assim 41 ROSA Vanessa de Castro Mulheres transexuais e travestis no sistema peni tenciário a perda da decência humana e do respeito aos Direitos Humanos Disponível em httpswwwibccrimorgbrboletimartigo5730Mulheres transexuaisetravestisnosistemapenitenciarioaperdadadecenciahuma naedorespeitoaosDireitosHumanos Acesso em 06 mar 2018 42 CARVALHO Salo de Pena e Garantias 2 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2003 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 101 o for solicitado tendo enquanto sujeito passivo o executado Nessas condições em relação à competência se envolver direito penitenciá rio organização e funcionamento dos presídios normas de assistência ao preso ou egresso órgão auxiliares da execução penal é de compe tência da União mas concorrente com Estados e Distrito Federal de acordo com o art 24 I Constituição de 88 NUCCI 2008 O juiz é o corregedor tem a função de fiscalizar a distribuição da justiça do presídio porém dentro deste âmbito as autoridades res ponsáveis se materializam na figura do Diretor da Autoridade Admi nistrativa secretário de segurança pública ou de administração peni tenciária e do Poder Executivo encarregado de construir sustentar e administrar os estabelecimentos penais Dos órgão da Execução Penal art 66 LEP todos são responsá veis para existir e atuar de acordo com seus deveres legais pela manu tenção de um cumprimento da pena humanizada citando aqui como exemplos o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária art 62 LEP Conselho Penitenciário art 69 LEP ou até mesmo o Conselho da comunidade art 80 LEP que seria a reivindicação social e comunitária agindo dentro do sistema penitenciário Para além dos artigos supracitados da LEP ainda podemos men cionar o Art 3º em que ao condenado e ao internado serão assegu rados todos os direitos não atingidos pela sentença ou pela lei Pará grafo único Não haverá qualquer distinção de natureza racial social religiosa ou política Art 10 A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado objetivando prevenir o crime e orientar o retorno à convivência em sociedade Parágrafo único A assistência estendese ao egresso Art 11 A assistência será I material II à saúde III jurídica IV educacional V social VI religiosa Art 12 A as sistência material ao preso e ao internado consistirá no fornecimento de alimentação vestuário e instalações higiênicas Art 13 O esta belecimento disporá de instalações e serviços que atendam aos presos nas suas necessidades pessoais além de locais destinados à venda de produtos e objetos permitidos e não fornecidos pela Administração Art 40 Impõese a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral dos condenados e dos presos provisórios Art 41 Constituem direitos do preso I alimentação suficiente e vestuário VII assistência material à saúde jurídica educacional social e reli 102 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça giosa XI chamamento nominal XV contato com o mundo exte rior por meio de correspondência escrita da leitura e de outros meios de informação que não comprometam a moral e os bons costumes Art 82 Os estabelecimentos penais destinamse ao condenado ao submetido à medida de segurança ao preso provisório e ao egresso 1 A mulher e o maior de sessenta anos separadamente serão reco lhidos a estabelecimento próprio e adequado à sua condição pessoal 4º O preso que tiver sua integridade física moral ou psicológica ameaçada pela convivência com os demais presos ficará segregado em local próprio Há também a existência da Resolução SAP 11 de 30012014 que aborda a atenção às travestis e transexuais no âmbito do sistema penitenciário assim como a Resolução SEAP 558 de 29052015 com o mesmo teor 5 GAMBIARRA LEGAL E A EFICÁCIA PARCIAL DAS DESSAS DISPOSIÇÕES Para além existência de diversos aparatos normativojurídicos inse ridos no Processo Penal e na Lei de Execução o Brasil se apresenta com uma gama de planos governamentais e outros dispositivos que são produzidos à fim de atender as demandas da população transexual e travesti São alguns deles Revisão periódica Universal do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas Política Nacional de Saú de Integral das populações LGBT portaria do Ministério da Saúde Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária Resoluções da II Conferência Estadual de Políticas para populações lésbicas gays bis sexuais e transgêneros de 2011 Os princípios de Yogyakarta sobre a aplicação da legislação internacional de Direitos Humanos em relação à orientação sexual e a identidade de gênero definidos no Painel de especialista da ONU dentre outros SAP 2014 No entanto mesmo com a junção dos artigos Constitucionais daqueles presentes na Lei de Execução Penal no Código Penal no Processo Penal e os anteriormente citados ainda nos encontramos em situações alarmantes no que diz respeito à proteção das mulheres Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 103 transexuais e travestis dentro dos cárceres Como medida paliativa se faz necessário a criação de alas gays43 em alguns presídios porque a violência contra essas mulheres transexuais e travestis perpassa desde a má formação humanitária de agentes penitenciários até o mesmo o convívio social com outros apenados no caso das mulheres que são postas em alas masculinas Contudo as travestis são de modo geral subalternizadas pelos demais presos em razão de suas identidades de gênero Antes da criação da ala das travestis eram constantes as práticas de violência contra a identidade de gênero feminina e tal discri minação é manifestada na obrigação por exemplo de cortar cabelos e vestir roupas masculinas FERREIRA p7 2013 O que notamos é a tentativa de preservação dos Direitos Huma nos de um Estado que busca tratar de forma desigual os indivíduos na medida que se desigualam no entanto formulando normativas com conteúdo questionável sem ocorrer uma atenção e fidelidade de fato à realidade das mulheres transexuais e travestis Na resolu ção da SAP 11 de 30012014 por exemplo podemos notar proble máticas que reforçam estereótipos de gênero quando menciona em seu Art 3º que as pessoas que passaram por procedimento cirúrgico de transgenitalização poderão ser incluídas em Unidades Prisionais do sexo correspondente afirmando que pessoas transexuais só terão suas identidades legitimadas se sujeitarem à cirurgia de readequação sexual como se fosse via de regra aos corpos trans possuírem ojeriza pelas genitálias ou uma vontade necessária de alteração Se adotamos ou não determinados papeis de gênero estes independem de órgãos genitais cromossomos ou níveis hormonais JESUS 2012 De um lado um corpo de normatizações que regula a vida no âmbito do gênero em múltiplas instituições escolas universi dades repartições públicas bancos do outro a inexistência de leis que garantam e assegurem a existência da diversidade hu mana Certamente não são novidade os limites do aparato legal e jurídico no Brasil Sabemos também que aqui diz o ditado 43 Compreendese que o termo gay é utilizado enquanto termo guardachuva para contemplar todas e todos LGBT 104 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça popular há leis que não pegam e que portanto estamos longe de nos aproximar da formulação de Durkheim 2008 segundo a qual as leis são a materialização das consciências coletivas Entre a lei e as práticas cotidianas há um considerável espa ço de contradições e violências No entanto o que estes dois corpos legais nos oferecem é a possibilidade de pensarmos no profundo paradoxo que está sendo gestado no Brasil em rela ção ao reconhecimento pleno do direito à identidade de gênero BENTO p176 2014 O grande desafio dessa conjuntura é a busca por uma efetivação concreta e coerente dos dispositivos já existentes e os que ainda virão As novas conquistas alcançadas com o tensionamento dos movimen tos sociais perante à máquina estatal é um sinal que a resistência para o resguardo dos direitos funciona enquanto alternativa de luta Mas e depois que já nos ofertam parcialmente o que almejamos como efe tivarmos estes aparatos em conjunto com uma parcela social alheia à essa preocupação Como dizer que Direitos Humanos mesmo para indivíduos privados de liberdade são direitos inerentes e importantes a serem resguardados Será possível evidenciar o quanto é degradante à uma mulher transexual e travesti ser negada enquanto mulher desti tuir as características atreladas ao seus gêneros e desumanizálas com um intuito perverso de uma dupla punição E pós cárcere ainda há vida digna pra essas mulheres CONCLUSÃO O art 1º da LEP dispõe que seu intuito é efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmô nica integração social do condenado e do internado traduzindo em termos simples é a afirmação da ideia de uma ressocialização Mas como se ressocializa mulheres anteriormente deixadas à margem so cial e que não tiveram possibilidades de escolha antes de se condi cionarem aos cárceres Essa ideia nada mais é que o reforço de um mito ressocializador A incompatibilidade entre a previsão legal e a realidade reflete a função não declarada do sistema penal que é refor Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 105 çar exclusões neutralizar populações marginalizadas isolar força de trabalho hiperprecarizada de sujeitas que estruturalmente são impos sibilitadas de acessar o mercado de trabalho É importante refletirmos portanto sobre a problemática existente no que podemos considerar enquanto um paradoxo brasileiro deter legislações que garantam igualdade à todas e todos mas em contrapartida ser omisso na formulação de estratégias para garantir o que está previsto em lei BENTO 2017 Apenas a garantia formal não é suficiente para deixarmos de violentar dupla e triplamente corpos transexuais principalmente mulheres transexuais e travestis não somente em âmbitos carcerários mas ao longo de suas vidas Para respondermos as indagações citadas ao longo do trabalho é interessante pensarmos numa possível conectividade das leis impostas e toda a consciência de um coletivo para que assim a sustentação das normas possa ser aplicada de forma mais efetiva As legislações por si só não detêm forma cognitiva com o intuito de produzir relações sociais pautadas no respeito e no reconhecimento de diferenças BEN TO 2017 essas precisam estar sendo constantemente afirmadas no consciente social para que sejam vistas enquanto válidas e de exímia importância Essas situações se aplicam em diversos setores e dentro do siste ma penitenciário brasileiro não seria diferente As apenadas transe xuais e travestis deveriam não ser desprovidas de direitos por estarem privadas de liberdade não deveriam estar sujeitas à um livre arbítrio da administração penitenciária esta detém vínculos jurídicos com o poder estatal No entanto ter cabelos cortados corpos estuprados e violados suspensão de tratamento hormonal exposição humilhante revistas vexatórias são maneiras que os responsáveis pela segurança nacional de forma completamente equivocada e ilegal se utilizam para punir mais de uma vez esses corpos As penas agem com mais gravidade contra essas mulheres que a cada dia que passa são diminuídas desumanizadas e estigmatizadas Além de estarem privadas de liberdade ainda tem que se sujeitar a um sistema de caráter autoritário que altera seus jeitos e comportamentos além de reduzir a capacidade de cada uma delas à autodeterminação Ou seja a função real do sistema penal é política e se afasta de sua função declarada que busca legalizar e legitimar a violência punitiva do Estado 106 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Portanto ecoar vozes de sujeitas que não vivenciam as mesmas realidades que muitas de nós é também não se omitir e se silenciar diante de uma realidade latente Reafirmar a consagração de direitos dessas mulheres é perpetuar uma luta também nossa REFERÊNCIAS ANDRADE Camila Damasceno de Por uma criminologia feminis ta Revista Espaço Acadêmico n 183 agosto de 2016 BARATTA Alessandro Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal introdução à sociologia do Direito Penal Alessandro Barat ta tradução Juarez Cirino dos Santos Rio de Janeiro Editora Revan Instituto Carioca de Criminologia 6ª edição outubro de 2011 BENTO Berenice Na escola se aprende que a diferença faz diferen ça Estudos feministas Florianópolis 192 maioagosto 2011 BENTO Berenice Nome social para pessoas trans cidadania pre cária e gambiarra legal Contemporânea Revista de Sociologia da UFSCar São Carlos v4 n1 janjun 2014 pp165182 BENTO Berenice Transviads gênero sexualidade e direitos hu manos Berenice Bento Salvador EDUFBA 2017 BENTO Berenice PELÚCIO Larissa Despatologização do Gênero A Politização das Identidades Abjetas Estudos Feministas Florianó polis 202256 maioagosto 2012 BUTLER Judith Problemas de gênero feminismos e subversão da identidade 13ª ed Judith Butler tradução Renato Aguiar 13ª ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2017 CORTINA Monica Ovinski de Camargo Mulheres e tráfico de dro gas aprisionamento e criminologia feminista Estudos Feministas Florianópolis 233 406 setembrodezembro2015 FERREIRA Guilherme Gomes AGUINSKY Beatriz Gershenson RODRIGUES Marcelli Cipriani A prisão sobre o corpo travesti gênero significados sociais e o luscofusco do cárcera Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 Florianópolis 2012 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 107 FOUCAULT Michel Vigir e Punir nascimento da prisão Tradução de Raquel Ramalhete Petrópolis Vozes 1987 JESUS Jaqueline Gomes de Orientações sobre a população transgê nero conceitos e termos Jaqueline Gomes de Jesus Brasília Autor 2012 Disponível em httpswwwsertaoufgbrup16oORIEN TAC387C395ESPOPULAC387C383OTRANS pdf1334065989 Acesso em 06 de Março de 2018 JUNIOR Aury Lopes Fundamentos do Processo Penal Introdu ção crítica Aury Lopes Jr 2ª ed São Paulo Saraiva 2016 NUCCI Guilherme de Souza Manual de processo penal e execução penal 4 ed rev atual e ampl São Paulo Editora Revista dos Tri bunais 2008 SCOTT John Gênero uma categoria útil de análise histórica Edu cação Realidade Porto Alegre vol 20 nº 2 juldez 1995 pp 7199 VERGUEIRO Viviane Por inflexões decoloniais de corpos e identi dades de gênero inconformes uma análise autoetnográfica da cis generidade como normatividade Viviane Vergueiro 2016 244 f il 108 UMA LEITURA ABOLICIONISTA DAS REGRAS DE BANGKOK ENTRE O DESENCARCERAMENTO FEMININO E A REFORMA DAS PRISÕES Carolina Soares Nunes Pereira44 RESUMO O presente trabalho se debruça sobre as Regras de Bang kok diretrizes de desencarceramento traçadas no âmbito das Nações Unidas em 2010 a fim de delinear uma crítica criminológica sobre a aplicação das referidas regras dentro do contexto brasileiro As dire trizes apontam para medidas intramuros e externas que anunciam a redução de violações vivenciadas por mulheres presas até a retirada de parte dessas do cárcere A recepção das regras pelo Conselho Nacional de Justiça em 2016 coincide com a veloz expansão do encarceramento feminino e da monitoração eletrônica como medida cautelar diversa da prisão Não obstante tratase de cenário de concessão de indultos e de Habeas Corpus coletivo para mulheres presas A partir desse cená rio procurase compreender em qual medida as diretrizes internacio nais se colocam como efetivas medidas em prol das mulheres presas no Brasil Palavraschave desencarceramento feminino Regras de Bangkok abolicionismo penal reforma prisional 44 Carolina Soares Nunes Pereira é graduanda em Direito pela Universidade Fe deral de Minas Gerais monitora do grupo de criminologia crítica e crítica cri minológica Casa Verde e estagiária no Instituto de Direitos Humanos de Minas Gerais Email para contato soaresnpcarolinagmailcom Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 109 1 APRESENTAÇÃO O mês de dezembro de 2017 foi marcado pelo lançamento de novo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias BRASIL 2017a Naquele momento fomos informadas de que o Brasil passou a ser responsável pela terceira maior população carcerária do mundo ultrapassando a Rússia Finalmente em Maio de 2018 é dada ampla divulgação do segundo INFOPEN Mulheres da história do país Isto é apesar de o encarceramento de mulheres no Brasil não ser tão recente tratase apenas do segundo relatório específico para essa população prisional que cresce em proporções significativas Não obstante a precariedade de dados referentes às mulheres presas no país o relatório de 2018 reflete as mobilizações de ativistas de direitos humanos e grupos de mobilização social de pessoas em privação de liberdade Assim o segundo INFOPEN Mulheres trouxe as primeiras informações sobre a infraestrutura dos estabelecimentos prisionais femininos e mistos bem como sobre a garantia de direitos de mulheres encarceradas No momento da coleta dos dados junho de 2016 eram 42355 mulheres presas e um déficit de 15326 vagas BRASIL 2018a p 1045 Diante dos últimos anos da rápida expansão prisional do país é preciso olhar com especial cuidado para o crescimento da população carcerária feminina que aumentou 656 entre os anos 2000 e 2016 cenário no qual os crimes relacionados ao tráfico de drogas encar ceraram três em cada cinco das mulheres condenadas ou provisórias isto é 62 da população carcerária feminina BRASIL 2018a p 5346 Pouco mais de um ano antes da divulgação dos alarmantes dados do INFOPEN 2017 em 08 de Março de 2016 o Conselho Nacional de Justiça CNJ publicava as Regras de Bangkok que estabelecem uma série de diretrizes para os Estados ao evidenciarem problemas que mulheres enfrentam no sistema de justiça criminal Dentre as diretri zes consta que às mulheres devem ser priorizadas as penas não priva tivas de liberdade 45 BRASIL Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN Mulheres 2ª edição Brasília Ministério da Justiça e Segurança Pública Depar tamento Penitenciário Nacional 2018a 46 BRASIL Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN Mulheres 2ª edição Brasília Ministério da Justiça e Segurança Pública Depar tamento Penitenciário Nacional 2018a 110 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça As Regras de Bangkok47 foram escritas e aprovadas na Organiza ção das Nações Unidas ONU em 2010 todavia somente implemen tadas no Brasil em 2016 Há de se frisar que o contexto de aplicação das diretrizes é também o cenário de expansão das formas de punição vigília e controle fora do cárcere Isso em razão da ampliação da in dústria do monitoramento eletrônico com câmeras detectores de me tais vistorias e pulseiras de monitoração as chamadas tornozeleiras Também se trata de um momento em que as prisões domiciliares e os pedidos por essas ganharam fôlego no país vale rememorar ainda o indulto para mulheres publicado em decreto presidencial de abril de 2017 A princípio a possibilidade de desencarceramento de mulheres parece uma medida totalmente positiva afinal em uma perspectiva abolicionista desejamos o fim do cárcere para todas e todos Todavia as propostas das Regras de Bangkok não enunciam o fim da penali zação ou do encarceramento de mulheres senão políticas públicas de cumprimento da lei estatal e de normativas internacionais isto é ain da se trata do mínimo cumprimento da ordem vigente Acrescentase a isso o fato de que a consolidação de vindouras políticas protagoni zadas na atuação do próprio Estado prevê o inchaço das estruturas e se distancia de um paradigma da resolução comunitária de conflitos Confrontante a isso o abolicionismo busca uma sociedade cada vez mais independente das forças repressoras e também livre do próprio Estado PASSETI 201248 2 Desenvolvimento O presente trabalho é uma proposta de discussão sobre o crescente encarceramento feminino no Brasil frente à aplicação das diretrizes das Regras de Bangkok com especial enfoque naquelas que apontam para priorização do desencarceramento de mulheres e de reformas no encarceramento feminino Desse modo pretendese questionar até 47 BRASIL Regras de Bangkok Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infrato ras Brasília Conselho Nacional de Justiça 2016 48 PASSETI Edson Curso Livre In PASSETI Edson org Curso Livre de Aboli cionismo penal 2 ed Rio de Janeiro Revan 2012 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 111 que ponto as diretrizes se colocam como instrumentos possivelmente utilizados em prol das presas com auxílio das defensorias grupos de direitos humanos e outros ativistas pelo desencarceramento Ou se a situação é deveras mais complexa e se podemos estar frente a mais um mecanismo de reforma das prisões que venha a se mostrar contradi tório ou até perverso Não objetivamos reformas do sistema prisional sendo essas enunciadas como se garantissem um mínimo de cumprimento legal e justiça aos acusados e presos mas acabam por aumentar a comple xidade e a estrutura do cárcere Nesse sentido dois exemplos recentes são significativos O primeiro das audiências de custódia implemen tadas para diminuir as prisões sem acesso a um juiz que todavia tem mostrado porcentagens preocupantes de manutenção das prisões nas cidades onde já ocorrem CNJ 201749 Imprescindível dizer ainda que os dados fornecidos apontam a predominância de continuidade do encarceramento para mulheres e negros A segunda reforma se refere ao implemento das Associações de Proteção e Assistência a Condenados Apacs nas quais já são co muns queixas de apenados que preferem o cárcere comum devido à disciplina rigorosa e também ao fato de que ao longo dos últimos anos cada vez mais surgem críticas à imposição religiosa tornandose lugares específicos não só de cumprimento de pena mas de castigo religioso RESENDE 201350 Seria frívolo comparar lado a lado as Regras de Bangkok aos exemplos citados todavia as Regras ainda denotam a manutenção do controle e da punição que inevitavelmente atingem as mais pobres e pretas Em contrapartida também são diretrizes que apontam para necessidades latentes no que se refere a um tratamento menos degra dante às encarceradas no Brasil tendo como exemplo a organização 49 Tiveram a prisão em flagrante convertida em preventiva 654 dos custodiados que tinham antecedentes criminais enquanto o mesmo aconteceu com 373 dos custodiados que não tinham antecedentes Sumário Executivo Justiça Pes quisa Direitos e Garantias Fundamentais Audiência de Custódia Prisão Provi sória e Medidas Cautelares Obstáculos Institucionais e Ideológicos à Efetivação da Liberdade como Regra Conselho Nacional de Justiça 2017 50 RESENDE Juliana Marques Desinstitucionalização prisional e o discurso do método APAC Dissertação apresentada ao Departamento de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para a obtenção de Título de Mestre em Psicologia 2013 112 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça de um sistema de cuidados médicos com os devidos recortes de gêne ro e o fim de revistas invasivas que desrespeitam a integridade física e psicossocial das mulheres 3 Composição do encarceramento feminino brasileiro e precariedade no cárcere Mas as abordagens feministas a respeito das prisões e de fato do complexo industrialprisional sempre insistiram que quan do observamos por exemplo as mulheres presas que também são um percentual muito reduzido em todo o mundo apren demos não apenas sobre as mulheres nas prisões mas enten demos muito mais sobre o sistema como um todo do que se olhássemos exclusivamente para os homens nas prisões DA VIS 2018a p 10051 A fim de proceder a uma análise das diretrizes das Regras de Bangkok trataremos aspectos do encarceramento feminino brasileiro sobre os quais as diretrizes desenham propostas de intervenção A começar pela avaliação da existência de espaço adequado e suficiente para pri vação de liberdade dentro de parâmetros de respeito às garantias indi viduais das presas percebese que a superlotação é agravada pela ine xistência de estabelecimentos femininos suficientes De acordo com o INFOPEN Mulheres 2018 74 das unidades prisionais destinamse a homens e 7 são designadas para mulheres Os 16 restantes são consideradas unidades mistas que em suma foram projetadas para aprisionar um público masculino e devido ao crescimento do encarce ramento de mulheres abriramse celas ou alas femininas52 Vêse que as preocupações com o encarceramento feminino são extremamente recentes 51 DAVIS Angela Feminismo e Abolicionismo Teorias e Práticas para o século XXI In A liberdade é uma luta constante São Paulo Boitempo 2018a 52 BRASIL Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN Mulheres 2ª edição Brasília Ministério da Justiça e Segurança Pública Depar tamento Penitenciário Nacional 2018a Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 113 É apenas no começo do século XX que as punições femininas vão ganhando mais proximidades com as punições masculinas No Brasil apenas a partir dos anos 80 que passam a ser asseguradas condições de salubridade e ambientes próprios para as mulheres em situação prisional Mas é mais pós anos 90 que se inicia um movimento de reforma de separação mas com igualdade Ocorre que a igualdade prisional significou igualda de de repressão e agravamento de punição pela dupla e tripla condição de opressão da maioria esmagadora das mulheres que compõe o sistema prisional BORGES p 95 201853 Ora o problema da projeção dos presídios como masculinos está na ausência de estrutura e espaços específicos necessários para aten derem mulheres presas tais como creches e berçários ou ainda na precariedade da estrutura das próprias celas que poderiam ser espe cíficas para gestantes e mães com recémnascidos O INFOPEN Mu lheres de 2018 informou que apenas 55 unidades prisionais brasileiras apresentam celas especiais para gestantes e lactantes e somente 14 das unidades conta com berçário para bebês de até dois anos de idade BRASIL 2018a p 29 a 3254 O problema aponta para uma separação compulsória de mães presas e seus bebês uma vez que inexistindo condições para exercer a maternidade no cárcere as mães são orientadas a entregarem seus bebês à família extensa Ocorrendo algum empecilho nesse sentido são muitos os casos em que a criança acaba abrigada e posteriormen te adotada perdendo contato permanente com sua mãe e restante da família Além disso quando se fala em estabelecimentos mistos há de se levar em conta a possibilidade de rebelião que é muito comum nos es tabelecimentos prisionais brasileiros55 Quando há um levante de pre 53 BORGES Juliana O que é encarceramento em massa Belo Horizonte Letra mento Justificando 2018 54 BRASIL Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN Mulheres 2ª edição Brasília Ministério da Justiça e Segurança Pública Depar tamento Penitenciário Nacional 2018a 55 Nesse sentido dáse atenção às facções porque as greves prisionais brasilei ras de 2017 não podem ser entendidas como um movimento de encarcerados autoorganizados pelo fim do trabalho nas prisões e jamais reivindicatórias do abolicionismo penal e de todas as formas de punição Os presos estavam orga nizados em uma relação mediada pelas facções que governam as unidades pe 114 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça sos homens as mulheres das alas vizinhas se encontram em situação de especial vulnerabilidade tornandose alvo de violências físicas se xuais ou não à revelia dos presos homens que constituem maioria em números em força e em organizações dentro das prisões as chama das organizações criminosas Uma encarcerada que tenha relaciona mento afetivo com membro de uma facção rival àquela que comanda as alas masculinas de determinada unidade penitenciária pode vir a ser violentada ou servir de chantagem em meio às disputas intramuros e extramuros entre as facções Outra questão relevante se refere à visitação de familiares e ami gos às presas direito previsto no art 41 da Lei de Execução Penal Apesar da precariedade dos dados fornecidos pelo INFOPEN Mulhe res notase que mulheres recebem muito menos visitas e que apenas metade dos estabelecimentos femininos possui estrutura específica para as visitas sociais enquanto 310 das unidades prisionais mistas possuem tais estruturas Ainda percebese que menos de 50 dos estabelecimentos prisionais mistos ou femininos possuem estrutura para que as encarceradas recebam visitas íntimas que devem ser rea lizadas em espaços próprios privados e são impossibilitadas em outros locais da unidade Essa precariedade de infraestrutura e abandono protagonizado pelos próprios parceiros força as mulheres presas ao isolamento dos afetos familiares e do contato sexual com seus parcei ros e parceiras que se encontram em liberdade56 A castração das mulheres presas não é um dado recente como percebese desde a construção e funcionamento da primeira unidade penitenciária destinada exclusivamente para mulheres o Presídio de Mulheres inaugurada em 1942 e investigada por Angela Teixeira As sim percebese nitenciárias nas quais a greve ocorreu As greves prisionais brasileiras trata vam de questões bastante pragmáticas oriundas das necessidades imediatas dos presos e das facções PEREIRA Carolina Soares Nunes Comparações entre a greve de presos nos Estados Unidos da América no Brasil No prelo 2018 56 ROVAI Gabriela Mulheres presas são abandonadas pelos companheiros por quem assumiram crimes de tráfico de drogas In Instituto Terra Trabalho e Cida dania ITTC 17 Set 2013 Disponível em httpittcorgbrmulherespresas saoabandonadaspeloscompanheirosporquemassumiramcrimesdetrafi codedrogas Acesso em 25 de Maio de 2018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 115 O lugar social que a punição e a reeducação prisional moderna no Brasil visava garantir às mulheres era o lar O Presídio de Mulheres como um todo estava voltado para isso em sua su posta atenuação das penas na instalação física das condenadas em uma casa no trato direto com as presas ser função de freiras sem a presença imediata de agentes penitenciários ou policiais até no trabalho prisional ser precisamente o doméstico E não para por aí a apropriação do aparelhamento estatal para promover impor e perpetuar a desigualdade entre os sexos se estendeu também sobre a possibilidade da conjugação carnal dos apenados ARTUR 2016 p 14357 4 Apontamentos sobre as reformas nas prisões à luz das Regras de Bangkok e sobre outras medidas de desencarceramento A primeira diretriz das Regras de Bangkok anuncia que seja despen dida a devida atenção particular às mulheres presas por sua condição de gênero e que a atenção a essas necessidades para atingir igualdade material entre os gêneros não deverá ser considerada discriminatória BRASIL 2016 p 1958 Retomase esse enunciado para aqui reconhe cer que as diretrizes não podem ser consideradas como meras elucu brações de estadistas mas que refletem um longo ativismo feminista pelos direitos humanos e se inserem no contexto real já escrutinado de precariedade das unidades prisionais e violações de direitos das mu lheres encarceradas Não obstante analisaremos aqui as limitações e possíveis percal ços ao efetivo desencarceramento de mulheres no Brasil por meio da implementação das diretrizes Este trabalho pretende evidenciar de quais formas as regras se limitam a supostamente garantir um mínimo de dignidade para as mulheres em privação de liberdade lançando propostas que invariavelmente indicarão um inchaço ainda maior das estruturas punitivas do Estado 57 ARTUR Angela Teixeira Institucionalizando a Punição as origens do Presídio de Mulheres do estado de São Paulo São Paulo Editora Humanitas 2016 58 BRASIL Regras de Bangkok Regras das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infrato ras Brasília Conselho Nacional de Justiça 2016 116 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Como primeiro exemplo podemos tomar as propostas para mulheres gestantes e mães dentro dos estabelecimentos prisionais É curioso notar como as Regras se debruçaram sobre o ingresso desse público nos estabelecimentos prisionais visando lhes garantir direitos básicos BRASIL 2016 p 2059 Todavia não se trata de uma defesa do desencarceramento pleno e veloz dessas mulheres isto é daque las acusadas de crimes sem emprego de violência que é o que de fato poderia se esperar a fim de evitar qualquer forma de extensão da pena aos bebês e crianças menores de doze anos Em um cenário em que a saída de mães do cárcere não se constitui objetivo primeiro mas em contrário garantir o ingresso no estabele cimento prisional dentro das garantias legais previstas incorrese no risco bastante concreto de fortalecer as instituições prisionais e todo o poder punitivo que se impõe sobre as mulheres presas Em suma há de se enfrentar a seguinte questão é mais difícil deslegitimar uma pri são idealizada que atua dentro dos ditames legais e ainda garante um tratamento adequado às especificidades do gênero das encarceradas do que uma prisão que viola direitos e desrespeita procedimentos previstos nos códigos e na Lei de Execução Penal Por fim colocamse em tela as questões relativas à segurança nos presídios e a vigilâncias especializadas A experiência dos primeiros presídios brasileiros demonstra que sempre houve alguma espécie de recorte de gênero nos presídios todavia essa especialização de monstrou como as prisões pensadas para mulheres se dedicam a man ter as estruturas patriarcais Nesse sentido é insuficiente pensar em agentes penitenciárias femininas ou mais equipamentos e canais para controlar os possíveis abusos nas prisões O caminho que tem grande potência de reduzir as violações contra mulheres mães e gestantes ou não dentro do cárcere é evitando que novas mulheres sejam pre sas e ainda retirando todas aquelas que já poderiam estar em liberda de condicionada ou em prisão domiciliar por meio de mecanismos como os indultos para mulheres dos anos de 2017 e 2018 ou ainda o Habeas Corpus coletivo julgado no Supremo Tribunal Federal que orientou para o desencarceramento de mães presas provisórias 59 Idem Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 117 CONCLUSÕES PRELIMINARES Sem prejuízo do exposto neste texto pretendeuse enfrentar propos tas primeiramente justificadas por um olhar fundado nos direitos hu manos que podem ser lidas como atrativas ao menos à primeira vista pelo caráter aparentemente feminista que apresentam Todavia criar mecanismos de especialização do saberpoder punitivo é sempre um caminho tortuoso ainda que determinadas especializações levem a um melhoramento imediato ou redução de sofrimento de pelo me nos parte das mulheres presas como procedimentos e equipamentos especializados para mulheres ou ainda a construção de presídios pen sados para mulheres criminosas Não obstante se a escolha por esse caminho das precárias soluções imediatas não se der a partir de uma crítica abolicionista às prisões incorrese na possibilidade de fortale cer o sistema prisional O que se propõe aqui é uma virada de posição que pense sempre o fim das prisões como objetivo máximo que guie os objetivos me nores Nesse sentido para o problema da superlotação e da crescente taxa de aprisionamento podese priorizar medidas efetivas de desen carceramento com os mecanismos possíveis indultos habeas corpus etc e ainda evitar o encarceramento de novas mulheres por meio do acompanhamento e controle das audiências de custódia por exemplo O olhar crítico abolicionista é essencial para não se perder de vista o fato de que as noções de gênero que determinam ações de re pressão como as penas seja o encarceramento comum ou outra al ternativa serão determinadas pelas estruturas estatais Estas últimas construídas para legitimação sociojurídica do Estado e do capital em contraposição ao povo isto é às mulheres pobres negras e encarce radas 118 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DAVIS Angela Are Prisons Obsolete New York Seven Stories Press 2003 BRASIL Regras de Bangkok Regras das Nações Unidas para o Tra tamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras Brasília Conselho Nacional de Justiça 2016 BRASIL Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias IN FOPEN Atualização Junho de 2016 2ª edição Brasília Ministério da Justiça e Segurança Pública Departamento Penitenciário Nacional 2017a BRASIL Decreto de 12 de abril de 2017 Brasília Presidência da Re pública 2017b Disponível em hhttpwwwplanaltogovbrcci vil03ato201520182017dsnDsn14454htm Acesso em 26 de maio de 2018 BRASIL Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias IN FOPEN Mulheres 2ª edição Brasília Ministério da Justiça e Seguran ça Pública Departamento Penitenciário Nacional 2018a BRASIL Decreto nº 9370 de 11 de maio de 2018 Brasília Presidên cia da República 2018b Disponível em httpwwwplanaltogovbr ccivil03Ato201520182018DecretoD9370htm Acesso em 26 de maio de 2018 BRASIL Habeas Corpus 143641 São Paulo Brasília Supremo Tribu nal Federal 2018c PASSETI Edson Curso Livre In PASSETI Edson org Curso Livre de Abolicionismo penal 2 ed Rio de Janeiro Revan 2012 RESENDE Juliana Marques Desinstitucionalização prisional e o dis curso do método APAC Dissertação apresentada ao Departamento de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais como requisito parcial para a obtenção de Título de Mestre em Psicologia 2013 Relatório Discriminação de Gênero no Sistema Penal Rede de Justiça Criminal Ed 09 Setembro2016 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 119 Sumário Executivo Justiça Pesquisa Direitos e Garantias Fundamen tais Audiência de Custódia Prisão Provisória e Medidas Cautelares Obstáculos Institucionais e Ideológicos à Efetivação da Liberdade como Regra Conselho Nacional de Justiça 2017 120 A DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO NO TRÁFICO DE DROGAS E O ENCARCERAMENTO DAS MULHERES AS ESPECIFICIDADES DA GUERRA ÀS DROGAS EM RELAÇÃO AO SEXO FEMININO Aila Fernanda dos Santos60 RESUMO A guerra às drogas que afeta a vida na periferia por meio das investidas de repressão ao tráfico de drogas no setor varejista vem trazendo um crescente aumento do número de jovens negrosnegras e periféricosperiféricas à prisão todos os dias consequência da vio lência do Estado executada por intermédio da polícia Nesse sentido o presente artigo visa analisar por uma perspectiva crítica como os reflexos da guerra às drogas é perpassado pela questão de gênero raça e classe visto que há um aumento significativo de mulheres negras e periféricas presas por tráfico de drogas de acordo com os dados do Infopen Mulheres 2018 Verificase que o trabalho das mulheres no tráfico de drogas está relacionado com a divisão sexual do trabalho que por sua vez relacionase com a divisão de classes na sociedade capitalista Portanto reflete discriminações em que a mulher é subme tida a posições subalternas com baixo custo de mão de obra permi tindo extração acentuada de maisvalia e condições de trabalho precá rias colocandoas em maior risco social e pessoal que podem leválas com maior facilidade ao encarceramento Buscase compreender as especificidades do gênero feminino na inserção sexual do trabalho 60 Graduada em Serviço Social mestranda do Programa de PósGraduação em Serviço Social e Políticas Sociais da Universidade de São Paulo UNIFESP Bai xada Santista Email ailaservsocialgmailcom Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 121 ilegal do tráfico de drogas uma vez que tanto o tráfico quanto as pri sões são lugares que reproduzem desigualdades das relações sociais de gênero posto que são pensados exclusivamente na perspectiva da construção de atividades desenvolvidas pelo gênero masculino Palavraschaves Mulher Divisão sexual do trabalho Tráfico de dro gas Encarceramento feminino Guerra às Drogas 1 O Trabalho e suas Transformações Antes de tudo o trabalho é um processo de que participam o homem e a natureza processo em que o ser humano com sua própria ação impulsiona regula e controla seu intercâm bio material com a natureza Defrontase com a natureza como uma de suas forças Atuando assim sobre a natureza externa e modificandoa ao mesmo tempo modifica sua própria na tureza Desenvolve as potencialidades nela adormecidas e sub mete ao seu domínio o jogo das forças naturais MARX 2012 p 211 O trabalho é ontologicamente fundante do ser social na medida em que o diferencia como ser histórico e consciente pois é por meio dele como posição teleológica primária a partir da prévia ideação de ações que materializada através da práxis humana que realizase o suprimento de necessidades básicas de sobrevivência pela transforma ção da natureza Nogueira 2011 p 117118 Com fundamentação em Marx 2012 p 5759 em seu livro 1 do O Capital todo bem material na medida em que é utilizado ou con sumido tem em si mesmo um valor de uso A partir de uma relação quantitativa entre valores de uso diferentes manifestase o valor de troca dos objetos Dessa forma com o dispêndio da força de trabalho humano são produzidos os objetos de consumo que possuem valor de uso ou seja uma utilidade são necessários e úteis para a existência Nesse sentido o trabalho é condição necessária para a sobrevivência É por meio dele que se humaniza o ser social buscando a produção e reprodução da vida social Nogueira 2011 p 118 122 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A partir das relações sociais estabelecidas pelo trabalho produtivo na interação com a natureza que o homem produz por meio do tra balho concreto objetos de valor de uso Nessa perspectiva o trabalho trabalho produtivo é constituído predominantemente por posições te leológicas primárias Nessa relação dinâmica o ser social transforma seu meio e também é transformado por ele modificando assim as interações dos homens com outros homens ações que são permeadas por intencionalidades ideologias e determinada complexidade que se materializa na práxis interativa e cumprem funções da reprodução da sociabilidade Essa é a base estruturante das posições teleológicas secundárias61 Antunes 1999 p146 Para Marx 2012 p 6061 os produtos do trabalho vão adqui rindo valor de troca e assim transformandose em mercadorias Net to e Braz 2010 p 7981 apontam que há duas condições necessárias para a produção de mercadorias a divisão social do trabalho e a pro priedade privada dos meios de produção A fase de transição da produção mercantil simples para a produ ção mercantil capitalista que posteriormente se fundamentará sobre a exploração do trabalho assalariado caracterizase pelo dispêndio da força de trabalho humano com finalidade de troca ou venda do produ to Nesse sentido corporificase nessa mercadoria o trabalho humano abstrato62 Marx 2012 p 60 Na medida em que se complexificam o modo de organização da sociedade e as relações estabelecidas pelo capital o trabalho alienado compreendido pelo sentido colocado por Lukács63 passa a ser traba lho estranhado dadas as condições de exploração da força de traba lho inerente ao sistema capitalista Nogueira 2011 p 136137 Segundo Ricardo Antunes 2015 p 3436 devido à reestrutu ração produtiva com a chegada da tecnologia a partir dos anos 80 o trabalho passa por grandes transformações a fim de superar a crise 61 Não se estabelece aqui uma separação entre as posições teleológicas visto que embora a posição teleológica secundária possa existir em sua completude após as necessidades humanas terem sido satisfeitas através do trabalho ainda podem existir de forma germinal elementos da posição teleológica secundária Noguei ra 2011 p 125126 Para saber mais ver Antunes 1999 62 Um dos fatores que determinam o valor da mercadoria é o tempo de trabalho humano abstrato despendido para essa produção Netto Braz 2010 p80 63 A respeito ver Lessa 1996 e Antunes 1999 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 123 do taylorismofordismo Assim o trabalho se torna especializado e flexibilizado necessário para se adequar às novas fases do modo de produção extraindo níveis cada vez mais altos de maisvalia e usur pando direitos sociais Nesse contexto as mulheres especialmente as mulheres brancas que antes ocupavam predominantemente o espaço doméstico ne cessário para a reprodução do modo de produção capitalista foram inseridas no campo da produção por um baixo custo de mão de obra caracterizada como uma complementação de renda do trabalho mas culino Ainda que no decorrer de conquistas históricas advindas de movimentos feministas e femininos as mulheres tenham adquirido direitos anteriormente negados o sistema capitalista em seu proces so de aviltamento se apropria desses avanços de forma a conservar suas estratégias de dominação das quais a divisão sexual faz parte De acordo com Nogueira 2004 p 0506 ocorre uma feminização do mundo do trabalho Rachel Gouveia Passos acrescenta Com as mudanças ocorridas no mundo do trabalho e da rees truturação produtiva as mulheres foram convocadas a assumir o campo da produção Essa inserção da mulher na esfera produtiva não veio desacompanhada de um movimento políti co ocorria nesse período a transformação dos padrões cultu rais e éticos que normatizam os comportamentos entre homens e mulheres intensificada pelo movimento feminista Contudo fatores econômicos marcaram esta convocação das mulheres para se inserirem no mercado de trabalho Só que com a in serção e participação das mulheres no mercado de trabalho a desigualdade entre as relações sociais de sexo continuava a ser reproduzida em relação às ocupações PASSOS 2015 p 27 É necessário destacar que a divisão sexual do trabalho para ser caracterizada como tal compreende dois aspectos a segmentação do trabalho do homem e da mulher de forma hierarquizada em que as atividades desenvolvidas correspondem a uma construção sóciohis tórica dos papéis sociais e a subalternização da mulher explicitamente por interesses econômicos portanto interesses de classe Essa divisão opera por meio da reprodução da ideologia patriarcal e da educação sexista as opressões e exploração da mulher Cisne 2015p 117122 124 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Nesse sentido reestruturação produtiva foi um marco impor tante para se pensar sobre a divisão sexual do trabalho pois foi nesse período que se intensificou a exploração e a precarização do trabalho feminino convocando o maior número de mulheres para vender sua força de trabalho No entanto essas mulheres concentramse em pos tos de trabalho mais precarizados e com menores salários e contratos de regime parcial e são mantidas também na esfera reprodutiva im prescindível para o mantimento da lógica do sistema capitalista No gueira 2011 p 174 De acordo com Helena Hirata 2009 p 2930 na medida em que ocorre um crescimento da inserção da mulher no mercado de tra balho seja ele formal ou informal ocorre também uma desvaloriza ção social e má remuneração desse trabalho Portanto a precarização do trabalho feminino surge pari passu à intensificação e flexibilização do trabalho Essa precarização está marcada pela desproteção social e falta de direitos sociais e sindicais como é o caso dos empregos infor mais o trabalho em tempo parcial que resulta em menores salários e baixa qualificação profissional Nesse sentido será tratado a seguir como o trabalho das mu lheres no tráfico de drogas se assenta na divisão sexual do trabalho colocandoas em condições subalternas e precárias a fim de explorar níveis cada vez mais altos de maisvalia e expondoas a maiores riscos de encarceramento Também será discutido como a ideologia proi bicionista reforça a manutenção do sistema capitalista monopolista financeiro 2 Guerra às drogas e o aumento do encarceramento feminino Com fundamentação em Antonio Escohotado 2004 partese da pre missa sobre o conceito de drogas Por droga psicoativa ou não continuamos a entender o que há milênios pensavam Hipócrates e Galeano pais da medicina cien tífica uma substância que em vez de ser vencida pelo corpo e Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 125 assimilada como simples nutriente é capaz de vencêlo provo cando em doses insignificantemente pequenas quando compa radas com as de outros alimentos grandes alterações orgânicas anímicas ou amplo os tipos ESCOHOTADO 2004 p09 Logo podese considerar que as drogas sempre existiram na so ciedade desde seus primórdios em que aquelas sociedades de orga nização primitiva usavam certas substâncias em cerimônias festivas cultos e rituais religiosos Escohotado 2004 p 1112 Dessa forma compreendese que a droga na medida em que possui uma utilidade e uma utilização rituais cura de doenças etc é um bem de valor de uso necessário para satisfazer as necessidades humanas seja qual for a natureza provenham do estômago ou da fantasia visto que as drogas inicialmente surgidas em plantas sempre estiveram presentes historicamente na sociedade Carneiro 2002 p 116117 Assim são compreendidas como mercadoria no sentido colocado por Marx A mercadoria é antes de mais nada um objeto externo uma coisa que por suas propriedades satisfaz necessidades huma nas seja qual for a natureza a origem delas provenham do es tômago ou da fantasia Não importa a maneira como a coisa satisfaz a necessidade humana se diretamente como meio de subsistência objeto de consumo ou indiretamente como meio de produção MARX 2012 p 57 Como já mencionado Marx avançou quando distinguiu valor de uso e valor de troca de um objeto Conforme fundamentações de Netto e Braz 2010 p7980 os objetos com valor de uso possuem utilidade e são necessários em qualquer modelo de sociedade Podem depender ou não do emprego de força de trabalho humano como por exemplo respectivamente os produtos oferecidos pela própria natu reza e os produtos desenvolvidos para autoconsumo com finalidade de atender as necessidades humanas sem que haja uma acumulação de riqueza No período de transição entre o mercantilismo e o capitalismo industrial ainda na fase de acumulação primitiva o valor de uso se 126 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça subsume ao valor de troca ou seja a sociedade burguesa submete o uso à troca só se tem acesso ao uso por meio da troca Nesse sentido o uso só se realiza pela troca Marx 2012 p 5961 Essa subsunção reafirma a relação de interdependência entre o valor de uso e o valor de troca Sendo assim a sociedade burguesa não exclui o valor de uso mas o condiciona à troca Nessa perspecti va hegemonicamente na era mercantilista ainda que o comando da riqueza não fosse centrado na exploração do trabalho essa fase criou condições para que houvesse acumulação monetária Dessa forma podese considerar que a droga nesse período era centrada predominantemente na permuta mas não se exclui a pos sibilidade de já existir também ao mesmo tempo a convivência de formas de acumulação monetária centrada da venda da droga e não apenas na troca direta sem fins econômicos Nesse sentido historicamente o uso das drogas também vem sen do modificado de acordo com a evolução do ser social e as mudanças nas relações sociais e econômicas passando a ser atribuída à droga além do valor de uso o valor de troca subsunção caracterizado pelo dispêndio da força de trabalho humana com finalidade de troca ou venda do produto Configurase a droga portanto como uma merca doria Netto Braz 2010 p 80 Lima 2009 p 4950 aponta que a especialização na divisão so ciotécnica do trabalho foi um marco importante na transição das dro gas enquanto objeto com valor de uso para mercadoria com valor de troca De acordo com a autora o avanço tecnológico e científico pos sibilitou a passagem dessas substâncias de seu estado in natura para a condição de drogas enquanto mercadorias em estágio maduro e con solidado a partir do desenvolvimento da química e da farmacologia Assim as drogas passam do processo de produção mercantil simples em que são entendidas como plantas mágicas para produto mercantil inserido no modo de produção capitalista Esse marco da transição de valor de uso das drogas para o valor de troca chega à maioridade de forma consolidada a partir do século XIX quando a produção das drogas sofre grandes transformações a partir da Re volução Industrial e como parte desse processo surge a especializa ção na divisão sociotécnica do trabalho onde as drogas sejam elas proibidas ou não são produzidas pela indústria farmacêutica Esse Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 127 contexto oferece condições para o surgimento das drogas processadas e sintéticas Rocha 2013 p567 Seguindo esse raciocínio as drogas começam a se tornar um pro blema de saúde pública no processo de transformações das forças pro dutivas e dos meios de produção na medida em que o aumento da circulação e do consumo de drogas acompanha o desenvolvimento do capitalismo Brites 2006 p 65 Rita Cavalcante Lima também afirma Temse então como pressuposto de que o estágio imperia lista do capitalismo monopolista parece se constituir uma chave temporal para o entendimento da ruptura com uma posição social mais tolerante com o uso recreativo e ritua lístico das drogas no momento algumas delas tomadas de assalto pela norma jurídica transnacional do proibicionismo LIMA 2009 p 51 Nessa perspectiva as drogas só começam a se tornar um pro blema a partir da sociedade capitalista bem como vão ganhando complexidade na medida em que também se complexifica o modo de produção capitalista Portanto o produtor direto da mercadoria vende sua força de trabalho para produzir enquanto o dono dos meios de produção já não despende de seu trabalho pessoal mas da extração de maisvalia por meio da exploração do trabalho obtendo portanto lucro Netto Braz 2010 g 83 Na medida em que a droga vem tomando complexidade no seio da sociedade capitalista e se desenvolvendo como mercadoria as po líticas sobre drogas vêm se tecendo como espaço de disputa por inte resses de classe entre dois projetos sociais distintos No Brasil a Lei nº 11343 de 2006 promulgada com assessoria da SENAD contribuiu para retirar a aplicação de privação de liberdade no caso de posse de drogas para uso pessoal Lima 2009 p328 Os avanços relacionados a essa lei se referem à contribuição para a des criminalização do usuário de drogas na medida em que a legislação estabelece diferença entre porte para uso pessoal e porte com fins para a distribuição Contudo no plano material o que persiste é a crimina lização de usuários de drogas de classes sociais vulneráveis 128 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça O usuários ou as usuárias de drogas na sociedade são estigma tizados visto que pouco se discute o usuário de drogas das classe privilegiadas destacandose aqueles que estão em situação de rua ou vivendo nas favelas A criminalização é reforçada pela lei uma vez que não estabelece uma quantidade máxima de porte de drogas para uso pessoal64 Nesse sentido dadas as condições sociais e materiais em que o usuário de drogas se encontra mesmo portando drogas para uso pessoal ele pode ser enquadrado como traficante uma vez que a abordagem policial único mecanismo de investidas contra o tráfico de drogas ocorre principalmente nas periferias Assim a Lei de Drogas Lei nº 11343 no Brasil é bastante con troversa pois o que existe na prática é uma criminalização da pobreza De acordo com a lei não se deve criminalizar o usuário de drogas e sim o traficante mas atribuise a condição de traficante ao contexto em que ele se insere Ou seja a repressão que ocorre no setor varejista do tráfico de drogas também criminaliza o usuário de drogas mas não todo e qualquer usuário O proibicionismo é utilizado como um dos mecanismos de repressão social e o extermínio de classes perigosas ou seja pobres negros e periféricos Brites 2017 p 12 Outra mudança polêmica em relação à referida lei é o aumento da penalização ao traficante de drogas de três para cinco anos de re clusão sendo o tráfico considerado crime hediondo com exceção do tráfico privilegiado Contudo a penalização ao traficante ocorre quase que exclusivamente no setor do varejo que se cristaliza nas perife rias Essa penalização decorre de investidas de força militar dentro das favelas onde o Estado vem exercendo a violência política conforme explicita Gabriel Feltran A expressão violência política indica comumente um tipo de ação violenta dirigida em última instância por um Estado au toritário àqueles indivíduos que portam conjuntos coerentes de valores crenças ou projetos políticos contrários ao progra ma político oficial A violência política sempre especificamen te dirigida às palavras políticas e não somente aos corpos dos indivíduos seria então um indicador de sociedades marcadas pela divisão entre os grupos portadores de direitos e os que são ou deveriam ser ou serão banidos do estatuto do direito FELTRAN 2011 p 336 64 Embora este trabalho não busque realizar debate sobre essa questão entendese aqui que a determinação de quantidade também não seria a resolução para um problema macrossocial Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 129 Nesse sentido o Estado que baliza as relações sociais e econômi cas promove ações a favor do capitalismo e efetiva seu papel repres sivo sobre as camadas mais vulneráveis da população alicerçado no paradigma proibicionista A produção e o comércio de drogas ilícitas se utilizam da exploração do trabalho tornando essa atividade ainda mais lucrativa principalmente no setor de distribuição atacadista onde majoritariamente ocorre a corrupção dos agentes públicos e lavagem de dinheiro Por outro lado é no setor varejista que ocorre a repressão ao tráfico de drogas dentro das favelas por meio do Exército e da Polícia com a utilização da violência armada Fiori 2012 p 1415 Nesse sentido o combate às drogas tão veiculado pelos meios de comunicação também cumpre com a função do Estado para a ma nutenção dessa ordem por meio da ideologia proibicionista Mantém se assim o grande capital do tráfico de drogas nas mãos de poucos que se valem do mercado legal por meio da corrupção e da exploração do trabalho Essa questão é ainda mais agravada pela divisão sexual do trabalho demarcada pelo envolvimento da mulher no trabalho ilegal do tráfico de drogas Pesquisa realizada pelo INFOPEN MULHERES 2018 demons trou que a faixa etária de mulheres privadas de liberdade no Brasil é de 50 de jovens com idades entre 18 e 29 anos65 62 são solteiras66 com baixa escolaridade apenas 15 acessou o ensino médio67 e 62 das mulheres são negras68 Para suscitar esse debate chamase atenção para o dado de que 62 das mulheres encarceradas estão nes sa condição pelo crime hediondo de tráfico de drogas Merece desta que o fato de que pesquisa realizada pelo Infopen 2017 apontou que 65 Importante ressaltar aqui que amostra avaliada nessa seção é composta por 74 da população prisional feminina no Brasil e as informações de faixa etária consideram a idade de mulheres privadas de liberdade em anos completos em 30062016 Infopen 2018 66 Amostra avaliada nessa seção é composta por 62 da população prisional femi nina no Brasil Infopen 2018 67 Amostra avaliada nessa seção é composta por 73 da população prisional femi nina no Brasil Infopen 2018 68 Amostra avaliada nessa seção é composta por 72 da população prisional femi nina no Brasil Destacase também que o Infopen utiliza as categorias utilizadas pelo IBGE acerca da raça e cor portanto a categoria negra é constituída pelas categorias cor parda e preta utilizadas pelo IBGE Ressaltase que o Infopen realizou a coleta desses dados do formulário de coleta do Infopen preenchido pelos gestores não havendo o controle de autodeclaração dessa amostra In fopen 2018 130 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça o encarceramento masculino por tráfico de drogas corresponde a 26 dos registros dado inferior ao número de encarceramento feminino pelo mesmo crime Nesse sentido o que leva ao aumento do encarceramento femini no por tráfico de drogas nos últimos anos Refletir sobre essa questão requer uma compreensão da totalidade e dos elementos contraditórios concretamente postos na realidade social em suas mediações Portan to devemos considerar que a divisão sexual do trabalho é antes de tudo uma construção histórica e social marcada também pelo pro cesso de emancipação feminina visto que a mulher especialmente a mulher branca supera a condição tradicionalmente posta do traba lho na esfera reprodutiva doméstica para a esfera produtiva traba lho assalariado No entanto a divisão sexual do trabalho permanece demarcada por desigualdades sendo que os postos de trabalho da mulher na esfera produtiva são precarizados e ainda estigmatizados e na esfera da reprodução permanece a responsabilidade da mulher le vandoa a realizar um trabalho duplicado Nogueira 2011 p 1617 Seguindo com a reflexão a divisão sexual do trabalho imprime essas características ao trabalho ilegal do tráfico de drogas que tradi cionalmente é um trabalho exercido pelo sexo masculino e condiz com uma relação de poder exercida pelo homem colocando as mulheres em posições subalternas e precarizadas expondoas a situações mais vulneráveis levandoas com maior facilidade às prisões e agravando ainda mais a discriminação de raça e classe culturalmente presente na sociedade brasileira Nesses espaços a maioria das mulheres ocupa um lugar de coad juvante que permite um ganho econômico embora inferior e possi bilita a manutenção do espaço doméstico ou seja a esfera da reprodu ção Conforme Raquel Lima artigos do ITTC parte I 2015 funções femininas no tráfico de drogas são exercidas principalmente no setor varejista e dentro da hierarquia do tráfico de drogas a mulher exerce na maioria das vezes papel de coadjuvante em relação aos homens Contudo embora a mulher ocupe posição inferior à do homem ela ainda assim é penalizada por crime hediondo de tráfico de drogas salvo no caso do tráfico privilegiado sem que sejam consideradas essas peculiaridades Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 131 Conforme mencionado o levantamento do INFOPEN MULHE RES 2018 destacou o perfil das mulheres encarceradas jovens ne gras solteiras e com baixa escolaridade Outra informação relevante é que 74 das mulheres privadas de liberdade têm filhos69 por outro lado 74 das unidades prisionais são destinadas e projetadas para o sexto masculino Portanto possuem pouca ou nenhuma capacidade de espaço adequado a mulher privada de liberdade em permanecer ou realizar os cuidados referente ao cuidado dos filhos como por exem plo a amamentação O que nos leva a refletir que condições materiais e sociais essas mulheres têm para a produção e reprodução da vida social considerando as especificidades do sexo feminino Considerando o exposto a divisão sexual do trabalho que tam bém está presente no trabalho ilegal do tráfico de drogas coloca a mulher em situações discriminatórias que apesar de já presentes na vida da mulher são agravadas quando a leva ao encarceramento 3 Do Tráfico ao Cárcere lugares impensados para mulheres As desigualdades sociais presentes na vida das mulheres inseridas no trabalho ilegal do tráfico de drogas não se iniciam a partir do envol vimento nessa atividade Elas estão presentes em diversas esferas da vida social sendo a mulher submetida ao tráfico de drogas no mesmo contexto de desigualdades geradas pelo modo de organização da so ciedade e pela reprodução da herança patriarcal A divisão sexual do trabalho no tráfico de drogas conforme já exposto submete a mulher a condições precárias oferecendo maiores riscos e levando ao encarceramento com maior facilidade Se a guerra às drogas e a política proibicionista cumprem o papel de manter o modo econômico vigente pela alta taxa de lucratividade a divisão se 69 Importante destacar que segundo os dados do Infopen 2018 a informação so bre o número de filhos ainda é muito insuficiente em todos país sendo possível analisar apenas 7 da população prisional feminina O Instituto Terra Trabalho e Cidadania ITTC que tem realizado importantes pesquisa sobre o assunto aponta que segundo a pesquisa do Tecer Justiça mais de 81 delas tinham fi lhos sendo que 14 eram mães de 5 filhos ou mais disponível em httpittc orgbrmulheresetraficodedrogasumasentencatriplaparteii 132 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça xual do trabalho no tráfico de drogas permite a extração de maisvalia ainda mais acentuada colocando milhares de mulheres em condições subalternas e oferecendo maior risco de encarceramento Apesar de o tráfico de drogas ser responsável pela maior parte do encarceramento feminino de acordo com o INFOPEN MULHERES 2018 o crime de associação para o tráfico correspondem a 16 e do tráfico internacional de drogas apenas 2 das incidências Nesse sen tido podese observar que a maioria dessas mulheres não está ligada a grandes redes de organizações criminosas como também não ocu pam posições de alto nível hierárquico no tráfico já que essas posições se restringem sobremaneira ao sexo masculino Como se não bastasse ao ser levada ao cárcere a mulher sofrerá outras diversas violações e negligências de demandas específicas visto que as prisões femininas são pautadas pelo modelo de prisões masculinas já que a prisão não condiz com os papéis femininos impostos pelo modelo patriarcal Sil va 2013 p 60 O levantamento do INFOPEN MULHERES 2018 revelou que 45 das mulheres privadas de liberdade estão sem condenação ou seja aguardando julgamento outras 32 sentenciadas a regime fe chado 16 em regime semi aberto e apenas 7 em regime aberto considerando que a maior parte das mulheres estavam em estruturas prisionais masculinas 74 e mistas 17 contrariando documento da Regra das Nações Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade Regras de Bangkok70 que pre vê a necessidade de priorizar alternativas ao encarceramento levando em consideração as especificidades das relações sociais de sexo71 O documento das Regras de Bangkok 2016 embora tenha con tado com participação ativa do governo brasileiro nas negociações para sua elaboração no ano de 2010 foi traduzido e publicado no Bra sil apenas no ano de 2016 sendo que sua publicação oficial não garan te sua aplicação pelos poderes responsáveis O documento apresenta 70 regras sobre as condições específicas para mulheres encarceradas 70 Documento da ONU Organização das Nações Unidas conhecido como Regras de Bangkok promulgado pelo Conselho Nacional de Justiça CNJ com apoio do ITTC em 2016 71 Medida já apontada na Regras Mínimas das Nações Unidas sobre Medidas Não Privativas de Liberdade Regras de Tóquio Resolução 45110 da Assembleia Geral Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 133 visto que muitas instalações penitenciárias existentes no mundo foram concebidas primordialmente para presos do sexo masculino enquanto o número de presas tem aumentado significativamente ao longo dos anos Brasil 2016 p 14 Contudo na realidade nos deparamos com mulheres e seus filhos em ambientes que não contam com estrutura para oferecer cuidado adequado sendo essas mulheres muitas vezes privadas do direito à convivência com seus filhos do acesso à saúde entre outros direitos Diante dessa demanda é importante destacar Mães em Cárcere uma importante política pública de atendimento da Defensoria Públi ca de São Paulo regulamentada em fevereiro de 2014 com o objetivo de garantir os direitos das mães presas e de seus filhos como a convi vência familiar e o direito à amamentação Os registros de atendimen to dessa política apontaram que em 17 unidades prisionais do Estado de São Paulo foram registrados 2280 casos de atendimento ainda no ano de 2014 Defensoria Pública do Estado de São Paulo 2014 Considerando essa grande demanda é necessário refletir como vem sendo garantido o direito das mulheres encarceradas levando em consideração que é necessário discutir a questão da maternidade no sistema penitenciário Estruturas como cela específica para gestantes de berçário de creche e de centro de referência maternoinfantil com põem parâmetros de exceção no sistema carcerário brasileiro Confor me aponta pesquisa do INFOPEN 2018 apenas 55 unidades em to dos o país declararam apresentar celas ou dormitórios para gestantes No mês de abril de 2017 foi publicada a Lei nº 13434 que proíbe que mulheres presas sejam algemadas no momento do parto72 Em bora já houvesse normativas que promovessem a humanização das penitenciárias femininas o uso de algemas no parto ainda era uma prática muito recorrente Todas essas questões apontam para a necessidade de se repen sar o aprisionamento neste caso principalmente o das mulheres e o proibicionismo como principal resposta do Estado para lidar com a questão do tráfico visto que na prática essa abordagem existe como mecanismo de opressão de grupos sociais específicos mulheres ne gras pobres e periféricas 72 Disponível em httpwwwbrasilgovbrcidadaniaejustica201704leiproi bequemulherespresassejamalgemadasnoparto 134 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça CONCLUSÃO A conclusão desse debate não se esgota aqui visto que o objetivo não é oferecer resposta única e definitiva sobre o tema e sim lançar um novo olhar em relação ao encarceramento feminino por tráfico de drogas O Brasil é o quarto país que mais encarcera mulheres no mundo a população prisional vem crescendo cada vez mais e o paradigma proi bicionista legitimado pelas políticas públicas que reforçam a guerras às drogas tem se constituído como um mecanismo de repressão do Estado a determinados grupos sociais As investidas contra o tráfico de drogas no setor varejista se dão essencialmente pelo flagrante e re forçam um caráter racista classista e também machista na medida em que as condições das mulheres inseridas na divisão sexual do trabalho no mercado ilegal de tráfico de drogas têm se demonstrado como uma estratégia para a extração de maisvalia e em última instância para o mantimento da ordem social vigente O encarceramento feminino cresceu nos últimos anos e embora se tenha levado a pauta à discussão e publicado importantes documen tos que propõem uma revisão da legislação a fim de que se implantem medidas de redução de encarceramentos ou até mesmo melhorias no atendimento dos sistemas prisionais fazse necessário travar o debate no sentido da crítica ao sistema capitalista rumo à sua superação Assistimos a um retrocesso em relação à conquista de direitos sociais com a instauração de um governo ilegítimo que reforça ainda mais políticas de caráter repressivo e medidas a favor da classe bur guesa Portanto se faz mais que necessário nos dias atuais travar lutas a favor das minorias com vistas à emancipação humana Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 135 REFERÊNCIAS ANTUNES Ricardo Adeus ao trabalho ensaio sobre as metamorfo ses e a centralidade no mundo do trabalho 16 ed São Paulo Cortez 2015 Os Sentidos do Trabalho ensaio sobre a afirmação e a nega ção do trabalho São Paulo Boitempo Editorial 1999 BRASIL Lei nº 11343 de 23 de agosto de 2006 Institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre DrogasDiário Oficial da Repú blica Federativa do Brasil Brasília DF 2006 Disponível em http wwwplanaltogovbrccivil03ato2004 20062006leil11343htm Acesso em 10 de abril de 2018 Ministério da Justiça Infopen 2017 atualização ju nho de 2016 Disponível emhttpwwwjusticagovbrnewsha 726712pessoaspresasnobrasilrelatorio2016junhopdfAces so em 14 de julho de 2018 Ministério da Justiça Infopen Mulheres 2018 Disponível em httpdepengovbrDEPENdepensisdepeninfopenmulheres infopenmulheresarte070318pdf Acesso dia 14 de julho de 2018 Ministério da Justiça Regras de Bangkok regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não priva tivas de liberdade para mulheres infratoras Brasília DF 2016 Dis ponível em httpwwwcnjjusbrfilesconteudoarquivo201603 a858777191da58180724ad5caafa6086pdf Acesso em 10 de abril de 2018 Defensoria Pública do Estado de São Paulo Mães em Cár cere dados estatísticos de 2014 Disponível em httpsedisciplinas uspbrpluginfilephp383155modresourcecontent1Dados20 EstatC3ADsticos202014Geralpdf Acesso em 23 de dezembro de 2017 BRITES Cristina Maria Ética e uso de drogas uma contribuição da ontologia social para o campo da saúde pública e da redução de danos 2006 148 f Tese Doutorado em Serviço Social Pontifícia Universi dade Católica de São Paulo São Paulo 2006 136 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Psicoativos drogas e serviço social uma crítica ao proibi cionismo São Paulo Cortez 2017 CARNEIRO H As necessidades humanas e o proibicionismo das drogas no século XX Rev Out IES v 6 p 11528 2002 CISNE Mirla Gênero divisão sexual do trabalho e serviço social 2 ed São Paulo Outras Expressões 2015 ESCOHOTADO Antonio História Elementar das Drogas Tradução José Colaço Barreiros Portugal Editora Antígona 2004 FELTRAN Gabriel de Santis Fronteiras de tensão política e violência nas periferias de São Paulo São Paulo Editora Unesp 2011 p 336337 FIORE Maurício O lugar do Estado na questão das drogas o paradigma proibicionista e as alternativas Novos estud CEBRAP São Paulo n 92 p 921 Mar 2012 Disponível emhttpwwwscielobrscielophps criptsciarttextpidS010133002012000100002lngennrm isoAcesso em 19 de abr 2018 httpdxdoiorg101590S0101 33002012000100002 HIRATA Helena A precarização e a divisão internacional e sexual do trabalhoSociologias Porto Alegre n 21 p 2441 Junho 2009 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttex tpidS151745222009000100003lngennrmiso Acesso em 19 de abril de 2018 LIMA Rita de Cássia Cavalcante Uma história das drogas e do seu proibicionismo transnacional relações BrasilEstados Unidos e os or ganismos internacionais 2009 365 f Tese Doutorado em Serviço Social Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2009 LIMA Raquel C Mulheres e Tráfico de Drogas uma sentença tripla parte I Instituto Terra Trabalho e Cidadania ITTC 29 ago 2015 Disponível em httpittcorgbrmulheresetraficodedrogasu masentencatriplapartei Acesso em 10 de março de 2018 MARX Karl18181883 O capital crítica da economia política livro I tradução de Reginaldo Sant Anna 30º ed Rio de Janeiro Civili zação Brasileira 2012 NETTO José Paulo BRAZ Marcelo Economia políticaintrodução crítica 6 ed São Paulo Cortez pg 78 85 2010 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 137 NOGUEIRA Claudia M A feminização no mundo do trabalho Cam pinas Autores Associados 2004 O trabalho duplicado a divisão sexual no trabalho e na reprodução um estudo das trabalhadoras do telemarketing São Pau lo Expressão Popular 2011 PASSOS Rachel Gouveia Configurações do care no campo da saúde mental as mulheres cuidadoras em evidência Rev feminismos 2015 312535 RAMOS Luciana de Souza Por amor ou pela dor um olhar feminis ta sobre o encarceramento de mulheres por tráfico de drogas 2012 126 f il Dissertação Mestrado em DireitoUniversidade de Brasí lia Brasília 2012 ROCHA Andréa Pires Proibicionismo e a criminaliza ção de adolescentes pobres por tráfico de drogas Serv Soc Soc São Paulo n 115 p 561580 Sept 2013 Availab le from httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpi dS010166282013000300009lngennrmiso acesso em 19 abril de 2018 httpdxdoiorg101590S010166282013000300009 SILVA Vera Controle e Punição as Prisões para Mulheres Ex ae quo Vila Franca de Xira n 28 p 5972 2013 Disponível em httpwwwscielomecptscielophpscriptsciarttextpi dS087455602013000200006lngptnrmiso acessos em 19 abr 2018 138 DESPATRIARCALIZAR E DECOLONI ZAR A CRIMINOLOGIA CRÍTICA UM DIÁLOGO NECESSÁRIO Rayane Marinho Rosa73 Humberto Ribeiro Júnior74 Resumo O presente trabalho se constitui em uma revisão bibliográfi ca que objetiva refletir a necessária articulação dos estudos feministas raciais e decoloniais para a constante reconstrução de uma episte mologia criminológica que busca a compreensão da realidade social brasileira O pensamento criminológico bem como a maioria dos ou tros campos do saber se demonstra como uma ciência dominada e visibilizada por noções masculinas de branquidade e eurocêntricas Dessa forma suscitamos i a assimilação dos discursos positivistas e racistas na criminologia ii as contribuições e impactos das teorias feministas raciais e decoloniais nas organizações metodológicas e epistemológicas nesse campo de modo a aludir as necessárias imbri cações das categorias de raça gênero classe e localização geopolítica interconectadas com a modernidade e a colonialidade e iii os carac teres patriarcais racistas e colonialistas evidentes no cárcere feminino e no sistema de justiça criminal Palavraschaves epistemologias criminologias feministas encarce ramento feminino 73 Mestranda em Ciências Sociais PGCSUFES Bolsista CAPESFAPES Gra duada em Direito pela UFES Integrante do Grupo de Pesquisa Zacimba Gaba Criminologias Segurança Pública e Políticas Prisionais UVVES Email ra yanemarinhorosagmailcom 74 Doutor em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense Profes sor do Programa de PósGraduação em Segurança Pública da Universidade Vila Velha UVV e Coordenador do Grupo de Pesquisa Zacimba Gaba Criminolo gias Segurança Pública e Políticas Prisionais UVVES Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 139 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Investigações científicas advêm de inquietações que as antecedem O presente trabalho nasce de uma delas a verificação sobre o quanto o saber criminológico ainda é engendrado em concepções androcêntri cas racistas e colonialistas Isso porque o pensamento criminológico bem como a maioria dos outros campos do saber ainda se mostra uma ciência dominada e visibilizada por noções masculinas de branquida de e euroeuacêntricas Ou seja contraditoriamente uma teoria que se diz à margem na perspectiva crítica pode acabar por reproduzir tais concepções institucionalmente Ora se a Criminologia Crítica75 busca a compreensão da questão criminal tratando todo o sistema social político e econômico o pro cesso de criminalização e de seletividade e os mecanismos da realida de social como ela tem se desenvolvido cientificamente baseada numa ótica hegemônica masculinizada e racista que não se atenta devida mente à realidade concreta do Brasil Como tratar de forma complexa um contexto latinoamericano se utilizando majoritariamente de teo rias eurocêntricas por conseguinte localizadas e limitadas Repensar epistemologias não se trata somente como tentam de monstrar as epistemologias feministas e negras de incluir novos sujeitos como objetos de análise Os estudos de gênero na década de 1980 já questionavam os pressupostos científicos capazes de interferir na própria epistemologia das ciências em geral frisese aqui a cri minologia Ou seja para entender o sistema em sua forma mais com plexa e ampla a Criminologia Crítica precisa de forma constante in dagar as suas próprias formulações teóricas e metodológicas até então construídas na égide da ciência moderna A questão é isso invisibiliza saberes e resistências que passam a ser tidos como subalternos Des 75 Entendese por Criminologia Crítica um movimento do pensamento crimi nológico contemporâneo que visa uma percepção materialista do desvio dos comportamentos socialmente negativos e da criminalização movimento este transdisciplinar e não homogêneo Baratta 2011 p159 Diferenciase da tra dicional quando se desloca para compreender o processo de criminalização a partir de uma interpretação macrossociológica percebendo as relações de poder que irão determinar esse processo Baratta 2011 p 211 Andrade 2007 p 54 Como sintetiza Thula Pires 2017 p 546 tal concepção foi alicerçada a partir de reflexões advindas da teoria do etiquetamento antipsiquiatria marxismo e ceti cismo além do pensamento crítico e radical dos pensadores da América Latina 140 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça tarte ainda permanece como desafio para essa problemática meto dológica a ampliação das compreensões que deem conta da realidade latinoamericana abarcando essa lente contrahegemônica Por isso somase a um caminho já percorrido por criminólogas que ousaram pensar a partir da realidade concreta sociopolítica do continente76 os pensamentos póscoloniais e decoloniais77 que po dem contribuir nessa metodologia que pretende refletir seu momento histórico seu próprio contexto A ideia central destes estudos é de monstrar como a empreitada dominadora do colonialismo que se em outras épocas serviu no projeto de colonização econômica política e administrativa do Terceiro Mundo assume hoje novas formas perdu rando em nossas intersubjetividades e intelectualidade Os estudos decoloniais feministas dão continuidade às críticas já denunciadas pelos feminismos negros que compreendem o quanto as teorias tradicionais não dariam conta na interpretação das opressões sofridas pelas mulheres racializadas e de origens de territórios coloni zados EspinosaMiñoso 2014 p 8 Aliás daí se dá também outro alinhamento as perspectivas ne gras criminológicas Isso porque a criminologia reconhecida como crítica nas suas premissas acaba por reproduzir o monopólio conser vador da branquitude nas suas posturas analíticas segundo descreve brilhantemente Ana Flauzina na contracapa da obra de Luciano Góes 2016 À vista disso objetivouse no presente trabalho explorar de que forma as categorias de gênero raça classe e localização geopolítica se refletem como categorias essenciais a serem imbricadas em quaisquer teorias críticas das humanidades em específico da criminologia brasileira Para isso as indagações centrais que norteiam a pesquisa são é possível um diálogo entre a Criminologia Crítica a Criminologia Feminista o Feminismo Negro78 e os estudos decoloniais De que ma 76 Pensar uma Criminologia para a América Latina não é uma novidade como já nos apontava Rosa del Olmo 2004 e Lola de Castro 2005 Tais contribuições serão adequadamente suscitadas no segundo item deste trabalho 77 Adotase na presente proposta a terminologia decolonial ao invés de descolonial no mesmo sentido que descreveu Cattharine Walsh Apesar de não ser unânime tratase de uma demarcação política que a diferenciaria do projeto de descolo nização Walsh 2009 p 1415 nota de rodapé 78 Importante ressaltar que existem feminismos negros em suas mais variadas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 141 neira ressaltar gênero raça e localização geopolítica pode contribuir na compreensão da realidade social brasileira e seus mecanismos de controle e de seletividade Para isso o presente trabalho abordou inicialmente a assimilação dos discursos criminológicos positivistas e racistas na América Latina bem como a importância da reformulação epistemológica e metodo lógica do campo a partir das contribuições sobremaneira de Luciano Góes 2016 e Evandro Piza Duarte 2011 Em seguida pretendeuse percorrer as contribuições dos estudos feministas na criminologia le vantadas em especial por Soraia da Rosa Mendes 2014 e Eugenio Raúl Zaffaroni 1992 identificandose ainda inconsistências que per duram nesse campo crítico Ainda neste segundo tópico percorremos os estudos criminológicos latinoamericanos com as obras das vene zuelanas Lolita Aniyar de Castro 2005 e Rosa Del Olmo 2004 para após aludir sobre os estudos póscoloniais e decoloniais mormente as contribuições de Espinosa Miñoso 2014 que alerta para a necessária imbricação de raça classe gênero e sexualidade interconectadas com a modernidade e a colonialidade Por fim a partir desse emaranhado de aportes teóricos pretendeuse no último tópico abordar os carac teres patriarcais racistas e colonialistas evidentes no cárcere feminino e no sistema de justiça criminal 1 A assimilação dos discursos criminológicos positivistas e racis tas na América Latina O processo de desumanização dos nãobrancos produto da colonia lidade foi a todo tempo conformado e legitimado por um conjunto de práticas e discursos Na formação do controle penal moderno a produção científica foi mobilizada para corroborar com velhas práti cas e teorias justificando a manutenção do statos quo Nesse contexto interpretações e análises Inclusive ver trabalho de Figueroa e Hurtado 2014 sobre vertentes como o feminismo afrolatinoamericano e o feminismo africano Como aduz Collins o pensamento feminista negro seria como um mosaico de ideias e interesses concorrentes obviamente com contradições fricções e incon sistências mas concordando com a autora neste trabalho enfatizaremos nas pe ças do mosaico e em suas contribuições como um todo coerente por uma opção política Collins 2000 p xiii do Prefácio 142 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça de pósabolição79 a necessidade de manutenção da ordem hierárqui caracial brasileira fez com que o processo de tradução da teoria lom brosiana em rodrigueana legitimasse a prática de ordem e de controle racial segregacionista Góes 2017 p 279 Abrindose um parênteses Evandro Piza 2011 p 206 ao discorrer sobre os precursores da Cri minologia no Brasil Tomas Barreto Nina Rodrigues e Clóvis Bevilá qua devido às suas contribuições na produção posterior adverte que suas teorias não foram simplificadamente causas das práticas racistas da sociedade brasileira ao contrário manifestamse como respostas das relações de poder e como forma de se perpetuarem tais práticas discriminatórias As ideias cientificistas evolucionistas positivistas e racistas do século XIX encontraram no Brasil um território fértil para se recria rem em um paradigma racistaetiológico como um processo de me tamorfose por meio da tradução do paradigma racial de Lombroso pelo médico Nina Rodrigues era a ideia da boa miscigenação ges tada pela ciência marginal que interpretou a teoria original de modo singular marco de uma ciência à brasileira Góes 2017 p 63 Ou seja não foi só um processo de recepçãoassimilação simples Nina Rodrigues em um diálogo centromargem potencializa os pas sos de Lombroso inserindo a mestiçagem como fator degenerativo na teoria original daí sua originalidade além de substituir o este reótipo pelo fenótipo como reconhecimento da inferioridade logo da criminalidade Góes 2016 p 280 Importa frisar que apesar de uma aparente derrota na formalização de um apartheid brasileiro que por pouco não foi implementado suas contribuições teóricas e práti cas reformuladas puderam dar seguimento à política assimilacionista que fundou a farsa de nosso paraíso racial Góes 2017 p 62 2016 p 283 Expostas em linhas gerais o que é relevante enfrentarmos é jus tamente as permanências desse racismo científico e do positivismo seja no campo criminológico tradicional seja como resquícios e refle xos na crítica Se o negro foi alçado a objeto de investigação científica desde o póscolonial urge rompermos isso radicalmente nas nossas produções 79 Para um aprofundamento a respeito do percurso histórico do controle sociopu nitivo no período colonial e póscolonial conferir Prando 2006 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 143 Felipe Freitas 2016 p 490 ao analisar as rupturas e perma nências na trajetória do pensamento brasileiro acerca da seletividade penal enfatiza sobre o silêncio criminológico perante o tema das relações raciais buscando também hipóteses explicativas Apesar do pioneirismo nas formulações teóricas a respeito do falacioso discurso penal do encarceramento e do extermínio bem como do perfil racial e passado escravista brasileiro para ele tais constatações não foram suficientes para a aproximação do campo com o movimento negro e sua demanda em relação ao racismo estrutural da sociedade brasileira Freitas 2016 p 491 É o que denunciam Márcia de Calazans Evandro Piza Camila Prando e Ricardo Cappi 2016 p 454455 quando apontam que a Criminologia Crítica tem dado respostas à questão criminal que di zem muito mais sobre o poder da branquidade80 na Academia seus privilégios e posturas de silenciamentos do que realmente uma abor dagem que se aprofundasse no racismo e nas relações raciais em si Para Thula Pires 2017 p 548 esse silenciamento é fruto do pacto narcísico quanto a sua branquitude um acordo tácito consciente ou não de não reconhecimento de como seus privilégios materiais e simbólicos coadjuvam para a reprodução do racismo Apesar das produções sobre dos caminhos de resistência da ne gritude brasileira e do racismo estrutural como Duarte 2002 Flau zina 2017 Goés 2016 e Freitas 2016 a Criminologia enquanto campo científico dominado pela branquidade não tem conseguido incorporar com centralidade o racismo não se inteirando das rela ções que podem se estabelecer entre o racismo o sexismo e o sistema penal Franklin 2017 p 489490 Fato é que os criminólogos críticos diferentemente dos positivis tas e clássicos apontaram a seletividade racial do controle social a ra cialização do sistema penal e evidenciaram seus reflexos na perversa estratégia de estigmatização Oliveira Pires 2017 p 547 Por isso 80 Os autores Piza Queiroz e Costa exploram que há uma variação quanto ao emprego de branquidade e branquitude sintetizando o primeiro como a identidade racial branca não questionadora de seus privilégios adotado como tradução do termo whiteness empregado na obra Ware Vron Branquidade identidade branca e multiculturalismo Rio de Janeiro Garamond 2004 en quanto o termo branquitude indicaria o indivíduo branco que questiona suas vantagens raciais Duarte Queiroz Costa 2016 p 1 144 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça são aliados históricos dos movimentos negros motivo pelo qual todas essas críticas são expostas não como rompimento81 mas como um verdadeiro convite para produzirmos alternativas pujantes e potencia lizar a criminologia contemporânea Oliveira Pires 2017 p 544547 Ainda que denunciando o racismo institucional essa tradição criminológica reproduzindo a narrativa do negrotema abordou a clivagem racial do sistema penal a partir de categorias e valores eu rocêntricos e de uma visão do negro esteriotipada e homogeneizada Oliveira Pires 2017 p 547 Ou seja se desenvolveu de maneira a interpretar apenas a classe trabalhadora branca masculina hetero negando a dimensão estrutural e estruturante da raça e de gênero de modo ser necessário alcançar outros padrões imbricados a classe sob pena de não ser possível descolonizar a criminologia Oliveira Pires 2017 p 551 2 As contribuições dos estudos feministas e latinoa mericanos na criminologia Paradoxalmente como já exposto o pensamento criminológico ain da que sob o manto da crítica mostrase uma ciência dominada e visibilizada por noções masculinas de branquidade e eurocêntricas Necessitando então tratar como a questão de gênero foi identifica da na construção do saber criminológico até a atualidade remetemo nos à obra de Soraia da Rosa Mendes 2014 p 73 na qual não por acaso aponta no primeiro capítulo de sua obra que sua busca findou restando a inconformidade e adverte o quanto os conhecimentos cri minológicos pouco ou nada dizem sobre as mulheres como sujeitos de realidades históricas sociais econômicas e culturais marcadas por diferenças decorrentes de sua condição Era um discurso de homens para homens e sobre homens Mendes 2014 p 157 Para o paradigma feminista não bastaria incluir as questões raciais e das mulheres no conhecimento até aqui produzido Por ve 81 Em outras palavras longe de uma caçada pretendese promover um espaço de escuta de revisão dos próprios trabalhos através do reconhecimento dos códigos através dos quais a branquitude opera e de aprimorar a crítica através do enfren tamento ao racismo em outros termos Oliveira Pires 2017 p 594 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 145 zes as categorias de gênero e de raça são tidas apenas como variáveis apensos como se pudessem ser somadas às análises já existentes ou construídas como disciplinas marginais que não interfeririam em todo o campo Esquecem no entanto a necessidade de uma releitura constante de categorias conceitos e pressupostos para a permanente construção epistemológica de uma criminologia verdadeiramente li bertária Reconhecendo as contribuições feministas à crítica da ciência an drocêntrica Baratta 1999 p 20 admite o quanto tal paradigma asse gura a dominação masculina ao mesmo tempo que esconde e mantém ignorada a questão de gênero Zaffaroni 1992 p sn tradução nossa alerta que essa omissão é suspeita ao passo que uma omissão em um discurso em regra esconde uma das facetas de sua perversão Analisar o controle punitivo e a seletividade somente com base no exercício de poder das agências de criminalização foi insuficiente já que não revelava toda a extensão e menos ainda toda a intensidade do controle punitivo Zaffarani 1992 p sn Negligenciava não por acaso ou por coincidência a maior parte e a mais importante do poder punitivo que é o poder de vigilância Zaffaroni 1992 p sn tradução nossa Sendo em essência o poder verticalizante do mo delo corporativo da sociedade esse poder de vigilância nada mais é do que a contrapartida da criminalização Importa por último evi denciarmos que o poder de vigilância não é menos importante nem incide menos pois é tão fundamental e estruturante quanto sendo necessário não hieraquizarmos para compreender de fato todo o con trole social As leituras sobre a constituição do controle punitivo moderno na América Latina e mais especificamente no Brasil precisam levar em conta as peculariedades de nossa região marginal Se as análises da formação e dos discursos legitimadores do controle punitivo na Europa Ocidental mais especificamente França e Inglaterra rela cionamse com a formação do Estado Moderno logo como objeto os meios institucionais e publicizados de punição a constituição do controle sociopunitivo póscolonial na realidade marginal colonizada é marcada por especificidades Prando 2006 p 7785 146 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Ao se constatar um distanciamento entre o desenvolvimento do controle penal latinoamericano e seus discursos legitimado res importados da Europa Central a Criminologia latinoame ricana tornase atenta para as diversidades da emergência do controle punitivo e deparase com a compreensão histórica da existência de sistemas penais paralelos e subterrâneos PRAN DO 2006 p 87 Lola Aniyar de Castro 2005 foi criminóloga pioneira que ainda no cenário marcado por ditaduras no continente destacouse entre os juristas latinoamericanos insatisfeitos com a incapacidade do positi vismo hegemônico em dar conta das problemáticas do controle social na periferia do capitalismo Outra engajada para incorporar a Améri ca Latina à história da criminologia é a grande intelectual e militante crítica Rosa del Olmo 2005 que nos dizeres de Vera Malaguti é uma das maiores intelectuais do continente não hesito em afirmar que ela seria muito mais reconhecida se pertencesse ao gênero masculino82 Inconformada pela inexistente ou escassa referência à América Latina nas histórias do pensamento criminológico escrita por es pecialistas dos países hegemônicos Rosa del Olmo se propõe em sua obra a percorrer e a narrar esse desenvolvimento tanto para contribuir na incorporação do continente quanto para superar diversos mitos cientifícos propagados que tanto sustentam a dependência necolo nial Del Olmo 2004 p 1719 É esse um desafio que a aproximação decolonial nos faz destacar há uma historia da criminologia latinoamericana que precisa ser levada a sério nas nossas análises Conhecer os esforços por vezes até sangrentos83 do desenvolvimento e reafirmação de uma criminologia própria que desde 1974 a partir dos Grupos Latinoa 82 Batista Vera Malaguti Prefácio In Del Olmo Rosa A América Latina e sua criminologia Rio de Janeiro ICCRevan 2004 83 A autora ao narrar em seu primeiro capítulo o processo de constituição dos grupos e do movimento para a construção de uma teoria crítica do controle so cial na América Latina denuncia o perigo de se fazer criminologia crítica liber tadora por ser perigosa aos que exercem o poder citando colegas professores que sofreram acidentes ou foram assassinados no contexto de ditaduras militares em seus países De Castro 2005 p 2829 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 147 mericano de Criminologia Comparada e de Criminologia Crítica di rigiu esforços a examinar as realidades específicas de cada país nos faz entender que essa reconstrução é constante De Castro 2005 p 22 34 Diferente do positivismo que se consagrava como único critério de cientificidade a teoria criminológica latinoamericana ou melhor uma forma de fazer criminologia na América Latina deverá ser sem pre em revisão uma atividade crítica permanente dando conta das diferenças locais articulando a situação de dependência e coloniza ção até porque os criminólogos críticos de amanhã tampouco serão os criminólogos críticos de hoje De Castro 2005 p 61 e 105 Dessa forma a produção de conhecimento provinda de América Latina por ampliar o objeto de estudo contribui significativamente para o campo criminológico crítico Por conseguinte somase a esse caminho já percorrido por cri minólogos que ousaram pensar a partir da realidade concreta socio política do continente os pensamentos póscoloniais e decoloniais que podem contribuir nessa metodologia que pretende refletir seu momento histórico seu próprio contexto 3 Epistemologias insurgentes os estudos póscolo niais e decoloniais Entendendo a importância de considerarmos as complexidades dos sujeitos seus contextos históricos e as relações de poder existentes o presente trabalho evoca ainda os estudos póscoloniais e decoloniais enquanto importantes contribuições a serem consideradas no campo criminológico Segundo a cientista social Luciana Ballestrin o póscolonial con siste no conjunto de contribuições teóricas oriundas principalmente dos estudos literários e culturais que a partir dos anos 1980 ganharam evidência em algumas universidades dos Estados Unidos e da Ingla terra Ballestrin 2013 p 90 Ainda que não de maneira unívoca em um sentido amplo e geral Ballestrin compreende o movimento como sendo comprometido com a superação das relações de colonização colonialismo e colonialidade Ballestrin 2013 p 91 148 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Nessa seara importante diferenciar o processo de colonização e colonialismo do que os autores demarcam com centralidade de colo nialidade Colonialismo compreende a empreitada imperialista dos países europeus que colonizaram as Américas entre os séculos XVI e XIX e a Ásia e a África entre os XVIII e XX Ao passo que os teó ricos póscoloniais explicitam como esse fenômeno não implicou so mente no momento histórico do imperialismo mas ainda reverbera e estrutura as nossas relações no presente em uma face oculta da mo dernidade a colonialidade MiglievichRibeiro 2014 p 68 Assim o colonialismo continua construindo subjetividades corporalidades conhecimentos espacialidades e práticas sociais Andrade 2017 p 73 Isso porque mesmo após o período de colonização não ocorreu uma ruptura tanto em suas dimensões políticas e econômicas quanto a nível epistêmico Para explicitar esse processo as teóricas e teóricos póscoloniais e decoloniais sublinham importantes estruturas que merecem aqui nos so destaque a racialização do mundo para a supremacia do capitalis mo como eixo estrutural da modernidade já explicitada no primeiro tópico do artigo a constituição de alteridade o outro ocidental e a colonialidade de gênero a seguir trabalhadas A radicalização das reflexões póscoloniais no continente latino americano impulsionou a teorização dos estudos decoloniais Nessa acepção o giro decolonial significa o movimento de resistência teóri co e prático político e epistemológico à lógica da modernidadeco lonialidade Ballestrin 2013 p 105 Como toda construção de co nhecimento a crítica decolonial é reelaborada e alicerçada a partir de conhecimentos híbridos e heterogêneos advindos desde a linhagem crítica e anticolonialista do pensamento latinoamericano à teologia e filosofia da libertação até a teoria da dependência se aproximando ainda nos anos 80 com os debates da modernidade e da pósmoderni dade e nos anos 90 com os estudos culturais sendo influenciada ain da pelos estudos subalternos sulasiáticos póscoloniais pela filosofia africana e pelos estudos feministas MiglievichRibeiro 2014 p 73 Para dominação do projeto colonial o dominador europeu construiu o outro como objeto de conhecimento oriente e também construiu uma imagem egocêntrica de seu próprio locus enuntiationis ocidente no processo de exercer domínio CastroGómez 2005 p Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 149 21 É justamente criticando essa construção da alteridade do ou tro da civilização europeia a partir da mentalidade obsidional oci dental que ainda está tão embrenhada até na nossa forma de pensar e é tão fundamental para a manutenção do poder que Vera Malaguti alerta para a necessidade de se produzir um pensamento descoloni zante e descolonial sobre a questão criminal Batista 2017 Produzir direito penal criminologia e política criminal a partir dos nossos lu gares mergulhando na nossa história compreendendo a história do controle social no Brasil mediante as matrizes ibéricas o genocídio colonizador e a gênese da escravidão para então produzir uma crimi nologia descolonial Batista 2017 4 As contribuições feministas decoloniais Os autores decoloniais irão frisar como a categoria raça foi essen cial para a empreitada colonizadora na medida em que construída na justificação desse Outro como diferente inferior em relação ao ideal moderno europeu Para Quijano 2000 p 368 trabalho raça e gênero são as três linhas articuladas que classificam as pessoas uma estrutura global por meio da colonialidade de poder Referenciado nas contribuições das perspectivas feministas e de diferenças raciais subalternas Grosfoguel 2007 p 213 nos lembra que a fala é sempre a partir de determinado local nas estruturas de poder onde ninguém escaparia da diferença de classe sexualidade gênero espiritualidade hierarquias lingüísticas geográficas e raciais do sistemamundo mo dernocolonialcapitalistapatriarcal É justamente essa necessária imbricação entre raçasexogê nero como produto da modernidade que as feministas decoloniais irão fazer questão de frisar María Lugones 2014 filósofa argentina problematiza a noção de colonialidade do poder de Quijano com plexificando e introduzindo o conceito de colonialidade de gênero Não mais como apenso a colonialidade de gênero é entendida como categoria fundamental como o que constitui o sistema de poder ca pitalista global pois além de classificar os povos realiza um proces so de redução ativa das pessoas tornando algumas menos que serem humanos asos colonizadasos Lugones 2014 p 939 E ressaltase 150 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça diferentemente da colonização a colonialidade de gênero ainda está conosco Lugones 2014 p 939 Lugones ainda dá ênfase à relação oprimir versus resistir demons trando interesse na resistência de modo que sublinha as resistências concretas vividas à colonialidade de gênero Lugones 2014 p 942 Isso porque o processo de colonização não é totalmente vitorioso há uma tensão entre o que é construído pelo colonizadorcolonialidade e a subjetividade ativa dasos colonizadasos contra a invasão colonial seres tanto oprimidos como resistentes continuamente resistido e resistindo até hoje Lugones 2014 p 942 Daí a importância em descolonizar o gênero sendo essa possibilidade de superação denomi nada de feminismo descolonial Lugones 2014 p 941 Também é nesse seguimento que chamamos ao debate as con tribuições de Yuderkys Espinosa Miñoso 2014 para uma produção teórica antirracista e decolonial Dando continuidade ao legado do feminismo negro de cor e das afrodescendentes a autora sustenta que mesmo as epistemologias feministas que conseguiram incorpo rar a demanda das mulheres negras não conseguiram romper com as premissas básicas da teoria feminista hegemônica de uma opres são baseada no gênero como categoria dominante fundamental para explicar a subordinação das mulheres Espinosa Miñoso 2014 p 9 tradução nossa Esse ocultar a imbricação das categorias raçaclasse gênerosexualidade como estruturas de dominação e relutar abando nar os velhos quadros interpretativos hegemônicos Espinosa nomeia racismo de gênero Una imposibilidad de la teoría feminista dereconocer su lugar de enunciación privilegiada dentro de la matriz moderno colo nial de género imposibilidad que se desprende de sunegación a cuestionar y abandonar este lugar a costa de sacrificar invisi bilizando diligentemente el punto de vista de las mujeres en menor escala de privilegio es decir las racializadas empobre cidas dentro de un orden heterosexual ESPINOSAMIÑOSO 2013 p 50 Perceba que ao tratar dessa articulação das categorias como for ma analítica para a Criminologia não se quer nem abandonar a cen Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 151 tralidade da noção de raça na classificação e dominação social nem mesmo pretender explicar todas as categorias em uma única Andra de 2017 p 91 Gomes 2018 p 79 A questão é que nem a raça sozinha promoveu essa forma de inferiorização dos sujeitos nem o gênero sozinho produz hierarquizações estereótipos ou relações de dominação Gomes 2018 p 7879 Na linha do que venho sustentando evidentemente pensar gê nero deve nos remeter muito mais a uma concepção moderna e oci dental do que universalizante84 Por isso chamo ao debate as contri buições de Camilla de Magalhães Gomes 2018 p 78 que ressalta o perigo de teorias conceitos e práticas que mesmo querendo se afastar do homem universal se deslocam para a mulher universal ao es sencializar sujeitos e experiências O que se sugere é que tais mecanismos não se sustentaram sepa radamente e de forma impermeável Fazendo analogia à Djamila Ri beiro85 tanto classe informa a raça quanto raça informa classe assim como gênero informa raça e viceversa e ainda gênero informa a co lonialidade de maneira que não é possível pensar colonialidade sem incluir gênero Gomes 2018 p 70 Nessa senda a raça e o racismo junto à ideia de que alguns sujeitos possuíriam sexo e outros gênero como quem se opõe natureza e cultura que criaram a ideia de nãohu manos racializados Gomes 2018 p 79 grifos no original 5 Encarceramento em massa seletividade penal e vulnerabilidade o cárcere feminino e o sistema de justiça criminal De acordo com os dados mais recentes produzidos especificamente sobre as mulheres privadas de liberdade no Brasil a população car cerária feminina escalou de menos de 6 mil e alcançou a marca de 42 mil custodiadas representando um crescimento de 656 no período de 2000 a 2016 Infopen Mulheres 2017 p 14 Destas 45 nem se 84 Como já nos demonstrou Segato 2018 e Marilyn Strathern 2006 85 Ribeiro Djamila Prefácio In Davis Angela Mulheres raça e classe São Pau lo Boitempo 2016 1981 152 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça quer foram condenadas e no que tange ao perfil 62 são mulheres negras86 Infopen Mulheres 2017 p 19 e 40 Se os números de encarceramento assustam e demonstram o alvo a ser criminalizado no Brasil diante do acúmulo teórico proposto não poderíamos nos restringir somente ao que é visível ou reflexo das agências de controle formal A realidade é que a matriz central da pu nição se sustenta fundamentalmente nas mulheres negras Flauzina 2016 p 97 Ainda que sejam os homens mais criminalizados em sua maio ria negros é na exploração das mulheres negras o sistema penal se ampara A função feminina viabiliza o encarceramento masculino seja provendo sustentos nas filas dos presídios no acompanhamento judicial são elas quem pagam a fatura do abandono Flauzina 2016 p 97100 Em síntese é no lombo das pretas que o encarceramento vai mantendo sua estrutura vilipendiosa e exterminadora no Brasil Flauzina 2016 p 102 Uma contribuição invisibilizada não obstan te ser fundamental na dinâmica do controle social A dinâmica decor re em grande medida da exploração financeira emocional e sexual de mulheres onerando desproporcionalmente as mulheres negras nes se secular processo de genocídio do povo preto no Brasil Flauzina 2016 p 102 Oliveira Pires 2017 p 558 Ao observar os dados expostos é significativo problematizar o andamento do encarceramento como projeto materializado de uma política genocida assumido desde a Abolição da escravatura com a qual nunca se rompeu efetivamente Flauzina p 147 Nesse sentido esse projeto político de genocídio se demonstra como uma chave de explicação para compreender como o racismo se opera Oliveira Pi res 2017 p 557 As formulações teóricas levantadas nos ensejam sobre a realidade de um sistema de justiça criminal sedimentado no racismo no ma chismo no classismo e no colonialismo enquanto estruturantes do sistema punitivo brasileiro 86 Ressaltase que a categoria negra de acordo com o IBGE inclui pretas e pardas Além disso a informação sobre raçaetnia só estava disponível para 72 dessa população não representando o todo populacional Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 153 É preciso reconhecer que o racismo estrutura as narrativas so bre nossa noção de humanidade Não é só a bala da arma que mata mas uma série de dispositivos físicos e simbólicos que vão impedindo a possibilidade de afirmação da humanidade negra em nossa sociedade FREITAS 2016 p 495 Portanto ao lado da denúncia do caráter seletivo e de extermínio do sistema penal precisamos também discutir nossas escolhas me todológicas e teóricas por meio de uma lente epistemológica imbrica da Oliveira Pires 2017 que rompa radicalmente com as estruturas opressoras que condicionaram nossas formulações a fim de uma cons trução da nossa criminologia verdadeiramente crítica CONSIDERAÇÕES FINAIS As reflexões expostas neste trabalho permitiram constatar como a pro dução hegemônica acadêmica do campo criminológico ainda é mar cada por noções masculinas de branquidade e eucentradas Tomamos como fio condutor os aportes teóricos da Criminologia Crítica em suas vertentes feministas e negras para escancarar inconsistências que ainda perduram nesse campo crítico Somase a isso o caminho traça do por importantes teóricas e teóricos que buscaram e ainda buscam a construção de uma criminologia à margem comprometidos com a nossa realidade latinoamericana aliando ainda os pensamentos pós coloniais e decoloniais a fim de desvelar a necessidade de contextua lização e ressignificações teóricas e metodológicas Além da denúncia quanto à racialização do sistema penal as contribuições das feminis tas negras decoloniais se mostraram essenciais para frisar a necessária imbricação de categorias para nossas análises criminológicas Ao fim e ao cabo os desafios postos ao campo criminológico a partir das críticas e contribuições dos saberes feministas negros e de coloniais alertam para a urgente necessidade de revisão das epistemo logias modernas São essas necessárias reformulações de categorias e concepções centrais norteadoras que buscamos evidenciar no domí nio teórico a fim de uma construção de uma criminologia brasileira cada vez mais referenciada a partir das nossas histórias nossos sujei tos e especificidades para um campo verdadeiramente libertário 154 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça REFERÊNCIAS ANDRADE Camila Damasceno de O controle penal moderno co lonialidade do poder e aprisionamento feminino Revista Brasileira de Ciências Criminais São Paulo Ed RT v 129 ano 25 p 69105 mar 2017 ANDRADE Vera Regina Pereira de A soberania patriarcal o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher Direito Público Porto Alegre ano 5 n17 p5275 julset 2007 BARATTA Alessandro Criminologia crítica e crítica ao direito pe nal introdução à sociologia do direito penal 6 ed Rio de Janeiro Revan 2011 O paradigma do gênero da questão criminal à questão hu mana In CAMPOS Carmen Hein de org Criminologia e Femi nismo Porto Alegre Sulina 1999 BATISTA Vera Malaguti BATISTA Nilo Criminologia crítica e crí tica ao direito penal brasileiro Defensoria SP 2017 Disponível em httpswwwyoutubecomwatchvFZ4zJ7omK6s Acesso em 11 mar 2018 BRASIL Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN Mulheres 2º ed Brasília Ministério da Justiça e Segurança Pública Departamento Penitenciário Nacional 2017 CASTROGÓMEZ Santiago La poscolonialidad explicada a lós niños Popayán Universidad del Cauca Instituto Pensar Universidad Javeriana 2005 COLLINS Patricia Hill Black feminist thought knowledge con sciousness and politics of empowermente 2 ed New York Routledge 2000 DE CASTRO Lola Aniyar Criminologia da libertação Trad Sylvia Moretzsohn Rio de Janeiro ICCRevan 2005 DE CALAZANS Marcia Esteves et al Criminologia crítica e questão racial Caderno do CEAS Salvador n 238 p 450463 2016 DEL OLMO Rosa A América Latina e sua criminologia Rio de Ja neiro ICCRevan 2004 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 155 DUARTE Evandro Charles Piza Criminologia racismo introdu ção à criminologia brasileira 1 ed Curitiba Juruá 2011 DUARTE Evandro C Piza QUEIROZ Marcos V Lustosa COSTA Pedro H Argolo A Hipótese Colonial um diálogo com Michel Fou cault a Modernidade e o Atlântico Negro no centro do debate sobre Racismo e Sistema Penal Universitas Jus v 27 p 0131 2016 ESPINOSAMIÑOSO Yuderkys Una crítica descolonial a la epis temología feminista crítica El Cotidiano n 184 p 712 marabr 2014 Y la una no se mueve sin la otra descolonialidad antirracis mo y feminismo una trieja inseparablepara los procesos de cambio Revista venezolana de estudios de la mujer v 21 n 46 p 4764 janjun 2016 FIGUEROA Aurora Vergara HURTADO Katherine Arboleda Fe minismo afrodiaspórico uma agenda emergente del feminismo negro em Colombia Universitas humanística v 78 n 78 p 110134 2014 FOX KELLER Evelyn Qual foi o impacto do feminismo na ciência In LOPES Maria Margareth Org Cadernos Pagu Ciência Subs tantivo Feminino Plural Campinas SP Núcleo de Estudos de Gênero Universidade Estadual de Campinas n 27 p 1334 juldez 2006 FLAUZINA Ana Luiza Pinheiro Corpo negro caído no chão o sis tema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro 2 ed Brasília Brado Negro 2017 O feminicídio e os embates das trincheiras feministas Dis cursos Sediciosos Rio de Janeiro n 2324 p 95104 2016 FRANKLIN Naila Ingrid Chaves O controle social e as mulheres ne gras possibilidades e releituras para a criminologia feminista Revista Brasileira de Ciências Criminais São Paulo Ed RT v 135 ano 25 p 487518 set 2017 FREITAS Felipe da Silva Novas perguntas para criminologia brasilei ra Poder Racismo e Direito no centro da roda Cadernos do CEAS Salvador n 238 p 489499 2016 GÓES Luciano A tradução de Lombroso na obra de Nina Rodri gues o racismo como base estruturante da criminologia brasileira Rio de Janeiro Revan 2016 156 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Pátria exterminadora o projeto genocida brasileiro Revista Transgressões ciências criminais em debate Rio Grande do Norte v 5 n 2 p 5379 maio 2017 GOMES Camilla de Magalhães Gênero como categoria de análise decolonial Civitas Porto Alegre v 18 n 1 p 6582 janabr 2018 GROSFOGUEL Ramón The epistemic decolonial turn beyond po liticaleconomy paradigms Cultural Studies v 21 p 211223 2007 HARAWAY Donna Saberes Localizados a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial Cadernos Pagu Campinas n 5 p 0441 1995 HOOKS bell Intelectuais negras In Estudos Feministas Porto Ale gre Revista Estudos Feministas 1995 QUIJANO Aníbal Colonialidad del poder y clasificacion social Jour nal of WorldSystems Research v 6 n 2 p 342386 2000 LÖWY Ilana Universalidade da ciência e conhecimentos situados Cadernos Pagu Campinas n15 p1538 2000 MENDES Soraia da Rosa Criminologia feminista novos paradig mas São Paulo Saraiva 2014 MIGLIEVICHRIBEIRO Adelia Por uma razão decolonial Desafios éticopolíticoepistemológicos à cosmovisão moderna Civitas Re vista de Ciências Sociais Sl v 14 n 1 p 6680 abr 2014 OLIVEIRA PIRES Thula Rafaela de Criminologia Crítica e pacto narcísico por uma crítica criminológica apreensível em pretuguês Revista Brasileira de Ciências Criminais São Paulo Ed RT v 135 ano 25 p 541562 set 2017 PRANDO Camila Cardoso de Mello A contribuição do discurso cri minológico latinoamericano para a compreensão do controle puniti vo moderno controle penal na América Latina Veredas do Direito Belo Horizonte v 3 p 7794 2006 RESTREPO Eduardo ROJAS Axel Inflexión decolonial fuentes conceptos y cuestionamientos Popatán Universidad del Cauca Insti tuto Pensar Universidad Javeriana 2010 SCHIEBINGER Londa O feminismo mudou a ciência Bauru EDUSC 2001 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 157 STRATHERN Marilyn O gênero da dádiva problemas com as mu lheres e problemas com a sociedade na Melanésia Campinas Editora da Unicamp 2006 WALSH Catherine Interculturalidad Estado Sociedad Luchas decoloniales de nuestra época Universidad Andina Simón Bolivar Ediciones AbyaYala Quito 2009 ZAFFARONI Eugenio Raúl La mujer y el poder punitivo In Vigila das y castigadas Lima CLADEM 1992 Seção 2 Antipunitivismo No text detected No text detected 161 VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA A MULHER UMA ANALISE CRIMINOLÓGICA87 Natália S de Figueiredo88 RESUMO O crescimento do discurso punitivista no Brasil nos úl timos anos evidenciado pelo superencarceramento inflação de leis penais e fortalecimento do discurso punitivo acarretam o maior con trole social de uma determinada parcela da população notadamente negros pobres e periféricos Em resposta a essa demanda por punição temos correntes teóricas críticas que repensam todo o paradigma da punição aos fatos imputados como crime Nesse contexto há um for talecimento da luta feminista pela igualdade de gênero na crescente notoriedade que as denúncias das práticas machistas tomaram na so ciedade A partir do marco teórico da Criminologia Crítica de Vera Regina e Elena Larrauri e das teorias feministas iremos estudar o pa triarcalismo no direito e nas instituições dando especial enfoque nos crimes sexuais contra a mulher dentre eles o estupro como expressão de dominação do homem sobre a mulher O objetivo principal é com preender o processo de vitimização da mulher ao acessar o sistema de justiça criminal e a construção da mulher no direito A metodologia será a hipotético dedutiva e utilizaremos o levantamento bibliográfico e a coleta de dados sobre o tema a fim de testar a hipótese deste tra balho Esperamos constatar o processo de revitimização da mulher ao acessar o sistema penal diante do patriarcadoracismoclassismo como desigualdades estruturante do Estado 87 Capítulo da Dissertação de mestrado uma analise crítica feminista da tipifica ção da violência sexual no direito brasileiro a construção da mulher no discurso jurídico apresentada no PPGDUFRJ 88 Mestre em Direito pela UFRJ Pesquisadora do Laboratório de Direitos Huma nos da UFRJLADIHUFRJ 162 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Palavraschave Violência sexual Criminologia Crítica Gênero Teo ria Feminista do Direito Controle social INTRODUÇÃO A construção do discurso jurídico sobre as mulheres na legislação e na doutrina se deu inicialmente por critérios morais A qualificação das mulheres vítimas de violência sexual com os adjetivos honesta vir gem e inocente eram determinantes na tipicidade do fato Ao mes mo tempo no direito civil observamos a centralidade do casamento na constituição da mulher para fins da capacidade civil e disposição de bens Tanto a seara civil quanto a penal moldou um ideal de mulher a ser merecedora de tutela e proteção diante de sua feminilidade fragilidade e incapacidade de ação A falácia da incapacidade e fragilidade femininas construídas pelo patriarcado faz com até hoje tenhamos diversos problemas na produção legislativa e construção de políticas públicas para mulheres Até 2009 o bem jurídico tutelado nos crimes sexuais eram os costu mes e não a dignidade da vítima Se em algum momento afirmavase que o Direito Penal protegeria alguém ou alguma coisa a proteção aos costumes era uma clara tutela do patriarca e não da mulher vítima A disputa realizada pelas mulheres e pelo movimento feminis ta no campo89 do Direito levou a algumas alterações legislativas im portantes como o direito ao voto o direito de a mulher dispor seus bens e de ter o status de cidadã e a guarda de seus filhos além do divórcio Contudo nos diversos espaços principalmente no campo da sexualidade permanece uma perspectiva sobre as mulheres fun dada no patriarcado No que tange ao crime de estupro observouse a necessidade pelo controle jurídico patriarcal de diferenciar as mulhe res que poderiam ser tratadas como vítimas em boa parte da história moderna 89 Bourdieu afirmou falando sobre a divisão do trabalho jurídico que tudo leva a supor que a tendência para insistir na sintaxe do direito é mais própria dos teó ricos e dos professores enquanto que a atenção à pragmática é pelo contrário mas provável entre os juízes e que as variações entre essas posições fazem parte do jogo de forças do campo BOURDIEU 2011 p218 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 163 Pela lógica do sistema punitivo segundo a qual mais pena signi ficaria mais proteção a prostituta por exemplo era uma figura inde sejada mas que precisaria de alguma forma ser abarcada Isso é de monstrado na análise dos Códigos Criminais que estabeleciam penas bastante diferentes quando a mulher era honesta ou reputada como tal e para a mulher prostituta Não obstante apesar de altas penas a mulher de bem tinha que comprovar que resistiu as investidas se xuais do homem a doutrina da violência real nos crimes sexuais ou que não deu causa àquela situação Dessa forma a partir da perspectiva feminista entendemos que o ato do estupro não é só uma figura típica prevista em lei mas sim uma expressão máxima de dominação violenta da dinâmica homemmu lher De um lado a mulher deveria ocupar um lugar de moralidade e recato o que na prática tradicionalmente significava a abstinência sexual até o casamento de outro lado os homens seriam incentivados à prática do ato sexual com ou sem o consentimento da parceira Assim a maior parte das mulheres vítimas dessa violência estão na base da pirâmide da vulnerabilidade Para que elas acessem a acla mada proteção do direito penal elas devem recorrer ao ideal cons truído pelo direito e pela sociedade Para se enquadrarem na catego ria de mulheres estupráveis devem provar no decorrer da instrução criminal que são merecedoras de tutela Como aborda a literatura sobre o tema as mulheres que mais registram os crimes dessa nature za são vítimas de violência praticadas por pessoas conhecidas seja o pai irmão padrasto padrinho e conhecidos no geral negras e jovens Vera Regina Andrade 2012 p152 são violências praticadas por es tranhos na rua sim mas sobretudo e majoritariamente encontradas nas relações de parentesco 1 A PRÁTICA DAS INSTITUIÇÕES E A MULHER VÍTI MA DE VIOLÊNCIA SEXUAL NOS DEZ ANOS DA LEI MARIA DA PENHA Segundo o olhar crítico da Criminologia percebese que o sistema penal não é acolhedor para mulhervítima de crime pois segundo 164 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Vera Regina Andrade 2003 o sistema penal além de ser ineficaz no que concerne à proteção das mulheres que são vítimas de violência é também um sistema duplicador da violência praticada em desfavor de tais vítimas Além do mais afirma que tal sistema é desigual e seletivo Afirma a autora que a vítima mulher enfrenta também a violência da desigualdade de classes e aquele referente às relações de gênero quais sejam as relações patriarcais bem como que o sistema penal não possui eficácia para a proteção das mulheres nem para nenhuma ví tima em face da violência porquanto este não cuida da prevenção de novas violências do mesmo modo com que não ouve os interesses de tais vítimas O sistema penal é um instrumento de controle social seletivo de determinadas populações90 sendo o maior alvo da política criminal repressiva de hoje no Brasil e no mundo a população negra e peri férica que é alvo deste controle Ao defender a expansão do sistema penal acreditando na falácia da proteção certos movimentos sociais acabem caindo na armadilha do discurso simbólico e não se dão conta que esse sistema revitimiza as próprias vítimas e não resolve o conflito Ao demandar a proteção do direito penal de forma acrítica acabam legitimando a política de controle social formal adotada pelo Estado No crime de feminicídio por exemplo os números se repetem o número de mulheres brancas assassinadas caiu de 1747 vítimas em 2003 para 1576 em 2013 representando uma redução de 98 no total de feminicídios no período Já as mortes de mulheres negras aumentam 542 no mesmo período passando de 1864 para 2875 vítimas88 Por isso acreditamos como aponta Crenshaw 1993 que há a necessidade de se adotar uma postura feminista negra na análise da violência contra a mulher negra compreender que tipificar o crime não quer dizer que o Estado irá se comprometer a enfrentar o problema 90 Nesse sentido Barata 1999 p 186 Ao contrário de sua função declarada isto é diferentemente de sua ideologia oficial o sistema de justiça criminal da socie dade capitalista serve para disciplinar despossuídos para constrangêlos a acei tar a moral do trabalho que lhes é imposta pela posição subalterna na divisão do trabalho e na distribuição da riqueza socialmente produzida Por isso o sistema criminal se direciona constantemente às camadas mais frágeis e vulneráveis da população para mantêla o mais dócil possível nos guetos da marginalidade social ou para contribuir para a sua destruição física Assim fazendo o sistema sinaliza uma advertência para todos os que estão nos confins da exclusão social 88 Mapa da Violência 2015 p 32 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 165 Pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2015 sobre vitimização com dados colhidos pelo sistema de polícia estaduais apontou que a cada 11 minutos uma mulher é vítima de estupro aproximadamente 48 mil casos de estupros em 2014 Já em 2016 o Anuário de Segurança Pública desta mesma instituição apurou que em 2015 aconteceram 45460 estupros no país o que equivale a 125 estuprosdia FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2016 Em 2015 tal documento já havia apontado que apenas 35 dos crimes de estupro são reportados à polícia Já o estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada 2014 informa uma subnotificação de 90 Observase que mesmo que haja uma variação de 65 a 90 a subnotificação nos crimes de estupro é altíssima a nível nacional Elena Larrauri 2007 afirma que devemos incorporar a variável de gênero não para quantificar a violência mas para advertir que o maior número de mulheres vítimas se produz nas relações íntimas e que o fato de ocorrer desse modo é ainda mais grave pois as mulhe res são a maioria das vítimas de violência sexual e este delito produz efeitos mais duradouros que outros delitos violentos finalmente que o medo do delito entre as mulheres é maior e produz maiores conse quências em sua liberdade A autora ainda aponta que existe uma grande confiança do dis curso feminista dominante de que ao atingir a igualdade de gênero iremos diminuir a violência exercida sobre a mulher e essa sociedade mais igualitária se alcaçaria mediante a reestruturação das relações de gênero uma vez que as mulheres seriam empoderadas detendo assim protagonismo e autonomia para decidir sobre sua vida Ela ainda pon tua que esse discurso atribui uma função oficial ao direito penal con siderando este um instrumento adequado na estratégia de proteger aumentar a igualdade e dar maior poder as mulheres LARRAURI 2007 No mesmo sentido Vera Regina Andrade 2012 afirma que a passagem da vítima mulher ao longo do controle social formal aciona do pelo sistema penal implica nesta perspectiva vivenciar toda uma cultura de discriminação humilhação e estereotipia Este aspecto é fundamental na medida em que não há ruptura entre as relações fa miliares pai padrasto marido trabalhistas ou profissionais chefe relações sociais em geral vizinhos amigos estranhos processos de 166 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça comunicação social que violentam e discriminam a mulher e o siste ma penal que a protegeria contra este domínio e opressão mas sim um continuum e uma interação entre o controle social informal exercido pelos primeiros particularmente a família e o controle formal exer cido pelo segundo Elena Larrauri 1996 percebeu de forma muito perspicaz esta dupla violência punitiva contra as mulheres seja no papel de vítima ou de autora da violência em todos os âmbitos de incidência do con trole penal punitivo na elaboração das normas penais pelo Legislati vo na aplicação do direito pelos tribunais e na execução das sanções pelo Executivo A necessidade de uma análise interseccional é evidente à luz dos dados sobre violência contra a mulher sob viés crítico no qual este trabalho se insere O sistema penal se localiza no complexo sistema de poder e controle que cerca a sociedade contemporânea Desse modo precisamos enfrentar o difícil tema das respostas antipunitivista aos crimes sexuais pensando na perspectiva da mulher vítima Compreender que o sistema penal é um dos fatores que reviti miza a mulher e coopera diretamente com seu controle e tanto como as demais instituições presentes na sociedade mostrase essencial para construção de respostas diferentes para os mesmos problemas Denominamos violência sexual91 como um conjunto de crimes que no decorrer da nossa análise foram previstos em diferentes fi guras jurídicas Se nos referirmos ao bem jurídico a violência sexual foi tratada nos títulos bons costumes ultraje público honra e atualmente dignidade sexual Desse modo percebese a moralidade na definição dos crimes o que se torna mais óbvio ainda quando ana lisamos os tipos penais ou seja como as mulheres às quais a suposta proteção do sistema penal se aplicava eram rigidamente delimitadas pela lei pois somente honestas virgens e de moral ilibada poderiam ser consideradas como vítimas de estupro O fato é que a mulher vítima de crimes sexuais está então num grau de extrema vulnerabilidade Nessa linha de construção o estupro se torna um crime de extrema gravidade para o patriarca ao qual a mu 91 Para fins deste trabalho entendemos como violência sexual os tipos penais ex pressos nos crimes de estupro assédio sexual e atentado violento ao pudor Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 167 lher está subjugada92 No decorrer da análise da legislação observamos o alargamento do rol legal de vítimas de estupro pois primeiramente eram somente as virgens e honestas depois as prostitutas com penas consideravelmente menores e finalmente estendeuse a proteção aos homens e a todas as mulheres sem distinção De outro lado pelo Código de 1940 em sua redação original como vimos quando o estupro acontecia o agressor tinha a possi bilidade de extinguir a pena através do casamento previsão que se manteve na lei penal até 2005 Logo a reparação da honra do patriarca e a manutenção do domínio do corpo feminino podem ser apontados como objetivo não declarado da legislação Para Charam 1997 o estupro não é a realização de um desejo sexual desenfreado mas uma agressão um ato de violência e humi lhação realizado por meio sexual É expressão de poderio e raiva E a sexualidade no estupro está a serviço de necessidades não sexuais CHARAM 1997 p 147 O ato de estupro rompe a relação entre se xualidade e potência afinal sexo e estupro são elementos dissonantes e que reorganizam o sexo como arma O estupro deixou de ser explicável pela anormalidade do acusado e portanto como uma margem alheia às experiências sociais cotidianas para ser considerado relação de força e poder de homens sobre mulheres ato de conquista marca de poder gesto de posse tanto quanto de desejo VIGARELLO 1998 p 212 Para Kety Carla de March que realizou pesquisa sobre os pro cessos criminais de estupro instaurados no Paraná em 1950 e anali sou os discursos ali produzidos a maioria dos crimes eram praticados no ambiente privado o que levava as vítimas a não denunciarem pela impossibilidade prática de comprovar o fato sem testemunhas sem materialidade93 Um dos juízes afirmava que deveria conduzir com cuidado os procedimentos sobre violência sexual 92 Ora se a violência é em grande medida doméstica o sistema protegendo a unidade familiar e não a violentada reforça a cumplicidade punitiva e o controle patriarcal ANDRADE 2012p156 93 Esse crime ocorreu em âmbito privado assim como a grande maioria dos estu pros relatados nos processos criminais analisados Essa intimidade do crime impedia a existência de testemunhas e muitas vezes calava as vítimas diante da impossibilidade de comprovação do ato violento e das dúvidas que viriam a ser construídas em relação à conduta dessas mulheres Os inquéritos criminais difi cilmente se transformavam em processos devido à ausência de provas materiais do crime MARCH2017 P 107 168 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Os crimes dessa natureza são em regra praticados com a máxi ma cautela pelo que salvo os casos em flagrante delito a ver dade tem que ser buscada no cuidadoso exame dos diferentes indícios colhidos A peça central de acusação é o relato da ofen dida em torno do qual devem girar e se harmonizar as demais provas dos autos fl 99 MARCH 2017 p 107 March destaca ainda que essa dualidade entre homens e mulher e o reforço da masculinidade construída pela dominação do corpo fe minino em oposição à submissão e castidade que pautavam a mulher pesavam negativamente para ela Enquanto o homem para se afirmar promovia o estupro para reificar a sua sexualidade dominante a mu lher necessitava comprovar que fora vítima e que resistira à agressão ao mesmo tempo que acessava os estereótipos das boas mulheres para não ser responsável pelo fato94 Assim o acesso ao corpo femini no era entendido como direito masculino pelo lugar que esse exercia ou buscava reforçar constantemente sobre as mulheres Estas deve riam manterse em estado de submissão reforçando os lugares social mente construídos para os papéis sexualmente demarcados MAR CH 2017 p 114 2 PARA ALÉM DO SISTEMA PENAL EXPECTATIVA E REALIDADE DO PUNITIVISMO PARA A LUTA DAS MULHERES A discussão sobre a lei penal à luz do paradigma de gênero é bastante complexa O Sistema Penal como mecanismo de controle social formal exercido pelo Estado é analisado a partir da Criminologia Crítica que entende os processos de definição da sociedade devem ser estudados em conexão com a estrutura material objetiva da dela própria que o sistema de Justiça Criminal vem estudado como um sotosistema so 94 Por outro lado a posse sobre o corpo feminino era considerada um legiti mador dessa masculinidade símbolo de potência Mais do que o estupro provavelmente o defloramento funcionasse melhor no segundo aspecto ob servado pois a posse sobre o corpo se dava pela conquista O acusado por defloramento era duplamente enquadrado no interior do modelo de mascu linidade pela capacidade viril para o sexo e pela habilidade para a conquista Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 169 cial que contribui para a produção material e ideológica legitimação dos relacionamentos sociais de desigualdade BARATTA 1999 O sistema de justiça criminal a um só tempo reflete a realidade social e concorre para a sua reprodução O sistema punitivo e a estru tura social possuem uma dimensão simbólica dupla e suas variáveis podem vir combinadas de diversas formas entre si Como a Crimino logia Critica parte do paradigma da reação social a introdução do gê nero na análise do etiquetamento confirmou e ampliou os resultados da criminologia critica tradicional A sociedade patriarcal reservou o protagonismo da esfera produtiva aos homens e do círculo reproduti vo às mulheres O sistema penal é um sistema de controle específico das relações de trabalho produtivo e das relações de propriedade da moral do tra balho bem como da ordem pública que o garante A esfera de repro dução da troca sexual de um casal da procriação da família e da so cialização primária em outras palavras a ordem privada não é objeto do controle exercitado pelo direito penal ou seja do poder punitivo público O sistema penal é a última garantia da violência física contra as mulheres por parte do sistema patriarcal SMAUS 1998 apud BA RATTA 1999 p46 Estudar o sistema de justiça criminal e por sua vez o sistema penal é ter como base de compreensão que este é integrativocom plementar ao sistema de controle social informal Alguns estudos da criminologia feminista se focam na seletividade negativa condutas não criminalizadas ou ainda criminalizadas mas aceitas pelo senso comum Destacamos que a criminalização não ocorre ao acaso mas é gerida por um conjunto de agências que formam o sistema penal A criminalização é um processo seletivo que se desenvolve em duas eta pas denominadas respectivamente primária e secundária A crimi nalização primária é o ato e o efeito de prever uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas enquanto que a criminalização secundária é a ação punitiva exercida sobre pessoas concretas pelas agencias legitimadoras do poder punitivo ZAFFA RONI e BATISTA 2013 170 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Nas condutas criminalizáveis há uma disparidade entre a quan tidade de conflitos criminalizados que realmente acontecem numa sociedade e aquela pequena parcela que chega ao conhecimento das agências do sistema é tão grande e inevitável delineando o fenômeno da chamada cifra oculta Desse modo considerase natural que o sis tema penal leve a cabo a seleção de criminalização secundária apenas como realização de uma parte ínfima do programa primário A criminalização secundária é a aplicação concreta do projeto de criminalização primária estando desse modo responsável por decidir quem são as pessoas criminalizadas e ao mesmo tempo as vítimas potenciais protegidas A seleção não só opera sobre os criminalizados mas também sobre os vitimizados Isso corresponde ao fato de que as agências de criminalização secundária tendo em vista sua escassa capacidade perante a imensidão do programa discursivamente lhes é recomendado devem optar pela inatividade ou pela seleção poder este que é exercido fundamentalmente pelas agencias policiais ZAF FARONI e BATISTA 2013 Desse modo a criminalização da violência de gênero se insere tardiamente no programa seletivo da criminalização secundária se lecionando assim condutas inseridas no rol da legislação específica notadamente contra vítimas mulheres que serão combatidas pelas agências policiais O poder punitivo se operacionaliza nas agencias políticas para tipificar o fato pautadas na construção discursiva que lhes é conveniente naquele momento para ampliar o rol de condu tas criminalizadas ou mudar suas justificativas para permanência da criminalização Ao mesmo tempo pelo viés das agências policiais se escolhem os casos concretos selecionados para aplicar a punição ao autor do fato e respaldar a atuação seletiva De forma alguma estamos afirmando que as lutas dos movimen tos sociais notadamente os movimentos feministas servem como mera argumentação para ampliação do poder punitivo na sua luta por igualdade e visibilidade Entretanto é necessário observar critica mente algumas demandas na ampliação da criminalização de algumas condutas O poder punitivo se constrói e reconstrói todos os dias e não se pode ser ingênuo ao esperar que mesmo ao cooptar o discurso punitivo de determinado movimento não o faça somente para legiti mar sua atuação e manter o status quo Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 171 A escolha das vítimas também é fruto de um processo seletivo do sistema penal Na sociedade existem pessoas ou grupos que exer cem poder sobre outros seja esse poder exercido de forma violenta e desigual ou sutil e encoberta O patriarcado é uma das formas de es truturação da sociedade que interagem cotidianamente com o poder punitivo Ele se operacionaliza no viés formal e no informal notada mente a maior intervenção sob a figura da mulher é o controle social informal Desse modo o exercício de poder do homem sob a mulher seja de forma violenta seja de forma sutil é tida como normal não ha vendo assim vitimização primária não existe nenhum ato formal das agências políticas que confiram o status de vítima ao subjugado um exemplo disso era o estupro marital não era considerado conduta tí pica o estupro praticado pelo marido na constância do casamento ou quando se estabeleciam gradações nos crimes de estupro entre mulhe res honestas e as prostitutas O controle social informal sob a mulher se materializa na própria construção do que significa ser mulher a delimitação das caracterís ticas consideradas naturais como feminilidade suavidade docilidade obediência que dedica sua vida e felicidade aos demais membros da sua família Desse modo a mulher é antes de tudo mãe e sua vida so cial e sexual está destinada a esse feito tendo a heterossexualidade e a monogamia a ela impostas sendo indispensável para a manutenção da moralidade do capital essa situação Diante da impunidade como regra e a criminalização secundária como exceção o poder punitivo sempre dispõe de material para am pliação ou relegitimação do mesmo das mais diferentes maneiras Os movimentos feministas como parte de sua estratégia de luta denun ciaram a invisibilização da mulher pela manutenção desta no espaço doméstico A família patriarcal é tida portanto como uma instituição que permite perpetuar a opressão especifica das mulheres já que o sis tema familiar está baseado na escravidão doméstica e na dependência econômica da mulher As mulheres negras apesar de serem pautadas pelo capital para se inserirem no mercado de trabalho tinham no trabalho doméstico sua principal ocupação sendo empregadas domésticas babás cuida doras Ou seja o espaço doméstico ainda é o espaço reservado para a 172 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça mulher sendo esse trabalho precário e mal remunerado tendo assim uma maior vulnerabilidade Ocorreram tensões ao patriarcado e ao capital promovidas pe los movimentos feministas contra a forma de controle social informal sob a mulher principalmente ao exercício de violência por parte da família notadamente as figuras masculinas de autoridade como pai marido companheiro e irmão Essas tensões demandaram uma reor ganização desse controle de forma a que o poder punitivo fosse ins tado a se adaptar trazendo para a seara da criminalização ações antes tidas como permitidas As agências políticas então foram chamadas a renormatização da situação conflitiva alteraram a programação criminalizante primária e selecionaram as mulheres como vítimas dos crimes de violência de gênero Dessa forma a inclusão de condutas no rol de condutas crimi nalizadas serve a esse programa punitivo mais amplo A construção pelo Direito de um ideal de mulher pelos seus di versos ramos foi complementar Em momentos históricos diferentes os mesmos recursos discursivos de proteção feminilidade incapaci dade feminina foram usados para a manutenção da mulher nos espa ços privados e submetidos ao controle do patriarca O direito penal estava reservado aos homens que rompessem este acordo explicito de boa convivência masculina no qual os acordos de cavalheiros determinavam a vida das mulheres Esse mesmo ramo do direito tinha a responsabilidade de controlar os pobres os negros e negras e as mulheres brancas que não se permitissem estar no espaço privado de submissão As mudanças legislativas ocorridas nos últimos anos na temática relativa ao direito das mulheres foram na grande maioria pautadas na legislação não penal O direito de sufrágio os direitos da persona lidade a cidadania e o casamento como uma escolha e não como uma prisão foram as mudanças que mais se destacaram O direito penal não foi o principal objeto de mudança na legisla ção quando se fala da temática de gênero e isso diz muito Há menos de dez anos o bem jurídico do crime de estupro eram os costumes e não a dignidade A extinção da punibilidade pelo casamento foi ex tirpada do nosso ordenamento pouco tempo antes em 2005 Quando falamos dos crimes sexuais as mudanças são muito recentes Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 173 De fato percebemos que no decorrer da história o Direito foi um importante instrumento do patriarcado no controle dos corpos femi ninos utilizando como método a construção de um ideal de mulher através da diferenciação Enquanto mulher honesta virgem e detento ra de posses essa mulher era alvo da tutela legal conferida ao patriar ca A mulher branca como indivíduo não era protegida ela era coisa era protegida como tal Em situação pior se encontravam as mulheres negras que até o final do século XIX elas eram escravizadas e tidas juridicamente como bens mas diferente das mulheres brancas não tinham nenhum res guardo legal Seus corpos filhos força de trabalho eram do senhor de escravos e a elas o chicote e a lavoura era o destino Nestes 130 anos de abolição inconclusa os dados demonstram que as mulheres negras são parte do programa vitimizante secundário quando são vítimas de violência sexual em maior número que as mulheres brancas Resgatando a história recente do Brasil percebemos que o deba te de gênero se deu ao largo do debate jurídico A reinvindicação da criação da Lei Maria da Penha pelos movimentos feministas somadas à condenação brasileira internacional foram os marcos do debate na esfera penal Apesar da criminalização do assédio sexual se dar antes de 2006 e ter levantado a ira de alguns penalistas a criminalização da violência doméstica segundo CAMPOS 2017 foi o maior exemplo de resistência à incorporação da crítica feminista no direito A produção legislativa brasileira demonstra que os esforços das mulheres e do movimento feminista foram pautados nas mais diversas áreas do direito sendo a seara penal a com menor incidência Apesar da centralidade que a pauta da descriminalização do aborto ter nos movimentos ele continua sendo criminalizado exceto em poucas hi póteses O debate sobre o aborto está inserido na perspectiva do controle informal sobre a mulher e seu corpo A revitimização que ocorre no acesso ao sistema penal também se dá no acesso ao direito ao aborto A construção do papel de mãe é apontado como um entrave ao debate do aborto95 95 A oposição ao controle da natalidade e ao uso de contraceptivos como a cami sinha e a pílula anticoncepcional apareceria aliada a uma oposição sistemática ao aborto voluntário Essa agenda foi e é ainda mobilizada para a valorização 174 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Apesar de portaria do Ministério da Saúde informando a desne cessidade de registro de ocorrência para a realização do aborto legal nos casos de estupro ainda existem serviços que o fazem96 Este direito está inserido numa política de atenção as mulheres vítimas de violên cia sexual e sofrem com a falta de investimentos Na mesma linha A política pública brasileira assegura a assistência à saúde da mu lher vítima de violência sexual incluindo a possibilidade de inter rupção da gravidez Para que as mulheres tenham acesso ao aborto previsto em lei deve haver disponibilidade de serviços de saúde com qualidade que respeitem e atendam suas escolhas reproduti vas Medeiros e Diniz 2016 p570 O espaço doméstico é o espaço central de controle informal so bre a mulher e onde há o maior registro de violência sexual segundo dados oficiais Refletir sobre isso pelo viés criminológico nos faz per ceber a complexidade do tema O conjunto das conclusões criminológicas críticas e feministas é por demais significativo se o espaço privadofamiliar é um locus de incidência majoritária da violência sexual e seus in tegrantes os sujeitos centrais envolvidos podese interpretar que isto sucede para além dos elementos intersubjetivos im de uma concepção convencional da família e de uma ordem sexual conserva dora baseada no casamento e na suposta complementaridade entre homens e mulheres A posição da mulher é tomada como seu papel nessas relações com sua individualidade subsumida a seu papel como mãe Dito de outro modo a suspensão da condição das mulheres como indivíduo é corroborada jurídica e politicamente nas sociedades nas quais a criminalização do direito ao aborto é feita com base em preceitos religiosos BIROLI 2014p40 96 As exigências burocráticas feitas pelos serviços para realização do aborto dimi nuíram consideravelmente desde a avaliação de 2005 quando 70 dos hospitais exigiam o BO No estudo atual 14 dos serviços em atividade ainda condicio nam o atendimento à apresentação do BO pela mulher Este estudo não questio nou os motivos para a solicitação de documentos não especificados pela norma técnica porém pesquisas anteriores em contextos semelhantes já observaram que o desconhecimento do marco legal que regulamenta o aborto e o medo das consequências judiciais são razões comumente apontadas Apesar da disposição em prestar o cuidado às mulheres as recomendações da norma técnica do Mi nistério da Saúde não são cumpridas por todos os serviços DINIZ e MEDEI ROS 2016p569 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 175 plicados nas relações de violência porque historicamente na sociedade patriarcal a família tem sido um dos lugares nobres embora não exclusivo porque acompanhada da escola da igre ja da vizinhança etc de controle social informal ANDRA DE 2012p 153154 No crime de estupro a vítima tem sua vida pregressa analisada cabendo a esta comprovar sua boa conduta sexual seu caráter idôneo e em alguns casos sua total inocência no caso Nesse sentido Giovana Rossi afirma que A violência sexual contra a mulher decorre da visão patriarcal que enxerga a mulher como um objeto de propriedade do homem e essa objetificação é reiterada no discurso dos operadores do siste ma de justiça criminal durante toda a fase de colheira de provas culminando em sentenças que em sua maioria revelam que o que está em julgamento não é o fato criminoso mas a conduta moral da vítima e do autor do crimeROSSI 2016 p 39 CONCLUSÃO No decorrer da história brasileira observamos a articulação e fortale cimento do controle formal e informal sobre a mulher numa socieda de patriarcal A figura da família e do casamento são entendidos como espaço de controle da mulher e de conformação à ordem estabeleci da Ao mesmo tempo na área penal os crimes sexuais eram tratados como casos de família pois havia a possibilidade de o casamento encerrar qualquer discussão acerca do ocorrido e categorização das mulheres vítimas O grande ganho é repensar o papel da mulher no cotidiano de violações a que está submetida quando está em situação de violência que não passa pela sua mera inclusão no sistema de justiça mas na ar ticulação dos diversos atores institucionais responsáveis pela aplicação e formulação da política pública de garantia de direitos das mulheres Pensar que em 2006 apenas 18 anos após a Constituição cidadã ser promulgada o Brasil se colocou oficialmente como corresponsável e garantidor das mulheres em situação de violência 176 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A Lei Maria da Penha e o debate acerca da violência de gênero no Brasil foram protagonizados por mulheres do movimento feminista parlamentares e um debate na sociedade sobre a condição da mulher Não podemos deixar de esquecer que esta Lei foi fruto de uma conde nação internacional pela inercia do Estado brasileiro no caso da Sra Maria da Penha A legislação foi editada em 2006 cerca de 12 anos atrás o debate sobre violência de gênero é muito recente no Brasil Os dados nacionais apontam que mais da metade das vítimas são mulheres negras e jovens submetidas a violência sexual por pessoas conhecidas ou da família Especificamente no Rio de Janeiro o perfil das mulheres que mais registra os estupros é jovem negra moradora de áreas periféricas com baixa escolaridade que conhece seu agressor O tema da violência sexual é extremamente sensível A leitura e análise da legislação no decorrer da história recente do Brasil demons traram uma escolha política na proteção de valores coletivos subju gando a mulher ao espaço marginalizado A retirada da expressão mulher honesta em 2009 e do fim da extinção da punibilidade pelo ca samento em 2005 demonstram quão recente é a alteração legislativa A afirmação trazida pelo senso comum da culpabilização da mulher nos crimes sexuais não é repelida pelo discurso jurídico O processo histórico de construção da mulher pela legislação como individuo a partir da submissão a figura masculina é um reflexo da sociedade e o questionamento da palavra da mulher ao acessar o sistema de justiça um exemplo Assim as mulheres vítimas dessa violência estão na base da pi râmide da vulnerabilidade Como aborda a literatura sobre o tema as mulheres que mais registram os crimes dessa natureza são vítimas de violência por pessoas conhecidas seja o pai irmão padrasto padri nho e conhecidos no geral negras e jovens Na nossa compreensão a articulação do controle formal e informal são instrumentos do pa triarcado no controle do corpo feminino como metodologia de domi nação O Direito como fruto da sociedade e do Estado são um espe lho daquilo que determinado segmento disputa para que seja visto As mudanças recentes na legislação penal destacam a importância da manutenção da luta das mulheres Os instrumentos oficiais como o Direito são passíveis de mudança lenta mas é uma mudança palpável Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 177 A mudança mais difícil é aquela a ser realizada na nossa disputa por outro projeto de sociedade antirracista não sexista e anticapitalista REFERÊNCIAS ANDRADE Vera Regina 2005 A Soberania Patriarcal O Sistema de Justiça Criminal no Tratamento da Violência Sexual Contra a Mulher Revista Sequência Florianópolis Ano XXV n 50 2012Pelas mãos da criminologia O controle penal para além da desilusão Rio de Janeiro Revan 2003 Sistema Penal Máximo x Cidadania Mínima có digos de violência na era da globalização Porto Alegre Livraria do Advogado 1997 Violência Sexual e Sistema Penal Proteção ou Duplicação da Vitimação Feminina In DORA Denise Dourado Coord Feminino masculino igualdade e Diferença na Justiça Por to Alegre Sulina BARATTA Alessandro 1997 Criminologia crítica e crítica do di reito penal introdução à sociologia do direito penal Rio de Janeiro Revan 1999 O paradigma do gênero da questão criminal à questão humana Em C H Campos Criminologia e feminismo pp 1980 Porto Alegre Editora Sulina BIROLI Flávia e MIGUEL Luis Felipe 2013 Teoria Política femi nista Textos centrais Vinhedo Editora Belo Horizonte e MARIANO Rayainni 2017 O debate sobre aborto na Câ mara dos Deputados 19912014 posições e vozes das mulheres par lamentares In Cadernos Pagu 50 BOURDIEU Pierre 2002 A dominação masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil LTDA A força do direito Elementos para uma sociologia do campo jurídico In O Poder Simbólico Trad Fernando Tomaz 15ª ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2011 178 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça BUTLER Judith2003 Problemas de gênero feminismo e subver são da identidade Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2003 CAMPOS Carmen Hein e CARVALHO Salo de 2011 Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica a ex periência brasileira In CAMPOS Carmen Hein de Org Lei Maria da Penha Comentada em uma perspectiva jurídicofeminista Rio de Janeiro Lumen Juris 2011 p143172 2017 Criminologia Feminista Teoria Feminista e crítica as criminologias Rio de Janeiro Ed Lumen Iuris 2017bCAMPOS Carmem Hein MACHADO Lia Zanot ta NUNES Jordana Klein e SILVA Alexandra dos Reis Cultura do Estupro ou cultura antiestupro Revista DireitoGV V13n3 set dez2017 CARNEIRO Sueli Enegrecer o feminismo a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero In Racismos contemporâneos Rio de Janeiro Takano Editora p 4958 2003 2003 Mulheres negras violência e pobreza In Secretaria Especial de políticas para as mulheres Programa de prevenção as sistência e combate a violência contra a mulher Plano Nacional diá logos sobre a violência doméstica e de gênero construindo políticas para as mulheres BrasíliaSecretaria 1117 Disponível em http wwwspmgovbrarquivosdiversosarquivosintegralivroviolen ciadialogosview CRENSHAW Kimberlè 1989 Demarginalizing the intersection of race and sex a black feminist critique of antidiscrimination doc trine feminist theory and antiracist politics Disponí vel em httpchicagounbounduchicagoeducgiviewcontentcgiar ticle1052contextuclf Acesso em 18 jan 2017 1991 Maping the margins intersectionality identity pol itics and violence against women of color Stanford Law Review 12411299 2002 Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero Tradução de Liane Schneider Revista de Estudos Feministas v 7 n 12 p 17188 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 179 COLLINS Patricia Hill 2016 Aprendendo com o outsider within a significação sociológica do pensamento feminista negro Revista Socie dade e Estado V 31 N 1 JaneiroAbril 2016 2002 Black feminist thought knowl edge consciousness and the politics of empowerment New York Taylor Francis Library DAVIS Angela2017 Mulheres cultura e política Rio de Janeiro Bointempo 2016 Mulher Raça e Classe Rio de Janeiro Bointempo 2003 Are prisions obsolete New York Seven Medias DINIZ Débora MADEIRO Alberto 2016 Serviço de aborto legal no Brasil um estudo nacional Ciência Saúde Coletiva 212563 572 2016 FLAUZINA A L P2008 Corpo Negro Caído no Chão o Sis tema Penal e o Projeto Genocida do Estado Brasileiro Rio de Janeiro Contraponto 2008 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA Anuário Brasileiro de Segurança Pública São Paulo Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2015 Disponível em httpwwwforumsegurancaorgbrstorage9anuario2015retifi cadopdf Acesso em 10 out 2017 Anuário Brasileiro de Segurança Pública São Paulo Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2016 Disponível em httpwww forumsegurancaorgbrstorage10anuariosite18 112016retifi cadopdf Acesso em 1º set 2017 LARRAURI Elena 2007 A yuntamientos de izquierdas y control del delito Conferencia de Clausura del IV Congreso Español de Crimi nología BARC ELONA JULIO 2007 Criminología crítica y violencia de género Madrid Editorial Trotta SA 2009 Igualdad y violencia de género Comentario a la STC 592008 Revista para el Análisis del derecho Barcelona febrero 2009 180 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 2000 La herencia de la criminologia critica 3ª edicionMa drid Siglo Veinteuno de espana de editores 2000 1992 Victimología Quiénes son las víctimas Cuáles sus derechos Cuáles sus necesidades Jueces para la democracia 1992 págs 2131 VIGARELLO Georges 1998 História do Estupro violência sexual nos séculos XVIXX Rio de janeiro Editora Zahar ZAFFARONI Eugenio Raul 2005 Buscando o Inimigo de Satã ao Direito Penal Cool In MENEGAT M NERI N org Criminologia e Subjetividade Rio de Janeiro Lumen Juris 181 VIRGEM HONESTA ADÚLTERA PROSTITUTA QUANDO O DIREITO PENAL CLASSIFICA MULHERES Renata Saggioro Davis97 RESUMO Este trabalho teve por escopo investigar como mulheres foram e permanecem sendo classificadas pelo sistema penal no curso da história brasileira desde a invasão dos colonizadores até o presente Para tanto foi realizada a análise das normativas penais mais impor tantes desde as Ordenações Filipinas até o Código Penal atual incluin do a legislação extravagante em vigor em especial a Lei Maria da Pe nha A partir dessa exame se quis problematizar a escolha legislativa adotada no eixo criminalizante da Lei 113402006 na medida em que a lógica categorizadora e estigmatizante de mulheres continuou sendo operada porém agora por meio de um discurso que visa se legitimar em sua suposta proteção face ao fenômeno da violência doméstica e familiar contra a mulher Partiuse portanto da hipótese de que o sis tema penal sempre legitimou e garantiu as estruturas de poder de uma sociedade patriarcal e que por consequência não deveria ser tomado como um instrumento hábil para a realização de políticas públicas no enfrentamento da violência de gênero PALAVRASCHAVE Direito Penal História Violência doméstica e familiar Lei Maria da Penha Patriarcado Feminismo 97 Graduada em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais e mestranda em Direito Penal pelo Programa de PósGraduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro 182 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1 INTRODUÇÃO Com o fortalecimento e avanço das pautas feministas por igualdade o fenômeno da violência contra a mulher vem sendo discutido por dife rentes frentes ao redor do mundo No contexto internacional um dos documentos elaborados de maior destaque foi a Convenção Interame ricana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher no seio da Organização dos Estados Americanos em junho de 1994 Ficou conhecida como Convenção de Belém do Pará em referência ao local em que seus termos foram debatidos e construídos A normativa de direitos humanos foi internalizada na ordem jurídica brasileira em 27 de novembro de 1995 através do Decreto no 197396 Dentre suas disposições os Estados Partes se comprometeram a agir com o devido zelo para prevenir investigar e punir a violência contra a mulher e a incorporar na sua legislação interna normas pe nais civis administrativas e de outra natureza que sejam necessárias para prevenir punir e erradicar a violência contra a mulher 98 Em 7 de agosto de 2006 uma década depois foi promulgada a Lei 113402006 popularmente conhecida como Lei Maria da Penha cujo objetivo se ria a implementação destas diretrizes dentre outras Desde então mais onze anos se passaram e algumas reflexões acerca da escolha pela solução criminalizante e judicializada dos con flitos envolvendo a violência de gênero em especial no âmbito domés tico e familiar precisam ser realizadas Com efeito ao analisarmos historicamente o tratamento conferi do à mulher pelas legislações penais mais relevantes desde a invasão dos colonizadores portugueses o que se percebe como será a seguir examinado é que estas sempre representaram um instrumento de controle e neutralização dos corpos e mentes femininos na medida em que foram e são responsáveis pela construção e delimitação desse gênero BERGALLI e BODELÓN 1992 p 4546 e LARRAURI 1994 Seja tomandoas por desviantes ao considerálas prostitutas adúlte ras ou vítimas objetificadas em sua fragilidade e passividade a régua classificatória da norma penal extrapola o sistema punitivo e opera em 98 Art 7o b e c da Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher Disponível em httpwwwcidhorgbasicosportu guesmbelemdoparahtml Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 183 todos os âmbitos da vida em sociedade moldando comportamentos de acordo com as expectativas do patriarcado aqui entendido como o regime da dominaçãoexploração das mulheres pelos homens Isso porque o direito penal é desenvolvido a partir da interpre tação de normas e valores culturais que perpetuam os interesses de grupos dominantes Nesse sentido ao incorporar determinada com preensão do ser mulher não se está discutindo diferenças biológicas entre os sexos mas sim as estruturas patriarcais os estereótipos de comportamento de cada gênero e sua conformação moral na socieda de LARRAURI 1994 O direito como mecanismo de reprodução dessas estruturas de dominação é também sexuado e entendêlo como enclave do patriar cado significa refletir sobre o fato de que as características presentes do direito estão marcadas pelo contexto patriarcal das nossas socieda des BERGALLI e BODELÓN 1992 p 52 Não obstante o sistema penal99 se apresenta como uma ideologia extremamente sedutora também para as mulheres e com um fortíssimo apelo legitimador da proteção da evitação da solução como se à edi ção de cada lei penal sentença ou cumprimento de pena fosse mecani camente sendo cumprido o pacto mudo que opera o traslado da barbárie ao paraíso ANDRADE 2004 Daí então a necessidade de se evidenciar por meio de um apa nhado histórico dessas legislações penais atinentes às mulheres as permanências classificatórias que acompanharam todas essas norma tivas ao longo dos séculos Trazer o foco para esses mecanismos refor çadores da desigualdade de gênero que se protraem no tempo tem por escopo problematizar a paradoxal escolha criminalizante reivindicada por parte de alguns movimentos feministas que acreditam na possibi lidade de se alcançar a emancipação feminina por meio de um sistema que sempre as presumiu e as tratou como inferiores 99 Sistema penal é aqui compreendido como a totalidade das instituições que operacionalizam o controle penal a totalidade das normas dos saberes e ca tegorias cognitivas que propagam e legitimam ideologicamente a sua atuação e os seus vínculos com a mecânica de controle social global na construção e reprodução da cultura e do senso comum punitivos que se enraízam muito for talecidamente dentro de cada um de nós na forma de microssistemas penais ANDRADE 2012 184 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 2 A MULHER E A LEGISLAÇÃO PENAL 21 As Ordenações Filipinas Quando da invasão dos colonizadores portugueses em terras brasilei ras vigia em Portugal as Ordenações Afonsinas 14471521 Entre tanto estas não chegaram a influenciar a realidade colonial brasileira pois traziam uma compilação de regras anteriores que disputavam autoridade com o direito canônico com o direito romano e com os direitos locais As Ordenações Manuelinas por sua vez se limitaram a incluir algumas regras mas tampouco foram aqui aplicadas Na rea lidade o que vigorava na prática era o desregulado poder punitivo privado ZAFFARONI et al 2003 p413 Com o processo de colonização consolidado foram as Ordena ções Filipinas as efetivamente aplicadas no Brasil entre os anos 1603 e 1830 Sua índole bastante rigorosa é notória tendo em vista que o Livro V100 onde a maior parte das disposições criminais se encontra vam trazia a pena de morte como pena principal do ordenamento Em relação aos dispositivos referentes ao gênero feminino po dese verificar no Título XXV Do que dorme com mulher casada a disparidade no tratamento conferido ao adultério Isso porque a re provabilidade da conduta recaía apenas sobre a mulher casada e o seu amante ambos punidos com a pena capital O homem casado que nem poderia ser sujeito ativo do referido crime tinhalhe garantido por lei o direito de matar sua esposa e seu amante assim como o de perdoálos nos termos do Título XXXVIII Do que matou sua mu lher por a achar em adultério No tocante aos crimes sexuais apenas as mulheres poderiam ser vítimas denotando não uma preocupação com a integridade sexual mas no impacto dessas violações sobre a ordem familiar Nesse sen tido as mulheres eram categorizadas em virgens viúvas honestas es cravas brancas de guarda e mulheres que ganham dinheiro com seu corpo o que influenciava no tratamento conferido ao homem agres sor É o caso por exemplo dos crimes equivalentes ao estupro e ao rapto consentido previstos no Título XVIII Do que dorme por força com qualquer mulher ou trava dela ou a leva por sua vontade 100 Ver httpwww1ciucptihtiprojfilipinasl5indhtm Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 185 Após viger por mais de dois séculos na sociedade brasileira em formação estruturando dessa forma a concepção social do ser mu lher a partir de uma moral conservadora e patriarcal foi promulga da Constituição do Império em 1824 e em sua decorrência o Código Criminal 22 Código Criminal do Império Em 16 de dezembro de 1830 foi promulgado o Código Criminal do Império101 e a ótica de proteção à honra da instituição familiar foi mantida em diversos dispositivos Apesar dos homens serem apenas homens quando vítimas de crimes a classificação sobre mulheres continuou seguindo seu curso Os crimes de estupro sedução e rapto encontravamse no capítu lo intitulado Dos crimes contra a segurança da honra102 e a distinção entre categorias de mulheres variava entre virgem honesta reputada como tal e prostituta desafiando penas diferenciadas para o sujeito ativo a depender da característica desta vítima mulher Da previsão do crime de estupro mediante violência ou ameaça contida no art 222 é possível extrair a noção de que mulher honesta é aquela que não é prostituta tendo em vista a explícita discrepância conferida pelo legis lador nos preceitos secundários Vejamos Art 222 Ter copula carnal por meio de violencia ou ameaças com qualquer mulher honestaPenas de prisão por tres a doze annos e de dotar a offendidaSe a violentada fôr prostitutaPe nas de prisão por um mez a dous annos Em realidade o que se percebe da interpretação desses artigos e que se torna evidente na previsão do crime de rapto103 é que estamos 101 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03leislimlim16 121830htmTSPD101R0eb2a7f5efdb2e5f88598aa77de22009ao 07000000000000000021d9528bffff00000000000000000000000000005ac395b f006a5bfaa8 102 Arts 219 a 246 do Código Criminal do Império 103 Art 226 Tirar para fim libidinoso por violencia qualquer mulher da casa ou lugar em que estiver Penas de dous a dez annos de prisão com trabalho e de dotar a offendida 186 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça diante de normas que visavam proteger o pátrio poder masculino e a concepção patriarcal de família da época O fato do casamento poste rior com a ofendida ser tido como causa de extinção da pena em todos esses crimes demonstra que a intenção não era tutelar a dignidade sexual da mulher Além disso o homem permanecia não sendo criminalizado pela prática de adultério eventual eis que a lei exigia a ocorrência do con cubinato para que houvesse a responsabilização masculina art 251 À mulher bastava uma única conduta para que fosse responsabilizada nas mesmas penas art 250 23 Código Penal de 1890 Com a proclamação da república um novo Código Penal foi editado em 1890 Alvo de variadas críticas em razão das lacunas que apresentava diversas leis extravagantes tentaram solucionar esse pro blema Entretanto em razão da dificuldade em acessar toda a legisla ção criminal em 1932 foi promulgada a Consolidação das Leis Penais De toda sorte naquilo que concernia às mulheres o regramento do código da república já havia trazido as previsões que interessam a esse trabalho Cumpre destacar que em relação aos crimes sexuais as altera ções não foram substanciais Permaneceu a distinção entre a mulher virgem a honesta e a prostituta indicadas pela quantidade de pena nos preceitos secundários O Título VII tratava dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje ao pudor sendo dividido em cinco capítulos da violência carnal do rapto do lenocínio do adultério ou infidelidade conjugal e do ultraje ao pudor No capítulo sobre a violência carnal o homem passou a ser con siderado sujeito passivo do crime de atentado ao pudor Já no crime de defloramento da menor de idade aglutinouse no mesmo tipo penal três hipóteses de incidência por meio da sedução do engano e da fraude No tipo penal do estupro foi cominada a mesma pena sendo a Art 227 Tirar para fim libidinoso por meio de affagos e promessas alguma mulher virgem ou reputada tal que seja menor de dezasete annos de casa de seu pai tutor curador ou outra qualquer pessoa em cujo poder ou guarda estiverPe nas de prisão por um a tres annos e de dotar a offendida Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 187 mulher virgem ou não contanto que honesta Caso fosse prostituta ou mulher pública equiparadas para os devidos fins perdurou a discre pante diferenciação de pena104 Quanto ao crime de rapto a prostituta continuou não sendo abar cada enquanto sujeito passivo apenas a honesta Além disso o consen timento da vítima entre 16 e 21 anos não era suficiente para a exclusão do crime e sim uma mera redução de pena privilegiando novamente o pátrio poder Por fim a pena dos crimes de defloramento e estupro de mulher honesta eram extintas na hipótese de casamento No Capítulo IV o art 279 insistiu na diferenciação da caracte rização do crime de adultério praticado por homens e mulheres En quanto para aqueles o concubinato era elementar do tipo para estas o adultério esporádico possuía o mesmo grau de reprovabilidade apli candose as mesmas penas A tradição da legislação penal examinada até aqui corrobora a hipótese de que o sistema penal possui papel fundamental na cons trução social do ser mulher no seio de uma sociedade patriarcal Ao garantir distinções de tratamento a depender da qualidade da vítima sobre fatos atrelados à sua sexualidade incutese na sociedade a noção de que para merecer a proteção do Estado mulheres devem se portar dentro de um padrão restrito e específico de comportamento Asse gurase desta maneira a preservação de uma lógica conservadora de controle dos corpos femininos em benefício da manutenção de privi légios patriarcais 24 Código Penal atual Com a edição do Código Penal em dezembro de 1940 os crimes sexuais passaram a ser previstos no Título VI recebendo o nome Dos crimes contra os costumes É sabido que a despeito de ser a normativa vigente atualmente o Código sofreu diversas modificações inclusive no tema aqui abordado Contudo a análise inicial se debruçará sobre o diploma tal qual promulgado no início da década de 40 104 Art 268 Estuprar mulher virgem ou não mas honesta Pena de prisão cel lular por um a seis annos 1º Si a estuprada for mulher publica ou prostituta Pena de prisão cellular por seis mezes a dous annos 188 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Pois bem dos seis capítulos que trataram sobre os crimes sexuais o destaque aqui será dado aos crimes contra a liberdade sexual que incluem o estupro a posse sexual mediante fraude o atentado ao pu dor mediante fraude o crime de sedução e o crime de rapto Apesar do tipo penal de estupro ter trazido a mesma pena inde pendentemente de qual fosse a categoria de mulher apenas mulheres poderiam ser sujeito passivo do crime a diferenciação entre mulhe res honestas virgens e demais mulheres permaneceu até o ano de 2005 no ordenamento brasileiro em outros dispositivos O art 215105 que dispunha sobre a posse sexual mediante fraude dispunha no caput que o sujeito passivo era a mulher honesta Já no parágrafo único o crime se tornava qualificado na hipótese da mulher ser virgem O art 216106 por seu turno também exigia que a mulher fosse honesta para que o crime de atentado ao pudor mediante fraude fosse configurado O crime de rapto violento ou mediante fraude no mesmo sentido pri vilegiava a mulher honesta e caso houvesse consentimento da mulher maior de 14 anos e menor de 21 a pena seria apenas reduzida arts 219 e 220107 Embora num primeiro momento possa ser questionada a inapli cabilidade de tais classificações em pleno século XX é importante des tacar que cabe à produção doutrinária enquanto uma das fontes do direito a tarefa de desenvolver os conceitos trazidos em tipos penais abertos Nesse sentido em suas famosas lições Nelson Hungria um dos autores do anteprojeto do Código Penal de 1940 entendia que desonesta é a mulher fácil que se entrega a uns e outros por interesse ou mera depravação HUNGRIA e LACERDA 1980 p 150 Essa compreensão permaneceu tão enraizada que quando da reforma da 105 Art 215 Ter conjunção carnal com mulher honesta mediante fraude Pena reclusão de um a três anos Parágrafo único Se o crime é praticado contra mulher virgem menor de 18 dezoi to e maior de 14 catorze anos Pena reclusão de dois a seis anos 106 Art 216 Induzir mulher honesta mediante fraude a praticar ou submeterse à prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal Pena reclusão de um a dois anos 107 Art 219 Raptar mulher honesta mediante violência grave ameaça ou fraude para fins libidinosos Pena reclusão de 2 dois a 4 quatro anos Art 220 Se a raptada é maior de catorze anos e menor de vinte e um e o rapto se dá com o seu consentimento Pena detenção de 1 um a 3 três anos Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 189 parte geral do código penal em 1984 a Exposição de Motivos108 em seu ponto 50 afirmou que o pouco recato da vítima nos crimes contra os costumes deveria ser avaliado no momento da aplicação da pena nos termos do art 59 atualmente em vigor Com efeito o que a lei buscava salvaguardar não era nem mes mo a dignidade sexual daquelas concebidas como honestas mas sim os costumes da sociedade patriarcal como expressamente trazia o Título VI do Código Foi apenas em 2005 com a Lei 11106 que tais categorias foram superadas no âmbito legislativo e que o casamento como causa de extinção da punibilidade foi revogado do ordenamen to E somente em 2009 com a Lei 12015 que lógica de tutela dos cos tumes foi substituída pela da dignidade sexual Se essa compreensão foi retirada do ordenamento jurídico há pouco mais de dez anos não resta dúvida sobre a sua permanência arraigada na sociedade e em todo o sistema de justiça 3 A Lei Maria da Penha Após o exame das principais legislações anteriores indagase se a Lei 113402006 cuja edição foi justificada na proteção à mulher conseguiu se desvencilhar da lógica categorizadora implementada ao longo desses séculos naquilo que concerne o tratamento punitivo ofe recido pelo diploma Com efeito o que se verifica é que a lei permanece imprimindo sobre mulheres estereótipos de gênero mas agora sob a rubrica de ví tima de violência doméstica Podese afirmar que a mulher aos olhos da legislação é percebida enquanto sujeito frágil incapaz dotado de passividade vítima do seu próprio destino que deve ser protegida inclusive de si mesma para que não corra o risco de desistir da em preitada punitiva O complexo fenômeno da violência entre pessoas que comparti lham laços afetivos familiares sociais e econômicos é percebido por meio de um viés simplificador A vontade da mulher no âmbito da jurisdição criminal é relegada a segundo plano uma vez que havendo 108 httpwww2camaralegbrleginfedlei19801987lei720911julho 1984356852exposicaodemotivos148879plhtml 190 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça a prática de um determinado fato típico sobrepõese a vontade da lei na imposição de uma resposta punitiva Entretanto em estudo apre sentado em 2015 ao Ministério da Justiça intitulado Violência contra a mulher e as práticas institucionais109 constatouse que 80 das mu lheres não desejam o encarceramento de seu agressor De acordo com a normativa vigente no momento em que a mu lher aciona o poder público buscando algum tipo de solução para sua situação problemática110 é objetificada e transformada em mero meio de prova para a formação da culpa do réu no seio de um processo pe nal O próprio uso das expressões ofendida e agressor implica na noção de que o conflito atravessado pela ótica do direito penal afas tará qualquer outra alternativa para sua solução que não seja a pena privativa de liberdade MONTENEGRO 2015 p 115 Vejamos então alguns dispositivos basilaresQuando da promul gação o legislador entendeu que a natureza da ação penal nos crimes envolvendo violência doméstica deveria ser condicionada à represen tação admitindo a renúncia da ofendida Contudo a renúncia só po deria ser realizada perante o juiz em audiência especialmente desig nada para este fim com a presença do Ministério Público111 exigência não prevista em nenhum outro diploma do ordenamento jurídico Ou seja o direito subjetivo de decidir por renunciar ao processo penal enquanto forma de solução do seu conflito estava submetido à apro vação do magistrado uma vez que o objetivo da norma era que fosse fornecido algum tipo de justificativa para seu ato Entretanto em 2012 o Supremo Tribunal Federal por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4424DF deu interpretação conforme ao referido dispositivo entendendo que os crimes de lesão envolvendo violência doméstica e familiar pouco importando sua extensão ou gravidade seriam de ação penal pública incondicionada 109 Volume 52 da publicação Pensando o Direito httppensandomjgovbrpu blicacoes 110 Situação problemática é denominação cunhada pelo abolicionista penal Louk Huslman Para ele o sistema penal só poderia ser superado se dentre algumas medidas fosse alterado todo o vocabulário punitivo assim como toda a lógica por trás da percepção desses fenômenos HULSMAN e CELIS 1993 111 Art 16 Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei só será admitida a renúncia à representação perante o juiz em audiência especialmente designada com tal finalidade antes do recebimen to da denúncia e ouvido o Ministério Público Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 191 Dessa forma afastouse de vez a possibilidade de escolha da mulher Ainda que os defensores de tal medida a justifiquem num suposto in cremento de proteção verificase na realidade um verdadeiro silen ciamento que apenas reconhece à mulher a possibilidade de ocupar o lugar de vítima A generalização da ideia de que toda mulher que deci de pelo não prosseguimento da ação penal estaria sendo pressionada ou até mesmo ameaçada demonstra como a pretensa tutela estatal é verticalizante e alheia às diversas nuances e complexidades dos casos concretos da vida real e dos diferentes processos de resistência femi nina que são diariamente concebidos e postos em prática nos seios comunitários Além disso tal silenciamento também pode ser observado na norma trazida pelo art 41112 cuja constitucionalidade foi atestada pelo STF na Ação Direta de Constitucionalidade 19DF Isso porque o referido artigo versa sobre a inaplicabilidade da Lei 909995 aos crimes da Lei Maria da Penha o que inclui o afastamento da possibi lidade de conciliação entre as partes mesmo em caso de ameaça pu nida pelo ordenamento com pena de detenção Todavia a conciliação representa um interessante momento processual em que as pessoas envolvidas no conflito mediadas por um juiz ou conciliador podem se expressar e ouvir umas as outras exercendo o protagonismo que a situação exige A conciliação parece adequada a vários tipos de conflitos po rém nos domésticos em especial entre cônjuges irmãos e pais e filhos a conciliação é sem dúvida o melhor caminho porque como os envolvidos se conhecem e os laços familiares não poderão ser rompidos a conciliação pode apresentar uma resposta personalizada atendendo aos anseios dos envolvidos que possibilita inclusive restaurar laços afetivos MONTENE GRO 2015 p 97 Fato é que o legislador e posteriormente ratificado pelo Poder Judiciário com o discurso de proteção à mulher continuou se valen do do estereótipo de fragilidade e passividade feminina que demanda 112 Art 41 Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher independentemente da pena prevista não se aplica a Lei no 9099 de 26 de setembro de 1995 192 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça cuidado especial em diversas passagens da Lei 113402006 Contudo retirar a voz das mulheres e o seu direito de escolha não deve ser o ca minho para alcançar sua emancipação Ao contrário o compromisso deve ser com a promoção de políticas sociais que permitam seu aco lhimento para que sejam ouvidas e seus interesses atendidos podendo estes ser dos mais variados Mas infelizmente essa não é a realidade Quando buscam o am paro do Judiciário por meio do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher a maior parte das mulheres não deseja o encarceramento de seus maridos companheiros filhos irmãos pais padrastos etc O baixo índice de condenação113 em processos que tra mitam nos Juizados de Violência Doméstica pode ser interpretado como reflexo do silenciamento de mulheres que não retomam a versão apresentada em sede policial quando em juízo após se darem conta de que a resposta punitiva oferecida pelo sistema penal não é capaz de pacificar o seu conflito e sim intensificálo muitas vezes em novos processos de vitimização Com efeito a percepção de 70 dessas mulheres é a de que suas questões poderiam ser resolvidas de forma distinta tais como a obri gatoriedade de frequência a grupos de agressores para conscientização 30 ou com a ajuda de psicólogos eou assistentes sociais 40114 Todavia diante do obscurantismo existente nos signos e linguagem da justiça e seus procedimentos incompreensível para a grande maioria da população muitas mulheres acabam não tendo a correta dimen são do que significa o processo criminal e o como funciona o seu regu lar processamento o que torna ainda mais perversa a impossibilidade de encerrar o processo por vontade própria É essencial portanto que nos questionemos acerca da escolha criminalizante no enfrentamento da violência doméstica contra a mulher Isso porque si se afirma que el derecho penal es un instrumen to esencialmente masculino por los valores que incorpora por la forma de proceder etc resultará ser un medio poco eficaz en la lucha de las 113 Na cidade de Recife a taxa de condenação no âmbito do Juizado de Violência Doméstica é de 7 Na cidade de São Paulo 40 Tratase de estudo apresen tado junto ao CNJ na 2ª Edição da Série Justiça Pesquisa Ano 2017 Título En tre práticas retributivas e restaurativas a Lei Maria da Penha e os avanços e desafios do Poder Judiciário Realização Universidade Católica de Pernambuco 114 Volume 52 da publicação Pensando o Direito httppensandomjgovbrpu blicacoes Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 193 mujeres Além disso resulta contradictorio que se acuse al derecho penal de ser un medio patriarcal y se recurra a él con lo cual en vez de contribuir a extinguirlo se contribuye a engrandecerlo LARRAURI 1994 CONCLUSÃO Partindo da hipótese de que o direito e assim o direito penal são ins trumentos de dominação patriarcal responsáveis por instituir e repro duzir a opressão sobre as mulheres muito embora percebidos sob lentes falsamente neutras e imparciais o objetivo desse trabalho foi o de se debruçar sobre a legislação penal brasileira no tratamento con cedido a elas Foi possível atestar que ao longo dos séculos perdurou a lógica de classificação dentro de estereótipos de gênero que estrutu ram a sociedade patriarcal Apesar do avanço e conquistas das demandas feministas a legis lação responsável por enfrentar a violência doméstica contra a mu lher também se insere nessa dinâmica secular Não se trata em afirmar que a Lei Maria da Penha não traga consigo dispositivos que mereçam aprovação Elencar os diversos tipos de violência que mulheres podem sofrer no âmbito familiar por exemplo possui um cunho educativo de suma importância Entretanto em seu eixo criminalizante a normativa permanece sendo de caráter classificatório e categorizador partindo da ideia de que a mulher vítima de violência doméstica merece a especial prote ção do Estado em razão de sua fragilidade e incapacidade reduplican do seu lugar desigual de poder na sociedade no momento em que o poder público é acionado PRANDO 2016 Dessa maneira se quis demonstrar que o sistema penal permane ce legitimando e garantindo as estruturas de poder de uma sociedade patriarcal mesmo quando se propõe a proteger mulheres É por isso que o direito penal não deve ser considerado instrumento hábil para a realização de políticas públicas pois não se trata de uma mera questão conjuntural de uma ou outra legislação passível de alguns ajustes Um sistema desenvolvido sobre bases sexista racista e classista de modo algum será o responsável por alcançar a emancipação de minorias 194 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Não se pode olvidar que suas agências punitivas são intrinseca mente seletivas e estigmatizantes cujo compromisso real consiste na manutenção de privilégios da classe dominante masculina e branca na formação de grupos marginalizados a serem controlados pela em preitada neoliberal BATISTA 2007 Logo mesmo no cenário da vio lência doméstica a clientela criminalizável continua pertencendo às classes subalternas Assim é possível concluir que além de ser incapaz de proteger mulheres já que intensifica a desigualdade de gênero na reprodução de estereótipos o direito penal contribui para a criminalização da po breza indo na contramão das discussões despenalizadoras travadas por renomadas e renomados juristas no Brasil e em diversos lugares do mundo justamente em razão da sua atestada ineficácia aos fins que declaradamente se propõe REFERÊNCIAS ANDRADE Vera Regina Pereira de A soberania patriarcal o sis tema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher Revista Brasileira de Ciências Criminais n 48 p 26090 maiojunho 2004 Pelas mãos da criminologia o controle penal para além da desilusão 1a ed Rio de Janeiro Editora Revan 2012 BAKER Milena Gordon A tutela da mulher no direito penal brasilei ro a violência física contra o gênero feminino Rio de Janeiro Lumen Juris 2015 BATISTA Nilo Só Carolina não viu violência doméstica e polí ticas criminais no Brasil In Mello A R Org Comentários à Lei de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher Rio de Janeiro Lumen Juris Editores 2007 BERGALLI Roberto e BODELÓN Encarna La cuestión de las mu jeres y el derecho penal simbólico Anuario de Filosofía del Derecho IX p 4373 1992 HULSMAN Louk CELIS Jacqueline Bernat de Penas Perdidas o Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 195 sistema penal em questão Trad Maria Lúcia Karan 1ª edição Nite rói Editora LUAM 1993 HUNGRIA Nelson e LACERDA Romão Côrtes de Comentários ao Código Penal Vol VIII Arts 197 a 249 Rio de Janeiro Forense 1981 LARRAURI Elena Mujeres derecho penal y criminología Ma drid Siglo Veintiuno Editores 1994 MONTENEGRO Marília Lei Maria da Penha uma análise crimi nológicocrítica 1a edição Rio de Janeiro Editora Revan 2015 PRANDO Camila Cardoso de Mello O que veem as mulheres quan do o direito as olha Reflexões sobre as possibilidades e os alcances de intervenção do direito nos casos de violência doméstica Revista de Estudos Criminais 60 JaneiroMarço 2016 ZAFFARONI Eugenio Raúl et al Direito Penal Brasileiro Primei ro Volume Teoria Geral do Direito Penal 2a edição Rio de Janeiro Revan 2003 196 FEMINICÍDIO NO BRASIL O QUE VEM DEPOIS DA TIPIFICAÇÃO Ana Carolina de Sá Juzo115 Ivo Mendes116 RESUMO A pesquisa discute a tipificação do feminicídio conside rando o contexto das estruturas das violências de gênero sob a ótica da Criminologia Crítica e da necessidade de uma teoria crítica com amparo feminista Evidenciando a insuficiência penal e as contradi ções do poder punitivo como forma de resolução do problema reali zase a análise de discursos encontrados em sentenças e outras peças processuais referentes ao desvio para apontar que mesmo depois da tipificação as narrativas sociais e jurídicas marcadas pela desigualda de mantêmse e se reproduzem na mesma proporção que as violências e as consequentes mortes em razão do gênero Palavraschave Feminicídio Intervenção penal Discursos Violência contra a mulher I A violência doméstica diferente da urbana acaba por incidir sempre sobre as mesmas vítimas SAFFIOTI 2004 p88 E por considerar motivos como esse o texto elege as violências sofridas pela mulher no espaço privado como questão central Não porque inexistem manifes tações de violências no ambiente público mas pelo fato de a violência doméstica ser a mais evidente e sistêmica no país e na América Latina 115 Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Franca 116 Graduado em Direito pela Faculdade de Direito de Franca Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 197 Além disso é a mais complexa no reconhecimento e compreen são da própria vítima o que se traduz no conceito de Violência Per feita CHAUÍ 2015 p24 uma completa interiorização da vontade e da ação alheia na submissão ao desejo do outro de modo com que a perda da autonomia não seja percebida e nem reconhecida Majoritariamente violência exemplificada por mulheres hete rossexuais brancas117 e protagonistas das relações familiares em uma lógica de poder exercida nas interações da dicotomia entre o papel do homem e da mulher Participantes consequentemente de uma realidade marcada por uma Cultura Patriarcal BARATTA 1999 p23 Imposta por meio de incontáveis maneiras e utilizando inúmeros argumentos desde bio lógicos até religiosos Facilmente consolidados dificilmente descons truídos Fato é que as características dessa cultura patriarcal amparada pela desigualdade marcaram uma histórica e discriminatória posição de subordinação da mulher o que automaticamente se instalou nas relações sociais das mais variadas formas até o momento atual Foi no decorrer do neolítico quando o homem passou a dominar a sua função biológica reprodutora e se tornou capaz de controlála que pode também controlar a sexualidade feminina Surgiu aí o ca samento com os contornos que perduraram séculos a mulher como propriedade do homem e a herança transmitida através da descendên cia masculina GOSTINSKI 2016 p131 E mesmo depois de percorridos longos períodos lutas e signi ficativos avanços no campo das relações humanas ainda são altos os números que representam as violências de gênero Na mesma crescen te proporção suas manifestações ainda tendem a se modificar e mo dernizar mas continuam pautadas em uma violência que se expressa na retrógrada hierarquização dominação de um lado e subordinação de outro 117 Colocase a mulher branca como protagonista dos espaços privados e domésti cos porque a mulher negra no Brasil é tanto a primeira trabalhadora e ocupante dos espaços públicos quanto o homem E embora exista uma pluralidade de vozes e demandas feministas as atuais violências elencadas no trabalho não deixam de atingir a todas Pelo contrário fazemno de forma ainda mais dolo rosa como explicou Vera Regina Pereira de Andrade 2016 198 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Confrontando tal modelo na década de sessenta organizouse o movimento social do feminismo Inicialmente com repercussões so ciais e políticas o movimento feminista começa a luta por equidade igualdade e emancipação da mulher enquanto pessoa humana políti ca e detentora de autonomia A primeira geração do feminismo foi marcada pelo movimento sufragista advindo da academia denunciando a desigualdade dos di reitos entre os gêneros No Brasil esse movimento nasce e esboça seus primeiros passos sob o Estado do bem estar no qual o poder punitivo ocupava uma posição subsidiária Naquela ocasião era inevitável e compreensível que algumas cor rentes feministas pensassem também num uso alternativo do poder punitivo como estratégia emancipadora das opressões que podemos reunir sob a rubrica de violência doméstica BATISTA 2008 p3 Entretanto principalmente a partir da década de oitenta a ins tauração de um Estado contraposto ao do bem estar social modificou a função e abriu mais espaço ao poder punitivo Nesse período alguns dos movimentos feministas embora não próximos da Criminologia Crítica reconheciam certas contradições existentes na lei penal Lutando inclusive pela retirada do caráter moral dos tipos penais facilmente identificado na expressão mu lher honesta O Código Penal de 1830 punia a cópula carnal por meio de vio lência ou ameaça à mulher honesta Depois criouse um tipo penal punindo o estupro de mulher virgem ou não mas honesta Em 1940 extinguiuse a punibilidade de todos os crimes sexuais caso a vítima se cassasse com o agressor mostrando de forma evidente a lógica de aceitação da dominação e hierarquia de um gênero sobre o outro no ambiente doméstico e privado Os Códigos Penais de 1830 e 1890 penalizavam igualmente o adultério feminino e o masculino mas a sociedade via de forma dis tinta essas duas práticas O adultério feminino segundo se cria apre sentavase muito mais gravoso pois poderia trazer uma prole ilegí tima para o seio do casamento abalando a reputação do marido O adultério praticado pelo homem por sua vez era visto como uma prática social aceitável O Código de 1940 reafirmou essa disposição Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 199 e também criminalizou o adultério Ainda que o homicídio de um cônjuge infiel não tivesse mais guarida legal emergiu a tese de legíti ma defesa da honra e inaugurouse a modalidade de crime passional Por serem raríssimas as manifestações violentas femininas diante de uma traição dado seu histórico de opressão os homicídios no caso em questão passaram a ter como agente o homem traído COUTO 2017 p45 Contudo na década de noventa com a expansão do sistema pe nal no contexto do controle punitivo seletivo e marginalizante não se pode negar que algumas vertentes e mulheres feministas pudessem acreditar no poder punitivo como auxílio no combate às violências e opressões II Em agosto de em 2006 tentouse novamente esconder um proble ma histórico político e social com o uso do poder punitivo e sistema penal A Lei 11340 conhecida como Lei Maria da Penha ainda que partindo dos três verbos elencados na Convenção de Belém do Pará ratificada pelo Brasil em 27 de novembro de 1995 promulgada pelo decreto nº 197396 na tentativa de Prevenir Punir e Erradicar a Vio lência contra a Mulher colocou em prática sua função punitiva re pressiva Uma lei que teve por impulso os casos de violências domésticas ocorridos no país em específico de Maria da Penha Maia Fernandes quem sofria reiteradas agressões praticadas pelo companheiro Na ocasião o Brasil foi condenado por negligência e omissão em relação à violência doméstica e familiar havendo condenação do Estado bra sileiro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Orga nização dos Estados Americanos em 2001A Lei foi sancionada em 7 de agosto de 2006 Mas mesmo assim continuamos a assistir uma avalanche de atos de violência que afetam a vida das mulheres PER RONI 2015 p11 E no mesmo sentido da citada Convenção Interamericana para a Erradicação da Violência Contra a Mulher a Lei Maria da Penha 200 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça expandiu o conceito de violência para além da agressão corporal pon tuando como existentes cinco formas de violência doméstica psicoló gica sexual patrimonial moral e física No país assim como em toda a América Latina ao passo que as repercussões com o tema acentuavamse geravamse rumores de uma maior criminalização e punição do ápice dessas violências a morte de mulheres em razão do gênero Por conseguinte em 2013 chega à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito a proposta de tipificar a morte de mulheres no Código Penal Uma proposta que parte da Secretaria de Segurança Pública e da Associação de Magistrados do Rio de Janeiro Tendo seu caráter de continuidade da violência doméstica onde a Lei Maria da Penha deve ser vista como ponto de partida CAMPOS 2017 O relatório da proposta é acolhido e aceito pela relatora responsável da CPMI Ana Rita De início a discussão acerca da proposta divergia sobre criar ou não um novo dispositivo no Código O artigo 121 permaneceu inal terado e o feminicidio não foi considerado crime autônomo mas sim descrito por uma das qualificadoras VI A proposta legislativa percorreu suas quatro fases Até a terceira fase a expressão morte em razão do gênero não havia sido concei tuada definida e nem justificada do mesmo modo que o aumento de pena também não o foi Na quarta fase o feminicídio foi mantido como crime qualifica do mas houve uma significativa alteração em seu texto a expressão razão de gênero é substituída por razões da condição do sexo fe minino Isso a partir da imposição da bancada religiosa com o obje tivo de excluir mulheres que não em razão de sua condição biológica CAMPOS 2017 Com essa redação em 9 de março de 2015 o projeto é aprovado pelo parlamento instituindose o delito de feminicídio já previsto nas legislações da Argentina Bolívia Chile Colômbia Costa Rica Honduras El Salvador Honduras Equador Guatemala México Nicarágua Peru Venezuela também no Código Penal Brasileiro Muito mais do que assertivas sobre as possíveis consequências da tipificação do feminicídio no país surgem então questionamentos Se ria necessária uma tipificação e o aumento da pena Como assegurar Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 201 quais os critérios dos julgamentos O instrumento penal é um meio adequado para enfrentar a questão das violências e mortes em razão do gênero O direito penal representa a luta dos movimentos que en frentam essas mortes e violências O que significa a razão da condição do sexo feminino dado que a literatura feminista ou de movimentos de mulheres não trata e nem define esta expressão III Pela análise de alguns discursos sóciojurídicos que fazem parte dos argumentos utilizados nos processos de violências e das mortes em razão do gênero foram estudados dez processos de feminicídio um na forma tentada tramitados e julgados na Vara do Júri e Execuções Penais da Comarca de FrancaSP As peças processuais acusação defesa e decisão foram avaliadas tomando por base a técnica interpretativa que visa buscar uma justa interpretação de expressões em que o autor leva em conta o contexto PERELMAN 1996 p140 Ou seja somente o contexto social polí tico histórico atribui um significado à palavra ou expressão e somente esse contexto poderia fazer entender o que elas realmente desempe nham nos discursos Considerando determinadas premissas argumentativas em es pecial a realidade naturalizada da desigualdade de gênero algumas percepções puderam ser notadas de imediato e de forma majoritária em todos eles além das duas condições próprias do tipo penal qualifi cado I violência doméstica e familiar II menosprezo ou discrimi nação à condição de mulher incluídas pela Lei nº 13104 de 2015 Na maioria dos processos a defesa por exemplo utiliza da tese do uso de drogas lícitas ou ilícitas na tentativa de justificar e argumen tar os atos violentos e o homicídio praticado ao retornar para seu lar impedido de nele entrar e nervoso já sob efeito do álcool e da cocaína perdeu a cabeça ao sentirse amea çado pelo filho da vítima Processo nº 00165570320168260196 Além disso ressaltase que a embriaguez mesmo incompleta produz na mente do agente uma perturbação que não permite juízo de pro 202 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça porção entre causa e ação Processo nº 00134987020178260196 Fato é que o evento ocorreu em situação de droga de entorpecência ou seja da existência de uma atmosfera pesada Processo nº 0022513 9720168260196 Mais do que teses de semiimputabilidade a narrativa represen ta a busca imediata por fatores externos ao relacionamento do casal que possam minimamente explicar e justificar os comportamentos agressivos do parceiro tais como o uso de bebidas alcoólicas FILHO 2015 p 141 As peças acusatórias por sua vez adotam uma forma simplifi cada das teses de configuração do delito por estar provada a relação de afeto entre a vítima e o acusado O feminicídio por seu turno também restou configurado para a fase presente pois o fato foi desencadeado por conta de relação íntima de afeto que existiu entre o acusado e a vítima Processo nº 00127584920168260196Por fim quanto à circuns tância qualificadora a existência de relacionamento íntimo e doméstico entre o acusado e a vítima restou evidente havendo informações seguras ao menos para esta fase Processo nº 00165570320168260196 Nas sentenças as principais conclusões da política criminal ado tada em casos de feminicídio e outras mortes qualificadas de mulhe res caminharam fiel e exclusivamente ao lado do anseio punitivo am parado em certos argumentos como a crueldade o clamor público a gravidade e necessidade de fixação da penabase acima do mínimo Nesta esteira atento às circunstâncias do crime praticado por meio cruel e também em detrimento de vítima mulher com quem o acu sado por longo período se manteve casado fixo a penabase em 16 de zesseis anos de reclusão Processo nº 00127584920168260196A quantidade de pena aplicada e a extrema gravidade da infração penal equiparada a crime hediondo justificam que o acusado inicie o cum primento da pena privativa de liberdade no regime fechado Processo nº 00127584920168260196 As sentenças de pronúncia e decisão final do júri estudadas em média com quatro laudas não discorreram sobre o caráter crimino lógico da nomeação ou das causas do desvio não contribuindo para a compreensão da própria violência sexual e a gestão de conflitos muito menos para a transformação na relação de gênero Fazendo uso tão somente de um discurso de caráter punitivo inerente ao julgamento Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 203 Na decisão de pronúncia da tentativa de feminicídio a ordem pública e o uso de drogas ilícitas também foi amparo para a prisão preventiva O acusado permanecerá preso pois a sua conduta causa grave abalo à ordem pública considerando ainda que é pessoa envolvida com drogas mal este que corrói as famílias e está na base da maioria dos crimes violentos Processo nº 00165570320168260196 Em uma das sentenças analisadas nas Ações Penais de Compe tência do Júri o réu foi condenado como incurso no artigo 121 2 incisos III e IV mas não pelo feminicídio imputado inicialmente pela denúncia Acusado e a vítima mantiveram relacionamento amoroso e ele inclusive relatou que ainda nutria sentimento de afeto por ela mostrandose desgostoso por ela se relacionar com outros homens vin do a lhe ceifar a vida por conta desse comportamento Processo nº 00225139720168260196 Nos autos a denúncia foi aditada para incluir a figura do femi nicídio A inicial acusatória trazia a imputação de que o acusado te ria imobilizado a vítima durante o ato sexual tendo usado um bisturi para matála e um machado para seccionar o corpo e efetuar o trans porte Processo nº 00225139720168260196 Nessa ação a defesa alegou que a vítima e o acusado faziam uso desmedido de drogas ilícitas principalmente o crack e que este nun ca teria se oposto às relações sexuais da vítima com outros parceiros Por isso partiu da tese de que a morte ocorreu em decorrência do uso do entorpecente e não pelas condições do gênero fls 268 Processo nº 00225139720168260196 O que foi acatado pelos jurados con soante a sentença que não aduziu nenhum fato relatório ou decisão sobre a prática do feminícidio condeno a 09 anos e 02 meses de re clusão e 08 oito diasmulta no valor unitário mínimolegal por infra ção ao artigo 121 2 incisos III e IV e ai artigo 211 do Código Penal Processo nº 00225139720168260196 De fato a vítima fazia uso da droga ilícita o que não exclui o ca ráter de sua morte ocasionada no momento da relação sexual e em de corrência do relacionamento afetivo com o desviante caracterizador da violência doméstica e das relações contextualizadas de domínio e subordinação 204 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Por essa razão não raramente os crimes de feminicídio possuem características misóginas apresentando inflição de ferimentos em lo cais distintos do corpo da mulher como seio e vagina É comum ob servar também desfigurações e violência sexual aliadas ao homicídio dessa espécie características que atentam contra a subjetividade e in dividualidade da vítima cerceando sua identidade e reduzindoa a um objeto sexual COUTO 2017 p44 A descrição desses argumentos chamados a interagir sempre pode ser entendida numa direção dupla por uma análise mais apro fundada análise mais acurada ou também diversamente conduzida e pela consideração de um número crescente de argumentos espontâ neos tendo o discurso como objeto PERELMAN 1996 p523 Em análise ao contexto dos discursos jurídicos estudados que fazem uso simbólico do direito penal inferiuse sobre a impossibilidade de mu dança sem a discussão da realidade social À medida que esses discursos são mantidos o sistema penal além de seletivo e estigmatizante passa duplicar a violência de modo que o silêncio sobre os fatores históricos políticos e sociais que legitimam as violências e mortes tornamse violentos ao não enfrentar e tratar do conflito por outros modos menos danosos e mais efetivos que o poder punitivo IV Tomando por base a pluralidade do movimento feminista e elegen do um feminismo enquanto teoria crítica e política segundo explicou Marcela Lagarde 1996 afirmase ser preciso repensar a Criminolo gia Crítica de acordo com a epistemologia e os aportes da teoria crítica feminista Na tentativa de alcançar o resultado de um saber crimino lógico que não só entenda o caráter seletivo e estigmatizante do siste ma penal mas também enxergue as perspectivas experimentadas pelo feminismo diante da real atuação do direito penal Nesse contexto vale lembrar que muito antes da definição de violência doméstica tipificada pela Lei 1134006 e da consequen te morte dessas mulheres feminicídio a pena pública no Brasil foi Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 205 fundada sob o predomínio do poder punitivo doméstico senhorial e inerente ao escravismo aquele poder que transferia para as pessoas as faculdades absolutistas que o direito romano assegurava ao proprietá rio sobre suas coisas A casa como se vê com clareza da antiguidade aos tempos modernos foi ao lado do palácio e do templo um lugar cujos habitantes estavam submetidos ao poder punitivo no caso exer cido pelo pater BATISTA 2008 p13 Partindo da metáfora paterna formulada por Nilo Batista 2010 apontase a evidente contradição em buscar a emancipação feminina e o rompimento das violênciasmortes em razão do gênero recorrendo à proteção de um sistema penal classista e sexista procurando uma espécie de pai que cumpre funções contrárias ao que se propõe a fazer Além disso como explicou Vera Malaguti 2015 o pai não dá conta de resolver o complexo contexto histórico social e político da desigualdade de gênero Além da contradição e do não enfrentamento do problema o di reito penal de caráter seletivo e estigmatizante exerce violências por meio de seus discursos sóciojurídicos que recaem sobre os homens e mulheres no âmbito da criminalização primária e secundária aos desviantes e vítimas Dado que o controle punitivo faz parte de uma estrutura patriarcal E ao incidir sobre a vítima mulher a sua complexa fenomenologia de controle social que representa por sua vez a culminação de um processo de controle que certamente inicia na família o sistema de justiça criminal duplica ao invés de proteger a vitimização feminina pois a mulher tornase vítima da violência institucional plurifacetada do sistema que expressa e reproduz por sua vez dois grandes tipos de violência estrutural da sociedade a violência das relações sociais capitalistas a desigualdade de classe e a violência das relações sociais patriarcais traduzidas na desigualdade de gênero recriando os este reótipos inerentes a estas duas formas de desigualdade ANDRADE 2012 p 131 Assim a tipificação do crime qualificado de feminicídio não resolveu não resolve e nem poderá resolver o problema enquanto as raízes e especificidades não forem enfrentadas fora na esfera penal E no que tange a esse anseio punitivo embora algumas líderes e vertentes feministas não tenham rompido com as demandas puni tivistas para tratar da questão não se pode dizer que o movimento 206 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça feminista apoia e contribui para a criminalização de condutas e o re crudescimento das penas nos crimes contra o gênero Considerando os preceitos de gênero raça e classe além de um necessário amparo na Criminologia Crítica que seja ao mesmo tempo feminista devese reconhecer quem são as mulheres e homens que ocupam as prisões e sofrem as variadas formas de violência E se por um lado a vigência da Lei Maria da Penha e do femi nicídio promoveu um maior espaço à discussão do tema por outro depois da tipificação diminuiu a complexidade silenciando o deba te que existe por trás das medidas repressivas penais e processuais Toda essa riqueza e complexidade desaparece perante o conveniente simplismo de sua tradução legal tratase apenas de caracterizar le galmente a violência doméstica e mandar para a cadeia o agressor ou submetêlo a restrições de direito que caso descumpridas prender prender para que tudo continue igual BATISTA 2008 p16 Por isso ao mesmo tempo em que é criminologicamente legítimo reconhecer a nomeação para a morte em razão do gênero e não em razão da condição do sexo feminino também é feminista e critica mente legítimo ser contra o aumento de penas e descriminalização de condutas Da mesma forma há legitimidade e necessidade em se reco nhecer os paradoxais discursos sóciojurídicos do poder punitivo contrapondoos à falha e danosa tentativa de solução de conflitos de quaisquer desigualdades por meio da intervenção penal É preciso entender a violência contra a mulher como um fenômeno multifacetado não sendo possível estabelecer uma única saída para solucionar o problema ainda mais se este único caminho for por meio de um direito penal sexista e seletivo Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 207 REFERÊNCIAS ANDRADE Vera Regina Pereira de Pelas mãos da criminologia o controle penal para além da desilusão Rio de Janeiro Revan 2012 Vera Regina Pereira de A soberania patriarcal o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher Revista de Direito Público n17 Jul Ago Set 2007 Vera Regina Pereira de Crítica à violência de gênero crítica ao direito penal In Encontro Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro 1 2016 Rio de Janeiro BATISTA Nilo A Lei como Pai Passagens Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica Rio de Janeiro vol 2 no3 p2038 janeiro 2010 Nilo Só Carolina não viu Violência Doméstica e política criminal no Brasil Jornal do Conselho Regional de Psicologia Rio de Janeiro ano 05 março 2008 BATISTA Vera Malaguti de Souza Weglinski Introdução Crítica a cri minologia brasileira 2 ed Rio de Janeiro Revan 2012 BARATTA Alessandro O paradigma do gênero da questão criminal à questão humana In CAMPOS Carmen Org Crimino logia e Feminismo Porto Alegre Sulina 1999 BRASIL Lei 1134006 de 7 de agosto de 2006 CAMPOS Carmen Hein de CARVALHO Salo de Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica a experiência brasileira Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídi cofeminista Rio de Janeira Lumen Juris 2011 Carmem Hein de Teoria Crítica Feminista e Crítica às Criminologias estudo para uma perspectiva feminista em criminolo gia no Brasil 2013 Tese Doutorado em Ciências Criminais Pontifí cia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2013 COUTO Maria Claudia Girotto do Lei Maria da Penha e princí pio da subsidiariedade diálogo entre um direito penal mínimo e as demandas de proteção contra a violência de gênero no Brasil São Paulo IBCCRIM Instituto Brasileiro de Ciências Criminais 2017 208 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Crítica à violência de gênero crítica ao direito penal 1 Vera Regina Pereira de Andrade nº1 2015 Rio de Janeiro Fundação Escola Su perior da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro 15 de jul 2015 Crítica à violência de gênero crítica ao direito penal 2 Vera Malaguti de Souza Weglinski Batista nº1 2015 Rio de Janeiro Fundação Escola Superior da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro 15 jul 2015 GOSTINSKI Aline Estudos feministas por um direito menos machista Florianópolis Empório do Direito 2016 KARAM Maria Lucia A esquerda punitiva Discursos sediciosos cri me direito e sociedade Rio de Janeiro Vol 1 n 1 p 7992 1996 Maria Lucia Violência de gênero o paradoxal entusiasmo pelo rigor penal Boletim do Ibccrim n 168 novembro 2006 LAGARDE Marcela Género y feminismo Dessaroloo Humano y de mocracia Espanã Horas y horas 1996 MENDES Soraia da Rosa Criminologia feminista novos paradigmas São Paulo Saraiva 2014 PERRELMAN Chaim Tratado da argumentação a nova retórica São Paulo Martins Fontes 1996 PERRONI Tatiana Santos Histórias de Marias São Paulo IBCCRIM 2015 RAUTER Cristina Criminologia e subjetividade no Brasil instituto carioca de criminologia Rio de Janeiro Revan 2003 SAFFIOTI Heleieth I B Gênero patriarcado violência São Paulo Editora Fundação Perseu Abramo 2004 SANTOS Maria Guadalupe dos O feminismo na história suas ondas e desafios epistemológicos In BORGES Maria de Lourdes TIBURI Marcia org Filosofia machismos e feminismos Florianópolis Edi tora da UFSC 2014 SILVA SÁNCHEZ JesusMaria A expansão do direito penal aspetos da política criminal nas sociedades pós industriais São Paulo Revista dos Tribunais 2002 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 209 SMART Carol La teoria feminista y El discurso jurídico In LAR RAURI Helena org Mujer derecho penal y criminologia Madri Siglo Veintiuno 1994 ZAFFARONI Eugenio Raul A questão criminal Rio de Janeiro Re van 2013 23º SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE CIÊNCIAS CRIMINAIS IBCCRIM n23 2017 São Paulo Campos Carmen Hein de Femini cídio o que vem depois da tipificação São Paulo 2017 210 FEMINICÍDIO UMA ANÁLISE DA RECENTE EXPOSIÇÃO DE UM ANTIGO PROBLEMA NOS DISCURSOS JURÍDICOS Bruna Fortunato Barcelos118 Larissa Barbosa119 RESUMO A inclusão do Feminicídio como hipótese de homicídio qualificado pela lei 13104 de 2015 por força da pressão do movimen to feminista impôs à dogmática jurídica o dever de abordar a questão sobre a violência letal contra a mulher abandonando seu tradicional discurso neutro e universalista Assim a pesquisa FEMINICÍDIO Violência Letal contra a Mulher na Ordem do Patriarcado tem como objetivo analisar os discursos dos operadores jurídicos produzidos a partir da alteração do Código Penal Partindose de uma compreensão multidisciplinar buscase situar o fenômeno do Feminicídio na or dem da cultura patriarcal contextualizandoo histórica e politicamen te Para tanto foram analisadas as obras de Direito Penal de 4 autores de ampla circulação no meio jurídico além da realização de pesquisa de campo junto aos Tribunais do Júri da Cidade do Rio de Janeiro para o acompanhamento dos processos iniciados após a promulgação da lei até julho de 2017 Palavraschave Feminicídio Gênero Patriarcado Direito Direito Penal 118 Graduanda em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro FNDUFRJ 119 Graduada em Psicologia pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro IPUFRJ 2014 Graduanda em Direito pela Faculdade Na cional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro FNDUFRJ Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 211 1 INTRODUÇÃO O presente artigo tem como escopo apresentar os resultados preliminares da pesquisa FEMINICÍDIO Violência Letal contra a Mulher na Ordem do Patriarcado orientada pela Professora Doutora Cristiane Brandão tendo como objetivo analisar os discursos produ zidos nos âmbitos acadêmico e forense a partir da promulgação da lei 13104 de 2015 permitindo a elaboração de estatísticas que permi tissem auxiliar o efetivo combate à violência de gênero no bojo das instituições públicas A primeira fase da pesquisa concentrouse na revisão bibliográ fica acerca do tema FNDUFRJbuscando materiais de outras áreas de saber além do Direito em alinhamento à proposta de fazer um es tudo multidisciplinar da violência de gênero tendo em vista que se trata de um fenômeno complexo do qual o saber jurídico não dá conta sozinho Frisese que a atenção do Direito para a violência de gênero é recente se comparado com as demais ciências humanas que teorizam o tema há algumas décadas A partir do levantamento bibliográfico que ampliou a nossa perspectiva sobre o assunto a doutrina de Direito Penal produzida até 2016 foi problematizada no que tange à discussão jurídica acerca da qualificadora do Feminicídio e a pesquisa de campo foi iniciada A fase empírica da pesquisa analisou os processos em curso pe rante os 4 Tribunais do Júri da Comarca do Rio de Janeiro limitação espacial iniciados após 09 de março de 2015 estendendo os trabalho até julho de 2017 Acompanhamos as Audiências instrutórias e as ses sões do Júri e tivemos acesso aos autos mediante autorização dos Juí zes responsáveis pelos órgãos A partir dessas atividades entendemos como o diaadia do judiciário foi afetado ou não pela mudança nor mativa e como os juristas compreendem o significado de Feminicídio Cumpre informar que a pesquisa permanece em curso para o acompanhamento das sessões plenárias dos processos identificados 212 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 2 PARA UMA COMPREENSÃO MULTIDISCIPLINAR DO FEMINICÍDIO Antes de delinear os elementos jurídicos do feminicídio buscouse inserir o fenômeno do Feminicídio na ordem da cultura patriarcal em que nossa sociedade se sustenta entendendo a violência letal contra a mulher como manifestação do poder do homem sobre a mulher Assim como Segato 2006 assevera falar sobre o assassinato de mulheres é falar sobre gênero que é o substrato de uma violência fun dante da sociedade Nesse sentido a violência de gênero fundase na supremacia patriarcal dos homens constituindose como mecanismo de controle sujeição opressão castigo e agressão contribuindo para a manutenção das estruturas formais e informais LAGARDE 2006 p 16 Jill Radford e Diana Russell 2006 p 33 introduzem a com preensão do Feminicídio como um assassinato motivado pela misogi nia sendo uma das formas de violência sexual Russell por seu turno entende o fenômeno como a forma mais extrema do terrorismo sexis ta motivado por ódio RADFORD RUSSELL 2006 p56 Radford usa o conceito de violência sexual dado por Liz Nelly segundo o qual por qualquer ato que restrinja o campo de escolhas da mulher que se sente ameaçada e violada LIZ NELLY 1988 APUD RUSSELL E RADFORD 2006 p 33 A partir desse conceito a autora situa o fe nômeno num contínuo de violências experimentadas pelas mulheres em diversos âmbitos que servirão à manutenção do controle sobre os corpos femininos Segundo Radford o conceito Feminicídio abarca qualquer mor te de mulher por razões misóginas racistas e homofóbicas ou como resultado de práticas sociais Assim a transmissão deliberada do vírus HIV a uma mulher ou a morte decorrente de aborto mal sucedido são considerados feminicídios extrapolando a concepção legal do termo RUSSELL RADFORD 2006 p 41 Como as autoras ajudam a demonstrar a violência letal contra as mulheres faz parte de uma cultura onde se legitima o poder dos homens sobre as mulheres Essa violência fundada no gênero por sua vez não se manifesta somente nas relações interpessoais mas também nas políticas públicas nos discursos midiáticos etc Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 213 Nesse momento é interessante trazer à discussão a distinção em preendida por Hannah Arendt entre Poder e Violência O primeiro diferenciase pela legitimidade social as instituições públicas só se mantêm pelo apoio do povo Esse poder funciona de forma pulveri zada todos exercem poderes uns sobre os outros legitimando o fun cionamento das instituições ARENDT 2001 p 36 A violência apa rece justamente como instrumento orientado à manutenção do poder quando este dá sinais de impotência e de falta de legitimidade A vio lência assim é o último recurso do poder ARENDT 2001 p 3739 Trazendo o arcabouço conceitual da filósofa para a discussão so bre violência de gênero conseguimos sedimentar a relação entre as violências no âmbito interpessoal e a estrutura patriarcal da sociedade ARENDT 2001 p 40 Os atos de violência mais explícitos ocorrem principalmente quando a mulher tenta dar um fim às sua relações com seus excompanheiros ou excônjuges que se constroem com base numa estrutura desigual de poder entre os sujeitos À medida que esse poder vêse mais ameaçado a gravidade das violências aumenta cul minando com a morte das mulheres Olhando para o plano macro essa desigualdade entre os gêneros observadas nas relações interpessoais plano micro só se sustenta pela legitimação do patriarcado Assim a violência masculina só é exercida com a finalidade de reforçar o poder patriarcal que se vê ameaçado pelo empoderamento feminino Existe portanto uma ligação estreita entre o poder e violência ARENDT 2001 p 41 Voltando ao contexto brasileiro cabe agora verificar como e se esse poder patriarcal vem se reestruturando após os abalos provoca dos pelo reconhecimento do Feminicídio como qualificadora do cri me de homicídio Frisese que já durante a tramitação da proposta legislativa houve reação dos setores conservadores contra a iniciativa ao substituir o vocábulo gênero pela palavra sexo No atual contex to nacional o primeiro termo sofre todo o tipo de censura por remeter às pessoas que desafiam o binarismo de gênero O poder patriarcal até flexibilizou o direito de matar mulheres mas não abriu mão de exercer o direito de violar os corpos trans 214 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 3 COMO OS AUTORES DE DIREITO REAGIRAM À ALTE RAÇÃO NORMATIVA Marcela Lagarde afirma que a violência de gênero promove a exclusão de mulheres e a dependência daqueles que detêm o poder Forçoso compreender que esse poder inclui a produção de conhecimento que permaneceu dominada por sujeitos masculinos brancos heterosse xuais e de origem europeiaestadunidense Logo o intelectual deve estar atento às reproduções dessa estrutura patriarcal de gênero em sua obra No campo do Direito a atenção deve ser redobrada já que a doutrina jurídica é uma das fontes do Direito onde os seus opera dores buscam argumentos para sustentar e fundamentar suas teses e atuações Já lembrava Spivak que a produção de teoria é também uma prática 2010 p 31 Incorporado o termo feminicídio ao ordenamento jurídico bus case traçar limites à sua interpretação definindo seus limites norma tivos Tal operação não é despida de conteúdo ideológico ou político Ao contrário como uma linguagem o Direito tem limitações e falha em captar e traduzir a realidade com a devida complexidade Os sig nos do Direito não dão conta dos inúmeros significados presentes na sociedade Assim a gramática jurídica silencia alguns para dar visibi lidade a outros Isto posto fazse necessário abordar criticamente a recente cons trução do saber jurídico acerca do fenômeno em estudo que é objeto de outras áreas acadêmicas há algumas décadas Para tanto foram ana lisadas obras de 4 autores de máxima relevância nos cursos de Direito Penal oferecidos nas diversas Faculdades de Direito do país Apesar da ampla produção acadêmica sobre o tema de autoria feminina e de cunho feminista os autores ignoraram tal material Ob servamos que apenas Cezar Roberto Bitencourt apresentou citação de mulheres 2016 p 94 Não há além disso qualquer menção à par ticipação do movimento feminista na luta por políticas públicas de combate à violência de gênero Todos os autores iniciam suas expo sições a partir do insight do ato de benevolência do legislador para com as mulheres Todo o percurso histórico é apagado em favor de uma produção científica pretensamente neutra Bitencourt inclusive defende que a violência contra a mulher é uma questão a ser superada independentemente de machismo ou feminismo 2016 p 94 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 215 Antes da mudança legislativa ocorrida no Brasil violência letal contra as mulheres já era objeto de normas jurídicas em outros países O tema ganhou repercussão no âmbito internacional com o caso da Ciudad Juarez que impôs a obrigação ao Estado do México de formu lar políticas públicas que combatessem o feminicídio Rogério Greco 2016 p 39 e Bitencourt 2016 p94 reservam espaço somente às normativas que tratam da violência contra a mulher como a Conven ção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência con tra a Mulher de 1994 e Lei Maria da Penha passando diretamente à promulgação da chamada lei do feminicídio como fazem os demais autores que começam a discorrer sobre o tema a partir dos trabalhos legislativos brasileiros Além do lapso histórico os autores não men cionam as divergências terminológicas quanto ao uso do termo femi cídio ou feminicídio VASQUEZ PT 2010 p 165169 discussão travada exaustivamente entre as autoras especialistas no tema No en tanto Rogério Greco recorre ao conceito dado por um homem para definir Feminicídio 2016 p 39 Cezar Roberto Bitencourt por seu turno considera inapropriado o termo adotado pelo legislador tendo em vista que matar alguém continua sendo homicídio e tanto mulher como homem estão abrangidos por esse pronome indefinido alguém que não faz exceção a nenhum ser humano 2016 p 94 Como o feminicídio no ordenamento jurídico brasileiro é o homicídio praticado por razões do sexo feminino os autores pena listas precisam definir o que é sexo feminino isto é quem é mulher ou não Tal questionamento passa longe das discussões filosóficas e existenciais sobre a feminilidade O foco dos juristas é definir crité rios racionais para reconhecer uma mulher que passa pela questão da transgeneralidade Bitencourt defende que o transexualismo apenas permite a in cidência da qualificadora desde que transformado cirurgicamente em mulher como vítima da violência sexual de gênero caracterizadora da qualificadora do feminicídio 2016 p 99 acompanhado da mudan ça dos documentos civis Rogério Greco por sua vez buscando mais sofisticação usará a definição do transsexualismo ou síndrome de disforia sexual 2016 p 42 de um manual médico mais uma vez de autoria masculina O referido manual de medicina legal define o transsexualismo como a contestação até de forma violenta e deses 216 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça perada 2016 p 43 GRECO 2016 p 4344 ainda traz o critério cromossômico como possibilidade de identificar o sujeito passivo mu lher e se alinha ao entendimento de Cezar Roberto Bitencourt para definir a mulher Além de adotar o transsexualismo termo questionado pelos movimentos LGBTs ABGLT 2010 p 13 por trazer o estigma de que esses sujeitos são doentes os doutrinadores em geral não admitem o critério da autoidentificação do sujeito e desconsideram a intenção do autor do delito talvez em atenção ao princípio da taxatividade das normas penais que impõe a interpretação restritiva e literal das nor mas penais No entanto a legislação penal nos arts 20 3º120 e 73121 do Código Penal admite a consideração das características da pes soa que o autor queria atingir nas situações de erro sobre a pessoa ou erro na execução A título de exemplo se ao querer atingir o pai o agente atinge um desconhecido a pena será agravada na hipótese do art 61 I alínea e contra ascendente descendente irmão ou cônjuge Entendemos ser perfeitamente possível a incidência da qualificadora quando o agente atinge uma pessoa que performa o gênero feminino independentemente de seus documentos civis A prática do Direito também reproduz e reforça os papeis tradi cionalmente atribuídos aos gêneros Bragangolo Souza Lagos Rifio tis descrevem o estilo tutelar dos juízes de promoverem a justiça em casos de violência doméstica quando reproduzem a lógica sexista ao representar a mulher como um sujeito incapaz uma cidadania malo grada na medida em que precisa ser tutelada em contraposição à sua representação como um sujeito ativo que interage e organiza suas ações no mundo BRAGAGNOLO SOUZA LAGOS RIFIOTIS 2015 p 607 120 Código Penal Art 20 3º O erro quanto à pessoa contra a qual o crime é praticado não isenta de pena Não se consideram neste caso as condições ou qualidades da vítima senão as da pessoa contra quem o agente queria praticar o crime 121 Código Penal Art 73 Quando por acidente ou erro no uso dos meios de execução o agente ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender atinge pessoa diversa responde como se tivesse praticado o crime contra aquela aten dendose ao disposto no 3º do art 20 deste Código No caso de ser também atingida a pessoa que o agente pretendia ofender aplicase a regra do art 70 deste Código Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 217 Nessa esteira é preciso ter cautela quando se explica a violência doméstica como resultado da fragilidade física e psicológica da mu lher ou da covardia e ignorância dos agressores Tal postura além reproduzir estereótipos de gênero retiram o caráter político da vio lência letal contra mulheres O feminicídio deixa de ser consequência da estrutura patriarcal da sociedade para ser explicado como atos de covardia ou como expressão de doenças Outro debate relevante referese à natureza da qualificadora Nuc ci por exemplo entende que a qualificadora é objetiva visto que não está em jogo motivação subjetiva do agente Logo a qualificadora se ria compatível com a privilegiadora do art 121 1º do Código Penal quando comete o crime sob domínio de violenta emoção após injusta provocação da vítima O exemplo dado pelo o autor é da hipótese de um marido traído encontrar a companheira na situação de adultério e matála NUCCI 2016 p 617 Frisese que até a década de 1980 ha veria o reconhecimento da excludente de ilicitude da legítima defesa da honra Porém a situação é ressignificada pela possibilidade do re conhecimento da privilegiadora tese que também era empregada até os anos 80 subsidiariamente à legítima defesa da honra TEIXEIRA RIBEIRO 2008 p 150 A partir da resumida análise doutrinária concluímos o reco nhecimento do tipo qualificado do feminicídio não ensejou o re conhecimento e a visibilização das lutas femininas no campo dog mático As mulheres estudiosas do tema continuam sem espaço no Direito Penal brasileiro Não há qualquer menção à importância dos movimentos sociais para a inclusão da violência contra a mulher na pauta política dos Estados Dogmaticamente os autores não abor daram satisfatoriamente as características da execução do feminicí dio restringindose a construir uma definição pura e biológica do que é ser mulher Por vezes os autores reproduzem discursos que reforçam a estrutura sexista e patriarcal da sociedade reafirmando uma condição de fragilidade da mulher ou até reformulando a tese da legítima defesa da honra 218 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 4 QUAIS EFEITOS FORAM OBSERVADOS NA PRÁTICA FORENSE A lei 13104 de 2015 foi responsável pela inclusão do Feminicídio ho micídio em razão do sexo feminino como qualificadora do crime de homicídio suscitando importante debate sobre a violência de gênero no meio jurídico122 Dessa forma a presente pesquisa em sua fase de campo se concentrou em reunir o máximo de autos sobre feminicídio processados entre a publicação da Lei e junho de 2017 nos quatro Tri bunais do Júri da Comarca da Capital do Rio de Janeiro e a partir deles analisar os discursos dos operadores jurídicos a partir da alteração do Código Penal O acesso aos autos foram previamente autorizados pelos Juízes responsáveis pelos órgãos judiciários O primeiro entrave ao desenvolvimento deste estudo ocorreu em virtude da ausência de um sistema interno de acesso do Tribunal de JustiçaRJ que permitisse uma localização descomplicada e direta dos processos de uma determinada tipificação E foi por meio dessa difi culdade que se tornou evidente um grande problema acerca dos pro cessos de feminicídio a inviabilidade das divulgações de estatísticas concretas já que o mapeamento dos casos tornase insuficiente A par tir disso deuse início a um trabalho de busca essencialmente manual o qual consistia em localizar os processos de uma forma ocasional nas pautas de audiências disponibilizadas mensalmente nos quadros de avisos dos cartórios ou por meio de pedidos aos serventuários de cada Tribunal Achados os processos capitulados com o artigo 121 inciso VI do Código Penal o acompanhamento processual foi iniciado com a análise das informações do inquérito das peças processuais da defe sa e da acusação e dos despachos e decisões judiciais e comparecendo às audiências dos processos Mas foi durante a ida aos cartórios que o segundo percalço à pes quisa foi identificado ocorre que cada Vara apresentou uma forma pró pria de organizar os autos processuais enquanto algumas etiquetavam as capas dos processos de feminicídio outras sequer possuíam uma 122 Art 121 do Código Penal Matar Alguém 2 Se o homicídio é cometido VI contra a mulher por razões da condição de sexo femininoPena reclusão de doze a trinta anos 2oA Considerase que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve I violência doméstica e familiar II me nosprezo ou discriminação à condição de mulher Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 219 etiqueta de identificação Além dessa constatação percebemos que os agentes policiais e os membros do Ministério Público ainda têm difi culdades em identificar as situações de Feminicídio Como exemplo notamos a existência de alguns processos que não foram capitulados como feminicídio apesar de toda a situação fática demonstrar que o crime ocorreu por razões de gênero Tal dificuldade também se deve a uma maior relevância ao requisito da situação de violência doméstica em detrimento ao menosprezo ou discriminação ao gênero feminino A partir dessas preliminares foram produzidos relatórios quali tativos e quantitativos E até julho de 2017 um total de 12 processos foram encontrados entre os quais houve a instauração de incidente de insanidade mental em 2 procedimentos 1 um réu veio a óbito enquanto estava preso e houve 2 duas condenações Quanto ao conteúdo dos atos processuais não identificamos um aprofundamento nas questões de gênero inerentes ao tipo penal A abordagem das questões relativas ao gênero aparecem somente nas reproduções literais do comando normativo fazendo o seguinte silo gismo se a vítima é mulher e o autor do fato é o cônjugecompa nheironamorado então existe o feminicídio Não há uma análise de como a condição de ser mulher foi determinante para a consumação do crime Em razão desse raciocínio quase automático há casos que não são tipificados como Feminicídio apesar de reunir todas as suas elementares Outra questão comum na justiça brasileira é o uso de peças e despachos genéricos Assim observamos que os operadores jurídicos valemse de modelos genéricos para a realização dos atos processuais não analisando e rebatendo as especificidades de cada caso Quando porém o operador jurídico reserva um tempo a analisar detidamente o caso o faz com um discurso patologizante do agressor Atribuise a desordens mentais a agressividade contra as mulheres olvidandose da estrutura social que sustenta a violência de gênero Nos julgamentos acompanhados observamos o retorno do argu mento da legítima defesa da honra formulado na tese de defesa do ho micídio privilegiado cometido sob influência de violenta emoção após injusta provocação da vítima que no caso teria traído e ofendido o autor Segundo a defesa quem teria agido não foi o réu mas o ódio e o amor juntos Assim a tese defendida pela supracitada doutrina jurídica tem espaço nos tribunais 220 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça CONCLUSÃO A incorporação do termo Feminicídio no ordenamento jurídi co brasileiro definiu de forma política os limites à sua interpretação Contudo apesar dessa inserção ter sido efetivada por força do movi mento feminista atestamos que o reconhecimento da qualificadora não ensejou o reconhecimento e a visibilização das lutas feministas seja no campo dogmático através das mulheres estudiosas seja nos discursos dos operadores jurídicos durante as inúmeras audiências assistidas pelo contrário é comum a reprodução de discursos que re forçam a estrutura sexista e patriarcal da sociedade reafirmando uma condição de fragilidade da mulher ou até reformulando a tese da legí tima defesa da honra Diante desse cenário fica evidente a responsabilidade histórica dos operadores do direito por propiciarem a perpetuação da subju gação da mulher perante o homem de forma costumeira através de modos ativos ou passivos seja reforçando estereótipos de gênero ou permitindo que tais alegações sejam feitas em juízo Em o Calibã e a Bruxa Silva Federici já apontava essa deformidade A caça às bruxas foi também a primeira perseguição na Europa que usou propaganda multimídia com o objetivo de gerar uma psicose em massa entre a população Uma das primeiras tarefas da imprensa foi alertar o público sobre os perigos que as bruxas representavam por meio de panfletos que publicizaram os jul gamentos mais famosos e os detalhes de seus feitos mais atro zes Para este trabalho foram recrutados artistas entre eles o alemão Hans Bandung a quem devemos alguns dos mais mor dazes retratos de bruxas Mas foram os juristas os magistrados e os demonólogos frequentemente encarnados na mesma pes soa os que mais contribuíram na perseguição eles sistematiza ram os argumentos responderam aos críticos e aperfeiçoaram a maquinaria legal que por volta do final do século XVI deu um formato padronizado quase burocrático aos julgamentos o que explica as semelhanças entre as confissões para além das fronteiras nacionais FREDERICIS 2017 p 299 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 221 REFERÊNCIAS ABGLT ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LÉSBICAS GAYS BIS SEXUAIS TRAVESTIS e TRANSEXUAIS Manual de Comunica ção LGBT 2010 Disponível em httpsunaidsorgbrwpcontent uploads201509ManualdeComunicaC3A7C3A3oLGBT pdf Acesso em 28 maio de 2018 ARENDT H 1970 Sobre a violência Trad André Duarte 3ª ed Rio de Janeiro Editora Relume Dumará 2001 BITENCOURT CR Tratado de Direito Penal volume 2 16ª ed São Paulo Editora Saraiva 2016 BRAGAGNOLO RI SOUZA LAGO MC RIFIOTIS T Estudo dos modos de produção de justiça da lei maria da penha em santa catari na Estudos Feministas v 23 n2 maiago 2015 p 601617 CAPEZ F Curso de Direito Penal volume 2 16ª ed Rio de Janeiro Editora Saraiva 2016 FEDERICI S Calibã e a Bruxa mulheres corpo e acumulação primi tiva 1ª ed São Paulo Editora Elefante 2017 GRECO RCurso de Direito Penal volume 2 13ª ed Niteroi Editora Impetus 2016 LAGARDE M Presentación a la edición en español In RADFORD J RUSSELL D E H Feminicidio 1992 La política del asesinato de las mujeres Trad Tlatolli Ollin SC México Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades de la Universidad Na cional Autónoma de México 2006 NUCCI G S Manual de Direito Penal 12ª Ed São Paulo Editora Forense 2016 RADFORD J RUSSELL D E H Feminicidio 1992 La política del asesinato de las mujeres Trad Tlatolli Ollin SC México Centro de Investigaciones Interdisciplinarias en Ciencias y Humanidades de la Universidad Nacional Autónoma de México 2006 SEGATO R L Que és un feminicídio Notas para un debate emer gente Série Antropología 401 BrasíliaDF Universidade de Brasília 2006 222 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça SPIVAK G Pode o subalterno falar Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida Marcos Pereira Feitosa Andre Pereira Feitosa Belo Horizonte Editora UFMG 2010 TEIXEIRA AB RIBEIRO MS Legítima defesa da honra argu mentação ainda válida nos julgamentos dos casos dos crimes conju gais em Natal 19992005 Gênero família e gerações Juizado Especial Criminal e Tribunal do Juri Campinas Núcleo de Estudos de Gênero PaguUnicamp 2008 p 143176 VÁSQUEZ PT Tipificación del femicidio feminicidio otra vía hacia el abandono de la neutralidad de género en el derecho penal frente a la violencia contra las mujeres Derecho género e igualdad cambios en las estructuras jurídicas androcéntricas v2 2010 p 163178 Parte II SABER PSIQUIÁTRICO GÊNERO E PRIVAÇÃO DE LIBERDADE ADDRESS R Porasztó Lajos u 2426 ing 6 Tel 34344 000 06302252225 PARKOLÁS A SZABAD MUNKÁSSZÁLLÓI PARKOLÓBAN KOLLÉGIUMI RAJT LEGKÖZELEBBI MEGÁLLÓHELYE MÁVX Pályaudvar vagy MávalX I ÉJJELI BUSZ 501501AC Megállóneve Nyomda utca 225 A REFORMA PSIQUIÁTRICA E A PRIVAÇÃO DE LIBERDADE Renata Verônica Côrtes Lyra123 Resumo O artigo pretende identificar de onde surge a ideia da de sinstitucionalização como ela foi inserida no Brasil e se vem sendo introduzida também nos manicômios judiciários do estado do Rio de Janeiro Partindo do fato de que o louco infrator é duplamente estig matizado por causa do medo que paira sobre a possibilidade deste voltar a delinquir a intenção principal do trabalho é avaliar a atual condição dos locais para onde estas pessoas estão sendo enviadas A pesquisa focou os manicômios judiciários espaços historicamente re conhecidos como produtores e reprodutores de isolamento negligên cia maus tratos e tortura buscando informações sobre como a Lei da Reforma Psiquiátrica vem influenciando o tratamento dado às pessoas com transtorno psíquico que cumprem medidas de segurança e rea lizando considerações sobre se os avanços no campo psiquiátrico e os poucos ocorridos no campo jurídico efetivamente alcançaram os loucos infratores do estado do Rio de Janeiro Palavras chave reforma psiquiátrica medidas de segurança inimpu tabilidade manicômio judiciário louco infrator 123 Graduada em Direito pela Universidade Tiradentes Mestre em Direito Consti tucional e Teoria do Estado pela PUC Rio Advogada Membro do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro 226 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça INTRODUÇÃO A pesquisa é fruto de experiências que vivi durante a tramitação do Caso Damião Ximenes124 na Comissão e Corte Interamerica na de Direitos Humanos onde fui uma das advogadas responsáveis pelo seu processamento Durante o processo obtivemos a informa ção de que os trabalhadores da área de saúde mental e usuários do sistema de saúde mental se moviam pela ideia de abrir portas desinstitucionalizar inserir as pessoas com sofrimento psíquico na sociedade através de tratamentos ambulatoriais através das artes da música do convívio familiar por meio da Reforma Psiquiátrica A partir do conhecimento mais específico da Lei da Reforma Psi quiátrica surge o questionamento mas e as pessoas com sofrimento psíquico que cometem delitos elas também são atendidas pela Lei da Reforma Psiquiátrica especificamente as mulheres infratoras com transtorno psíquico tem acesso a esta pretendida mudança de paradig mas A pergunta sobre se e como os loucos e loucas infratores dupla mente estigmatizados estavam acessando esse movimento tão liberta dor dentro dos manicômios judiciários foi o foco desta pesquisa Trabalhando com o monitoramento de espaços de privação de liberdade e afirmando através dos ensinamentos da teoria abolicionista que conciliações e reparações são muito mais eficazes que o isolamento pareceunos que a Lei da Reforma Psiquiatria poderia ser um tipo de abolição manicomial A pos sibilidade de ser reinserido na sociedade através do convívio com esta faria muito mais sentido do que destinar pessoas loucas ou não ao isolamento à anulação ou à morte social e física Para execução desta pesquisa partimos dos ensinamentos de Michel Foucault acerca das instituições asilares como locais de ad ministração da punição e das lições de Alessandro Baratta Nilo Ba tista Thula Pires Juliana Borges Vilma Reis Salo de Carvalho Vera Malaguti entre outros que nos permitem entender em que bases foi 124 Damião Ximenes foi torturado e morto em uma clínica psiquiátrica conve niada ao Sistema Único de Saúde em Sobral município do Ceará O caso deu origem a uma ação na Comissão e Corte Interamericana de Direitos Humanos resultando na primeira sentença condenatória ao Estado brasileiro em um tri bunal internacional Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 227 forjado o sistema penal brasileiro através dos seus quatro séculos de escravismo e como este serviu e ainda serve a uma cultura repressi va e encarceradora Neste sentido o presente artigo pretende ainda abordar a estrutura manicomial enquanto ferramenta de punição e exclusão em especial na cidade do Rio de Janeiro Inicialmente apresentaremos um resumo sobre a história da psi quiatria no Brasil Neste tópico abordaremos o fim da ostentação dos castigos corporais realizados em praça pública no fim do século XVIII e o surgimento das prisões no início do século XIX Observaremos em seguida o surgimento de um novo paradigma o louco já não era responsabilizado pelos seus atos e por isso não devia ser punido mas isolado e tratado em um local que pudesse atender a necessidade do isolamento e do tratamento As prisões tal como se apresentavam não atendiam com precisão faltavalhes o cuidado especializado Neste contexto de inovações e falsos progressos no que diz respeito às pes soas com sofrimento psíquico que cometiam delitos criamse por tanto os manicômios criminais a junção de duas instituições totais a prisão e o manicômio No Brasil mais especificamente trataremos sobre como a ideo logia manicomial se instala no país Conforme mencionado tendo o país durante quase quatro séculos construído suas relações econômi cas e sociais com base no escravismo a sociedade brasileira cria as ins tituições totais para isolar aqueles que não lhes pareciam adequados ou seja os homens e mulheres negros as crianças que viviam nas ruas os pobres os chamados alienados e inoportunos No fim do século XIX muitas colônias foram construídas no território nacional milha res de pessoas foram internadas sob as mais absurdas justificativas moças que engravidavam ainda solteiras mulheres com ideias femi nistas Nesta época os loucos infratores ficavam em uma ala especial no Hospício Nacional localizado na cidade do Rio de Janeiro mas logo se declarou a necessidade de um lugar específico para as pessoas com sofrimento psíquico que cometiam delitos uma prisão em ca ráter especial disse o médico Juliano Moreira e sobre o que vivemos hoje falaremos sobre a construção de um movimento antimanicomial forjado por trabalhadores e usuários do sistema de saúde mental 228 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Em seguida o artigo irá se dedicar à avaliação sobre os retroces sos e os avanços do ponto de vista do Direito O foco será a legislação penal as medidas de segurança e que ideologias inspiraram a sua ela boração Ainda neste tópico abordaremos a chegada da criminologia no Brasil e como a sociedade intelectual brasileira a adequou às suas características econômicas e sociais bem como as consequências da sua influência no ordenamento jurídico penal brasileiro O terceiro tópico irá contextualizar a prática de encarceramento no Brasil e Rio de Janeiro demonstrando como funciona a dinâmica de manutenção do status quo dos presos e presas fluminenses Avalia também como que o sistema penal que diz estar respaldado no prin cípio da igualdade se impõe de forma racista seletiva repressiva e criminalizadora Por fim traremos a pesquisa de campo e suas conclusões sobre tudo no que se refere as mulheres loucas infratoras Apresentaremos os dados e informações colhidos durante as visitas realizadas aos dois manicômios judiciários e a três unidades prisionais femininas do es tado do Rio de Janeiro que estão sob responsabilidade da Secretaria de Estado de Administração Penitenciário SEAP 1 HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA NO BRASIL 11 Do espetáculo do sofrimento à mortificação invisível nas pri sões Em 1961 Franco Basaglia médico italiano assume a direção do Hos pital Provincial Psiquiátrico de Gorizia na Itália Amarante 1996 p 65 cita DellAcqua para relatar a impressão de Basaglia ao entrar no hospital A primeira vez que entrou neste hospital e era sempre ele mes mo a contar isso viu os internos fechados à chave dentro dos pavilhões e nas celas de isolamento e recordouse de quando estava na prisão Então pensou que deveria usar todo seu po der de diretor para melhorar as condições de vida destas pes soas DELLACQUA 1980 p39 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 229 Não só Basaglia como qualquer pessoa que adentre um manicô mio perceberá como esse possui todas as características de uma pri são neste sentido antes de tratar sobre o surgimento dos manicômios é fundamental que se entenda o surgimento das prisões Foucault descreveu a sociedade contemporânea como a socie dade disciplinar entendendo que o que caracteriza o aparecimento desta é a ocorrência de um fato que teria dois aspectos aparentemen te contraditórios O fato mencionado por Foucault 2003 p79 é a reorganização do sistema judiciário e penal na Europa e em todo o mundo que assume amplitude e cronologias diferentes em cada país Houve no fim do século XVIII e início do século XIX a reelaboração teórica da lei penal trazida por Beccaria Bentham Brissot e outros O princípio fundamental definido pelos autores é que antes da existência da lei que definia a conduta como crime não havia crime O segundo princípio determinado era que a lei penal deveria representar o que era visto como nocivo à sociedade O crime seria ainda defi nido por um terceiro princípio entendendo que esse não seria algo como uma falta ou um pecado mas algo que danificaria a socieda de perturbaria a sua ordem O criminoso portanto seria aquele que perturba a ordem e danificaria a sociedade ele seria o inimigo social Rousseau 1978 afirmava que o criminoso é aquele que rompe com o pacto social E ainda segundo Foucault 1987 p 8082 se a lei penal somente tem relação com a perturbação da sociedade essa não pode se transformar em uma vingança social mas apenas para sanar a desordem causada o objetivo da lei deveria ser de reparar e impedir males causados tão somente ao corpo social O castigo foi abolido e a pena humanizada o espetáculo do esquartejamento foi substituído por sofrimentos mais sutis velados despidos de ostentação O corpo desaparece das vistas da sociedade como alvo da repressão penal e o ato da punição se transforma em um procedimento meramente administrativo A exposição cotidiana da punição adentra no campo da consciência abstrata os magistrados são liberados do vil ofício de castigadores restandolhes o dever de reeducar e curar essas pessoas O corpo deixa de ser alvo principal para ser o meio pelo qual a punição será imprimida O que não im pediu que a prática da tortura permanecesse mesmo hoje no sistema penal Foucault 1987 230 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Neste contexto uma outra mudança veio a ocorrer já não se acre ditava que os loucos pudessem ser culpados dos crimes que cometiam a comprovação de que a pessoa era louca excluía a qualificação do ato como crime A partir deste novo paradigma se entendeu que o louco não deveria ser punido mas isolado e tratado É a introdução da lou cura no julgamento 12 Uma passagem pela evolução histórica da situação manicomial no Brasil As primeiras colônias instaladas no Brasil ocorreram logo depois da Proclamação da República final do século XIX Havia a Colônia São Bento e a Colônia Conde de Mesquita ambas na Ilha do Galeão bairro hoje conhecido como Ilha do Governador no Rio de Janeiro Juliano Moreira médico baiano responsável pela direção da Assistên cia MédicoLegal de Alienados durante quase trinta anos realizou uma gestão na qual ensejou o surgimento de dezenas de colônias em todo território brasileiro Estas instituições receberam centenas e às vezes milhares de pessoas a Colônia Juquery localizada em São Pau lo chegou a ter em seu quadro de pacientes 16 mil pessoas Amaran te 2007 p 40 Em 30 de maio de 1921 foi inaugurado no Rio de Janeiro o pri meiro manicômio judiciário do Brasil e da América Latina Segundo Carrara 1998 p 194 anunciavase ali mais do que uma nova insti tuição pública mas uma nova forma de intervenção social mais flexível mais globalizante mais autoritária E sobre o que este espaço significou para o julgamento dos atos criminosos conclui afirmando que Coroavase então um processo muito mais amplo que atingindo as práticas jurídicopenais como um todo fez com que nossos tribunais como bem apontou Foucault passassem a partir de finais do século XIX a não julgar mais atos criminosos mas a própria alma do crimino so Carrara 1998 p 194 O público alvo destas instituições encontravase geralmente nos setores excluídos da sociedade vistos em sua maioria como seres in desejáveis potencialmente perigosos que deveriam ser alijados do convívio social Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 231 Com o Decreto nº 24559 de 1934 editado na Era Vargas afir mouse a questão da saúde mental como caso de polícia e ordem pú blica Como mudança no tratamento dos portadores de sofrimento psíquico que perderam sua cidadania e se viram diante da compul soriedade do tratamento psiquiátrico e do crescimento do número de novas clínicas privadas125 Nos anos que se seguiram o que se pode afirmar através de pes quisas realizadas é que houve uma diminuição no número de leitos nos hospitais psiquiátricos públicos e uma expansão nos leitos psi quiátricos nas instituições privadas financiados pelo Estado brasilei ro Durante o Regime Militar observase portanto o surgimen to do fenômeno conhecido como indústria da loucura tendo sido essa expressão atribuída ao modelo adotado naquele período que va lorizava a produção quantitativa de procedimentos do setor privado favorecendo a empresa médicoindustrial Com o crescimento das instituições psiquiátricas privadas ao longo dos anos subsequentes se seguiu também não coincidentemente um vertiginoso cresci mento da população manicomial caracterizado pela banalização das internações Na década de 80 o Brasil vive um momento de maior movimen tação em prol da garantia dos direitos humanos e do fortalecimen to da sociedade civil o que também repercutiu na luta pelos direitos das pessoas em sofrimento mental fortalecendo grupos como o Mo vimento dos Trabalhadores de Saúde Mental e o Movimento Nacio nal da Luta Antimanicomial Tais grupos surgiram da necessidade de atenção à crescente demanda de denúncias envolvendo instituições psiquiátricas e o tratamento desumano e degradante dispensado aos seus usuários Inspirados pelas contribuições de Franco Basaglia o MTSM transformase em um movimento social com intuito de en volver e comprometer toda sociedade no processo de desinstitucio nalização se utilizando da estratégia por uma sociedade sem manicô mios Amarante 1996 p 21 125 Direitos humanos no Brasil 2003 relatório anual do Centro de Justiça Global organização e edição Sandra Carvalho tradução Carlos Eduardo Gaio et al Rio de Janeiro Justiça Global 2004 Página 113 232 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça O Projeto de Lei nº 365789 de autoria do Deputado Federal Paulo Delgado que propunha a progressiva extinção dos hospitais psiquiátricos e sua substituição por outras modalidades de assistên cia resultou na organização dos setores contrários ao fim dos mani cômios de qualquer forma segundo Amarante 1996 o projeto foi reconhecido pelo Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental MTSM como um importante marco político à medida que possibi litou a ampliação do debate público sobre a loucura sobre a doença mental a Psiquiatria e suas instituições 13 A Reforma no Brasil Na década de 90 há o crescimento dos serviços substitutivos ao modelo manicomial no entanto tal fato ocorre de maneira descon tínua e sem financiamento específico do Ministério da Saúde para os novos espaços de atenção diária concentrando ainda a maior parte dos recursos públicos nos hospitais psiquiátricos126 Finalmente em 2001 foi aprovada a Lei nº 10216 que trata sobre a proteção e os direitos das pessoas com sofrimento psíquico e redireciona o modelo assistencial em saúde mental Importantes mudanças foram legalmente garantidas abrindo uma nova perspectiva sobre o tratamento psiquiátrico no Brasil e colocando o país em posição de vanguarda A aprovação da lei foi uma vitória do movimentos sociais que como visto desde a década de 70 já pleiteava por mudanças de pa radigmas na política de saúde mental A ideia de que ninguém mais deveria morar em instituições psiquiátricas foi vitoriosa deixou de ser um pleito para se tornar legitimamente uma política nacional de de sinstitucionalização na qual a pessoa com transtorno mental deverá não mais ser excluída mas inserida na sociedade 126 Brasil Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde DAPE Coordena ção Geral de Saúde Mental Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil Documento apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Servi ços de Saúde Mental 15 anos depois de Caracas OPAS Brasília novembro de 2005 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 233 2 BREVE ANÁLISE DAS MEDIDAS DE SEGURANÇA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA É notório que o tratamento dispensado às pessoas com sofrimento psíquico mudou há concretas mudanças de paradigmas no que diz respeito ao acolhimento destas pessoas e aos saberes que foram forte mente questionados Os tratamentos foram totalmente repensados e a ideia da desinstitucionalização através da inserção social é a bandeira do movimento da luta antimanicomial Mas o que dizer da aplicação das medidas de segurança Como hoje depois de tanto avançar a ideia do que seja acolher as pessoas com transtorno psíquico se comporta o campo jurídico Segundo Carvalho e Weigert 2013 no campo jurí dico o tratamento da imputabilidade e da semiimputabilidade perma nece ancorado nas premissas punitivas correcionalistas que moldaram os sistemas asilares do século passado127 O Código Criminal do Império do Brasil de 16 de dezembro de 1830 foi o primeiro código penal do Brasil e o primeiro autônomo da América Latina Elaborado em acordo com a Constituição do Império de 25 de março de 1824 o importante ordenamento legal foi sancio nado por Dom Pedro I e foi o primeiro a dispor explicitamente sobre a figura do louco infrator O texto do artigo 10º 2º que dizia Art 10 Tambem não se julgarão criminosos 2º Os loucos de todo gênero salvo se tiverem lúcidos intervallos e nelles cometterem o crime grafia original E complementava no artigo 12º que determinava Art 12 Os loucos que tiverem commettido crimes serão recolhidos ás casas para eles destinadas ou entregues ás suas familias como ao Juiz parecer mais conveniente128 grafia original Estava portanto a critério do juiz en tregar o louco infrator aos seus familiares ou envialos aos locais des tinados ao seu tratamento A decisão era pessoal até esse momento não havia a presença dos peritos forenses O Código Penal dos Estados Unidos do Brasil através do Decre to nº 847 de 11 de outubro de 1890 trazia a ressalva de que o envio da pessoa com transtorno mental para uma instituição asilar deveria ocorrer quando o juiz entendesse assim ser melhor para a segurança da sociedade Vejamos no artigo 29 in verbis Os indivíduos isentos de 127 Carvalho e Weigert 2013 128 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03leislimlim16121830 htm 234 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça culpabilidade em resultado de affecção mental serão entregues às suas famílias ou recolhidos a hospitaes de alienados se o seu estado mental assim exigir para a segurança do público129 grafia original Ainda nesse período foi publicado o Decreto nº 1132 de 22 de Dezembro de 1903130 conhecido como a Lei dos Alienados Foi a primeira legislação brasileira a tratar do tema no seu texto havia a garantia da internação dos infratores portadores de moléstia mental nomenclatura utilizada naquele período Na época foi considerado como um progresso no que se referia ao estabelecimento de regras para o internamento dos loucos infratores e a garantia da seguran ça coletiva Eram os primeiros indícios de que a ideia construída de periculosidade inerente às pessoas com transtorno mental legitimaria internações compulsórias em prol da segurança da sociedade Antes de tratar sobre o código penal de 1940 aquele que sob a égide da Constituição de 1937 procurava coibir a vagabundagem a mendicância a capoeira e os desordeiros em uma clara intenção de atingir a população negra da sociedade brasileira fazse necessário contextualizar as influências que sofreu esse documento com a conso lidação da criminologia no Brasil Em 1871 Cesare Lombroso publicou a obra que ficaria conhecida como aquela que deu origem a criminologia LUomo delinquente Seu estudo fez a classificação de diversos tipos de criminosos analisando sua vaidade senso de humor preguiça suas tatuagens suas caracterís ticas físicas tamanho da mandíbula estrutura óssea conformação do cérebro entre outras características biológicas A partir do resultado desta observação Lombroso afirmou que aquelas pessoas eram anor mais e geneticamente destinadas ao mal pois o crime lhes era natural assim como o nascimento e a morte Acrescentando ainda que essa anormalidade era incurável e que por isso os criminosos deveriam ser eximidos de qualquer responsabilidade criminal No Brasil país que teve sua colonização marcada pelo genocídio dos indígenas e sua economia construída com base no escravismo a criminologia terá características próprias decorrente do seu capita lismo Com a utilização do trabalho escravo que desde cedo recru 129 Idem 130 Disponível em httpwww2camaragovbrleginfeddecret19001909de creto113222dezembro1903585004publicacaooriginal107902plhtml Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 235 tou povos considerados inferiores pelos europeus os indígenas e os africanos para Prado Jr 2011 o país resulta de um grande plano comercial que explorava o território em proveito da Europa sendo este o verdadeiro sentido da colonização dos trópicos explicando desta forma como se dá a formação e evolução do Brasil Para Abdias do Nascimento 1977 o papel do escravo negro foi crucial para o começo da história e economia política em um país fundado como Brasil sobre o imperialismo parasitário A partir da consolidação da Criminologia o código de 1940 ino vará ainda com a noção de periculosidade para a consequente ava liação da pena a ser aplicada e as medidas de segurança Como bem explica Rauter 2003 p 71 A adoção da medida de segurança representa a incorporação ao direito penal de um critério de julgamento que não se refere ao delito mas à personalidade do criminoso O julgamento do juiz referese a um tipo de anormalidade reconhecida no delin quente a periculosidade RAUTER 2003 P 71 Em 2005 o Supremo Tribunal Federal determinou que nenhuma pessoa paciente de medidas de segurança poderá ficar isolada por um período maior que o limite máximo de trinta anos de modo a fazer valer a garantia constitucional abolidora das prisões perpétuas131 O Decreto presidencial n 6706 de 22 de dezembro de 2008 legislação mais conhecida como Indulto Natalino de forma mais avançada trouxe o seguinte texto É concedido indulto as pessoas submetidas a medidas de se gurança que já tenham cumprido período igual ou superior ao máximo da pena cominada à infração penal correspondente à conduta praticada ou nos casos de substituição prevista no art 183 da Lei n 7210 de 1984 por período igual ao tempo da condenação mantido o direito de assistência nos termos do art 196 da Constituição 131 HC 84219SP 1ª Turma Rel Ministro marco Aurélio julgado em 1682005 publicado em DJ em 2392005 p16 236 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça No ano seguinte ao Decreto n 7046 de 22 de dezembro de 2009 foi acrescentado ao texto independente da cessação da peri culosidade grifo nosso O Decreto n 7420 de 31 de dezembro de 2010 trouxe no corpo do texto a mesma redação encontrada em 2009 Em 2011 foi concedido indulto natalino através do Decreto nº 7648 de 21 de dezembro de 2011 com o seguinte texto Art 1 É concedido indulto às pessoas nacionais e estrangeiras XI submetidas a medida de segurança independente mente da cessação da periculosidade que até 25 de dezembro de 2011 tenham suportado privação da liberdade internação ou tratamento ambulatorial por período igual ou superior ao máximo da pena cominada à infração penal correspondente à conduta praticada ou nos casos de substituição prevista no art 183 da Lei de Execução Penal por período igual ao tempo da condenação Em 2012 a presidenta Dilma Rousseff publicou o Decreto nº 7873 e em 2013 publicou o Decreto nº 8172 ambos indultos natali nos com a mesma redação do indulto acima transcrito Contudo ain da não há uma legislação que garanta a decisão do Supremo Tribunal Federal para além dos indultos de natal Em nome de uma potencial personalidade perigosa o encarce ramento desses possíveis perigosos é tão torturante quanto daqueles privados de sua liberdade em unidades prisionais O abandono dessas pessoas faz com que se tornem invisíveis a possibilidade da medida de segurança ainda hoje de alguma forma se estender ad eternum co locaos em situação de vulnerabilidade as violações cotidianas de sua integridade física e mental e a imparcialidade conivência e distância de imensa parcela da sociedade mataos socialmente Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 237 3 O QUADRO DE SUPERLOTAÇÃO NACIONAL E NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Segundo dados do Ministério da Justiça em junho de 2016 o Brasil havia alcançado a marca de 726 mil presos132 O número de pessoas privadas de liberdade dobrou se tomarmos por base o ano de 2005 ou seja o quadro de superlotação é um fato inegável e insustentável Neste cenário é impossível garantir os princípios da legalidade da hu manidade e da dignidade da pessoa humana consagradas na Consti tuição No que se refere especificamente às mulheres encarceradas em 2000 a população prisional era de 5601 presas em 2016 alcançamos o número de 44721 um aumento de 698 60 destas mulheres está encarcerada por envolvimento com crimes relacionados com o tráfico de drogas133 Em particular no estado do Rio de Janeiro em abril de 2018 já contávamos com uma população prisional de mais de 51500 mil pre sos Dados sobre as mulheres privadas de liberdade são igualmente graves no estado pois apontam para um grande crescimento sobre tudo entre os anos de 2013 e 2014 passamos de 1618 para 4139 mulheres encarceradas Segundo Baratta o direito penal não age seletivamente e de forma desigual tão somente mas ele tem a função de produzir e re produzir essa desigualdade134 O autor cita especificamente o cárce re como sanção penal estigmatizante essencial à manutenção da diferença de classes na sociedade Na medida em que as normas penais atingem os indivíduos das camadas mais pobres elas agem de modo a impedir sua ascensão E por fim Baratta brilhantemente nos revela a prisão como 132 Brasil dobra número de presos em 11 anos diz levantamento de 726 mil de tentos 40 não foram julgados informações disponíveis em httpsg1globo compoliticanoticiabrasildobranumerodepresosem11anosdizlevan tamentode720mildetentos40naoforamjulgadosghtml 133 População carcerária feminina cresce 700 em dezesseis anos no Brasil in formações disponíveis em httpagenciabrasilebccombrdireitoshumanos noticia201708populacaocarcerariafemininacresce700emdezesseisa nosno 134 BARATTA Alessandro Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal Intro dução à sociologia do direito penal Tradução de Juarez Cirino dos Santos 3ed Rio de Janeiro Revan 2002 256p 238 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça a ponta do iceberg que é o sistema penal burguês o momento culminante de um processo de seleção que começa ainda antes da intervenção do sistema penal com a discriminação social e escolar com a intervenção dos institutos de controle do desvio de menores da assistência social etc135 Como resposta ao grave déficit de vagas o Estado apresenta destinação de recursos para a construção de novas unidades com vistas à ampliação da capacidade geral do sistema Estas medidas de urgência podem até amenizar as condições degradantes e desumanas às quais estão submetidas essas pessoas mas não são ca pazes de resolver o problema a longo prazo uma vez que vivemos dé cadas de expansão da cultura punitiva mais vagas apenas significa es pecificamente no Brasil mais pessoas pobres e negras em privação de liberdade A tão falada crise do sistema prisional nada mais é do que a engrenagem de uma máquina que trabalha incessantemente pela ma nutenção do status quo das classes e raças dominantes É importante refletir sobre em que bases construimos o nosso sistema penal e prisional quem são as pessoas prioritariamente encarceradas e como chegamos a este grave quadro de super encarceramento Segundo o Conselho Nacional de Justiça136 quase 70 da população prisional é negra em termos ge rais é possível afirmar que o número de pessoas encarceradas dobrou ao longo dos últimos 10 anos mas como ressaltamos anteriormente é o número de mulheres presas que cresce em proporções estratosféric as e não diferente do total mais de 60 delas é negra No Rio de Janeiro muito embora tenhamos registrado o número de 4139 presas em 2014 em abril de 2018 foi registrado o número de 1895 mulheres privadas de liberdade este número demonstra uma diminuição significativa contudo não podemos deixar de registrar que são as mulheres o segmento que mais cresce no que se refere a encarceramento 135 BARATTA Alessandro Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal Intro dução à sociologia do direito penal Tradução de Juarez Cirino dos Santos 3ed Rio de Janeiro Revan 2002 256p Página 167 136 Dados do Infopen e do Conselho Nacional de Justiça de 2014 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 239 O tráfico de drogas é a primeira tipificação no que se refere ao encarceramento feminino A Lei 11343 de 2006 instituiu uma nova política nacional de combate ao tráfico e trouxe distinções no trata mento a ser dado a traficantes e usuários a nova lei impactou direta mente no crescimento do efetivo carcerário nacional Pois bem diante de tudo que já foi dito acima repetimos aqui algumas perguntas for muladas pela pesquisadora Juliana Borges quem define se uma pessoa é usuária ou traficante quais são as chances de uma mulher negra com uma pequena quantidade de substância ilícita ser considera da traficante e não usuária A Lei de Drogas é portanto terreno fértil para o seletivismo penal perpetuar o racismo institucional A chamada Guerra as drogas é peça central no genocídio e encarcera mento da população jovem negra O Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro publicou em 2015 um relatório temático chamado Mu lheres Meninas e Privação de Liberdade no Rio de Janeiro137 no qual tratou sobre as condições ainda mais degradantes a que está exposta a população feminina privada de liberdade Em 2016 ao publicar o re latório temático Quando a Liberdade é Exceção A Situação das Pessoas Sem Condenação no Rio de Janeiro138 voltou a se referir especificamen te sobre as mulheres quando tratou sobre o enorme número de presos provisórios no sistema prisional inclusive mulheres grávidas Já se sabe que a prisão é um projeto falido que não garante a tão clamada segurança talvez o que nos reste seja questionar concreta mente a ideia de crime e criminoso entendendo estes como constru ções sociais forjadas em ideologias classistas machistas e sobretudo racistas 4 PESQUISA DE CAMPO Este tópico tem por objetivo apresentar uma análise das informações colhidas durante as visitas realizadas aos manicômios judiciários ou 137 Relatório Temático disponível em httpsdrivegooglecomfiled0ByIgD zCTzaAEeGo3dDVhM0cxaU0view 138 Relatório Temático disponível em httpsdrivegooglecomfiled0ByIgD zCTzaAEUkZGT2V1alZvZTAview 240 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça como se convencionou chamar após a reforma de 1984 hospitais de custódia e tratamento psiquiátrico administrados pela Secretaria de Estado de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro A utilização dos relatórios e metodologia produzidos pelo Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro139 possibilita o acesso a informações privilegiadas na medida que são documentos produzidos a partir da averiguação in loco A intenção é avaliar a condição dos manicômios espaços histori camente reconhecidos como produtores e reprodutores de isolamen to negligência maus tratos e tortura obter informações sobre como a Lei da Reforma Psiquiátrica vem influenciando o tratamento dado às pessoas com transtorno psíquico que cumprem medidas de segu rança adquirir elementos que possam auxiliar a traçar o perfil daque les que hoje estão internados nos manicômios e desta forma realizar considerações sobre se os avanços no campo psiquiátrico e jurídico efetivamente alcançaram os loucos infratores A partir das visitas de fiscalização realizadas no manicômios ju diciários Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Henrique Roxo140 Centro de Tratamento em Dependência Química Roberto de Medeiros141 Hospital de Custodia e Tratamento Psiquiátrico Heitor Carrilho142 apresentaremos breves considerações sobre o que foi en contrado 41 Considerações gerais O marco legal brasileiro da Reforma Psiquiátrica foi aprovado em 6 de Abril de 2001 a partir da aprovação da Lei 10216 que Dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental lá se vão quase 17 anos da aprovação da lei antimanicomial 139 Disponível em wwwmecanismorjcombr 140 As informações constantes deste tópico foram colhidas em visitas realizadas entre agosto de 2011 e setembro de 2013 141 As informações constantes deste tópico foram colhidas em visita realizada em outubro de 2012 142 As informações constantes deste tópico foram colhidas em visita realizada em outubro de 2012 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 241 No Rio de Janeiro iniciouse o Programa de Reinserção Social Assistida nos anos 90 Sua existência foi fundamental e resultou em avanços reais Importantes diagnósticos foram concretizados como estudos sobre o perfil clínico jurídico e socioeconômico dos pacientes e visitas experimentais às famílias todos vindo a compor os Estudos para formulação de um programa de desinstitucionalização e reinser ção social assistida dos Pacientes Internados em Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Rio de Janeiro publicado pela SEAP e coordenado por Tânia Kolker e Márcia L Carvalho Elaborouse a partir de então um conjunto de propostas para reestruturação do modelo de atenção em saúde mental da SEAP pela Coordenação de Gestão em Saúde Penitenciária que passou a enfren tar o desafio de adequar a aplicação das medidas de segurança ao que preconiza a Lei nº 10216 e como recomenda a Resolução nº 52004 do Conselho Nacional de Políticas Criminais e Penitenciárias CNP CP143 A referida resolução propõe a reinserção social do paciente em seu meio art 4º 1 da Lei nº 1021601 tendo como princípios norteadores o respeito aos direitos humanos a desospitalização e a superação do modelo tutelar A partir das visitas realizadas é possível afirmar que em alguma medida a Lei da Reforma Psiquiátrica tem efetivamente inspirado mu danças nos manicômios da SEAP É positiva a reorganização da porta de entrada e da porta de saída dos manicômios judiciários indi cando que os loucos infratores tenham já desde o início um projeto terapêutico destinado à sua recepção e posterior saída De qualquer forma ainda é preocupante perceber todas as dificuldades enfrenta das no processo de desinstitucionalização dos pacientes oriundos de manicômios judiciários pelo duplo estigma que os persegue e pela len tidão na expansão da rede substitutiva Os pacientes são em sua maioria negros e pobres mas a causa que os levou ao manicômio é bem variada foi possível encontrar pessoas com sofrimento psíquico que haviam cometido delitos graves assim 143 Brasil Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde Legislação em Saú de Mental 2004 a 2010 Edição XII Colegiado de Coordenadores de Saúde Mental 257 p Brasília Ministério da Saúde 2010 Página 233 Disponível em httpwww sesaprgovbrarquivosFile20042010pdf acessado em 13 de fevereiro de 2014 242 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça como pacientes que haviam apenas discutidos com seus vizinhos e ainda usuários de drogas ilícitas que poderiam estar realizando tra tamento ambulatorial em um CAPS É notório que independente do delito cometido é a possibilidade de voltar a delinquir que os mantém internados Sobre as mulheres mais especificamente causa estranheza não haver uma unidade destinada unicamente a elas que ficam em uma única galeria no Roberto de Medeiros Não foi possível saber de que forma se elabora o projeto terapêutico para as mulheres com so frimento psíquico que cometem delitos No que se refere ao tratamento dispensado aos pacientes os rela tos de maus tratos ouvidos foram sempre direcionados aos agentes pe nitenciários que estão envolvidos no trato diário com estes Muitas ve zes foram ouvidas queixas sobre agressões verbais e uso excessivo da força para manutenção da disciplina Durante a pesquisa não foram encontradas pessoas visivelmente agredidas como ocorre corriquei ramente nas vistas às unidades prisionais mas há relatos que agressões já haviam ocorrido em momentos de surto As miniequipes técnicas relataram que esporadicamente ouvem dos pacientes reclamações so bre agressões e que imediatamente os encaminham para registrar o ocorrido à direção contudo os pacientes preferem não oficializar as denúncias por medo de represálias O que se pode efetivamente afirmar é que havendo ou não agres sões físicas as pessoas com sofrimento psíquico que ainda se encon tram em manicômios judiciários e estas certamente ocorrem ainda que não de forma sistemática os loucos infratores ainda estão sujeitos a condições estruturais desumanas e a uma dinâmica que permanece reproduzindo ambientes torturantes e mortificantes de sua natureza CONSIDERAÇÕES FINAIS Como assinalamos anteriormente é inegável que a Lei nº 1021601 é um importante marco legal e um instrumento político que tem pro porcionado ao longo destes 17 anos significativa mudança de paradig mas no que se refere ao tratamento dispensado às pessoas com sofri mento psíquico É possível perceber que os movimentos compostos por trabalhadores da saúde mental e os usuários do sistema sem os Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 243 quais a lei não teria sido aprovada permanecem suscitando o debate sobre a inserção dos loucos na sociedade e a ampliação da rede subs titutiva No Rio de Janeiro por exemplo os militantes da Luta Antimanico mial estão presentes em diversas frentes sobretudo na atual discussão sobre as internações compulsórias de usuários de crack Contudo não se percebe esse mesmo empenho dos movimentos e organizações de diretos humanos quando se trata de loucos infratores A invisibilidade que atinge o sistema prisional se estende aos manicômios judiciários Analisando as visitas realizadas é possível afirmar que a velha mentalidade ainda está vigente o estado de periculosidade e o com portamento da pessoa com sofrimento psíquico que comete delito ainda é prioritariamente observado para além do ilícito perpetrado O campo jurídico não avançou na mudança de elementos que compõe a inimputabilidade a ideia de que se trata de alguém que não responde por seus atos passados ou futuros ainda persiste e possibilita a perpe tuação das medidas de segurança A instituição total ainda é vista como espaço destinado aos lou cos infratores no Rio de Janeiro Muito embora se observe a grada tiva desinstitucionalização de internos que tiveram suas medidas de segurança cumpridas ou suspensas os recém chegados infratores neste momento são enviados para um manicômio judiciário Neste caso específico como vimos no tópico sobre a visita ao Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico Henrique Roxo a equipe desta instituição informou iniciar um projeto de desinstitucionalização que deverá ocorrer 01 ano após a entrada do paciente contudo ressalta que para efetiva desospitalização a equipe de peritos que atesta a ces sação da periculosidade deverá estar de acordo com o laudo fornecido pelo hospital de custódia e tratamento psiquiátrico o que nem sempre ocorre permanecendo o louco infrator institucionalizado Não foi possível obter informações direto dos peritos mas diante do que foi possível averiguar nas visitas ainda é o fantasma da possibi lidade do delito futuro e por que não dizer do preconceito racial que determinam o período de cumprimento das medidas de segurança O perfil das pessoas com sofrimento psíquico que cometem delitos encontradas nas unidades manicomiais visitadas é o mesmo do século 244 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça passado são em sua maioria homens negros jovens e pobres mora dores de territórios criminalizados Ou seja independe do crime ou da sua gravidade a condição de criminoso é distinta para cada pessoa A partir dos elementos analisados podese afirmar que há um super encarceramento em andamento que claramente produz e repro duz estereótipos e desigualdade utilizandose inclusive do saber da psiquiatria para manter a massa carcerária exatamente onde ela está Os apenados e apenadas passam por um processo de degradação do início ao fim de sua detenção todos os símbolos de sua dignidade lhes são retirados suas roupas produtos de higiene pessoal sua sub jetividade sua integridade física e mental Durante as visitas aos manicômios judiciários não se pode ne gar pelo menos em sua maioria que as mudanças são perceptíveis no que se refere aos projetos terapêuticos elaborados pelas equipes técnicas há claro empenho dos profissionais da área de saúde mental em promover a desinstitucionalização dos pacientes ainda que a mé dio prazo Mas também não se pode negar que a estrutura e discipli na imposta nestes espaços ainda refletem as antigas instituições totais com ambientes propícios à prática de tortura e maus tratos por isso a necessidade de o quanto antes extinguir estas instituições Ousamos dizer que muito embora os atores do campo jurídico não tenham sido ouvidos nesta pesquisa o avanço da reforma psi quiátrica nos manicômios ainda se depara com um sistema penal apoiado em premissas punitivas que nortearam o tratamento dado as pessoas com sofrimento psíquico no século XIX O Direito ainda tra balha com a lógica de que tratamse de pessoas que não tem condições de discernir sobre certo ou errado e por isso são totalmente incapazes de responder por seus atos desconsiderando todo progresso que já se obteve no saber psiquiátrico No século passado quando da inauguração dos manicômios judiciários estes foram vistos como vitória pois finalmente tinham conseguido separar os loucos dos normais possibilitandolhes tra tamento ao invés de isolamento tão somente Hoje a existência do manicômio judiciário deveria ser entendido como um sinal de igno rância de retrocesso Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 245 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AMARANTE Paulo Duarte de Carvalho Asilos alienados alienistas uma pequena história da psiquiatria no Brasil In AMARANTE Pau lo Duarte de Carvalho Org Psiquiatria Social e Reforma Psiquiátri ca Rio de Janeiro FIOCRUZ 1994 p 7395 AMARANTE Paulo Coord Loucos pela Vida a trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil Rio de Janeiro FIOCRUZ 1995 136p AMARANTE Paulo Duarte de Carvalho O homem e a serpente outras histórias para a loucura e a psiquiatria Rio de Janeiro FIOCRUZ 1996 142p AMARANTE Paulo Saúde Mental e atenção psicossocial Rio de Ja neiro FIOCRUZ 2007 120p ARAÚJO Ubiratan Castro de Conexão Atlântica História Memória e Identidade Disponível em httpwwwpalmaresgovbr artigosinstitucionaisconexaoatlanticahistoriamemoriae identidade Acesso em 26 de fevereiro de 2014 BARATTA Alessandro Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal Introdução à sociologia do direito penal Tradução de Juarez Cirino dos Santos 3ed Rio de Janeiro Revan 2002 256p BARATTA Alessandro Principios del Derecho Penal Mínimo Para uma Teoría de los Derechos Humanos como objeto y limite de la Ley Penal In Revista Doutrina Penal n 1040 Buenos Aires Depalma 1987 p 623650 BECCARIA Cesare Marchese di Dos delitos e das penas Tradução de Paulo M Oliveira Rio de Janeiro Nova Fronteira 2011 BRASIL Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde DAPE Coordenação Geral de Saúde Mental Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil Brasília OPAS de 2005 CARRARA Sergio Crime e loucura o aparecimento do manicômio judiciário na passagem do século Rio de Janeiro EdUERJ São Paulo EdUSP 1998 246 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça CARVALHO Salo de Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro fundamentos e aplicação judicial São Paulo sn 2013 CARVALHO Salo de Weigert Mariana A B A Punição Do Sofrimento Psíquico No Brasil Reflexões Sobre Os Impactos Da Reforma Psiquiátrica No Sistema De Responsabilidade Penal Revista de Estudos Criminais 48 Janeiro Março 2013 p 55 90 COSTA Jurandir Freire História da psiquiatria no Brasil um corte ideológico 3ed Rio de Janeiro Campus 1980 FOUCAULT Michel A verdade e as forma jurídicas Tradução Rober to Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais Rio de Janeiro NAU Editora 2003 160p FOUCAULT Michel Vigiar e Punir nascimento da prisão Tradução de Lígia M Pondé Vassallo Petrópolis Vozes 1987 280p NASCIMENTO Abdias do Democracia Racial Mito ou realidade Disponível em httpwwwgeledesorgbratlanticonegro afrobrasileirosabdias donascimento826democraciaracial mitoourealidade Acesso em 26 de fevereiro de 2014 PRADO JR Caio Formação do Brasil Contemporâneo colônia São Paulo Companhia das Letras 2011 RAUTER Cristina Criminologia e subjetividade no Brasil Rio de Ja neiro Revan 2003 128p ROUSSEAU JeanJacques Do contrato social Tradução de Lourdes Santos Machado introdução e notas de Paulo ArbousseBastide e Lourival Gomes Machado 2 ed São Paulo Abril Cultural 1978 ZAFFARONI Eugênio Raúl PIERANGELI José Henrique Manual de direito penal brasileiro parte geral 9 ed rev atual São Paulo Re vista dos Tribunais 2011 766 p 247 MULHERES EM TRANSTONO PSIQUICO E DESTITUIÇÕES DE PODER FAMILIAR Alessandra de Andrade Rinaldi144 Geovana Siqueira Costa 145 Resumo O objetivo do texto era centrarse nas destituições de poder familiar que tramitaram no Rio de Janeiro de 2000 até os dias atuais época que compreende a vigência do Estatuto da Criança e do Ado lescente ECA e do novo Código Civil brasileiro de 2002 Para esse artigo em específico escolhemos analisar as ações propostas contra genitores que corriam o risco de perder o poder familiar de seus filhos por viverem em contexto familiar dentro do qual a mãe é classifica da ao longo dos autos processuais como louca Buscamos analisar como visões sobre os gêneros e loucura estiveram presentes nos autos e nas decisões judiciais Haveria a suposta concepção de que a mulher estaria mais próxima da natureza e da loucura e o homem estaria mais conectado à cultura e à sanidade Essa visão conduziria a análise desses processos Frente a tais considerações a ideia central foi analisar o que faria com que os genitores fossem destituídos de seu poder familiar indagando se a condição de doente mental da mãe produziu ou não influência na decisão judicial em questão Para a pre sente pesquisa foram coletados processos que tramitaram nas Varas da infância da Juventude e do Idoso regionais de Campo Grande e de Madureira no município do Rio de Janeiro As informações foram co letadas também a partir do método antropológico de descrição densa desenvolvida por Clifford Geertz que permite ao pesquisador aden 144 Antropóloga Professora do PPGCS e do DCSUFRRJ 145 Graduanda em História pela UFRRJ 248 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça trar o universo nativo pesquisado através da coleta de amplo material empírico Essa descrição funciona como uma etnografia dos proces sos e permite apreender o máximo possível da realidade presente no material trazendo novas possibilidades de análises para a historiogra fia na interseção da mesma com a disciplina antropológica Assim po demos passar de uma mera descrição dos fatos para uma análise mais profunda das dinâmicas sociais Ao longo desta pesquisa foi possível perceber que as hipóteses que tínhamos construído não se sustenta vam Pudemos observar que os oficiantes do Direito não conduziam suas análises sobre mães consideradas loucas suportados na ideia de que isso deviase à uma natureza patológica feminina Palavraschave destituição loucura família INTRODUÇÃO O presente trabalho resulta do projeto mais amplo intitulado Laços desfeitos vínculos construídos e socioafetividade146 cujo propósito era compreender os significados da filiação adotiva para os integrantes do Direito que militam na área da adoção na comarca do Rio de Ja neiro Além disso a ideia era pesquisar ações de destituição do poder familiar conectadas aos processos de adoção147 assim como aquelas movidas sem vinculação a esses requerimentos buscando entender como e por que um pai ou uma mãe ou ambos são compreendidos como inaptos ao exercício da função parental Dito de outra forma a intenção era captar como práticas legais e sanções morais sobre geni tores e suas proles se materializam nesses documentos 146 Essa pesquisa é coordenada por Rinaldi com apoio das agências de fomento CNPQ e FAPERJ desde 2015 Como parte desse projeto há pesquisas em an damento como a dissertação de mestrado sobre destituição de poder familiar de mulheres em situação prisional desenvolvida por Sales 2017 além dessa pesquisa de iniciação científica em âmbito do PPGCSUFRRJ 147 Tratase de pedido que somente será analisado se o relativo à destituição do poder familiar puder ser acolhido Nestes casos a destituição requerida em sua maioria pelo Ministério Público é realizada em caráter liminar Tratamse de situações nas quais o processo de destituição de poder familiar ocorre si multaneamente com o processo de adoção para que o procedimento ocorra de maneira rápida e evite trâmites burocráticos demorados ROSSATO Luciano Alves LÉPORE Paulo Eduardo CUNHA Rogério Sanches Estatuto da Crian ça e do Adolescente Comentado São Paulo Revista dos Tribunais 2012 p 437 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 249 A proposta era centrarse nas destituições de poder familiar que tramitaram no Rio de Janeiro de 2000 até os dias atuais época que compreende a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente ECA e do novo Código Civil brasileiro de 2002 Para esse artigo em específico escolhemos analisar as ações propostas contra genitores que corriam o risco de perder o poder familiar de seus filhos por vive rem em contexto familiar dentro do qual a mãe é classificada ao longo dos autos processuais como louca Buscamos analisar como visões sobre os gêneros e loucura estiveram presentes nos autos e nas decisões judiciais Haveria a su posta concepção de que a mulher estaria mais próxima da natureza e da loucura e o homem estaria mais conectado à cultura e à sa nidade148 Essa visão conduziria a análise desses processos Frente a tais considerações a ideia central foi analisar o que faria com que os genitores fossem destituídos de seu poder familiar indagando se a condição de doente mental da mãe produziria ou não influência na decisão judicial em questão O trabalho de coletada de dados foi realizado em conjunto por diversas pesquisadoras Na equipe havia a coordenadora uma mes tranda em Ciências Sociais pelo PPGCSUFRRJ e uma bolsista de ini ciação científica pela FAPERJ outra pesquisadora de IC apoiada pelo CNPQ Coletamos o material juntas e compartilhamos as reflexões No município existem quatro Varas VIJI a saber a 1º Vara da Infância da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital a 2º Vara da Infância da Juventude e do Idoso da Comarca da Capital 2º Vara da Infância da Juventude e do Idoso regional de Madureira e a 4º Vara da Infância da Juventude e do Idoso regional de Campo Grande foi criada recentemente e esse órgão abrange os processos que tramitaram na extinta 2º Vara da Infância da Juventude e do Idoso regional de Santa Cruz Para a presente pesquisa foram coletados dados nas Varas re gionais de Campo Grande e de Madureira A proposta inicial era reali zar um levantamento em todas as varas da comarca do Rio de Janeiro no entanto em razão da limitação de tempo aquelas da comarca da capital não foram pesquisadas 148 Ver ORTNER Sherry Está a mulher para a natureza assim como o homem para a cultura In ROSALDO Michelle Z LAMPHERE L org A mulher a cultura a sociedade Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 250 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Para a pesquisa mais ampla coletamos quarenta e sete processos de destituição de poder familiar Dentre tais documentos vinte e quatro tramitaram na 2º Vara da Infância da Juventude e do Idoso re gional de Madureira e vinte e três na 4º Vara da Infância da Juventude e do Idoso regional de Campo Grande Dentre esses trinta e oito estão sentenciados e nove ainda estão em andamento processual Quanto à propositura da ação oito são ações privadas e as outras trinta e nove são movidas pelo Ministério Público MP Quanto ao perfil socioe conômico dos sujeitos à ação pudemos identificar que os genitores réus são majoritariamente de famílias populares urbanas149 Dentre esse universo havia sete documentos que tramitaram nas referidas Varas e foram propostos contra genitores que viviam em contexto familiar dentro do qual a mulher era classificada como por tadora de transtornos mentais Foi portanto essa documentação o objeto de reflexão ora apresentado Essas mulheresmães eram relativamente jovens nenhuma delas chegava aos 40 anos de idade Eram majoritariamente mulheres bran cas Algumas formavam com seus companheiros famílias de camadas populares e encontravamse em situação de extrema vulnerabilidade socioeconômica Outras viviam com parceiros relações pautadas na violência física e no abandono significa que estes se separavam des sas mulheres as deixavam sozinhas com os filhos e não arcavam com as responsabilidades parentais durante e após a conjugalidade Ao longo dos autos são descritas como mães negligentes incapazes abandonantes Algumas são diagnosticadas como portadoras de transtorno psíquico por meio de laudos periciais outras apesar da inexistência de interpretação qualificada150 são acusadas moral mente pelos depoentes e por profissionais envolvidos no fluxo proces sual como loucas Os processos rumam em torno da condução do diagnóstico de loucura e da consideração sobre a possibilidade ou não do exercício da maternidade 149 A categoria famílias populares urbanas se refere de forma genérica àque les que são destituídos do que na nossa sociedade confere poder riqueza e prestígio COUTO Márcia Thereza Revista ANTHROPOLÓGICAS ano 9 vo lume 161 197216 2005 Estudos de famílias populares urbanas e a articula ção com gênero p 198 150 FOUCAULT Michel Os anormais Rio de Janeiro Martins Fontes 2001 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 251 Metodologia Como o trabalho se propõe a utilizar documentos judiciais como fon tes históricas é preciso também que se entenda que os processos são escritos oficiais e não detém uma totalidade de uma realidade social Tratase de material construído pelo aparato jurídico que oculta e re vela aquilo que lhe parece relevante segundo seus critérios Dessa forma os processos foram analisados conforme propos to por Adriana Vianna151 como registros padronizados e dotados de certa neutralidade racional que é essencial para que as decisões ju diciais se tornem universalizantes Esses relatos são convertidos em depoimentos escritos por um mecanismo de controle burocrático e de construção de afirmação de autoridade Nos documentos aparecem múltiplas construções e interpreta ções sobre o que leva uma pessoa a não poder mais permanecer no lu gar de pai ou de mãe Consideramos portanto que há múltiplas vozes concorrentes na produção de um discurso de verdade152 pode ou não compor uma família Há profissionais responsáveis por esquadrinhar os acusados com o intuito de avaliar sua lucidez sua moral e seu di reito atestando ou não a possibilidade de continuarem a serem pais ou mães Membros do conselho tutelar psiquiatras promotores de justi ça defensores públicos juízes da Infância e da Juventude psicólogos e assistentes sociais que atuam nas Varas da Infância e da Juventude e ou em instituições de acolhimento em prisões eou em maternidades são convocados a comentar o desempenho desses sujeitos em vista de serem destituídos e de suas funções parentais As informações foram coletadas também a partir do método an tropológico de descrição densa desenvolvida por Clifford Geertz153 que permite ao pesquisador adentrar o universo nativo pesquisado através da coleta de amplo material empírico Essa descrição funciona 151 VIANNA Adriana de Resende Barreto Limites da menoridade tutela família e autoridade em julgamento 350 fTese de doutoramento Programa de PósGra duação em Antropologia Social Museu Nacional Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2002 p 95 152 FOUCAULT Michel Os anormais Rio de Janeiro Martins Fontes 2001 153 GEERTZ Clifford Uma descrição densa por uma teoria interpretativa da cul tura In A interpretação das culturas Rio de Janeiro Guanabara Koogan 1989 p20 252 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça como uma etnografia dos processos e permite apreender o máximo possível da realidade presente no material trazendo novas possibili dades de análises para a historiografia na interseção da mesma com a disciplina antropológica Assim podemos passar de uma mera descri ção dos fatos para uma análise mais profunda das dinâmicas sociais A destituição do poder familiar Para que uma extinção ou uma destituição do poder familiar ocorra é necessário a violação das obrigações familiares o alcance da maiori dade dos filhos ou a morte dos genitores Como a extinção do poder familiar se torna uma medida grave e irrevogável de caráter definiti vo o art 1638 do Código Civil define as condições necessárias para a perda do poder familiar darseá pela morte dos pais ou do filho pela emancipação nos termos do art 5º parágrafo único pela maioridade pela adoção ou por decisão judicial na forma do art 1638 O art 1638 expressa que perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que castigar imoderadamente o filho deixar o fi lho em abandono ou praticar atos contrários à moral e aos bons costumes154 O Estatuto da Criança e do Adolescente nos art 22 e 24 estabe lece também que maustratos negligência e danos à saúde física ou psicológica e danos financeiros para a criança são motivos para destituição do poder familiar Há que ressaltar que de acordo com o art 23 do mesmo estatuto pobreza não é motivo suficiente para des tituição devendo as famílias nessa condição serem incluídas em pro gramas de auxílio tendo como finalidade a permanência da criança em sua família de origem Portanto a extinção do poder familiar se dá juridicamente quando há completa impossibilidade ou esgota mento das tentativas de restaurar os vínculos de uma família resguar dando os interesses da criança ou do adolescente 154 GOMIDE Paula Ines Cunha Análise de um caso de extinção do poder fami liar Psicologia ciência e profissão 2003 23 4 p43 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 253 A extinção não se confunde com a suspensão do poder familiar que impede o exercício do poder por tempo determinado podendo ser restaurado A suspensão pode ocorrer na falta do cumprimento dos deveres inerentes aos pais ou quando estes são condenados por uma sentença irrecorrível por crime cuja pena exceda dois anos de prisão155 Assim se a suspensão não surtir efeito então se emprega a destituição irreversível que é medida mais grave A propositura de uma ação de destituição do poder familiar DPF é de competência do Ministério Público mas pode ser movida por um parente do infante ou do jovem quando se entender segundo o art1637 do Código Civil de 2002 que um pai ou uma mãe abusou de sua autoridade ou faltou com os deveres a eles inerentes156 Nesse caso competirá ao Juiz da área da Infância e da Juventude decidir em caráter liminar ou incidentalmente o destino da criança ou do jovem envolvido que ficará sob tutela do Estado ou sob guarda de pessoa idônea até a decisão final do magistrado Os processos escolhidos Os processos escolhidos para análise têm como centro as mulheres mães que são rés por serem portadoras de sofrimento psíquico eou as que fazem parte de uma família que sofre uma ação de destituição de poder familiar em função dessa afecção da genitora A abertura dos processos se dá por três razões diversas categorizadas como ne gligência abandono ou incapacidade de cuidado Há processos que constroem a loucura como uma justificativa do comportamento desviante materno acentuando com isso a impos sibilidade do exercício materno Há no entanto alguns documentos a ideia de que se não fosse a ocorrência da doença mental essas mulhe res seriam pessoas aptas a exercer o cuidado uma vez que manifestam afeto para com os filhos de acordo com os parâmetros normativos 155 REIS Clarice Moraes O poder familiar na nova realidade jurídicosocial Dis sertação de mestrado Pontifícia Universidade Católica de São Paulo 2005 156 As razões que levam à suspensão ou à destituição do poder familiar estão previstas tanto nos artigos 1637 e 1638 do Código Civil de 2002 quanto no artigo 24 do Estatuto da Criança e do Adolescente ECA 254 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça sociais da maternidade Há autos que colocam a insanidade como fator secundário Sendo assim os genitores e sobretudo a mãe é acu sada de negligente eou abandonante Nessas ações o transtorno psíquico não é o eixo central em torno do qual ruma a ação Esse é somado às outras avaliações morais sobre as acusadas e transformado em mais uma depreciação moral sobre os envolvidos A incapacidade do cuidado O processo em questão trata de uma ação de adoção de Júlio cumula do com a proposição de destituição de poder familiar em face de Pâ mela157 A moça foi encontrada por policiais vagando pelas ruas com um filho pequeno nos braços sem no entanto portar nenhum aces sório ou bagagem Tal fato incitou o julgamento moral de transeuntes que comunicaram ao Conselho Tutelar o fato por suporem ser alguém portadora de doença mental Sendo assim a criança foi encaminha da à uma instituição de acolhimento e tempos depois foi adotada Segundo a peça inicial o processo foi aberto para prevenir uma possível violação de direitos posto que a mãe biológica não mostra va interesse pelo filho De acordo com trecho dessa peça Não se sabe quem é o pai da criança e sua mãe biológica não tem domicílio fixo seu paradeiro é incerto e ela não mostra interesse em ver o filho ou se informar sobre ele Foi dessa forma que o adotando foi localizado e recolhido em institui ção especializada para receber os cuidados que necessitava fls 24 Grifo nosso Há um laudo psiquiátrico que atesta que Pâmela é esquizofrê nica cuja patologia tem impositiva necessidade de tratamento por ser progressiva redicivante degenerativa invalidante conduzindo em estágio final à alienação mental fls 123126 O que sugere a incapacidade do cuidado com o filho 157 Os nomes foram mudados para preservar o segredo de justiça e a identidade das pessoas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 255 Ao longo da ação a ideia de que Pâmela é incapaz vai se conso lidando Segundo representantes do Ministério Público apesar de ter havido tentativa de tratamento da acusada essa foi fracassada Segun do a promotoria a acusada foi internada em um Posto de Assistência Médica mas liberada no dia seguinte sem receber a medicação e sem a presença de um responsável legal O Ministério Público se manifestou dizendo Ocorre que feito o contato com a família constatouse que o PAM não manteve a requerida internada e ainda a deixou sair da unidade sem qualquer responsável legal Hoje só se sabe que ela está em Caxias com o namorado em local incerto sem medicação Diante da incapacidade da rede de saúde mental do município e da inercia dos parentes sua doença acabou se agravando Diante do exposto por entender que a mãe é in capaz de cuidar de si própria deferese a suspensão do poder familiar e inclusão da criança em família substituta fl 121 Grifo nosso Analisamos outra ação que trata de investigação de paternidade para posterior destituição do poder familiar de Manoel que manteve sua filha Joy e a filha que teve com ela em cárcere privado durante anos Manoel a estuprou e a engravidou e segundo a inicial e os relatórios psicossociais a fazia de esposa De acordo com sua tia Manuel tentou abusar sexualmente de outra filha dele quando ainda era casado com a mãe das duas Ao descobrir o fato a mãe se separou dele e todos os filhos fo ram morar em abrigos Com sua morte em 1999 da mãe Joy voltou a morar com o pai tendo sido posteriormente manti da em cárcere e feita de esposa do mesmo fls 0205 Grifo nosso Consta nos autos que Joy já esteve grávida outras vezes mas havia perdido as crianças A infante que teve com seu pai objeto da ação de destituição de poder familiar nunca fora registrada Além disso é descrito que um dos irmãos de Joy genitora de Luna fez aproxima damente três denúncias para a polícia sobre a situação Entretanto escutava como resposta que não havia viatura disponível eou não era possível entrar na residência onde Joy se encontrava por ser conside rada uma área de risco 256 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça É descrito no relatório psicossocial que Joy mãe de Luna sofre de transtorno psiquiátrico grave Entretanto tal afirmativa não é ba seada em laudo médico Tal juízo foi formulado pela equipe técnica da Vara psicólogos e assistentes sociais em função da situação a que Joy esteve exposta e a manifestação da falta de razão e coerência ao afirmar por exemplo que Manoel iria casarse com ela A moça não demonstrava sofrimento em face à situação de extrema violência a que esteve submetida Sendo assim a suspensão moral foi a razão para a formulação do sentido de loucura A moça demonstrava não perceber a morbidez da situação Dessa maneira esses profissionais consideraram que a mesma não tinha consciência dos fatos que es tava com a razão alterada Dessa forma a ausência de manifestações de constrangimentos morais foi transformada em motivo capaz de classificála como doente mental De acordo com o relatório psicos social A equipe conversou com Joy e ela contou sobre sua relação com o pai Disse que ele sempre cuidou dela que não a deixava sair porque o bairro é perigoso Sempre comprava livros revistas cursos de correspondência e filmes pornô para ela Ele tam bém a agredia fisicamente batendo nela ocasionalmente Ela disse ele prometeu que vai casar comigo e já até comprou um anelzinho Eu sou dele e ele é meu fls 1718 O processo ruma no sentido de confirmar que Manoel é pai de Luna sua neta e destituilo do poder familiar da criança no entanto este veio a falecer e essa ação se extinguiu Em paralelo o processo ruma visando o encaminhamento da vida da díade Joy Luna A equi pe técnica procura a família extensa de ambas e uma Tia paterna é indicada para ser a tutora de Joy e a guardiã de Luna Isso ocorre Joy passa a ser assistida pelo sistema de saúde mental do município ini ciando tratamento em um CAPS Centro de Atenção psicossocial158 158 Apesar da forma punitivista com que a loucura foi tratada no Brasil entre os séculos XIX e XX muitas mudanças ocorreram a partir dos desdobramentos da chamada reforma psiquiátrica de 197080 Essa reforma foi influenciada no Brasil pela ação feita por Basaglia na Itália que fechou manicômios e desinsti tucionalizou os portadores de sofrimento psíquico naquele país Além dessa contribuição italiana os brasileiros contaram com a participação de movimen tos sociais que denunciavam as péssimas condições de descaso e tortura nos Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 257 Não foi aventada a possibilidade de suspensão ou destituição do poder familiar de Joy em face de Luna posto que a justiça da infância e ju ventude trabalhou no sentido de que a infante permanecesse no seio da família de origem Analisando os dois processos anteriores é possível notar que por caminhos distintos essas mulheres mães são consideradas incapa zes de cuidar de seus filhos posto que não conseguem cuidar de si próprias O caso de Joy é mais expressivo posto que a mesma não perpetrou nenhum tipo de violência contra Luna ou tampouco mani festou desejo de abandonála Entretanto a ausência de senso moral a retira do lugar de mãe alocandoa em uma posição de quem não possuem nenhuma capacidade de oferecer cuidado devido ao com prometimento da razão159 O abandono em questão Dentre o material analisado há um documento proposto pelo Minis tério Público em face de Anna e seu companheiro João pois a mater nidade em que ela deu à luz enviou um relatório à Vara da Infância e Juventude afirmando que a mesma não possuía condições mentais para se responsabilizar pela criança recémnascida e a família extensa não possuía interesse em prestar assistência A ré é descrita pelo re latório psicossocial como paciente do sistema CAPS que manifestou delírios ocasionais agressividade e confusão mental Em razão deste parecer a posição do Ministério Público foi a de aplicar medida pro tetiva de acolhimento à criança Na inicial do processo o representante do MP se manifesta afir hospitais psiquiátricos O questionamento dos métodos psiquiátricos da época incentivou a criação de uma nova comunidade multidisciplinar tirando a cen tralidade do médico psiquiatra na tomada de decisões e introduzindo outros profissionais na formulação do tratamento 159 Para o Direito Civil desde 2002 toda pessoa é sujeito de direitos e deveres e quem possui essas duas capacidades é denominado plenamente capaz Aque les que possuem apenas a capacidade de direito são chamados de incapazes porque necessitam de outra pessoa para garantir o funcionamento de variados aspectos de sua vida civil NAKAMURA Ione Missae da Silva Das iniquidades da visão jurídica da tutela de mulheres com transtorno mental grave R Minist Públ Est PA Belém n 6 p 1300 2011 p 78 258 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça mando que a doença mental não é por si só motivo para destituição do poder familiar Mas tendo em vista o histórico de vida de Anna como mãe e o fato de ela ter abandonado três de seus outros filhos além do fato de não manifestar qualquer interesse pelo bebê a ação de destituição se fez necessária Somado a isso o representante do Mi nistério Público argumenta que tanto a ré quanto seu companheiro não possuem condição econômica de prestar assistência à criança fl 05 Ao longo do processo a equipe técnica realiza entrevistas com o casal com o intuito de avaliar a possibilidade de reintegração fami liar do bebê Em um desses momentos essa mesma equipe registra que enquanto faziam a entrevista com seu João Anna esmurrava a porta e gritava apresentando dificuldade de aguardar o momento de ser atendida De acordo com o relatório produzido em consequência dessa entrevista João relatou que Anna não conseguia fazer pequenas tarefas como a comida sem ser vigiada pois corre o risco de botar fogo na casa como já fez uma vez Além disso já tentou enforcar outro filho que está sob cuidados de uma tia quando este era peque no fl123 Em função dessa construção de Anna não só como uma doente mental mas como uma mãe desafetuosa perigosa aban donante e descontrolada a decisão foi em favor da destituição e de uma posterior encaminhamento da criança para a adoção Há outro processo que guarda similaridades com o anterior Tra tase da ação de destituição de poder familiar de Carolina devido à denúncia feita por uma maternidade de que ela teria abandonado sua filha no hospital De acordo com a instituição onde a criança nas ceu A ré portadora de distúrbios psiquiátricos é genitora de três crianças A criança Maria após o nascimento foi acolhida no abrigo Lar Jesus é Amor pois a ré apresentava incapacidade de se responsa bilizar pela infante fl02 O processo contém uma narrativa que busca favorecer um casal de vizinhos da acusada pretendente à adoção de Maria posto que vem cuidando de dois outros filhos de Carolina A equipe técnica se posiciona a favor da colocação da criança em uma família substitu ta visto que Carolina possui históricos anteriores de abandono dos filhos Ao longo da propositura da ação familiares e vizinhos depõem Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 259 afirmando ser Carolina doente mental De acordo com alguns desses depoentes é costume ela sumir de casa ter surtos frequentes além de não ter nenhuma forma de obtenção de renda O desenrolar do processo é rápido visto que a ré se encontra de saparecida Sendo assim Maria é encaminhada para seu novo lar substituto onde já estavam os irmãos biológicos A equipe técnica positiva moralmente a mãe adotiva afirmando ser uma pessoa cari dosa religiosa e dedicada aos filhos a ponto de desistir do casamen to por eles atitude contrastante com o abandono de Carolina Sendo assim menos do que a doença mental o que negativa a ré é o fato de ser uma mãe abandonante Analisando os dois processos é possível constatar à luz de Adria na Vianna160 que abandono não é um termo de valor absoluto Tra tase de categoria construída por meio por moralidades capazes de acentuar ou atenuar a intensidade do ato Nos autos em questão im portou uma economia moral161 suportada na ideia de que mães não abandonam filhos ao contrário essas devem ser pessoas altruístas desexualizadas e capazes de se desindivualizarem em prol da família A negligência em tela Há um documento que trata de um pedido de destituição de poder familiar em face de Maurício e Larissa162 por conta da situação de negligência de ambos que privaram de alimentos Bráulio o filho que tinham em comum Apesar da denúncia consta nos relatório psi cossocial que Larissa necessitava de tratamento psiquiátrico e que ma nifestava fortes vínculos afetivos com o filho É dito nessa peça que a requerida sempre teve ótimo relacionamento com o infante e que nunca teve ajuda do genitor para criar a criança fls8284 160 VIANNA Adriana Quem deve guardar as crianças Dimensões tutelares da gestão contemporânea da infância In LIMA Antonio Carlos de Souza org Gestar e gerir estudos para uma antropologia da administração pública no Bra sil Rio de Janeiro Relume Dumará 2002 p 288 161 FASSIN Didier Compaixão e repressão a economia moral das políticas de imigração na França PontoUrbe n 15 2014 162 Tornase perceptível o fato de que em muitos processos tanto a genitora quan to o genitor se tornam réus na inicial mas no decorrer do processo a figura do genitor some ou acaba sendo esquecida 260 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A decisão da equipe técnica ruma no sentido de tentar reinte grar Larissa e o filho Para tanto a encaminharam para instituições terapêuticas como o Instituto Nise da Silveira e o Espaço Aberto ao Tempo Ao longo desse processo foi dado à Larissa o direito de vi sitar o filho na instituição na qual ele estava acolhido Entretanto o tratamento não caminhou como o esperado e segundo o relatório da entidade de acolhimento que acolhia Bráulio Larissa começou a apresentar episódios de depressão Sua situa ção se agravou pois os familiares não prestam auxílio Também foi dito que às vezes Larissa fica alguns dias fora de casa sem dar notícias e volta com marcas no corpo parecendo ter sido agredida Quando isso ocorre ela não comparece aos encontros com o filho fls 179188 Constam nessa ação de destituição de poder familiar diferentes interpretações de psiquiátricas acerca do transtorno de Larissa Ora é classificada como uma pessoa em depressão ora como esquizofrê nica ou como portadora de psicose atípica Em termos de apoio fa miliar a acusada não podia contar com Maurício que inclusive pouco é mencionado nos autos A acusada possuía apenas uma irmã com quem tinha uma relação bastante conflituosa Dessa forma além do tratamento não ter produzido efeitos a mesma não contava como a família extensa para acolher a ela e seu filho Dessa maneira as ten tativas de reintegração familiar não obtiveram sucesso posto que Mauricio estava desaparecido Dessa forma a sentença final foi pela destituição do poder familiar de ambos Importante ressaltar que menos do que o transtorno de Larissa a negligência163 foi a categoria acionada para a propositura da ação No entanto como na maioria dos processos analisados a categoria preponderante é flutuante muda ao longo dos autos de acordo com as múltiplas vozes No caso de Larissa embora inicialmente tenha sido descrita como uma mãe negligente passa a ser vista como uma pes 163 De acordo com Mata a negligência implica que há supostamente um parâmetro de cuidado considerado aceitável socialmente e capaz de prover as necessidades essenciais das crianças e adolescentes MATA Natalia Teixeira et al Família e negligência uma análise do conceito de negligência na infância Ciência Saúde Coletiva 22928812888 2017 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 261 soa em profundo sofrimento emocional pela dificuldade de perma necer com o filho o que a positiva moralmente mas não garante a permanência de sua criança consigo O sexto processo diz respeito à ação de destituição do poder fa miliar de Vanessa e Olavo em face dos filhos Ian e Lara A argumen tação processual ruma em torno de um laudo psiquiátrico que atestou ser a genitora portadora de personalidade paranoica um transtorno permanente irreversível que apesar de a instabilidade emocional po der melhorar não há tratamento plenamente eficaz fl 214 As crianças foram acolhidas como medida cautelar em razão de um parecer emitido por uma conselheira tutelar que de acordo com os autos não possuía um bom relacionamento com a família Vanes sa procura a Defensoria Pública que se manifestou nos autos sobre essa situação Quando compareceu à Defensoria Vanessa não de monstrou que sofre de transtorno mental algum e se mostrou preocupada com os filhos A Defensoria alerta para a gravidade de ferir o direito de viver em família e que a apreensão não foi precedida de qualquer visita domiciliar pela equipe do juízo tendo sido fundamen tada apenas nas declarações de uma única pessoa con selheira tutelar que não tem bom relacionamento com a família Além disso o filho menor só tem 02 anos e necessita de amamentação fl 103 Ao longo do acolhimento dos filhos Vanessa os visita regular mente intervindo em situações que considera abusiva em relação aos mesmos Em face dessa presença consta no relato psicológico pro duto do depoimento da filha mais velha que ela manifesta vontade de permanecer com a mãe de quem gosta muito e não com o pai fls 88288 Tal depoimento devese ao fato de que no decurso da ação Olavo exmarido de Vanessa ao ser entrevistado pela equipe técnica da Vara manifesta a intenção de pleitear a guarda dos filhos Nesse ato proces sual Olavo afirma que a ré é maluca e alcoólatra Apesar da tentativa da defensoria em positivála e de ela mesma ter se defendido essas iniciativas foram infrutíferas Podemos supor que o fato de existir laudo psiquiátrico atestando que se trata uma pessoa com um transtorno permanente irreversível somada à acu 262 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça sação do exmarido e de conhecidos de que ela era uma mãe louca e alcóolatra e que costumava deixar os filhos sozinhos para beber pesou negativamente contra Vanessa Vale ressaltar que apesar de am bos os genitores serem processados notamos que a discussão central do processo ruma em torno da avaliação moral da mãe abandonante e negligente e de um silêncio sobre a participação ou ausência pater na no cuidado com os filhos Por fim o sétimo processo foi aberto pelo Ministério Público em face de Joana que perpetrou grave negligência contra os dois filhos mantendoos em cárcere privado privandoos de alimentação conví vio social e hábitos de higiene Joana de acordo com os autos é portadora de transtorno psi quiátrico com manifesto comportamento agressivo e delírios per secutórios Foi denunciada por ter exposto Manoel 6 anos e Pe dro 3 anos seus filhos e cujos pais são desconhecidos à situação de abandono grave negligência gravíssimo risco pessoal e social e à prática de atos contrários à moral e aos bons costumes grifo nosso De acordo com a inicial proposta pelo Ministério Público vá rias denúncias anônimas foram feitas ao Conselho Tutelar Havia re latos de que a acusada os agredia além de mantêlos em cárcere privado sem alimentálos sem leválos à escola e sem ensinálos hábitos básicos de higiene Por esse motivo os representantes do MP consideraram tratarse acordo com o art 98 II do ECA de situação em que os direitos da criança e do adolescente foram violados Por isso seriam necessárias medidas protetivas como o imediato acolhi mento institucional e afastamento da mãe A partir de depoimentos de familiares e de vizinhos contidos no relatório do conselho tutelar e nos diversos estudos psicossociais Joana é descrita com alguém que apresenta ataques de fúria sendo capaz de perseguir e atacar pessoas na rua De acordo com uma de suas irmãs a denunciada se submetia a acompanhamento médico até os seus 15 anos de idade quando a mãe veio a falecer sendo assim interrompido o tratamento Uma vez que nesse processo não há interpretação qualificada produzida por psiquiatra atestando a sanidade da acusada as apre Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 263 ciações que as testemunhas e os peritos das VIJI tinham a fazer sobre o comportamento moral da acusada eram de fundamental importância para a construção do sentido de loucura e sua associação ao compor tamento negligente materno Entretanto não é apenas dessa forma que ela é categorizada Para o setor técnico da Vara da Infância e da Juventude na qual tramitou o processo a ré apesar de nervosa e emotiva é cuidadosa com os filhos e necessita acompanhamento para que consiga resolver suas de mandas Tal classificação adveio da forma como os depoentes avaliam a acusada e como ela mesma fala de si Dito de outra forma conforme Rinaldi164 os agentes do Direito envolvidos nesses processos não agem apenas disciplinando e norma tizando os litigantes por meio de valores universaisdominantes Nes se sentido a moralidade construída pelos envolvidos em seus depoi mentos é capaz de afetar os rumos do processo Os contornos criados por vítimas e acusados do que seria o moralmente intolerável a ponto de justificar uma destituição de poder familiar poderiam ser por ve zes incorporados pelos profissionais do Direito Acreditamos ainda que a narrativa produzida por Joana e por seus familiares possibilitou que fosse interpretada não só como uma boa mãe mas como uma pessoa em sofrimento psíquico Sendo assim à luz de uma economia moral suportada na ideia de sofrimento Joana pôde ser avaliada atra vés de uma atenção compassiva que pode vir a lhe possibilitar reaver os filhos CONSIDERAÇÕES FINAIS No que diz respeito ao universo jurídico à sua forma de com preensão e tratamento das ações de destituição do poder familiar movidas contra os genitores em situações nas quais um deles a mu lher mãe é classificada ao longo dos autos processuais como doen te mental ou portadora de transtornos psíquicos uma questão há de ser posta Os oficiantes do Direito compreenderiam e tratariam o 164 Rinaldi Alessandra de Andrade Rinaldi A sexualização do crime no Brasil um estudo sobre criminalidade feminina em contexto de relações amorosas 1890 1940 Rio de Janeiro FAPERJMAUD X 2015 264 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça exercício parental por meio de um modelo de família e de relações en tre os gêneros suportado na concepção de que a mulher estaria mais próxima da natureza e da loucura e o homem estaria mais conectado à cultura e à sanidade Essa visão conduziria a análise desses proces sos Ao longo desta pesquisa foi possível perceber que as hipóteses que tínhamos construído não se sustentavam Pudemos observar que os oficiantes do Direito não conduziam suas análises sobre mães con sideradas loucas suportados na ideia de que isso deviase à uma na tureza patológica feminina Ao analisarem e julgarem os processos de destituição de seu po der familiar de um casal ou de uma pessoa sozinha a condição de doente mental da mãe produzia influências na decisão judicial mas tal decisão relacionavase com uma economia moral suportada em visões sobre as relações entre os gêneros em âmbito das famílias Sen do assim a construção da loucura feminina deviase ao quanto a mãe se aproximava ou se afastava dos ideais de maternidade e de cuidado com o filho Ressaltamos que em termos de condução processual os discursos caminham no sentido de silenciamento da conduta do réu e de uma avaliação moral da figura feminina partindo da visão de que o cuidado dos filhos é predominantemente sua responsabilidade Não descartamos a presença de laudos periciais atestando a lou cura dessas mães Entretanto ressaltamos que essas não são peças centrais Há processos por exemplo que carecem de interpretação qualificada produzida por psiquiatra e nesse caso as apreciações que as testemunhas e os peritos das VIJI tinham a fazer sobre o compor tamento moral da acusada eram de fundamental importância para a construção do sentido de loucura e sua associação ao comportamento negligente e abandonante materno 265 GRUPO DE MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA EM UM SERVIÇO DE SAÚDE MENTAL DE PERNAMBUCO Kalline Flávia S Lira165 Resumo Este artigo apresenta a experiência de um Grupo com mulheres realiza do num serviço de saúde mental localizado no sertão pernambucano Através das anamneses e atendimentos psicológicos percebemos o grande número de mulhe res que relatavam histórico de violência familiar como antecedente de sua história atual da doença mental As violências relatadas são de diversos tipos e cometidas por vários atores de forma geral esposo ou companheiro A consequência dessa violência são os vários tipos de transtornos mentais que acometem essas mulheres que por suas especificidades sociofamiliares continuam no ciclo de violência Em sua maioria há histórico de tentativa de suicídio O grupo foi instituído com o ob jetivo de compreender questões de gênero violência direitos humanos e saúde Os encontros aconteceram uma vez por mês durante o ano de 2015 com uma média de seis participantes por reunião Como resultados podemos citar o fortalecimento dos vínculos familiares o empoderamento e ressignificação para cada uma delas do que é ser mulher além do benefício de estar em grupo propiciando uma reflexão do próprio contexto Acreditase que os desafios existentes estão sendo minimizados ao ampliarmos nossas ações posto que os serviços de saúde precisam pensar a questão da violência para além dos sintomas Palavraschave Violência Mulheres Grupo de Apoio Saúde Mental 165 Psicóloga Mestre em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Per nambuco UFPE Doutoranda em Psicologia Social pela Universidade do Es tado do Rio de Janeiro UERJ kallinelirahotmailcom 266 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1 INTRODUÇÃO A violência de forma ampla acontece no mundo todo Por ser um fenômeno universal e humano é um problema multifacetado e ne nhuma causa isolada pode explicála porém manifestase em diferen tes níveis individual social e comunitário e é influenciada pelo ambiente externo Para Suárez e Bandeira 2002 p 37 violência é uma ação que envolve o uso da força real ou simbólica por alguém com finalidade de submeter o corpo e a liberdade de outro a violência aparece como tentativa de estender a própria vontade sobre a alteridade No enten dimento das autoras a violência aparece como instrumento de sub missão de sujeição de uma pessoa a outra A violência é portanto tão antiga quanto à convivência entre as pessoas e por isso encontramos diversas formas de violência em nos sa sociedade Muitos estudos e teorias foram desenvolvidos na busca pela compreensão da natureza da violência suas origens e meios utili zados para atenuar prevenir ou eliminar da convivência social Especificamente a violência contra as mulheres entendida como violência de gênero ainda é alarmante O Brasil ocupa o preocupante 5º lugar no ranking dos países que mais cometem violência contra a mulher Waiselfisz 2015 Ainda segundo a pesquisa apesar do local mais comum de acontecer homicídios de mulheres ser a via pública a residência da vítima é local em 271 dos casos e em 672 dos casos o agressor era parceiro exparceiro ou parente imediato o que demonstra a vulnerabilidade da mulher no âmbito de suas relações domésticas afetivas e familiares Sendo assim a violência contra as mulheres não pode ser diluída nos casos gerais de violência Afinal quando a violência é perpetrada simplesmente pelo fato da vítima ser mulher há que se levar em consideração todo o contexto sóciohistó ricocultural no qual a violência foi cometida Este artigo tem como objetivo apresentar uma experiência com grupo de mulheres em situação de violência na região do Sertão de Pernambuco O grupo foi instituído em um Centro de Atenção Psi cossocial CAPS Tipo I após ser observado o grande número de mulheres atendidas que relatavam histórico de violência doméstica intrafamiliar Este estudo se justifica porque a região apresenta altos Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 267 índices de violência contra as mulheres e porque as questões de saúde incluindo a saúde mental não estão dissociadas do fenômeno da violência Assim fazse necessário analisar como a rede de saúde vem atuando no enfrentamento da violência contra as mulheres e como pode realizar um trabalho eficiente principalmente frente às deman das de saúde mental 2 AS VIOLÊNCIASS CONTRA AS MULHERES Entendendo a violência como um tema múltiplo de naturezas diver sas consideramos como objeto de estudo deste artigo uma forma par ticular que é a violência contra as mulheres O conceito de violência contra as mulheres é uma expressão criada pelo movimento social feminista e faz referência de modo geral a sofrimentos e agressões que estão tradicional e profundamente enraizados na vida social per cebidos como situações normais quando dirigidos especificamente às mulheres pelo simples fato de serem mulheres DOliveira 2000 ÂnguloTuesta 1997 aponta a dificuldade de definição do ter mo mais adequado para essa problemática e destaca alguns vocábulos que podem ser utilizados violência contra a mulher violência intra familiar violência conjugal violência doméstica contra a mulher e violência de gênero Essa diversidade é resultado da inexistência de uma única denominação e devese à complexidade do fenômeno es tudado à sua amplitude e à sua operacionalização já que dependendo da área do conhecimento em que se percebe o problema temse uma conceituação Segundo ÂnguloTuesta 1997 alguns elementos são importan tes para definir a violência contra as mulheres como a natureza ou tipo do ato física verbal sexual etc o caráter de definição do ato forma de exercer poder força ou coerção o tipo de relação entre os envolvidos e o contexto sociocultural em que ocorre a violência atos socialmente legitimados e tolerados Para Celmer 2010 os termos violência contra a mulher vio lência doméstica violência familiar e violência conjugal não são sinônimos mesmo que diversas vezes sejam usados como se fossem Concordamos com essa posição pois entendemos que a violência 268 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça contra as mulheres não acontece necessariamente dentro de casa nem pelos vínculos familiares ou conjugais Assim a violência contra a mulher não é a mesma coisa mas está contida na violência doméstica familiar e conjugal A Lei 113402006 mais conhecida como Lei Maria da Penha no artigo 5º define violência doméstica ou familiar contra a mulher como sendo toda ação ou omissão baseada no gênero que cause mor te sofrimento físico sexual ou psicológico e dano moral e patrimo nial no âmbito da unidade doméstica da família e em qualquer re lação íntima de afeto em que o agressor conviva ou tenha convivido com a agredida Brasil 2006 De acordo com a referida Lei violência física é qualquer conduta que ofenda a integridade ou a saúde corporal da mulher como tapas empurrões socos mordidas chutes queimaduras lesões por armas ou objetos entre outros A violência psicológica é qualquer conduta que venha a causar dano emocional e redução da autoestima ou que possa prejudicar o pleno desenvolvimento ou que vise desmoralizar ou controlar as ações comportamentos crenças e decisões através do uso de ameaça constrangimento humilhação manipulação isola mento vigilância constante perseguição insulto chantagem explora ção e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à saúde psicológica e a autodeterminação Brasil 2006 Outro tipo de violência a sexual é entendida como a conduta que constranja a mulher a presenciar manter ou participar de relação sexual não desejada mediante intimidação ameaça coação ou uso de força A Lei Maria da Penha ainda tipifica a violência patrimonial como qualquer conduta que configure retenção subtração destruição parcial ou total dos objetos da vítima instrumentos de trabalho do cumentos pessoais bens valores e direitos ou recursos econômicos inclusive aqueles destinados a satisfazer suas necessidades Já a violên cia moral se configura na calúnia difamação ou injúria Brasil 2006 Importante ressaltar que o Brasil é signatário dos principais trata dos e conferências internacionais que estabelecem marcos legais para o avanço dos direitos humanos e dos direitos das mulheres Afinal o Brasil além de ter assinado todos os documentos relativos ao reconhe cimento e às proteções aos direitos humanos das mulheres também apresenta um quadro legislativo bastante avançado no que se refere à Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 269 igualdade de direitos entre homens e mulheres No entanto está muito claro que apenas a existência de leis não modifica o quadro de violên cia É preciso avançar no efetivo cumprimento destas 3 VIOLÊNCIAS CONTRA AS MULHERES NO ÂMBITO DA SAÚDE PÚBLICA Desde o advento do Sistema Único de Saúde SUS várias mudanças ocorreram na área da saúde inclusive a entrada da violência na pauta de políticas públicas Partindo do fato de que a violência afeta signifi cativamente o processo saúdedoença das mulheres podemos consi derar o setor saúde como lócus privilegiado para identificar assistir e referir as mulheres em situação de violência Para Minayo e Souza 1998 a violência está vinculada ao âmbito da saúde competindo aosàs profissionais da área prestar assistência às suas vítimas sendo essencial expandir essa assistência consideran do os conceitos de promoção à saúde e de prevenção de agravos ul trapassando o tradicional cuidado centrado nos danos físicos e emo cionais da vítima Nos serviços de saúde os números da violência doméstica ten dem a ser grandes visto que as mulheres em situação de violência cos tumam usar esses serviços com maior frequência sendo que de 25 a 50 das mulheres atendidas podem sofrer ou ter sofrido violência física ou sexual cometida pelo parceiro Schraiber DOliveira 2003 No entanto como alertam as autoras raramente as mulheres revelam de forma espontânea a violência sofrida seja por dificuldades pessoais ou por não confiarem nos serviços de saúde Assim a abordagem da problemática da violência doméstica e se xual nos serviços de saúde requer técnica específica de conversa além de conhecimento das referências existentes na região jurídica poli cial social psicológica religiosa cultural para que oa profissional tenha meios de apoiar a mulher a tomar a melhor decisão sobre seu caso A rede de atendimento às mulheres em situação de violência é dividida em quatro principais setoresáreas saúde justiça segurança 270 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça pública e assistência social Os serviços de saúde prestam assistência médica de enfermagem psicológica e social às mulheres vítimas de violência oferecendo serviços e programas especializados no atendi mento dos casos de violência doméstica e sexual inclusive no que se refere à interrupção da gravidez em casos de estupro Brasil 2011 Compreendese que a violência de gênero é permeada por vários aspectos físicos psicológicos e sexuais sendo considerado um pro blema de saúde pública que não deve apenas limitarse às questões de conduta clínica mas buscar medidas que promovam a saúde No campo da saúde mental algumas pesquisas começam a indicar uma articulação com as teorias de gênero propondo que o sofrimento psí quico também é construído socialmente Pesquisas como a de Mozzambani et al 2011 revelam que mui tas mulheres em situação de violência doméstica manifestam uma série de transtornos mentais No referido estudo 76 das mulheres apresentaram transtorno de estresse póstraumático TEPT 89 ti nham transtorno depressivo e 94 transtorno de ansiedade A pesqui sa também mostrou que mais da metade das mulheres tinham história de experiências traumáticas na infância ou seja sofreram maus tratos ou presenciaram violência em casa Outro estudo analisou o sofrimento psíquico de homens e mu lheres em um hospital psiquiátrico e evidenciou que as mulheres ti nham mais queixas amorosas e relacionais enquanto a dos homens refletiam questões sexuais e laborais Zanello Bukowitz 2011 Zanello e Silva 2012 realizaram uma pesquisa em que analisa ram os prontuários de pacientes de dois serviços de saúde mental do Distrito Federal A análise mostrou a diferença na incidência de sinto mas entre os sexos Se nas mulheres 25 apresentavam choro inconti do e imotivado para os homens foram apenas 14 Outros sintomas de prevalência feminina foram insônia ansiedade tristeza e dor Nos homens destacaramse agressividade agitação psicomotora ideação suicida e alcoolismo Fica evidente que os valores de gênero são evidenciados no cam po da saúde mental Conforme destaca Zanello 2014 é importante questionar a prática no campo da saúde mental que termina coisifi cando a doença e reduzindo o sujeito à questão biológica e passar a Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 271 realizar uma análise das relações de gênero que pode propiciar uma ampliação dos debates pois destaca aspectos gendrados da experiên cia do sofrimento psíquico 4 A MULHER NO SERTÃO DE PERNAMBUCO O conceito de gênero inicialmente pensado na diferença sexual entre homens e mulheres foi sendo reformulado ao passar do tempo Lau retis 1994 argumenta a necessidade de separar gênero de diferença sexual e partindo de uma visão foucaultiana passar a conceber gênero como produto de várias tecnologias como um dispositivo Para a au tora os gêneros são produzidos por uma tecnologia uma maquinaria de produção que criam as categorias homem e mulher para todas as pessoas através de discursos apoiados nas instituições como a família a escola entre outras Na considerada terceira onda do feminismo Butler 2012 argu menta que o gênero não é apenas uma construção social a partir da diferença sexual mas a própria diferença sexual é uma construção de gênero Para a autora gênero é uma performance que através da re petição estilizada dos atos vai se cristalizando construindo uma ideia histórica do ser mulher ou homem No estudo realizado por Zanello e Romero 2012 as categorias valorizadas nas performances das mulheres são de três ordens renún cia sexual traços de caráter relacional e beleza estética Para os ho mens são valorizadas as performances de virilidade sexual e laborati va ser o provedor da família Interesse notar que se geralmente as representações das mulhe res são de recatadas delicadas e bonitas quando essa mulher é do nordestesertão uma série de adjetivos opostos é trazida à tona e qua se sempre apresentam uma mulher masculinizada ou que remetem a um estereótipo matuta caipira beata cafona e outras qualidades vinculadas à incivilização que lhe são frequentemente impostas Os discursos preconceituosos acabam naturalizando os papéis de gênero reafirmando a mulher do sertão como feia muito séria e considerada boa para trabalhar 272 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Essa identidade feminina nordestina foi construída em relação ao homem nordestino Na ideia de estabelecer o homem nordestino como aquele que não tem medo de pensálo como forte e resistente ao clima árido que assola o sertão tornou o homem viril macho e cora joso Assim a mulher também foi sendo construída em relação a esta identidade masculina e igualmente em decorrência das condições de sua região passou a ser masculinizada ou seja a mulher tinha que ser macho para sobreviver aos obstáculos A naturalização da mulher do sertão como masculinizada com muitosas filhosas castigada pela seca extrema tem consequências em diversos âmbitos na vida dessas mulheres Na pesquisa realizada por Lira 2015 com mulheres em situação de violência doméstica no sertão de Pernambuco ficou evidente que elas minimizam a violência que sofrem pois acreditam que essa é a realidade de todas as mulheres da região Além disso pensam que mulheres em grandes cidades não suportariam as violações como elas o fazem Ou seja o cabra macho sertanejo tem sua mulher em rédea curta cerceando tudo na vida dela se permite trabalhar estudar ir ao médico até mesmo dirigir um carro Lira 2015 5 A EXPERIÊNCIA DO GRUPO COM MULHERES Esta experiência foi realizada em um Centro de Atenção Psicossocial CAPS Tipo I num município do sertão de Pernambuco O referido município fica a mais de 500 km do Recife capital do Estado É um município de pequeno porte com aproximadamente 30 mil habitan tes conforme o último censo do IBGE A maioria da população vive na zona rural O referido serviço de saúde mental foi aberto em outu bro de 2010 Usuáriosas cadastradosas participando ativamente de uma das três modalidades no serviço eram 123 no ano de 2016 A Portaria 336 Brasil 2002 preconiza que com uma equipe mí nima os CAPS tipo I devem atender no máximo 30 pacientes por dia No entanto nas segundasfeiras dia em que o município tinha mais movimento com a população da zona rural indo ao centro da cidade por causa da feira de rua o CAPS chegava a atender mais de 60 pes soas por dia Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 273 Por causa desse intenso movimento a segundafeira foi o dia escolhido para ser realizado o Grupo com Mulheres O grupo foi realizado uma vez por mês durante o ano de 2015 totalizando dez encontros Foram convidadas para participar do grupo 25 mulhe res atendidas no serviço em uma das três modalidades A média de comparecimento foi de apenas seis mulheres por encontro Embora o maior percentual de usuáriosas cadastradosas no serviço seja de mulheres os homens são maioria nos atendimentos diários Uma das explicações das mulheres em não poderem participar diariamente dos atendimentos é porque precisam levarbuscar osas filhosas na esco la fazer a comida arrumar a casa Já fica explícito o gendramento das questões de saúde pois a mulher mesmo adoecida continua sendo a cuidadora da família Para embasar a instituição de um Grupo com Mulheres em que a temática da violência seria abordada inicialmente realizamos uma análise dos prontuários dosas usuáriosas do serviço Limitamonos àqueles que tinham vínculo com o serviço visto que há um número muito maior de atendimentos realizados mas que por diversas razões osas usuáriosas não continuaram acompanhadosas no CAPS Dosas 173 participantes ativosas no serviço ou seja que são assíduosas e participam de alguma atividade no mínimo uma vez por semana 108 são homens e 65 mulheres Mais de 50 dos 173 comparecem ao CAPS diariamente mesmo sem estar na modalidade intensiva e estes também são maioria homens No que se refere aos diagnósticos nas mulheres prevalecem os diagnósticos de depressão 25 transtornos de ansiedade 23 e transtornos de personalidade 15 Para os homens psicose não orgânica não especificada 35 transtornos devido ao uso de álcool ou outras drogas 33 e esqui zofrenia 20 Das 65 mulheres que participavam ativamente do serviço ao re ver os prontuários chegamos ao número impressionante que 56 mu lheres quase 87 tinham sofrido alguma violência doméstica O principal agressor era o maridocompanheiro atual ou ex mas havia queixas contra pais eou mães Apenas duas referiram violência pra ticada por desconhecido Os tipos de violência sofrida foram os mais diversos física psicológica sexual e moral não sendo excludente vis to que uma mulher podia ser submetida a mais de um tipo 274 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça O Grupo com Mulheres teve dez encontros realizados durante os meses de março a dezembro de 2015 e abordou diversos temas como gênero violência direitos das mulheres famíliamaternidade saúde trabalho empoderamento As 25 mulheres convidadas participaram das reuniões com frequência diferenciada Ao apresentar trechos de suas falas durante os grupos serão identificadas como M1 até M25 Foram utilizadas diversas estratégias para condução do grupo textos músicas desenhos pinturas e até bordados Ao mesmo tempo em que realizam algum trabalho manual os temas foram debatidos de ma neira mais leve de forma que todas ficavam livres para tecer qualquer comentário Ao abordar o tema gênero refletiuse sobre o papel da mulher na sociedade que ainda hoje é entendida por muitas pessoas como sendo estritamente o de esposa e de mãe Algumas mulheres participantes concordam com essa perspectiva Meu pai não queria que minha trabalhasse pra criar os filhos Eu achava bonito isso do meu pai Eu acho bonito ficar em casa M10 A mulher não pode fazer coisa errada Trair o marido M3 Eu acho que a gente tem que trabalhar pra ajudar Mas se meu marido tivesse condições de eu ficar em casa cuidando dos meus filhos era meu sonho M5 Na proposição de Lauretis 1994 ao sermos interpeladosas pe las tecnologias de gênero acabamos absorvendo determinados com portamentos e compreendendo como nossos mesmo quando são im postos socialmente M10 apresenta esse ideal de esposa e mãe tendo como referência a relação de seus pais Já M3 ainda revela outro fator a de que a mulher para ser boa não pode trair o marido Essa domi nação masculina é refletida até nas relações em que para o homem é permitido ter várias mulheres porque ele precisa provar sua masculi nidade e virilidade Zanello Romero 2012 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 275 As questões de gênero acima apresentadas têm uma forte ligação com a questão do trabalho Para assumir plenamente o papel de es posa e de mãe parece que as mulheres não podem trabalhar fora de casa como se uma atividade atrapalhasse a outra Ou seja a mulher até pode trabalhar porque precisa ajudar na economia da família mas o ideal é que fique em casa Mais uma vez reafirmase a imagem do homem como principal provedor do lar Zanello Romero 2012 No que se referem às violências muitas questões foram aborda das Importante mencionar que o número de violência sexual perpe trada pelo esposocompanheiro tenha um número alto foi verificado através da análise dos prontuários mas não necessariamente expresso pelas mulheres Estas de modo geral referiamse a uma quebra de dieta ou seja após dar à luz as mulheres deveriam passar um tempo sem ter relações sexuais No entanto os maridos forçavam Assim as mulheres não denominam esse ato como uma violência sexual mas verbalizam o sofrimento por causa dele Fiquei assim depois que quebrei a dieta Só acho que foi por causa disso M3 Tenho três filhos e nunca cumpri minha dieta ficar o tempo prescrito pelo médico sem ter relações sexuais direito Era muito ruim O bebê ali chorando e eu chorava também M7 Uma das usuárias que relatou a violência cometida pelos pais teve seu filho primogênito posto para adoção sem o seu consentimento Se gundo M1 ela era muito nova quando engravidou e seus pais acharam que não teria condições de cuidar do filho e assim o tiraram dela M1 teve mais três filhas essas estão com ela mas a sua relação com a maternidade é muito confusa Parecenos que ela ainda não elaborou o luto de perder o primeiro filho e isso é refletido nos seus sintomas psíquicos e na dificuldade em exercer a maternidade como gostaria Osas filhosas muitas vezes também são usadosas como justificativa para a permanência no ciclo de violência 276 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A gente aguenta muita coisa por causa dos filhos Só de viver ali do lado dos meus filhos fazia eu viver ali por causa disso M4 Ele não vai deixar eu levar meu filho Então eu fico né M12 Algumas mulheres apresentam imensa dificuldade em admitir a situação de violência em que estão M17 é um desses casos A equipe do CAPS já atuou em diversas situações inclusive quando ela chegou ao serviço ensanguentada quando foi encaminhada para delegacia Ao resgatar esse episódio ela diz Foi só dessa vez Ele me bateu Porque eu também peguei o capacete pra lascar a cabeça dele enfática Ele tinha bebido Se tivesse bom ele não faz nada comigo não M17 Chamanos a atenção o fato de que M17 culpa a si mesma pela agressão sofrida ou seja ela bateria nele e por isso ele a bateu Além do mais aponta a embriaguez do marido como justificativa da agres são sofrida De fato o marido de M7 passou a ser acompanhado pela equipe do CAPS inclusive participando do grupo de família em que as questões de bebida e violência foram refletidas Infelizmente até o final do ano 2015 o clico de violência doméstica permanecia Quanto às violências psicológicas eou morais estas tendem a ser minimizadas mesmo quando verbalizadas No entanto o sofrimento psíquico como resultado desse tipo de violência também é enorme Ele nunca me bateu Só diz que eu não sirvo pra nada M13 Ele começou a me agredir com palavrão começou a me des prezar É um sentimento de tristeza de desprezo Me sinto triste Acho que ninguém merece ser tratada assim M3 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 277 A violência psicológica eou moral tem como principal conse quência a depressão em mulheres que passam a não se sentir capaz de realizar as atividades cotidianas além de sintomas de ansiedade por não alcançar o padrão de esposa e de mãe imposto pela sociedade Constatamos que a violência doméstica acarreta consequências significativas na vida das mulheres Estas podem procurar serviços de saúde em razão das consequências físicas imediatas da agressão mas precisamos estar atentosas aos agravos psíquicos do ciclo de violên cia Por ser uma questão ainda permeada de desigualdades resultantes da construção social de gênero o fenômeno deve ser abordado de ma neira sensível e generificada 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto algumas considerações se fazem necessárias A primeira questão é refletir sobre as condições socioeconômicas dessas mulheres Tratandose de um município do sertão nordestino não é difícil mensurar que a maioria dessas mulheres é de baixa renda tem pouca escolaridade e em média três filhos Grande parte também já não está no primeiro casamento ou que convive maritalmente com um homem Não estamos dizendo que a questão socioeconômica é a única explicação para a situação de violência em as mulheres estão mas obviamente é um dos fatores que devem ser levados em conside ração Trazemos como exemplo a situação de M13 que sempre dizia que quando conseguisse seu benefício o BPC Benefício de Presta ção Continuada iria embora da cidade Soubemos que em 2016 isso se concretizou Outro fator importante é o sociocultural A sociedade sertane ja não diferente da brasileira de uma forma geral tem seu alicerce no patriarcado Assim ainda são comuns discursos que cristalizam a mulher como sendo aquela pra casar e ter filhos Apesar de algumas saberem da existência da Lei Maria da Penha acreditam que o sertão é diferente que a ideia de casar e não poder separar é um pensamen 278 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça to ainda presente como nos disse M5 A família também exerce um papel importante Segundo M1 sua mãe dizia que ela não podia se separar só por causa de uns xingamentos Mas segundo palavras dela Palavrão não dói Dói sim O Grupo com Mulheres não teve o intuito de terminar os rela cionamentos abusivos a proposta foi refletir com essas mulheres as dimensões de seus sofrimentos e o quanto as violências estavam im brincadas nos sintomas apresentados A principal proposta do grupo foi empoderar as mulheres dentro dos seus relacionamentos afetivos e familiares A escuta dessas mulheres foi isenta de julgamentos pois entendemos que elas devem ser protagonistas de suas histórias Fica claro portanto que o campo da saúde mental é um lócus privilegiado para as reflexões das consequências das violências con tra as mulheres Se de forma geral elas não procuram dispositivos de segurança pública ou justiça a área da saúde termina atendendo todos e todas principalmente por serem serviços mais próximos da população Cabe aosàs profissionais de saúde atentar para o não dito nos atendimentos que muitas vezes escondem situações graves de violência Por fim pensando que a área da saúde não está desvinculada das questões de gênero existentes na nossa sociedade é preciso avançar nas reflexões sobre a medicalização e patologização das violências Afinal apenas medicar o sofrimento psíquico não trará resultados efi cazes na quebra do ciclo de violência A saúde como porta principal de entrada não pode se abster de pensar a questão da violência para além dos sintomas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 279 REFERÊNCIAS ÂNGULOTUESTA Antonia J Gênero e violência no âmbito do méstico a perspectiva dos profissionais de saúde 1997 151f Disser tação Mestrado em Ciências da Saúde Escola Nacional de Saúde Pública Departamento de Ciências Sociais Fundação Oswaldo cruz Rio de Janeiro 1997 BRASIL Portaria MS336 de 19 de fevereiro de 2002 Estabelece di retrizes para o funcionamento dos Centros de Atenção Psicossocial Brasília Ministério da Saúde 2002 BRASIL Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 Lei Maria da Penha Cria mecanismo para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher Brasília Casa Civil 2006 BRASIL Presidência da República Secretaria Especial de Políticas Públicas para as Mulheres Rede de Enfrentamento à Violência con tra as Mulheres Brasília DF 2011 BUTLER Judith Problemas de gênero feminismo e subversão da identidade 4 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2012 CELMER Elisa G Violências contra a mulher baseada no gênero ou a tentativa de nomear o inominável In ALMEIDA Maria da Graça B Org A violência na sociedade contemporânea Porto Alegre EDIPUCRS 2010 p 7288 DOLIVEIRA Ana Flávia P L Violência de gênero necessidades de saúde e uso de serviços em atenção primária 2000 277f Tese Dou torado em Ciências Médicas Faculdade de Medicina Universidade de São Paulo São Paulo 2000 LAURETIS Teresa de A tecnologia do Gênero Trad Suzana Funck In HOLANDA H B Org Tendências e impasses o feminismo como crítica da cultura Rio de Janeiro Rocco 1994 p 206242 LIRA Kalline Flávia S Violência doméstica contra as mulheres relações de gênero e de poder no Sertão Pernambucano 2015 179f Dissertação Mestrado em Direitos Humanos Centro de Artes e Comunicação Universidade Federal de Pernambuco Recife 2015 MINAYO Maria Cecília SOUZA Edinilsa R Violência e saúde como um campo interdisciplinar e de ação coletiva História Ciências Saúde Rio de Janeiro v IV 3 p 513531 fev 1998 280 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça MOZZAMBANI Adriana C F RIBEIRO Rafaela L FUSO Simone F FIKS José Paulo MELLO Marcelo F Gravidade psicopatológica em mulheres vítimas de violência doméstica Porto Alegre Rev Psi quiatria do Rio Grande do Sul v 33 n 1 p 4347 2011 SCHRAIBER Lilia B DOLIVEIRA Ana Flávia O que devem sa ber os profissionais de saúde para promover os direitos e a saúde das mulheres em situação de violência doméstica Projeto Gênero Violência e Direitos Humanos Novas Questões para o Campo da Saúde 2 ed São Paulo USP Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde Fundação FordCREMESP 2003 SUÁREZ Mireya BANDEIRA Lourdes M A politização da violência contra a mulher e o fortalecimento da cidadania In BRUSCHINI Cristina UNBEHAUM Sandra G Orgs Gênero democracia e so ciedade brasileira São Paulo Fundação Carlos ChagasEditora 34 2002 p 295320 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da Violência 2015 Homicídio de mulheres no Brasil 1 ed Brasília Flacso Instituto Sangari 2015 ZANELLO Valeska A saúde mental sob o viés do gênero uma re leitura gendrada da epidemiologia da semiologia e da interpreta ção diagnóstica In ZANELLO Valeska ANDRADE Ana Paula M Orgs Saúde mental e gênero diálogos práticas e interdisciplinari dade Curitiba Appris 2014 p 4158 ZANELLO Valeska BUKOWITZ Bruna Loucura e cultura uma escuta das relações de gênero nas falas de pacientes psiquiatrizados Florianópolis Revista Labrys Estudos Feministas online v 2021 2011 Disponível em httpwwwlabrysnetbrlabrys20brasilva leskahtm Acesso em 09 dez 2017 ZANELLO Valeska SILVA René Marc C Saúde mental gênero e vio lência estrutural Brasília Rev Bioética v 20 n 2 p 267279 2012 ZANELLO Valeska ROMERO Ana Carolina Vagabundo ou va gabunda Xingamentos e relações de gênero Florianópolis Revista Labrys Estudos Feministas online juldez 2012 Disponível em httpwwwlabrysnetbrlabrys20brasilvaleskahtm Acesso em 09 dez 2017 281 RELAÇÕES DE GÊNERO RAÇA E CLASSE E A SAÚDE MENTAL A EXPERIÊNCIA DE UMA FORMAÇÃO INTERSECCIONAL NA UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO Isabella Afonso Leal166 Carolayne Ferreira dos Santos167 Clara Azevedo de Araújo168 Rachel Gouveia Passos169 Resumo O presente artigo pretende apresentar a experiência do Nú cleo de Pesquisa Estudo e Extensão em Serviço Social Saúde Mental e Atenção Psicossocial NUPESSUFRRJ que vem organizando ativi dades acadêmicas em especial cines debate que tratam a partir de um olhar interseccional sobre as relações de gênero raça e classe e que tem por objetivo proporcionar uma formação que atente para essas questões Palavraschave Interseccionalidade Gênero Raça Classe Saúde Mental 166 Discente do Curso de Serviço Social da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ e pesquisadora do Núcleo de pesquisa estudo e extensão em Serviço Social Saúde Mental e Atenção Psicossocial NUPESS 167 Discente do Curso de Serviço Social da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ e pesquisadora do Núcleo de pesquisa estudo e extensão em Serviço Social Saúde Mental e Atenção Psicossocial NUPESS 168 Discente do Curso de Serviço Social da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ e pesquisadora do Núcleo de pesquisa estudo e extensão em Serviço Social Saúde Mental e Atenção Psicossocial NUPESS 169 Assistente Social e PósDoutora em Serviço Social e Políticas Sociais pela UNIFESP Professora Adjunta da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ e coordenadora do Núcleo de pesquisa estudo e extensão em Ser viço Social Saúde Mental e Atenção Psicossocial NUPESS Email rachel gouveiagmailcom 282 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça INTRODUÇÃO Para iniciar o debate fazse necessário o entendimento acerca do machismo e misoginia sendo essas opressões que subalternizam as mulheres enquanto gênero feminino inseridas na lógica patriarcal de submissão e dominação Entretanto restringir o debate somente a essas duas categorias é proporcionar e reproduzir a invisibilidade de diversas mulheres que são submetidas a duplas triplas quádruplas formas de opressão Compreender as desigualdades sociais na contemporaneidade é fazer o debate da interseccionalidade sendo este um conceito amplo para se pensar gênero raça e classe para além da valorização de uma única variável de forma isolada O debate sobre a interseccionalidade foi iniciado por feministas negras nos Estados Unidos com o obje tivo de se pensar as opressões em suas multiplicidades de forma a contemplar todos os sujeitos que tem suas vidas pautadas nessas desi gualdades Para Passos e Pereira 2017 p29 o debate da interseccio nalidade considera inúmeras variáveis que determinam o que é ser mulher tanto de forma objetiva quanto subjetiva e em especial passa a se chamar atenção para as singularidades as diferentes opressões e os diferentes lugares sociais das mulheres A interseccionalidade nos abre um amplo caminho para o debate sendo necessário reconhecer o patriarcado e o racismo como opres sões estruturantes do modo de produção capitalista Davis 2016 já sinalizava a necessidade de o feminismo debater e incorporar a plura lidade do ser mulher e problematizar os significados que perpassam o lugar da mulher negra na sociedade burguesa Insistir em trazer contribuições a partir de um olhar interseccio nal é abrir caminhos para potencializarmos uma formação univer sitária que questiona indaga e visa a destituição do patriarcado do racismo e das desigualdades sociais compreendendoas como estru turantes da ordem burguesa No que diz respeito a saúde mental é na luta antimanicomial que localizamos a necessidade de pautarmos o fim dos manicômios com a luta antirracista contra o patriarcado e o fim da propriedade privada Nesse caminho pretendemos apresentar a experiência do Núcleo de Pesquisa Estudo e Extensão em Serviço Social Saúde Mental e Atenção Psicossocial NUPESSUFRRJ que Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 283 vem organizando atividades acadêmicas em especial os cines debate que tratam a partir de um olhar interseccional sobre as relações de gê nero raça e classe e que tem por objetivo proporcionar uma formação que atente para essas questões A NOSSA REALIDADE A Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ que na época de sua inauguração recebia o nome de Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária ESAMV tem seu início no ano de 1910 por meio do decreto 8319 o qual fora outorgado pelo então presidente da República Nilo Peçanha e o Ministro da Agricultura Rodolfo Noguei ra legitimando suportes elementares do ensino voltado para a agri cultura com a criação da Escola Superior de Agricultura e Medicina Veterinária Com base na sua criação e especialização dos cursos ofer tados nos primeiros anos a Universidade Rural possuía características intrínsecas de uma criação assertiva no sentido de atender durante sua gênese e longos anos posteriores populações com poder aquisitivo que conseguiam acessar as graduações de veterinária e agronomia o que fundamentou um perfil de alunado com condições favoráveis econo micamente e traçou um aspecto de universidade restrita não só no acesso mas também nas graduações ofertadas com pouca diversidade nas áreas para além da biológica e exatas170 Até o ano de 1963 que foi quando a instituição recebeu o nome de Universidade Rural seu sistema era composto pelos seguidos seto res as escolas nacionais de Agronomia e de Veterinária as escolas de Engenharia Florestal Educação Técnica e Educação Familiar ainda em cursos de nível médio das escolas técnicas de Economia Domésti ca e Agrícola Por longos anos a Universidade Rural corroborou com os interesses de latifundiários do interior e paulista principalmente pelos principais cursos estarem relacionados a ementas rurais num momento o qual a universidade era bastante elitizada divergindose da situação local do município de Seropédica 170 Informações obtidas e retiradas no portalufrrjbr Acesso realizado em 12072018 284 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Cabe ressaltar que a primeira tentativa de implementação de um curso direcionado para o público feminino ocorreu em 1951 por in termédio e influência da Ação Católica Brasileira entretanto apenas em 1963 foi criada na até então Universidade Rural do Brasil a Escola de Educação Familiar O atual Departamento de Economia Domésti ca foi criado para atender ao então curso de Licenciatura em Educação Familiar que em função de recomendação do MEC teve sua nomen clatura alterada para Licenciatura em Economia Doméstica em 1975 PPC 2013 p 4 No ano de 1952 era criado Na Escola Superior de Agricultura e Veterinária de Minas Gerais ESAV o primeiro curso de Ciên cias Domésticas no Brasil que mais tarde viria a ser conhecido como Economia Doméstica Sabese que os ensinamentos em economia doméstica se iniciaram no Brasil por volta de 1909 e prosseguiram timidamente até o ano de 1942 quando o então ministro Gustavo Capanema criou a Lei Orgânica do Ensino Secundário que instituiu a economia doméstica como disci plina dos cursos ginasiais clássicos e científicos femininos No entanto o primeiro curso superior só foi fundado no país em 1952 em uma escola rural com fortes influências americanas Baseado na educação feminina para os saberes do lar e na for mação moral e cívica de excelentes esposas e donas de casa o curso de Ciências Domésticas surgiu com um ideal forte de di visão sexual do trabalho e dos papeis sociais de homens e mu lheres Aliado a isto temse ainda que considerar o caráter for temente rural das instituições em que foi primeiro implantado como a Universidade Federal de Viçosa UFV antiga ESAV e a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ e o discurso da mulher como central na sobrevivência da família tradicional JUNIOR 2014 p4 De acordo com Junior 2014 no ano de 1986 existiam no país 11 cursos superiores de Economia Doméstica ativos Entretanto em 2013 apenas 5 persistiam sendo eles Universidade Federal de Viçosa UFV Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ Uni versidade Federal Rural de Pernambuco UFRPE Universidade Fe deral do Ceará UFC e Universidade Estadual do Oeste do Paraná UNIOESTE Para o autor existem alguns elementos que não abor darem aqui que levaram a redução do número de alunos e da inser Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 285 ção no mercado de trabalho o que acarretou na extinção da profissão Junior 2014 p 85 ainda problematiza que a formação do curso no contexto em que emergiu no país direcionavase para formar exímias esposas e donas de casas e em cientificar os saberes domésticos No caso da UFRRJ a graduação em Economia Doméstica foi sus pensa em dezembro de 2014 o que levou a significativas mudanças e arranjos institucionais A partir de articulações entre professores da graduação em economia doméstica da licenciatura do campo e da educação e também representantes do Conselho Regional de Serviço Social CRESSRJ e da Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço Social ABPESS foi pensado a formação do Curso de Servi ço Social representando o primeiro curso público na Baixada Flumi nense Costa Verde e Médio Paraíba Logo o bacharelado em Serviço Social foi implementado em 2015 tendo a entrada da primeira turma no segundo semestre recebendo especialmente moradores da Baixa da Fluminense A Baixada Fluminense é uma região do Estado do Rio de Janeiro localizada na área Metropolitana I com extensão territorial de 2800 km² e densidade demográfica de 960 habkm² De acordo com o IBGE 2010 sua população oficial é de 2687767 habitantes A região é composta por 13 municípios a saber Belford Roxo Duque de Caxias Guapimirim Itaguaí Japeri Magé Mesquita Nilópolis Nova Iguaçu Paracambi Queimados São João de Meriti e Seropédica É importante destacar que no município de Seropédica temos a sede da Universida de Federal Rural do Rio de Janeiro UFRRJ e do Colégio Técnico da Universidade Rural do Rio de Janeiro CTUR embora estes estejam bem distantes da realidade da população local Segundo a Organiza ção Internacional do Trabalho 2014 p 9 apenas aproximadamente 3466 dos moradores de Seropédica possuem nível superior e 17136 moradores possuem ensino médio completo ou superior incomple to Ainda segundo a OIT 2014 p 9 em 2010 25827 pessoas de 15 anos ou mais de idade residentes no município 433 do total figuravam no grupo de indivíduos sem instrução ou com o ensino fundamental incompleto Notase a precariedade da política de edu cação no município que como os demais municípios da Baixada Flu minense também sofre com a precarização dos serviços e políticas de saneamento básico transporte público habitação segurança e saúde 286 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça O desenvolvimento do curso não vem se dando sem dificuldades uma vez que vivenciamos um cenário de retrocessos de políticas pú blicas e de ataques aos direitos sociais O curso tem inicialmente suas atividades com um quadro bastante escasso de professores com for mação em Serviço Social tendo apenas uma professora com gradua ção na área e que fôra cedida parcialmente pelo Instituto de Educação IE assumindo a coordenação e disciplinas específicas Em 2016 chegou a segunda professora com formação em Serviço Social por meio de redistribuição e em 2017 chegou a terceira atra vés do primeiro concurso público específico para área Além disso o curso também possui um número expressivo de professores substitu tos171 o que possibilita a cobertura das disciplinas específicas mas não as atividades de pesquisa extensão e administração Contase tam bém com a presença de uma técnica assistente social que atualmente coordena o estágio em Serviço Social Nesse caminho a consolidação do curso de Serviço Social traz novas perspectivas e abordagens para o interior de uma universidade como a UFRRJ que está localizada na Baixada Fluminense e que é uma área historicamente imersa na vulnerabilidade sócioeconômi cocultural sendo pertinente a implementação de um curso que visa formar profissionais direcionados para a intervenção social Dessa forma sendo o Serviço Social uma profissão que se orienta por um projeto profissional vinculado a construção de uma nova ordem so cietária sem dominaçãoexploração de classe raçaetnia e gênero se faz substancial por meio da pesquisa e da extensão na Baixada Flumi nense a criação de ações que possibilitem a transformação social A EXPERIÊNCIA DE FORMAÇÃO INTERSECCIONAL No ano de 2017 foi criado o Núcleo de Pesquisa Estudo e Extensão em Serviço Social Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Universi dade Federal Rural do Rio de Janeiro NUPESSUFRRJ com o obje tivo de construir um espaço que possibilite a análise apropriação e 171 Atualmente o curso conta com três professores substitutos sendo um referente a uma vaga que será direcionada para um novo concurso público e outros dois substitutos que foram contratados no lugar de professores que estão licenciados para capacitação Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 287 produção do conhecimento que estejam direcionadas para a área de concentração das Ciências Sociais Aplicadas Serviço Social e subárea da Saúde ColetivaSaúde Mental e Atenção Psicossocial Destacamos ainda que o NUPESS tem as seguintes linhas de pesquisa fundamen tos do Serviço Social Serviço Social aplicado Relações de gênero raçaetnia classe sexualidade e gerações Saúde Saúde Mental e a Atenção Psicossocial No primeiro momento realizouse encontros do núcleo tendo apenas um grupo de 4 alunos onde eram realizadas leituras sobre a história desse curso suas influências teóricas e os projetos que se colo cavam em disputa Somado a essa pesquisa inicial sobre as produções já existente sobre o surgimento do curso buscouse iniciar as leituras nas obras de Karl Marx em especial no livro Sobre o Suicídio texto esse que o autor traz contribuições e reflexões sobre as influências e consequências do patriarcado na vida das mulheres Ao refletir acerca da dinâmica do curso que encontrase em cons trução ao analisar o perfil dos alunos e a realidade do município de Seropédica inserido na Baixada Fluminense outras discussões foram aparecendo e mostrandose de grande importância Cabe destacar a expressividade de alunos negros compondo o quadro de discentes desse curso em graduação tal qual a presença de uma reveladora di versidade sexual gênero e geração e a ocupação de alunos e alunas filhos e filhas da classe trabalhadora desse país subvertendo des sa forma a lógica de que o curso superior é destinado aos filhos da burguesia brasileira A presença de mulheres negros e negras gays lésbicas transexuais permite a elaboração de novas reflexões no vas produções de pensamento outras preocupações Preocupações da classe trabalhadora inquietações referentes ao racismo e machismo estrutural a transfobia e homofobia e com o próprio formato enges sado da academia É nesse contexto que se deu o surgimento do NU PESS e a produção das reflexões efetivado através de diversas ativida des internas ao núcleo ou não contabilizando estudos e leituras em grupo onde a orientadora disponibilizava anteriormente os textos que seriam debatidos e refletidos coletivamente e até mesmo eventos para todo o corpo discente e docente da Universidade 288 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça As leituras e debates em sala de reuniões são importantes enquan to formação acadêmica e política no entanto distanciarse da sala de aula para atividades de extensão é complementar e imprescindível a uma formação de qualidade Nesse caminho realizouse o I Seminário Nacional Saúde mental relações de gênero raçaetnia e classe que aconteceu nos dias 21 e 22 de novembro do ano de 2017 e que contou com a participação ativa dos discentes na organização do mesmo As mesas tratavam respectivamente dos seguintes temas Subjetividade Sofrimento e as Relações de Gênero RaçaEtnia e Classe Luta Anti manicomial Feminismos e a Questão racial e O protagonismo das mulheres negras no século XXI tendo como intervenções artísticas a performance DragQueen de um aluno do quarto período do Serviço Social com seu amigo e a recitação de uma poesia do movimento ne gro escrito por uma aluna negra do curso Licenciatura em Educação no campo LEC também performado por ela Certamente as mesas em debate e as intervenções artísticas fo ram uma experiência enriquecedora para a formação em Serviço So cial onde as relações de gênero e as questões de raçaetnia apareceram com intensidade tanto para a formação profissional dos discentes e futuros assistentes sociais quanto na vida de todos ou seja no coti diano da sociabilidade burguesa Essa experiência possibilitou a apro ximação de outros alunos para o NUPESS sendo ele composto prati camente pela maioria de alunas negras O seminário também proporcionou a mobilização e organização dos alunos negros do curso afim de pensarem e trocarem sobre suas experiências e dores Não podemos deixar invisível a reprodução das hierarquias desigualdades e opressões no interior da universidade Logo falar sobre o racismo e o machismo em seu cotidiano tornase uma forma de resistência em um espaço que não foi destinado a po pulação mais empobrecida e negra Além desse seminário já no ano de 2018 logo após a execução de Marielle Franco e do motorista Anderson a saber que ela era mulher mãe negra e cria da maré defensora dos Direitos Humanos e vereadora do Rio de Janeiro foi realizado no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas ICSA em conjunto com o Departamento de Eco nomia Doméstica professores assistentes sociais e o NUPESS uma in tervenção política artística e cultural para se debater essa execução e Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 289 sua repercussão Foi uma tarde emocionante para todos que pautamos a questão racial de gênero e classe assim como a defesa dos Direitos Humanos Durante o primeiro semestre letivo de 2018 o NUPESS adotou a estratégia de organizar eventos em formato de Cinedebate sendo uma atividade onde os discentes participantes do núcleo de pesquisa organizavam e reproduziam documentários de cunho políticosocial para que fossem debatidos e refletidos após a exibição por alunos e alunas de outros cursos da Universidade As atividades aconteceram no auditório Paulo Freire localizado no Instituto de Ciências Sociais Aplicadas ICSA e curiosamente para a exibição dos documentários e a realização dos debates o público negro se fazia presente em tota lidade apresentandose com ânimos vibrantes já que refletir o eixo raçaetniaclasse ainda é uma conquista recente no âmbito das discus sões acadêmicas O cinedebate foi inicialmente planejado para acontecer em modo recorrente mas por desventuras e tensionamentos da própria realida de de um curso em construção foram exibidos apenas três curtasme tragens O primeiro deles foi o documentário Eu não sou seu negro indicado ao Oscar de melhor documentário foi escolhido a dedo para iniciar os outros que sucederiam A sua história conta as trajetórias de três líderes e mártires políticos pelos direitos civis nos Estados Unidos Marthin Luther King Malcom X e Medgar Evers narrados em livro pelo autor James Baldwin que faleceu antes do término da obra A reprodução desse documentário foi o de maior visibilidade e presen ça de diversos alunos graduandos em geografia belas artes história educação física ciências sociais A sessão de debate perdurou e até ex trapolou o horário limite da reserva do auditório sendo que diversos assuntos entraram naquele circuito de conversas Para o segundo documentário do Cinedebate pensamos em al gum filme que abordasse a questão da mulher levando em conta a articulação entre raça e classe dessa forma Angela Davis foi a inspira ção para esse momento Foi exibido então o documentário biográfico Libertem Ângela Davis o qual narrou sua trajetória e posicionamen tos políticos o feminismo negro o marxismo suas angústias perante o papel das mulheres dentro dos Panteras Negras sua prisão política 290 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça e também seus conflitos pessoais e afetivos O debate após essa exibi ção tratou não só sobre o feminismo mas abordou as pautas relevan tes sobre a situação das mulheres negras seja no trabalho nos relacio namentos afetivos na organização política em movimentos sociais ou partidos políticos mas abriu um espaço importante para tratarmos da masculinidade negra no Brasil É impressionante a riqueza e o apro fundamento que o eixo raçagêneroclasse trás para todo e qualquer debate político e é intrigante e revelador o porquê a academia brasi leira como um todo se nega a aprofundarse de modo complexo no tema O terceiro Cinedebate deu luz à Vida e morte de Marsha P Johnson uma ativista negra e DragQueen dos direitos LGBTQI vete rana e linha de frente da revolta de Stonewall considerada por mui tos o pontapé inicial do movimento LGBT contemporâneo assas sinada e em seguida dada como uma morte causada por suicídio O documentário destaca os posicionamentos de Marsha as dificuldades na efetivação das investigações em torno de sua execução tendo em vista a força das autoridades e o desejo policial em arquivar o caso e a trajetória do movimento LGBTQI os conflitos existentes e sua arti culação em prol dos direitos por cidadania Essas pautas foram abor dadas sem no entanto focar na questão racial que envolvia a vida pessoal e política de Marsha Em nenhum momento foi dito que a narrativa se dava sobre um corpo negro Esse foi um fator que desen cadeou reflexões sobre as figuras das pessoas negras nos movimen tos políticos e a apropriação por movimentos brancos e burgueses os quais esquecemse das pautas raciais O NUPESS em tão pouco tempo buscou movimentar as bases das relações acadêmicas trazendo a público o que está em voga na socie dade brasileira e no cenário internacional as opressões nas relações de gênero raçaetnia e classe A universidade não está isenta da repro dução e perpetuação das opressões e das desigualdades o que torna necessário o debate e as provocações culturais teóricas e artísticas em torno do tema Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 291 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Podemos dizer que na construção das atividades os temas deba tidos nos seminários eventos ou cines debate envolveram completa mente a interseccionalidade como método de análise e intervenção da realidade O eixo raça classe e gênero se fez presente na abordagem dos temas de modo propositivo e o público atingido parecia vivenciar essas articulações das opressões onde a questão da raça aparecia com grande destaque Foram eventos que enegreceram lindamente as salas e auditórios dos Institutos de Ciências Sociais Aplicadas ICSA e o Instituo de Ciências Humanas e Sociais ICHS um grande símbolo de que a produção de pensamento pode ser disputada não só pelos fi lhos das burguesias do agronegócio das grandes empresas ou de pro fissões tradicionais de maior visibilidade e prestígio como a medicina e o direito Desta forma trazer o debate para o centro das atividades contri buiu também para ajudar na construção da identidade e do pluralismo dentro do curso de Serviço Social e também para os próprios alunos que puderam debater assuntos que atingiam diretamente suas vidas e assim dar visibilidade em através de suas falas atingindo também aqueles que não vivenciam tais opressões em suas realidades Nesse caminho buscase abrir caminhos para manter o debate em vigência e construir uma Universidade pautada na criticidade e na democrati zação dos acessos BIBLIOGRAFIA ALVES José Cláudio Souza Dos barões ao extermínio Uma histó ria da violência na Baixada Fluminense Rio de Janeiro APPH CLIO 2003 ANUNCIADA Patrícia Feminismo interseccional um conceito em construção Disponível em httpblogueirasnegrasorg20150929 feminismointerseccionalumconceitoemconstrucao Acessado em 13072018 292 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ARAUJO Bárbara Enegrecer o feminismo movimento de mulhe res negras no Brasil Disponível em httpswwwgeledesorgbrene grecerofeminismomovimentosdemulheresnegrasnobrasil Acessado em 13072018 DARDOT Pierre LAVAL Christian A Nova Razão do Mundo En saios sobre a sociedade neoliberal Estado de Sítio 1ªed São Pau lo Boitempo 2016 DAVIS Angela Mulheres Raça e Classe São Paulo Boitempo 2016 IBGE Infográficos dados gerais do município Disponível em ht tpscidadesibgegovbrpainelpainelphp Acesso em 27 out 2017 JUNIOR José Carlos do Amaral Questões contemporâneas sobre o ensino de Economia Doméstica no Brasil 61 anos depois Revista Es paço Acadêmico n 155 abril2014 Organização Internacional do Trabalho Sistema de Indicadores Mu nicipais de Trabalho Decente Disponível em httpwwwbsbilo orgsimtdestadosufRJ Acesso em 29 de out 2017 PEREIRA Melissa de Oliveira PASSOS Rachel Gouveia Luta Anti manicomial Feminismos e Interseccionalidades notas para o debate PEREIRA Melissa de Oliveira PASSOS Rachel Gouveia orgs Luta Antimanicomial e Feminismos discussões de gênero raça e classe para a Reforma Psiquiátrica Brasileira Rio de Janeiro Autografia 2017 PPP Projeto Pedagógico do Curso de Graduação em Economia Doméstica Seropédica Universidade Federal Rural do Rio de Ja neiro 2013 Disponível em httpwwwufrrjbrsocDOCSdelibe racoescepeDeliberacoes2013Delib045CEPE2013pdf Acesso em 13072018 WERNECK Jurema Mulheres Negras Um olhar sobre as lutas so ciais e as políticas públicas no Brasil Disponível em httpswww geledesorgbrmulheresnegrasumolharsobreaslutassociaise aspoliticaspublicasnobrasil Acesso em 13072018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 293 DOCUMENTÁRIOS Eu não sou seu negro Direção Raoul Peck Roteiro James Baldwin Produção Rémi Grellety Hébert Peck Baseado no manuscrito Re member This House Estados Unidos França 2016 Libertem Angela Davis Free Angela and All Political Prisoners Dire ção e roteiro Shola Lynch Estados Unidos França 2012 A morte e a vida de Marsha P Johnson Direção David France Esta dos Unidos 2017 Disponível na plataforma Netflix 294 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça SujeitasHaldol um estudo sobre o uso da camisa de força química como docilização de corpos no cárcere Patricia Carlos Magno172 Sempre me pergunto será que para o homem acorrentado antes de Pinel médico francês Philippe Pinel 17451826 as camisas de força e mais recentemente as camisas de força químicas há alguma diferença entre as camisas O que quero dizer é que não basta desacorrentar o doente e deixálo prisioneiro de um poder médico que na grande maioria das vezes segue mandamentos diabólicos das multinacionais das drogas num receitar de Haldol a seus pacientes alienados Albertina Borges da Rocha173 Resumo O trabalho destinase a discutir os dados parciais de pes quisa sobre a medicalização de corpos encarcerados no sistema peni tenciário do Estado do Rio de Janeiro que apontam para a maior in cidência do fenômeno sobre corpos de mulheres cis e trans privadas de liberdade 172 Doutoranda em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro na linha Sociedade Direitos Humanos e Arte da área de concentração Teorias Jurídicas Contemporâneas Mestre em Direito pela UERJ Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro titular da 20ª DP do NUSPEN Núcleo do Sistema Peniten ciário 173 Estas reflexões estão registradas no prólogo de sua biografia intitulada Meu Convívio com a Esquizofrenia uma história real de descoberta e superação 2012 que consiste no autorrelato de uma mulher diagnosticada com esqui zofrenia e que teve diversas vezes internada em instituições psiquiátricas num período intermitente de 17 anos A 1ª edição da obra data de 2002 e foi pu blicada sob o pseudônimo de Beta Significou importante contributo para a trajetória da reforma psiquiátrica no Brasil vez que veio a público apenas um ano depois da Lei 1021601 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 295 Este estudo se destina a refletir sobre a intersecção do controle formal punitivo com o controle exercido por intermédio de drogas psiquiá tricas em uso offlabel que sobrecarregam mais os corpos de mulheres que de homens encarcerados Em sendo o sistema de controle social macro no qual está inserido o controle penal o sistema do patriarcado a partir da noção de cativeiro de Lagarde 2005 proponho uma releitura da noção trazida pela cri minologia crítica sobre o continuum do controle sobre os corpos das mulheres para apostar na hipótese de que a maior medicalização de corpos de mulheres encarceradas se destina a uma docilização muito específica qual seja a de produzir controle sobre o desejo num ciclo retroalimentado dos cativeiros e seus espaços específicos Palavraschave medicalização sistema penitenciário sujeitasHal dol feminismos LINEAMENTOS PRELIMINARES Inspirada na expressão camisa de força química de Rocha 2012 p 1920 pretendo discutir os dados parciais de pesquisa sobre a medi calização de corpos encarcerados no sistema penitenciário do Estado do Rio de Janeiro que apontam para a maior incidência do fenômeno sobre corpos de mulheres cis e trans privadas de liberdade Compreendendo o gênero como categoria relacional ZANEL LO 2014a e com a lente proporcionada pelos feminismos interseccio nais PASSOS PEREIRA 2017 a criminologia crítica MIRAILLES 1983 e a teoria crítica em direitos humanos HERRERA 2009 serão as ferramentas que manejarei em perspectiva inter e transdiciplinar na busca das razões que motivam e justificam a medicalização AMA RANTE FREITAS 2015 proporcionalmente maior de mulheres que de homens encarcerados Como norte valhome da pesquisa participante BRANDÃO STRECK 2006 para recontextualizar as contradições de subjetivi dadeobjetividade de sujeitoobjeto de teoriaprática GABARRÓN LANDA 2006 p 99 a partir do meu campo de trabalho profissional para produzir práxis no sentido freiriano ação criadora e modifica dora da realidade 296 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Nesse diapasão ao mesmo tempo em que já atuo juridicamente na defesa das pessoas privadas de liberdade no Estado do Rio de Ja neiro enquanto defensora pública titular do Núcleo do Sistema Peni tenciário da Defensoria Pública estadual a pesquisa de doutoramento visa transformar o ativismo em laboratório para que posteriormente possa se traduzir em ação com propostas para o manejo políticoes tratégico do direito a ser utilizado enquanto mais uma ferramenta no leque de possibilidades dos processos de lutas por dignidade HER RERA 2009 O CAMPO ENTRE A PESQUISA E A MILITÂNCIA PROFISSIONAL EM BUSCA DA EFETIVIDADE DA RESOLUÇÃO SEAP N 65316 O ponto de partida para a reflexão que se propõe neste trabalho foram os dados compartilhados em reunião da qual participei enquanto defensora pública no dia 05 de outubro de 2017 DIÁRIO vol 3 Desde então se está buscando ampliar o levantamento para que atinja toda a população privada de liberdade no Estado mas as informações ainda174 não nos foram disponibilizadas Por isso as reflexões cin girseão aos dados já compartilhados pela SEAP Tratamse de dados não sensíveis uma vez que não revelam nomes ou diagnósticos mas tão somente demonstram o número total de pessoas presas para as quais é entregue medicamento de uso controlado adquirido com di nheiro público dentro de procedimento licitatório e distribuído por equipes de saúde Além disso os dados foram fornecidos em virtude do dever de transparência do gestor público e mediante atitude cola borativa com vistas à construção de diálogo interinstitucional neces sário à garantia do exercício de direitos das pessoas em estabelecimen tos penitenciários provocado pela Defensoria Pública no marco de suas funções institucionais175 174 Até o momento de redação deste texto 175 Cfe Lei Complementar n 8094 o art 4º XVII São funções institucionais da Defensoria Pública dentre outras XVII atuar nos estabelecimentos policiais penitenciários e de internação de adolescentes visando a assegurar às pessoas sob quaisquer circunstâncias o exercício pleno de seus direitos e garantias fundamentais Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 297 A reunião teve lugar no auditório do Hospital de Custódia e Tra tamento Psiquiátrico Henrique Roxo localizado em Niterói RJ e fora convocada pelo então Subsecretário de Tratamento Penitenciário da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária SEAPRJ para discutir estratégias de implementação da Resolução SEAP n 65317 A despretenciosa regulamentação da entrada de profissionais de saúde da rede de atenção psicossocial RAPS176 nos estabelecimentos prisionais e hospitalares penitenciários esconde disputas que prece deram sua construção iniciada em outubro de 2015 e que aqui se pretende revelar Refirome à tensão profunda entre os valores da se gurança vinculados à ideologia da defesa social e da saúde da pessoa presa vinculados ao direito internacional dos direitos humanos que se aprofundam quando o foco da análise é o direito à saúde das pes soas privadas de liberdade Nesse sentido a Resolução SEAP n 65317 é normativa que re sultou de um processo dinâmico de confronto de interesses que de diferentes posições de poder lutam por elevar seus anseios e valores ou seja seu entendimento das relações sociais à lei HERRERA 2009 p 107 e teve um estopim transformado em caso paradigma Refirome ao caso Bárbara abundantemente veiculado por diversos meios de comunicação177 e que trouxe à tona a falta de capacidade do sistema penitenciário de lidar com o transtorno mental dentro de seus muros 176 A RAPS ou Rede de Atenção Psicossocial foi instituída pela Portaria n 308811 do Ministério da Saúde com a finalidade de criar ampliar e articular pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental e com necessidades decorrentes do uso de crack álcool e outras drogas no âmbito do Sistema Único de Saúde SUS A portaria estabelece diretrizes objetivos gerais e específicos da RAPS assim como enumera e descreve todos os seus componentes dentre os quais para este trabalho fazse necessário destacar o componente de atenção psicossocial especializada formada pelo ponto de aten ção CAPS Centro de Atenção Psicossocial nas suas diferentes modalidades conforme previsto no art 5º II a e art 7º no qual se registra que O ponto de atenção da Rede de Atenção Psicossocial na atenção psicossocial especializada é o Centro de Atenção Psicossocial 177 Vide EXTRA online 2015 Optouse por manter o nome original e as referên cias ao caso transformado em fato notório por sua potência enquanto medida de reparação e de não repetição Bárbara é uma sobrevivente que não pode ser invisibilizada Ela traz no corpo as marcas das diversas facetas da discrimina ção de raça classe gênero reforçadas pelo transtorno mental e agravadas pela situação de maternidade Ela e sua família escolheram a postura ativista de que sua história deveria ser revelada para evitar que novas Bárbaras sofressem as mesmas violações 298 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Bárbara é uma mulher negra com transtornos mentais e diversas demandas decorrentes do uso de drogas em situação de pobreza que foi presa em situação de maternidade no marco da guerra às drogas Ela eraé usuária dos serviços de saúde mental do Município do Rio de Janeiro e quando foi presa por tráfico de entorpecentes estava sendo acompanhada A coordenadora do CAPS ao qual estava vinculada contatou a unidade penitenciária tentando visitála por diversas ve zes Mas nunca obteve êxito Como Bárbara estava abstinente e com o quadro psiquiátrico descompensado sua suposta agressividade era traduzida em indisciplina de modo que era conduzida repetidas vezes ao isolamento punição disciplinar proibida e especialmente vedada pelas Regras de Bangkok178 A hipótese era de que se Bárbara tivesse tido a chance de ser visi tada por sua equipe de referência do CAPS se tivesse sido vista como pessoa com transtornos mentais e tratada possivelmente não teria dado à luz a sua filha sozinha na cela de isolamento disciplinar Do cumento oficial de transferência da unidade penitenciária Talavera Bruce para a maternidade disponível online EXTRA 2015 registra que n Ordem 060180 Saída 11102015 às 12h A interna ficou baixada para observação dela e da RN Interna já saiu da unidade com o seu bebê ao colo e com cordão umbilical preso à genitora O caso é bastante complexo e deu azo a diversos desdobramen tos que poderiam ser analisados na dimensão individual perante o juízo criminal o fato da mulher grávida estar presa perante o juízo da infância as estratégias adotadas para o resgate da família extensa e evitar que a bebê ficasse na fila da adoção perante o juízo fazendário 178 A refência aqui é à Seção b Disciplina e sanções que complementa as regras 27 a 32 das Regras mínimas para o tratamento de reclusos sendo a redação da Regra 22 Não se aplicarão sanções de isolamento ou segregação disciplinar a mulheres gestantes nem a mulheres com filhosas ou em período de amamen tação Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 299 a responsabilidade civil do Estado e da agente pública Contudo a dimensão que nos interessa enquanto antecedente da Resolução SEAP n 65317 é a coletiva articulada estrategicamente no sentido de pro por medidas de não repetição o que o caso Bárbara pode nos ensinar enquanto memória coletiva do que nunca mais se deseja ver repetido Quais os nós estruturais se podem desatar pensando em criar condi ções de acesso ao cuidado mesmo dentro do sistema penitenciário em nítida perspectiva redutora de danos Em sendo os direitos humanos entendidos conforme a lição de Herrera Flores 2009 p 108 como a convenção terminológica e po líticojurídica a partir da qual se materializa essa vontade de encontro que induz a construir trama de relações sociais políticas econômi cas e culturais que aumentem as potencialidades humanas a Reso lução SEAP n 653 de 06 de fevereiro de 2017 foi fruto de intensa e profunda disputa para garantir que as demandas de atenção psicosso cial especializada daqueles e daquelas que estão em sofrimento psí quico em cumprimento de pena ou prisão provisória e espalhadosas nas diversas unidades penitenciárias não fossem apagadas pela justi ficativa da segurança Há insegurança maior que a produzida pelo não cuidado como o caso Bárbara exemplifica O direito a não discriminação no acesso à saúde está inserido no marco das discussões da implementação da Política Nacional de Aten ção à Saúde da Pessoa Privada de Liberdade PNAISP179 que pretende garantir a universalização do SUS também a população encarcerada Mas os desafios são muitos e para construir fluxos interinstitucionais que sejam hábeis a produzir fissuras no sistema hermético da gestão penitenciária foi convocada a reunião ponto de partida desse estudo Situada a pauta da reunião há que se dizer que o encontro envol veu a SEAP e a Defensoria Pública assim como o Observatório Na cional de de Saúde Mental e Justiça Criminal da Universidade Federal Fluminense UFF o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Estado do Rio de Janeiro MEPCT RJ e representantes da RAPS de municípios cujos usuários estão na condição de pessoas presas 179 A PNAISP foi instituída pela Portaria Interministerial do Ministério da Justiça e do Ministério da Saúde sob o n 01 em 02 de janeiro de 2014 O Estado do Rio de Janeiro aderiu formalmente à política mas até o momento da redação deste trabalho não avançou nas demais fases de sua implementação 300 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Importante destacar que a finalidade subjacente é ampliar a ar ticulação com diretores de estabelecimentos prisionais identificados como aqueles nos quais há maior incidência de pessoas com trans tornos mentais que cumprem pena privativa de liberdade ou prisão provisória Desse modo além da cúpula da SEAP estavam presentes pessoal de equipes de saúde e de segurança das unidades penitenciá rias UP nas quais a questão do transtorno mental e do sofrimento psíquico é considerada um grave problema Estou me referindo às seguintes UPs Cadeia Pública Joaquim Ferreira de Souza SEAPJF unidade feminina de regime fechado vez que destinada a mulheres presas provisórias Penitenciária Tala vera Bruce SEAPTB unidade feminina para cumprimento de pena privativa de liberdade em regime fehado mas que abriga mulheres grávidas mesmo que presas provisoriamente Presídio Evaristo de Moraes SEAPEM unidade masculina para cumprimento de pena em regime fechado na qual também ficam as mulheres transsexuais presas definitivas e provisórias que não expressem desejo de fica rem em uma unidade penitenciária feminina180 e Instituto Penal Plá cido Sá Carvalho SEAPPC unidade masculina para cumprimento de pena em regime semiaberto Dentre os diversos temas da pauta foram compartilhados os se guintes dados sobre o número de pessoas privadas de liberdade que recebem medicamentos psiquiátricos mensalmente DIÁRIO vol 3 p 1821 organizados na sequência 180 A questão do local de privação das mulheres transexuais no sistema peniten ciário fluminense está regulamentada no bojo da Resolução SEAP n 558 de 29052015 que estabelece diretrizes e normativas para o tratamento da popu lação LGBT no sistema penitenciário do Estado do Rio de Janeiro Há profundo abismo entre a previsão normativa e o asseguramento de direitos Consideran do que a análise aprofundada das incontáveis violações de direitos desse grupo em situação de vulnerabilidade extrapola os limites deste artigo limitome a fa zer referência ao Relatório Mulheres Meninas e Privação de Liberdade no Rio de Janeiro do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro criado pela Lei Estadual n 664513 Vide RIO DE JANEIRO 2016 especialmente na parte referente ao Grupo Focal com Travestis e Transexuais da SEAP Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 301 Tabela 01 Unidade PenitenciáriaUP UP regime e gênero Total de Pessoas Presas Pessoas Medicalizadas Proporção de pessoa medicalizada por total de pessoas presas SEAPJF fechadofeminino 330 115 3484 SEAPTB fechadofeminino 433 150 3464 SEAPEM fechadomasculino e mulheres trans 2500 100 4 SEAPPC semiaberto masculino 3600 45 125 A primeira conclusão é as mulheres encarceradas são propor cionalmente mais medicalizadas que os homens na mesma situação E na UP SEAPEM temse o aprisionamento do grupo de mulheres trans Insta esclarecer que quando falo em pessoa medicalizada refiro me a quem faz uso de medicamentos controlados classificados por Amarante e Freitas 2015 em i antipsicóticos ii antidepressivos iii ansiolíticos ou tranquilizantes ou hipnóticos Todos os três tipos são de drogas psiquiátricas não necessariamente prescritas por um psiquiatra mas apenas os antipsicóticos indicam que a pessoa que os recebe pode ter tido um diagnóstico de transtorno mental Os an tidepressivos e ansiolíticos tem relação com a pessoa em sofrimento psíquico Mesmo que o paradigma sintomatológico seja questionável assim como os métodos diagnósticos fato é que os números trazi dos na Tabela 01 podem ser considerados a parte visível da questão a guiar minimamente a atenção do gestor público para a questão do sofrimento psíquico dentro dos muros do sistema penitenciário e que não se localiza nos manicômios judiciários Para ser possível refletir comparativamente sobre a medicaliza ção de presos e presas insta buscar dados sobre a população não apri sionada Nesse ponto utilizo os dados do Ministério da Saúde que levantou que 3 da população geral brasileira adulta sofre com trans tornos mentais graves e persistentes SANTOS SIQUEIRA 2010 p 239 Nesse sentido impõese a pergunta por quê Por que as mulhe res presas são hipermedicalizadas em relação aos homens presos 302 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça SUJEITASHALDOL DA MEDICALIZAÇÃO DA VIDA AO CONTROLE FORMAL PUNITIVO Paulo Amarante e Fernando Freitas 2015 estudam as relações en tre a medicalização da vida ou da existência enquanto expressão da aliança entre a medicina e a indústria farmacológica que ocorre so bretudo a partir da década de 1950 e tratam da epidemia das drogas psiquiátricas como um dos aspectos mais relevantes da medicalização do homem contemporâneo p 33 Importante estabelecer a diferença entre o uso de medicamentos e a medicalização da vida Esta última é o fenômeno moderno polis sêmico que para Amarante e Freitas 2015 consiste na possibilidade de tudo ser patologizado na medida em que não faltam motivos para o sofrimento Assim sendo o uso de medicamentos é indicador da expansão da medicalização do cotidiano mas este último fenômeno é muito mais amplo e tem relação direta com a jocosamente chamada de santa aliança Ibid p 15 que ocorre especialmente nos tempos do pósguerra Preciado 2008 p 2546 também reflete sobre o incremento da indústria farmacêutica no pós 1945 desnudando a relação entre as indústrias automobilísticas e de armamento que passaram a investir nas indústrias bioquímicas eletrônicas informáticas e da comunica ção como novos suportes do capitalismo industrial e como este vai sofrendo adaptações e modificações até a manifestação do novo tipo de capitalismo pósfordista e psicotrópico muito fulcrado na indústria farmacêutica e fruto do investimento pesado na investigação científica sobre o sexo e a sexualidade A mutação do capitalismo testemunhada pela humanidade não só transforma o sexo em gestão política da vida biopolítica no sentido foucaultiano como suas dinâmicas de gestão consubstanciam um tecnocapitalismo avançado que visibiliza novas sexualidades A nova economia do mundo continua a autora não funciona de modo desconectado da produção toneladas de novas substâncias legalmente comercializadas que dominam metabolismos e produzem subjetividades novas controladas por drogas lícitas que nomina de sujeitos Prozac sujeitos ritalina sujeitos cortisona sujeitos Via gra mesmo em tempos de vigência de severa política de guerra às Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 303 drogas cuja função não declarada mas real é o controle de corpos e de subjetividades Nesse sentido Preciado 2008 p 32 constrói a noção de famacopornopoder a partir das referências aos processos farmacopornográficos nos seguintes moldes Estes são alguns dos índices de aparição de um regime pósindus trial global e midiático que chamarei a partir de agora tomando como referência os processos de governo biomolecular fármaco e semióticotécnico porno da subjetividade sexual dos que a pílula e Playboy são paradigmáticos farmacopornográfico Se bem que suas linhas de força fundem raízes na sociedade científica e colonial do século XIX seus vetores econômicos não se fizeram visíveis até a Segunda Guerra Mundial ocultos em princípio sob a economia for dista e expostos unicamente a partir de seu progressivo desmorona mento nos anos sessenta trad livre Nesse ponto para melhor compreender Preciado valhome da lição de Lagarde 2005 sobre a sexualidade Em primeiro lugar há que se desafiar a noção ocidental majoritária que tende a produzir a equivocada confusão entre sexualidade e erotismo A sexualidade é fundamento da política e ocupa um espaço fundamental na vida dos particulares porque impões destinos aos sujeitos sendo elemento organizaro e núcleo de identidade de grupos que se constituem em torno de si por gêneros e autoidentidade A sexualidade é histórica é cultural e está nas relações sociais econômicas nas crenças nas ins tituições Ela engloba o erotismo mas a ele não se resume porque abrange todos os aspectos da biopolítica vez que tudo passa pelo cor po Ibid p 194 e nesse sentido é gendrado A sexualidade e o gênero se articulam de modo profundo Para Lagarde gênero é o conjunto de qualiades biológicas físicas econô micas sociais psicológicas eróticas políticas e culturais designadas aos indivíduos segundo seu sexo Ibid p 183 Nesse sentido podese dizer que o investimento da indústria far macêutica em sexo e sexualidade para produzir a medicalização da vida está inserido na lógica do exercício biopolítico de controle sobre os corpos 304 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça O tema da medicalização no marco da criminologia crítica des de a década de 80 tem sido abordado dentro do controle informal pela psiquiatria assim como enquanto mecanismo de sustentação do controle formal no cárcere Neste último caso sua finalidade é pro fundamente disciplinar seja para manter a pessoa presa em situação de aceitação alienada da disciplina seja para modificar brutalmente sua atitude de rebeldia MIRALLES 1983 p 112 A medicalização possibilita e perpetua a imposição e submeti mento ao regime em que foi colocada a pessoa A ideia de modificação de atitudes de rebeldia e a produção de adaptação das pessoas priva das de liberdade ao mundo institucional foi nominada por Pavarini 2006 p 211 de mutação antropológica e inserese no controle dis ciplinar tão trabalhado na obra de Foucault 1995 Aplicando as lições de Preciado e Miralles arrisco chamar de sujeitosas Haldol as pessoas encarceradas medicalizadas no Rio de Janeiro especialmente porque a prescrição e administração de psico fármacos calmantes e soníferos é praticamente a mesma para todas elas E também porque é este o nome do medicamento nominado de SOS para a contenção química de crises DAVIS 2003 p 6667 Almeida 2016 em pesquisa etnográfica realizada dentro de uni dades penitenciárias e socioeducativas estuda a medicalização como forma de controle da mente e reflete sobre a dimensão do consenti mento das jovens e mulheres que buscam o medicamento enquanto marca específica da exclusão desta forma de controle que é exerci da para resolver problemas de dormir de tristeza de choro conter impulsos agressivos e permitir a convivência dentro dos espaços de privação Ela registra que o uso de medicamentos aparece com natu ralidade no discurso das mulheres e na forma como circula entre elas Ibid p 57 A finalidade disciplinar das drogas psiquiátricas na população carcerária é definida conforme lição de Amarante e Freitas 2015 p 105111 de uso offlabel qual seja o uso de drogas farmacêuticas para uma indicação não aprovada um grupo etário não aprovado uma dosagem não aprovada e ou uma forma de administração não aprovada Apesar da não aprovação seu uso é geralmente legal sendo portanto prescrito conforme o juízo médico Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 305 Se disciplina FOUCAULT 1995 p 124130 visa a produção de corpos dóceis isto é aqueles facilmente submetidos que podem ser utilizados ou transformados ou aperfeiçoados nossa questão central pode ser colocada da seguinte forma por que o uso offlabel de medi camentos de uso controlado em relação à população encarcerada recai com maior intensidade sobre a docilização de corpos de mulheres cis e trans na seara do controle formal punitivo Quando a pessoa presa é uma mulher cis ou trans o conti nuum entre o controle informal família escola trabalho psiquiatria e formal cárcere sobre os corpos de mulheres é destacado enquanto dimensão ideológica do sistema penal ANDRADE 2012 p 133 a serviço do patriarcado Estudando o controle médico e o controle penal Passos et al 2017 p 273 respondem sobre as mulheres em sofrimento mental autoras de delito O entrelaçar entre os discursos da criminologia e da psiquiatria produz efeitos concretos na realidade das pessoas em sofrimen to mental autoras de delito Ao respaldar a ação repressiva do Estado seus dispositivos agem para controlar e segregar este público Neste contexto é ainda mais grave a condição das mu lheres em sofrimento mental que cometem delito Sua invisibi lidade repercute na ausência de políticas de cuidado voltadas para suas necessidades na medicalização de seus corpos e na violação de seus direitos O paradoxo da noção de cuidado mesclada com a de disciplina penitenciária que produz disciplinamento pela medicalização com a conivência dos serviços de assistência e com a cegueira das institui ções do sistema de justiça Em relação às mulheres presas está re produzindo e aprofundando a lógica do patriarcalismo A medicalização do corpo feminino é tema de estudo de Elisabeth Vieira 2002 Ela investigou como se deu a objetificação do corpo fe minino pela medicina que ao se apoderar de determinados temas os reduz à sua condição biológica Destaca que a partir do século XVIII a medicina forjou uma nova estrutura social e deu azo ao projeto de higienização da sociedade e ao papel que os médicos passaram a 306 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça desempenhar no projeto disciplinador dos corpos com muita inter venção e controle A autora aponta que O modelo médico em relação ao corpo feminino que se estabe lece então concordante com as normas sociais vigentes impli ca que as mulheres só poderiam atingir uma vida saudável se estivessem sexualmente ligadas em matrimônio com finalidade reprodutiva Relações sexuais extraconjugais eram associadas a distúrbios assim como a masturbação e a prostituição que so bretudo significavam doenças Turner 1987 VIEIRA 2002 p 26 Na visão antropológica de Lagarde 2005 todas as mulheres es tão cativas pelo só fato de serem mulheres em um mundo patriarcal Ela constrói a categoria síntese cativeiros sociais para identificar os preponderantes papéis sociais das mulheres que explicita sob a epí grafe situação social das mulheres sendo esta definida como o con junto de característica que tem as mulheres a partir de sua condição genérica em circunstâncias históricas particulares Ibid p 36 Nesse sentido cativeiro é categoria antropológica que sintetiza o fato cultural definidor do estado das mulheres no mundo patriarcal O cativeiro define politicamente as mulheres se concretiza na relação específica das mulheres com o poder e se caracteriza pela privação de liberdade pela opressão As mulheres estão cativas porque tem sido privadas de autonomia vi tal de independência de viver do governo sobre si mesmas da possi bilidade de escolher e da capacidade de decidir sobre os fatos funda mentais de suas vidas e do mundo O cativeiro se caracteriza sobre as mulheres por sua subordinação ao poder sua dependência vital o governo e ocupação de suas vidas pe las instituições e pelos particulares os outros e pela obrigação de cumprir com o dever ser feminino de seu grupo de adscrição con cretizado em vidas estereotipadas sem alternativas Ibid p 3637 trad livre Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 307 Assim se liberdade é protagonismo as mulheres são cativas Mas se pergunta Lagarde cativas de quais cativeiros Para dar conta da resposta cria uma tipologia antropológica que visa a agrupar as mu lheres na sociedade e na cultura erigida a partir da relação entre a condição da mulher e as situações de vida das mulheres Os tipos cativeiros das mulheres são mãesposas freiras putas presas e loucas Conformamse a partir de sua sexualidade procria dora mãesposas ou tabuada putas ou negada freiras e da relação de dependência vital de ser para os outros Ainda na modalidade das transgressões da sexualidade da feminilidade e da sua relação com os outros produzemse as presas cativeiro que desempenha impor tância exemplar e pedagógica para a manutenção do poder patriarcal e as loucas com o mesmo sentido de reforçar a submissão e deslegiti mar a autonomia das mulheres posto que entende a loucura como um dos espaços culturais que decorrem da transgressão Lagarde Ibid p 40 fala em uma loucura genérica de todas as mulheres e na prisão genérica de todas porque diz a autora a casa é o presídio encerro privação de liberdade para as mulheres em seu próprio espaço vital trad livre E nesse ponto quero refletir com mais vagar A partir de Lagarde quero construir pontes com as análises mé dicas de Vieira psicológicas de Zanello e com a criminologia crítica Andrade e Mirailles todas elas alicerçadas nessa noção central de cativeiro e os espaços físicos e simbólicos que eles encerram sendo certo que Casa convento bordel prisão e manicômio são espaços de ca tiveiros específicos das mulheres A sociedade e a cultura com pulsivamente fazem a cada mulher ocupar um destes espaços e em ocasiões mais de um por vez LAGARDE 2005 p 40 O espaço do cativeiro mãesposas é a casa Das freiras o convento Das putas o bordel 308 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Na transgressão da feminilidade o cativeiro se torna exemplar e com nítido caráter disciplinar Enquanto presas se lhes reserva o espaço do cárcere e enquanto loucas o do manicômio Interessanos destacar que Lagarde considera a possibilidade de interpenetração dos espaços e os articula de modo concreto e simbó lico Quando afirma que a casa é presídio estabelece diálogo direto com a criminologia crítica que trata do continuum entre a primeira instância do controle informal não punitivo e as demais estruturas e instituições do patriarcado escola convento bordel prisão ou mani cômio Se autoras de delito e loucas o manicômio judiciário Retomando as evidências encontradas por Vieira 2002 em sua pesquisa que investigou os temas da educação das mulheres sua na tureza reprodutora sexualidade e menstruação podese dizer que elas demonstram de que maneira o poder médico produz reforça e ali menta os cativeiros das mulheres Por um lado exalta o cativeiro da mãesposa e por outro cria referências patológicas para a negação do modelo maternal relacionando loucura e doença como atribuições naturais da condição feminina VIEIRA 2002 p 44 conformando um restrito caminho de normalidade circundado de patologias Valeska Zanello 2014a propõe uma releitura gendrada da epide miologia da semiologia e da interpretação diagnóstica após profun do estudo em prontúarios médicos de pacientes dos dois principais hospitais psquiátricos do Distrito Federal Dentre suas conclusões se destaca o diagnóstico como elemento revelador do processo de medi calização das mazelas sociais porque a maioria da população aten dida era mulher negra semianalfabeta e com profissões invisíveis ou desqualificadas A pesquisa dialoga com a tese de Lagarde quanto à generificação e generalização da loucura das mulheres Assim o uso de medicamentos psiquiátricos por mulheres tem como finalidade docilizálas para que possam suportar seus papéis sociais ou com Lagarde aprisionálas em cativeiros duplos ou tri plos interpenetrados retroalimentados e autoreforçados Quanto a este ponto a antropóloga mexicana destaca que as mulheres enlou quecem de tão mulheres que são e enlouquecem também porque não podem plenamente sêlo ou para não sêlo LAGARDE 2005 p 40 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 309 Este ponto é muito importante e talvez nele se explique por que as mulheres queimaram os seus sutiãs mas não conseguem queimar as camisas de força químicas que amarram ainda mais fortemente as mulheres negras e em situação de pobreza maioria dentre as encarce radas presas CONSIDERAÇÕES FINAIS Este estudo se destinou a refletir sobre a intersecção do controle formal punitivo com o controle exercido por intermédio de drogas psiquiá tricas que sobrecarregam mais os corpos de mulheres que de homens encarcerados Partiuse da constatação nas unidades penitenciários do Rio de Janeiro cujos dados foram levantados que as mulheres pre sas são mais medicalizadas que os homens Em sendo o sistema de controle social macro no qual está inse rido o controle penal o sistema do patriarcado a partir da noção de cativeiro de Lagarde 2005 proponho uma releitura da noção trazida pela criminologia crítica sobre o continuum do controle sobre os cor pos das mulheres para apostar na hipótese de que a maior medicaliza ção de corpos de mulheres encarceradas se destina a uma docilização muito específica qual seja a de produzir controle sobre o desejo num ciclo retroalimentado dos cativeiros e seus espaços específicos Em um primeiro momento esse espaço será a casa Depois con tinuará sendo a casa espaço de reprodução social do cativeiro mães posas mas também pode ser o convento para as freiras ou o bordel para as putas Se transgressoras as mulheres sofrem controle con tinuado mais ainda não penal da psiquiatria nos manicômios Mas se forem selecionadas pelo controle formal punitivo seu espaço será a prisão Entretanto os cativeiros se interpenetram e são circulares assim como os espaços nos quais se desenvolvem Isso significa dizer que se a casa é o primeiro espaço é também ao final e ciclicamente o espaço para o qual confluem todos os demais uma vez que a casa o lar o locus da primeira instância do controle informal não punitivo encerra todas as possibilidades de prisão 310 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça As mulheres não só estão submetidas ao poder como também o exercem quando conferem por sua sujeição poder e existência ao dominador Nesse sentido se toda mulher é cativa porque lhe falta liberdade o feminismo é plano de ação política hábil a produzir fis suras no sistema patriarcal a fim de que as mulheres possam romper seus cativeiros e afirmar seu protagonismo enquanto sujeitas sociais na história e enquanto sujeitas particulares na sociedade e na cultura A grande questão é que todas as mudanças de gênero são relacio nais E para produzirem a revisão e reprogramação da sociedade não se pode pensar em qualquer feminismo mas nos feminismos dialógi cos interseccionais que consideram todas as dimensões de opressão de gênero raça classe DAVIS 2016 e PASSOS PEREIRA 2017 no sentido de que produzindo luta em prol da liberdade das mulheres negras e pobres se está pondo em foco as estruturas sociais que mais alicerçam a opressão patriarcal e com isso se estará apostando numa luta que tem potência de produzir mudanças sociais Repetindo La garde 2005 p 195 Tem surgido a vontade histórica de superar a opressão sexual Fazêlo inaugurará uma nova era histórica trad li vre E onde estão as mulheres negras e pobres em pior situação de opressão Respondo nos cárceres e manicômios Assim lutar por uma sociedade sem manicômios181 é lutar por uma sociedade livre de opressões e nesse sentido é uma luta feminista na qual este estudo está inscrito Com letras escarlates REFERÊNCIAS ALMEIDA Sandra Maciel de Vulnerabilidade Socioeducacional das Mulheres Privadas de Liberdade medicalização e o controle dos cor pos In FALCADE Ires Aparecida Mulheres Invisíveis por entre muros e grades Curitiba JM Editora e Livraria Jurídica 2016 ANDRADE Ana Paula Müller de Entrelaçamentos Possíveis entre Gênero e Saúde Mental In ZANELLO Valeska ANDRADE Ana 181 Lema do Movimento da Luta Antimanicomial inscrito na Carta de Bauru 1987 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 311 Paula Müller de Saúde Mental e Gênero diálogos práticas e inter disciplinaridade Curitiba Appris 2014 AMARANTE Paulo FREITAS Fernando Medicalização em Psi quiatria Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2015 ANDRADE Vera Regina P de Pelas Mãos da Criminologia o con trole penal para além da desilusão Rio de Janeiro Revan ICC 2012 BRANDÃO Carlos Rodrigues STRECK Danilo Romeu org Pes quisa Participante o saber da partilha AparecidaSP Ed Ideias e Le tras 2006 BRASIL Conselho Nacional de Justiça Departamento de Monitora mento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Execução de Medidas Socioeducativas Regras de Bankgkok Regras das Na ções Unidas para o Tratamento de Mulheres Presas e Medidas Não Privativas de Liberdade Para Mulheres Infratoras Brasilia CNJ 2016 DAVIS Angela Are Prisions Obsolete New York Seven Stories Press 2003 Mulheres Raça e Classe Trad Heci Regina Candiani São Paulo Boitempo 2016 EXTRA Família de presa que deu à luz na solitária só soube do parto 15 dias depois Online 2015 Disponível em httpsextra globocomcasosdepoliciafamiliadepresaquedeuluznasolita riasosoubedoparto15diasdepois17899691html Acesso em 30 jul2018 Após presa dar à luz em isolamento de penitenciá ria Justiça determina afastamento de diretora e subdiretora da unidade Online 2015 Disponível em httpsextraglobocom casosdepoliciaapospresadarluzemisolamentodepenitencia riajusticadeterminaafastamentodediretorasubdiretoradauni dade17885125html Acesso em 30 jul2018 FOUCAULT Michel História da Loucura na idade clássica Tradu ção de José Teixeira Coelho Neto São Paulo Perspectiva 2014 Microfísica do Poder Organização e tradução de Ro berto Machado 28ª reeimpressão Rio de Janeiro Edições Graal 1979 312 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Vigiar e Punir nascimento da prisão Tradução de Ra quel Ramalhete 12ª ed Petrópolis Vozes 1995 GABARRÓN Luis HERNANDEZ LANDA Libertad O que é a pes quisa participante In BRANDÃO Carlos Rodrigues STRECK Da nilo Romeu org Pesquisa Participante o saber da partilha Apare cidaSP Ed Ideias e Letras 2006 p 93121 GALLARDO Helio Sobre el fundamento de los derechos humanos Revista de Filosofia da Universidad Costa Rica XLV 115116 ma yodiciembre 2007 p 924 HERRERA FLORES Joaquín A Reinvenção dos Direitos Humanos Tradução de Carlos Roberto Diogo Garcia Antônio Henrique Gra ciano Suxberger Jefferson Aparcido Dias Florianópolis Fundação Boiteux 2009 LAGARDE Y DE LOS RIOS Marcela Los Cautiverios de las muje res madresposas monjas putas presas y locas 4ª ed México Uni versidad Nacional Autónoma de México 2005 MAGNO Patricia Carlos Mulheres Medida de Segurança e a ceguei ra do sistema de justiça o papel das Defensorias Públicas p 185202 In PEREIRA Melissa de Oliveira PASSOS Rachel Gouveia org Luta Antimanicomial e Feminismos discussões de gênero raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira Rio de Janeiro Autogra fia 2017 MAGNO Patricia Carlos BOITEUX Luciana Quando a luta antima nicomial mira no Manicômio Judiciário e produz desencarceramento uma análise dos arranjos institucionais provocados pela Defensoria Pública no campo da política pública penitenciária e de saúde mental p 574604 Revista Brasileira de Política Públicas dossiê Políticas Públicas e Boas Práticas para o Sistema Penal 2018 vol 8 1 MIRALLES Teresa El Control Formal la cárcel Cap XIV p 95147 In BERGALLI Roberto RAMÍREZ Juan Bustos GONZÁLEZ Z Carlos MIRALLES Teresa DE SOLA Ángel VILADAS Carles El Pensamiento Criminológico Vol II Estado y Control Colombia Editorial Themis Libreria 1983 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 313 PASSOS Rachel Gouveia CORREIA Ludmila Cerqueira ALMEIDA Olívia Maria de Controle Médico e Controle Penal violações de direi tos humanos de mulheres em sofrimento mental autoras de delito p 273283 In CORREIA Ludmila Cerqueira PASSOS Rachel Gouveia org Dimensão JurídicoPolítica da Reforma Psiquiátrica Brasi leira limites e possibilidades Rio de Janeiro Gramma 2017 PASSOS Rachel Gouveia PEREIRA Melissa de Oliveira Luta Anti manicomial Feminismos e Interseccionalidades notas para o debate In PEREIRA Melissa de Oliveira PASSOS Rachel Gouveia org Luta Antimanicomial e Feminismos discussões de gênero raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira Rio de Janeiro Editora Autografia 2017 PAVARINI Massimo MELOSSI Dario Cárcere e Fábrica as origens do sistema penitenciário séculos XVI XIX Trad Prof Dr Juarez Cirino dos Santos Rio de Janeiro Revan ICC 2006 PRECIADO Beatriz Testoyonqui Madrid Editorial Espasa Calpe 2008 RIO DE JANEIRO Estado Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro Relatório Temático do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura do Rio de Janeiro Mulheres Meninas e Privação de Liberdade no Rio de Janeiro 2016 Secretaria de Estado de Administração Penitenciária Resolução nº 653 de 06 de fevereiro de 2017 Disponível em http wwwrjgovbrcdocumentlibrarygetfileuuidd960570ae 7864e2abbfbb0841fda777egroupId132926 Acesso em 31 jan 2018 Resolução nº 558 de 29 de maio de 2015 Disponível em httpwwwsilepplanejamentorjgovbrresolucao seapn5582905201htm Acesso em 30 jul 2018 ROCHA Albertina Borges da Meu convívio com a esquizofrenia uma história real de descoberta e superação Rio de Janeiro Vieira Lent 2012 SANTOS Élem Guimarães dos SIQUEIRA Marluce Miguel de Pre valência dos transtornos mentais na população adulta brasileira uma revisão sistemática de 1997 a 2009 p 238246 Jornal Brasileiro de Psiquiatria 2010 vol 59 3 314 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça SZASZ Thomas A Fabricação da Loucura um estudo comparativo entre a inquisição e o movimento de saúde mental 2ª ed Tradução de Dante Moreira Leite Rio de Janeiro Zahar 1978 O Mito da Doença Mental fundamentos de uma teoria da conduta pessoal 2ª ed Tradução de Irley Franco e Carlos Roberto Oliveira São Paulo Linoart 1974 VIEIRA Elisabeth Meloni A Medicalização do Corpo Feminino Rio de Janeiro Editora FIOCRUZ 2002 ZANELLO Valeska Saúde Mental Gênero e Interseccionalidades In PEREIRA Melissa de Oliveira PASSOS Rachel Gouveia org Luta Antimanicomial e Feminismos discussões de gênero raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira Rio de Janeiro Editora Auto grafia 2017 A Saúde Mental sob o viés do gênero uma releitura gen drada da epidemiologia da semiologia e da interpretação diagnósti ca In ZANELLO Valeska ANDRADE Ana Paula Müller de org Saúde Mental e Gênero diálogos práticas e interdisciplinaridade Curitiba Appris 2014a ZANELLO Valeska NASCIMENTO Wanderson Flor do Uma His tória do Silêncio sobre gênero e loucura Parte I Sobre o que não se fala em uma arqueologia do silêncio as Mulheres em Hisória da Loucura In ZANELLO Valeska ANDRADE Ana Paula Müller de org Saúde Mental e Gênero diálogos práticas e interdisciplinari dade Curitiba Appris 2014b Uma História do Silêncio sobre gênero e loucura Par te II Sobre a Loucura e as Épocas e as Mulheres para uma escuta do não dito e do não pensado In ZANELLO Valeska ANDRADE Ana Paula Müller de org Saúde Mental e Gênero diálogos práticas e interdisciplinaridade Curitiba Appris 2014c 315 DIÁLOGOS ENODADOS PARA UMA APROXIMAÇÃO ENTRE SAÚDE MENTAL E MULHERES Melissa de Oliveira Pereira182 Este texto apresenta algumas reflexões referentes ao debate sobre saú de mental e mulheres a partir de uma leitura que se volte para plurali dades opressões e resistências e que não tome como ponto de partida uma discussão universal do que seria mulher Fazemse aqui presentes alguns apontamentos destinados à dis cussão sobre o GT Saber Psiquiátrico Gênero e Privação de Liber dade do Seminário Gênero Feminismos e Sistema de Justiça Além disso sintetiza alguns pontos que vêm sendo trabalhados pela autora em outros textos e que puderam ser amplamente beneficiados pela orientação de doutorado do Professor Paulo Amarante Gênero categoria amplamente discutida nas últimas décadas por teóricas do feminismo e dos estudos referentes possibilita caminhos conceituais e teóricos diversos Esta é uma das searas que convocam a aprofundamentos especialmente no campo da saúde mental e que ultrapassam uma especificidade mas nos apontam para as complexi dades do debate Tal inclinação pode ser um diferencial não apenas para um olhar sobre a constituição da Psiquiatria das psicologias e da Psicanálise mas também para as terapêuticas as legislações os siste mas de justiça os serviços de saúde de assistência e para a relação da sociedade com as pessoas consideradas com transtornos mentais ou com demandas decorrentes do uso de álcool e outras drogas183 182 Melissa é Doutoranda em Saúde Pública pela ENSPFiocruz 183 Alguns estudos vêm se dedicando ao tema no Brasil como as coletâneas Saúde Mental e Gênero organizado por Valeska Zanello e Ana Paula Müller Gênero Saúde e Aflição abordagens antropológicas organizado por Sônia Maluf e Carmen Tornquist e Luta Antimanicomial e Feminismos discussões 316 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Aqui faremos um caminho interligando gênero classe e raça etnia tomandoas como contradições estruturantes da sociedade tal qual propõe Saffioti 2005 A fim de enriquecer nossas reflexões so bre o campo da saúde mental e as mulheres beneficiaremonos das contribuições de Franco Basaglia e de algumas autoras brasileiras que debatem patologização e psiquiatrização de mulheres EM QUE ENODAMENTOS SE ENCONTRAM AS MULHERES Para Saffioti 2015 gênero raça e classeetnia são eixos estruturan tes da sociedade capitalista e dos processos de dominação e explo ração A autora desenvolve a tese de que classe social gênero e raça etnia apontam para o que metaforicamente ilustra como um nó que contém uma condensação uma exacerbação uma potenciação de contradições p 83 merecendo cada uma destas um tratamento específico a partir da consideração das ebulições e das instabilidades dos processos sociais Gênero classe raçaetnia a partir da compreensão de um enoda mento nos apontam para um sujeito múltiplo não homogêneo mas que se relaciona diretamente com o seu momento histórico a partir do qual se acirram contradições e possíveis proeminências de uma faceta sobre a outra Fundamental para a compreensão da proposta da autora é entender que não se aponta aqui para uma soma de opres sões ou para aglutinações de categorias eou lugares sociais mas de determinações O nó formado por estas três contradições apresenta uma qualidade distinta das determinações que o integram Não se trata de somar racismo gênero classe social mas de perce ber a realidade compósita e nova que resulta desta fusão não existem apenas discriminações quantitativas mas também qualitativas Uma pessoa não é discriminada por ser mulher trabalhadora e negra Efetivamente uma mulher não é dupla de gênero raça e classe para Reforma Psiquiátrica Brasileira organizado por Melissa de Oliveira Pereira e Rachel Gouveia Passos Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 317 mente discriminada porque além de mulher é ainda um tra balhadora assalariada Não se trata de variáveis quantitativas mensuráveis mas sim de determinações de qualidades que tornam a situação destas mulheres muito mais complexas Sa ffioti 2015 p122123 Isso porque não seria possível falar de processos de dominação em separado aos de exploração como um dualismo exploração capi talista dominação patriarcal eou racista A autora inclusive prefere utilizar dominaçãoexploração e exploraçãodominação em alternân cia para evitar a compreensão da precedência de um processo sobre o outro Não se trata de dois processos mas de faces do mesmo fusão que a metáfora do nó seria tenta expressar Dessa maneira é importante se pensar o nó como um nó frouxo que permite uma certa mobilidade para cada um dos seus componen tes Não por estes atuarem independentemente dos demais mas por gênero raçaetnia e classe terem cada qual uma dinâmica especial o que seria próprio da lógica do nó Essa motilidade só pode ser enten dida a partir das contradições de cada momento histórico O enovelamento das categorias sociais está imersa na preservação do status quo o que nos convoca a um olhar não apenas para as hie rarquias estruturantes ou interesses conflitantes mas necessariamente a contradições SAFFIOTI 2005 Para Saffitoi 2015 se patriarcado e racismo preexistiram ao ca pitalismo184 este último se apropriou dos mesmos e assim continua operando de modo que as condições de mulheres em especial se con siderarmos raçaetnia se acirram quanto mais sofisticado se torna o método de exploração capitalista ganhando materialidade nos corpos daquelas sobre quem recai Quando falamos de mulheres e saúde mental tal afirmação ganha concretude através das mulheres internadas em manicômios comuni 184 Esta discussão envolve uma série de debates conceituais e históricos que não cabem neste texto mas que sem dúvida somam de maneira importante à lei tura sobre o enovelamento de gênero classe e raçaetnia Para tal remetemos às autoras tanto o livro Gênero Patriarcado e Violência de Heleieth Saffioti quanto a O Calibã e as Bruxas de Silvia Fredericci 318 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça dades terapêuticas e mesmo aquelas que têm suas vidas atravessadas pelo sequestro de seus bebês pelo Estado por serem consideradas lou cas ou usuárias de drogas185 São em sua maioria mulheres pobres e negras a quem o Estado não chega pelas políticas públicas de assistência saúde educação tra balho cultura e lazer mas a quem rapidamente apresenta seus braços através de instituições asilares sejam psiquiátricas ou carcerárias Há aqui um importante enovelamento que faz com que a situação dessas mulheres seja muito particular na sociedade capitalista somandose ao nó estruturante que envolve gênero raça classeetnia o lugar so cial de loucas e a manicomialização que habita suas vidas O QUE CHAMAMOS MANICÔMIO Basaglia 2010 a nos convoca a um olhar crítico sobre a ideologia psi quiátrica enquanto uma ciência dogmática que produz estigma186 e exclusão Em diversos momentos de sua obra referese à figura do doente mental como aquela que nos remete a uma sociedade que ten de a eliminar o que perturba sua expansão sem levar em conta a res ponsabilidade que também lhe cabe nesses processos p47 Ao traduzir aquilo que foge à norma e que deve ser mantido à distância a doença mental catalogada e definitivamente marcada como perigosa seria uma das sínteses das contradições da sociedade capitalista e do momento histórico em questão Garantida a doença mental e seu aparato asilar carcerário próprio que Basaglia 2010a chega a nomear de sistema carcerário o sistema social permaneceria intacto enquanto o doente mental poderia ser reintegrado pela Psi quiatria Essa construção do autor ganha contornos relevantes se nos di rigirmos à constituição da doença mental e aos espaços asilares psi quiátricos na relação com as mulheres Veremos que padrões médicos 185 Sobre as mulheres que tiveram seus filhos sequestrados pelo Estado podemos acompanhar o grupo Mães Órfãs que vem tentando visibilizar estas mulheres 186 A noção de estigma é trabalhada por Basaglia a luz das produções de Erving Goffman especialmente através da obra Estigma notas sobre a manipulação da identidade deteriorada Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 319 atravessados por valores sociais de cada época se fazem presente de ma neira direta sobre as definições de terapêuticas internações e mesmo os destinos de possíveis carreiras psiquiátricas BASAGIA 2010 a Ao resgatarmos estudos clássicos sobre mulheres e hospitais psi quiátricos não é demorado nos depararmos com mulheres permane cendo nos hospitais pelos mesmos motivos que justificavam a alta de homens Estes achados aparecem em estudos sobre prontuários do século XIX e início do XX mas se repetem salvo as especificidades próprias nos prontuários pesquisados já no início do século XXI desde feiúra ao que é considerado uma hiperexcitação o fato de serem militantes lésbicas não terem desejo de terem filhos desape go das tarefas domésticas falta de confiança no marido entre outros CUNHA 1989 FACHINETTI e CUPELLO 2001 ZANELLO e SIL VA 2012187 No estudo de Cunha 1989 importante referência nessa discus são o tratamento e os lugares físicos reservado às mulheres negras no hospital pesquisado se apresentou como de dupla inferioridade O racismo presente nestas instituições apresentavase tanto na ma neira de gestão dos espaços físicos e condições materiais reservados a estas mulheres quanto nas terapêuticas que ganhavam mais relevân cia além do asilamento a retirada de útero clitórios e ovários fizeram do Brasil um país referência em cirurgias para a cura de alcoolismo e transtornos mentais femininos ROHDEN 2001 A manicomialização parece superar barreiras históricas e mes mo a capacidade das instituições se constituirem É o que percebemos quando nos voltamos para as tão atuais Comunidades Terapêuticas188 e encontramos dados gritantes sobre as mulheres privação de autono 187 Isso não quer dizer que as mulheres eram internadas necessariamente por desviarem de uma norma de feminilidade É possível que muitas tenham pas sado por momentos graves de sofrimento psíquico em um momento histórico ou localidade que não contasse com outros serviços Aqui entramos em conta to com aquilo que é nomeada enquanto sintoma não podendo se concluir que fossem motivos da internação em si 188 As Comunidades Terapêuticas são espaços privados e em sua maioria reli giosos Baseados na privação de liberdade e em outros princípios próprios que se voltam para pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas No Brasil foi incluída na Rede de Atenção Psicossocial a partir da portaria 30882011 o que possibilita hoje seu financiamento público em detrimento de outros serviços territoriais como CAPSad centros de convivência iniciativas de geração de trabalho e renda entre outros 320 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça mia de suas mães na relação com seus bebês violências sexuais prati cadas contra mulheres alta medicação que se difere das encontradas em espaços para homens proibição do uso de roupas femininas por mulheres transexuais entre outros A maioria da população internada nestes espaços é de pessoas negras PEREIRA e PASSOS 2017 Mesmo que rapidamente expostos esses cenários nos ajudam a entender o conceito de reservas psiquiátricas trazido por Basa glia 2010d Excluídas do acesso às políticas públicas mais gerais e mesmo daquelas que poderiam representar uma atenção psicossocial voltada o cuidado ao sofrimento psíquico essas mulheres internadas são rapidamente identificadas como aquilo que sobra que deve estar longe que deve ser mantido fora livrando a sociedade de seus ele mentos críticos Para Basaglia 2010c a medicina assim como todas as ciências em uma sociedade capitalista é uma ciência de classe Para o autor talvez pudéssemos marcar a psiquiatria como a face mais dramática se considerarmos a realidade dos manicômios e das pessoas asiladas e a relação contratual ali estabelecida Quem já entrou em um manicômio sabe que é um espaço marcado por classe e raça sendo a maioria das pessoas internadas pobres e negras189 POR QUE AINDA O MANICÔMIO Acompanhamos nos últimos anos um progressivo fechamento de lei tos em hospitais psiquiátricos e a expansão de uma rede de atenção psicossocial nacional baseada em Centros de Atenção Psicossocial atenção básica leitos de atenção integral centros de convivência coo perativas de trabalho e renda grupos de arte e cultura entre tantas outras experiências intersetoriais e interdisciplinares Sem dúvida o processo brasileiro é referência internacional e permitiu que muitas pessoas não morressem e mesmo sequer iniciassem uma carreira psi quiátrica asilar 189 Temos hoje poucos estudos sobre condição econômica raça gênero orientação sexual e identidade sexual nos hospitais psiquiátricos brasileiros Em relação às Comunidades Terapêuticas podemos encontrar alguns dados neste sentido no Relatório do IPEA sobre Comunidades Terapêuticas publicado em 2017 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 321 Atualmente vivenciamos no Brasil um importante retrocesso nas políticas públicas em geral entre as quais a saúde mental representa uma das que mais sofreram mudanças e ataques diretos Este contexto e a ainda não extinção por completo dos espaços manicomiais no for mato de Comunidades Terapêuticas por si só já justificariam pautar mos a lógica manicomial Necessariamente precisamos avançar nas discussões basaglianas Ora se podemos falar de conquistas sem dúvidas não podemos dizer que esse processo se dá sem o surgimento e fortalecimento de novos espaços asilares e a expansão dos domínios da biomedicina so bre a vida cotidiana com a consequente patologização e redução a uma abordagem médica e psiquiatrizada de processos sociais cultu rais econômicos e subjetivos FREITAS e AMARANTE 2015 Afinal como já havia nos alertado Basaglia 2010c o fechamen to dos hospitais psiquiátricos não garantiriam por si só o encerra mento da psiquiatrização do sofrimento uma vez que esta se adapta em outros aparatos médicopsiquiátricos e na cultura que alimenta Um dos exemplos dados pelo autor é o dos fármacos em relação aos quais alerta para o perigo de uma ulterior cumplicidade no que estes ajudam a tornar o doente inócuo e inofensivo BASAGLIA 2010 p 77 Alguns autores têm se dedicado ao que Basaglia 2010c nomeou de constituição do desvio particularmente a partir da expansão do campo patológico para o que em outros momentos seria considerado normal e que atualmente ganha contornos de anormalidade ou de comportamentos tratáveis e psiquiatrizáveis MALUF 2010 FREI TAS e AMARANTE 2015 Apesar de merecem um aprofundamento mais rigoroso já chama mos atenção para o crescimento e a ampliação das patologias descritas pelo DSMV e o CID 10 Estes manuais expõem uma ampla listagem do que deve ser considerado patologia incluindo uma importante gama de comportamentos humanos que passam a ser expostos a cri térios de análise clínica subjetivas e que se dão a partir da prática de cada profissional e a partir dai tomados ou não como excessivos ausentes patológicos ou normais 322 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça O crescente uso de psicotrópicos em especial os ansiolíticos e antidepressivos é uma das consequências da redução ao saber médico de uma série de sofrimentos contemporâneos Neste cenário mere cem destaque os benzodiazepínicos popularmente chamados de cal mantes ou tranquilizantes substâncias psicoativas mais utilizadas nacional e internacionalmente apenas sendo superadas pelo tabaco e álcool Segundo a ANVISA 2011 a venda de clonazepan cresceu de 29 mil caixas para 23 milhões de caixas nos últimos dez anos no país A fluoxetina importante antidepressivo já em 1999 representava 25 do faturamento de seu laboratório o que parece conversar diretamen te com o fato de ser a depressão um dos diagnósticos mais discutidos atualmente como pontuam Diehel Manzini e Becker 2010 Vale sublinhar que mesmo em lugares e cidades onde os serviços de saúde não se fazem presentes ou são deficientes o consumo de medicamen tos psiquiátricos é prática relevante DIEHL MANZINI e BECKER 2010 Assini e Back 2017 em pesquisa realizada em Monte Carlo SC indicam que 20 da população da cidade havia feito uso de psicotró picos através da compra em farmácias privadas sem considerar as farmácias e dispensações feitas pelo SUS Os antidepressivos e ansio líticos estavam presentes em 70 das prescrições Em estudo também voltado para farmácias privadas mas dessa vez em um município do Maranhão Sousa et al 2014 observaram que entre os psicotrópicos vendidos o clonazepam representava 348 das vendas A expansão da biomedicina e da lógica de patologização para a explicação e intervenção nos sofrimentos faz com que Maluf 2010 indique que hoje já não podemos falar em Psiquiatria como um saber de atuação do campo psi uma vez que esta foi remedicalizada e re biologizada p 28 sendo necessário que nos referíssemos a uma ra cionalização médica da experiência subjetiva e do sofrimento p 28 Se antes faziase necessário a afirmação de uma inferioridade do louco há agora um nivelamento dos desvios das pessoas comuns diminuindo as fronteiras entre sãos e doentes a fim de um controle social maior Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 323 Para Basaglia 2010d que já há décadas atrás se debruçava sob essas reflexões o aumento dos desviantes fruto da intensa amplia ção de diagnósticos mas em especial das desigualdades sociais faz com que o desvio seja problema do próprio desviante e não da falên cia do sistema Mais do que isto para o autor podemos falar aqui de uma vitória do capital e de suas tecnologias uma vez que o que acaba por ganhar destaque são as soluções prontas para qualquer problema ou desvio através das medicações e da promessa da cura e do alivio imediato baseados em verdades científicas Como lembra Basaglia 2010d a maioria das pessoas assistidas pelos programas de saúde mental do Estado são negras e pobres190 muitos à margem da produção e em situações sociais e econômicas mais prejudicadas A partir dos estudos brasileiros que apresentarem a seguir podemos incluir aqui as mulheres em especial as mulheres com renda baixa hoje maioria entre os usuários de ansiolíticos e anti depressivos no país como nos revelam Carvalho e Dimenstein 2003 Diehl Manzini e Becker 2010 e Assini e Back 2017 Voltandose para pessoas consumidoras de princípios ativos du rante a década de 1990 na rede pública de Fortaleza Oliveira 2000 apud CARVALHO e DIMENSTEIN 2003 constatou que as mulheres representavam 72 das consumidoras de benzodiazepínicos o que conversa com o número de 75 de mulheres consumidoras da mes ma medicação em Sobral CE a partir de estudo realizado pela mes ma autora Carvalho e Dimenstein 2003 fazem um levantamento de outros estudos realizados na década de 1980 e 1990 que se voltam para o uso de medicamentos ansiolíticos por mulheres e constatam que os dados se repetem em diversos destes Aproximandonos de estudos mais recentes a pesquisa de Prado Francisco e Barros 2017 com usuários de medicamentos psicotrópi cos apontou que o uso dos mesmos foi 48 maior em mulheres Des tes 526 eram medicamentos antidepressivos Assini e Back 2017 por sua vez voltandose para farmácias privadas em Monte Carlo SC concluíram que as mulheres representavam 68 das usuárias de medicamentos psicotrópicos e ansiolíticos 190 Aqui o autor está se referindo aos Centros de Saúde Mental Comunitários dos Estados Unidos mas a afirmação se aproxima da realidade brasileira 324 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Pesquisando em serviços públicos de saúde Mendonça e Teixeira 2005 a partir da análise documentos e prontuários de 1336 usuários constaram que as mulheres representaram 634 das usuárias destes medicamentos Dentre estas 423 consumiam ansiolíticos Diehl Manzini e Becker 2010 em pesquisa realizada no ano de 2007 na cidade de Florianópolis apontaram para que as mulheres representam 81 5 das usuárias de medicação antidepressiva no Centro de Saúde pesquisado Nas entrevistas realizadas por Carvalho e Dimenstein 2003 tanto as realizadas com as usuárias quanto com os médicos a elimina ção dos sintomas apareciam diretamente vinculados com a solução das queixas e problemas relatados pelas mulheres mesmo que reco nhecido pelos médicos e por estas que os sofrimentos se referiam em grande parte às questões sociais ou familiares A consideração destes fatores foi feita por todos os autores acima apontados Basaglia 2010d considera que a doença pode tornarse den tro da lógica capitalista um dos elementos para justificar uma exclu são resumindo a um nível individual o que diz respeito à sociedade e suas contradições Resgatando as construções de Saffioti 2005 po demos dizer que as mulheres em especial as de classe trabalhadora e negras ou de minorias étnicas acabam por serem localizadas pela Psiquiatria com especial patologização e privações de liberdade Frente a isso dialogamos com Basaglia 2010d que a Psiquiatria reforça as contradições de gênero raçaetnia e classe a ideologia médica serve de escudo a um julgamento polí ticomoral que tem muito pouco a ver com a medicina O que permite às definições científicas um genuíno caráter classista sem coberturas ideológicas ou máscaras artificiosas A realida de é que as ideias dominantes são as ideias das classes domi nantes p 176 Isso não quer dizer sublinha Basaglia 2010d e gostaríamos de dar certo destaque que a doença mental não exista ou que mulheres com sofrimento psíquico não possam se beneficiar de medicações e Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 325 atendimentos médicos Ao contrário Frente a situações de intenso so frimento e outras precariedades sociais financeiras e tantas outras é mais do que urgente pensarmos uma atenção psicossocial que possa responder a estas mulheres com o nível de complexidade que suas de mandas exigem Para isso uma rede de atenção psicossocial forte articulada com outras políticas públicas que garantam trabalho moradia lazer assis tência educação e cultura nos desloca de uma discussão setorizada da saúde mental para uma ampliação a outras áreas de prática APONTAMENTOS FINAIS Davis 2018a nos chama atenção para a importante intersecção dos processos de desinstitucionalização de hospitais e instituições psiquiá tricas e da abolição do complexo industrial prisional destacando o quanto a luta contra os manicômios acaba por aparecer de maneira marginal nas discussões e pautas abolicionistas Para ela é fundamen tal que se resgate o fato de que as instituições psiquiátricas são parte do complexo industrialprisional e mais que há uma importante rela ção entre este último e o complexo industrialfarmacêutico Para a autora tanto instituições psiquiátricas de asilamento quanto as prisões representam uma estratégia cada vez mais forte e em âmbito global de lidar com aqueles considerados parte das popu lações excedentes descartáveis p 102 Nos estudos resgatados esta questão ganha rosto e nos convida a ampliar nosso escopo através das reservas psiquiátricas BASAGLIA 2010 que tantas mulheres aca bam por representar Se fizemos até aqui uma mirada em direção ao que é considera do anormal aceitamos o desafio de Davis 2018 sobre a urgência das teorias e práticas feministas abolicionistas questionarem o que é normal As prisões são consideradas normais Os manicômios são considerados normais A alta diagnosticação de transtornos mentais é considerada normal e mesmo o uso abusivo de ansiolíticos e psicotró picos são rapidamente associados ao acesso à saúde MALUF 2010 326 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A mesma dificuldade em pensar uma sociedade sem cadeias inclui o horror a uma sociedade sem manicômios Entendendo a luta antimanicomial e o abolicionismo prisional como áreas que podem se beneficiar de um fazer conjugado fazse central que as pessoas interessadas nos temas das prisões e manicô mios possam se voltar tanto para as instituições quanto para as ideo logias que as sustentam Neste sentido parece urgente a aproximação com outras produções acadêmicas e com outras áreas que se direcio nam à saúde pública à educação e às estratégias voltadas para as mu lheres e para as pessoas negras Somos convocadas ao desafio de nos debruçarmos sobre os siste mas de justiça e às políticas públicas em geral atreladas e contextuali zadas no momento histórico e considerando que gênero classe e raça etnia não podem mais ser considerados nos âmbitos específicos ou especialidades REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSINI F L BACK J T Análise das prescrições de psicotrópicos em farmácias privadas na cidade de Monte Carlo Santa Catarina Rev Eletr Farm v 14 n 2 p 514 2017 BASAGLIA F Che coè la psichiatria In BASAGLIA F AMARAN TE P org Escritos Selecionados em Saúde Mental e Reforma Psi quiátrica Rio de Janeiro Garamond 2010a As instituições de violência In BASAGLIA F AMA RANTE P org Escritos Selecionados em Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica Rio de Janeiro Garamond 2010b Introdução a Asylumns In BASAGLIA F AMA RANTE P org Escritos Selecionados em Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica Rio de Janeiro Garamond 2010c A doença e seu duplo propostas críticas sobre o pro blema do desvio In BASAGLIA F AMARANTE P org Escritos Selecionados em Saúde Mental e Reforma Psiquiátrica Rio de Janeiro Garamond 2010d Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 327 CARVALHO L F DIMENSTEIN M A mulher seu médico e o psi cotrópico redes de interfaces e a produção de subjetividade nos servi ços de saúde Rev Interações vol8 n15 pp 3764 2003 CUNHA C P Loucura gênero feminino as mulheres de Juquery na São Paulo do início do século XX Rev Brasileira de História São Pau lo v 9 n 18 p 121144 1989 DAVIS A Feminismo e Abolicionismo teorias e práticas para o sé culo XXI In DAVIS A BARAT F org CANDIANI HR trad A liberdade é uma luta constante São Paulo Boitempo 2018 DIEHL E MANZINI F BECKER M A minha melhor amiga se chama fluoxetina consumo e percepções de antidepressivos entre usuários de um centro de atenção básica In MALUF S TORN QUIST C Gênero Saúde e Aflição abordagens antropológicas Santa Catarina Letras Contemporâneas 2010 FREITAS F AMARANTE P Medicalização em Psiquiatria Rio de Janeiro Ed Fiocruz 2015 MALUF S Gênero Saúde e Aflição políticas públicas ativismo e ex periências sociais In MALUF S TORNQUIST C Gênero Saúde e Aflição abordagens antropológicas Santa Catarina Letras Contem porâneas 2010 MENDONCA R T CARVALHO A C D O consumo de benzodia zepínicos por mulheres idosas SMAD Rev Eletrônica Saúde Mental Álcool Drogas vol1 n2 2005 OLIVEIRA E N AGUIAR J M A CAVALCANTE M M B Con sumo de psicotrópicos por mulheres terapia ou iatrogenia Essentia Sobral vol 13 n 1 p 2538 junnov2011 PEREIRA M O PASSOS R G Desafios Contemporâneos na Luta Antimanicomial comunidades terapêuticas gênero e sexualidade In PEREIRA MO PASSOS RG Luta Antimanicomial e Feminismos discussões de gênero raça e classe para a Reforma Psiquiátrica Brasi leira Rio de Janeiro Ed Autografia 2017 PRADO M A M FRANCISCO P M BARROS M B A Uso de medicamentos psicotrópicos em adultos e idosos residentes em Cam pinas São Paulo um estudo transversal de base populacional Epide miol Serv Saude Brasília 264747758 outdez 2017 328 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ROHDEN F Uma ciência da diferença sexo e gênero na medicina da mulher Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2001 SAFFIOTI H Gênero Patriarcado Violência 2ed São Paulo Expres são Popular Fundação Perseu Abramo 2015 SOUZA A R L OPALEYE E S NOTO A R Contextos e padrões do uso indevido de benzodiazepínicos entre mulheres Ciência Saú de Coletiva 184 p11311140 2013 SOUSA L M G MELO G C MAGALHÃES A A Prescrição de Psicotrópicos e Especialidade Médica Estudo em uma Farmácia Co mercial no município do Maranhão Revista Científica do ITPAC Araguaína v7 n4 Pub4 Outubro 2014 ZANELLO V SILVA R M C Saúde Mental Gênero e violência es trutural Revista Bioética v2 n 20 p 267269 2012 Parte III PESSOAS LGBTQIA E SISTEMAS DE JUSTIÇA 226 Kós Károly utca Nyíregyháza Iroda telefonja 42524 258 331 A INCOMPATIBILIDADE DE PRÁTICAS HOMOFÓBICAS COM A CONSTITUIÇÃO E OS TRATADOS INTERNACIONAIS Bruno de Assis Pimentel Carvalho191 Daiana Seabra Venancio192 Resumo O objetivo do trabalho é demonstrar a incompatibilidade de condutas homofóbicas com a ordem constitucional e com os tratados dos quais o Brasil faz parte Para tanto inicialmente é preciso definir o que é homofobia Em seguida fazse necessário relacionar o dever de uma atuação por parte dos agentes públicos em conformidade com os princípios que regem Administração Pública previstos no art 37 da Constituição É analisada a realidade da homofobia no Brasil a fim que se observar de que modo os princípios supra citados podem ser aplicados no combate a homofobia Por fim ressaltase que além das disposições constitucionais que as seguram que todos devem ser tratados de modo igualitário há o dever de cumprir os tratados de Direitos Humanos que o Brasil ratificou e que neste caso especi ficamente versam sobre a proteção dos Direitos Humanos e buscam assegurar o fim da homofobia Palavraschave diversidade sexual direitos humanos intolerância 191 Pós Graduado em Docência no ensino superior pela Universidade Candido Mendes Bacharel em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUCRio Licenciado em Filosofia pela Universidade Cândido Men des Graduando em Direito pelas Faculdades São José FSJ Integrante volun tário do Núcleo de Pesquisa Cientifica de Direito das Faculdades São José 192 Mestre em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Ja neiro professora de Direito Internacional Público e Privado na Faculdade São José Coordenadora do Núcleo de Pesquisa de Direito da Faculdade São José 332 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça INTRODUÇÃO O presente trabalho pretende analisar a conduta homofóbica enquan to uma prática velada por parte de alguns agentes da Administração Pública com fundamento a discriminação em virtude da orientação sexual do indivíduo Por vezes o agente no exercício de seu cargo pauta sua conduta com base não no que a lei determina mas sim em um julgamento subjetivo que leva em conta a sua própria percepção sobre um terceiro que tem uma orientação sexual a qual o agente não considera como válida ou correta A legislação brasileira carece de norma específica sobre o tema Porém depreendese da ordem constitucionalmente estabelecida que a prática da homofobia é inadmissível seja nas instituições públicas ou privadas Contudo essa carência de legislação específica que re conheça a homofobia enquanto crime abre espaço para a chamada conduta homofóbica que consiste em uma prática da homofobia de modo um pouco mais velado Por homofobia entendese a discriminação contra homosse xuais segundo o juiz federal Roger Raupp Rios193 De acordo com o Professor Nilson Fernandes Dinis194 o termo se generalizou passan do a referirse a discriminação a contra a diversidade sexual em geral A Constituição Federal prevê no artigo 37 que a Administração Pública deve regerse entre outros pelo princípio da impessoalidade Destarte deve o agente da Administração Pública limitarse a fazer tão somente o que a lei permite para o órgão ao qual integra Deve este dispensar aos indivíduos igualdade de tratamento pautando sua con duta na atenção ao interesse público a fim de que não haja preferidos e preteridos 193 RIOS Roger Raupp Homofobia na perspectiva dos Direitos Humanos e no contexto dos estudos sobre preconceito e discriminação In JUNQUEIRA Rogério Diniz Org Diversidade sexual na escola problematizações sobre a homofobia nas escolas Brasília Edições MECUNESCO 2009 p 5383 194 DINIS Nilson Fernandes Homofobia e educação quando a omissão também é signo de violência Educar em revista online Curitiba nº 39 janabr 2011 Disponível em httpdxdoiorg101590S010440602011000100004 acessado em 17012018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 333 No cenário internacional o Brasil é signatário de tratados de di reitos humanos que buscam salvaguardar as garantias individuais e o direito à preservação da liberdade e da vida privada dos indivíduos Após a Emenda Constitucional nº 45 de 2004 estes tratados se in serem no ordenamento jurídico brasileiro com grande relevância O precedente195 do Supremo Tribunal Federal STF reconheceu que os tratados que versam sobre Direitos Humanos têm status de norma supralegal196 ou até o status de emenda constitucional quando apro vados pelo Congresso Nacional pelas duas casas em dois turnos por três quintos de seus membros A Convenção Americana sobre Direitos Humanos mais conhe cida como Pacto de São José da Costa Rica institui o Sistema Intera mericano de proteção aos Direitos Humanos que traz os parâmetros da proteção a ser promovida pelos Estados membros O Pacto de São José da Costa Rica institui a Corte Interamericana de Direitos Huma nos CIDH que possui o papel consultivo e contencioso este último apenas para os Estados que são parte do Pacto e aceitaram a jurisdição da Corte A perpetuação de práticas homofóbicas eou de condutas homo fóbicas bem como a omissão do Estado em verdadeiramente comba têlas representa uma violação aos Direitos Humanos Consideran do que o Brasil aceitou a jurisdição contenciosa da CIDH tornouse possível o acionamento do país na Corte Interamericana de Direitos Humanos para fazer cumprir seu dever de assegurar a isonomia e im pessoalidade Tal ato se deu através do Decreto 44463 de 8 de novem bro de 2002 195 Recurso Extraordinário 466343 julgado em 2009 196 Acima das leis e abaixo da Constituição Federal 334 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1 A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E OS AGENTES PÚBLICOS Para compreender o problema da pratica homofóbica em especial por agentes públicos é necessário primeiramente esclarecer alguns con ceitos são eles Administração Pública e Agente Público A partir de tais conceitos é possível analisar os princípios que regem a Adminis tração Pública em especial o princípio da Impessoalidade que emba sa o problema apresentado neste trabalho O termo Administração Pública é considerado por muitos au tores demasiadamente amplo podendo surgir dele diversos entendi mentos distintos Este trabalho utilizará a definição de José dos Santos Carvalho Filho segundo a qual a Administração Pública é compreen dida no sentido objetivo como a gestão dos interesses públicos pelo Estado Carvalho 2017 44 Entendese portanto que a destinatária última da Administração Pública é a sociedade Deve a Administração Pública ser voltada para o indivíduo Em uma interpretação subjetiva o referido autor cita a Adminis tração Pública como o conjunto de agentes órgãos e pessoas jurídicas que tenham a incumbência de executar as atividades administrativas Carvalho 2017 44 Neste sentido não devese confundir a Admi nistração Pública com o Poder Executivo os três poderes da União estados municípios e do Distrito Federal possuem numerosas tarefas que consistem em atividade administrativa Destarte os agentes de quais quer poderes ao exercerem função administrativa compõem a Administração Pública Existem Pessoas Jurídicas que exercem a função administrativa em nome do Estado como autarquias sociedades de economia mista fundações públicas empresas públicas Estas Pessoas Jurídicas também estão incluídas no sentido subjetivo do termo Administração Pública As atividades da Administração Pública são desenvolvidas dire tamente por seus agentes Os Agentes Públicos são o elemento físi co da Administração Pública Podese definir Agente Público como todos aqueles que a qualquer título executam uma função pública como prepostos do Estado São integrantes dos órgãos públicos cuja vontade é imputada à pessoa jurídica Carvalho 2017 47 Podese Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 335 entender Agente Público como a pessoa ou as pessoas que exercem uma função pública em nome do Estado podendo tal função ser re munerada ou gratuita É possível encontrar um conceito claro e objetivo de Agente Pú blico na lei 842992 a qual dispões sobre sanções aplicáveis aos Agen tes Públicos nos casos de enriquecimento ilícito na Administração Pública Segundo o Artigo 2º Reputase agente público para os efeitos desta Lei todo aquele que exerce ainda que transitoriamente ou sem remuneração por eleição nomeação designação contratação ou qualquer forma de investidura ou vínculo mandato cargo emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior197 Entendese portanto que o termo Agente Público abrange des de os chefes do Poder Executivo dos três entes da federação e todo o corpo de servidores públicos Portanto todos estão obrigados a se submeter às normas e aos princípios da Administração Pública 11 OS PRINCÍPIOS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Existem princípios que norteiam a Administração Pública e são pos tulados fundamentais para o desempenhos das funções públicas Na hipótese de conflito entre estes princípios é cabível aplicar o critério da ponderação quando em um caso específico priorizase um princí pio em detrimento de outro sem que isso cause a nulidade do princí pio preterido O texto da Carta Magna traz em seu escopo expressamente os princípios pelos quais a Administração Pública deve ser pautada con forme o art 37 A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União dos Estados do Distrito Federal e dos Muni cípios obedecerá aos princípios de legalidade impessoalidade mora 197 Lei 8429 de 261992 336 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça lidade publicidade e eficiência198 São estes os princípios expressos do Direito Administrativo os quais serão em sequência analisados brevemente 111 O princípio da Legalidade Ao analisar este princípio entendese que todas as atividades ad ministrativas devem encontrar previsão em norma legal expressa Tal princípio fundamenta a tese de que o Estado deve guardar as próprias leis e todos os Agentes Públicos devem se submeter aos preceitos le gais Neste sentido ao passo de que aos indivíduos na esfera privada é dado fazer tudo aquilo que a lei não veda aos Agentes Públicos é limi tado fazer tão somente o que e lei os autoriza Tal princípio traz como consequência que a própria garantia dos direitos individuais depende de norma legal de maneira que o indivíduo pode confrontar a atitude do agente público com a prescrição legal Em hipótese de discrepân cia entre a tal conduta e a lei deve a conduta ilícita ser corrigida e se adequar à lei 112 O princípio da Impessoalidade Este princípio no âmbito do direito administrativo remete à igualdade de tratamento que a Administração deve dispensar aos administrados que se encontrem em idêntica situação jurídica Car valho 2017 49 Para observar este princípio a Administração Públi ca deve voltarse para o interesse público em detrimento do interesse privado ou de quais quer outros De modo que busque impedir que sejam favorecidos alguns indivíduos e prejudicados outros para favo recimento de interesses que não sejam o verdadeiro interesse público uma vez que este consiste em sua finalidade única Todas as normas devem observar a isonomia como a Constitui ção Federal assim determina O agente público que é limitado a agir exclusivamente naquilo que a lei o outorga sob pena de desvio de fi nalidade 198 Constituição 1988 artigo 37 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 337 113 O princípio da Moralidade Neste ponto entendese caber ao agente público não apenas agir conforme a conveniência honestidade e justiça mas também fazendo distinção entre o que é honesto e o que é desonesto conforme mencio nado no Código de Ética dos servidores públicos I A dignidade o decoro o zelo a eficácia e a consciência dos princípios morais são primados maiores que devem nortear o servidor público seja no exercício do cargo ou função ou fora dele já que refletirá o exercício da vocação do próprio poder es tatal Seus atos comportamentos e atitudes serão direcionados para a preservação da honra e da tradição dos serviços públicos II O servidor público não poderá jamais desprezar o elemento ético de sua conduta Assim não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal o justo e o injusto o conveniente e o inconve niente o oportuno e o inoportuno mas principalmente entre o honesto e o desonesto consoante as regras contidas no art 37 caput e 4 da Constituição Federal III A moralidade da Administração Pública não se limita à distinção entre o bem e o mal devendo ser acrescida da ideia de que o fim é sempre o bem comum O equilíbrio entre a legalida de e a finalidade na conduta do servidor público é que poderá consolidar a moralidade do ato administrativo199 A moralidade não só está ligada à relação da Administração Pública com os administrados mas também em âmbito interno na forma em que os agentes agem entre si Este princípio busca coibir a prática da imoralidade na esfera pública que em alguns momentos consistirá na ofensa direta à lei acarretando também a violação do princípio de legalidade 114 O princípio da Publicidade Segundo o princípio da publicidade os atos da Administração Pública devem receber a mais ampla divulgação possível para os ad ministrados Este princípio tem como fundamento a possibilidade de 199 Decreto nº 1171 de 22 de junho de 1994 338 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça controlar vigiar e fiscalizar a gestão da coisa pública Somente através desta transparência que os indivíduos poderão verificar a atenção à legalidade Os atos da Administração Pública devem ser publicados em re gra nos veículos da imprensa oficial podendo ser afixados em locais determinados de repartições públicas ou divulgados por mecanismos da tecnologia 115 O princípio da Eficiência Por fim será analisado o Princípio da eficiência A Emenda Cons titucional 191998 acrescentou ao caput do artigo 37 da Constituição Federal a princípio da eficiência Este princípio busca conferir ao in divíduo alvo da função pública direitos efetivos de receberem os ser viços públicos Lopes de Meirelles explica este princípio no sentido da boa Ad ministração Pública o que se impõe a todo o agente público de rea lizar suas atribuições com presteza perfeição e rendimento profissio nal Meirelles 2014 102 Ao analisar a explicação de Di Pietro para este princípio notase que ele segue o mesmo raciocínio que Lopes de Meirelles O princípio apresentase sob dois aspectos podendo tanto ser considerado em relação à forma de atuação do agente público do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atuações e atribuições para lograr os melhores resultados como também em relação ao modo racional de se organizar estruturar disciplinar a administração pública e também com o intuito de alcance de re sultados na prestação do serviço público DI PIETRO 2014 84 É possível observar que Di Pietro entende também este princípio como uma obrigação da Administração Pública se organizar de modo que possa otimizar os resultados na prestação do serviço público Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 339 2 A HOMOFOBIA NO BRASIL Tem se acompanhado inúmeras conquistas alcançadas como o reco nhecimento judicial das uniões homoafetivas que visam à promoção da igualdade de direitos básicos e do combate à discriminação e à ho mofobia Outro notável êxito foi a proibição do Conselho Federal de Psicologia para que os profissionais não tratem a homossexualidade como uma patologia ou similar Apesar destes avanços as diversas formas de violência contra a população LGBTQ continuam e se perpetrar na sociedade Além da prática contumaz das injúrias contra os homossexuais inúmeros são os casos de agressão física e até homicídio O Grupo Gay da Bahia GGB contabilizou de 1980 a 2002 2218 assassinatos motivados por discriminação em virtude da orientação sexual Aguiar 2016 12 Recentemente os jornais noticiaram o caso de um jovem que ao entrar em uma delegacia policial na região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro para registrar o boletim de ocorrência do furto de seu telefone celular foi agredido física e psicologicamente pelo poli cial de plantão A vítima alegou que a única motivação para o crime cometido pelo policial foi o fato do jovem ser homossexual200 É obrigação do Estado reprimir a homofobia uma vez que é sua função garantir a vida e a dignidade de cada indivíduo Existem inú meros projetos de lei tramitando que visam criminalizar a homofobia Entretanto devese refletir aqui se a criação de mais uma lei seria efi caz ou mesmo necessário para o combate à homofobia pois a Carta Magna já institui como crime a prática de agressão de qualquer tipo contra qualquer indivíduo Ao invés de criar uma lei para m grupo es pecífico bastaria fazer cumprir a Constituição Federal e coibir a agres são a qualquer indivíduo Esse entendimento leva em conta o fato de que já existem tipos penais na legislação que vedam a homicídio a injúria a lesão corporal entre outras formas de violência 200 JOVEM acusa policial civil de agressão motivada por homofobia dentro de delegacia em Niterói G1 Rio de Janeiro 14072017 Disponível em https g1globocomriodejaneironoticiajovemacusapolicialcivildeagressao motivadaporhomofobiadentrodedelegaciaemniteroightml acessado em 05012018 as 1230 340 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Considerando a realidade carcerária do Brasil podese presumir que o sistema prisional não seja a forma mais eficaz de combate a ho mofobia Podese inferir que o sistema prisional brasileiro não cum pre seu papel de recuperar e ressocializar o detento a fim de que este seja reinserido na sociedade após pagar sua dívida para com ela Por este motivo esta seria uma alternativa residual uma vez esgotadas to das as formas de combate a homofobia possa ele vir a ser condenado a pena restritiva de liberdade uma vez que tais práticas delituosas já encontram previsão no Código Penal Assim sendo é mais eficaz a criação de políticas públicas que busque conscientizar a população com fins a acabar com a discriminação de qualquer natureza do que a criação de uma nova norma que busque coibir a prática da homofobia tornandoa crime No combate a homofobia ainda é necessário superar barreiras como a homofobia institucional como por exemplo a vedação de doa ção de sangue por pessoas que se declarem homossexuais prevista na Resolução nº 1532004 da Agência Nacional de Vigilância Sanitá ria ANVISA Tal norma consiste em ato discriminatório uma vez que ao identificar a orientação sexual ou a orientação de gênero do indivíduo a agência reguladora já os classifica como sendo pessoas com alto risco de transmissão de doenças Esta norma não leva em consideração por exemplo a hipótese do indivíduo ter uma relação estável monogâmica ou dele simplesmente ser uma pessoa que zela pela sua saúde não se coloca em situações nas quais ele corra o risco de contagio com doenças A estas pessoas nem é dada a oportunidade de se submeterem a algum procedimento para testar seu sangue como é realizado com os outros uma vez que a resolução afim simplesmente que não deva se admitir a doação Diante dos exemplos mencionados é possível verificar que even tualmente os agentes públicos praticam atos de homofobia no exer cício de sua função pública Tal conduta se pauta não nos princípios da Administração Pública como vistos anteriormente mas sim em seu julgamento pessoal e subjetivo sobre os outros Isso é incompatí vel com a ordem constitucional e com os tratados internacionais dos quais o Brasil é parte Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 341 11 Os princípios da Administração Pública como ferramenta legal de combate a homofobia na Administração Pública Considerando que a Administração Pública possui como finali dade o interesse público passase a analisar a prática homofóbica por parte de agente público à luz de um dos princípios que regem a Admi nistração Pública o princípio da impessoalidade A prática homofóbica na Administração Pública possui um duplo viés O primeiro consiste na pratica de insulto e brincadeiras de cará ter pejorativo por parte do agente público para com os particulares colegas ou para com seu subordinado por vezes em virtude do cargo hierárquico que este ocupa A segunda consiste quando o Agente Pú blico por ação ou omissão de sua função pública dispensa tratamen to diferenciado para indivíduos em virtude de sua orientação sexual mesmo que esta seja apenas uma presunção do agente Quanto ao primeiro não são poucos os relatos de agentes públi cos que praticam e incentivam a pratica de brincadeiras para com seus subordinados ou com os particulares que buscam o serviço pú blico Esta discriminação ocorre quando o indivíduo sofre algum tipo de zombaria gozação recebe apelidos pejorativos no âmbito do ser viço público A segunda prática por vezes pode ser considerada mais gravosa Quando o agente público deixa de agir exclusivamente como a lei de termina e age segundo seus princípios subjetivos este desvia a finali dade do serviço público Como visto anteriormente nos princípios da Administração Pública esta tem como finalidade única o bemestar da sociedade Considerando o princípio da Legalidade o agente público está limitado a agir somente dentro do que lei lhe outorga Ora uma vez que segundo os diplomas legais todos são iguais perante a lei é dever do agente da Administração Pública no exercício da função pública tratar a todos igualmente e é vedado dispensar tratamento diferencia do aos indivíduos em virtude de orientação sexual raça cor religião classe social 342 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 3 O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos A Carta da Organização dos Estados Americanos OEA de 1948 marca o surgimento do Sistema Interamericano de Proteção aos Di reitos Humanos Neste instrumento já se encontra de modo embrio nário preocupações quanto aos Direitos Humanos Em 1967 a Carta foi reformada pelo Protocolo de Buenos Aires quando foi incluído o artigo 106 Haverá uma Comissão Interameri cana de Direitos Humanos que terá por principal função promover o respeito e a defesa dos direitos humanos e servir como órgão consul tivo da Organização em tal matéria201 Ficando instituída a Comissão Interamericana de Direitos Humanos Uma convenção interamericana sobre direitos humanos estabe lecerá a estrutura a competência e as normas de funcionamento da referida Comissão bem como as dos outros órgãos encarregados de tal matéria Em 1969 na Costa Rica foi assinada a Convenção Americana de Direitos Humanos mais conhecida como Pacto de São José da Costa Rica Este documento é a base do sistema interamericano para a ga rantia dos Direitos Humanos O Pacto de São José da Costa Rica reproduziu muitos dos dis positivos presentes na Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 da ONU e protege direitos similares aos previstos no Pacto de Direitos Civis e Políticos O Pacto de São José prevê não apenas que o Estado se abstenha de intervir nas liberdades individuais mas tam bém assegura deveres para garantir o pleno exercício de tais direitos As questões referentes aos direitos sociais de segunda geração foram tratadas no Protocolo de São Salvador de 1988 O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos SIPDH possui como órgãos a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos CIDH 201 Artigo 106 da Carta da OEA após as reformas do Protocolo de Buenos Aires Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 343 31 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos A comissão Interamericana de Direitos Humanos é um órgão au tônomo da Organização dos Estados Americanos OEA Surgiu em 1959 em Santiga antes mesmo do Pacto de São José da Costa Rica Inicialmente possui um papel de promoção e proteção dos Direitos Humanos Juntamente com a Corte Interamericana de Direitos Hu manos compõem o Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos Atualmente tornouse um instrumento de controle com função de receber e examinar denúncias de violação dos Direitos Hu manos Suas atividades se baseiam no sistema de Petição Individual no monitoramento das situações dos direitos humanos nos Estados Membros e na atenção a linhas temáticas prioritárias Em virtude des ta estrutura é entendimento da Comissão de que todo o indivíduo sob a jurisdição dos Estados deve estar sob a égide dos Direitos Humanos A fim de promover os Direitos Humanos cabe à Comissão fazer recomendações aos Estados partes indicando medidas para assegu rar a eficácia do Pacto de São José e garantir os Direitos Humanos A Comissão possui também outras atribuições previstas no artigo 41 do Pacto A Comissão tem a função principal de promover a observância e a defesa dos direitos humanos e no exercício do seu mandato tem as seguintes funções e atribuições a Estimular a consciência dos direitos humanos nos povos da América b Formular recomendações aos governos dos Estados mem bros quando o considerar conveniente no sentido de que adotem medidas progressivas em prol dos direitos humanos no âmbito de suas leis internas e seus preceitos constitucio nais bem como disposições apropriadas para promover o devido respeito a esses direitos c Preparar os estudos ou relatórios que considerar convenien tes para o desempenho de suas funções 344 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça d Solicitar aos governos dos Estados membros que lhe pro porcionem informações sobre as medidas que adotarem em matéria de direitos humanos e Atender às consultas que por meio da SecretariaGeral da Organização dos Estados Americanos lhe formularem os Estados membros sobre questões relacionadas com os direi tos humanos e dentro de suas possibilidades prestarlhes o assessoramento que eles lhe solicitarem f Atuar com respeito às petições e outras comunicações no exercício de sua autoridade de conformidade com o dispos to nos artigos 44 a 51 desta Convenção e g Apresentar um relatório anual à Assembleia Geral da Orga nização dos Estados Americanos202 A principal competência da Comissão que propicia materializar a proteção aos Direitos Humanos é a de examinar as denúncias feitas por indivíduos grupos de pessoas ou Organizações NãoGoverna mentais ONGs sobre violação de qualquer dos Direitos Humanos previstos no Pacto Para que tais denúncias sejam aceitas é necessário observar o cumprimento de dois requisitos mais importantes primei ramente esgotamento dos recurso de solução internos e a inexistên cia de litispendência internacional Admitida a denúncia a Comissão buscará todos os recursos a fim de sanar a violação de modo amigável Sendo infrutífera tal tentativa a denúncia será encaminhada para a Corte Interamericana de Direitos Humanos 32 A Corte Interamericana de Direitos Humanos CIDH A Corte Interamericana de Direitos Humanos CIDH consiste em um órgão jurisdicional do SIPDH Não faz parte do sistema da OEA e está ligada exclusivamente ao Pacto de São José da Costa Rica Possui competência consultiva para fornecer interpretação sobre as 202 Pacto de São José da Costa Rica 1969 artigo 41 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 345 normas da Convenção Americana de Direitos Humanos bem como quaisquer outro tratado interamericano que verse sobre Direitos Hu manos como previsto no artigo 64 do Pacto Os Estados membros da Organização poderão consultar a Cor te sobre a interpretação desta Convenção ou de outros trata dos concernentes à proteção dos direitos humanos nos Estados americanos Também poderão consultála no que lhes com pete os órgãos enumerados no capítulo X da Carta da Orga nização dos Estados Americanos reformada pelo Protocolo de Buenos Aires203 Podendo portanto ser acionada por qualquer membro da OEA que deseje esclarecer alguma norma Também possui competência contenciosa a fim de resolver litígios em matéria de Diretos Humanos Porém é necessária prévia declaração do Estado parte na qual exista expressa anuência quanto à competência contenciosa da Corte con forme o artigo 62 do Pacto Todo Estado Parte pode no momento do depósito do seu ins trumento de ratificação desta Convenção ou de adesão a ela ou em qualquer momento posterior declarar que reconhece como obrigatória de pleno direito e sem convenção especial a com petência da Corte em todos os casos relativos à interpretação ou aplicação desta Convenção204 Caso o Estado Membro não se submeta a jurisdição da Corte não será possível o julgamento de litígios envolvendo o Estado 31 A atuação do SIDH no combate a homofobia Em 2008 a Assembleia Geral da OEA aprovou a resolução nº 24352008 que versa sobre Direitos Humanos Orientação Sexual e Identidade de Gênero na qual os Estados signatários expressaram sua 203 Pacto de São José da Costa Rica 1969 artigo 64 204 Pacto de São José da Costa Rica 1969 artigo 62 346 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça preocupação com a violação dos Direitos Humanos motivados pelos motivos acima elencados Desde então a Assembleia Geral elaborou Resoluções para combater a homofobia que a cada ano têm sido mais enfáticas e cobram dos Estadosmembros políticas eficazes para o combate à homofobia Em maio de 2009 a Comissão de Assuntos Jurídicos e Políticos aprovou uma resolução apresentada pelo Brasil que possui como ob jeto condenar atos de violência e violação aos Direitos Humanos mo tivados por orientação Sexual Bem como reiterou em 2010 em um projeto de resolução tendo a Bolívia como Estado coautor quando foi acrescentado o termo expressão de gênero Bem como foi reafirmado em 2011 pelo Brasil tendo como coautor os Estados Unidos Argenti na El Salvador e Costa Rica apresentaram projeto de resolução Em 2013 foi aprovada a Convenção Interamericana contra Toda Forma de Discriminação e Intolerância que no seu escopo traz con ceitos de discriminação direta e indireta A Convenção repudia qual quer tipo de discriminação e reafirma o princípio da igualdade A Comissão recebeu e cuidou de várias denúncias referentes a ho mofobia nos estados membros Destacase o caso José Alberto Pérez Meza vs Paraguai no qual durante uma visita ao Paraguai a Comis são recebeu denúncia alegando que a justiça do país não reconheceu o vínculo que o denunciante havia constituído com seu parceiro em uma relação homoafetiva a fim de que este último pudesse usufruir do direito a sucessão entre outros Também não obteve sucesso ao pleitear na justiça interna o reconhecimento de casamento aparente as cortes internas julgaram o pedido improcedente alegando que a le gislação vigente proibia expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo O ordenamento jurídico paraguaio prevê o casamento aparente apenas para um relacionamento composto entre um homem e uma mulher A Comissão rejeitou a denúncia unicamente por esta não preencher os requisitos formais Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 347 CONCLUSÃO Diante do exposto é possível verificar que a prática da homofobia ex plícita ou velada manifestada através de uma conduta homofóbica constitui em grave transgressão da legislação brasileira Ante o com promisso internacional assumido pelo Brasil o descumprimento dos deveres de proteção pode levar o Brasil a ser acionado na Comissão Interamericana de Direitos Humanos e eventualmente esta denúncia poderá resultar em um acordo entre a Comissão e o Brasil para erradi car a homofobia ou poderia levar o Brasil a ser denunciado na Corte Interamericana de Direitos Humanos Em caso de denúncia do Brasil à Corte Interamericana de Di reitos Humanos poderia gerar sanções para o Brasil Para evitálas a Administração Pública deve rever sua política em relação ao tema para coibir eventuais homofóbicas O debate acerca deste tema é in dispensável para garantir o fiel cumprimento das disposições consti tucionais relativas à Administração Pública aos direitos e garantias individuais nela previstos e também os tratados internacionais de Di reitos Humanos dos quais o Brasil é parte REFERÊNCIAS AGÊNCIA NACIONAL DE VIGILÂNCIA SANITÁRIA Resolução nº 153 de 2004 Determina o Regulamento Técnico para os procedimentos hemote rápicos incluindo a coleta o processamento a testagem o armaze namento o transporte o controle de qualidade e o uso humano de sangue e seus componentes obtidos do sangue venoso do cordão umbilical da placenta e da medula óssea Disponível em wwwsbpc orgbruploadnoticiasgerais320100416113458pdf Acessado em 13 maio 2018 AGUIAR JÚNIOR Carlos Augusto Machado O DIREITO À AN TIDISCRIMINAÇÃO DE PESSOAS LGBT Análise das estratégias normativas para o enfrentamento da homofobia 2016 135 f Disserta ção Mestrado em Direito Constitucional Universidade de Fortale 348 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça za Fortaleza Disponível em wwwuolpuniforbroulconteudosite F10663420170131142646616157Dissertacaopdf Acessado em 13 maio 2018 BRASIL Constituição da República Federativa do Brasil Brasília Senado 1988 Constituição 1988 Emenda Constitucional nº 19 de 04 de junho de 1998 Modifica o regime e dispõe sobre princípios e normas da Administração Pública servidores e agentes políticos controle de despesas e finanças públicas e custeio de atividades a cargo do Distrito Federal e dá outras providências In CONSTITUIÇÃO DA REPÚ BLICA FEDERATIVA DO BRASIL Brasília Senado 1998 Código Civil Lei 10406 de 10 de janeiro de 2002 1a edi ção São Paulo Revista dos Tribunais 2002 Decreto nº 1171 de 22 de junho de 1994 Aprova o Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil do Poder Executivo Fe deral Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03decreto d1171htm Acessado em 25 maio 2018 Decreto 44463 de 8 de novembro de 2002 Promulga a De claração de Reconhecimento da Competência Obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos sob reserva de reciprocidade em consonância com o art 62 da Convenção Americana sobre Direi tos Humanos Pacto de São José de 22 de novembro de 1969 Dispo nível em httpwwwplanaltogovbrccivil03decreto2002d4463 htm Acessado em 25 maio 2018 Lei n 8429 de 2 de junho de 1992 Dispõe sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato cargo emprego ou função na administração pública direta indireta ou fundacional e dá outras providências Bra sília DF junho 1992 CARVALHO Filho José dos Santos Manual de direito administrati vo 31 Ed rev atual e ampl São Paulo Atlas 2017 DI PIETRO Maria Sylvia Zanella Direito Administrativo São Pau lo Atlas 2014 Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988 São Paulo Atlas 2012 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 349 FERNANDES Belmiro Vivaldo Santana O dano moral por discri minação à pessoas em decorrência de orientação sexual 2006 139 f Dissertação Mestrado em Direito Universidade Federal da Bah ia Salvador Disponível em wwwrepositorioufbabrribitstream ri90311BELMIRO20VIVALDO20SANTANA20FERNAN DES2020DissertaC3A7C3A3opdf Acessado em 13 maio 2018 JELLINEK Georg Teoría General Del Estado Cidade do México Fundo de Cultura Econômica 2002 MEIRELLES Hely Lopes Direito Administrativo Brasileiro São Paulo Malheiros 2002 MÜLLER Friedrich Métodos de trabalho do direito constitucional 3 ed Rio de Janeiro Renovar 2005 OEA Carta da Organização dos Estados Americanos Disponível em httpwwwoasorgdilporttratadosA41CartadaOrgani zaC3A7C3A3odosEs tadosAmericanoshtm Acessado em 20 jan 2018 Convenção Americana sobre os Direitos Humanos Pacto de São José da Costa Rica Disponível em wwwcidhoasorgba sicosportuguescconvencaoamericanahtm Acessado em 11 jan 2018 Asamblea general Resolución n 24352008 de 03 de jun de 2008 Derechos humanos orientación sexual e identidad y expre sión de gênero Disponível em wwwoasorgdilespAGRES2435 XXXVIIIO08pdf Acessado em 15 maio 2018 ONU Declaração Universal dos Direitos Humanos Disponível em wwwnacoesunidas orgdireitoshumanosdeclaração acessado em 10 jan 2018 Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos Dis ponível em httpwwwcneptsitesdefaultfilesdl2pactodirei toscivispoliticospdf Acessado em 24 de maio de 2018 PARAGUAY Ley nº 1183 de 23 de diciembre de 1985 Código Civil de la República de 350 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Paraguay Disponível em wwwoasorgjuridicospanishmesicic3 pryley1183pdf Acessado em 15 maio 2018 Constitución de la República de Paraguay 1992 Disponível em wwwoasorgjuridicomlaspprysppryinttextconstpdf Acessado em 15 maio 2018 VECCHIATTI Paulo Roberto Iotti VIANA Thiago Gomes LGBTI E O SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS A construção da cidadania internacional arcoíris Revista eletrônica Publica Direito Disponível em wwwpublica direitocombrartigoscoda3f66d3a6aab9fa2 Acessado em 13 maio 2018 351 A IMPLEMENTAÇÃO DA DECISÃO DA CORTE EUROPEIA DE DIREITOS HUMANOS NO CASO VALLIANATTOS E OUTROS VS GRÉCIA A LUTA CONTRA O AUTORITARIMO E BUSCA PELOS DIREITOS SOCIAIS Milena Queiroga Silva205 Camila Soares Lippi206 Resumo Em 2015 finalmente os casais de pessoas do mesmo sexo passaram a ter acesso à união civil na Grécia o que levou aos estudio sos da área de Direitos Internacional de Direitos Humanos a se ques tionarem qual o impacto que o caso Vallianattos e outros vs Grécia teve no processo de mudança social que possibilitou esse avanço Esta pesquisa buscou problematizar o caso Vallianattos e a luta pelos avan ços na agenda queer tanto no cenário internacional quanto a nível doméstico para então chegar à conclusão de que o caso não foi ape nas um dos instrumentos utilizados pelo movimento queer que ao perceber que a austeridade econômica tem um impacto sociocultural tão devastador quanto o autoritarismo passou questionar a postura antidemocrática e a ordem sexual imposta pelo Estado Palavraschave Vallianattos Grécia Queer 205 Advogada bacharel em direito pelo Centro Universitário do Amapá CEAP e graduanda em Relações Internacionais na Universidade Federal do Amapá 206 Docente na Universidade Federal do Amapá Doutoranda em Relações Inter nacionais na PUCRio 352 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça INTRODUÇÃO Em 2015 a Grécia aprovou uma lei que possibilitou o acesso de casais do mesmo sexo à união civil Tal vitória representou um importante passo na promoção da agenda queer no país O fato de que dois anos antes dessa importante conquista em 2013 o país foi condenado no âmbito da Corte Europeia de Direitos Humanos pela promulgação de uma Lei que introduzia um tratamento discriminatório negando aos casais de pessoas do mesmo sexo a possibilidade do acesso à união estável fez com os estudiosos da área se questionassem sobre o efeito da sentença do caso Vallianattos teve nessa decisão À primeira vista pode parecer essa mudança foi um resultado direto da condenação do país pela Corte Europeia de Direitos Humanos Por isso para entender o cenário que possibilitou o reconhecimento da união civil entre pessoas do mesmo sexo na Grécia esta pesquisa tratou da evolução discursiva em relação à sexualidade e como está se refletiu no Direito Internacional de Direitos Humanos a qual pode ser percebida em relação aos instrumentos de proteção de direitos hu manos que tratam da temática os quais não existem nesse caso e por meio da produção de jurisprudência no âmbito da Corte Europeia Desde que a temática chegou ao Sistema Europeu de Direitos Humanos esperouse que a Corte se tornasse um espaço queer aju dando a desconstruir os axiomas sociais relacionados à sexualidade que partem da ótica de uma sociedade que se baseia em uma ordem social heteronormativa no entanto o apego à família tradicional tan to por parte dos tribunais domésticos quanto pela Corte Europeia de Direitos Humanos representou um obstáculo para a evolução da te mática CASO VALLIANATTOS E OUTROS V GRÉCIA Em 2008 entrou em vigor na Grécia a Lei 37192008 intitulada Re forms concerning the family children and society a qual possibilitava a união civil entre duas pessoas de sexos diferentes excluindo automa ticamente de seu escopo casais entre pessoas do mesmo sexo Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 353 Diante da impossibilidade do acesso à união civil um casal seis cidadãos gregos e uma associação peticionaram à Corte Europeia de Direitos Humanos alegando que tal Lei introduzia um tratamento diferenciado baseado na orientação sexual violando assim o art8207 direito à vida privada e vida em família em conjunto com o art14208 direito à nãodiscriminação da Convenção Europeia de Direitos Hu manos ECHR 2013 p2 Os peticionários basearam sua linha argumentativa na alegação de que embora o Estado não estivesse obrigado a dar reconhecimen to legal para o relacionamento entre homossexuais a Lei 37192008 introduzia uma diferenciação discriminatória e injustificada ECHR 2013 p2 Eles ressaltaram que embora a legislação nos países europeus não apresente um consenso a respeito do casamento ou união estável en tre pessoas do mesmo sexo ela tende para o reconhecimento legal da relação de casais do mesmo sexo e que o desejo de proteger a família tradicional não poderia justificar um tratamento diferenciado E que o Estado ao invés de tomar medidas positivas para superar o precon ceito contra gays e lésbicas o estava reforçando ao fazer a distinção na lei em questão ECHR 2013 p22 Em sua defesa o Estado afirmou que os casais de pessoas do mes mo sexo poderiam ter sua relação regulada através da realização de um contrato ordinário e que a legislação tinha como escopo proteger os filhos nascidos fora do casamento tornando mais fácil os pais cria rem seus filhos sem serem obrigados a casar e reforçar a instituição do casamento e a família tradicional ECHR 2013 p29 207 Art8º 1 Qualquer pessoa tem direito ao respeito da sua vida privada e familiar do seu domicílio e da sua correspondência 2 Não pode haver in gerência da autoridade pública no exercício deste direito senão quando esta ingerência estiver prevista na lei e constituir uma providência que numa socie dade democrática seja necessária para a segurança nacional para a segurança pública para o bem estar económico do país a defesa da ordem e a prevenção das infracções penais a protecção da saúde ou da moral ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros 208 Art14º O gozo dos direitos e liberdades reconhecidos na presente Con venção deve ser assegurado sem quaisquer distinções tais como as fundadas no sexo raça cor língua religião opiniões políticas ou outras a origem nacio nal ou social a pertença a uma minoria nacional a riqueza o nascimento ou qualquer outra situação 354 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Ao ponderar os argumentos apresentados por ambas as partes a Corte concluiu que os casais de pessoas do mesmo sexo necessitam do mesmo reconhecimento e proteções legais que os casais de pessoas de sexos diferentes e que dar a possibilidade de constituir uma união civil apenas para casais de pessoas de sexos diferentes constituía uma dife rença de tratamento baseada na orientação sexual ECHR 2013 p28 Além disso a Corte apontou que assim como foi entendido no caso Shalk e Kopf209 considerando a rápida evolução na quantidade de países reconhecendo legalmente o casamento entre pessoas do mesmo sexo seria infundado dar um tratamento diferente para casais de pes soas de sexos deferentes e aqueles formados por pessoas do mesmo sexo quanto ao gozo do direito à vida familiar ECHR 2013 p26 O Tribunal considerou que mesmo que proteger as crianças nas cidas fora do casamento e fortalecer a instituição do casamento pro movendo a noção de que a decisão de casar deve ser tomada com base apenas no comprometimento mútuo entre os indivíduos sejam mo tivos legítimos o escopo de proteger a família tradicional é abstrato ECHR 2013 p 29 Na sentença também ficou clara a importância de observar se o princípio da proporcionalidade210 estava sendo respeitado devendo o Estado levar em consideração que a Convenção é um instrumento vivo sendo imperioso interpretála à luz da evolução da sociedade e das mudanças de percepção do status social e civil das relações in cluindo o fato de que não só há uma forma uma opção quando se trata de família ou vida privada ECHR 2013 p29 O tribunal alegou que apesar da margem de apreciação211 dos Estados nesses casos seria necessário provar que a diferença de tra 209 Caso julgado pela Corte em 2012 no qual um casal homossexual que teve a permissão para o casamento negada alegou que a impossibilidade legal de casarem constituía uma violação ao direito à vida privada vida familiar e ao princípio da não discriminação 210 Para atender a este princípio é necessário que haja uma relação razoável de proporcionalidade entre os meios empregados e seu objetivo 211 Margem de apreciação é o critério hermenêutico utilizado pela Corte Euro peia para se abster de se manifestar sobre determinado assunto quando não há um posicionamento pacificado acerca da temática pelos Estadosmembros da Convenção Europeia de Direitos Humanos Essa margem é pouca nesses casos pois a orientação sexual é um conceito englobado no art14requerendo assim razões convincentes para justificar a diferença de tratamento ECHR 2013 p278 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 355 tamento baseada na orientação sexual seria necessária para a lei para alcançar o seu objetivo Ressaltouse também que para tratar indivíduos de formas dife rentes é necessário que haja objetivo e justificativa razoável devendo se provar que tal medida foi tomada em prol de um fim legítima caso contrário constituirá tratamento discriminatório ECHR 2013 p29 A Corte levou em consideração que a noção de discriminação en globada no art14 da Convenção Europeia de Direitos humanos tam bém inclui como um grupo de pessoas é tratado sem uma justificativa razoável menos favoravelmente que outros ainda mais quando esse tratamento não é requerido pela Convenção ECHR 2013 p27 Por fim considerouse que o argumento do Estado falhou em provar que o tratamento diferenciado era necessário para que a lei al çasse seu objetivo Não seria impossível para a lei incluir medidas lidando especificamente com crianças nascidas fora do casamento ao mesmo tempo estendendo aos casais de pessoas do mesmo sexo o direito de entrarem em uma união civil Diante disso por dezesseis votos contra um a Corte considerou violado o artigo 14 em conjunto com o artigo 8 da Convenção Europeia de Direitos Humanos ECHR 2013 p302 Dois anos após o julgamento em 23 de dezembro de 2015 foi aprovada uma lei que permite a união civil entre duas pessoas do mes mo sexo o que leva ao questionamento da motivação da mudança social que possibilitou o acesso aos homossexuais ao casamento em um país que em 2013 promulgou uma lei que não permitia a estes a realização de uma união civil Foi a sentença do Caso Vallianattos ou outros fatores motivaram tal mudança O desconhecimento acerca do ativismo LGBT no país pode fazer parecer que o reconhecimento do casamento entre pessoas do mesmo sexo é fruto direito da condenação da Grécia pela Corte Europeia de Direitos Humanos No entanto essa vitória é fruto de um trabalho intenso por parte da sociedade civil organizada que começou muito antes da Corte Europeia existir Embora a jurisprudência seja um importante instrumento de transformação social a sentença do Caso Vallianattos deixou a desejar em alguns aspectos perpetuando a ideia de que a proteção da família tradicional ainda é um escopo legítimo 356 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A Luta Contra o Autoritarimo e Busca pelos Direitos Sociais Durante séculos ao redor do mundo milhares de pessoas foram marginalizadas perseguidas submetidas a tratamentos cruéis e de gradantes sofrendo violações sistemáticas de direitos humanos den tre essas pessoas encontrase a população LGBT Da inquisição Católica no século XII passando pelo regime na zista até os tempos atuais os homossexuais foram e são alvos de per seguição pelos mais diversos motivos o que leva ao questionamento da fonte de ódio que faz com que essa parcela da população tenha direitos negados ou limitados recebendo um tratamento diferenciado em relação aos demais indivíduos Não é de hoje que discussões acerca de sexualidade gênero e orientação sexual vem sendo travadas Sendo a sexualidade um ele mento fundamental da identidade individual e um aspecto relevante da vida privada NAYARAN 2006 p313 a temática não poderia ficar de fora da pauta políticosocial das mais diversas sociedades ao redor do mundo Segundo Foucault no século XVII iniciouse o professo de si lenciamento das questões ligadas a sexualidade reduzindo a presença da temática no discurso Um século mais tarde o assunto voltou a ser discutido Ficou claro que uma depuração no vocabulário havia sido feita a fim de atender as exigências de uma moral fortemente influen ciada pela religião O controle discursivo sobre sexualidade tornou evidente o poder exercido sobre o assunto Foi criado um aparelho para produzir ver dades o qual estava em grande parte nas mãos dos cientistas pois a sexualidade era tida como algo biológico Eles atribuíam às menores oscilações da sexualidade uma dinastia imaginária de males fadados a repercutirem sobre as gerações FOUCAULT 1988 p54 Fica claro então que a verdade que foi sendo construída e con sequentemente influenciou profundamente todos os setores sociais faz com que a sexualidade se tornasse um dispositivo histórico de po der que segundo Foucault consiste em Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 357 um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discur sos instituições organizações arquitetônicas decisões regula mentares leis medidas administrativas enunciados científicos proposições filosóficas morais filantrópicas Em suma o dito e o não dito são os elementos do dispositivo O dispositivo é a rede que se pode tecer entre estes elementos FOUCAULT 1988 p 244 Um longo caminho foi percorrido até hoje e embora a temática aparente ter sido exaustivamente tratada durante séculos o desenvol vimento na área foi lento e se desenrolou de forma mais intensa com o surgimento do movimento feminista A discussão sobre sexualidade evoluiu muito mais que as ques tões de gênero a qual ganhou suporte com o surgimento da teoria queer que emergiu nos Estados Unidos na década de 80 até então as ciências sociais pareciam conceber a ordem social como sinônimo de heterossexualidade de forma que até mesmo os estudos sobre mino rias preservavam a norma heterossexual JESUS 2014 p42 A teoria queer foi responsável por uma discussão profunda acer ca da sexualidade que foi e ainda é tratada por muitos como uma questão biológica partindo de uma concepção binária de que se nasce homem ou mulher demonstrando que a realidade é muito mais com plexa abarcando fatores que extrapolam o campo das ciências biológi cas diante de tal fato fezse necessário que outras ciências passassem a refletir sobre o assunto Essa teoria parte do pressuposto de que é necessário desconstruir os conceitos fechados de identidade sexo orientação sexual e gênero pois el género es una construcción social que permite repensar las identidades independientemente de la lógica binaria de los sexos y la matriz heterosexual de la ley BORRILLO 2011 p29 Historicamente perpetuasse a ideologia de complementariedade a qual parte da lógica de que cada um tem um papel o qual determi na uma função social específica e uma identidade psicológica própria BORILLO 2011 p40 tradução livre da autora Essa lógica faz com que as relações homossexuais sejam vistas como anormais pois cria a ideia de que é necessário que os papéis de homem e mulher sejam preenchidos para que uma relação seja válida 358 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A nossa ordem social se baseia em um pressuposto de heterosse xualidade como natural ou seja tratase de uma ordem heteronorma tiva e isso se reflete diretamente não só na vida dos indivíduos através da moral mas como também no ordenamento jurídico que ignora a existência dos homossexuais suprimindo eou limitando muitos di reitos que deveriam ser garantidos a todos apenas pela sua condição de ser humano Conhecer o histórico discursivo acerca de sexualidade é impor tante para entender como isso afeta o acesso dos homossexuais a cer tos direitos É preciso ter em mente que o direito é um produto cul tural e como tal surge em uma determinada realidade num marco específico e histórico de relações sociais morais e naturais FLORES 2008 p41 tradução livre da autora ou seja as normas produzidas são fruto de uma valoração de um fato em um determinado marco temporal refletindo as crenças morais políticas e religiosas da socie dade A heterossexualidade compulsória presente nos discursos da nossa ordem social se reflete no mundo do direito através da cons trução de um sistema heteronormativo que baseia as suas normas na existência de indivíduos que se enquadrem no padrão da normalida de atendendo as suas necessidades e considerando apenas estas como legítimas e dignas de proteção Ou seja através da estrutura do sistema jurídico de poder há a construção de um sujeito o qual só goza de proteção por seguir os cri térios estabelecidos Sendo assim em virtudes de a elas estarem con dicionados os sujeitos regulados por tais estruturas são formados de finidos e reproduzidos de acordo com as exigências delas BUTLER 2003 p189 Percebese então que o direito dita o que é normal e o que não é pois os direitos por definição são o normal isto é o que estabelece a norma o que está incluído no corpo social RIPOLL 2009 p88 En tender teoria queer em um contexto jurídico se faz necessário diante do fato de que os ordenamentos jurídicos são produzidos a partir de um pressuposto de heterossexualidade compulsória excluindo parte da população tida como desviante Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 359 Os que não se enquadram no padrão são considerados anormais e relegados à marginalidade Exemplo disso é o fato de que por serem considerados desviantes os homossexuais têm acesso ao casamento em apenas vinte e três países ao redor do mundo212 Diante da produção e apagamento de indivíduos considerados como desviantes pela sociedade o direito acaba se tornandose cúmplice dessas violências em muitas ocasiões excluindo ex plícita ou implicitamente as pessoas LGBT por exemplo os direitos somente para casais heterossexuais ou tornandoas vi síveis de uma maneira que as exclui da sociedade por exemplo com tipos de presídios especiais RIPOLL 2009 p87 Fica claro que a forma como a sexualidade é encarada pela socie dade influencia em como os indivíduos que não se enquadram no pa drão estabelecido são tratados no universo jurídico sendo necessário portanto que haja a ressignificação de diversos conceitos pela socie dade para que os homossexuais tenham o mesmo tratamento jurídico Embora o Direito acabe por corroborar com o preconceito sen do instrumento em prol de um discurso através do processo judicial podese criar um espaço de lutas interpretativas e de lutas de poder onde os direitos e as próprias identidades sexuais são negociados e construídos SANTOS DUARTE LIMA 2000 p45 Ou seja o Direito pode ser utilizado como um instrumento de transformação social Percebendo isso os ativistas de direitos huma nos ligados à causa LGBT passaram a enxergar os sistemas de proteção de direitos humanos como uma ferramenta de empoderamento des sa minoria vendo na jurisprudência uma oportunidade de promover mudanças nos significados sociais atribuídos à sexualidade gênero e orientação sexual 212 Os países que já reconheceram o direito de pessoas do mesmo sexo terem acesso ao casamento ou outro instituto semelhante são Holanda Bélgica Es panha Canadá África do Sul Noruega Suécia Portugal Argentina Islândia Dinamarca Brasil Uruguai Nova Zelândia França Inglaterra País de Gales Escócia Luxemburgo Finlândia Irlanda Estados Unidos Grécia 360 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Embora as questões voltadas para gênero e sexualidade viessem ganhando espaço na academia o efeito dessa discussão do mundo acadêmico não pôde ser sentido de imediato no Direito Internacional dos Direitos Humanos Apesar da proliferação de instrumentos de proteção de direitos humanos nenhum instrumento não citava explicitamente a discrimi nação com base na orientação sexual o que faz com que as minorias sexuais continuem a temer a esmagadora ameaça de perseguição pelo Estado sendo necessária uma maior proteção internacional para que gays e lésbicas possam atingir até mesmo os direitos humanos mais fundamentais NAYARAN 2006 p315 Desde que a temática chegou ao Sistema Europeu de proteção de direitos humanos na década de 80 a Corte já se manifestou sobre os mais diversos assuntos envolvendo os homossexuais como a crimina lização das relações homossexuais direito à privacidade não discri minação direito ao casamento dentre outros Esperavase que a Corte se tornasse um espaço queer servindo de instrumento para que o movimento LGBT conseguisse constran ger os Estados a promover mudanças efetivas no tratamento dado a esses indivíduos em suas legislações nacionais ajudando a promover a igualdade possibilitando aos homossexuais acesso a direitos que lhes são negados ou limitados apenas com base em sua orientação sexual É evidente a resistência dos Estados ao avanço dos direitos LGBT seja em âmbito doméstico seja no âmbito da ONU e dos Sistemas Regionais de Proteção dos direitos humanos mesmo com a expansão da secularização de sociedades religiosas as objeções morais feitas contra as minorias sexuais aumentaram em escala global NAYARAN 2006 p322 Foi através da luta travada pelos ativistas que o movimento LGBT começou a ganhar voz tanto nos cenários nacionais quanto no cená rio internacional Um importante passo dado na busca pela igualda de de tratamento dos homossexuais em relação aos heterossexuais foi a retirada do sufixo ismo indicativo de doençapela Organização Mundial da Saúde na década de 90 MIRANDA 2006 p79 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 361 Ao mesmo tempo em que o ativismo buscava avanços no cenário internacional lutas em prol dos direitos LGBT também foram trava das domesticamente a exemplo disso temos a Grécia Com o fim da ditadura militar em 1974 grupos como o movimento de liber tação de homossexuais da Grécia passaram a surgir e se articular para promover a agenda queer no país a qual a passou a abranger cada vez mais grupos sexuais marginalizados com o decorrer do tempo O movimento no entanto só se solidificou após 2004 com a reativação do movimento antiautoritário fazendo com que a luta por direitos para a população LGBT estivesse interligada com a luta con tra o autoritarismo mesmo em períodos democráticos como se pode perceber pelo intenso ativismo durante o período de austeridade na Grécia ELEFTHERIADIS 2015 p1040 Embora quando se trate em austeridade a primeira consequência a qual a lógica nos remete seja econômica o impacto de uma crise eco nômica tem um efeito sociocultural devastador Para enfrentar a crise a Grécia implementou cortes na educação e saúde aliado aos cortes em setores fundamentais para o bemestar da população aumentou o uso de força policial contra grupos marginalizados da sociedade Nesse contexto os Grupos queer interpretaram as medidas to madas pelo governo qual reforçou o gerenciamento de questões mi gratórias controlando a prostituição e criminalizando os portadores de HIV como uma afronta passando a buscar construir um espaço discursivo autônomo como uma resposta a austeridade ELEFTHE RIADIS 2015 p1034 A exemplo desse esforço em 2013 foi senten ciado o caso Vallianattos e outros v Grécia CONSIDERAÇÕES FINAIS Os LGBTs sofreram e continuam a sofrer violações de direitos huma nos A eles é dado um tratamento diferente principalmente quando se trata a ter acesso a direitos relacionados à família sendo negado o acesso a diversos direitos dentre eles o casamento 362 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A sociedade civil organizada não fecha os olhos para essa reali dade e ao notar que o Direito que frequentemente dá um tratamento diferente para LGBTs limitando seu escopo aqueles indivíduos que considera dentro do padrão heteronormativo poderia ser um instru mento de transformação social passou a travar lutas tanto no cenário internacional quanto no doméstico O ativismo queer demonstrou se tornar mais intenso na Grécia quando o país está enfrentando um período de autoritarismo por par te do Estado o que levou consequentemente a uma intensificação do ativismo no período de austeridade A tirania do Estado que passou a tratar com violência os grupos marginalizados da população fez com que fosse necessária a mobilização do ativismo para dar uma resposta de resistência Sendo assim não foi por acaso que o Caso Vallianattos chegou a Corte Europeia de Direitos Humanos era necessário que fosse exerci do uma pressão a nível internacional para que a promoção da agenda queer no país ganhasse apoio frente a um Estado autoritário Embora a Corte tenha falhado em muitos aspectos a jurispru dência produzida ainda representa um instrumento de transformação social Por meia dela se reconheceu a necessidade do reconhecimento e proteção legal das relações entre pessoas do mesmo sexo Além disso embora os avanços acerca da temática ainda sejam lentos no âmbito da Corte Europeia há pelo menos a garantia de esse espaço pode ser utilizado para negociação e construção de significa dos É por isso que mesmo que o Caso Vallianattos não tenha sido a única e principal fonte que possibilitou a mudança de posicionamento do Estado grego dando reconhecimento e proteção legal para as relações homossexuais ainda sim teve um papel importante servindo de instrumento para promoção da agenda queer no país Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 363 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BORRILLO Daniel Por una teoria Queer del derecho de las personas y famílias Rio de Janeiro Direito Estado e Sociedade 2011 Disponível em httpdireitoestadosociedadejurpucriobrmediaartigo2pdf Acesso em 2672016 BUTLER Judith Problemas de gênero feminismo e subversão da identi dade Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2003 ECHR Case of Shalk and Kopf v United Kingdom no 3018104 judgment of 24 june 2010 Disponível em Acesso em 22 de março de 2015 Case of Vallianattos and others v Greece nos 2938109 and 3268409 judgment of 7 November 2013 Disponível em httphudocechr coeintengi001128294 Acesso em 30 de março de 2010 ELEFTHERIADIS Konstantinos Queer response to Austerity Insights from Greece of crisis ACME An International EJournal for Critical Geo graphies p10321057 14 4 2015 FLORES Joaquim Herrera Os direitos humanos no contexto da globaliza ção três posições conceituais Lugar Comum nº2526 pp 3971 2008 FOUCAULT Michel História da Sexualidade a vontade do saber 13ª ed Rio de Janeiro Edições Graal 1988 JESUS Diego Santos Vieira de O Mundo fora do armário teoria queer e relações internacionais Revista Ártemis Vol XVII nº 1 janjun 2014 pp 4150 MIRANDA Fábio Guimarães União Civil Homoafetiva no Direito brasi leiro 200669f Monografia Conclusão de Curso Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Faculdade Mineira de Direito NARAYAN Pratima Somewhere over the rainbowinternational hu man rights protection for sexual minorities in the new millennium Boston University Internacional Law Journal vol 24313 2006 pp 313348 RIPOLL Julieta Lematre Amor em tempos de cólera Direitos LGBT na Co lômbia Revista Sur v 6 n 11 dez de 2009 364 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça SANTOS Cecília MacDowel SANTOS Ana Cristina DUARTE Madalena e LIMA Teresa Maneca Homoparentalidade e desafios ao direito O caso Silva Mouta na justiça portuguesa e no Tribunal Europeu de Direitos Huma nos Revista Crítica de Ciências Sociais 87 2009 365 O SISTEMA DE DETERMINAÇÃO DA CONDIÇÃO DE REFUGIADO LGBTIQA COMO INSTRUMENTO COLONIZATÓRIO Natalia Cintra de Oliveira Tavares213 Vinicius Pureza Cabral214 RESUMO A partir das teorias e de feminismos decoloniais analisamos como o Direito de Refúgio com sua perspectiva eurocentrada reproduz práticas de co lonialismo jurídico nas vidas de muitos solicitantes de refúgio notadamente dos indivíduos LGBT que tenham sofrido algum tipo de perseguição devido à orien tação sexual ou identidade de gênero Nesse sentido argumentamos que o tomador de decisão dos processos de determinação da condição de refugiado está imerso nas perspectivas institucionais do Estado Moderno tanto hetero quanto homonorma tivas cuja figura arquetípica da homotranssexualidade é ocidental branca e com alto potencial de compra Concluímos que em decorrência disso os procedimen tos de determinação da condição de refugiado servem como instrumento de um tipo de violência colonialista sobre os corpos LGBT fora da homonormatividade marcando as diferenças entre o Estado salvador e aqueles tutelados da selvageria nãoocidental PalavrasChave Refúgio LGBT Colonialismo Jurídico 213 Professora Assistente de Direito Internacional na UFRJ Doutoranda em Direi to na PUCRio Advogada e Subcoordenadora do Centro de Proteção a Refu giados e Imigrantes da Fundação Casa de Rui Barbosa 214 Internacionalista pela UFF e Agente de Proteção no Centro de Proteção a Re fugiados e Imigrantes da Fundação Casa de Rui Barbosa 366 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça INTRODUÇÃO Não faz muito tempo que o tema dos refugiados LGBT se tornou uma das agendas das organizações internacionais relacionadas às mi grações forçadas Só ao final da década de 1990 e na entrada dos anos 2000 é que pedir refúgio com base em perseguição por orientação sexual ou identidade de gênero OSIG se tornou uma possibilidade vislumbrada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refu giados ACNUR que a materializou nas Diretrizes não vinculantes sobre Proteção Internacional nº 09 de 2012 Não obstante essa sutil evolução no âmbito do Direito de Refúgio muitos desafios precisam ser ainda superados especialmente naquilo que se refere à atuação dos tomadores de decisão A falta de treinamento a falta de sensibilidade a LGBTIQfobia institucionais entre outros são notáveis nas decisões de pedidos de refúgio baseadas em perseguição por OSIG Uma das consequências atrozes dessa realidade é a criação arquetípica da real homotransse xualidade É neste ponto portanto que pretendemos aprofundar o de bate a fim de investigar como a colonialidade dos corpos e dos saberes se manifesta nas decisões de pedidos de refúgio de pessoas LGBT e como por consequência muitas performam padrões colonizadores para serem reconhecidas como refugiadas O Direito de Refúgio construído numa lógica eurocentrada e tendo sido objeto de diversas interpretações ao longo dos anos acaba por ser aplicado atualmente em conformidade com as estruturas co lonizadas das sociedades ocidentais isto é as sociedades que conce dem refúgio são as salvadoras e as sociedades da onde saem os refugia dos por sua vez retrógradas e involuídas O mito do salvador branco também se reflete nas decisões de refúgio o que por conseguinte se reflete na análise individual dos casos apresentados ao tomador de de cisão Essa relação entre o civilizado e este seroutro parafraseando Mbembe 2014 ontologicamente violenta é responsável pela criação das verdades categóricas que produzem o serrefugiado No caso da pessoa LGBT isso não seria diferente Assim pretendemos por fim compreender como o Direito de Refúgio é responsável pela reprodu ção de violências nos corpos das pessoas refugiadas LGBT devido à sua lógica probatória e categorizadora acabando por exigir gestos Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 367 performativos de sexualidade e gênero que não correspondem às vi vências de muitos indivíduos LGBT ESTADO MODERNO HOMONORMATIVO Carole Pateman autora dO Contrato Sexual à semelhança dos teóri cos contratualistas tais como Hobbes Locke e Rousseau desenvolve uma tese envolvendo o contrato social No entanto diferentemente dos filósofos que a antecederam Pateman narra uma história de sujei ção que é a do contrato sexual Para ela a divisão sexual do trabalho delimitou o mundo em duas esferas quais sejam a pública e a priva da A primeira onde se encontrariam cidadãos e trabalhadores e a segunda onde se encontram as mulheres inaptas para a construção do pacto social Este contrato sexual implícito e paralelo ao contrato social impede o pleno acesso das mulheres à política e à cidadania colocando seus corpos como objetos de fácil acesso para homens Monique Wittig por sua vez vai além para ela o contrato so cial pressupõe não somente um contrato sexual mas heterossexual no sentido de que se baseia em uma construção de mundo binária de diferenciações e classificações sociais entre homens e mulheres masculino e feminino homosse xual e heterossexual transgênero e cisgênero Este sistema de diferenciações e classificações é responsável por criar padrões docilizar um grupo em detrimento do outro subordinar opri mir determinar funções e explorar o trabalho Tavares 2016 p 31 De igual maneira Paulo Preciado 2014 p 21 destaca que as diferenças de gênero e sexo são produto do contrato social heterocen trado cujas performatividades normativas foram inscritas nos corpos como verdades biológicas E de acordo com Wittig apud Curiel 2013 p 54 essa diferenciação não somente constitui as mulheres mas to dos os grupos oprimidos haja vista que a diferença é produzida desde um lugar de poder de dominação 368 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça No âmago do Estado Moderno pois há o lugar definido da or dem a norma é heterocentrada No entanto à medida que a defesa dos direitos humanos se institucionalizou na comunidade interna cional especialmente por meio da Organização das Nações Unidas ONU defendêlos discursivamente e por meio de leis e tratados se tornou parte do capital das nações concebidas como civilizadas no mundo hodierno Dessa forma certos Estados majoritariamente Ocidentais são concebidos como o baluarte dos direitos humanos e consequentemente oásis dos direitos das pessoas LGBTQIA É neste novo contexto que se faz presente um novo conceito qual seja de ho monormatividade que consiste em a politics that does not contest dominant heteronormative assumptions and institutions but upholds and sustains them while promising the possibility of a demobilized gay consti tuency and a privatized depoliticized gay culture anchored in domesticity and consumption Nesse sentido determinados direitos da comunidade nãocishe terossexual são constituídos e garantidos legalmente ao mesmo tem po em que esperase um apoio irrestrito dessa comunidade ao Esta doNação Moderno O EstadoNação como aqui já tratado nasceu e se mantém he teronormativo por razões além daquelas já expressas relativas por exemplo à sua necessidade de perpetuação e a da verificação da he terossexualidade enquanto característica da modernidade período de constituição estruturação e auge da figura do EstadoNação Tal heteronormatividade basilar se manteve intacta inclusive durante as primeiras décadas de vigência daquilo que hoje é conhecido como Di reito Internacional dos Direitos Humanos por exemplo o qual em seus dispositivos centrais não incluía a proibição de discriminação com base em orientação sexual de maneira explícita No entanto em virtude dos movimentos sociais LGBTIQA transnacionais e seu ativismo e advocacy junto às diversas esferas de Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 369 poder tanto nacionalmente quanto internacionalmente tornouse in viável a produção de um discurso protetivo de direitos humanos que não incluísse os direitos dessas minorias sexuais215 Dessa forma com o intuito de perpetuarse temporalmente o Es tadoNacional moderno adequouse à nova realidade na qual a pro teção de direitos humanos era ordem do dia e consequentemente a defesa dos direitos da população LGBTIQA Paulatinamente pautas de diversidade sexual e de gênero vão sendo acolhidas nacionalmente e internacionalmente concomitantemente ao crescimento da produ ção discursiva oficial das democracias ocidentais em favor dos direitos de tais minorias Nesse contexto um ideal homonacionalista passa ser forjado no qual figuras específicas dessa comunidade tão heterogênea notadamente aquelas do indivíduo higienizado branco portador de capital passam a ser vistas enquanto parte desse nacionalismo ao passo que corroborase a figura do outro nãoocidental enquanto nãocivilizado e bárbaro Nas palavras de Jasbir Puar então esse mo vimento seria denominado enquanto homonacionalismo no qual a nação heteronormativa incorpora certos aspectos ditos nãoheteros sexuais ao mesmo tempo em que tais minorias sexuais abraçariam de olhos fechados a agenda nacionalista de seu país EUROCENTRISMO E DIREITO DE REFÚGIO O Direito Internacional dos Refugiados tem como seu principal mar co a Convenção de Genebra sobre o Estatuto das Pessoas Refugiadas de 1951 doravante mencionada tãosomente como Convenção de 215 Um caso interessante nesse sentido que marcou um ponto de inflexão na his tória do DIDH e da ONU consequentemente foi o Toonen vs Austrália no qual o Estado australiano foi demandado no Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas pelas leis antisodomia então em vigor no território australiano as quais proibiam relações sexuais consensuais entre homens Em sua decisão o Comitê entendeu pela existência de responsabilidade internacional do Estado australiano na medida em que os direitos contidos na Convenção Internacio nal de Direitos Civis e Políticos também deveriam ser garantidos para homens gays sendo a violação perpetrada pela referida legislação uma ilicitude interna cional Tal caso então constituiuse quase que enquanto precedente passando a ser citado tanto em decisões de cortes internacionais quanto por próprios órgãos quasejudiciais da ONU 370 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1951 Essa convenção concebida no âmbito do então recémcriado Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados ACNUR foi forjada para atender as necessidades localizadas na Europa e para os europeus no período pósguerra Nesse sentido a Convenção de 1951 tem tempo e lugar Em 1967 quando se universalizou o conteúdo da Convenção de 1951 não foi alterado ou ampliado apenas reaplicado em outros locais do globo sem qualquer tipo de tradução O diploma normati vo logo foi amplamente disputado devido às limitações conceituais nele implicadas A categoria veiculada de refugiado na Convenção de 1951 em grande medida não corresponderia aos fluxos de refugiados provenientes de muitos conflitos armados tanto na África quanto na Ásia e na América Latina razão pela qual o conceito de refúgio foi ampliado em diplomas regionais tanto no contexto africano quanto no latino De toda forma o Direito de Refúgio nasce em contexto europeu para pessoas europeias ainda que hoje os principais grupos de pessoas que usufruem desse direito não sejam mais da Europa E à medida que os fluxos forçados deixam de ser majoritariamente de europeus sua gestão adquire perspectivas distintas ao mesmo tempo civilizató rias e securitizatórias Alison Gerard 2014 ao analisar as políticas de migração da União Europeia ensina que à medida que o perfil de migrante e de refugiado que circulava e se destinava ao continente europeu se alte rou isto é deixou de ser majoritariamente homens europeus brancos e anticomunistas passando a ter perfis mais heterogêneos quais se jam de pessoas provenientes da África Oriente Médio e da América Latina as políticas migratórias da União Europeia passaram a ser pen sadas em conjunto com as políticas de segurança Em outras palavras a imagem e discursos construídos em torno desses novos fluxos foram de desconfiança acima de tudo de que abusavam da hospitalidade europeia de que eram muitos os números que se constituía em uma invasão Assim a Europa continuamente dependeu de uma política de segurança para a consolidação de uma agenda política de criação de zonas seguras que a isolem dos chamados criminosos e migrantes irregulares Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 371 Para além disso entretanto o Direito de Refúgio também se ins creve na ordem da razão humanitária Nesse sentido argumentamos que a gestão das vidas refugiadas está inscrita na gramática da ges tão humanitária das vidas precárias em que impera o vocabulário do sofrimento da compaixão e da assistência Em outras palavras uma gestão inscrita numa ordem claramente hierarquizada em que as po líticas se fazem de cima para baixo desde o poderoso até o mais fraco do civilizador ao nãocivilizado Essa linguagem presente não só nos discursos escritos e falados das organizações humanitárias ONGs organizações intergoverna mentais agências estatais etc mas também nas imagens divulgadas sobre as pessoas refugiadas propagam a ideia dessa população como essencialmente vulnerável Jane Freedman 2015 estuda como as po líticas humanitárias afetam especialmente a população congolesas de um lado as mulheres congolesas majoritariamente retratadas como vítimas puras essencialmente vulneráveis ou seja mulheres que de vem ser protegidas De outro os homens congoleses dos quais essas mulheres devem ser protegidas geralmente retratados como selva gens Se de um lado das mulheres lhes é retirada a possibilidade de agência política de outro ignora o fato de que men also suffer violence including rape and other forms of violence De fato aduzimos que o Direito de Refúgio ao assumir tal gra mática humanitária também evidencia uma narrativa imperialis ta quando usa nos dizeres de Karina Bidaseca 2011 uma retórica salvacionista de las mujeres color café Nesse sentido o Direito de Refúgio é mais um dos instrumentos para o colonialismo jurídico de monstrado por Bidaseca vez que não é utilizado como instrumento de emancipação de luta de libertação da população refugiada mas de enfraquecimento de sua agência de isolamento e de silenciamento Barbara HarrellBond p 11 inclusive já havia demonstrado que outsiders view African refugees as helpless as needing outsiders to plan for them and to take care of them uma visão impulsionada majo ritariamente pelas agências humanitárias que investem na imagem de desamparo de refugiados especialmente para adquirir financiamento Ao fim e ao cabo o Direito de Refúgio não só coaduna com mas faz parte de um projeto colonizador das pessoas cor de café pelo Oci dente cujos fundamentos civilizatórios e com intenções humanitá 372 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça rias se destinam a África e ao Negro com a justificativa de ajudálos e protegêlos Frantz Fanon 1983 também realiza leitura semelhante sobre o colonialismo ao dizer que ele se destina a todo o continente africano caracterizado nesse discurso como selvagem merecedor de desprezo A colonialidade portanto não representa somente o mo mento histórico do colonialismo na medida em que não se finda com a separação das excolônias de suas metrópoles mas é a reprodução dos discursos que se baseiam na superioridade europeia nas estrutu ras estatais sociais nas relações interpessoais e na produção dos sabe res que se constroem e desenvolvem seguindo padrões eurocêntricos Não é uma coincidência que atualmente os discursos sobre o tema dos refugiados enquadrem essa população cada vez mais como um problema a ser resolvido ao mesmo tempo que as políticas a ela destinada geralmente aprofundam a relação de dependência entre es sas vidas precárias e seus salvadores brancos Nesse sentido o Direito de Refúgio tem sido utilizado como mais um instrumento do colo nialismo jurídico e do poder vez que lança mão de um processo de redução ativa das pessoas a desumanização que as torna aptas para a classificação o processo de sujeitificação e a investida de tornar oa colonizadoa menos que seres humanos Lugones 2014 93 PROCESSOS DE DETERMINAÇÃO DA CONDIÇÃO DE REFUGIADO E AS NARRATIVAS DO REAL QUEER Na medida em que instituto do refúgio surge pelo crivo de Estadosna cionais sob a hegemonia ocidental esperase que o desenvolvimento dessa hegemonia acarrete mudanças de tal instituto protetivo Nes se sentido o desenvolvimento de Estados homonormativos tiveram como consequência a reinterpretação do conceito de refugiado para incluir nela também aquele indivíduo que sofreu ou poderá sofrer perseguição em seu país de origem em razão de sua orientação sexual eou identidade de gênero possibilidade essa que passa a ser vislum brada pelo ACNUR apenas em 2012 através das suas Diretrizes n 09 Uma solicitação de refúgio por perseguição baseada em orien tação sexual e identidade de gênero apresenta uma dificuldade ine Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 373 xistente em muitas outras categorias que dão azo a uma solicitação de refúgio a falta de marcadores externos que comprovem que um indivíduo é realmente transgênero lésbica bissexual gay queer Tal fato faz com que os tomadores de decisão se baseiem amplamente na análise de credibilidade das narrativas dos solicitantes Como se veri ficará tal análise pautase numa noção homonormativa ocidental e colonizatória daquele que seria o real queer Audrey Macklin afirma que existiriam três instrumentos básicos e interconectados para determinação da credibilidade quais sejam a consistência a plausibilidade e a conduta apresentadas pela solici tante No que tange à consistência a mesma se dividiria entre consistên cia interna lógica entre os elementos constantes dentro da narrativa e externa lógica estabelecida entre a narrativa e outros documentos apresentados na solicitação assim como informações de conhecimen to do oficial acerca do país de origem do solicitante A plausibilidade por sua vez seria definida enquanto inferência por parte do oficial a respeito do comportamento que o solicitante deveria ter tido em uma determinada situação de sua narrativa Finalmente a conduta do indivíduo se subdividiria em seu as pecto objetivo atitudes de franqueza e espontaneidade e subjetivo perspectivas do oficial acerca da aparência daquele indivíduo e sua correspondência com a categoria de refúgio segundo a qual se estabe lece a solicitação Ao mesmo tempo em que argumentase aqui a extrema subjetivi dade desses instrumentos e consequentemente da análise de credibi lidade per se enquanto meio de determinação da condição de refugia do que extrapola a Convenção de 1951 devese também compreender que os tomadores de decisão estão imersos em uma hegemonia cultu ral que ao mesmo tempo em que é heteronormativa apresenta tam bém a homonormatividade enquanto fator abraçado pelo EstadoNa ção Nesse sentido é comum que uma das exigências para ser identifi cado enquanto um real queer é a autodeterminação de um indivíduo enquanto LGBTIQA A incapacidade de um solicitante cujo pedi do seja baseado em perseguição por OSIG em manejar a gramática 374 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ocidental relativa às identidades que fogem à cisheteronormatividade pode levar a uma análise negativa de sua demanda Este primeiro exemplo já se mostra como indicativo de como o sistema de determinação de refúgio ora analisado é colonizatório Em nenhum momento se vislumbra o fato de por exemplo nos países de origem os termos utilizados serem completamente distintos daqueles correntes no ocidente Ou ainda não se pensa no fato de que em seus países de origem tais solicitantes terem passado toda a sua vida apenas em contato com palavras opressoras ou vexatórias que identificassem sua sexualidade eou sua identidade de gênero Além disso na medida em que tais democracias ocidentais se riam o baluarte da proteção da população nãocisheterossexual exis te uma pressuposição homonormativa de que uma vez no país de aco lhida tais indivíduos deveriam participar atividade da comunidade LGBTIQA local das Paradas do Orgulho e das organizações e movi mentos sociais de tais minorias sexuais Nesse sentido esperase mui tas vezes que o solicitante apresente declarações dessas organizações as quais atestem sua participação nas atividades da mesma existindo até casos nos quais os tomadores de decisão indagaram a solicitantes de refúgio sobre sua vida amorosa no país de acolhida na medida em que se esperaria que uma vez num país cujo Estado protege tais mi norias sexuais seria supostamente plausível que o solicitante tivesse relacionamentos amorosos Para além disso esperase que pelo simples fato de terem ultra passado uma fronteira esses solicitantes tornemse capazes de confiar cegamente em uma instituição que muitas vezes não apenas coadunou com as práticas opressoras de seus agentes de perseguição mas mui tas vezes também criminalizou sua própria identidade Esperase que suas narrativas dadas a agentes estatais que acabou de conhecer sejam claras explícitas e cronológicas acerca de eventos e fatos que muito possivelmente ele sequer revelou para seus amigos e familiares mais próximos Nesse processo conhecido como reversecovering Murray 2015 está também presente a figura colonizatória do instrumento aqui ana lisado na medida em que existe um ideal de comunidade LGBTIQA Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 375 ocidental neoliberal branca e de classe média a qual tem nos agentes estatais os ditos defensores das suas prerrogativas legalmente estabele cidas e que é vislumbrada pelo tomador de decisão quando da análise do caso Finalmente existe a expectativa de que o indivíduo que busca re fúgio apresente seu país de origem enquanto berço de memórias exclu sivamente ruins sem qualquer tipo de laço afetivo positivo que o ligue ao mesmo Concomitantemente esperase que o solicitante apresente o país de acolhida enquanto o paraíso local onde apenas existiriam ligações afetivas positivas Mais uma vez o processo de determinação da condição de refugiado se baseia em construções binárias de bom e mau civilizado e nãocivilizado ou selvagem para explicar os fluxos de refúgio Apesar de tal fato se verificar em muitas narrativas de solicita ções com diversas motivações ele toma proporções distintas naqueles casos de perseguição por OSIG Por vezes de maneira estratégica os solicitantes de refúgio se engajam numa narrativa de migração para o país da libertação Murray 2015 país este que o protege como ele é Este tipo de narrativa inserese exatamente no homonacionalismo de Puar na medida em que o refugiado LGBTIQA autêntico o real queer reforça a ideia das democracias ocidentais enquanto proemi nentes defensoras dos direitos de tais minorias ao passo que os países de origem são representados enquanto nãocivilizados bárbaros vio lentos e opressores CONCLUSÃO Fica claro portanto como o sistema de determinação da condição de refugiado LGBTIQA é um instrumento civilizatório do Estadona ção ocidental Sendo um instituto protetivo criado por tais potências acaba por acompanhar na sua aplicação os fatores basilares de tal insti tuição dentre os quais destacase atualmente a homonormatividade Nesse sentido essa estrutura acaba por levar a um sistema de de terminação que ao invés de proteger o solicitante acaba por produzir uma série de opressões e violências Uma análise de credibilidade feita por tomadores de decisão imersos numa hegemonia cultural ocidental 376 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça e neoliberal vislumbra apenas um determinado tipo de LGBTIQA o qual se encaixe perfeitamente no ideal nacional supramencionado o que acarreta em uma série de exclusões e violências Talvez um caminho interessante para superação deste problema seria a adoção de pesquisas de informações de países de origem inte ressadas na compreensão da realidade local através da produção de conhecimento e de discursos dessas próprias minorias no país de ori gem A produção de Country of Origin Information COI atualmente centrase na atuação de grandes ONGs internacionais assim como das agências estatais e intergovernamentais especializadas na temática O que cremos ser necessário é uma mudança de foco para que aqueles que vivenciam a realidade tenham voz sobre seu próprio destino Essa realidade alarmante não mudará no entanto até que os re gentes das políticas migratórias nacionais assim como os oficiais de elegibilidade passem a compreender o fato das experiências das mi norias nãocisheterossexuais não serem aquelas tidas por pessoas da comunidade LGBTIQA canadense ou estadunidense por exemplo Suas identidades são distintas assim como seus termos seus percur sos suas vivências e tais diferenças não podem sob qualquer hipóte se serem utilizadas para negar o direito de refúgio a tais solicitantes REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BIDASECA Karina Mujeres Blancas buscando salvar mujeres color de café desigualdad colonialismo jurídico y feminismo postcolonial Andamios Revista de Investigación Social vol 8 n 17 setdez 2011 pp 6189 CURIEL Ochy La Nación Heterosexual Análisis del discurso jurídi co y el régimen heterosexual desde la antropología de la dominación Bogotá Brecha Lésbica 2013 FANON Frantz Los Condenados de la Tierra Cidade do México Fondo de Cultura Económica 1983 FREEDMAN Jane Gender Violence and Politics in the Democratic Re publico of Congo Burlington Ashgate 2015 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 377 GERARD Alison The Securitization of Migration and Refugee Wo men Nova York Routledge 2014 HARRELBOND Barbara Imposing Aid Emergency Assistance to Refugees Oxford Oxford University Press 1986 LUGONES Maria Rumo a um Feminismo Descolonial Revista Estu dos Feministas Florianópolis 22 3320 setembrodezembro 2014 MACKLIN Audrey Truth and Consequences Credibility Determina tion in the Refugee Context In The Realities of Refugee Determination on the Eve of a New Millennium The Role of the Judiciary Haarlem International Association of Refugee Law Judges 1999 MBEMBE Achille Crítica da Razão Negra Lisboa Antígona 2014 MURRAY David A B Real Queer Sexual Orientation and Gender Identity Refugees in the Canadian Refugee Apparatus Toronto Ro wman and Littlefield International 2015 PRECIADO Beatriz Manifesto Contrassexual São Paulo N1 Edi ções 2014 PUAR Jasbir Rethinking Homonationalism International Journal of Middle East Studies v 35 2013 pp 336339 TAVARES Natalia Cintra de O Direitos Humanos como Racionalida de de Resistência Um Olhar sobre as Lutas por Paz dos Movimentos de Mulheres em Bogotá Dissertação Mestrado em Direito Facul dade Nacional de Direito Programa de PósGraduação em Direito Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2016 378 O MOVIMENTO LGBT E A CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA ENTRE PERSPECTIVAS DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA E UMA DEMANDA JÁ CANSADA DE ESPERAR Priscila Cristine Silva de Souza216 RESUMO O presente trabalho busca analisar sob a luz da crimi nologia crítica a necessidade de proteção de um grupo de indivíduos que tem em seus corpos e afetos alvos para uma violência específi ca problematizando a ineficácia do sistema penal na diminuição e no combate à violência sofrida por lésbicas gays bissexuais travestis e transexuais proposta pela criminalização da homofobia Para tanto propõese a examinar os mecanismos da homofobia e sua interface interpessoal institucional e simbólica deslocando a discussão des sa violência para além do meramente individual partindo para uma dimensão mais sociocultural e potencialmente mais politizadora to mando por base a trajetória de luta e as principais demandas do mo vimento LGBT no Brasil Palavras Chave Criminologia LGBT Violências Homofobia e Sele tividade Penal 216 Graduada em História PósGraduada em Gênero e Sexualidade pela Univer sidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ e Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Volta Redonda UniFoa souzapriscilacristinegmailcom Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 379 INTRODUÇÃO Entre as principais pautas do movimento LGBT217 brasileiro na atua lidade está o debate acerca da criminalização da homofobia E como era de se esperar tal assunto tem dividido opiniões no espaço públi co A demanda do movimento de lésbicas gays bissexuais travestis e transexuais tem sido justificada pelos altos e preocupantes índices de violência contra este segmento da população que cada vez mais tem se amparado na judicialização dos direitos sociais para o combate da homofobia Como propõe Daniel Borrillo 2010 a homofobia não será redu zida a ideia de ódio tampouco de fobia em relação aos LGBTs A pro posta aqui é também pensar no processo de produção bem como nas estratégias e mecanismos da homofobia e sua interface interpessoal institucional e simbólica Nesse contexto da sociedade heteronorma tiva os homossexuais são alvos dos mais diversos tipos de violência física e simbólica A homofobia portanto consiste em subalternizar o outro que passa a ser visto como inferior e até mesmo anormal con forme assinala o filósofo e historiador francês Michel Foucault 1998 Este estudo se propõe a analisar a necessidade de proteção de um grupo de indivíduos que tem em seus corpos e afetos alvos para uma violência específica problematizando a legitimidade e eficácia do projeto de criminalização da homofobia no Brasil Buscase portanto refletir sobre a utilização do Direito Penal no combate a homofobia evidenciando a relação existente entre a produção do preconceito e suas articulações com a cultura ethos e as instituições Emerge aqui uma questão uma vez que tanto o machismo quan to a heteronormatividade encontram suporte nas instituições do Es 217 Cabe ressaltar que a letra T representa as pessoas Transexuais Travestis e Transgêneros No exterior especialmente nos Estados Unidos da América com a emergência dos estudos Queer é comum o emprego do termo LGBTQI contemplando também as pessoas Intersexuais e Queer pessoas cujas perfor mance de gênero é fluida de modo a não serem contempladas exclusivamente pelos extremos feminino e masculino ou LGBTQIA englobando as pessoas Assexuais Tendo em vista que a nomenclatura amplamente utilizada no Bra sil para representar minorias sexuais e identitárias ou seja pessoas Lésbicas Gays Bissexuais Transexuais Travestis Transgêneros Intersexuais Queers e Assexuais é a sigla LGBT para fins didáticos a autora optou por utilizar a sigla LGBT nesse trabalho para referirse aos grupos supracitados 380 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça tado a criminalização da homofobia poderia levar os oprimidos ao fortalecimento do mesmo poder que os oprime ou seria um meio emergencial e eficaz na garantia de proteção à tutela dos bens jurídicos de lésbicas gays bissexuais travestis e transexuais já tão cansados de esperar pela efetividade dos seus direitos fundamentais Para atingir seu propósito esta pesquisa encontrase estruturada em três seções que irão analisar a violação de direitos fundamentais de lésbicas gays bissexuais travestis e transexuais e sua implicação dentro do Estado Democrático de Direito Assim como a trajetória de luta do movimento LGBT por reconhecimento e efetividade dos direi tos constitucionais E por fim analisa a proposta da criminalização da homofobia propondo um debate dialógico entre as distintas e corre latas perspectivas da Criminologia Crítica com as teorias feministas e queer no que tange ao enfrentamento de violências específicas Por fim esperase contribuir como uma espécie de gatilho pro vocativo para a reflexão em torno de um segmento da população cuja proteção dos bens jurídicos é deveras insuficiente estando o Brasil entre um dos países que mais mata LGBTs no mundo mesmo diante do chamado Estado Democrático de Direito 1 VIOLAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS 11 Estado de direito e dignidade da pessoa humana O inciso III do artigo 1º da Constituição da República Federativa do Brasil estabelece como um dos Fundamentos paradigmáticos do Es tado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana essa é definida por Ingo Wolfgang Sarlet218 da seguinte forma Temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunida de implicando neste sentido um complexo de direitos e deve 218 Doutor em Direito pela Ludwig Maximillians Universität München e professor titular da Faculdade de Direito e dos Programas de Mestrado e Doutorado em Di reito e em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Além de atuar como Coordenador do GEDF Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Fundamentais CNPq Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 381 res fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável além de propiciar e promover sua participação ativa coresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão dos demais seres humanos SARLET 2001 p 39 No que tange ao seu caráter Legal Aquino 2016 p74 esclare ce que a Dignidade expressase sob o ângulo jurídico um genuíno e irrestrito direito à existência É a partir do reconhecimento que a Dignidade se torna o eixo principal de estima de apreço por aquilo no qual oferece sentido existencial Contudo para que haja a efetividade desse direito não basta sim plesmente que tal conceito seja incorporado ao texto constitucional Fazse necessário que haja o reconhecimento da legitimidade desse direito por toda a sociedade terceiros daí a importância sine qua non da implementação de políticas públicas O problema está justamente quando não passamos pelo proces so de aprendizagem em níveis mais profundos do que a mera mudança formal de texto constitucional o que faz com que tra dições autoritárias antigas ainda cobrem seu preço nos dias de hoje SILVA e BAHIA 2015 p 179 Dessa forma entendida enquanto um direito fundamental a dig nidade da pessoa humana é um valor central que preserva a liberdade individual e a personalidade A relativização dessa geraria instabili dade ao próprio regime democrático de modo que essa tenha valor absoluto SANTANA 2010 A dignidade da pessoa humana está erigida como princí pio matriz da Constituição imprimindolhe unidade de senti do condicionando a interpretação das suas normas e revelan dose ao lado dos Direitos e Garantias Fundamentais como cânone constitucional que incorpora as exigências de justiça e dos valores éticos conferindo suporte axiológico a todo o siste ma jurídico brasileiro PIOVESAN 2000 p54 382 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Nesse sentido segundo Piovesan a dignidade da pessoa humana deve ser o ponto de partida e o ponto de chegada da interpretação normativa sendo o verdadeiro princípio orientador do Direito Inter no e Internacional PIOVESAN 2004 p 92 Decerto a dignidade humana encontrase envolta em uma es pécie de tensão entre a democracia e o constitucionalismo do Estado Democrático de Direito É costumaz no senso comum a ideia de que a democracia representa a vontade da maioria ignorando assim os princípios e as garantias constitucionais que servem justamente como proteção às minorias Há que se compreender de uma vez por todas que democracia sem desacordos é ditadura de maioria É da essência da democracia haver discordância sobre questões fundamentais SIL VA e BAHIA 2015 p 178 Por fim vale lembrar que esses princípios constitucionais não devem ser encarados como meras orientações mas entendidos como norma haja visto que a Constituição possui força normativa não se tratando de uma carta de intenções Nessa perspectiva mesmo as políticas mais amplas do Estado como as macroeconômicas devem visar romper a discriminação BRASIL 2009 p11 Em outras palavras a constitucionalização do princípio da dignidade da pessoa humana pressupõe antes de mais nada a materialização dos direitos civis decorrentes dele 2 BREVE HISTÓRICO DO MOVIMENTO SOCIAL 21 A trajetória das cores Antes de mais nada fazse necessário entender o significado da sigla LGBT para a real compreensão dessa trajetória e das pautas reivindi catórias desse movimento A abreviação abarca lésbicas gays bisse xuais travestis e transexuais A última terminologia engloba também os chamados transgêneros isto é pessoas cuja identidade e perfor mance de gênero não se ajusta ao sexo biológico como é o caso das drag queens crossdressers219 e outros Por essas e outras questões po 219 Termo referente ao ato de uma pessoa vestirse com roupa eou acessórios culturalmente associados ao sexo oposto tais como maquiagens perucas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 383 dese dizer que o movimento LGBT é pluralizado tendo em vista que aglomera diferentes categorias de sujeitos políticos organizados em torno da construção de identidades específicas bem como da imple mentação e efetivação de políticas públicas Considerada área de disputa ora pelo controle do Estado sobre os corpos ora pelo cerceamento dos discursos médicos jurídicos e religiosos a sexualidade deixa de ser pessoal e tornase política na medida em que há forte regulação pública sobre ela De acordo com Michel Foucault as práticas eróticas que poderiam ser encaradas me ramente como preferências passaram a partir do século XIX a ser catalogadas em compêndios de sexologia e manuais de distúrbios psi quiátricos FOUCAULT apud CARRARA 2010 p 26 Nessa cata logação houve a separação entre o sexo sadio e aquele considerado mau e perigoso Desse modo emergem as figuras desviantes entre elas o homossexual alvo de constante vigilância controle social e de inúmeras formas de violência que vão desde a agressão física até for mas simbólicas e discursivas Ainda de acordo com o autor onde há poder há resistência FOUCAULT 1998 p 91 Nesse sentido a patologização presente nos discursos classificando como imoralidade doença pecado eou degeneração os comportamentos sexuais distintos daquele considera do normativo contribuiu para o surgimento de uma nova identida de220 entre aqueles indivíduos cujo desejo e prática sexual se orientam para pessoas do mesmo sexo O movimento eclodiu na Europa no final do século passado com a luta pela não criminalização do comportamento homossexual e pela efetividade dos direitos civis de homossexuais mas ganhou maior vi sibilidade na Batalha de Stonewall221 ocorrida no ano de 1969 em Nova adornos dentre outros 220 A criação desses laços de sociabilidade a posteriori delineou o movimento organizado e reivindicatório de direitos concernentes a essa nova cidadania 221 Stonewall era um bar estadunidense situado em Nova York no final da década de 60 frequentado por gays lésbicas e travestis e que por esta razão sofria constantes e violentas perseguições policiais onde muitos acabavam presos Até que no dia 28 de junho de 1969 a rusga policial contou com a reação dos frequentadores do bar que atiraram pedras e garrafas em direção aos guardas e o conflito ganhou maior repercussão e por esta razão os homossexuais ganha ram apoio dos demais frequentadores dos habitantes locais e culminou com a decisão do Presidente da Câmara de extinguir a violência policial nessas ron das Essa data entrou para a história do movimento LGBT como o dia do Or 384 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça York nos Estados Unidos BEZERRA et al 2013 p 320 Já o movi mento brasileiro surge ao final da década de 1970 sendo portanto contemporâneo aos movimentos negro e feminista que serviram de inspiração sobretudo o segundo por meio de suas estratégias de luta e discursos para pautar direitos ao próprio corpo Para Regina Facchini 2011 a trajetória do movimento LGBT pode ser dividida em três fases a primeira vai de 1978 a 1983 mar cadamente antiautoritária em oposição à violência da ditadura civil e militar 19641985 e basicamente reivindicava direitos civis e univer sais Já a segunda abrange de 1984 a 1992 processo da redemocratiza ção marcada pela epidemia do HIVAids conhecida como o câncer gay ou a peste gay FACCHINI 2011 p 15 que irá aproximar o movimento LGBT do Estado e da sociedade civil e com isso é possí vel perceber que o movimento adquire um caráter mais garantista e pragmático do que emancipatório ao longo das últimas décadas como observa Camarotti 2009 implicando diretamente na introdução de novas222 e mais amplas demandas223 É nesse momento que o termo homofobia se populariza Por fim a terceira fase224 abrange de 1992 aos dias de hoje e a pauta é igualdade de direitos E pela inserção do movimento nas políticas públicas de saúde foi possível chegar às pautas políticas e se organizarem inclusive como setoriais de partidos políticos igrejas inclusivas grupos acadêmicos desenvolvendo pes quisas etc Durante essa trajetória é inconteste que muito se avançou des de então sobretudo no que tange a visibilidade dessa população e ao reconhecimento de direitos225 Contudo há um longo caminho a ser gulho Gay inspirando Paradas e Marchas pelo mundo inteiro 222 O termo orientação sexual contrapondose à errônea ideia de opção também surge nessa segunda onda e traz uma enorme contribuição uma vez que des mistifica a noção de que se trata de uma simples escolha individual e voluntá ria 223 Entre 1981 a 1985 ocorre a campanha nacional pela despatologização da ho mossexualidade coordenada pelo Grupo Gay da Bahia que objetivava retirar a homossexualidade do código de doenças do INAMPS Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social o que ocorre no ano de 1985 224 Nesse momento passouse a diferenciar os diferentes sujeitos políticos pre sentes no movimento e suas demandas específicas lésbicas gays bissexuais travestis e transexuais incluindo pautas pontuais 225 Incorporação de direitos tais como a união homossexual casamento civil e união estável através da Resolução nº 175 de 2013 do Conselho Nacional de Justiça CNJ adoção de crianças e adolescentes proibição de discrimina Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 385 percorrido para que as políticas públicas sejam efetivadas como políti cas de Estado para a adoção de novas mentalidades e comportamentos no tocante a questão do gênero e da sexualidade para a plenitude de direitos civis e constitucionais 3 CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA 31 Pelo direito de existir um debate criminólogo crítico sobre a glamourização da criminalização A conjuntura dos anos de 1960 e os movimentos contra a cultura he gemônica que nesse momento pululavam nas ruas repercutiam so cial e politicamente e à medida que alcançavam a academia somado à efervescência do movimento feminista negro gay e ambiental foi possível então repensar o modelo de sociedade Esses movimentos emergem no contexto de um Estado previ denciário PósGuerra 196070 também chamado de bemestar cuja intervenção estatal possui grosso modo e com ressalvas a finalidade de proteção e garantia das políticas e direitos sociais Assim o sistema penal atuava de forma secundaria com ingerência mínima sobre os indivíduos Ressalvando obviamente o período de exceção durante a Ditadura Civil e Militar implantada pelo golpe de 1964 e seu aparato institucional de repressão DOPS DOICODI que perdurou teorica mente até o ano de 1985 Ora sem dúvida a realidade política e econômica se reflete so bremaneira no social e não poderia ser diferente no modo como se pensa o Direito Com o fim do Estado de bemestar houve naquela conjuntura o alargamento da marginalização de determinados gru pos sociais haja visto o neoliberalismo e sua política de privatizações que deixou boa parte da população desempregada intensificando ção em estabelecimentos comerciais uso do nome social e reconhecimento da identidade de gênero de travestis e transexuais no âmbito da administração pú blica federal bem como a possibilidade de alteração no registro civil de nome e gênero pelo cartório sem a necessidade da obtenção de uma autorização ju dicial em decisão unânime do STF bem como a inclusão do processo transe xualizador pelo Sistema Único de Saúde SUS por meio da Portaria nº 2803 dentre outras importantes conquistas do referido movimento 386 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça se assim os conflitos sociais e por conseguinte a repressão do apa relho estatal Ora se a política não tem como reduzir a violência que o modelo econômico produz ela precisa mais do que de um discurso precisa de um espetáculo BATISTA 2015 p 100 Nessa perspectiva a mídia como braço desse Estado punitivo auxilia na produção do inimigo isto é na classificação e estigma do sujeito delinquente Nesse etiquetamento são determinadas as carac terísticas do criminoso e qual o crime é passível de punição Curiosamente no Brasil a transição democrática veio policizada como observa Vera Malaguti 2015 Assim sustenta a autora A tradução da conflitividade social em crime produziu por um lado o intragável politicamente correto os do bem e por ou tro o acirramento do estado de polícia CPIs vigilância UPPs controle territorial a apologia da polícia de combate o bom matador puro Assim a judicialização da vida privada caminha com a gestão policial da vida BATISTA 2015 p 114 Essa ampliação das funções penais leva a uma leitura infracional dos acontecimentos e a consequência disto é a proposital descontex tualização dos fatos para uma análise superficial que irá individualizar um problema estrutural e endêmico Em suma essa dissociação entre a vida social e a política gera a despolitização da sociedade e representa um perigo em potencial à democracia e à justiça na medida em que o Direito Penal que re presenta os interesses da classe dominante atua de modo a produzir o inimigo costumeiramente pertencente à classe subalterna pobre negro favelado e etc é possível demonstrar que na maioria dos países os punidos pelo denominado núcleo duro do Direito Penal são na sua maioria pessoas pobres que estão à margem do Estado porém incluídos na sua rede de punição MONTENEGRO 2016 p 634 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 387 Tal mentalidade punitiva tem ganhado bastante força não é à toa que o Brasil ocupa a 3ª posição de maior população carcerária do mundo Entretanto a criminalidade em nada decresceu diante desse expressivo contingente encarcerado muito pelo contrário Desse modo constatase que a aprovação de lei que criminaliza determinada conduta não é um meio efetivo para a promoção e garan tia dos direitos do segmento vulnerabilizado cujos direitos humanos são constantemente violados como apregoam e esperam as propos tas criminalizantes Em pesquisa realizada pelo IPEA 226 2015 para a avaliação do impacto da Lei Maria da Penha na sociedade constatouse que não houve real influência do escrudecimento da Lei no que diz respeito a manifestação dessa violência contra as mulheres De acordo com o re ferido levantamento Observouse sutil decréscimo da taxa no ano de 2007 imediatamente após a vigência da lei e nos últimos anos o re torno desses valores aos patamares registrados no início do período Poderseia alegar que os números de violência aumentaram de vido a um maior número de registros O fato é que o número dessa violência não diminuiu Percebese então que mesmo diante do agra vamento da Lei a consciência coletiva permaneceu machista e mi sógina Nas palavras de Nilo Batista 2007 p 16 tratase apenas de caracterizar legalmente a violência doméstica e mandar para a cadeia o agressor ou submetêlo a restrições de direito que caso descumpri das Prender prender para que tudo continue igual A criminologia crítica e o feminismo são contemporâneos mas pouco se valem um do outro muito embora a luta contra a opressão de gênero e a opressão do sistema não sejam antagônicas muito pelo contrário e talvez haja uma razão histórica para isto Acontece que essa falta de proximidade somada ao contexto de histórica vulnera bilidade levou o feminismo a cercarse do Direito positivo e dessa maneira suas demandas ficam sempre na linha tênue entre o amparo da Lei e a histórica opressão institucional Afinal por mais que haja a incorporação das demandas feministas no ordenamento jurídico evidentemente por pressão e luta das mulheres não há com isto uma efetiva ruptura na estrutura patriarcal227 permanecendo as institui 226 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada 227 Somente no ano de 2005 por meio da lei 111062005 houve a descriminaliza ção do adultério MONTENEGRO 2016 p 70 388 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ções sociais hegemonicamente brancas machistas e classistas E claro inegavelmente heteronormativas São essas opressões amargadas co tidianamente pelas minorias que Nea Filgueira 1997 p 19 classifica como o silencioso massacre Podese dizer que essa concepção assiste razão à Vera Andrade 2003 p 117 quando sugere que toda essa demanda por punição acaba por reunir o movimento de mulheres que é um dos mais pro gressistas do país com um dos movimentos mais conservadores e rea cionários que é o movimento de Lei e Ordem Nas palavras de Batista era inevitável que algumas correntes feministas pensas sem também num uso alternativo do poder punitivo como es tratégia emancipadora das opressões que podemos reunir sob a rubrica de violência doméstica As demandas pela instalação de agências policiais com atribuição específica para a matéria que no Rio de Janeiro do primeiro governo de Leonel Brizola chamarseiam Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher que foi o primeiro passo neste caminho BATISTA 2007 p 3 É sabido que a efetivação da referida Lei fomentou um debate público acerca da violência doméstica mas não é bem essa a prerrogativa do Direito Penal na medida em que esse debate não se sustenta simplesmente com a aplicação de punibilidade Em outras palavras temse a aplicação da pena para esse tipo de violência mas não uma mudança na consciência coletiva Isto explica grosso modo a não diminuição da quantidade desses crimes contra a mulher mesmo diante da substituição do sofrimento penal moral e pecuniário por sofrimento físico Dito isso é possível afirmar que no caso específico do segmento LGBT alvo de constantes e diretas violações aos seus direitos funda mentais e portanto necessita de proteção e políticas públicas especí ficas No entanto tratar a homofobia como caso de polícia é deslocar estrategicamente o debate acerca dos mecanismos e das engrenagens de sua reprodução ao invés de examinálos e discutir sua causa É tam bém limitarse à ideia de que o encarceramento seja ao mesmo tempo solução e garantia de direitos fundamentais desses indivíduos Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 389 Neste sentido diante do ethos da sociedade patriarcal machis ta racista e cis heterossexista e das políticas criminais no Brasil a proposta de criminalização da homofobia funcionaria reversamente conforme conceitua Nilo Batista 2007 como técnica de neutraliza ção do debate principal na medida em que se tem um deslocamento do debate de como e de que modo essa violência é produzida para quem praticou a violência individualizando o problema selecionan do quem merece ser punido e em nada alterando a dura realidade da discriminação Por esta razão a inserção da Criminologia Crítica nos últimos vinte anos transforma radicalmente a maneira de se pensar o direito penal Nesse sentido ela insere o sistema penal e a normativa do direi to penal numa perspectiva de classe tal qual se encontra organizada a sociedade contrapondo a ideia de uma aparente neutralidade e igual dade do positivismo jurídico Em suma toda essa inovação analítica trazida pelos movimentos da criminologia que de forma crítica romperam com a leitura da cri minologia tradicional ainda estão aquém de uma criminologia228 que englobe todas as demandas A criminologia feminista por exemplo ainda é marginalizada A Queer229 então podese dizer inexistente dentro das Ciências Criminais que ainda se encontra assentada no he terossexismo Sendo assim é imprescindível que se amplie o debate para no vas e contra hegemônicas abordagens dentro da Criminologia Crítica Para tanto é indispensável inserir nesse espectro crítico o conceito da interseccionalidade para que seja possível a produção de outras narra tivas que abarquem as inúmeras formas de opressão a fim de romper com os silêncios invisibilidades e privilégios que legitimam desigual dades e perpetuam violências 228 Criminologia segundo Lola Aniyar de Castro é a atividade intelectual que estuda os processos de criação das normas penais e das normas sociais que es tão relacionadas com o comportamento desviante CASTRO 1983 p 52 apud BATISTA 2015 p27 229 Para o autor Salo de Carvalho a Criminologia queer pode ser entendida como criminologia estranha criminologia excêntrica criminologia homossexual criminologia gay ou simplesmente criminologia bicha CARVALHO 2017 p 202 390 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Nesse aspecto é importante observar as conquistas da criminolo gia feminista nas ciências criminais que possibilitaram a reflexão sobre outras formas de violência e suas diferentes dimensões preparando terreno para a uma perspectiva queer e consequentemente se pensar de forma perscrutada a cultura da violência homofóbica Assim do mesmo modo que o movimento de mulheres encontra sustentação na teoria feminista e o movimento negro nos estudos de afrocentrismo o movimento LGBT precisa encontrar acolhimento e arrimo nas teorias queer Decerto é crível que antes de se perguntar o que o feminismo ou a teoria queer tem para oferecer à criminologia se faz necessário indagar o contrário o que a criminologia tem para oferecer ao femi nismo e à comunidade LGBT e suas demandas É oportuno sublinhar que a diferença entre sujeitos normativos e não normativos se transforma em desigualdade e passa a representar a fronteira ou obstáculo à aquisição plena dos direitos Por esta razão a homofobia necessita ser pensada como uma espécie de concessão de toda a sociedade e não apenas de um determinado indivíduo eou grupo É importante ressaltar que práticas simbólicas costumam ser na turalizadas no cotidiano tais como piadas olhares condenatórios in sultos e silenciamentos Assim como no caso das reações odiosas e tentativas de censura contra a publicidade do afeto homossexual Por tanto ainda há certa dificuldade de reconhecimento de outras formas de hostilidade Ora se existem reações virulentas contra os gays e as lésbicas a homofobia cotidiana assume sobretudo a forma de uma violência do tipo simbólico que na maior parte das vezes não é per cebida por suas vítimas BORRILLO 2010 p 22 Assim pensar a homofobia exigenos encarála como um instru mento que cria e reproduz um sistema de diferenças para justificar a exclusão e a dominação de uns sobre os outros PRADO et al2009 apud BORRILLO 2010 p 11 Por esta razão é importante ressaltar que a defesa do projeto de criminalização da homofobia apresenta uma reflexão sóbria e pre mente de uma demanda que está cansada de esperar pela proteção e tutela dos seus bens jurídicos diante de uma sociedade massivamente intolerante misógina e homofóbica Não é por outra razão que esses movimentos emancipatórios acabam se aproximando dos discursos Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 391 criminológicos Vale ressaltar que dentre as reinvindicações do movimento LGBT estão a necessidade das garantias constitucionais seja do reconheci mento bem como a proteção de direitos civis que poderiam ser plei teadas fora da esfera penal230 como na cível administrativa trabalhis ta etc Como aponta Salo de Carvalho A lei penal é apenas uma e provavelmente a menos eficaz e mais falha das estratégias CARVA LHO 2017 p 251 É indispensável portanto compreender que o preconceito e a discriminação não se encontram meramente no individuo como o modelo positivista punitivo faz parecer quando individualiza o problema Mas estão diretamente relacionados à cultura e as suas instituições Entendese ainda que não se resolve um problema estrutural com uma leitura infracional dos fatos Nessa medida a criação de no vos tipos penais não é capaz de resolver o problema visto que em nada altera a realidade dessas minorias Salo de Carvalho é preciso nessa questão Após o choque de realidade provocado pela criminologia críti ca mesmo aos investigadores que seguem trabalhando a partir de um modelo criminológico ortodoxo inexiste a possibilidade de adotar um idealismo ingênuo no sentido de que a criminali zação em si mesma possua a capacidade de reduzir as violên cias Cada espécie de delito tem a sua complexidade e estraté gias gerais abstratas como a criminalização pouco auxiliam na resolução do problema CARVALHO 2017 p 251 Poderseia afirmar que dentro do contexto do Estado punitivo a criminalização possui apenas um efeito simbólico que não pode dei xar de ser considerado como se pode observar na Lei Maria da Pe nha Mas de modo algum dá conta de resolver a conflitividade social Além disso o que importa destacar desde já é que no sistema penal brasileiro se o indivíduo ofensor não for branco e classe média 230 Não por outra razão o Direito Penal é considerado residual a ultima ratio isto é o último recurso cabível para a proteção dos bens jurídicos 392 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça cumpre a pena nas degradantes condições das carceragens e assis tindo ao definhamento das suas garantias constitucionais enquanto as instituições e todo o aparato do Estado que são indubitavelmen te responsáveis por essa violência machismo racismo homofobia continuam livres e reiteradamente dedicados a estabelecer privilégios reproduzindo desigualdades e legitimando o status quo Diante da celeuma posta cabe não nos esquecermos que a de mocracia não é um regime político determinado mas a negociação sem fim de lugares sociais SANTOS 2010 p 55 apud BATISTA 2015 p 115 A ideia de uma democracia pronta e acabada é errônea e deso nesta O escopo paradigmático do Estado Democrático de Direito é o choque e a constante negociação entre a democracia tida como vonta de de uma maioria e o constitucionalismo que seria então a proteção das minorias e é justamente aí que entra o papel elementar do Direito e dos Poderes Públicos Fica evidente então a necessidade de problematizar a ineficácia do sistema penal na diminuição e no real enfrentamento à violência sofrida por lésbicas gays bissexuais travestis e transexuais que não suportam mais serem alvos da violência de cunho homofóbico cuja criminalização não irá alterar em nada essa violenta realidade em que vivem CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme o último relatório realizado pelo Grupo Gay da Bahia GGB no ano de 2011 a cada 33 horas um homossexual brasileiro foi barbaramente assassinado CARVALHO 2017 p 249 Segundo a Associação Internacional de Lésbicas Gays Bissexuais Transgêne ros e Intersexuais ILGA o Brasil é a nação que mais mata LGBTs no mundo GALILEU 2017 excluindo apenas os países que ainda criminalizam a homossexualidade Muito embora a homossexualidade não seja criminalizada por aqui a pretensa igualdade Jurídica prevista em lei mostrase ilusó ria na prática dentro do chamado Estado Democrático de Direito A Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 393 sociedade brasileira integra diversos marcadores sociais que trans formam diferenças em desigualdades estabelecendo hierarquias e instituindo privilégios entre os grupos demarcados por raça classe gênero orientação sexual e identidade de gênero Vimos que as práticas homofóbicas tanto podem assumir formas extremas de hostilidade e intolerância quanto manifestada na sua for ma simbólica como nas inúmeras tentativas de boicote e censura ao afeto homossexual público bem como na proibição dos debates de gênero por parte do Estado e da sociedade civil Desse modo obser vase que a homofobia tanto pode ser simbólica institucional e inter pessoal Diante da violência homofóbica que atenta cotidianamente con tra a integridade física e a liberdade sexual dessa parcela da sociedade não era de surpreender que o movimento LGBT recorresse ao Direito Penal como alternativa emergencial para a proteção de bens jurídicos historicamente relegados do mesmo modo que foi feito por minorias em condições análogas como é caso de mulheres e negros Talvez resida aí a explicação do porquê o presente artigo perceba como desacerto a estratégia escolhida na proposta da criminalização da homofobia por meio do Projeto de Lei nº 1222006 que visa a alte ração da Lei de Racismo Lei nº 771689 incluindo a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero Ainda assim não se questiona aqui a questão da legitimidade da demanda trazida pelo movimento LGBT uma vez que existe a real necessidade de reconhecimento e proteção desse grupo de pessoas por parte do Poder Público que deve implementar políticas públicas que possam materializar direitos sociais e constitucionais na vida dessa parcela da população Todavia a expansão do sistema de criminaliza ção e sua seletividade bem como a criação de novos tipos penais e o aumento do punitivismo não resolvem o problema apenas empurram o debate que é extremamente necessário para debaixo do tapete e nesse ponto é inegável a contribuição da Criminologia Crítica e sua investigação dos mecanismos de produção da realidade social Outrossim a Lei nº 113402006 conhecida como Lei Maria da Penha provocou um efeito simbólico com o impacto na sociedade no que tange a conscientização acerca do problema da violência domés 394 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça tica passouse a falar mais e a se repercutir sobre o assunto nos meios de comunicação Mas em relação à produção da violência contra as mulheres pouco decresceu diante do expressivo contingente encarce rado além das mulheres que mesmo diante da denúncia e das cautela res foram vitimadas dando prova da incapacidade protetora preven tiva e resolutória do sistema penal brasileiro Chamo a atenção portanto para o fato de que não cabe ao Direi to Penal e ao sistema penal a exclusividade e primazia no combate às práticas homofóbicas e aos crimes de ódio dessa natureza pelo con trário O Direito Penal não é um instrumento idôneo para promover a efetivação dos direitos humanos e meio para se fazer política social tampouco é a panaceia para os males da sociedade como temse es perado dele Realço por fim que a Constituição não pode ser encarada como mera carta de intenções haja visto sua força normativa e sua superio ridade hierárquica frente a todo o ordenamento jurídico Nesse sen tido não cabe sustentar que os princípios constitucionais sejam tão somente orientações ou direcionamentos mas sim normas que devem ser austeramente seguidas e aplicadas no chamado Estado Democrá tico de Direito REFERENCIAS ANDRADE Vera Regina Pereira de A soberania patriarcal O sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher Revista Sequência nº 50 p 71 102 jul 2005 Pelas mãos da criminologia O controle penal para além da des ilusão Florianópolis Instituto Carioca de Criminologia 2012 Sistema penal máximo x cidadania mínima códigos da violência na era da globalização Sl sn 2003 AQUINO Sérgio Ricardo Fernandes De Bauman e a crítica sobre a perda da dignidade da pessoa humana em tempos líquidos Revista Humus v 6 p 7088 2016 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 395 BAHIA Alexandre Gustavo Melo Franco A nãodiscriminação como direito fundamental e as redes municipais de proteção a minorias sexuais LGBT Revista de Informação Legislativa v 186 abrjun 2010 p 89115 BATISTA Nilo Só Carolina não viu violência doméstica e políticas criminais no Brasil In Mello AR Org Comentários à Lei de Vio lência Doméstica e Familiar Contra a Mulher Rio de Janeiro Lumen Juris Editores 2007 Introdução crítica ao Direito Penal 12 ed Rio de Janei ro Ed Revan 2015 BATISTA Vera Malaguti Introdução Crítica à Criminologia Brasilei ra Rio de Janeiro Revan 2011 BORRILLO Daniel Homofobia história e crítica de um preconceito Belo Horizonte Autêntica Editora 2010 BRASIL Presidência da República Secretaria Especial de Diretos Hu manos Plano Nacional de promoção da Cidadania e Direitos huma nos de LGBT Disponível em httpwwwarcoirisorgbrwpcon tentuploads201007planolgbtpdf Acesso em 13 Março 2017 BUTLER Judith Problemas de gênero Feminismo e subversão da identidade 8ª Ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2015 CAMAROTTI Renata A trajetória do movimento lgbt a luta por reconhecimento e cidadania no contexto brasileiro e baiano 154fls 2009 Dissertação Programa de pós graduação em Ciencias Sociais Universidade Federal da Bahia CARRARA Sérgio org Especialização em gênero e sexualidade EGES IMSUERJ v 123456 2010 CARVALHO Salo De DUARTE Evandro Piza Criminologia do pre conceito Racismo e homofobia nas ciências criminais 1 São Paulo SP Saraiva Jur 2017 DIAS Maria Berenice Homoafetividade e os direitos LGBTI 6ed São Paulo Revista dos Tribunais 2014 FACCHINI Regina Histórico da luta de LGBT no BrasilConselho regional de psicologia Caderno temático 11 psicologia e diversidade sexual p 17 2011 396 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Entre compassos e descompassos um olhar para o cam po e para a arena do movimento LGBT brasileiro Revista Bagoas UFRN n 04 p 131 158 2009 FILGUEIRA Nea La violencia sistemica contra las mujeres em Beña rán Maria del Pilar et alii Violencia Domestica Montevideu 1997 ed Fund Cult Universitaria p 19 FOUCAULT Michel A ordem do discurso 16 ed São Paulo Ed Loyola 1996 História da Sexualidade I A vontade de saber tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque Rio de Janeiro Ed Graal 1998 IPEA Violência Contra a Mulher Feminicídios no Brasil 2014 Disponível em httpwwwipeagovbrportalimagesstories PDFs130925sumestudofeminicidioleilagarciapdf Data de acesso 20 de agosto de 2015 ILGA Carroll A and Mendos LR StateSponsored Homophobia 2017 A world survey of sexual orientation laws criminalisation pro tection and recognition Geneva ILGA May 2017 MONTENEGRO Marília Lei Maria da Penha Uma análise crimino lógicocrítica Rio de Janeiro Revan 2016 PIOVESAN Flávia Direitos humanos e o direito constitucional inter nacional 4ed São Paulo Max Limonad 2000 SARLET Ingo Wolfgang A eficácia dos direitos fundamentais 2ª ed Porto Alegre Livraria do Advogado 2001 SILVA Diogo BAHIA Alexandre Necessidade de criminalizar a ho mofobia no Brasil porvir democrático e inclusão das minorias Revis ta da Faculdade de Direito UFPR Curitiba vol 60 n 2 maioago 2015 p 177207 397 FEMINISMOS E MOVIMENTOS LGBT A REVOLTA DE STONEWALL COMO MARCO DE LUTAS PELA DESPATOLOGIZAÇÃO E AS SEMELHANÇAS COM O CENÁRIO ACADÊMICOATIVISTA BRASILEIRO Heloisa Melino231 Resumo A partir das teorias críticas feministas e das teorias críti cas dos direitos humanos que têm no reconhecimento das lutas dos movimentos sociais o marco da conquista de direitos este trabalho toma a revolta de Stonewall nos EUA como um marco da luta pela despatologização das identidades LGBT no mundo Ao demonstrar o percurso que tomou essa revolta nos EUA e comparar com a trajetória do movimento Trans no Brasil buscase fazer uma correlação sobre os impactos que pode ter a reprodução de hegemonias para dentro dos movimentos sociais feministas e LGBT Palavraschave Teorias críticas feministas Teorias críticas dos Direi tos Humanos Feminismos Transfeminismos Movimento LGBT 231 Ativista feminista e Doutoranda no Programa de PósGraduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ 398 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça INTRODUÇÃO Os feminismos estão em constante atualização Desde que se dá esse nome aos movimentos práticas e teorias que abordam as desigualdades sociais originadas na hierarquização entre o sexo muito já se modificou sobre a teoria feminista no sentido de compreensão das interconexões entre as diferentes categorias de opressão na sociedade e também so bre o nãoessencialismo de uma categoria mulher Certamente as pro tagonistas desses movimentos de deslocamento dos feminismos são as mulheres negras que desde que se tem registro questionam que a cons trução social do que se entende por mulher suas necessidades possibi lidades e limitações não lhes diz respeito É o que Soujourner Truth faz em 1851 quando em uma assembleia em que se discutia a abolição das escravidão nos Estados Unidos da América e a situação das mulhe res pergunta E eu não sou uma mulher232 Seguindo essa mesma linha de construção e questionamento surgem os feminismos pósestruturalistas e os transfeminismos co locando em questão além das diferenças entre classe raça etnia que as mulheres também têm diferenças dentro da própria concepção biomédica do que significa ser mulher Demonstrase que o sexo dito biológico é uma construção discursiva portanto social tanto quanto o gênero Demonstrase que o essencialismo biologizante que associa ter pênis com ser do sexo masculino e não ter pênis com ser do sexo feminino não passa de uma arbitrariedade histórica e socialmente im posta e que ser mulher ou ser homem vai além da forma das genitálias O sexo no entanto é um discurso tão solidificado na sociedade que a Medicina categoriza as pessoas trans que são justamente pessoas que não se identificam com o sexo atribuído ao nascimento como doentes pervertidas pessoas que precisam de tratamento quer para reversão quer para encontrar conforto dentro de suas loucuras As pessoas trans no entanto têm feito esforços em combater esse estig ma e essa categorização que lhes foié imposta Fazem isso localmente 232 Essa fala de Truth foi registrada por jornalistas locais e tomou notoriedade sob o discurso de Aint I a woman E eu não sou uma mulher e até os dias de hoje é material bibliográfico de importância na luta feminista antirracista inclusive dentro dos feminismos Pode ser encontrado em httpswwwgeledes orgbrenaosouumamulhersojournertruth último acesso em 12 de julho de 2018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 399 pelos movimentos sociais que atuam nas ruas e em pressão ao Poder Público de cada região e país mas também em rede articulada inter nacionalmente que é a STP 2012 o movimento Parem a patologiza ção Trans STP referese à sigla em inglês O movimento LGBT de Lésbicas Gays Bissexuais e Transexuais Travestis Transgêneros embora seja reconhecido como sendo o mo vimento representativo de todas essas identidades tem por principal característica sua heterogeneidade Heterogeneidade que nem sempre significa potencialização das diferenças e que nem sempre significa que essas identidades tão díspares caminham juntas em busca de di reitos e garantias para todas as pessoas que desse movimento façam parte A história nos mostra que as pessoas trans sempre estiveram das pessoas cisgêneras lésbicas gays e bissexuais quando se reivindicava o reconhecimento de que ser gay ou ser lésbica não é doença mas que quando se conseguiu despatologizar as homossexualidades a despato logização das transidentidades foi deixada para trás E até hoje vemos impactos disso Neste capítulo busco trazer as questões das diferenças dos femi nismos a potência da nãoessencialização da categoria mulher bem como trazer a história da que possivelmente é a revolta do movimento LGBT que mais se tornou conhecida a Revolta de Stonewall e um histórico dos movimentos trans no Brasil para a partir dessas refle xões pensar de que forma podemos contribuir para que as conquistas de direitos humanos não sejam apenas para algumasns humanasos mas para todas e todos MULHER COMO CATEGORIA DE DISPUTA Um dos temas que é muito caro aos feminismos é a questão da universalidade do sujeito Essa questão tem vários desdobramentos um dos quais a universalidade do sujeito teórico produtor de conhe cimento aliás produtor de verdades universais gerais e abstratas para a vida de todas as pessoas em seus cotidianos concretos Se olharmos para a História e buscarmos aquelas pessoas que foram reconhecidas como principais pensadores filósofos cientistas as pessoas que rece beram prêmios por suas produções de vida veremos que são em sua 400 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça massiva maioria homens cisgêneros brancos e de nações ocidentais ricas Não por coincidência dos mesmos países que praticaram co lonização e imperialismo sobre outras nações e com a exploração destas últimas enriqueceram O sujeito epistemológico abstrato é masculino à medida que não assume sua encarnação socialmente marcada Não só nega sua encar nação como a dirige à esfera feminina renomeando o corpo como fêmea Essa associação do corpo com o feminino se baseia em relações mágicas de reciprocidade mediante as quais o sexo feminino se limita a seu corpo e o corpo masculino completamente negado paradoxalmente se transforma em um instrumento incorpóreo de uma liberdade aparentemente radical A análise de Simone de Beauvoir suscita a questão através de que ato de negação e desconhecimento o masculino se apresenta como uma uni versalidade desencarnada e o feminino se constrói como uma corporeidade não aceita233 Butler 200763 As autoras feministas já há muito vêm colocando a necessidade de revisão desse sujeito epistemológico abstrato pretensamente univer sal e problematizando o quanto essa epistemologia de objetiva e abs trata não tem nada Ao contrário é uma subjetividade masculina e se pauta concretamente nas vivências masculinas e suas opiniões sobre o mundo que os cerca Algumas autoras reivindicam o despedaçamento desse mito para abertura à mulher como sujeito universal outras mostram a impossi bilidade de existência de sujeitos universais Mesmo dentro do femi nismo vamos encontrar divergências que bom pois é a pluralidade que faz com que o feminismo esteja o tempo inteiro se criticando e se reinventando Algumas autoras pretendem com seus escritos criar um sujeito mulher universal outras mostram que esse sujeito univer sal feminista também reproduz hegemonia posto que parte de con siderações de mulheres que estão em espaços de privilégio em geral brancas cisgêneras heterossexuais acadêmicas e de classes sociais mais abastadas 233 Todas as traduções trazidas para esse texto foram feitas do original por mim Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 401 Falar do feminismo como algo homogêneo é simplificar o que é esse movimento social teórico e político É pressupor que a cate goria política de mulheres é uma só ou que ao menos exista algum elemento naturalessencialista de o que signifique ser mulher É por tanto invisibilizar a multiplicidade de mulheres nossas diferentes ex periências e vivências e é silenciar muitas vozes Como o movimento feminista também traz para si as estruturas de poder que estão na so ciedade historicamente esse movimento foi composto pelas mulheres que estavam junto ao polo econômico racial e regional de poder da sociedade A crítica a esse feminismo excludente começa a vir das feministas de cor como as negras as chicanas e as indígenas Algumas dessas mulheres são Audre Lorde bell hooks Angela Davis Gloria Anzal dúa Cherríe Moraga e Chela Sandoval Essas mulheres alçam suas vo zes para dizer que não existe uma categoria única do que é ser mulher porque a opressão pela qual todas as mulheres passam não é a mesma Uma mulher branca e de classe média alta não sofre os mesmos pro cessos de exclusão que uma mulher negra e pobre E quando apon tavamapontam isso as mulheres de cor eramsão234 acusadas pelas brancas de estarem fragmentando o feminismo Problematizando isso e chamando a atenção de sua amiga e escri tora feminista branca Mary Daly Audre Lorde lhe escreveu uma carta em 1979 publicada no livro sister outsider em que diz que sente que sua companheira celebra as diferenças entre mulheres brancas como uma força criativa em favor da mudança em vez de como um motivo para fragmentar e dividir mas que as diferenças entre mulheres nos expõem a diferentes formas e graus de opressão e exorta sobre a rea 234 Apesar de estar trazendo um breve histórico sobre esses movimentos uso o passadopresente por serem ainda relações em progresso O combate às hege monias é uma constante em qualquer movimento social crítico posto que as opressões variam e se atualizam se evidenciando de diferentes formas Chela Sandoval quando fala do método diferencial de consciência de oposição para criação de coalizões políticas chama atenção à importantíssima necessidade de questionamento interno e constante atualização e revisão de todo e qualquer movimento social teoria ou método sem o que se tornam destinados a repetir o autoritarismo repressivo do qual estão tentando se libertar e se veem presos na armadilha de buscar uma verdade que só termina com a produção de suas próprias formas de dominação Sandoval 200058 Sem abertura para ques tionamento e revisão qualquer movimento social tende a reproduzir exclusão e dominação 402 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça lidade e força do racismo na vida de uma mulher negra As mulheres que vestem capuz branco em Ohio entregando folhetos da KKK Ku Klux Klan na rua podem não gostar do que você tem a dizer mas elas vão atirar para me matar no instante em que me virem Lorde 198466 Essa realidade de diferenças narrada pelas feministas negras é de onde vem a necessidade de encarar que as vidas individuais são marcadas por todas as suas identidades por conta das quais são alvo de opressões que se relacionam entre si e modificam a interação em sociedade Encarar as opressões de forma relacional é o que hoje é mais comumente conhecido como feminismo com uma perspectiva interseccional E é também sob essa perspectiva que surgem os trans feminismos também no plural porque também são teorias e formas de atuação plurais Jaqueline Gomes de Jesus psicóloga e autora transfeminista bra sileira reforça o caráter interseccional do transfeminismo já que essa linha teórica e de atuação tem fortes raízes nos feminismos de cor De acordo com a autora o transfeminismo reconhece a interseção entre as variadas identidades e identificações dos sujeitos e o caráter de opres são sobre corpos que não estejam conforme os ideais racistas e sexistas da sociedade de modo que busca empoderar os corpos das pessoas como eles são Jesus2014249 Esse viés feminista surge da voz de pessoas que eramsão silen ciadas e invisíveis até para o movimento feminista hegemônico E es sas pessoas também passam por experiências de vida diferentes das de mulheres cisgêneras e também são alvo de opressões diferentes ex clusão e invisibilidade institucional como o não reconhecimento do nome e gênero pelo Estado violências que forçam a evasão escolar exclusão dos mercados formais e até mesmo dos informais o que leva a precarização do trabalho As pessoas trans são alvo de uma violência específica a transfobia que tem por objetivo eliminar sua existência quer negando que elas existem ao insistir que são doentes e que não são a pessoa que dizem ser ou seja não é uma mulher ali mas um homem seja por meio da violência física e assassinato Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 403 Além de problematizar o gênero como uma construção social também dizem que precisamos questionar o aspecto naturalbiolo gizante do sexo afinal como diz Emi Koyama autora do Manifesto Transfeminista Para pessoas trans o sexo dito biológico é sentido como mais artificial e modificável do que o sentimento interior de quem nós somos Essa construção social do sexo é mais do que uma observação abstrata é uma realidade física pela qual pas sam muitas pessoas intersexuais235 Porque a sociedade não faz provisões pela existência de pessoas cujas características anatô micas não se encaixam em macho ou fêmea elas são rotineira mente mutiladas por profissionais de medicina e manipuladas para viver como sendo do sexo que lhes foi designado geral mente ao nascimento Koyama2001249250 De acordo com a autora os princípios primários nos quais se ba seia o transfeminismo são dois 1 que cada indivíduo tem direito de definir sua identidade e ter expectativa de que a sociedade respeite isso e 2 cada pessoa tem o direito de tomar decisões a respeito de seu próprio corpo e que nenhuma autoridade política médica ou reli giosa pode violar a integridade de nossos corpos contra nossa vontade ou impedir nossas decisões sobre o que fazer com ele Nesse mesmo sentido Aline Freitas ativista trans brasileira em um breve manifesto sobre o transfeminismo no Brasil onde questiona também a autoridade médica e judiciária como intermediária entre pessoas trans e suas próprias existênciasidentidades escreve Nosso papel histórico deve ser construído por nós mesmxs O transfeminismo é a exigência ao direito universal pela auto determinação pela autodefinição pela autoidentidade pela 235 Pessoas intersexuais são pessoas que têm genitais de aparência nãonormativa podem ter as genitais masculina e feminina ou nenhuma das duas também podem ser pessoas cujo arranjo cromossomial não é nem XX nem XY E é uma prática muito comum fazer a mutilação genital dessas pessoas ao nascimento Muitas vezes ao médicao sequer consulta mãe e pai da criança antes de de cidir qual será o sexo dela Uma das demandas do movimento mundial pela despatologização da transgeneridade é o fim das cirurgias em recémnascidos intersexo 404 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça livre orientação sexual e pela livre expressão de gênero Não precisamos de autorizações ou concessões para sermos mulhe res ou homens Não precisamos de aprovações em assembléias para sermos feministas O transfeminismo é a autoexpressão de homens e mulheres trans e cissexuais O transfeminismo é a autoexpressão das pessoas andrógenas em seu legítimo direito de não serem nem homens nem mulheres Propõe o fim da mu tilação genital das pessoas intersexuais e luta pela autonomia corporal de todos os seres humanos O transfeminismo é para todxs que acreditam e lutam por uma sociedade onde caibam todos os gêneros e todos os sexos Freitas 2005 1 Freitas e Koyama falam do direito a autodeterminação sendo que a segunda fala especificamente das autoridades políticas médicas ou religiosas justamente em função da patologização das identidades trans na maior parte do mundo Quando o Estado exige que profissionais da área da saúde ou do Direito certifiquem que uma pessoa é de um ou outro gênero o Estado está impondo poder sobre essa pessoa poder que ele delega a quem teve privilégios econômicos e sociais sobre quem não os teve e está privadao do acesso a eles O Estado está dizendo em outras palavras que só quem tem direito de viver uma vida confortável é quem tem esse poder e quem esteve destituído desse poder até agora por razões históricas sistemáticas e estruturais como a dominação masculina a supremacia branca a cisgeneridade compulsória e etc tem que se submeter ao convencimento da vontade de outrem A opinião pessoal e de foro íntimo que vem disfarçada de opinião profissional de pes soas cisgêneras nesse processo é mais importante do que o que sente a pessoa qu de fato vivencia a realidade concreta sobre a qual aquela essa opinião vai ser dada Freitas 2001 se refere a esses processos como o papel da me dicina do direito e de outros mecanismos estatais na concessão de nossa existência e sobre a urgente necessidade de protagonizar nos sa própria história grifo meu Problematizando e enfrentando essa concessão da existência pelas autoridades institucionais surge o mo vimento Stop Trans Pathologization236 STP 2012 A Rede Interna cional pela Despatologização das Identidades Trans surge para conso 236 Em portuguêsPare a patologização trans Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 405 lidar uma coordenação mundial em torno de um primeiro objetivo a descatalogação da transexualidade do DSMTR STP 20123 Desde 2009 essa campanha convoca em outubro um Dia Inter nacional de Ação pela Despatologização Trans com manifestações si multâneas e outras ações em diversas cidades pelo mundo Tendo sido uma iniciativa espanhola em outubro de 2014 houve mais de 90 ações em 45 cidades pelo mundo coordenadas por 108 grupos e organiza ções A campanha conta com a adesão de 390 grupos e redes de ativis tas da América Latina América do Norte Ásia Europa e Oceania237 Os objetivos principais da Campanha são a retirada da categoria disforia de gênero transtornos de identidade de gênero dos catálogos diagnósticos bem como a luta pelos direitos sanitários das pessoas trans Para facilitar a garantia do atendimento público de saúde transespecífico STP propõe a inclusão de uma menção não patologizante na CIE11238 No manifesto da campanha constam as denúncias e exigências do movimento Exigimos a retirada da transexualidade dos manuais de doen ças mentais DSMTRIV e CID10 Reivindicamos o direito de modificar nosso nome e sexo nos documentos oficiais sem termos que passar por qualquer avaliação médica psicológica E pensamos firmemente que o Estado não deveria ter qualquer competência sobre nossos no mes nossos corpos e nossas identidades Fazemos nossas as palavras do movimento feminista na luta pelo direito ao aborto e ao próprio corpo reivindicamos nos so direito a decidir livremente se queremos ou não modificar nossos corpos podendo levar a cabo nossa decisão sem im 237 Todas as informações retiradas do site da campanha httpwwwstp2012info oldpt acessado em 26 de março de 2017 238 Retirado do site indicado acima 406 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça pedimentos burocráticos políticos nem econômicos assim como livres e qualquer tipo de coerção médica Queremos que os sistemas de saúde se posicionem frente ao transtorno de identidade sexual reconhecendo a transfobia atual que sus tenta sua classificação e reelaborem seus programas de atenção à transexualidade fazendo da avaliação psiquiátrica um passo desnecessário e do acompanhamento psicoterapêutico uma op ção voluntária Exigimos também o fim das operações a recémnascids in tersex Denunciamos a extrema vulnerabilidade e as dificuldades de acesso ao mercado de trabalho por parte do coletivo de trans Exigimos que se garanta o acesso ao mundo do trabalho e a execução de políticas específicas que combatam a margina lização e a discriminação do nosso coletivo Exigimos além disso condições de saúde e segurança na realização do trabalho sexual e o fim do assédio policial a estas pessoas assim como do tráfico sexual Esta situação de vulnerabilidade se acentua no caso de pessoas trans imigradas que chegam ao nosso país fugindo de situações de extrema violência Exigimos a concessão imediata de asilo político neste casos uma vez que reivindicamos a plena equi paração de direitos às pessoas migrantes Denunciamos os efeitos da política de imigração sobre os setores socialmente mais vulneráveis Ao mesmo tempo que gritamos que não somos vítimas mas sim seres ativos e com capacidade de decisão sobre nossa pró pria identidade queremos recordar também todas as agres sões assassinatos e também suicídios de pessoas trans cau sadas pela transfobia Apontamos o sistema como culpado por estas violências O silêncio é cumplicidade STP 2012 23 grifos no original Os transfeminismos e STP 2012 são movimentos pelo reconhe cimento do protagonismo de pessoas trans sobre suas próprias histó rias Esses movimentos têm datas recentes mas as lutas trans junto Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 407 ao movimento LGBT são longas e também foram invisibilizadas pelo foco androcêntrico e cisnormativo que transformou revoltas históri cas em feitos de homens cisgêneros brancos e homossexuais o que leva o nome de Movimento GGGG239 Exemplo disso é a Revolta de StoneWall que ilustra as guerrilhas protagonizadas por pessoas trans que beneficiarambeneficiam pessoas cisgêneras e que sequer são re conhecidas formalmente STONE WALL NOS EUA E AS SEMELHANÇAS COM OS MOVIMENTOS LGBT NO BRASIL A homossexualidade nunca foi crime no Brasil apesar de ainda hoje haver muita lesbofobia bifobia e homofobia institucionalizada e apoiada pela sociedade civil o que resulta em graves agressões e vio lências240 Mas nos Estados Unidos da América já foi e inclusive uma das revoltas que marcam o calendário ocidental LGBT é justamente a revolta de Stonewall Essa história conhecida como um marco de liberação gay e eu enfatizo gay é contada no entanto com muitas omissões sobre a participação e protagonismo da comunidade trans Essas omissões assim como apontadas por MacKinnon em relação a Declaração Uni versal de Direitos Humanos DUDH são políticas e estratégicas Mo tivo pelo qual busquei relatos de Sylvia Rivera ativista latina trans que na ocasião tinha menos de dezoito anos e estava na linha de frente dessa história Conheci a história de Sylvia não à toa por tirinhas de Mike Funk241 um homem trans dos quadrinhos Para ser bastante 239 Movimento GGGG é uma crítica levantada pelas pessoas lésbicas bissexuais e trans quanto a reprodução da dominação cis masculina dentro do movi mento social LGBT O movimento GGGG é aquele em que homens cisgêne ros brancos e com alto poder econômico tomam a frente da luta silenciam e invisibilizam as participações e o protagonismo de lésbicas e de pessoas trans Reflexo dessa reprodução de hegemonia são as lideranças institucionais LGBT serem sempre homens cisgêneros Exemplo disso no Rio de Janeiro são a Coordenadoria Especial da Diversidade SexualCEDSRIO e o Rio sem Ho mofobia 240 De acordo com o relatório do Grupo Gay da Bahia GGB o Brasil é o país em que mais pessoas que se relacionam com pessoas do mesmo sexo são assassina das 241 O trabalho do cartunista pode ser conferido em httpmikefunktumblr 408 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça franca conheci a história porque chegou a mim em um grupo de fa cebook não me lembro qual que compartilhou a tirinha traduzida em português por um blogueiro homem cisgênero branco e bisse xual relativamente conhecido nas redes sociais242 Sylvia Rivera conta essa história numa conferência organizada em Nova Jersey pelo Grupo Homens Gays Latinos de Nova York LG MNY em 2001 A ativista é uma mulher trans lésbica nascida nos Estados Unidos da América no bairro do Bronx e de ascendência ve nezuelana e portorriquenha e ela conta a história da revolta de stone wall bem como o contexto em que ocorreu Era um período em que haviam poucos bares e boates LGBT em Nova York e esses lugares funcionavam em ilegalidade pois eram tam bém pontos de venda de drogas e prostituição Sylvia faz questão de falar disso e mostrar que quem fazia a segurança do local era a Máfia ela não diz qual pois as forças policiais frequentemente faziam ba tidas nos locais roubando as bebidas e o dinheiro dos bares e boates com acessado diversas vezes mas novamente para escrita dessa parte do tra balho em 30 de março de 2015 A tirinha sobre stonewall no entanto não está nesse endereço mas numa pasta do autor de imagens que está disponível em inglês em httpswwwflickrcomphotosmkfunksets72157634381061896 A tradução em português pode ser conferida em LADO BI REVOLTA DE STONEWALL RECONTADA EM HQ disponível em httpwwwladobi com201310revoltastonewallrecontadaquadrinhos acesso em 28 de abril de 2015 242 Estou contando isso em pormenores pra mostrar a cadeia de informações para que eu mulher branca nãoheterossexual de classe média e acadêmica tivesse acesso a essa história levou 30 anos E precisou vir por meio de uma tradução em português por um homem cisgênero branco e de classe média do original de um quadrinho de um homem trans branco estadunidense que conta a his tória sob o ponto de vista de uma mulher trans latina que à época se prostituía Essa história de uma das mais conhecidas revoltas populares do movimento LGBT aconteceu em 1969 há quase 50 anos atrás e até hoje eu a desconheceria por causa dos processos de exclusão epistemológicos Não é porque eu sou de sinformada isso eu não sou A esmagadora maioria das pessoas com quem eu conversei sobre isso também não conhecia essa atuação da comunidade trans como protagonistas da revolta de stonewall e o meu círculo de contatos é reple to de pessoas dos movimentos feministas e lgbt E se você que está lendo está tendo acesso pela primeira vez a essa versão da história então além de toda essa cadeia foi preciso uma mulher cisgênera branca lésbica de classe média e acadêmica para que essa história chegasse a você Volta a reflexão as histórias de quem estão sendo contadas E por quem Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 409 Com a forte violência institucional amparada pela sociedade civil que não queria aquelas pessoas pervertidas e desviantes em suas co munidades familiares a comunidade LGBT fazia o que podia para se proteger e funcionar Ainda assim reforça Até naquela época tínha mos nossos clubinhos racistas Havia os bares de homens gays brancos e havia os muito pouco bares de terceiro mundo e de drag queens Conta que naquela semana a polícia já havia invadido o bar Sto newall uma vez e que essa era a segunda batida243 Quando isso acon tecia as luzes eram acesas a polícia levava todo mundo pra fora do local e separava Bichonas para cá sapatonas para cá esquisitos para lá se re ferindo ao meu lado da comunidade Se você não tivesse três peças de roupa masculina você iria para a cadeia Assim como uma lésbica caminhoneira tinha que ter três peças de roupa fe minina ou ele iria pra cadeia Rivera 20073 A polícia recolhia as bebidas o dinheiro e fechava o local com ca deado As pessoas se refugiavam em cafés ou outros estabelecimentos por quinze minutos até que a Máfia reabrisse o local fornecia bebida e tudo voltava a funcionar como se nada tivesse acontecido já era rotina dos locais LGBT Nessa noite no entanto a população reagiu diferente 243 As incursões ilegais da polícia são chamadas de batidas policiais na cidade do Rio de Janeiro Uma batida policial geralmente acontece sem mandado oficial fora do horário legal e em busca de dinheiro sob o pretexto de que houve al guma denúncia de tráfico de drogas ou venda de álcool para menores de idade ou mesmo exploração sexual de menores Essa é uma prática comum especial mente em casas de prostituição A prostituição vale ressaltar é uma atividade que envolve pessoas adultas e com consenso na qual a pessoa que se prostitui oferece seus serviços geralmente sexuais em troca de dinheiro ou outras for mas de pagamento como bens de consumo Quando há vício no consentimen to coação emocional física ou psicológica estáse falando de estupro ou explo ração sexual quando há pessoas menores de idade envolvidas estáse falando de exploração sexual de menores Essa diferença é importantíssima para que se reforce que exploração não é prostituição mas violência sexual Assim como estupro não é sexo mas é violência sexual Nos EUAainda hoje a prostituição é crime No Brasil essa atividade é legal e ainda assim é alvo de criminalização social e institucional vou elaborar esse tema adiante 410 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça todo mundo estava sendo eu acho que rabugento muitasos de nós estávamos envolvidasos em diferentes lutas e em vez de dispersar nós fomos para o outro lado da rua Parte da história esquece que os tiras estavam dentro do bar o confronto começou lá fora com as pessoas jogando moedas na polícia Aqui está sua propina seus porcos Seus malditos porcos Sumam da nossa frente Isso começou pelas divas de rua daquela era das quais eu era uma delas Marsha P Johnson e muitas outras que não estão aqui Eu tenho sorte de que vou fazer 50 anos em julho mas eu estou aqui Nessa época conta as pessoas estavam empenhadas em diferen tes lutas inclusive ela e outras pessoas transgêneras Mas nessas lutas nos movimentos por Direitos Civis no movi mento em função da guerra no movimento de mulheres nós ainda éramos párias A única razão pela qual elases toleravam a comunidade transgênera em alguns desses movimentos era porque nós éramos porradeirasos e entusiastas nós éramos ponta de faca comissão de frente A gente não aturava nenhu ma merda de ninguém Nós não tínhamos nada a perder Vocês todasos tinham direitos A gente não tinha nada a perder Eu vou ser a primeira a pisar nos pés de qualquer organização ou de qualquer político se eu precisar pra ir atrás dos direitos da minha comunidade E foi exatamente assim que Sylvia e outras mulheres e homens trans naquele dia agiram Sylvia conta que ela atirou o segundo coque tel molotov que alguém cortou as linhas de telefone então os policiais de dentro do bar não conseguiam chamar apoio Eles estavam sozi nhos aquela era uma batida ilegal e de rotina eles não imaginavam que asos esquistasos as sapatonas e as bichonas iam revidar daquela forma A revolta cresceu pois quando souberam que isso es tava acontecendo as pessoas das boates e bares próximos saíram e se uniram à turba de stonewall Mulheres e homens heterossexuais que moravam na área e eram contra a violência policial também se junta ram à rebelião e quando o reforço policial chegou cerca de 45 minutos depois havia um coro de dyvas de rua street queens244cantando Nós 244 Como são chamadas mulheres trans travestis homens homossexuais afemi nados drag queens pessoas nãobinárias cuja performance de gênero é lida Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 411 somos as garotas de stonewall nós usamos nossos cabelos em cachos nós usamos nossos jeansacima de nossos lindos joelhos nós mostra mos nossos pelos púbicos Rivera 20074 E quando a polícia chegou veio de forma violenta e batendo em todas as pessoas e quanto mais batiam mais as pessoas revidavam pois estavam fartas daquela situação e queriam liberação E consegui ram a liberação mas não foi para todasos Naquela noite eu me lembro cantar Nós vamos superar muitas vezes em diferentes manifestações nas escadarias de Albany quando tivemos nossa primeira marcha onde eu falei para a multidão em Albany Eu me lembro de cantar mas eu não superei porcaria nenhuma Eu não estou nem nos fundos do ônibus Minha comunidade está sendo arrastada por uma corda em volta de nosso pescoço pelo párachoque do maldito ônibus que fica na frente Liberação gay mas nada transgênero Sim eu tenho muita raiva Mas eu tenho direito a essa raiva Eu lutei muito e muito arduamente por essa comunidade para aguentar o desrespeito que eu tenho recebido e que a minha comunidade tem recebido pelos últimos trinta e dois anos Ri vera 20075 socialmente como sendo feminina Aqui no Brasil chamamos essas pessoas de divas A invisibilização das identidades trans com muita frequência associa divas a drag queens mas não são apenas as drag queens que são nossas di vas Mulheres cisgêneras combativas da cultura pop LGBT também são assim chamadas e chamam a si mesmas como a cantora e pensadora Valesca como Beyoncé Lady Gaga Madonna e outras musas da comunidade LGBT Drag queens são comumente associadas a homens cisgêneros que se vestem de mulheres para fazer performances geralmente artísticas mas também há drag queens mulheres cisgêneras algumas pessoas as chamam de faux drag e homens trans e mulheres trans que fazem drag Fazer drag portanto é se montar usar roupas e acessórios associados a outro gênero Drag kings são pessoas que se montam com roupas associadas ao gênero masculino Todas essas performatividades trazem a reflexão sobre a construção social das identidades e dos papéis de gênero em sociedade Se uma mulher cisgênera pode ser lida interpretada como sendo homem pelas suas vestimentas e comportamentos o que é ser homem o que é ser mulher afinal O sexo assi nalado ao nascimento realmente é o que determina quem somos A inteligibi lidade social que cria a linha sexo então gênero então desejo ao sexo oposto dá conta das reais formas de vida ou esse marcador jurídico é apenas para o estabelecimento de relações de poder com fins de exploração dominação e subordinação 412 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Sylvia conta ainda que quando queriam propor o Projeto de Lei de Direitos Gays Gay Rights Bills houve uma pessoa apenas presa que foi ela porque estava na rua buscando assinaturas para a propo situra do Projeto e que ela só fez isso porque o projeto trazia também as reivindicações da comunidade transgênera Mas quando estavam em negociação houve um acordo de gabinete de retirar as demandas das pessoas trans para agilizar a aprovação Isso foi feito e essa lei ain da assim demorou 17 anos para ser aprovada O acordo era vocês tiram elases e nós aprovamos a lei E o que os homens gays brancos bonzinhos e conservadores fizeram Eles venderam a comunidade que os liberou água a baixo e ainda levaram 17 anos para que a maldi ta lei passasse Rivera 20075 O movimento de liberação gay começou mas para os homosse xuais normais Os homens cisgêneros gays tinham que usar gravatas e ternos as mulheres cisgêneras lésbicas vestidos e saltos para serem consideradasos normais Era a forma como eram distanciadasos das pessoas trasngêneras e aproximadasos das pessoas cisgêneras hete rossexuais Casamento adoção o que as pessoas cisgêneras homos sexuais queriam era ser como eles era ascender em respeitabilidade social e reconhecimento e com isso se afastaramafastam cada vez mais da comunidade trans A homossexualidade já foi considerada internacionalmente uma doença constava no Manual de Diagnóstico e Estatística de Distúr bios Mentais Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders DSM produzido e editado pela Associação de Psiquiatria Americana APA e também constava na Classificação Internacional de Doen ças CID produzida e editada pela Organização Mundial de Saúde OMS A retirada do DSM só se deu em 1973 e do CID em 17 de maio de 1990 quando a assembleia da OMS declarou que a homos sexualidade não constitui doença nem distúrbio e nem perversão245 A retirada da homossexualidade dos catálogos de doença inter nacionais só foi possível porque estiveram ao lado das pessoas Lésbi cas Gays e Bissexuais as pessoas Transgêneras Travestis Intersexuais 245 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LÉSBICAS GAYS BISSEXUAIS TRAVES TIS E TRANSEXUAIS ABGLT Homofobia Disponível em httpwwwab gltorgbrporthomofobiaphp acessado em 30 de março de 2015 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 413 e de gêneros nãobinários Mas os movimentos LGB por direitos apa gam essa parte da história e abandonam a grande comunidade LGBT para conquistar seus direitos civis com mais facilidade Como diz Indianara Siqueira246 ativista travesti prostituta e pre sidenta do grupo TransRevolução do Rio de Janeiro Os gays e as lés bicas foram retirados dos códigos de doença como transtornos mas as travestis e os transexuais ainda são considerados transtornos pessoas transtornadas247 As identidades trans ainda são patologizadas as pessoas trans ainda são consideradas disfuncionais e lhes é retirado o poder e gerên cia sobre suas próprias vidas E as pessoas cisgêneras lésbicas gays e bissexuais o que fazem Estamos aceitando os chamados das comuni dades trans para fortalecimento da luta delases Elases fortaleceram a luta que nos era interessante que nos era conveniente Mais do que fortaleceram eram a frente da luta porque as pessoas trans sempre foram mais facilmente identificadas por quem queria reprimir qual quer vestígio de contranormatividade E até quando apanham e são assassinadas é em invisibilidade porque seus agressores assumem que sejam bichonas ou sapatonas porque o Estado quando reconhece ali a motivação de ódio registra a morte de homossexuais mas não de pessoas trans Quantas pessoas trans são brutalmente assassinadas e morrem sem nunca terem sequer existido oficial e legalmente Pras pessoas trans stonewall é todos os dias como diz Indianara248 Em entrevista à Revista Fórum sobre o dia internacional da visibilidade trans 29 de Janeiro ela fala sobre a invisibilização institucional nos registros de ocorrência 246 Indianara Siqueira fundou em 1995 o Grupo Filadélfia de Travestis Transe xuais Gays Lésbicas e Liberados na cidade de Santos interior do estado de São Paulo Hoje é presidente do grupo TransRevolução e representante da Re dTrans da América Latina e Caribe 247 Fala no seminário A identidade de gênero e a luta de classes que pode ser acessado pelo link httpswwwyoutubecomwatchvfVgUft40qCU Acesso em 19 de abril de 2015 248 SIQUEIRA Indianra in Seminário A identidade de gênero e a luta de classes 2014 Pode ser visualizada em httpswwwyoutubecomwatchvfVgUft40q CU Acesso em 19 de abril de 2015 414 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça quando somos agredidxs ou mortxs é noticiado ou registrado como Homem vestido de mulher ou homossexual pois o Estado não nos reconhece legalmente enquanto travestistransexuaistransgêne ros Nesse caso legalmente quem morreu foi o homem ou a mulher que foram declarados no nascimento Siqueira 2015249 Sylvia Rivera fala do chamado da comunidade trans às pessoas cisgêneras no final de sua palestra Enfatiza a necessidade de formação de alianças sem deixar dúvidas de que mesmo que as pessoas cisgê neras lésbicas gays e bissexuais não atendam isso não impedirá a luta das pessoas trans foi um sentimento doloroso o que aconteceu em 04 de maio de 2001 quando tivemos um marco histórico dos direitos ci vis nessa cidade Nossa lei finalmente foi apresentada A gente esperou esse tempo todo Mas onde estavam minhas irmãs e meus irmãos Onde estavam minhasmeus filhasos a quem eu liberei Muito poucasos aliadasos apareceram Mas o que me deixou muito orgulhosa foi que a comunidade trans apareceu em números e as meninas que trabalham nessas esquinas até ti veram coragem de sair em público e ir para um lugar onde elas nunca considerariam ir que foi a prefeitura porque elas tinha medo da polícia mas elas estavam ali Então isso serve para mostrar ao restante da comunidade que tecnicamente quando pedimos o apoio de vocês nós queremos o apoio de vocês Mas no final das contas se vocês não estiverem lá nós vamos con quistar o que precisamos Os transfeminismos a Rede Internacional pela Despatologiza ção das Identidades Trans o Grupo Transrevolução e outros grupos e organizações da comunidade trans bem como pessoas trans inde pendentes estão na luta no mundo inteiro para mudar esse quadro Meu corpo é meu cavalo de guerra E eu vou por aí lutando contra as regras da sociedadeSiqueira 2014250 Uma das reivindicações dos 249 Entrevista disponível em httpwwwrevistaforumcombrblog201501nos salutacontratransfobianaoseresumeumunicodiadevisibilidadediz indianarasiqueira visualizada em 30 de março de 2015 250 Entrevista concedida à campanha Linha de Frente que pode ser visualizada no link httpswwwyoutubecomwatchvsihavI6rOQ acesso em 19 de abril de Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 415 movimentos protagonizados por pessoas trans é o reconhecimento de sua existência oficial e para isso a retirada das transexualidades dos catálogos médicos internacionais é fundamental Essa luta no entan to não acontece e nem deve acontecer apenas em âmbito internacio nal Esses movimentos acontecem local e nacionalmente em diversos países O movimento social organizado por pessoas trans no Brasil tem início em 1992 com a fundação da Associação de Travestis e Libera dos do Rio de Janeiro ASTRAL e veio da necessidade de união entre as travestis e mulheres trans que se prostituíam nas zonas centrais da cidade pela violência policial da qual eram alvo Jovanna Baby funda dora e primeira presidenta da ASTRAL descreve o cenário Eu morava no Rio de Janeiro nos anos 80 e eu fazia progra ma Eu era profissional do sexo Aí a polícia perturbava mui to A guarda municipal do Rio perturbava muito A sociedade perturbava muito Perturbava não queria que a gente ficasse na Central do Brasil Não queria que a gente ficasse na Lapa Não queria que a gente ficasse em Copacabana Aí a polícia perturbava vivia enchendo aqueles ônibus coração de mãe e levando todos os dias para as delegacias E aí o que eles faziam A gente ficava na delegacia de 7 até as 4 da manhã justamente para eles impedirem a gente de ganhar o nosso sustento A gen te não sabia o que fazer Jovanna Baby in Carvalho Carrara 20138 De acordo com os autores o apoio para a criação da ASTRAL veio de um projeto de prevenção das DST e AIDS chamado Saúde na Prostituição Carvalho Carrara 20138 e todas as outras ativistas a quem entrevistaram inclusive Indianara Siqueira todas começaram seu percurso de militância em alguma organização de combate à epi demia de AIDS Jovanna Baby participou de diversas reuniões do projeto Saú de na Prostituição organizado pelo Instituto Superior de Estu dos da Religião ISER Keila Simpson foi procurada para ser 2015 416 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça voluntária em projeto de prevenção com travestis profissionais do sexo coordenado pelo Grupo Gay da Bahia GGB Marcelly Malta organizava o grupo de travestis do GAPARS treinada pelo Programa Municipal de DSTAIDS de Santos Indianara foi agente de prevenção junto a profissionais do sexo Carvalho Carrara 20139 Em 1993 as integrantes da ASTRAL organizaram na cidade do Rio de Janeiro o primeiro Encontro Nacional de Travestis e Libera dos que contou com 95 participantes de cinco estados Esse encontro impulsionou a criação de várias outras organizações Foi o início da formação de uma rede nacional de mobilização da comunidade trans Em dezembro de 2000 na cidade de Curitiba a organização de uma rede nacional de ONGs de travestis e transexuais se concretiza na cria ção da Articulação Nacional de Travestis Transexuais e Transgêneros ANTRA Carvalho Carrara 201311 A entrada das pessoas trans no movimento que hoje é chamado de LGBT não foi tranquila e nem fácil À época o movimento era cha mado de Movimento Homossexual Brasileiro MHB e só pessoas cis gêneras que se identificavam como gays e lésbicas é que faziam parte dele Apenas em 1995 com a criação da Associação Brasileira de Gays e Travestis ABGLT é que o T entrou efetivamente na sigla oficial Mas não foi um processo fácil de acordo com Jovanna Baby Eles gays e lésbicas não queriam por hipótese alguma colocar o T Aí a partir de lá que nós brigamos e conseguimos aprovar o T Aí a partir daí que as travestis começaram a participar e ainda de forma tímida e ainda muito discriminadas A gente ia para os eventos e eles nos discriminavam Eles ficavam de longe apontando na hora que a gente ia comer na hora do café da manhã Não queriam dividir apartamento não queriam sentar na mesma mesa do café do almoço do jantar Jovanna Baby in Carvalho Carrara 201312 O T da sigla até então significava travesti Em 1997 no entanto começam as pressões internacionais para o movimento social brasilei ro aderir à nomenclatura transexual ou transgênero como era inter Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 417 nacionalmente O debate era sobre o termo travesti ser uma identi dade cultural brasileira portanto indispensável mas não contemplar a todas as mulheres trans Hoje usase muito trans como abreviação de transgênero e ambos como guardachuva para as identidades não cisgêneras O histórico de luta dos movimentos sociais da comunidade trans apontam para a formação de redes de apoio e proteção mútuas para lidar com a rejeição familiar expulsão de casa violência policial ex clusão do mercado de trabalho formal As tensões dentro do movi mento LGBT eramsão muitas e a exclusão e silenciamento eramsão sistemáticos como relata Jovanna A gente nem conhecia essa palavra LGBT na época mas a transfobia era muito maior nos próprios grupos organizados de homossexuais que existiam A gente era muito mais descri minada no grupo Atobá alguns seguidores não nos apoia vam mas a maioria nos descriminava nos grupos que existiam o Atobá GGB Corsa em São Paulo Todos esses grupos eles só nos usavam como massa de manobra para poder trazer recur sos para os seus projetos de prevenção com essa população na época que eragrupo de risco Mas eles não nos davam espaço de falar de diálogo de mostrar a nossa capacidade as nossas ideias Então nós éramos apenas populaçãoalvo E a gente não queria aquilo A gente queria ser vista ser respeitada e estar conduzindo a política para nós mesmas Não falar só para nós mesmas mas conduzir a política nossa Jovanna Baby in Car valho Carrara 20131718 grifo meu Foi só no final da década de 1990 e início dos anos 2000 que co meçou a se falar em identidade de gênero entre os movimentos sociais LGBT Esse debate surgiu dentro do debate sobre transexualidade e a identidade de gênero acabou se configurando como elemento fun damental para distinção política entre as pessoas trans e cis dentro desse movimento Carvalho Carrala 2013251 251 O uso do termo identidade de gênero é político porque vem sendo ampla mente utilizado em meios acadêmicos e ativistas mas esse termo gera con trovérsias que não vou trazer aqui por falta de braços para o trabalho Uma provocação bastante interessante é a de Mauro Cabral que fala Por que parece que as mulheres e homens têm gênero e as pessoas transexuais têm identidade 418 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Até março de 2018 para fazer alteração de registro civil no Brasil era preciso ajuizar uma ação de retificação e era necessário passar por pelo menos dois anos de avaliação psiquiátrica e psicológica juntan do laudos autorizações desses dois profissionais ao processo e ainda assim havia a possibilidade de indeferimento do pedido252 Após o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI nº 4275 no entanto o Supremo Tribunal Federal STF reconheceu a possibi lidade das pessoas transgêneras fazerem a alteração de registro civil diretamente em cartórios e sem a necessidade de juntada dos docu mentos que até então eram requisitados em processos judiciais Essa decisão foi considerada um avanço no sentido que desjudicializa e desburocratiza o acesso de pessoas trans ao direito a identidade au todeclarada O Provimento 73 de 28 de junho de 2018 do Conselho Nacional de Justiça CNJ vem regulamentando essa decisão e reafir mando a desburocratização desse processo Vitória que certamente veio de todo histórico de lutas das pessoas trans pelo reconhecimento de suas identidades O Brasil no entanto ainda é o país onde pessoas trans mais são alvo de crimes de ódio no mundo De acordo com a ONG Transgen der Europe TGEu253 de 2008 a 2016 foram registrados 868 assassi natos sendo que o México segundo colocado no ranking registrou 256 mortes254 A mudança do reconhecimento jurídico é certamente de gênero 2010 p 221 apud BENTO 2011 p 93 252 Para um bom panorama sobre os processos judiciais de retificação de registro vide Rovaris Cidade 2016 253 O levantamento do mapa de violência contra pessoas trans pela TGEu pode ser visto em httpstransrespectorgwpcontentuploads201611TvTPS Vol142016pdf acesso em 04 de Julho de 2018 254 Importante ressaltar que esses dados são sempre subnotificados pelos motivos aqui já comentados da dificuldade do reconhecimento das identidades trans Muitos dos registros de homicídios levam os dados dos documentos oficiais de identificação e poucas são as vezes em que as autoridades policiais registram a motivação dos crimes De alguns anos para cá as organizações LGBT da socie dade civil têm feito esforços singulares em registrar os assassinatos de pessoas LGBT buscando nas divulgações por agências de notícias e mídias sociais a motivação transfóbica dos crimes No Rio de Janeiro o grupo TransRevolução e no Brasil a Associação Nacional de Travestis e Transexuais ANTRA têm feito esses esforços só no primeiro semestre de 2018 já foram contabilizadas 86 pessoas assassinadas 29 tentativas de assassinato 07 casos de suicídio 19 mor tes por transfobia sociocultural mortes causadas pela falta de acesso a serviços básicos como os de saúde e educação ou a espaços sociais como a família e o mercado de trabalho deixando as pessoas trans em situação de maior vulnera Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 419 um passo primordial mas também é preciso que haja uma mudança social da percepção sobre as pessoas trans o que envolve campanhas públicas de informação e principalmente envolve Educação sexual e de gênero nas escolas Só pela Educação é que poderemos ver mudan ças a longo prazo e vem daí a importância de combater projetos como o Escola Sem Partido Projeto de Lei 8672015 e outros que comba tam o que se chama de ideologia de gênero mas que na verdade é informação consciente e responsável sobre as múltiplas possibilidades de existência humana CONCLUSÃO Na busca por direitos e no combate às desigualdades sociais com frequência notamos que os movimentos sociais acabam por reprodu zir as hegemonias e hierarquizações da sociedade Para não cair nessa armadilha é preciso que haja constante autoatualização e questio namento sobre quais estruturas estão sendo reproduzidas e atualiza das pelas práticas e teorias dedicadas ao enfrentamento das injustiças sociais Reconhecer a legitimidade do saber produzido por pessoas que historicamente estiveram apartadas dos espaços institucionais de saber como as mulheres negras pessoas trans pessoas pobres e pe riféricas é certamente um primeiro passo importante Reconhecer e ouvir as vozes que apontam a reprodução de hierarquias até mesmo para dentro dos movimentos sociais ao invés de manter uma postura distanciada e estanque para que mudanças realmente significativas possam acontecer O movimento pela despatologização das homossexualidades ao se distanciar da população trans deixa para trás parte do segmento LGBT que esteve presente na luta contra o estigma que a cishete ronormatividade construiu em torno das pessoas cisgêneras lésbicas e gays Certamente que o casamento entre pessoas do mesmo sexo a possibilidade de adoção conjunta e a coparentalidade são direitos bilidade social e 33 casos de violações de direitos humanos de pessoas trans Importante destacar que a maior parte desses casos foram contra pessoas trans negras e prostitutas que trabalham nas ruas httpsantrabrasilorg20180701 sao86pessoastransassassinadasnoprimeirosemestrede2018 acesso em 04 de julho de 2018 420 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça que devem ser assegurados a todas as pessoas independente da se xualidade que tenhamos mas não significa que a despatologização das transidentidades possa ser considerada uma questão de menor importância especialmente no país em que as pessoas trans mais são assassinadas no mundo e de maneira tão brutal A expulsão de casa evasão escolar impossibilidade de entrar no mercado formal de tra balho tudo isso faz com que as vidas das pessoas trans seja subalterni zada na sociedade e combater os estigmas que envolvem as transexua lidades é também em última análise combater os mesmos estigmas que perseguem as pessoas lésbicas e gays cisgêneras pois o que se pretende com a perseguição de pessoas trans é definir que haja uma única possibilidade de existência para homens e para mulheres e essa possibilidade envolve a heterossexualidade compulsória Precisamos portanto conectar as pautas por autonomia dos movimentos LGBT e feministas pois autonomia significa sim poder amar e desejar pes soas do mesmo sexo mas também a autonomia para autodetermina ção de identidade Tratase sobretudo de uma oposição ao controle de nossos corpos pelo Estado REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTRA Já são 86 pessoas trans assassinadas apenas no primeiro semestre de 2018 disponível em httpsantrabrasilorg20180701 sao86pessoastransassassinadasnoprimeirosemestrede2018 último acesso em 04 de julho de 2018 ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LÉSBICAS GAYS BISSEXUAIS TRAVESTIS E TRANSEXUAIS ABGLT Homofobia Disponível em httpwwwabgltorgbrporthomofobiaphp acessado em 30 de março de 2015 BUTLER Judith El género en disputa el feminismo y la subversión de la identidad Trad Maria Antonia Muñoz Barcelona Book Print 2007 CARVALHO Mario Felipe de Lima CARRARA Sérgio Em direção a um futuro trans Contribuição para a história do movimento de tra vestis e transexuais no Brasil in Sexualidad Salud y Sociedad Revis ta Latinoamericana Rio de Janeiro 2013 pp 319351 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 421 FREITAS A Ensaio de construção do pensamento transfeminista CMI Barsil 2005 Disponível em httpwwwmidiaindependenteorg ptred200512340210 Acessado em 25 de março de 2018 JESUS Jaqueline Gomes Gênero sem essencialismo feminismo transgênero como crítica do sexo Bogotá Universitas Humanística nº 78 2014 pp241258 KOYAMA Emi The transfeminist manifesto In Catching a wave Re claiming feminism for the twentyfirst century Boston North Eastern University Press 2001 pp 244259 LADO BI REVOLTA DE STONEWALL RECONTADA EM HQ 2013 Disponível em httpwwwladobicom201310revoltastone wallrecontadaquadrinhos acesso em 28 de abril de 2015 LORDE Audre An open letter to Mary Daly in Sister Outsider Essays and Speeches Berkeley Crossing Press Feminist Series 1984 p 66 RIVERA Sylvia Sylvia Riveras talk at LGMNY June 2001 Lesbi an and Gay Community Services Center New York CityNova York CENTRO Journal 2007 ROVARIS CIDADE Maria Luiza Nomes impróprios Registro civil norma cisgênera e racionalidade do Sistema Judiciário Dissertação de mestrado Rio de Janeiro UFRJ 2016 SIQUEIRA Indianara A identidade de gênero e a luta de classes Dis ponível em httpswwwyoutubecomwatchvfVgUft40qCU Aces so em 19 de abril de 2015 Nossa luta contra a transfobia não se resume em um único dia Entrevista disponível em httpwwwrevistaforumcombr blog201501nossalutacontratransfobianaoseresumeumuni codiadevisibilidadedizindianarasiqueira visualizada em 30 de março de 2015 Entrevista concedida à campanha Linha de Frente que pode ser visualizada no link httpswwwyoutubecomwatchvsiha vI6rOQ acesso em 19 de abril de 2015 STOP TRANS PATHOLOGIZATION STP 2012 Disponível em httpwwwstp2012infooldpt acessado em 26 de março de 2015 422 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça TRANSGENDER EUROPE TMM annual report 2016 disponível em httpstransrespectorgwpcontentuploads201611TvTPS Vol142016pdf último acesso em 04 de Julho de 2018 TRUTH Soujourner E não sou uma mulher Disponível em https wwwgeledesorgbrenaosouumamulhersojournertruth último acesso em 12 de julho de 2018 423 O RECONHECIMENTO DA IDENTIDADE DE GÊNERO DAS PESSOAS TRANS NO BRASIL um olhar sobre as iniciativas do Poder Legislativo Executivo e Judiciário Flora Hilário Mendes Pereira255 Marina Barbosa de Freitas256 Resumo O presente trabalho pretende analisar os esforços realiza dos no Brasil em direção ao pleno reconhecimento da identidade de gênero das pessoas trans com base na atuação dos Poderes Legislati vo Executivo e Judiciário Na esfera Legislativa a análise incide sobre os Projetos de Lei nº 722007 6582011 e 50022013 considerando para tanto os paradigmas de construção dessas propostas A atuação do Poder Executivo se baseia no Decreto Federal nº 87172016 que possibilitou a inserção do nome social nos registros públicos da Ad ministração Pública Federal A postura do Poder Judiciário sobre o tema é analisada por meio da decisão proferida pelo Supremo Tri bunal Federal STF a qual possibilitou a alteração do nome civil e gênero mediante a autodeclaração Com base nessas iniciativas o tra balho discute e questiona a efetividade dessas iniciativas enquanto 255 Bacharel em Direito pela PUC Minas PósGraduanda em Cidadania e Direitos Humanos no Contexto das Políticas Públicas pela PUC Minas 256 Bacharel em Comunicação Social Publicidade e Propaganda e bacharel em Direito pela PUC Minas PósGraduanda em Cidadania e Direitos Humanos no Contexto das Políticas Públicas pela PUC Minas 424 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça garantidoras do direito ao nome e à identidade de gênero das pessoas trans Palavraschave Identidade de Gênero Nome Social Transexualida de Travestilidade Decreto Federal nº 872716 Lei João W Nery ADI 4275 1 INTRODUÇÃO Atualmente o Brasil é o país que mais mata pessoas trans responden do ainda por quase 40 do número total de homicídios de transe xuais em todo o mundo Balzer Lagata Berredo 2016 p 78 Essa estatística demonstra que ainda há um longo caminho a ser percor rido até que o Brasil seja considerado um país seguro e garantidor dos direitos da população LGBT Evidencia ademais a urgência de se pensar novas políticas públicas que garantam a efetivação de direitos e reduzam a vulnerabilidade dessa parcela da população Diante desse cenário este trabalho pretende analisar de forma não exaustiva as iniciativas dos Poderes Legislativo Executivo e Ju diciário para alteração do nome e reconhecimento da identidade de gênero das pessoas trans no Brasil Para tanto tomase como ponto de partida a análise das propostas legislativas apresentadas no Congresso Nacional em favor da proteção à identidade de gênero A análise é conduzida sob os dois paradigmas opostos da concepção da transexualidade a visão patologizante ou biologizante e a perspectiva declaratória Traçase na sequência uma análise crítica do Decreto Federal nº 872716 como tentativa do Poder Executivo de garantir direitos à população trans O Decreto que regulou a inclusão do nome social nos registros da Administração Pública Federal é analisado a partir da concepção do direito ao nome como elemento intrínseco à perso nalidade Sob essa ótica a correspondência entre nome e identidade de gênero é antes de tudo proteção à dignidade da pessoa humana A análise do papel do Poder Judiciário sobre o tema é feita a par tir da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI no 4275 em março de 2018 em Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 425 favor do reconhecimento da identidade de gênero das pessoas trans bastando a autodeclaração do requerente É necessário assim um es forço de se pensar no significado desse avanço obtido pela via judiciá ria na luta pelos direitos das pessoas trans e suas consequências 2 O LEGISLATIVO BRASILEIRO E O RECONHECIMENTO DA IDENTIDADE DE GÊNERO 21 Perspectiva autorizativa x perspectiva declaratória A regulamentação dos direitos das pessoas trans varia de acordo com a concepção de gênero utilizada pelo legislador Isso quer dizer que a predominância da visão biologizante do gênero implica maior núme ro de exigências para cirurgias de transgenitalização e mudanças de documentos Bento 2014 p 9 Isso porque essa visão pressupõe a construção social de papeis e desigualdades ancorados no sexo biológico sendo este entendido como matériaprima na fabricação do gênero Laqueur apud Lopes 2016 p 22 Deste modo assumese que a pessoa nascida com gêne ro não correspondente a seu sexo de nascimento é detentora de uma patologia Essa compreensão do gênero como desvio compulsão ou doença faz com que a transexualidade deva ser comprovada por lau dos médicos psicológicos eou autorizações judiciais a depender da legislação do país É a chamada via autorizativa haja vista que o re conhecimento da identidade de gênero da pessoa depende da autori zação de terceiros sejam eles profissionais da saúde ou do judiciário A perspectiva declaratória em contrapartida desvincula o gênero do sexo biológico O gênero é entendido nesse sentido como constru ção normativa enquanto estilização repetida do corpo um conjunto de atos repetidos no interior da uma estrutura reguladora altamente rígida a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância uma classe natural de ser Butler 2003 p 59 Por conse guinte a consideração de mulher ou homem não se esgotaria na iden tificação do sexo de nascimento mas decorreria de fatores culturais e sociais incidentes sobre o indivíduo Na visão de Butler as atribuições 426 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça dadas a homens e mulheres seriam fruto mais de uma criação social e cultural do que decorrência do sexo de nascimento257 As leis que partem desta definição de gênero são revestidas de caráter declaratório na medida em que exigem apenas a autodecla ração daqueles que pretendem submeterse à cirurgia eou alteração do nome civil e gênero Logo podese afirmar que tais leis reforçam a autonomia dos indivíduos vez que desvinculam o reconhecimento da identidade de gênero da aprovação de terceiros como ocorre no caso da perspectiva autorizativa Um exemplo da perspectiva autorizativa é a Lei de Identidade de Gênero da Espanha Ley no 32007 aprovada em 2007 que prevê a possibilidade de alteração de todos os documentos diretamente no Registro Civil sem necessidade de cirurgia ou sentença judicial desde que o requerente apresente o diagnóstico de disforia de gênero e que tenha recebido tratamento hormonal por no mínimo dois anos Es panha 2007 Ante ao reconhecimento da defasagem da lei o Grupo Parla mentar Socialista apresentou o Projeto de Reforma da Lei no 32007258 buscando a despatologização da transexualidade na Espanha país considerado o maior simpatizante da população trans na comunidade internacional Buzzfeed 2016 O projeto de reforma da lei suprime quaisquer exigências para alteração do nome e gênero do requerente Notase portanto uma tentativa de deslocamento da perspectiva au torizativa da legislação espanhola para a perspectiva declaratória A concepção declaratória por sua vez encontrase inscrita na Lei de Identidade de Gênero da Argentina 2012 tida como referên cia mundial O reconhecimento da identidade de gênero se afasta do paradigma heteronormativo na medida em que não exige nenhum 257 Este conceito de gênero encontra guarida no Glossário da Organização das Nações Unidas ONU ao ser tido como papeis comportamentos atividades e atributos que a sociedade considera apropriado para homens e mulheres Para definição de gênero vide Glossário de termos do Objetivo de Desenvolvimen to Sustentável 5 Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulhe res e meninas elaborado pela Organização das Nações Unidas 258 Além da supressão de exigências para alteração de nome e gênero pelas pes soas trans o Projeto de Lei também permite a retificação do registro de nome e gênero de menores de idade transexuais e apresenta melhorias para integração de estrangeiros transexuais residentes na Espanha Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 427 documento laudo ou exame médico que ateste a identidade de gênero de pessoa interessada O requerimento direto no cartório nesse caso é suficiente Nesta mesma linha aprovouse em 2016 a Lei de Identidade e Expressão de Gênero e Igualdade social e não Discriminação da Co munidade de Madrid garantindo a todas as pessoas o direito a cons truir para si uma autodefinição com respeito ao corpo sexo gênero e orientação sexual Art 4 1 da Ley 022016 A lei da Comunidade de Madrid representa um avanço em rela ção à já mencionada lei nacional espanhola ao prescindir da confir mação da identidade de gênero declarada mediante exame médico ou psicológico bem como proibir que alguém seja pressionado a ocul tar suprimir ou negar sua identidade de gênero expressão de gênero orientação sexual ou qualquer outra característica sexual259 22 As propostas legislativas brasileiras em defesa da identidade de gênero O Brasil vive um vácuo legislativo no que tange ao reconheci mento da identidade de gênero o que faz com que os demandantes tenham que recorrer ao Poder Judiciário para verem satisfeitas suas demandas por cirurgias de redesignação de gênero eou alteração de nome e gênero Cumpre ressaltar que essa precariedade legislativa relativa aos direitos das pessoas trans não resulta da ausência de tentativas em re gulamentação da questão Prova disso é que nos últimos anos foram propostos pelo menos três projetos de lei sobre o assunto Em 2007 o então deputado Luciano Zica propôs o Projeto de Lei 722007 visando a alteração do art 58 da Lei de Registros Públicos para que possibilitasse expressamente a substituição de pronome de pessoas transexuais mediante apresentação de laudo médico ainda que a pessoa não tenha sido submetida a procedimento cirúrgico para adequação dos órgãos sexuais 259 Tradução livre do art 4 item 1 da LEY 22016 de 29 de marzo de Identidad y Expresión de Género e Igualdad Social y no Discriminación de la Comunidad de Madrid 428 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Igualmente o Projeto de Lei nº 6582011 de autoria da exsena dora Marta Suplicy prevê como requisito para a alteração documental a demonstração da discordância de gênero por laudo técnico forneci do por profissional da área médica da psicologia ou da psiquiatria Observase assim que ambos os projetos partem do paradigma autorizativo vez que delegam a terceiros a função de atestar a iden tidade de gênero dos requerentes seja por meio de laudos médicos ou decisões judiciais O PL 722007 foi arquivado após o término da legislatura em 261214260 enquanto o PL 6582011 continua em trâ mite na Comissão de Constituição de Justiça e Cidadania CCJ261 Distanciandose dessa perspectiva e partindo de um entendimen to emancipatório da identidade de gênero a deputada Érika Kokay PTRJ e o deputado Jean Wyllys PSOLDF elaboraram o Projeto de Lei nº 50022013 também conhecido como Lei João W Nery262 O projeto inova em relação aos anteriores ao proibir que sejam exigidos para alteração do prenome i intervenções cirúrgicas ii terapias hormonais iii outro tipo de tratamento ou diagnóstico psicológico ou médico ou iv autorização judicial art 4º parágrafo único Bas taria neste caso a livre manifestação de vontade do requerente Outra mudança relacionase à inexistência de idade mínima para requerimento da alteração do nome desde que o pedido seja feito pelos representantes legais do requerente com expressa concordân cia deste art 5º Observase com isso o cuidado do texto legal em proteger a criança ou adolescente de possíveis situações vexatórias em razão da discordância entre nome civil de nascimento e gênero Outro ponto de destaque do Projeto de Lei João W Nery é a proi bição da utilização nos novos documentos de qualquer referência à lei ou identidade anterior salvo com autorização escrita da pessoa trans ou intersexual art 6º 1º Até a data de conclusão deste traba lho o PL 50022013 encontravase na Comissão de Direitos Humanos e Minorias CDHM para apreciação 260 Informações disponíveis no site do Senado Disponível em httpwww25se nadolegbrwebatividademateriasmateria82449 Acesso em 15 dez 2017 261 Informações disponíveis no site do Senado Disponível em httpwww25se nadolegbrwebatividademateriasmateria103053 Acesso em 10 dez 2017 262 O nome do Projeto de Lei no 50022013 faz referência ao primeiro transexual homem brasileiro Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 429 Notase assim que o entrave maior para a efetiva regulamenta ção dos direitos relativos à diversidade não decorre propriamente da ausência de proposições legislativas a esse respeito mas da resistência interna dos membros do Congresso Nacional considerado como o mais conservador desde 1964 Geledés 2014 em discutir pautas que garantam o direito à diversidade 3 A CRIAÇÃO DO NOME SOCIAL PELO DECRETO NO 872716 31 O direito ao nome da perspectiva civilista ao nome social O nome é característica intrínseca à personalidade do indivíduo posto que primeira forma de identificação da pessoa natural no seio da sociedade em que se insere Não por acaso o direito ao nome en contrase insculpido no Capítulo II do Código Civil 2002 destinado aos direitos da personalidade que assim dispõe Art 16 Toda pessoa tem direito ao nome nele compreendidos o prenome e o sobrenome Tratase portanto de direito subjetivo Para o civilista Carlos Ro berto Gonçalves 2012 o nome é parte integrante da personalidade que individualiza a pessoa não apenas durante sua vida mas também após sua morte representando direito inerente à pessoa humana ao lado de outros tais como o direito à vida à honra à liberdade etc Nessa linha o autor cita o autor francês Josserand para quem o nome é uma etiqueta colocada sobre cada um de nós que dá a chave da pessoa toda inteira 2012 Fábio Ulhôa Coelho 2012 p 428 por sua vez compreende a importância do direito ao nome para além da esfera jurídica desta cando sua importância sob o aspecto psicológico ao considerálo base para construção da personalidade Como preceituado no código civil o nome é composto do preno me e sobrenome O prenome é o nome próprio de cada um destinado a distinguir membros de uma mesma família Poderá ser livremente escolhido pelos pais desde que não exponha o filho ao ridículo Isso porque de acordo com o art 55 parágrafo único da Lei no 6015 de 430 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 31 de dezembro de 1973263 caso o nome dado pelos pais exponha o filho ao ridículo não será registrado pelos oficiais do registro civil O sobrenome por sua vez identifica a procedência da pessoa indicando sua filiação sendo transmissível por sucessão O art 19 do Código Civil estende ao pseudônimo a proteção con ferida ao nome demonstrando que a tutela do nome transcende a ideia de simples afirmação de direito ao nome enquanto tal tutelan dose verdadeiro aspecto do direito à identidade pessoal Hogemann 2014 p 219 O nome enquanto inerente à pessoa humana exerce função in dividualizadora e função identificadora A primeira delas se destina a distinguir os indivíduos enquanto a segunda identificaos aos olhos do estado para exercício de direitos e obrigações Hogemann 2014 p 219 A possibilidade de alteração do nome civil encontrase excepcio nalmente permitida pela Lei Federal no 6015 de 31 de dezembro de 1973 Lei de Registros Públicos A imutabilidade do prenome foi al terada podendo ser realizada nos casos trazidos pela lei Vide a título exemplificativo algumas dessas situações i Quando o nome for suscetível de expor seu portador ao ridículo art 55 ii Até um ano após o atingimento da maioridade civil imotivada mente desde que não prejudique os apelidos de família art 56 iii Após completado um ano desde a maioridade por exceção e motivadamente após realização de audiência do Ministério Público e por meio de decisão judicial art 57 iv Substituição do prenome por apelidos públicos notórios ou em razão de coaçãoameaça decorrente da colaboração com apuração de crime mediante determinação por sentença após oitiva do Ministé rio Público art 58 Em que pesem as hipóteses de alteração do prenome trazidas pela Lei de Registros Públicos enquanto exceções à regra da imutabilidade 263 Lei que dispõe sobre os registros públicos e dá outras providências Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 431 do prenome não se pode olvidar que o nome civil constitui aspecto intrínseco à personalidade humana Nessa ótica devese salvaguardar a possibilidade de modificação do nome em situações não previstas expressamente em lei reclamandose o rol não exemplificativo das hi póteses modificativas do nome Farias e Rosenvald 2012 p 282 em respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana Clarindo Epaminondas 2014 p 65 em consonância com o po sicionamento do Ministro do STF Luís Roberto Barroso entende a dignidade humana como algo aberto plástico e plural com a seguinte configuração minimalista i a dignidade humana identifica o valor intrínseco de todos os seres humanos ii assim como a autonomia de cada indivíduo iii sofrendo limitação por algumas restrições im postas a ela em nome de valores sociais ou interesses estatais Deste modo o caráter intrínseco da dignidade humana e o pre nome como elemento essencial da personalidade justificam a neces sária interpretação extensiva do art 58 permitindose a alteração do prenome quando não houver correspondência deste com a identidade de gênero do portador 32 Nome social análise crítica do Decreto Federal no 872716 Ainda que se deva reconhecer à luz dos direitos humanos a ne cessária interpretação extensiva do art 58 da LRP para fins de mudan ça do prenome das pessoas trans em 2016 o Poder Executivo expediu um Decreto possibilitando a utilização do nome social no âmbito da Administração Pública Federal O Decreto Federal no 8727 promulgado pela então Presidenta Dilma Rousseff em 28 de abril de 2016 dispõe sobre uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas traves tis e transexuais no âmbito da Administração Pública Federal direta autárquica e fundacional De acordo com o Decreto nome social é designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida art 1o inciso I A identidade de gênero por seu turno é denomina da como a dimensão da identidade de uma pessoa que diz respeito à forma como se relaciona com as representações de masculinidade e fe 432 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça minilidade e como isso se traduz em sua prática social sem guardar re lação necessária com o sexo atribuído no nascimento art 1o inciso II Por meio do caput do art 2o o Decreto determina que órgãos e entidades da Administração Pública Federal direta autárquica e fun dacional adotem o nome social da pessoa travesti ou transexual de acordo com seu requerimento vedandose o uso de expressões pejo rativas e discriminatórias parágrafo único O Decreto também determina que os registros dos sistemas de informação cadastros programas serviços fichas formulários pron tuários e congêneres contenham o campo nome social em destaque acompanhado do nome civil o qual apenas será utilizado para fins administrativos art 3o O nome social poderá constar nos documentos oficiais median te requerimento da pessoa trans e será acompanhado do nome civil art 4o estando a utilização deste último restrita a situações de ne cessidade de atendimento ao interesse público e salvaguarda de direito de terceiros art 5o A inclusão do nome social poderá ser requerida a qualquer tempo pela pessoa transexual ou travesti em documentos oficias e registros dos sistemas de informação e congêneres art 7o Como se observa o que se pretendia com a referida norma é a inclusão do nome social nos documentos oficiais pessoais das pessoas travestis e transexuais assim como nos sistemas da Administração Pública Federal e não efetiva alteração de seus documentos oficiais para que correspondam à sua identidade de gênero Prova disso é que mesmo após a inclusão do nome social nos documentos e registros o nome civil continua inscrito no documento artigos 3o e 4o Não se pode deixar de notar que a manutenção do nome civil tan to nos documentos quanto registros oficiais ainda que supostamente restrita à utilização interna ou em caso de necessidade pode subme ter a pessoa trans a diversas formas de constrangimento Isso porque muito embora a norma reserve a possibilidade do uso do nome civil apenas para fins administrativos nada obsta que na prática o agente público se negue a utilizar o nome social constrangendo aqueles que deveriam ser protegidos pela lei Assim ainda que se reconheça a importância da referida norma ao permitir a autodeterminação dos travestis e transexuais não re querendo para tanto apresentação de laudos ou sentença judicial é Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 433 latente que tal disposição encerra pequeno avanço se comparado ao longo caminho a ser percorrido até o efetivo reconhecimento da iden tidade de gênero A inclusão do nome social facultada pelo Decreto Federal no 872716 contrasta com a negação de direitos a todo o tempo vividas pelos travestis e transexuais representando mudança que não promo ve alterações estruturais na vida da população mais excluída da cida dania nacional Assim por exemplo uma estudante transexual terá seu nome feminino na chamada escolar mas no mercado de trabalho e em todas as outras dimensões da vida terá que continuar se submetendo a todas as situações vexatórias e humilhantes e portar documentos em completa dissonância com suas perfor mances de gênero BENTO 2014 p 12 Podese dizer então que o Decreto Federal no 872716 evidencia a normatização do nível capilar das relações sociais Bento 2014 p 176 em detrimento da construção de mecanismos mais abrangentes que garantam às pessoas trans a possibilidade de autodeterminação de sua identidade de gênero em todas as esferas sociais Isso porque o referido Decreto não possibilitou a alteração efetiva do nome civil e muito menos o reconhecimento pleno da identidade de gênero consubstanciando tão somente medida paliativa ao permitir o uso do nome social no âmbito da Administração Pública Federal 4 O RECONHECIMENTO DA IDENTIDADE DE GÊNERO PELO PODER JUDICIÁRIO a decisão na ADI 42752009 Quase dois anos após a promulgação do Decreto Federal que instituiu o nome social o Supremo Tribunal Federal autorizou em 1º de março de 2018264 a alteração dos registros civis de nascimento das pessoas 264 Até a conclusão deste trabalho o inteiro teor do Acórdão da ADI 427509 ain da não havia sido publicado 434 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça trans por meio da autodeclaração sem a necessidade de intervenção cirúrgica prévia laudos psicológicos ou médicos nem tampouco de cisão judicial BRASIL 2018 A decisão também resguarda a sigilo sidade da alteração do nome eou gênero de forma que informações sobre o registro de nascimento antigo só poderão ser divulgadas me diante autorização da pessoa trans sob pena de cometimento de ato ilícito Como se observa a decisão confere efeito a alguns pontos do pro jeto de Lei João W Nery ao prescindir de quaisquer laudos ou autori zações para alteração do nome e resguardar o nome de nascimento da pessoa Além disso garante o direito ao nome de forma mais plena do que Decreto Federal no 8727 ao permitir a efetiva alteração do nome civil a partir da interpretação conforme à Constituição Federal e o Pacto São José da Costa Rica do art 58 da Lei de Registros Públicos Segundo o Ministro Celso de Melo o direito à autodetermina ção do próprio gênero enquanto expressão do princípio do livre de senvolvimento da personalidade qualificase como poder fundamen tal das pessoas transgêneros impregnado de natureza constitucional Sustentou ademais a necessidade de que o STF reconheça essa realidade enquanto essencial direito humano O Ministro também fundamentou seu voto no Princípio no 3 de Yogyakarta que prevê o direito de qualquer pessoa de ser reconhecida em qualquer lugar como pessoa pe rante a lei As pessoas de orientações sexuais e identidades de gênero diversas devem gozar de capacidade jurídica em todos os aspectos da vida A orientação sexual e a identidade de gê nero autodefinidas por cada pessoa constituem parte essen cial de sua personalidade e um dos aspectos mais básicos de sua autodeterminação dignidade e liberdade grifo nosso BRASIL 2018 A decisão da Corte Suprema Brasileira foi considerada pela Co missão Interamericana de Direitos Humanos CIDH 2018 como um importante avanço na luta pelos direitos das pessoas trans no Brasil ao respeitar as diretrizes interamericanas de direitos humanos Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 435 Nesse sentido a Comissão parabenizou o país e ressaltou que o direito a identidade é inerente à personalidade humana e a ausência de seu reconhecimento afeta o gozo integral dos direitos humanos das pes soas trans Com efeito a decisão do STF sinaliza progresso na luta pelos di reitos das pessoas transexuais principalmente diante da resistência do Poder Legislativo em relação a pautas relacionadas à diversidade sexual Deste modo coube ao STF fazer uso de sua função contrama joritária a fim de resguardar os direitos fundamentais dessa parcela minoritária da população Nesse sentido como bem apontado pelo Ministro Celso de Melo MS no 2483105 é legítima a intervenção jurisdicional sempre que os corpos legislativos ultrapassem os limites delineados pela Consti tuição ou exerçam as suas atribuições institucionais com ofensa a di reitos públicos subjetivos impregnados de qualificação constitucional grifo nosso BRASIL 2006 Contudo ainda que a decisão seja bastante favorável às pessoas trans o cumprimento de suas disposições deve ser assegurado pelo Estado Brasileiro A Comissão Interamericana foi enfática nesse senti do ao afirmar que apesar da importância dessa regulamentação e dos esforços dos Estados para implementálos sua mera existência não resolve ou garante às pessoas trans a proteção integral de seus direitos humanos Desse modo será necessário assegurar que os registros públicos de todo o país atuem em consonância com a previsão da Corte e aca tem os pedidos de alteração de nome e gênero sem exigir nenhum tipo de documento que ateste a condição de transexual do requerente sob pena de grave violação de seus direitos fundamentais É impor tante ressaltar que até a data de conclusão deste trabalho já haviam sido expedidas regulamentações sobre o procedimento de alteração do nome e gênero nos cartórios do Ceará Rio Grande do Sul Goiás São Paulo Rio Grande do Norte e Sergipe É necessário agora aguar dar a regulamentação do procedimento nos demais estados brasileiros para que a decisão da Corte Suprema adquira contornos concretos e promova de fato esses direitos fundamentais das pessoas trans 436 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 5 CONCLUSÃO Por meio deste trabalho foi apresentada a trajetória do reconhecimen to da identidade de gênero das pessoas trans no âmbito dos Poderes Legislativo Executivo e Judiciário brasileiros Observouse na esfera legislativa alguns impedimentos ao reco nhecimento pleno da identidade de gênero sendo o primeiro deles a persistência da visão patologizante da transexualidade em algumas propostas Na prática esse paradigma se desdobra em exigências de comprovação dessa condição por laudos médicos ou decisões judiciais para alteração do nome ou gênero Também foi evidenciado que muito embora existam propostas legislativas em trâmite no Congresso com intuito de garantir o reco nhecimento da identidade de gênero ainda há resistência dos mem bros do legislativo para aprovação das mesmas O projeto de Lei João W Nery por exemplo apresentase como instrumento viável e abran gente desses direitos posto que elaborado a partir de uma visão sistê mica e não patologizante da identidade de gênero No entanto tramita nas comissões parlamentares há quase 5 anos e não tem perspectiva próxima de aprovação Podese dizer então que a inércia legislativa do governo brasileiro sobre o tema permanece E foi justamente diante da precariedade de regulamentação dessa questão ou em outras palavras desse vácuo legislativo que o Poder Executivo editou Decreto permitindo o uso do nome social Porém o que se viu é que tal iniciativa consubstanciou mais uma medida palia tiva do que de fato solução para a proteção da identidade de gênero Isso porque o nome social não implicou a alteração do nome civil nem tampouco sua supressão nos registros da Administração Pública dei xando espaço para a discricionariedade do agente público em relação à utilização do nome social Nesse cenário a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Fede ral representou um grande passo para a garantia desses direitos ao possibilitar a mudança de nome e gênero sem a exigência de nenhum documento comprobatório e ainda ao preservar o sigilo do registro de nascimento da pessoa que tiver seus dados alterados Este é um claro exemplo do exercício da função contramajoritária pelo Poder Judiciário para a efetivação de direitos fundamentais de um grupo mi Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 437 noritário os quais permaneciam até então negligenciados pelo Poder Legislativo Não se pode olvidar que muito embora a recente decisão seja bastante positiva em relação ao reconhecimento da identidade de gê nero sua real eficácia dependerá do cumprimento pelos cartórios de registro em todo o Brasil Caso contrário haverá não apenas o come timento de ato ilícito por esses órgãos mas também grave violação dos direitos fundamentais das pessoas trans REFERÊNCIAS ARGENTINA Ley 26743 Ley de Identidad de Género 23 mai 2012 Disponível em httpwwwbuenosairesgobarderechoshu manosconvivenciaenladiversidadnormativasley26743deiden tidaddegenero Acesso em 21 mai 2012 BALZER Carsten LAGATA Carla BERREDO Lukas TMM Anual Report 2016 Disponível em httptransrespectorgwpcontent uploads201611TvTPSVol142016pdf Acesso em 15 jan 18 BENTO Berenice Nome social para pessoas trans cidadania pre cária e gambiarra legal Contemporânea Revista de Sociologia da UFSCar São Carlos v 4 n 1 janjun 2014 pp 165182 BRASIL Decreto Estadual nº 8727 de 28 de abril de 2016 Brasí lia2016 Dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta autárquica e fundacional Dispo nível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato201520182016 decretoD8727htm Acesso em 10 dez 2017 BRASIL Código Civil Lei Federal no 10406 de 10 de janeiro de 2002 Brasília2003 Disponível em httpwwwplanaltogovbrcci vil03leis2002L10406htm Acesso em 10 dez 2017 BRASIL Lei de Registros Públicos Lei Federal nº 6015 de 31 de dezembro de 1973 Dispõe sobre os registros públicos e dá outras providências Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03 leisL6015originalhtm Acesso em 10 dez 2107 438 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça BRASIL Supremo Tribunal Federal Confere interpretação do art 58 da LRP conforme a Constituição Federal do Brasil e o Pacto São José da Costa Rica Ação Direta de Inconstitucionalidade 42752009DF Rel Min Marco Aurélio Brasília 1º mar 2018 BRASIL Supremo Tribunal Federal Mandado de Segurança no 2483105 Tribunal Pleno Rel Min Celso de Melo Brasília 22 jun 2005 BUTLER Judith Problemas de Gênero Feminismo e subversão da identidade Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2a ed 2003 BUZZFEED This Is How 23 Countries Feel About Transgender Rights Disponível em httpswwwbuzzfeedcomlesterfeder thisishow23countriesfeelabouttransgenderrightsutmterm dlo8rpJw3Ofvm1BZKer6 Acesso em 25 mai 2018 COELHO Fábio Ulhôa Curso de Direito Civil Parte Geral 5a ed São Paulo Saraiva 2012 COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREIROS HUMANOS CIDH saúda decisão da Corte Suprema brasileira de permitir que pessoas trans alterem o nome através de autodeclaração 23 abr 2018 Disponível em httpwwwoasorgptcidhprensano tas2018085asp Acesso em 12 mar 2018 COMUNIDAD DE MADRID Ley 22016 de 29 de marzo de Iden tidad y Expresión de Género e Igualdad Social y no Discriminación de la Comunidad de Madrid 2016 ESPANHA Ley 32007 de 15 de marzo de 2007 Ley de Identidad de Género Reguladora de la rectificación registral de la mención relati va al sexo de las personas Boletín Oficial del Estado 2007 Disponível em httpswwwboeesbuscarpdf2007BOEA20075585conso lidadopdf Acesso em 30 mar 2018 FARIAS Cristiano Chaves de ROSENVALD Nelson Curso de Di reito Civil Parte Geral e LINDB 10ª ed Vol 1 Salvador JusPodivm 2012 p 282 GONÇALVES Carlos Roberto Direito Civil Brasileiro Vol 1 Parte Geral 10a ed São Paulo Saraiva Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 439 HOGEMANN Edna Raquel Direitos Humanos e Diversidade Sexual O Reconhecimento da Identidade de Gênero Através do Nome Social Revista da SJRJ Rio de Janeiro v 21 nº 39 p 217231 abr 2014 INSTITUTO GELEDÉS Brasil elege Congresso mais conservador desde 1064 07 out 2014 Disponível em httpswwwgeledesorgbr brasilelegecongressomaisconservadordesde1964gclidEAIaI QobChMIsLa5xfKt2wIViwRCh23xghEAAYASAAEgJZuDBwE Acesso em 22 mai 2018 KOKAY Érika WYLYS Jean Projeto de Lei da Câmara nº 50022013 Lei João W Nery Dispõe sobre o direito à identidade de gênero e altera o artigo 58 da Lei 6015 de 1973 Disponível em httpwww2 camaralegbrleginfedlei19701979lei601531dezembro1973 357511normaplhtml Acesso em 10 dez 2017 LOPES Laís Lopes O que é o gênero Gênero sexualidade e direito uma introdução organizadores Marcelo Maciel Ramos Pedro Au gusto Gravatá Nicoli Paula Rocha Gouvêa Brener 1a ed Belo Hori zonte Initia Via 2016 NETO Clarindo Epaminondas de Sá Os Efeitos do Reconhecimen to da Diversidade Sexual como um Direito Humanos pelo Sistema Interamericano de Proteção 2014 Dissertação Mestrado Univer sidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN Disponível em ht tpsrepositorioufrnbrjspuihandle12345678919609 Acesso em 05 dez 2017 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS Glossário de termos do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 5 alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas 2016 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS Nascidos livres e iguais Orientação Sexual e Identidade de Gênero no Regime Internacio nal de Direitos Humanos United Nations Human Rights Office of the High Commissioner Brasília 2013 SUPLICY Marta Projeto de Lei do Senado nº 6582011 Reconhece os direitos à identidade de gênero e à troca de nome e sexo nos do cumentos de identidade de transexuais Disponível em httplegis senadolegbrsdleggetterdocumentodm611078dispositionin lin Acesso em 05 dez 2017 440 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ZICA Luciano Projeto de Lei da Câmara nº 722007 Altera o art 58 da Lei nº 6015 de 3 de dezembro de 1973 que dispõe sobre registros públicos e dá outras providências possibilitando a substituição do prenome de pessoas transexuais Disponível em httplegissenado legbrsdleg getterdocumentodm3498014dispositioninline Acesso em 05 dez 2017 441 REFLEXÕES EPISTEMOLÓGICAS SOBRE A FORMAÇÃO DA CRIMINOLOGIA QUEER Isaac Porto dos Santos265 RESUMO O objetivo do presente artigo é realizar um breve mapea mento das discussões epistemológicas sobre as condições de desen volvimento da criminologia queer verificando os seus objetivos e os possíveis impactos da construção desse campo de conhecimento Para tanto serão abordadas as contribuições epistemológicas dos seguintes ramos da criminologia a escola do rotulacionamento etiquetamento ou labeling approach a criminologia feminista a criminologia inter seccional a criminologia crítica e a criminologia decolonial a fim de verificar em que medida tais escolas criminológicas contribuem para a construção da criminologia queer PALAVRASCHAVE Criminologia queer teoria queer criminolo gia decolonial criminologia feminista criminologia crítica INTRODUÇÃO Temse chamado de criminologia queer a abordagem que a partir da análise dos discursos criminológicos ortodoxos e críticos busca cha mar a atenção para como o sistema penal é utilizado como uma ferra menta de opressão contra a comunidade LGBTI e demais dissidentes sexuaisgênero 265 Mestrando em Direito pela Pontifícia Universidade Católica Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 442 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Conforme Matthew Ball a criminologia queer é geralmente posicionada como uma maneira de abordar a exclusão ou falta de representação das pessoas LGBTIQ como vítimas autoras e agentes da justiça criminal na criminologia e de responder às injustiças produ zidas pelas práticas e instituições da justiça criminal que não foram desenhadas com a população LGBTIQ em mente que falharam em proteger a população LGBTIQ da vitimização e da injustiça ou que de fato formaram uma componente chave na regulação marginalização e criminalização das vigas LGBTIQ BALL 2016 p 6266 As reivindicações por uma criminologia queer emergem desde os anos 90 quando alguns autores começaram a ressaltar o papel re gulatório que a criminologia teve historicamente de definir minorias sexuais e de gênero como desviantes267 Nic Groombridge expressava a impressão de que a relação entre a criminologia e os estudos de sexualidade e gênero se limitavam à adição de gays e lésbicas à lista de vítimas estudadas pela criminologia realistacrítica Groombridge 1999 p 8 Não há um conceito único e fechado de criminologia queer Por ser um campo em construção há diferentes maneiras de pensála Na verdade o termo se refere a uma série diversificada de pesquisas crí ticas metodologias e reflexões relacionadas à criminologia incluindo projetos empíricos engajamentos abertamente políticos no sistema de justiça e reflexões teóricas e conceituais 266 queer criminology is often positioned as a way of addressing the exclusion or misrepresentation of LGBTIQ peopleas victims offenders and criminal justice agents from criminology and responding to the injustices produced by criminal justice institutions and practices that have not been designed with LGBTIQ people in mind have failed to protect LGBTIQ people from victimi sation and injustice or have in fact formed a key component in the regulation marginalisation and criminalisation of LGBTIQ lives Tradução livre 267 Como exemplo estão os trabalhos de ME Burke Coming out of the blue british Police officers talk about their lives in the job as lesbians gays and bi sexuals N Groombridge Perverse criminologies the closet of doctor Lombroso J Messerschmidt Crime as structed action gender race class and crime in the making e S Tomsen Was Lombroso queer Criminology criminal justice and e heterosexual imaninary Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 443 É possível dizer no entanto que essas diferentes pesquisas tem em comum a tentativa de mover essa população das margens para o centro da discussão criminológica sobretudo através de três posicionamentos o reconhecimento da construção das identidades LGBT como desviantes e criminosos o questionamento do papel do Estado na criminalização da orientação sexual ou da identidade de gênero ou a exploração do papel do sistema penal como uma forma de controle social das identidades LGBTI Buist Lenning 2016 p 17 Para Carrie L Buist e Emily Lenning que acreditam que uma verdadeira criminologia queer desloca o enfoque dos quebradores de regras para os fabricantes de regras qualquer tentativa de definição da abordagem da criminologia queer deve ser ampla e dinâmica e per manecer e deve permanecer assim a fim de refletir a fluidez da iden tidade queer e portanto permitir uma variedade de contribuições de aplicações teóricas e práticas nesse campo Buist Lenning 2016 p 16268 Embora os estudos sobre criminologia queer sejam ainda inci pientes no Brasil o objetivo do presente artigo é realizar um breve mapeamento das discussões epistemológicas sobre as condições de desenvolvimento da criminologia queer verificando os seus objetivos e os possíveis impactos da construção desse campo de conhecimento Para tanto serão abordadas as contribuições epistemológicas dos seguintes ramos da criminologia a escola do rotulacionamento eti quetamento ou labeling approach a criminologia feminista a crimi nologia interseccional a criminologia crítica e a criminologia deco lonial a fim de verificar em que medida tais escolas criminológicas contribuem para a construção da criminologia queer A IMPORTÂNCIA DO LABELING APPROACH Salo de Carvalho atribui à criminologia ortodoxa o papel de anular o último vestígio bárbaro no mundo ostentando o entendimento de que o criminoso é a negação do homem civilizado Carvalho 2017 p 211 268 should be broad and dynamic and remain so in order to reflect the fluidity of the Queer identity and therefore allow for a variety of contributions both theoretically and via practical application in the field Tradução livre 444 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Citando Grrombridge o autor destaca que essa criminologia as sumiu o ideal da masculinidade heterossexual como um dos princi pais recursos de interpretação do desvio e como critério de patologi zação Carvalho 2017 P 211 A criminologia ortodoxa busca identificar analisar intervir e anular os anormais e esse procedimento está ancorado epistemologi camente no ideal de heterossexualidade Vêse portanto uma essencialização das identidades desviantes Essa visão patologizava a homossexualidade Salo aponta que Nesse contexto a homofobia se insere como um dispositivo prático político e teórico científico de defesa da heteronor matividade contra as sexualidades heréticas instaurando hie rarquização e desigualdades radicais que se concretizam em atos e discursos de violência CARVALHO 2017 p 211 Fundamental para o rompimento com essa lógica essencializante foi a formação do labeling approach Tal teoria surge ao fim dos anos 50 e início dos anos 60 com os autores da Escola de Chicago Ela cri tica o paradigma etiológico da criminologia ortodoxa que buscando conhecer a causa do crime acabava por analisar o criminoso pelas suas características individuais O labeling approach se propunha a analisar as situações nas quais esses indivíduos são etiquetados como desviantes enxergando a cri minalidade como uma definição como uma realidade social atribuída a alguém Com isso deixase uma interpretação do crime como essên cia para uma interpretação da criminalização como processo Para compreender esse processo de atribuição da etiqueta de cri minoso é fundamental estudar a ação do sistema penal Vera Mala gutti aponta uma mudança no objetivo da criminologia o crimi noso não é o ponto de partida é o lócus de análise de uma realidade socialmente construída de modo que o rotulacionismo poderia ser entendido como o estudo da formação da identidade desviante e das agências de controle social Batista 2011 p 75 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 445 Salo de Carvalho atribui ao labeling approach o mérito de rom per com a ideia do criminoso como um estrangeiro da cultura por revelar que o criminoso também é alguém que pode cumprir com os pressupostos da civilização O espaço público é pois um espaço de produção de delitos e o bour geois civilizado não é apenas uma vítima ocasional do selvagem o homem criminalis habita o bourgeois integra e constitui sua cultura assim como está incrustado operando as suas instituições CARVA LHO 2017 214 O crime portanto é universalizado na vida pública e não é visto como uma essência do indivíduo Tal entendimento é fundamental para a despatologização da homossexualidade Citando Alessandro Baratta Malagutti desvela algumas limitações da teoria do etiquetamento a sua visão liberal universalizante e ahis tórica produziria uma situação em que as condições materiais e a luta de classes não tem visibilidade o que acarreta numa despolitização incapaz de aprofundar sua interpretação da questão criminal nem de entender os mecanismos reguladores da população criminosa nem as relações de poder sobre as classes criminalizadas Batista 2011 p 77 Ainda que apresente tais limitações não é possível negar as con tribuições do labeling approach para um pensamento crítico sobre a criminologia Ao não definir o crime como essência mas como um processo de atribuição o labeling approach fornece uma contribuição importante para a construção do pensamento de uma criminologia queer A CRIMINOLOGIA CRÍTICA A criminologia crítica é um ramo da criminologia que tem como ob jetivo construir uma teoria materialista do desvio e da criminalização a partir de um enfoque macrossociológico sobre os mecanismos es truturais de controle social e a relação entre o processo de criminali zação e o desenvolvimento políticoeconômico 446 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Novamente remetendo a Baratta Malagutti aponta dois impor tantes movimentos deflagrados pela criminologia crítica a o deslo camento do estudo do autor do crime para as condições objetivas estruturais e funcionais 2 b o deslocamento do estudo das causas do crime para os mecanismos de construção da realidade social Batista 2011 89 A escola crítica portanto desde um entendimento marxista do paradoxo entre igualdade formal e desigualdade material aponta para a relação entre os mecanismos que selecionam os bens jurídicos a se rem protegidos e a acumulação de capital Com isso revela a luta de classes por trás dos processos de criminalização Salo de Carvalho ressalta que a criminologia crítica permite a reflexão sobre as formas institucionais de violência e que evidenciou que as instituições do Estado moderno criadas para controlar e prevenir as violências e fornecer segurança são em si mesmas fontes de violências violências institucionais Carvalho 2011 217 A visão do Estado como agente de violência permite enxergar os mecanismos de controle social como forma de manutenção das insti tuições burguesas e das relações sociais que as sustentam Permite também conhecer as estratégias lançadas para conse guir um consentimento espontâneo quanto aos comportamentos que interessam aos grupos dominantes Contudo embora a criminologia crítica tenha o potencial de de safiar presunções ortodoxas e de mudar a maneira com que a crimino logia tradicional tratou a homossexualidade Jordan B Woods defende que na verdade a escola crítica sobretudo em seu início perpetuou as representações de LGBTI como desviantes Em Queer Contestations and the Future of a Critical Queer Cri minology Woods traz alguns estudos da criminologia crítica estadu nidense que utilizavam a homossexualidade como exemplo de desvio sexual e identifica que o problema da perpetuação da homossexua lidade como desvio é que tal entendimento leva à não consideração da orientação sexual e identidade de gênero como diferenças com paráveis à classe raça e etnia como relevantes para a organização da sociedade Woods 2014 p7 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 447 Isto é apesar de ter surgido como reação à falta de atenção lança da à influência da classe e do poder no debate criminológico a crimi nologia crítica não considerou a relação entre a produção capitalista sexualidade gênero e processos de criminalização CRIMINOLOGIA FEMINISTA E CRIMINOLOGIA INTERSECCIONAL A criminologia feminista surgiu nos anos 70 e defende que o gênero deve ser a preocupação principal da pesquisa criminológica a partir do entendimento de que até então as mulheres haviam sido ignora das pelo estudo da criminologia Buist e Lenning enxergam que num primeiro momento este ramo da criminologia se identificava com uma ideia do feminismo liberal de que bastava incluir as mulheres na criminologia tradicional Quer dizer acreditavase que as teorias desenvolvidas por e para ho mens poderiam fazer as mesmas descobertas para as mulheres Logo essa perspectiva se mostrou insuficiente para explicar a ex periência vivenciada pelas mulheres no sistema criminal Isso porque não bastava adicionar as mulheres na pesquisa criminológica para a construção da criminologia feminista sem contudo questionar o ca pitalismo o patriarcado e os fundamentos epistemológicos da crimi nologia Buist Lenning 2016 p 7 Posteriormente a criminologia feminista passou a ressaltar o ca ráter patriarcal do direito penal que se rege pelos princípios da força violência repressão dominação e violenta as mulheres na interpre tação aplicação e execução da lei penal Essa violência se exprime por exemplo tanto pela invisibilização das mulheres quando vítimas quanto pela sobrepunição quando autoras Salo de Carvalho aponta que se o paradigma da rotulação universaliza o crime na vida públi ca o feminismo sobretudo a partir dos estudos sobre violência doméstica irá demonstrar que o delito se encontra presente com toda a sua radicalidade na esfera íntima da vida familiar e afetiva CARVALHO 2017 214 448 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A criminologia feminista portanto rechaça a ideia do criminoso como um estranho que aparece apenas na vida pública e revela que o criminoso também se encontra na esfera privada Igualmente fundamental é a noção de interseccionalidade tra zida pelo feminismo negro Kimberlé Crenshaw apresenta a intersec cionalidade como uma forma de enquadrar as várias interações en tre raça e gênero no contexto de violência contra as mulheres de cor Crenshaw 1991 p 1296 Em outras palavras a perspectiva interseccional busca com preender quais são os efeitos sociais da multiplicidade de identidades da mulher de cor e defender que a pesquisa sobre as mulheres negras deve se guiar pela consideração de que essas mulheres não são afeta das pelo gênero e pela raça isoladamente mas sim que as opressões de gênero e raça operam juntas Adrien K Wing usa o termo identidade multiplicativa para ex pressar que a experiência das mulheres negras não deveria ser simbo lizada pela equação um 1 1 mas sim 1x1 porque Mulheres de cor não são meramente mulheres brancas mais cor ou homens de cor mais gênero Em vez disso as suas iden tidades devem ser multiplicadas juntas para criar uma identi dade holística ao se analisar a natureza da discriminação contra elas WING 1997 p 7269 destaques no texto original A criminologia interseccional surge exatamente da compreensão de que mulheres negras experimentam o sistema prisional de modo diferente que os homens negros e as mulheres brancas em virtude da operação conjunta entre as opressões de gênero e raça Hilary Potter apresenta a seguinte definição para a criminologia interseccional 269 Women of color are not merely White women plus color or men of color plus gender Instead their identities must be multiplied together to create a holistic One when analyzing the nature of the discrimination against them Tradução livre Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 449 A criminologia interseccional é uma abordagem teórica que necessita de uma reflexão crítica sobre o impacto de identida des interconectadas e o status de indivíduos e grupos em re lação às suas experiências com o crime o controle social do crime e quaisquer problemas relacionados ao crime POTTER 2013 p 305 O entendimento da criminologia interseccional é o de que não basta que as mulheres negras sejam um objeto da criminologia como se fossem uma amostra sem incorporar criticamente os efeitos sociais da experiência das mulheres negras que estão em alto risco de crimi nalização A CRIMINOLOGIA DECOLONIAL Na criminologia os estudos decoloniais tem o objetivo de identifi car as formas pelas quais a criminologia e o sistema criminal operam como instrumentos de um projeto colonizador Nas palavras de Agozino a criminologia é uma ciência so cial que serviu ao colonialismo mais diretamente do que muitas outras ciências sociais Agozino 2003 p 1270 foi desenvolvida primaria mente como uma ferramenta para a dominação imperialista Agozi no 2003 p 1271 Não à toa os estudos decoloniais alertam que a criminologia sempre voltou a sua atenção para os crimes individuais permanecen do por tanto tempo cega para os principais crimes de Estado como a escravidão o colonialismo o genocídio etc Ball 2016 p 115 Podese dizer que a criminologia decolonial pretende tanto des colonizar teorias e métodos do direito na criminologia quanto de senvolver estudos sobre o controle social a partir das perspectivas dos subjugados que lutam contra a dominação imperialista Essas duas posturas permitem de um lado interrogar as presun ções epistemológicas da criminologia dando lugar a novas formas de 270 criminology is a social science that served colonialism more directly than many others social sciences Tradução livre 271 it was developed primarily as a tool for imperialist domination Tradução livre 450 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça produção de conhecimento da pesquisa criminológica e de outro investigar como a criminologia ainda hoje tenta exportar fórmulas prontas de controle do crime para países que possuem histórias pro blemas e realidades diferentes A RELAÇÃO ENTRE A CRIMINOLOGIA QUEER E AS TEORIAS QUEER LINGUAGEM IDENTIDADE E DESCONSTRUÇÃO Até aqui vimos como as contribuições do labeling approach e das cri minologias crítica feminista interseccional e decolonial abriram os caminhos para a construção da criminologia queer Agora trataremos de um tema essencial na discussão desse campo a sua relação com as teorias queer Há duas formas de se utilizar o termo queer A primeira utili zação identifica no queer uma espécie de guardachuva que abarque gays lésbicas bissexuais transexuais intersexuais e quaisquer seres que expressem a diversidade de sexualidade e de gênero A segunda utilização remete às teorias queer e tem a pretensão de desestabilizar e subverter categorias estáveis e definidas De fato em linhas gerais podese dizer que as teorias queer bus cam desestabilizar desconstruir e abrir as categorias identitárias por acreditarem que as identidades a oferecem uma representação limita da b marginalizam e excluem quem se encontra fora dessa represen tação c pressupõem uma homogeneidade de experiência daqueles que se identificam com tais categorias d normalizam categorias de estruturas opressoras e por tudo isso e funcionam como uma forma de controle social Os teóricos queer acreditam que a adoção da categoria homos sexual implica na aceitação da divisão entre heterossexuais e homos sexuais produzida por relações de poder E não só Implicaria ainda no reforço do poder da heterossexualidade dado que a homosse xualidade funcionaria como o seu opositor binário Ball 2016 p 29 e 30 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 451 Sherry Wolf apresenta algumas críticas às teorias queer Para a autora tais teorias são pessimistas e paralisantes e como partem do pressuposto de que somos oprimidos principalmente como indiví duos por outros indivíduos tem como consequência que a resistência será necessariamente individual Wolf 2009 177 Além disso Wolf acredita que não é o ato de atribuir a alguém uma identidade o fato que cria ou que funciona como um mecanismo de opressão Também dessa maneira pensa Kimberlé Crenshaw para quem o maior problema não é a existência de categorias mas sim os valores que foram ligados a elas e as hierarquias criadas por esses va lores Crenshaw 1991 1297 Crenshaw não nega que a categorização é um exercício de poder mas destaca que tal processo não é unilateral os categorizados tam bém participam dele e muitas vezes de maneira subversiva e empo deradora Crenshaw 1991 1297 Com efeito a reivindicação da identidade pode até excluir quem está fora dela mas também permite que um sem número de pessoas que sofreram ao longo de suas vidas se encontrem se reconheçam como semelhantes tentem superar obstáculos juntos e se organizem para conquistar direitos Para Buist e Lenning talvez aquelas descrições categóricas possam permitir aos grupos marginalizados entender a sua margina lização em novas maneiras e apoiarse uns aos outros movendose para o centro da construção do conhecimento Buist Lenning 2016 p 15272 Ao abordar o desenvolvimento do feminismo latinoamericano e caribenho Ochy Curiel afirma que a proposta pósestruturalista de desconstrução das identidades afetou de maneira particular as femi nistas negras cujas experiências políticas tinham como centro a iden tidade Curiel acredita que para muitas mulheres negras o apelo à iden tidade é um ato político de resistência e de transformação A autora se opõe à ideia de que seria um mero essencialismo porque as iden 272 perhaps those categorical descriptions can allow for marginalized groups to understand their maginalization in new ways and draw support from ano ther moving them to the center of knowledge construction Tradução livre 452 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça tidades se constroem a partir da necessidade de autoafirmação ante a dominação cultural branca e porque ajudam a revelar a memória histórica da colonização e a escravidão e os seus efeitos hoje em dia Curiel Ochy 2003 p 19 Isso quer dizer que as categorias podem ser empoderadoras e que portanto é válido que se pergunte se a criminologia queer efetivamen te deve estar comprometida exclusivamente com as teorias queer e portanto com a desconstrução das categorias ou se deveria abraçar os conceitos de identidade Isso quer dizer que as categorias podem ser empoderadoras e que portanto é válido que se pergunte se a criminologia queer efe tivamente deve estar comprometida com as teorias queer e portanto com a desconstrução das categorias ou se deveria abraçar os conceitos de identidade Woods ao comentar sobre a tensão identidade x desconstrução alerta que caso a criminologia queer seja orientada somente pela identidade corre o risco de perpetrar a subordinação de indivíduos com orientações sexuais que não se identificam ou se enquadram nas definições da sigla LGBT Ball 2016 p 30 Caso do contrário a criminologia queer seja orientada somente pela desconstrução corre o risco de diluir diferenças sociais demogra ficamente relevantes na medida em que pode desconsiderar as expe riências de pessoas que se identificam e experimentam marginaliza ções com bases nessas categorias Ball 2016 p 30 Reconhecendo a importância de ambas considerações Woods defende que a criminologia queer deva encorajar pesquisas baseadas tanto no paradigma da desconstrução quanto no paradigma da iden tidade Ball 2016 p 30 O autor admite que num primeiro momento essa proposta pos sa parecer inconsistente No entanto explica que de um lado muitas pessoas veem a sua sexualidade e identidade de gênero como algo cen tral em suas vidas e uma criminologia que abarque essas identidades pode explorar como diferenças identitárias impactam na experiência com o sistema criminal Ball 2016 p 30 De outro um paradigma desconstrucionista pode ajudar a identi ficar quais são os indivíduos que recebem os que não recebem atenção Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 453 da pesquisa criminológica por não se enxergarem dentro de pesquisas baseadas em categorias identitárias Ball 2016 p 30 e 31 Buist e Lenning abraçam a tese de Woods e embora reconheçam a possibilidade de indagações sobre a necessidade de forjar conexões entre a criminologia queer e as teorias queer acreditam que estas não devem ser aplicar àquela como um todo porque a existência de opi niões diferentes sobre a fluidez da sexualidade ou da identidade de gênero faz com que haja diferentes formas de se fazer e pensar a cri minologia queer Buist Lenning 2016 p 14 Para as duas autoras uma das maiores contribuições das teorias queer para a criminologia queer é o objetivo de não se limitar a intro duzir a sexualidade e a identidade de gênero como variáveis mas so bretudo como um posicionamento para combater o status quo Buist Lenning 2016 p 14 AS TAREFAS DA CRIMINOLOGIA QUEER É preciso que a criminologia queer esteja comprometida com ao me nos três objetivos fundamentais a quebrar o poder que exerce até hoje a ideia de homossexualidade como desvio b produzir novos sa beres para a luta contra a opressão LGBTI para superar as desigual dades e as opressões Assim como o labeling approach e as criminologias crítica femi nista interseccional e decolonial a criminologia queer também deve desafiar as presunções epistemológicas da criminologia A mera inclu são de LGBTI nos estudos criminológicos não basta Tampouco pode a criminologia queer se limitar a corrigir a cri minologia Mais do que isso deve promover uma ruptura com uma produção de conhecimento autoritária que esteja mais preocupada em ensinar que em trocar conhecimentos em pesquisar sobre LGB TI que em pesquisar com LGBTI Isso significa romper com uma objetividade que seja sinônimo de distância entre o sujeito e o objeto de conhecimento e a intenção positi vista de encontrar uma explicação causal para todos os acontecimentos Essa objetividade que é androcêntrica não serve à criminologia queer 454 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Donna Haraway acredita que os conhecimentos devem estar sempre em tensão com as estruturas produtivas sejam elas materiais ou simbólicas e argumenta a favor de epistemologias de alocação posicionamento e situação nas quais a parcialidade e não a universali dade é a condição de ser ouvido nas propostas a fazer do conhecimen to racional Haraway 1995 p 30 As ciências são vistas por Haraway como forma de construir po der A objetividade androcêntrica que enxerga o objeto do conheci mento como inerte e passivo é uma dessas formas de construção e manutenção de um poder androcêntrico Por isso Haraway propõe saberes localizados que requerem que o objeto do conhecimento seja visto como um ator e agente não como uma tela ou um terreno ou um recurso e finalmente não como um escravo do senhor que en cerra o diálogo apenas na sua agência e em sua autoridade de conhecimento objetivo HARAWAY 1995 p36 A visão de LGBTI não como um objeto inerte mas sim como agentes admite que esse grupo de pessoas pode transformar a produ ção da pesquisa criminológica a partir de suas próprias perspectivas Caso a criminologia queer não promova tais indagações correse o risco de apenas adicionar LGTBI como objetos inertes sem de fato possibilitar um conhecimento libertador Por esse motivo seria extremamente limitador compreender que o seu papel seria somente o de compreender ou combater a violência homofóbica ou o de somente levantar estatísticas de crimes cometi dos contra LGBTI sem contudo questionar as matrizes epistemoló gicas androcêntricas da pesquisa criminológica Assim o potencial de produzir um conhecimento que reduza a presença regulatória do sistema penal em torno dessas vidas e como esse controle alimenta uma cultura lgbtfóbica seria reduzido Por fim é fundamental que se discuta uma criminologia queer que não reproduza um modo de produção de conhecimento coloni zador que apenas reconheça um conhecimento eurocêntrico Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 455 Para Ochy Curiel um processo de descolonização da produção de conhecimento não significa apenas citar autoras negras latinoa mericanas ou caribenhas mas sim reconhecer as teorias conceitos e categorias que emergem das práticas políticas da região273 É necessário pensar uma criminologia queer que emerja dos conhecimentos produzidos pelas práticas e realidades políticas brasileiras e não que seja uma mera importação de reflexões que correspondam a outras realidades CONCLUSÃO A criminologia queer não é apenas uma nova disciplina ou um novo ramo criminológico É antes de tudo uma tentativa de construção de novos saberes que sirvam ao combate à opressão LGBTI e rompam com paradigmas de dominação de hierarquia e de reiteradas violên cias É uma tentativa de grito de vozes que sempre foram caladas e que nesse momento organizamse para disputar não só a produção mas também a tradução e a transmissão do conhecimento Certamente não se resume a uma nova linguagem das ciências criminais mas está comprometida com a elevação da população LGB TI das margens para o centro do debate criminológico extraindo dos novos saberes produzidos os caminhos para as lutas contra as opressões sofridas Assim é possível questionar como o sistema penal autoritário e patriarcal violenta e aumenta a cultura de ódio a LGBTI perceben do com maior profundidade como funcionam as estratégias de con trole social voltadas para essas vidas 273 A ideia se refere à colonialidade do saber conceito de Aníbal Quijano que remete a uma racionalidade técnicocientífica e epistemológica que se presume como o único modelo válido de produção de conhecimento o saber deve ser neutro objetivo universal e positivo 456 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça BIBLIOGRAFIA Agozino B Countercolonial criminology a critique os imperialist rea son Londres Pluto Press 2003 p 1 BALL Matthew Criminology and queer theory dangerous badfellows Springer 2016 BATISTA Vera Malagutti Introdução crítica à criminologia brasileira Rio de Janeiro Revan 2011 BUIST Carrie L LENNING Emily Queer Criminology Nova Iorque Routledge 2016 BUTLER Judith Imitation and gender insubordination In The lesbi an and gay studies reader Nova Iorque Routledge 1993 CARVALHO Salo de DUARTE Evandro Piza Criminologia do pre conceito racismo e homofobia nas ciências criminais São Paulo Ed Saraiva 2017 CRENSHAW kimberle Mapping the margins intersectionality identi ty politics and violence against women of color Stanford Stanford Law Review 1991 CURIEL Ochy CURIEL Ochy Identidades esencialistas o construc ción de identidades políticas El dilema de las feministas negras Rio de Janeiro Foro Ciudadanía Sexual 2003 GROOMBRIDGE Nic Perverse criminologies the closet of doctor Lombroso Social and legal studies v 4 1999 POTTER Hilary Intersectional criminology interrogating identity and Power in criminological research and theory Critical Criminology 2013 vol 21 WING Adrien K Critical race feminism a reader Nova Iorque New York University Press 1997 p 7 apud POTTER Hilary Intersection al criminology interrogating identity and Power in criminological re search and theory Critical Criminology 2013 vol 21 no 3 WOODS Jordan Blair Queer contestations and the future of a critical queer criminology In Critical Criminolody 2014 vol 22 n 1 457 GÊNERO PODER JUDICIÁRIO E MULHERES TRANSEXUAIS E TRAVESTIS LEI MARIA DA PENHA E GARANTIA DE DIREITOS Henrique Rabello de Carvalho166 Resumo Esta pesquisa busca compreender como o poder judiciário pode garantir direitos específicos a mulheres transexuais e travestis a partir da aplicação da lei Maria da Penha e das perspectivas e interpre tações sobre gênero contidas nas sentenças judiciais Palavraschave Lei Maria da Penha gênero transexualidade sistema de justiça INTRODUÇÃO A Declaração Universal dos Direitos Humanos marcou em defini tivo a urgência de reconhecimento dos direitos humanos em razão das barbáries cometidas durante a Segunda Guerra Mundial que cul minaram com o Holocausto Tornouse necessário a positivação dos direitos humanos por meio de um instrumento com abrangência in tercontinental por meio de uma organização internacional que con gregasse o maior número de Estados possíveis no planeta 166 Mestre em Ciência Política pela UFRJ Professor da Escola de Magistratura do Rio de Janeiro EMERJ e VicePresidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OABRJ 458 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Hannah Arendt 2009 desenvolve algumas reflexões acerca dos direitos humanos apontando a abstração em que estes direitos se en contram na medida em que é impossível atingir este sujeito concre to a quem são destinados os direitos humanos em caráter universal Ainda que se compreenda no entanto que por um lado os direitos humanos são um modelo da ordem do ideal por outro observase a possibilidade de existência de uma pluralidade de modelos possíveis baseadas sobretudo no reconhecimento da diferença e em novas lutas contemporâneas em busca da afirmação e concretização dos direitos humanos O caráter universal dos direitos humanos também é questionado por Boaventura de Sousa Santos 2009 que reflete como os Direitos Humanos podem ser colocados a serviço de uma política progressista e emancipatória Boaventura entende que o discurso sobre a globali zação reflete a história dos vencedores A definição de globalização para Santos se constitui no processo em que a influência de deter minada entidade local ou condição estende a sua influência a todo o planeta e assim tem a prerrogativa de designar como local outra condição social por exemplo O que se denomina como globalização deve ser entendido sob a sua perspectiva como a globalização bem sucedida de determinada região ou como ele denomina localismo SANTOS 2009 Nesse sentido Herrera Flores 2010 aponta a necessidade de reinventar os direitos humanos a partir do desenvolvimento de um pensamento crítico a respeito destes direitos O pensamento desen volvido por Herrera Flores em sua teoria crítica permite identificar elementos e suposições nem sempre evidentes na doutrina hegemô nica dos direitos humanos que afetam o seu potencial emancipató rio no processo de luta e efetivação da dignidade humana Para ele os direitos humanos devem ser entendidos como processos sociais econômicos políticos e culturais que sejam responsáveis pela criação de uma nova ordem tornandose portanto matriz para formar novas práticas sociais novas subjetividades antagonistas revolucionárias e subversivas de uma ordem mundial injusta A proliferação de cortes e tribunais internacionais bem como a expansão das suas jurisdições repercute na configuração do direito internacional dos direitos humanos na contemporaneidade em parti Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 459 cular no âmbito interno dos países Conforme pretendemos demons trar o reconhecimento de violações de direitos humanos a partir do sistema internacional têm influenciado o direito interno e no caso específico a possibilidade de ampliação do conceito de gênero assim como do reconhecimento da identidade de gênero em benefício das mulheres transexuais e travestis 1 Gênero e reconhecimento a partir de Butler e Fraser Uma importante contribuição sobre questões que envolvem justiça e reconhecimento é desenvolvida por Nancy Fraser De acordo com Fraser 2007 é necessário o desenvolvimento de uma teoria crítica do reconhecimento para identificar e defender a política da diferença Para Fraser no seio dos movimentos sociais para reconhecimento dos direitos de minorias o reconhecimento da diferença surge como o principal elemento contra a dominação cultural do século XXI Nesse panorama Fraser considera duas formas na tentativa de compreender a injustiça a primeira forma seria a injustiça econômica com raízes na estrutura política e econômica da sociedade e a segunda a injustiça cultural ou simbólica com origem nos padrões sociais de representa ção interpretação e comunicação Para Fraser a solução para a injustiça econômica estaria na rees truturação políticoeconômica por meio da criação de mecanismos igualitários e universalistas em que se destacam a redistribuição de renda por exemplo Fraser se refere a essas soluções com o conceito de redistribuição Já a solução para a injustiça cultural estaria no es tabelecimento de uma mudança cultural ou simbólica por meio do reconhecimento e da valorização da diversidade cultural a essas so luções ela denomina de reconhecimento Como afirma Fraser concepção de sexualidade menosprezada é um modo de dife renciação social cujas raízes não estão na economia já que ho mossexuais distribuemse ao longo de toda estrutura de classes da sociedade capitalista não ocupando uma divisão particular na divisão do trabalho e também não constitui uma classe ex plorada Seu modo de coletividade é de uma sexualidade me nosprezada arraigada na estrutura cultural valorativa da socie 460 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça dade Nessa perspectiva a injustiça sofrida é basicamente uma questão de reconhecimento Gays e lésbicas sofrem de heteros sexismo a construção autoritária de normas que privilegiam heterossexuais Ao lado disso está a homofobia desvalorização cultural da homossexualidade todas negações fundamen tais do reconhecimento FRASER 2001 p5758 Fraser compreende portanto que redistribuição e reconheci mento são conceitos essenciais para a análise dos paradigmas de in justiça socioeconômica cultural ou simbólica Enquanto que para a reparação da injustiça econômica seria necessário a redistribuição de bens materiais apontando para esquemas igualitários e universalistas a injustiça cultural ou simbólica exigiria o reconhecimento de grupos estigmatizadosmarginalizadosminoritários numa estrutura diferen ciadora Para Nancy Fraser a justiça exige reconhecimento de identi dades la lucha por el reconocimiento se está convirtiendo rápidamente en la forma paradigmática de conflicto político en los últimos años del siglo veinte Las exigencias de reconocimiento de la diferencia alimentan las luchas de grupos que se movilizan bajo las banderas de la nacionalidad la etnia la raza el género y la sexualidad En estos conflitos postsocialistas la identidade de grupo sustituye a los intereses de clase como mecanismo principal de movilización política La dominación cultural reemplaza a la explotación como injusticia fundamental Y el reconocimiento cultural desplaza a la redistribución socioeconómica como remedio a la injusticia y ob jetivo de la lucha política FRASER1997 p17 Via de regra em uma sociedade de matriz judaicocristã ociden tal o reconhecimento de determinadas identidades dentre as quais se destaca a identidade de gênero de mulheres transexuais e travestis é realizada a partir de uma inteligibilidade que se fundamenta em um dualismo de gênero essencialista e biologizante que restringe portan to o reconhecimento de identidades diversas do padrão hegemônico cisheteronormativo A inteligibilidade dos corpos é atravessada por tanto pelos conceitos de gênero que segundo as normas de gênero Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 461 definem quais corpos são autorizados ou não quais corpos são inte ligíveis e quais corpos são abjetos constituindose humanidades di ferenciadas Esses corpos abjetos queer que desafiam as normas de gênero inseremse numa disputa de poder Os corpos autorizados conformados docilizados serão dotados de gêneros inteligíveis que são aqueles que em certo sentido instituem e mantém relações de coerência e continuidade entre sexo gênero prática sexual e desejo BUTLER 2003 p38 Butler 2003 entende que gênero corresponde a atos que são esta belecidos pelo discurso fundamentados em uma matriz heterossexual e que depende de reiteração constante Assim gênero e sexo podem ser entendidos como resultante da lei e do discurso que se inserem em relações de poder As categorias se podemos assim denominar de gênero e sexualidade são construídas por meio de atos performativos como atos de linguagem que não podem ser descritos e que inserem os indivíduos nos discursos de saberpoder La construcción no sólo se realiza en el tiempo sino que es en sí misma un proceso temporal que opera a través de la reiteración de normas en el curso de esta reiteración el sexo se produce y a la vez se desestabilizaComo um efecto sedimentado de una práctica reite rativa o ritual el sexo adquiere su efecto naturalizado y sin embargo en virtud de esta misma reiteración se abren brechas y fisuras que re presentan inestabilidades constitutivas de tales construcciones como aquello que escapa a la norma o que la rebasa como aquello que no puede definirse ni fijarse completamente mediante la labor repetitiva de esa norma BUTLER 2002 p29 Para Butler 2003 contrapõese ao essencialismo biológico o ca ráter político e social dos discursos que incidem sobre os sexos Dessa forma corpo e gênero são atravessados interpretados e influenciados pela cultura da mesma forma A noção de performance proposta por Butler é elemento importante neste debate na medida em que ela con sidera que o gênero não é determinado essencialmente pelo sexo mas sim em relação às práticas culturais e às pessoas 462 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 2 O Direito Internacional dos Direitos Humanos e a discriminação contra a mulher A Declaração de 1948 cria as bases para o desenvolvimento do Direito Internacional dos Direitos Humanos em que ainda em um contexto de universalidade e indivisibilidade dos direitos humanos percebese a tematização de tratados específicos Assim em âmbito regional e universal são aprovados instrumentos de proteção destinados a gru pos societários em razão da sua condição social como deficientes físi cos minorias étnicoraciais e mulheres No que concerne à eliminação da discriminação contra a mu lher a Organização das Nações Unidas e a Organização dos Estados Americanos aprovaram instrumentos com o objetivo de combater a discriminação e diminuir os entraves para a igualdade dos gêneros A Assembleia Geral da ONU por meio da Resolução 3010 XX VII proclamou 1975 como o Ano Internacional da Mulher e o perío do que compreende 19761985 como a Década da Mulher A partir desse momento criase um ambiente favorável e institucional para a realização da I Conferência Mundial sobre a Mulher em que se discu tiu temas específicos concernentes às mulheres Esses eventos estimu lam o desenvolvimento e aprovação pela ONU da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher PIOVESAN 2008 Em 1979 é aprovada a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher CEDAW no âmbito da ONU que define os elementos que integram a discriminação contra a mulher e estabelece os deveres para os Estadosparte no combate e prevenção a esta categoria específica de discriminação A Conven ção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher foi promulgada pelo Brasil por meio do Decreto n 4377 de 22 de setembro de 2002 que revogou o Decreto n 89460 de 20 de março de 1984 em que constavam algumas reservas a dispositivos específicos da CEDAW Inegavelmente a CEDAW representa um mar co na proteção internacional dos direitos das mulheres pois possui se destaca à luz do direito internacional dos direitos humanos na medida em que é o tratado de direitos específicos das mulheres como polí ticos civis econômicos sociais culturais entre outros ao que cabe Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 463 uma ressalva importante a convenção não cuida da violência contra a mulher No artigo 1º da CEDAW fica estabelecido que Para os fins da presente Convenção a expressão discrimina ção contra a mulher significará toda a distinção exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resulta do prejudicar ou anular o reconhecimento gozo ou exercício pela mulher independentemente de seu estado civil com base na igualdade do homem e da mulher dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político econômico so cial cultural e civil ou em qualquer outro campo grifo nosso Nessa perspectiva o Comitê CEDAW elaborou a Recomendação Geral n 19 de janeiro de 1992 que considera o ato de violência come tido tanto na esfera pública quanto na privada uma forma específica de discriminação contra a mulher que encontra previsão no artigo 1 da Convenção tratada TRINDADE 2003 Notese que em 2003 durante o governo de Luís Inácio Lula da Silva o Brasil envia os rela tórios de monitoramento da Convenção ao Comitê CEDAW trans corridos exatos dezenove anos da ratificação da convenção 1984 o que demonstra a negligência institucional de governos anteriores com temas relacionados a direitos das mulheres e a retomada do compro misso do Brasil com o direito internacional dos direitos humanos A Organização dos Estados Americanos OEA promulga em 1993 a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra a Mulher que pela primeira vez inclui e define o termo violência contra a mu lher Em 6 de junho de 1994 a Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos adota a Convenção para Prevenir Punir e Erra dicar a Violência Contra a Mulher que foi aprovada mediante o Decre to Legislativo n 107 de 1º de setembro de 1995 ratificada pelo Estado brasileiro em 27 de novembro de 1995 e promulgada pelo decreto nº 1973 de 1º de agosto de 1996 A Convenção de Belém do Pará como ficou conhecida representa um marco legal internacional na proteção das mulheres pois representa o primeiro instrumento internacional a incluir o termo violência contra a mulher A Convenção de Belém do Pará define a expressão violência contra a mulher no seu art1º 464 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça como qualquer ação ou conduta baseada no gênero que cause mor te dano ou sofrimento físico sexual ou psicológico à mulher tanto na esfera pública como na privada grifo nosso A Convenção de Belém do Pará possui importância especial para o Brasil em razão da própria peculiaridade da OEA como sistema re gional na medida em que é composta por poucos Estadospartes e voltase mais especificamente à realidade latinoamericana e suas ca racterísticas próprias Não à toa a exposição de motivos da Convenção consigna seu entendimento acerca das relações patriarcais na América Latina e as desigualdades que esse sistema promove quando expressa em seu preâmbulo que Preocupados por que a violência contra a mu lher constitui ofensa contra a dignidade humana e é manifestação das relações de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens De forma mais pontual a Convenção dispõe que os Estados de vem adotar medidas jurídicas que exijam do agressor que se abstenha de perseguir intimidar e ameaçar a mulher ou de fazer uso de qual quer método que danifique ou ponha em perigo sua vida ou integrida de de forma mais específica que a CEDAW e que veio a influenciar os mecanismos de proteção presentes na Lei Maria da Penha no Brasil 3 Violência de gênero e políticas públicas a Lei Maria da Penha Em Violência de Gênero 1995 Heleieth I B Saffioti apresenta uma perspectiva interseccional decisiva para a compreensão da violência de gênero como fenômeno social cuja origem pode ser encontrada na formação das famílias como expressão do pensamento social Homens e mulheres vivem sob o mesmo contexto cultural em que a cada um é atribuído um papel específico Em uma perspectiva oci dental o que nos interessa de acordo com nosso recorte metodológi co é perceber que o homem se estrutura como o centro da cultura e da sociedade e a mulher encontrase em posição de subalternidade e desvantagem Como percebe Saffioti a ética do direito ostenta como sói acontecer com a ética do dominador a ambição da universalidade mas é incapaz de atentar para a diferenciação de gênero gerada pela cultura falocêntrica SAFIOTTI 1995 p14 Para Almeida 2007 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 465 A violência de gênero só se sustenta em um quadro de desigual dades de gênero Estas integram o conjunto das desigualdades sociais estruturais que se expressam no marco de produção e reprodução das relações fundamentais as de classe étnicora ciais e de gênero A estas relações podemse agregar as gera cionais visto que não correspondem tãosomente à localização de indivíduos em determinados grupos etários mas também à localização do sujeito na história na ambiência cultural de um dado período na partilha ou na recusa dos seus valores domi nantes nas suas práticas de sociabilidade ALMEIDA 2007 p27 A violência doméstica contra a mulher no Brasil esteve sob o amparo legal dos Juizados Especiais Criminais estabelecidos pela Lei 909995 até 2006 categorizada como delito de baixo potencial ofensi vo cuja pena não ultrapassava 1 um ano Assim a perspectiva legal a respeito da violência doméstica contra a mulher ignorava as múltiplas possibilidades acerca das realidades fáticas Como aponta Carmen Hein de Campos 2006 Por outro lado esse critério é problemático porque a violência doméstica por se tratar de comportamento reiterado e coti diano carrega consigo grau de comprometimento emocional medo paralisante p ex que impede as mulheres de romper a situação violenta e de evitar outros delitos simultaneamen te cometidos estupro cárcere privado entre outros A noção de delito de menor potencial ofensivo ignora portanto a es calada da violência e seu verdadeiro potencial ofensivo Inú meros estudos têm demonstrado que a maioria dos homicídios cometidos contra as mulheres os chamados crimes passionais ocorrem imediatamente após a separação Nesses casos as his tórias se repetem inúmeras tentativas de separação seguidas de agressões e ameaças culminam em homicídio CAMPOS 2006 p414 A criação dos Juizados Especiais Criminais em 1995 ocorre a par tir de uma perspectiva da criminologia crítica cujos objetivos prin cipais eram reduzir o número de processos apresentados ao Poder Judiciário e no mesmo sentido facilitar o acesso à justiça conforme 466 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça previsão da Constituição da República Federativa do Brasil em seu art 98 inciso I Para Gianpaolo Smanio O Processo Penal Brasileiro inovou decisivamente buscando maior eficiência de suas instituições fazendo com que os ca sos considerados de menor importância dentro das condutas criminosas pudessem ter rápida solução atendendo à neces sidade de rapidez da aplicação da lei penal para que o autor do fato perceba a reprovação imediata de sua conduta SMA NIO1997 p104 Fica evidente portanto que os Juizados Especiais Criminais não foram criados levando em consideração as relações de gênero e as ca racterísticas específicas da violência doméstica contra a mulher na medida em que se classifica os crimes de violência doméstica como de baixo potencial ofensivo Como apontam Maria Celeste Marques e Cristiane Brandão Em contrapartida o mesmo movimento busca a descriminali zação de condutas hoje tipificadas tais como o aborto revelan donos uma crise de legitimidade e tensão permanente entre Estado mínimo e maximização do Sistema punitivo descrimi nalizar X criminalizar As contribuições do feminismo brasi leiro são indiscutíveis vg a criação em 1984 das Delegacias de Mulheres que trouxe à tona uma enorme gama de vitimação feminina especialmente de cunho sexual perpetrada nas rela ções de parentesco de amizades ou profissionais Violências até então consideradas questões privadas se tornaram problemas públicos e penais Mas há perguntas que não querem calar O que pode se esperar do sistema penal brasileiro O castigo A punição pela prática da violência Até que ponto a existência de tipos penais neutraliza delitos MARQUES BRANDÃO 2016 p112113 Estabeleceuse uma tensão entre a criminologia crítica e a cri minologia com viés no pensamento feminista É inegável que a Lei 909995 trouxe enormes avanços para o ordenamento jurídico brasi leiro na esteira do que propõe a criminologia crítica que se fundamen Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 467 ta no minimalismo da intervenção penal por meio da descriminaliza ção e despenalização de determinadas condutas que se operacionaliza por meio dos juizados Como observa Campos Podese dizer também que não há contradição entre o pensa mento feminista e a visão minimalista O movimento feminista parece ter compreendido os limites do sistema penal uma vez que vem gradativamente abandonando a ideia da repressão penal para a violência doméstica No entanto a criminologia moderna parece ter dificuldades em recepcionar o paradigma de gênero pois suas análises sobre os Juizados Especiais Cri minais ignoram a assimetria nas relações sociais entre homens e mulheres quando essas constituem sua clientela majoritária CAMPOS 2003 p168 Cabe no entanto uma ressalva que se torna determinante para esta pesquisa O sistema penal se fundamenta como grande parte do ordenamento jurídico brasileiro a partir de uma perspectiva andro cêntrica que ignora as diferenças nas relações sociais entre homens e mulheres É portanto uma matriz heteronormativa e patriarcal que em nome da preservação da família e da instituição do casamento com o objetivo de preservar uma suposta ordem social entende ser a violência doméstica um crime de menor potencial ofensivo invisibili zando mortes que são subnotificadas e ignorando as assimetrias de gê nero presentes na sociedade Observase sem muito esforço violação à Convenção de Belém do Pará a partir da perspectiva disposta na Lei 909995 na medida em que esta Convenção considera que a violência contra a mulher é uma violação de direitos humanos e dessa forma um crime de grande potencial ofensivo Com o objetivo de provocar o Estado brasileiro e promover a criação de uma política pública específica voltada para o combate à violência doméstica contra a mulher a advocacy feminista trabalhou em duas frentes importantes uma em âmbito nacional em que di versas organizações feministas como CEPIA CFEMEA AGENDE ADVOCACI CLADEMIPÊ e THEMIS com a contribuição de di versas operadoras do direito reuniramse para a elaboração de um an teprojeto de lei de enfrentamento da violência contra a mulher cujo 468 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça desempenho no processo legislativo que culminou com a sanção pre sidencial da Lei 113402006 Lei Maria da Penha foi decisivo Em poucas linhas a lei 1134006 estabelece as bases de uma política de prevenção e atenção no enfrentamento da violência doméstica con tra a mulher afasta a aplicação da Lei 909995 por meio do estabe lecimento dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra as Mulheres cuja competência se estende para as áreas cível e criminal estabelece medidas protetivas de urgência para as vítimas de violência doméstica pontua a atuação das Delegacias de Atendimento à Mulher e o papel relevante da Defensoria Pública BARSTED 2011 Outra frente desenvolveuse em âmbito internacional por meio da atuação das organizações não governamentais CEJIL e CLADEM junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organiza ção dos Estados Americanos OEA em que se apresentou denúncia com fundamento na a omissão do Estado brasileiro no processo de apuração e julgamento do crime praticado contra Maria da Penha Fer nandes por seu exmarido BARSTED 2011 O caso Maria da Penha vs Brasil que tramitou na Comissão Inte ramericana de Direitos Humanos envolve a professora Maria da Penha Maia Fernandes que sofreu uma série de agressões por parte do seu ma rido que em 1983 tentou matála duas vezes Até a apresentação do caso ante à Comissão Interamericana dos Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos OEA passados 15 anos da agressão ainda não havia uma decisão final de condenação pelos tribunais nacionais e o agressor ainda se encontrava em liberdade Diante deste fato as peti cionárias denunciaram a tolerância da violência doméstica contra Ma ria da Penha por parte do Estado brasileiro pelo fato de não ter adotado por mais de quinze anos medidas efetivas necessárias para processar e punir o agressor apesar das denúncias da vítima No ano de 2001 a Comissão Interamericana de Direitos Huma nos em seu Informe nº 54 de 2001 responsabilizou o Estado bra sileiro por negligência omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra as mulheres recomendando entre outras medidas A finalização do processamento penal do responsável da agressão e proceder uma investigação a fim de determinar a responsabilidade pelas irregularidades e atrasos injustificados no processo bem como tomar as medidas administrativas legislativas e judiciárias correspon Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 469 dentes Sem prejuízo das ações que possam ser instauradas contra o responsável civil da agressão a reparação simbólica e material pelas violações sofridas por Maria da Penha por parte do Estado brasileiro foram consideradas por sua falha em oferecer um recurso rápido e efetivo ao mesmo tempo em que foram implementadas a adoção de políticas públicas voltadas à prevenção punição e erradicação da vio lência contra a mulher Denunciouse a violação dos artigos 1 1 Obrigação de respeitar os direitos 8 Garantias judiciais 24 Igualdade perante a lei e 25 Proteção judicial da Convenção Americana dos artigos II e XVIII da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem bem como dos artigos 3 4 a b c d e f g 5 e 7 da Convenção de Belém do Pará Uma vez que no caso Maria da Penha não haviam sido esgotados os recursos da jurisdição interna o caso ainda estava sem uma decisão final condição imposta pelo artigo 46 1 a da Convenção Ame ricana para a admissibilidade de uma petição utilizouse a exceção prevista pelo inciso 2 c do mesmo artigo que exclui esta condição nos casos em que houver atraso injustificado na decisão dos recursos internos exatamente o que havia acontecido no caso Maria da Penha Em 7 de agosto de 2006 foi sancionada pelo então presidente do Brasil Luiz Inácio Lula da Silva a Lei Maria da Penha Lei 1134006 na qual há aumento no rigor das punições às agressões contra a mu lher quando ocorridas no ambiente doméstico ou familiar Esta Lei reconhece a gravidade dos casos de violência doméstica e retira dos juizados especiais criminais que julgam crimes de menor potencial ofensivo a competência para julgálos A Lei Maria da Penha inova ao perceber a violência doméstica contra a mulher de forma multidisciplinar e interseccional Assim como observa Maria Berenice Dias introduz alterações de caráter re pressivo no Código de Processo Penal e na Lei de Execuções Penais assim como a instalação de Juizados de Violência Doméstica e Fami liar e na ausência destes a competência será das varas criminais não mais dos juizados especiais criminais Antes da promulgação da Lei Maria da Penha a pena máxima prevista era de até 1um ano o que foi alterado pela nova legislação para até 3 três anos e com relação à pena mínima de 6 seis meses esta foi diminuída para 3 três meses DIAS 2010 470 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A Lei Maria da Penha também define o estabelecimento de pro gramas e serviços de proteção e de assistência social para mulheres em situação de violência e em particular tipifica a violência doméstica contra a mulher art 5º e seus modos de expressão art 7º e inova ao utilizar as expressões mulher e gênero estabelecendo que a lei é aplicável independente da orientação sexual da mulher em situação de violência Art 2º Toda mulher independentemente de classe raça et nia orientação sexual renda cultura nível educacional idade e religião goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana sendolhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral intelectual e socialgrifo nosso Art 5º Para os efeitos desta Lei configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte lesão sofrimento físico sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial grifo nosso Ao incluir a violência baseada no gênero a Lei Maria da Pe nha amplia o número de mulheres que poderão ser beneficiárias da lei como um todo Assim enquanto a CEDAW conceitua a discrimina ção contra a mulher como qualquer exclusão distinção ou restrição feita com base em sexo a qual tem o efeito ou o finalidade de prejudi car ou anular o reconhecimentogrifo nosso a Convenção de Belém do Pará estabelece que entenderseá por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte dano ou sofrimento físico sexual ou psicológico à mulher tanto na esfera pública como na esfera privada Assim a CEDAW baseiase em uma perspectiva mais biologi zante acerca do conceito de mulher definindoa em razão do sexo a Convenção de Belém do Pará oferece uma perspectiva mais demo crática e inclusiva ao definir violência contra a mulher como qualquer conduta que se baseie em seu gênero que não se vincula necessaria mente aos aspectos fisiológicos mas sobretudo a questões culturais e sociais e não apenas em suas características estritamente biológicas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 471 Tais perspectivas terão um impacto relevante na aplicação da lei aos casos concretos e fundamentação das decisões conforme se verá mais adiante 4 LEI MARIA DA PENHA E MULHERES TRAVESTIS E TRANSEXUAIS Em recente decisão judicial no Rio de Janeiro publicada em 2017 a Lei Maria da Penha foi aplicada especificamente a uma mulher transe xual Muito embora a decisão tenha sido amplamente veiculada para os fins deste artigo foi estabelecido nome fantasia mantendo apenas o nome do juiz por questões éticas e por entender que as partes não consentiram na publicização de seus nomes Este caso reflete em grande medida a realidade vivenciada por grande parte das mulheres transexuais e travestis no Brasil na medida em que 1 pertencem a famílias conservadoras que não reconhecem a sua identidade de gênero 2 são expulsas de casa ou fogem em virtude da violência física e simbólica que sofrem diariamente Nesse cenário conforme teor da decisão a mãe de Laura ao não aceitar a identidade de gênero da filha transexual afirmava que a sua transexualidade era uma doença mental adquirida em virtude de más influências Por sofrer discriminação por parte de sua mãe Laura de cide se mudar do Rio de Janeiro para Minas Gerais junto com a sua companheira também transexual até que se reconciliou com a sua mãe Laura e sua companheira voltam a morar no Rio de Janeiro em imóvel próximo ao de sua mãe e toda a intolerância da mãe de Laura relacionada à orientação sexual e à identidade de gênero da filha tran sexual recomeça de forma violenta culminando com a contratação de uma ambulância e retirada de Laura de seu imóvel com uso de força física e equipe de enfermagem Laura tem as roupas arrancadas no meio da rua e em frente à vizinhança é internada à força em uma clínica e tem seus cabelos raspados Nesse cenário de violação aos direitos humanos interessanos entender como a decisão judicial proferida pelo Juiz André Luiz Ni 472 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça colitt possibilita a garantia de direitos específicos a mulheres tran sexuais e travestis a partir da aplicação da lei Maria da Penha e das perspectivas e interpretações sobre gênero contidas em sua decisão Ao analisar toda a situação vivida por Laura o juiz associa este caso à cultura machista e patriarcal característica da sociedade brasi leira e entende que a raspagem dos cabelos de Laura constitui violação ao princípio da dignidade da pessoa humana presente na Constituição Brasileira Para o juiz no caso em um contexto de opressão de gênero e desrespeito à diversidade sexual afronta também o respeito à identidade que também compõe a dignidade 167 Conforme se de preende da decisão o juiz não vincula o reconhecimento da identida de de gênero de Laura à realização de cirurgia de redesignação sexual e analisa o caso a partir de uma perspectiva democrática de gênero Com efeito apesar de não ter sido submetida ainda à cirurgia de transgenitalização a vítima se considera mulher As novas estéticas e temáticas ligadas à diversidade e à liberdade sexual não têm sido resolvidas pelo direito até mesmo porque exi gem uma análise interdisciplinar o que é de certo modo uma novidade no mundo jurídico que sempre ostentou uma certa pretensão de completude Dessa forma tornase necessária al guma reflexão sobre tais aspectos168 Nesse sentido ao reconhecer em sua decisão que o direito não encontra apenas nas leis as respostas para todas as questões sociais que se apresentam e que é necessário o diálogo com outros campos de conhecimento a função judicial fortalece a democracia ao permi tir o reconhecimento de minorias que como no caso brasileiro e em muitos países latinoamericanos não têm reconhecidos seus direitos fundamentais básicos como direito ao nome e reconhecimento de gê nero em função de conservadorismo e preconceito por parte dos po deres legislativo e executivo Ao justificar a aplicação da Lei Maria da Penha no caso em que estão envolvidas mãe e filha transexual e não um homem agressor e uma mulher o juiz fundamenta a sua decisão De nossa parte a LMP cuidou da violência baseada no gênero 167 P2 httpswwwconjurcombrdlleimariapenhatambemprotegemulher pdf acesso em 02012018 168 P3 idem Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 473 e não vemos qualquer impossibilidade de que o sujeito ativo do crime possa ser uma mulher Isso porque a cultura machista e patriarcal se estruturou de tal forma e com tamanho poder de dominação que suas ideias foram naturalizadas na sociedade inclusive por mulheres Sendo assim não raro mulheres assu mem comportamentos machistas e os reproduzem assumindo não raro o papel de opressor sendo instrumentalizadas pelo dominador como na escravidão existiu o negro que era capi tão do mato o que vem sendo tratado às vezes como Síndrome de Estocolmo169 Ao aplicar as medidas protetivas previstas pela Lei Maria da Pe nha no caso determinando que a mãe permanece distante da filha por pelo menos 500 metros proibir qualquer forma de contato com a filha e determinar que os bens da filha e de sua companheira que estavam de posse da mãe sejam retirados pelo poder judiciário o juiz compreende que o conceito de mulher e gênero previstos na lei são abrangentes a partir de uma perspectiva democrática e com funda mento na dignidade da pessoa humana e nos principais tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário CONSIDERAÇÕES FINAIS Observase que o sistema internacional de direitos humanos tem sido decisivo para a efetivação de direitos humanos relacionados a grupos sociais específicos quando estes direitos não são garantidos pelo Esta do O processo de internacionalização dos direitos humanos permite a real proteção de direitos fundamentais seja por tratados que con templam estes direitos seja por meio de decisões e recomendações aos Estados signatários no sentido de proteger e criar mecanismos específicos para a sua garantia No Caso Maria da Penha vs Brasil que tramitou junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos também o Sistema Interamericano exerce um papel contramajoritário e como pôde ser verificado em consonância com a perspectiva de re conhecimento e redistribuição apresentada por Nancy Fraser A partir do posicionamento da Comissão e da Corte nos casos analisados neste 169 P8 idem 474 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça trabalho observase o desenvolvimento de políticas públicas e uma mudança na posição dos Estados acerca de temas como violência con tra a mulher e discriminação com relação à orientação sexual A decisão judicial analisada representa um marco de aplicação da lei a partir da sua perspectiva ampliada em que se considera uma perspectiva democrática de gênero em consonância com o espírito da Convenção de Belém do Pará e da Lei Maria da Penha que protegem a mulher em situação de violência relacionada ao gênero Não coube à legisladoralegislador restringir o alcance normativo e protetivo do conceito de gênero previsto em ambos os instrumentos e dessa forma não cabe ao intérprete reduzir seu alcance o que se constituiria clara mente em uma prática excludente e limitadora Dessa forma poderá ser desenvolvida uma perspectiva interdis ciplinar das instituições responsáveis por elaborar e interpretar a lei o que produz impacto na sociedade a partir de em uma perspectiva mais democrática de gênero e real efetivação de políticas públicas em direitos humanos REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA Suely Souza de Essa violência maldita In ALMEIDA Suely Souza de Org Violência de gênero e políticas públicas Rio de Janeiro Ed da UFRJ 2007 ARENDT H A Condição Humana Tradução Roberto Rapozo Ed Forense Universitária 10ª edição 2009 BASTERD Leila Linhares Lei Maria da Penha uma experiência bem sucedida de advocacy feminista In Lei Maria da Penha co mentada em uma perspectiva jurídicofeminista Carmen Campos Org Rio de Janeiro Lumen Juris 2011 BUTLER J Problemas de Gênero feminismo e subversão da iden tidade Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2003 CAMPOS Carmen Hein de Juizados Especiais Criminais e seu défi cit teórico Rev Estud Fem Florianópolis v 11 n 1 p 155170 Junho de 2003 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 475 DIAS Maria Berenice A Lei Maria da Penha na Justiça Ed Revistas dos Tribunais 2ª Edição 2010 FRASER Nancy Reconhecimento Sem Ética trad Ana Carolina Frei tas Lima Ogando e Mariana Prandini Fraga Assis Lua Nova São Pau lo 70 101138 2007 Da Redistribuição ao Reconhecimento Dilemas da Justiça na Era PósSocialista In SOUZA Jessé Org Democracia Hoje Brasília UNB 2001 p245282 Iustitia Interrupta reflexiones críticas des de la posición postsocialista Bogotá Siglo del Hombre 1997 HERRERA FLORES J La reinvención de los derechos humanos Ed Atrapasueños 2008 MARQUES Maria Celeste AUGUSTO Cristiane Brandão Um olhar jurídico a partir da residência multidisciplinar em atenção integral às mulheres políticas de gêneros e direitos humanos Brasil In V Congresso Internacional de Estudos Culturais 2016 Aveiro Atas do V Congresso Internacional de Estudos Culturais Coimbra Grácio Editor 2016 v 1 p 110117 PIOVESAN Flávia Direitos humanos e o direito constitucional in ternacional 9 ed São Paulo Saraiva 2008 SANTOS Boaventura de Sousa Direitos Humanos o desafio da interculturalidade in Revisa Direitos Humanos Junho 2009 Nº 02 1018 SAFFIOTIH ALMEIDA S S Violência de Gênero Poder e Impo tência Rio de Janeiro Livraria e Editora Reivinter Ltda 1995 SMANIO Gianpaolo Poggio Smanio Criminologia e Juizado Espe cial Criminal São Paulo Atlas 1997 p 104 TRINDADE Antônio Augusto Cançado Tratado de direito inter nacional dos direitos humanos 2 ed Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 2003 v 3 476 TRANSGÊNEROS REMÉDIOS TRANSFORMATIVOS E COMBATE À VIOLÊNCIA Ana Carolina de Azevedo Caminha170 Raisa Duarte da Silva Ribeiro171 Resumo Este artigo tem por objetivo central demonstrar a necessi dade de garantir os direitos fundamentais da população transgênero tendo em vista o alto quantitativo de violações perpetradas contra esse grupo por motivos conservadores sexistas heterocisnormativos re ligiosos e misóginos Nesse cenário propõese como possibilidade de combate às exclusões discursos de ódio agressões físicas e extrema intolerância que figuram na essência do país que mais mata LGBTs no mundo a criação e aplicação de remédios transformativos a partir da perspectiva da Teoria de Reconhecimento e Redistribuição de Nancy Fraser Assim o presente trabalho investiga a viabilidade de aplicação de forma bivalente às mulheres transgêneros a sistemática da Lei Ma ria da Penha e a qualificadora do feminicídio e defende a necessidade de criação de outros remédios específicos voltados diretamente para a defesa desse segmento social vulnerável Palavraschave Transgêneros gênero direitos fundamentais reco nhecimento violência 170 Graduada em Direito pela Universidade Veiga de Almeida 2017 Pósgra duanda em Direito Processual Civil 171 Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense 2016 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 477 INTRODUÇÃO Transgêneros são indivíduos que ultrapassam as barreiras do gênero Buscam pela possibilidade de uma vida digna Entretanto a vivência trans não é tão simples assim Ser transgênero é ser resistência Segun do a Associação Nacional de Travestis e Transexuais a cada 48h uma pessoa trans é assassinada no Brasil maior homicida dessa população no mundo Benevides 2018 De forma mais abrangente a cada 19h um LGBT é morto no país que mais mata essa categoria no mundo de acordo com o relatório 2017 do Grupo Gay da Bahia GGB 2017 É interessante investigar que apesar do ódio deslitado conforme demonstra a soma vultuosa das mortes o Brasil é o maior consumi dor de pornografia trans no mundo Germano 2018 O conteúdo é o mais procurado por brasileiros nos sites que divulgam esses materiais Essas estatísticas revelam a latente intolerância àqueles que escapam aos formatos institucionais mas que ao mesmo tempo despertam curiosidade e indesejo dos grupos conservadores que reprimem as práticas sexuais adversas do dimorfismo sem adentrar nas discussões relativas ao gênero Verificase que as reações rotineiras em face da coletividade trans propagam indignação repugnância e rejeição Elas causam práticas violentas agressivas e ofensivas contra transgêneros provocando dor e morte aumentando a vulnerabilidade sobre o grupo com constante supressão de direitos Embora vivamos em um país rico de diversida de ele é arraigado de cultura normativa que reforça princípios e va lores preconceituosos intransigentes e patriarcais ocultando e margi nalizando quem foge aos padrões binários construídos e socialmente estruturados Nesse contexto os estudos sobre transgeneridade crescem em ra zão da necessidade de discussão e reconhecimento nas esferas sociais e jurídicas A população transgênero clama por reconhecimento social e econômico Luta contra violências discriminação e invisibilidades que causam estigmas que se perpetuam mediante a violação sistemá tica de direitos básicos do ser humano perpertrada contra o grupo Assim o presente trabalho desenvolve a Teoria de Reconheci mento e Redistribuição de Nancy Fraser que visa colocar todos os indivíduos sociais no mesmo patamar políticoeconômico e social a 478 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça fim de ultimar as injustiças existentes colocando todos com mesmo status Para tanto apresenta remédios transformativos que compen sam as injustiças bivalentes Deste modo investigamos a possibilidade de aplicação da sistemática da Lei Maria da Penha e da qualificadora do feminicídio às mulheres transgênero a fim de conferir direitos analisando casos concretos em decisões do TJRJ e TJSP 1 TRANSGÊNEROS E VULNERABILIDADE Falar sobre transgeneridade requer preciputamente uma elucidação de quem são os indivíduos pertencentes do grupo Apesar da inexis tência uma uniformidade conceitual sobre o termo transgênero no Brasil no ponto de vista de especialistas e militantes a transgenerida de pode ser compreendida como o reconhecimento da diversidade de formas de viver o gênero Para tanto são levados em consideração dois aspectos na dimen são transgênero enquanto expressões diferentes da condição O primei ro aspecto se relaciona com a identidade que caracteriza transexuais e travestis E o segundo a funcionalidade representado por crossdressers drag queens drag kings e transformistas JESUS 2012 p7 O termo transgênero também é utilizado para pessoas que não adotam qualquer gênero cisnormativo visto que no Brasil não vigora consenso das denominações usadas nessa condição Nessa dimensão costumam variar termos como genderqueer queer intersexo a antiga denominação andrógino ou a palavra transgênero Id No conceito da socióloga Berenice Bento a transgeneridade se caracteriza como uma expressão identitária que diverge das normas de gênero fundadas no dimorfismo na heterossexualidade e nas idea lizações sociais BENTO 2008 p20 Em outras palavras se trata da transcendência do indivíduo ao sistema cisgênero aquele no qual o ser se reconhece no gênero e no sexo que nasceu masculino ou feminino BENTO 2012 p14 Assim a autodeterminação do gênero feita pelo indivíduo trans gênero vai no sentido oposto daquele definido no seu nascimento A Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 479 divergência identitária dos padrões da cisgeneridade implementou a utilização do prefixo trans vez que a pessoa trans não consegue se enquadrar ou conceber o gênero marcado em seu nascimento em razão da genitália Deste modo transgeneridade pode ser defendida como uma questão de identidade de gênero pois é a forma como o indivíduo transgênero se identifica se sente se enxerga ou autopercebe em determinado gênero ou seja um sentimento interno de ser homem ou mulher Além disso a transgeneridade não pode ser configurada sob um único aspecto pois ela é conhecida em diversos graus tempos idades com reflexos psicológicos ou não diferenciando aqueles que optam ou não pela realização da cirurgia de redesignação sexualtransgenitali zação etc Requer uma posição de reconhecimento não de aceitação Atualmente ainda permanece o diagnóstico de doença mental no DSM5 disforia de gênero e no CID 10 no capítulo Transtornos Mentais de Identidade de Gênero172 como Transtornos de Identida de Sexual Transexual sob o código F640 mesmo com avanços em pesquisas e ascensão social e teóricopolítica desse grupo Apesar de ainda vigorar a patologização da condição de trans gênero é importante sedimentar que esses indivíduos não possuem transtornos psicológicos ou mentais Eles são apenas sujeitos que escapam dos paradigmas de normalidade Nesse plano as pautas so bre despatologização precisam demonstrar seus inconformismos e continuar na luta pelo grupo com estratégias capazes de assegurar uma alteração futura Por fim a forma mais coerente de se reconhecer um transgênero é através de sua performance pelo modo que se expressa apresenta Ou seja pela reivindicação da própria pessoa através do gênero que ela manifesta pertencer homem ou mulher 172 Em recentes notícias veiculadas em sites como El Diário e Nlucon foi informa do sobre a possibilidade de retirada das identidades trans e travestis do capítulo de transtorno mental pela Organização Mundial da Saúde na próxima atuali zação do Livro de Condições Médicas O CID11 possui previsão de publica ção ainda em 2018 No entanto as identidades seriam realocadas do capítulo transtornos mentais de identidade de gênero para condições relativas à saú de sexual 480 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Assim compreendidas as identidades transgênero é importan te revelar a vulnerabilidade desses indivíduos por serem refratários aos modelos sociais Alvos de incessantes discriminações ocultações e rejeições as pessoas trans vivem na precariedade necessitando da garantia efetiva de direitos fundamentais com propósito de se esta bilizar a possibilidade de uma vida plena com respeito e dignidade conforme será demonstrado a seguir A sociedade brasileira é composta por diversidades de classes povos culturas que comporta muitos grupos minoritários Esses gru pos correspondem a pessoas como mulheres negros pobres crianças idosos indígenas imigrantes LGBTs entre outros As Regras de Brasília sobre Acesso à Justiça das Pessoas em con dição de Vulnerabilidade traz em seu texto um conceito de pessoas vulneráveis Consideramse pessoas em situação de vulnerabilidade aquelas que em virtude de idade gênero estado físico ou mental as sim como por circunstâncias sociais econômicas étnicas eou cultu rais encontram dificuldades para exercerem com plenitude direitos reconhecidos pelo ordenamento jurídico BRASIL 2008 Logo são estabelecidas como causas de vulnerabilidade sem prejuízo de outras possibilidades as seguintes idade incapacidade o pertencimento a comunidades indígenas ou grupos de minorias a vitimização a migração e o deslocamento interno a pobreza o gênero e a privação de liberdade Extraído dessas causas pretendemos interagir com grupo de mi norias Não há um consenso a respeito do conceito de minoria Ferraz 2015 Entretanto podem ser compreendidos de forma geral como aqueles que não possuem acesso ao poder do ponto de vista político e ou econômico RIBEIRO 2017 A comunidade LGBTs é reconhecidamente um grupo minoritá rio em muitos países do mundo No Brasil não seria diferente visto que estamos diante de um país heterogeneo miscigenado e plural mas com culturas conservadoras e predominantemente religiosas Os transgêneros coletividade pertencente ao grupo de LGBTs formam um conjunto populacional menor ainda em termos quantitativos pois correspondem a um percentual inferior de representação consi derando a proporção do grupo minoritário em comento173 173 Cabe ressaltar que minoria não deve ser compreendido de forma quantitati Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 481 Nessa conjuntura compreendidos como grupo minoritário ine gável a vulnerabilidade enfrentada pelos transgêneros Tal posição re flete negativamente nos setores cruciais de suas vidas retirando deles a possibilida de disputa nos espaços sociais Os constrangimentos são numerosos já que qualquer ato da vida civil se torna um transtorno onde direitos básicos são regularmente suprimidos Dentre eles ter um nome trabalhar estudar consumir e até mesmo ter acesso a banheiros nos espaços públicos São violações explícitas a direitos fundamentais inerentes à pessoa humana 2 DIREITOS FUNDAMENTAIS EXCLUSÃO E VIOLÊNCIA Deste modo é perceptível o estado de fragilidade dos direitos funda mentais do grupo Mesmo não se tratando de direitos absolutos ou seja podem ser relativizados conforme a característica de limitabili dade dos direitos fundamentais precisam ser respeitados e garantidos pelo Estado Sempre atendendo aos critérios de proporcionalidade e razoabilidade previstos no ordenamento jurídico Assim assegurando proteção ao núcleo essencial desses direitos evitando que ocorram in constitucionalidades materiais SARLET 2017 p 398390 Nesse plano a tutela efetiva de direitos fundamentais para manu tenção da vida desses indivíduos com respeito igualdade e dignidade é imprescindível Essas pessoas sofrem violações todos os dias sendo aniquiladas com ódio violência e descaso O Estado e a sociedade precisam ser responsabilizados Para tanto os poderes estatais como Judiciário Legislativo e Executivo precisam agir com elaboração e im plementação de medidas e mecanismos eficientes de proteção Confirmando as omissões estatais e comunitárias consideramos fundamental analisar as formas violentas e agressivas de resistência à va mas sim de forma qualitativa isto é independentemente da representação populacional o que interessa para se considerar um grupo minoritário é veri ficar se ele possui ou não poder do ponto de vista político eou econômico No entanto é importante observar que a população trans além de ser minoria do ponto de vista qualitativo também é minoria em termos de configuração po pulacional o que faz com que suas demandas sejam ainda mais enfraquecidas 482 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça coletividade trans Inicialmente é primordial analisar as práticas pre conceituosas e discriminatórias proferidas contra esse segmento em nosso país O enredo histórico e cultural do Brasil gera tais condu tas Embora a nossa sociedade tenha em sua trajetória a imigração de diferentes povos com etnias e modelos culturais diversos não se comporta de forma harmônica pois sempre externou intolerância e hostilidade contra àquele que foge aos padrões de normalidade Mesmo com alguns avanços sociais para alguns grupos minoritá rios como o casamento entre pessoas do mesmo sexo ou possibilida de de adoção de crianças por casais homoafetivos ainda se perpetuam condições que mantêm determinados grupos sociais indefesos e vul neráveis por várias razões Tais como conservadorismo institucional político influências de religiões de matriz cristã o afã regulador dos corpos e do gênero entre outros PEREIRA 2017 p 211 Desse jeito outras categorias de grupos minoritários permane cem em alijamento de visibilidade e discussão afastadas de adequada proteção jurídica Neste lado estão inseridos os indivíduos transgêne ros que em sua maioria vivem em condição de marginalidade sem observância de suas mazelas pela comunidade social ou pelo Estado Em inalterável estado discriminatório sobrevivem com múlti plas formas de preconceito por desvirtuarem a normalização dos cor pos Não possuem nenhum tipo inserção social e econômica resistem sob constante desagravo comunitário sem representação trabalho ou qualquer possibilidade de exercer um papel social Id Os indivíduos trans não são respeitados ou tolerados principal mente por transgredirem as institucionalizações de comportamento e sexualidade Quando grupos carentes de expressão agem opostamente àquilo estabelecido como referência acabam sendo negados e recu sados pois os grupos detentores de poder os impedem de subsistir Deste modo a coletividade trans é tida como inaceitável e abjeta O processo de exclusão das pessoas trans iniciase muito cedo O primeiro setor de desamparo é o familiar repleto de incompreensão e humilhação quando deveria ser um local de acolhimento e segurança O segundo ambiente que emite rejeição é o educacional As escolas e as universidades não acolhem essas pessoas que sofrem constantes manifestações de preconceito que partem tanto dos alunos quan Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 483 to dos professores Somase ainda o ambiente laboral que ignora os transgêneros por simplesmente serem quem são Dado esse cenário de exclusão e incompreensão social a popu lação trans encontra na prostituição sua única ou pelo menos majo ritária fonte de renda e subsistência Segundo a ANTRA Benevides 2018 estimase que 90 das pessoas trans recorre a prostituição em algum momento da vida Com tal condição de vida são objetificados indiferentes por serem diferentes sujeitos a todo tipo de violência Em virtude do Estado não realizar qualquer levantamento de re gistros de violência por questões de orientação sexual identidade de gênero expressão de gênero ou características sexuais no Brasil Uma das principais fontes de informações e dados do país sobre violência contra LGBTs é o Grupo Gay da Bahia que desde 1980 levanta dados a partir de notícias sobre eventos de agressão violência e morte Fato que demonstra a imprecisão relativa desses números que podem va riar para mais ou menos GGB 2017 O Brasil é considerado o país que mais mata LGBTs no mun do campeão de crimes contra minorias sexuais Segundo o relatório anual GGB o aumento de homicídios de 2017 em relação ao ano an terior foi de 30 passando de 343 para 445 mortes em todo país O grupo também já relatou que em 2018 só no período de 01 de janeiro a 10 de abril foram registradas 126 mortes de pessoas LGBTs Id Das 445 mortes em 2017 194 eram gays 436 191 trans 429 43 lésbicas 97 5 bissexuais 11 e 12 heterossexuais 27 Importante salientar que na categoria gay foram incluídos homossexuais masculinos andróginos drag queens transformistas e crossdressers pois embora esses últimos adotassem esporadicamente performance do gênero feminino manifestavam identidade e eram socialmente reconhecidos como homossexuais Ou seja apesar de performarem o feminino e assumirem uma característica transgênero foram considerados apenas homossexuais Id Já a categoria trans inclui travestis mulheres transexuais e ho mens transexuais totalizando 191 vítimas O GGB aponta que o sig nificativo aumento de 6 nos óbitos trans gerou alarde em 2017 Há cinco anos essa população representava 37 dos assassinatos e no último ano essa porcentagem saltou para 429 Id 484 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça De acordo com o relatório essa crescente exprime um índice preocupante pois enquanto os gays representam cerca de 20 milhões de habitantes do país 10 da população estimase que a população transgênero provalvemente não ultrapassa 1 milhão de pessoas o que demonstra que a possibilidade de um trans morrer vítima de transfo bia é 22 vezes maior do que um gay por homofobia A Transgender Europe ONG destinada à defesa dos direitos de pessoas trans elabora relatórios anuais sobre violência Ela classifica como trans não apenas pessoas com identidade de gênero diferente da qual nasceram como transexuais e travestis mas também crossdres sers e pessoas sem gênero definido ou nãobinárias Suas pesquisas também partem de sites blogs de notícias ativistas e entidades de de fesa dos direitos LGBTs de mais de 100 países FÁBIO 2017 Em 2015 a ONG registrou 295 assassinatos trans no mundo sen do 45 deles no Brasil Ou seja 123 mortes apenas no país homicida O segundo colocado México teve 52 mortes Já no último relatório foram registrados em 71 países 325 assassinatos de trans entre 2016 2017 Mais da metade deles ocorreram no Brasil 52 equivalente a 171 casos seguidos de 56 no México e 25 nos Estados Unidos TGEU 2017 Relativamente aos dados da Transgender a maioria das vítimas eram mulheres trans e prostitutas Vale frisar neste ponto que não foram noticiados pela ONG todos os casos notificados no GGB sobre assassinatos trans que só em 2017 foram de 191 E pela contabilização da Transgender os anos 2016 e 2017 somam 171 casos Número infe rior dos registros só do ano 2017 Dentro dos 191 mortos transgêneros dos dados GGB apenas 13 eram homens trans ressaltando a maioria das vítimas mulheres Além disso foi constatado que as execuções dessa população ocorrem com requintes de crueldade e ódio por meio tiros espancamentos pedra das pauladas facadas degolamento desfiguração do rosto etc Em um perfil mundial da população trans assassinada a Trans gender constata que geralmente as vítimas são novas Entre janeiro de 2008 a junho de 2016 57 tinham menos de 30 ano e 115 eram menores de 20 anos A maioria desses registros foram realizados no Brasil Os motivos para os crimes são transfobia em conjunto com Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 485 discriminações de racismo e ódio às prostitutas No Brasil 79 das trans assassinadas são prostitutas FÁBIO 2017 Importante ressaltar nesse quadro que o Brasil é o país que mais procura por travestis e transexuais em sites pornôs como RedTube e o que mais comete crimes transfóbicos A relação entre a transfobia e a busca desses conteúdos pode ser associada a diversos elementos o uso do site como meio para agressores conseguirem informações do perfil das vítimas assim como para justificar o ódio ao visualizar condutas que considera inaceitáveis e também a possibilidade do desejo repri mido quando agressor condena aquelas práticas sexuais mas se sente atraído por elas resolvendo machucar tais sujeitos para tentar negar sua lascívia GERMANO 2018 Esses números alarmantes elucidam as repugnâncias e as ne gligências espantosas para um país como o Brasil que nunca na sua história teve regulamentado como crime práticas de características se xuais Até nos países que punem essas questões com penas de morte não há tanto ódio nas execuções A diminuição de estigmas margi nalização e desumanização é uma luta que está longe de ter um fim ZEGER 2016 3 TEORIA DO RECONHECIMENTO APLICAÇÃO DOS REMÉDIOS TRANSFORMATIVOS À POPULAÇÃO TRANS Ante o desejo de extermínio apresentado fica evidente a indispen sabilidade de reconhecimento social e econômico à população trans Ocorre que discorrer sobre essa temática requer um olhar crítico das mazelas sociais A teoria de reconhecimento e redistribuição da fisó lofa Nancy Fraser se aplica triunfal nessa conjuntura Nancy Fraser se debruça nos estudos sobre reconhecimento concentrandose em grupos minoritários que buscam por tratamento igualitário Associando o reconhecimento à uma questão de justiça que está conjugada a distribuição de recursos materiais sua teoria pretende colocar os indivíduos sociais em condição de igualdade atra vés de remédios transformativos FRASER 2006 p232 486 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Os remédios remodelariam as estruturas socioculturais e socioe conômicas tornando possível que os indivíduos em desvantagem fos sem colocados em patamar idêntico ao dos outros atores da sociedade conferindolhes justiça pelo modelo conhecido como status onde os indivíduos em sua universalidade possuiriam o mesmo status social impedindo desigualdades Com isso os remédios transformativos de reconhecimento com pensariam as institucionalizações da cultura binária heterocisnorma tiva de políticas discriminadoras para reconstruir o reconhecimento com diversidade de gênero identidade de gênero e orientação sexual Já os remédios redistributivos transformariam as estruturas político econômicas garantindo amplo acesso ao trabalho sem estigmas vul gares promovendo solidariedade reduzindo as desigualdades mate riais No Brasil ainda inexiste lei federal que criminalize a transfobia174 As penalidades atribuídas aos delitos de violência contra LGBTs são pelos crimes comuns A não caracterização como crime qualificado demonstra a falha de representatividade desse grupo importando em invisibilidade pois as estatísticas deixam de ser categóricas Em contrapartida podemos propor dois remédios transformati vos bivalentes aplicáveis de forma analógica aos trans a Lei Maria da Penha e a qualificadora do feminicídio pois a maioria da população trans violentada e aniquilada é composta por mulheres Com relação à Lei Maria da Penha já se reconhece a possibili dade de aplicação da sua sistemática às transgêneros mulheres Logo podem ser protegidas todas as mulheres que sofram violência domés tica desde que caracterizado o vínculo de relação doméstica familiar ou de afetividade Maria Berenice Dias 2006 assenta esse entendimento quando aduz que no momento em que é afirmado que está sob o abrigo da lei a mulher sem distinguir sua orientação sexual alcançamse tanto lés bicas como travestis transexuais e transgêneros que mantêm relação íntima de afeto em ambiente familiar ou de convívio à luz dos artigos 174 Tramita no Congresso Nacional o PL 75822014 autoria da deputada federal Maria do Rosário PTRS que define os crimes de ódio e intolerância e cria mecanismos para coibilos nos termos do inciso III do artigo 1º e caput do artigo 5º da Constituição Federal e dá outras providências Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 487 2º e 5º da Lei Maria da Penha Com relação ao feminicídio apesar das discussões acerca do ter mo sexo feminino na qualificadora inserida no Código Penal pela lei 1310415 que faz referência ao sexo biológico o tipo penal do fe minicídio não deve ser restringido apenas as mulheres cis já que seu objetivo é a proteção do grupo vulnerável e a vítima deve ser mulher Assim a interpretação teleológica da lei penal visa contemplar o gênero mulheres cis ou trans As mulheres trans integram o con ceito social de mulher exprimindo os avanços sociais com respeito ao princípio da isonomia Sob esse aspecto elas merecem proteção da norma em questão em cumprimento à finalidade da lei Deste modo já se considera plenamente possível a utilização do referido tipo penal nos crimes cometidos contra mulheres transgêne ro sendo reconhecido o transfeminicídio Ele é o assassinato motiva do pelo gênero da vítima e não por suas práticas sexuais O Brasil é o país do transfeminicídio Berenice Bento 2014 p1 2 assevera que as mortes são feitas em rituais ao invés de uma morte fatal para haver tortura e dor até com situações de desmembramento dos corpos Na maioria dos casos as famílias não reclamam os corpos pois não há luto Os processos criminais inexistem é um desejo social o extermínio As fatalidades ocorrem nas ruas no período da noite quando se está deserto No registro do óbito desrespeitam a identida de de gênero retornando aos nomes e gêneros do nascimento Definitivamente a discriminação e o menosprezo ao gênero fe minino no transfeminicídio ocorrem de maneira semelhante aos pa râmetros do feminicídio Matase pelo gênero que as mulheres trans passam a assumir performar e pertencer Retornando às mazelas cos tumeiras agressões e violências pela condição de mulher De forma a sustentar a aplicação das legislações em menção ana lisamos decisões proferidas pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e do Estado de São Paulo a respeito do tema Nesse con texto selecionamos dois casos específicos o caso da Bruna Misaki acerca da aplicação da Lei Maria da Penha e o caso da Michele pela aplicação da qualificado do feminicídio Nos autos do processo nº 00187902520178190004 foram con cedidas as medidas protetivas postuladas por Bruna Mikasi mulher 488 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça transgênero em ação proposta contra sua mãe pela Defensoria Públi ca no no Juizado da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Comarca de São Gonçado previstas na Lei Maria da Penha Bruna se reconheceu como mulher transexual desde janeiro de 2016 Sua mãe sempre foi contrária a sua identidade de gênero por isso resolveu internar a filha em uma clínica para tratamento em ou tro Estado da Federação mesmo sem qualquer laudo médico de inca pacidade A vítima foi submetida à situação vexatória com imposição de força física até a internação Lá teve seu cabelo raspado sofrendo outros tipos de constrangimentos Além disso foi afastada do con vívio com sua companheira também transexual e teve seus objetos pessoais recolhidos pela genitora O magistrado atuante no caso conceituou sexo e gênero diferen ciando um como biológico e o outro como sociológico através dos es tudos das filósofas Simone de Beauvoir e Judith Butler Constatou que a questão envolve opressão sobre o gênero feminino da vítima abriga da no artigo 5º da LMP Asseverou que os sujeitos ativos da violência doméstica e familiar podem ser mulheres que reproduzem compor tamentos machistas por vivenciarem cultura patriarcal estruturada e naturalizada na sociedade Nesse mesmo sentido segue o posiciona mento do STJ no Conflito de Competência 88027 que foi utilizado na fundamentação dessa decisão Destacou que as normas processuais civis e administrativas con tidas na Lei são aplicáveis a quem exerça o papel social de mulher como travestis e transexuais por exemplo Salientou que as provas dos autos indicavam a internação compulsória da vítima com emprego de força a transferência para outra unidade da Federação com violação de sua integridade física pelo corte coercitivo capilar além dos perten ces pessoais encontraremse fora de seu alcance Por tudo isso o juiz julgou parcialmente procedente o pedido de ferindo medida protetiva para determinar o afastamento da mãe por pelo menos 500 metros da filha não podendo entrar em contato com ela por nenhum meio de comunicação por ter cometido atos que viola ram a dignidade da pessoa humana da vítima Decretou ainda a busca e apreensão dos objetos pessoais da ofendida na casa da genitora Esse caso é um exemplo de aplicação da Lei Maria da Penha para Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 489 mulheres trans protegendoas de violência doméstica e familiar No feito em tela direitos fundamentais da vítima transexual foram total mente violados por não ter a aceitação de sua identidade de gênero pela mãe diante do seu distanciamento dos padrões sociais A aplica ção da LMP neste caso foi um remédio transformativo efetivo afir mando que essa alternativa colabora com a diminuição de violências dessa natureza sofridas por mulheres trans Com relação a aplicação da qualificado do feminicídio as mulhe res trans não foi encontrado caso julgado ou em trâmite no Estado do Rio de Janeiro pelo site de pesquisa de jurisprudência175 Em São Paulo existe uma ação penal pendente de julgado versando sobre o caso do transfeminicídio de Michele O Ministério Público do Estado de São Paulo ofereceu denúncia pioneira contra Luiz Henrique Marcondes dos Santos por ter matado com emprego de faca sua companheira Michele mulher transexual dominado por forte sentimento de raiva após ter sido acusado de trai ção pela vítima Ela morreu estrangulada e seu corpo foi ocultado em terreno baldio próximo da residencia do excasal As razões do crime se relacionam com sexo feminino da vítima em contexto de violência doméstica tendo em vista que o acusado convivia com ela por apro ximadamente dez anos Ele foi incurso nas penas dos artigos 121 2º incisos I IV e VI 2ºA inciso I e 211 ambos do Código Penal Em fevereiro de 2018 foi proferida sentença de pronúncia pela 3ª Vara do Júri do Foro Central Criminal de São Paulo nos autos do processo nº 0001798 7820168260052 A decisão conferiu a aplicação da qualificadora de feminicídio à mulher transexual com base no conceito social de mu lher pois condizente com a prova dos autos verificados os indícios de que o delito fora praticado em razão da condição de sexo feminino da vítima dentro do contexto de violência doméstica e com emprego de violência contra Michele com quem o réu convivia e tinha relação íntima A sentença sustenta que a qualificadora do feminicídio possui na tureza objetiva mediante a interpretação sistemática da Lei Maria da Penha configurada sempre quando homicídio for cometido em vir 175 httpwww4tjrjjusbrEJURISProcessarConsJurisaspxPageSeq1Ver sion10353 490 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça tude de gênero hipóteses previstas no artigo 5º da LMP Define por tanto que não é exigido um motivo especial do autor da conduta para caracterização do feminicídio bastando a violência contra mulher praticada dentro do rol taxativo da LMP Outrossim reverbera que a interpretação teleológica da Lei nº 1310415 confere maior proteção à mulher transexual vítima de violência doméstica e familiar atenden do a finalidade da norma penal Embora ainda pendente de julgamento os crimes cometidos pelo réu contra a ofendida foi possível verificar a partir da sentença de pronúncia deste caso específico que os entendimentos dos órgãos ju risdicionais e Ministério Público têm acompanhado os apelos sociais para reconhecer que a aplicação da qualificadora do feminicídio deve ser conferida às mulheres transgênero sendo considerado um avanço no ordenamento jurídico que ainda engatinha na tutela de direitos fundamentais da população transgênero CONCLUSÃO Dessa forma podese observar que a população transgênero sofre com a falta de proteção dos direitos fundamentais mais basilares como a tutela do direito à vida à integridade física e psicológica à exteriori zação de suas liberdades à autonomia da vontade Conforme os dados acima apontam o Brasil é o país do transfeminicídio e a exclusão so cial das pessoas transgêneros é notória Nesse contexto tornase necessário o aprimoramento de instru mentos de tutela dos direitos fundamentais da população transgênero A aplicação extensiva da Lei Maria da Penha e da qualificadora do feminicídio às mulheres trans se mostra uma das medidas necessárias e encampadas pelo Poder Judiciário em suas decisões quando as ví timas se encontram em situação violência de gênero no ambiente do méstico e familiar ou foram assassinadas em virtude de sua condição de mulher Não obstante a aplicação dos remédios transformativos acima ci tados se mostra necessária a edição de novos remédios específicos que possam dirimir desigualdades e proponham inclusão aos transgê neros através de reconhecimento sociocultural e redistribuição de re cursos como a criação de legislações específicas em especial em âm Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 491 bito penal que possui o poder simbólico de demonstrar que o Estado condena as condutas de ódio contra as minorias e confere visibilidade aos problemas enfrentados pelos grupos vulneráveis Assim podese concluir que é imprescindível o reconhecimento social cultural e econômico aos corpos que escapam que são invisibi lizados silenciados e desumanizados de modo que eles se desenvol ver com plenitude REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENEVIDES Bruna Mapa dos assassinatos de Travestis e Transexuais no Brasil em 2017 Brasília ANTRA 29 de janeiro de 2018 Disponível 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Violência doméstica e as uniões homoafetivas Revista Jus Navigandi ISSN 15184862 Teresina ano 11 n 1185 29 set 2006 FÁBIO André Cabette A trajetória e as conquistas do movimento LGBT brasileiro Jornal Nexo jun 2017 Disponível em httpswww nexojornalcombrexplicado20170617AtrajetC3B3riaeas conquistasdomovimentoLGBTbrasileiro Acesso em 10 abr 2018 FERRAZ Anna Candida da Cunha et al Direitos e garantias fun damentais II Organização CONPEDI UFMGFUMECDom Helder Câmara p 165 Florianópolis CONPEDI 2015 FRASER Nancy Da redistribuição ao reconhecimento Dilemas da jus tiça numa era póssocialista Cadernos de campo São Paulo n1415 p231239 2006 Tradução Julio Assis Simões Repensando o reconhecimento Revista Enfoques revista semestral eletrônica dos alunos do Programa de Pósgraduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ Rio de Janeiro v 9 n 1 p114 128 ago 2010 GERMANO Felipe Brasil é o país que mais procura por transexuais no RedTube e o que mais comete crimes transbóficos nas ruas Revis ta Superinteressante 8 maio de 2018 Disponível em httpssuper abrilcombrcomportamentobrasileopaisquemaisprocurapor transexuaisnoredtubeeoquemaiscometecrimestransfobicos nasruas Acesso em 10 mai 2018 GGB Grupo Gay da Bahia Relatório 2017 Bahia 2017 Disponível em httpshomofobiamatafileswordpresscom201712relato rio2081pdf Acesso em 10 abr 2018 HANNA Wellington CUNHA Thaís Discriminação rouba de transe xuais o direito ao estudo Correio Braziliense Disponível em http especiaiscorreiobraziliensecombrviolenciaediscriminacaorou bamdetransexuaisodireitoaoestudo Acesso em 10 abr 2018 IKEMOTO Luisa Transexuais e travestis sofrem violência dentro de casa Correio Braziliense Disponível em httpespeciaiscorreiobra Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 493 ziliensecombrtransexuaisetravestissofremviolenciadentrode casa Acesso em 10 abr 2018 JESUS Jaqueline Gomes de Orientações sobre identidade de gênero conceitos e termos Brasília Ebook 2012 p123 PEREIRA Fabio Queiroz GOMES Jordhana Maria Costa Pobreza e gênero a marginalização de travestis e transexuais pelo direito Rev direitos fundam democ v 22 n 2 p 211 maiago 2017 RIBEIRO Raisa Duarte da Silva Discurso de Ódio Violência de Gêne ro e Pornografia entre a Liberdade de Expressão e a Igualdade Multi foco 2017 RIO DE JANEIRO TJRJ Juizado da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Comarca de São Gonçalo Decisão Medida Pro tetiva no processo nº 00187902520178190004 RJ de 26 de maio de 2017 SARLET Ingo Wolfgang MARINONI Luiz Guilherme MITIDIERO Daniel Curso de direito constitucional p 389390 6 ed São Paulo Saraiva 2017 SÃO PAULO TJSP 3ª Vara do Júri do Foro Central Criminal Sentença de Pronúncia no processo nº 00017987820168260052 SP de 28 de fevereiro de 2018 TGEU Transgender Europe Monitoramento de Assassinato Trans 2017 Disponível em httpstransrespectorgentransmurdermo nitoringtmmresources Acesso em 10 abr 2018 ZEGER Ivone Direito LGBTI Perguntas e respostas São Paulo Mescla 2016 RÉSZLETEKRŐL ÉS MENETRENDRŐL ÉRDEKLŐDJEN A VÁROSI KÖZLEKEDÉSI VÁLLALATNÁL 42518 843 42511 565 20352 2057 Nemzeti Utazási Iroda Kossuth tér 8 42511 400 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 495 Parte IV SISTEMA DE JUSTIÇA PENSADO POR MULHERES Seção 1 Violência Doméstica REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE V R P de Pelas Mãos da Criminologia o controle penal para além da desilusão 1ª ed Rio de Janeiro Revan 2012 BARATTA Alessandro Criminologia crítica e crítica do direito penal introdução à sociologia do direito penal Rio de Janeiro Freitas Bastos 1999 BECKER Howard S Outsiders Estudos de sociologia do desvio Rio de Janeiro Zahar 2008 BOURDIEU P Linguagem e poder simbólico A economia das trocas linguísticas São Paulo Edusp 1998 BUTLER J Problemas de Gênero Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2003 Sex and Gender in Beauvoir s Second Sex In Yale French Studies Simone de Beauvoir Witness to a Century no 72 Winter 1986 CUNHA M P da Malhas que a reclusão tece Questões de identidade numa prisão feminina Lisboa Gabinete de Estudos JurídicoSociais do Centro de Estudos Judiciários 1994 DAVIS A Y Race and criminalization Black americans and the Punishment Industry In The Angela Y Davis Reader Ed J James Malden Blackwell Publishers 1998 Angela Y Davis Cassandra Shaylor Race Gender and The Prison Industry Complex California and Beyond Meridians 2001 ESPINOZA O A mulher encarcerada em face do poder punitivo São Paulo IBCCRIM 2004 FOUCAULT M Vigiar e Punir nascimento da prisão Petrópolis RJ Vozes 2008 Resumo dos cursos do Collège de France 19701982 Rio de Janeiro J Zahar 1997 GOFFMAN E Estigma notas sobre a manipulação da identidade deteriorada Rio de Janeiro Guanabara 1988 Manicômios prisões e conventos São Paulo Perspectiva 2013 497 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ENFREN TANDO O PROBLEMA EM REDE Michelle Moraes Santos 176 Resumo Este artigo aborda a experiência da Rede de Enfrentamen to à violência doméstica e familiar contra a mulher no município de Barra do GarçasMT com destaque aos impactos produzidos pela ar ticulação institucional na prevenção e redução dos índices desta tipo logia criminal à contribuição na implementação de uma política de proteção aos envolvidos no ciclo de violência Ademais discorrerseá o caminho percorrido para efetivála seu surgimento consolidação aplicabilidade avanços e dificuldades Abordará ainda aspectos da en trevista realizada com alguns membros em relação à eficiênciaeficá ciaefetividade do trabalho desenvolvido os principais entraves para o pleno desenvolvimento da Rede e em quais aspectos o grupo precisa se reinventar Palavraschaves Violência Doméstica Rede de Enfrentamento Inte rinstitucionalidade 1 INTRODUÇÃO Segundo Salvador Minuchin 1990 toda família possui um conjunto de exigências funcionais que além de serem invisíveis organizam a maneira com que os membros interagem entre si esta pode ser com parada a um sistema que funciona baseado em padrões relacionais O 176 Mestranda em Sociologia pela Universidade Federal de Mato Grosso Orientada pelo Prof Dr Luís Antonio Bitante Fernandes Especialista em Ges tão do Trabalho e Educação na Saúde Desde 2016 é Assistente Social do Minis tério Público do Estado de Mato Grosso Correio eletrônico asmmshotmail com 498 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça padrão de funcionamento da nossa sociedade ainda é marcado pela ordem patriarcal entendido como um tipo hierárquico de relação de poder desigual entre duas categorias sociais homens e mulheres na qual uma categoria ocupa posição social de opressão dominaçãoex ploração e outra categoria assume a posição de submissão não opon do resistência ao status quo O patriarcado referese a milênios da história mais próxima nos quais se implantou uma hierarquia entre homens e mulhe res com primazia masculina Tratar esta realidade em termos exclusivamente do conceito de gênero distrai a atenção do po der do patriarca em especial com o homemmarido neutra lizando a exploraçãodominação masculina Neste sentido e contrariamente ao que afirma a maioria das os teóricas os o conceito de gênero carrega uma dose apreciável de ideologia E qual é esta ideologia Exatamente a patriarcal forjada espe cialmente para dar cobertura a uma estrututura de poder que situa as mulheres muito abaixo dos homens em todas as áreas da convivência humana É a esta estrutura de poder e não ape nas à ideologia que acoberta que o conceito de patriarcado diz respeito SAFFIOTI 2004 p136 Mesmo diante das lutas femininas ainda vivenciamos relações de poder desiguais A socióloga Sylvia Walby 1990 descreve em Theori zing Patriarchy sobre o modo de produção patriarcal relações patriar cais no trabalho remunerado e assalariado relações patriarcais no Es tado violência masculina relações patriarcais na esfera da sexualidade e relações patriarcais em instituições culturais que interconectadas nos proporciona a reflexão de como a ordem patriarcal se faz presente na contemporaneidade quando persiste a exploração do trabalho das mu lheres por seus maridos mantendo divisão desigual do trabalho domés tico quando há presença de trabalhos direcionados por gênero assédio moralsexual remuneração desigual entre outros nas relações de tra balho quando o Estado ainda protagoniza o personagem repressor e coercitivo do poder feminino quando as estatísticas relatam números alarmantes de violência masculina alvo desta pesquisa quando a se xualidade ainda é marcada pelo controle do corpo naturalização da ma ternidade estereótipos corporais femininos turismo sexual e quando a cultura ainda estimula estereótipos de gênero Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 499 Pelo exposto acima deduzimos que essa relação desigual repro duz a violência doméstica contra a mulher pois a estrutura familiar historicamente foi construída em bases patriarcais Tal afirmação res paldase nos dados estatísticos que apontam frequência maior de vio lência cometida de homens contra mulheres como expõe o Mapa da Violência 2015 Homicídio de Mulheres no Brasil177 entre 2003 e 2013 o número de vítimas do sexo feminino passou de 3937 para 4762 representando em 2013 um total de 13 homicídios femininos diários Mesmo levando em consideração uma percepção maior por parte das mulheres de que a violência doméstica deve ser denunciada tendo em vista o conhecimento sobre a Lei Maria da Penha Lei 113402006 não podemos deixar de refletir que mulheres continuam a sendo agre didas violência de todos os tipos continuam acontecendo mesmo sendo considerada crime O ranking do Brasil vem piorando interna cionalmente 5ª posição entre os 84 países de acordo com o Mapa da Violência 2015Homicídio de Mulheres no Brasil Sendo assim o poder público tem desenvolvido políticas que vi sem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardálas de toda forma de negligência discriminação exploração violência crueldade e opres são 2 REDES E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL A palavra rede vem do Latim rete isrede ou teia tem uma infinidade de significados entrelaçados de fios cordas cordéis arames dentre outros Sua definição extremamente abrangente vai desde um artefa to utilizado para a captura de peixes e animais a conceitos mais abstra tos Atualmente a discussão sobre redes ganha destaque no cenário e surge como uma ferramenta importante no enfrentamento do proces so de exclusão social Desta forma Castells aponta que 177 MAPA DA VIOLÊNCIA Rio de Janeiro FLACSO 2015 Disponível em www mapadaviolenciaorgbr Acesso em 09 de outubro de 2017 500 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Asi surge un nuevo tipo de estado que no es el estado nacion pero que no elimina el estado nacion sino que lo redefine El estado que denomino estado red se caracteriza por compartir la autoridad o sea la capacidad institucional de imponer una decision a lo largo de una red de instituciones Una red por definicion no tiene centro sino nodos de diferentes dimen siones y con relaciones internodales que son frecuentemente asimetricas Pero en ultimo termino todos los nodos son nece sarios para la existencia de la red 1998 p11 Possibilita maximizar as hipóteses de cumprir os projectos indi viduais e colectivos expressos pelas necessidades sociais e pelos valo res em novas condições estruturais CASTELLS 2005 p26 e inter ferir estrategicamente nessa moldura social propulsora de violência Ora se a sociedade investe na construção de mulher como ob jeto frágil prejudicada em seu desenvolvimento racional e usufruto de poder e patrocina a amputação da expressão de comportamentos dóceis e apaziguadores no homem estimulandoo para o exercício da agressividade através da agressão transforma mulheres em condição de ser dominada e homens enquanto dominantes ou seja alimentam constantemente relações desequilibradas Romper com essa base é bater de frente com outro sistema de ordem econômica e social o capitalismo fortalecedor do patriarca do Quando observamos essa retroalimentação entre capitalismo e patriarcado custa acreditar que seja possível o desenvolvimento de uma sociedade justa e igualitária entretanto quando há dominação há resistência e nesta surgem novas estratégias de luta contra uma so ciedade de classes e contra posições desiguais de homens e mulheres Em matéria de enfrentamento destacamos o movimento femi nista que introduziu críticas fortes ao patriarcado em três grandes fa ses conforme citado por Scavone 2008 p177 popularmente conhe cidas como três ondas do feminismo A fase universalista ou primeira onda tem seu marco mundial durante o século XIX e início do século XX especialmente na França Reino Unido Canadá e Estados Uni dos As reivindicações buscavam igualdade jurídica e política para as mulheres por exemplo direito ao voto acesso à instrução e profissão direito de se opor a casamentos arranjados poder de escolha A fase Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 501 diferencialista eou essencialista se desenvolveu ao longo da segunda metade até o final do século XX particularmente na França e Estados Unidos realizando críticas ao movimento anterior por ter focado so mente no campo de ações individuais não em prol de uma categoria social O discurso essencialista exalta a diferença sexual e conquista o direito da mulher ao próprio corpo direito à contracepção e ao abor to reflexões influenciadas por Simone de Beauvoir em seu livro O segundo sexo acesso ao trabalho sem permissão do marido França lutavam pelo fim da discriminação no entanto acesso à igualdade não é acesso à identidade Collins 2000 considerando o fato de que iguais não são idênticos E a fase pósmoderna ou terceira onda que traz consigo um desconstrucionismo apoiado em teorias dos sujeitos múltiplos afinal há muitas mulheres e muitos gêneros como apon ta Scholz 2011 Nesse tempo início do século XXI até os dias atuais tanto que Yannoulas 1994 p8 afirma que é necessário reconhecer que as diferenças também se localizam no interior do próprio sujeito mulher As novas mulheres e os novos homens podem se referir a esse corpus dialogar nele dado que não é um objeto ou um siste ma mas um espaço de circulação que atravessa as disciplinas e as realimenta Esse corpus feminista merece nutrirse de to dos os aportes convergentes e divergentes produzidos pelas mulheres sem se tornar uma doutrina única É importante que permaneça como espaço de circulação e diálogo permitindo às mulheres o desenvolvimento da palavra e da ação Yannoulas 1994 p15 Sob a influência da terceira onda voltada para demandas coleti vas direcionada para a efetivação de políticas públicas em todo terri tório brasileiro o governo Lula criou em 2003 a Secretaria de Políticas para Mulheres SPM A Secretaria estruturou o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres com várias metas e prioridades participou da elaboração do Projeto de Lei 45592004 que resultou na Lei Maria da Penha Lei nº 113402006 e lançou uma coleção de textos com enfoque no combate da violência doméstica no qual uma das publi cações trouxe o aprofundamento de conceitos de dois tipos de rede Rede de Atendimento e Rede de Enfrentamento A primeira com 502 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça preendida enquanto rede setorial pública restringese aos serviços especializados ou não que realizam o acolhimento da mulher e sua família Compõe essa rede especialmente os órgãos de assistência so cial justiça segurança pública saúde e ainda outros setores que direta ou indiretamente estão interligados ao problema como trabalho edu cação previdência social cultura e lazer Já a Rede de Enfrentamento diz respeito a um modelo participativo que possibilita a articulação de vários atores da rede de serviços gestão e controle social das políticas de gênero bem como serviços de atendimento e que se tece conti nuadamente segundo Inojosa 1999 com a mobilização de pessoas físicas eou jurídicas a partir da percepção de um problema que rom pe ou coloca em risco o equilíbrio da sociedade ou as perspectivas de desenvolvimento social A construção dessa rede é tão importante que é descrito na su pracitada Coleção que antes do lançamento do Pacto Nacional de En frentamento à Violência contra as mulheres em 2007 a atuação a nível nacional dos serviços da rede de atendimento à mulheres em situação de violência tendia à desarticulação e setorização Alguns estudos científicos178 indicam essa tendência em alguns estados bra sileiros que consequentemente fragilizam a rede e comprometem a proteção da vítima bem como o atendimento dos envolvidos no ciclo de violência 3 ENTRELAÇANDO OS FIOS Preocupados com a ausência de políticas públicas voltadas para coibir o índice de violência doméstica contra a mulher em 2013 a Promotora de Justiça da 3ª Criminal a Defensora Pública e o Juiz da Vara Espe cializada em Violência Doméstica no município de Barra do Garças MT situado a 500 km de Cuiabá capital do Estado de Mato Grosso se debruçaram sobre a norma jurídica a fim de analisar os pontos fracos da cidade em relação aos serviços de atendimento aos envolvi dos no ciclo de violência domésticafamiliar chegando a conclusão 178 Maceió Revista Brasileira de Tecnologias Sociais v3 n2 p1322 2016 Santa Catarina Revista O Mundo da Saúde v37 n4 p377384 2013 Minas Gerais Revista de Ciências Humanas v14 n1 p207255 2014 São Paulo Revista Texto e Contexto v19 n3 p417424 2010 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 503 que a estratégia possível de intervenção em curto médio e longo prazo girava em torno da articulação entre as diferentes instituições de aten dimento e defesa à mulher em situação de violência de prevenção à violência doméstica e familiar de responsabilização do autor do fato e de mobilização social pactuando princípios e diretrizes estruturantes com vistas a nortearem a operacionalização da Rede de Enfrentamen to alcunhada REDE DE FRENTE 31 Princípios da Rede de Frente Democracia base brasileira de organização societária na qual todos os atores membros possuem equânime poder de decisão no âmbito do projeto Interdisciplinariedade movimento de superação da disci plinaridade valorando a diversidade de conhecimento de todos da rede com objetivo de convergir várias áreas e obter abordagem coletiva Transdisciplinaridade termo criado por Jean Piaget visa a compreensão do mundo real a partir do aprofundamento em todas as disciplinas Neste caso às ligadas ao fenômeno da violência doméstica e suas mais variadas facetas Interinstitucionalidade a expressão popular uma andori nha só não faz verão reflete todo sentido do trabalho em rede Esse direcionamento oportunizou sucesso na execução do projeto afinal conquistaram a adesão de várias institui ções que se engajam durante quatro anos pelo fim da violên cia contra a mulher Integralidade práticas completas que possibilita a materialização do idealizado O projeto voltou o olhar não somente a vítima mas inclusive para a dinâmica da sociedade que produz desigualdade de gênero o autor de agressão tão menosprezado os infinitos atores que operam as políticas públicas e muitas vezes revitimizam mulheres as crianças e aos adolescentes que vivenciam o ciclo da vio lência o procedimento judicial tão moroso que desprotege Enfim integrar é ir além inovar e aumentar a capacidade de resposta ao problema da violência doméstica 504 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Transversalidade transcendência dos verticalismos e ho rizontalismos através da construção de trânsitos entre as disciplinas que abordam a questão da violência entre os gê neros 32 Diretrizes Estruturantes Eixo 1 Rede de AtençãoProteção Social da Violência Doméstica O objetivo neste eixo é possibilitar o atendimento da mulher em situação de violência doméstica dos filhos do autor do fato e dos demais familiares caso necessário através do Centro de Referência Especiali zado da Assistência Social CREAS179 A Rede de Frente percebeu a fragilidade da rede de serviços e passou a auxiliar em sua organização definindo fluxograma de encaminhamentos da mulher vítima e seus filhos reformando a Delegacia Especializada da MulherDEM e insti tucionalizando o Grupo Reflexivo para HomensGRH Acreditamos que não se consegue diminuir os índices de vio lência doméstica contra a mulher apenas defendendo a mulher em situação de violência e realizando campanhas preventivas visualizamos que o agressor ator principal desse tipo de vio lência precisa ser acompanhado psicossocialmente e não so mente ser punido pela legislação Extrato do Projeto180 O serviço operacionalizado em Barra do Garças conta com pro fissionais Assistentes Sociais e Psicólogos do Centro de Referência Especializado da Assistência SocialCREAS e Centro de Referência da Assistência SocialCRAS que desenvolvem atividades programa das uma vez por semana com dois grupos distintos o primeiro grupo composto por homens que estão na qualidade de suspeitos em come ter agressão contra mulher ou seja possuem alguma Medida de Pro teção decretada temporariamente e são notificados a participar das semanas de reflexão já o segundo grupo composto por homens que 179 MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO Projeto Rede de Enfrentamento da Violência Doméstica e Familiar de Barra do Garças e Pontal do Araguaia Rede de Frente Arquivos internos do MPMT 2013 180 Idem Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 505 foram condenados a comparecer obrigatoriamente no grupo reflexivo como penalização pelo crime cometido Até dezembro de 2016 308 homens participaram do Grupo Re flexivo para HomensGRH e apenas 26 reincidiram no crime o que demonstra a possibilidade de romper com o ciclo de violência através de uma abordagem participativa em que homens suspeitos ou condenados passam por um processo reflexivo sobre os conflitos ine rentes aos relacionamentos íntimos mensuração das perdas danos e prejuízos do comportamento agressivo e violento compartilham sen timentos angústias e preocupações decorrentes dos conflitos íntimos cumprem o programa de reabilitação imposto pelo Poder Judiciário e ainda são inseridos na rede de proteção social com finalidade de reduzir os danos na vivência da violência doméstica O CREAS tam bém realizou mais de 700 atendimentos envolvendo casos de violência contra a mulher entre os anos de 2013 a 2016181 Eixo 2 Aplicação humanizada da Lei 113402006 e do procedimento judicial no combate à violência contra a mulher Este eixo representa a experiência conjunta dos operadores do direito na busca de uma aplicação procedimental mais efetiva da Lei 113402006 bem como do diploma penal e processual correlato à violência doméstica e familiar contra a mulher ado tando alguns parâmetros na busca da humanização do procedi mento de apuração das infrações penais noticiadas mormente da inserção de uma dinâmica que possibilite resposta rápida e eficiente aos conflitos judiciais com foco para a relação familiar e a resolução sensível e positiva destes fatos compreendidos em um contexto de apoio psicossocial e do entendimento de que a resolução efetiva demanda mudança de modelo culturalsocial Extrato do Projeto Os resultados alcançados nesta diretriz de atuação foram em rela ção à celeridade do rito processual penal bem como contato com a ví tima no momento da denúncia vítima e autor do fato saem da DEM 181 Dados encaminhados pelo Centro de Referência Especializado da Assistência Social de Barra do GarçasMT ao Ministério Público do Estado de Mato Grosso 506 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça com data de realização da primeira audiência previamente designada pelo juiz nesta o indiciado já sai citado a apresentar defesa por escri to no prazo de 10 dias consoante o rito processual estabelecido pelo art 396 do Código de Processo Penal É encaminhado ao CREAS comu nicação para acompanhamento psicossocial e o suspeito notificado a comparecer no Grupo Reflexivo para HomensGRH Tal estratégia possibilitou maior visibilidade e publicidade das decisões judiciais Eixo 3 Plano de Educação Permanente e Capacitação de Agentes Sociais Um dos carroschefes da Rede de Frente é a educação perma nente dos profissionais que direta ou indiretamente realizam a pres tação de serviços públicos ao públicoalvo do projeto Imprescindível qualificar e humanizar o atendimento com fito a evitar revitimização Desde a criação da Rede anualmente são realizadas diversos cursos oficinas workshops e palestras nas instituições de defesa responsabi lização atenção e proteção Até o momento mais de 500 agentes par ticiparam de algum processo formativo Mister destacar a adesão de médicos peritos e demais profissionais do IML em re conhecer o ciclo da violência doméstica e repensar práticas humanizadas no de senvolvimento de suas atividades a inserção do tema no Curso Intro dutório para novos Policiais Militares do município que possibilitou mudanças de abordagem nas ocorrências e ainda o posicionamento do Delegado Civil em favor da humanização no atendimento im prescindível para uma postura diferenciada dos servidores no sentido de atender a vítima pela décima vez como se fosse a primeira visto que é obrigação do serviço operar sem julgamento ou discriminação de qualquer tipo afinal não há conhecimento da história de vida os aspectos sociais e psicológicos que levam essa mulher a manter uma relação abusiva Merece destaque também a palestra proferida pela Sra Maria da Penha Maia Fernandes que em abril de 2015 esteve em Barra do GarçasMT e contou sua história de vida há mais de três mil pessoas presentes no centro de eventos da cidade Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 507 Eixo 4 Núcleo Acadêmico de Pesquisa Conhecer e analisar os fatores que envolvem o problema da vio lência doméstica no município de Barra do Garças é essencial para alcançar as metas previstas pela Rede de Enfrentamento neste senti do a Universidade Federal de Mato GrossoCampus Araguaia iniciou projeto de pesquisa interinstitucional intitulado Violências Direitos Humanos e Geografia da Saúde vinculado ao Instituto de Ciências Humanas e Sociais posteriormente o Núcleo de Iniciação Científica da Faculdade Cathedral182 realizou pesquisa acadêmica a partir dos inquéritos policiais 2013 2014 e 2015 da Delegacia Especializada da Mulher e levantou dados sobre os bairros com maior índice de denún cia tipo penal recorrente perfil socioeconômico da vítima e do autor O conhecimento de que existe um esforço coletivo com a fina lidade de protegêlas pode proporcionar coragem às mulheres resi dentes em Barra do GarçasMT em tomar a decisão de romper com o ciclo de violência Tanto que apesar de dados do Sistema de Informa ções sobre Mortalidade SIM divulgados através do Atlas de Violên cia 2017 apontar Mato Grosso como um dos estados com maior taxa de mortalidade de mulheres 84 para cada 100 mil mulheres Barra do Garças obteve um retrocesso nos casos de feminicídio permanecendo com de taxa zero de letalidade por três anos consecutivos183 Eixo 5 Projeto Educacional e Cultural de Prevenção à Violência Do méstica nas Instituições de Ensino Visando atingir o público escolar alunos pais e professores a Rede de Frente promoveu mostra de vídeos estudantis nos anos de 2014 Enfrentamento à Violência Doméstica contra a Mulher 2015 Onde não há cultura predomina a violência doméstica e familiar e 2016 E ai Vamos discutir violência doméstica psicológica e moral totalizando 180 vídeos inscritos com mais de 400 alunos participan do seja produzindo o material seja em sala de aula em contato com a temática através das palestras de divulgação ou abordagem dos pro fessores Foi criado um blog informativo e Facebook como estratégia 182 Responsável pelo Projeto de Pesquisa Profª Drª Gisele Silva Lira Resende 183 Dados coletados no Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso Comarca de Barra do GarçasMT 508 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça midiática para divulgação das atividades da rede de enfrentamento wwwrededefrentenet As três mostras de vídeos estudantis homenagearam a Sra Naza ré de Souza Silva violentamente assassinada em Barra do GarçasMT aos 30 anos pelo seu excompanheiro no dia 26 de dezembro de 2012 este condenado a 16 anos de prisão 33 Percepção dos atores da Rede Realizamos uma pesquisa com os servidores governamentais que idealizaram o projeto e que permanecem engajados nessa seara com fito de compreender a visão destes sobre a eficiênciaeficáciaefetivi dade do trabalho desenvolvido os principais entraves para o pleno desenvolvimento da Rede e em quais aspectos o grupo precisa se re inventar De acordo com as entrevistas os membros enfatizaram que con sideram o trabalho da Rede eficiente eficaz e efetivo no combate a vio lência doméstica e familiar contra a mulher em razão da articulação bem como engajamento de diferentes instituições possibilitando um diálogo permanente entre os representantes com vistas ao enfrenta mento do problema Apontaram também a oportunidade de qualifi cação dos atores envolvidos no atendimento da família em situação de violência e destacaram a proposta inovadora de trabalho reflexivo com autores de violência contra a mulher o que demonstrou uma re gressão no número de reincidentes Em virtude das atividades serem planejadas e executadas conjuntamente o trabalho tem se desenvolvi do de maneira acessível disponível transparente e aberto a questões afins do tema em questão possuindo valores sólidos e coesos Ressal taram a característica do olhar do grupo voltado para todos os envol vidos no ciclo de violência e ainda comentaram sobre o papel da Rede no empoderamento de várias mulheres da cidade encorajandoas a romper o referido ciclo No que diz respeito aos entraves para o pleno desenvolvimen to dos trabalhos apontaram o pouco envolvimento e até ausência de representantes de algumas instituições sobrecarregando os que par ticipam integralmente ocorre que Inojosa 1999 aborda sobre essa percepção ao descrever que nas redes de compromisso social Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 509 Quando a adesão à rede social é institucional isto é quando quem adere é a instituição colocase um outro problema que é o da representação Muitas vezes no nascimento da rede social na hora em que se fazem as primeiras adesões em torno de uma ideiaforça a instituição é representada por um membro que ou já estava sensibilizado para o problema ou foi designado para representar Aí já nasce uma diferença importante que pode ter impacto sobre o futuro da rede Se o representante já estava ou no processo for sensibilizado o suficiente para abra çar a ideiaforça ele tenderá a tomarse um campeão do pro jeto isto é a fazer com que a instituição comprometase com a parceria Se ele foi apenas designado e assim continuou não estabelecerá qualquer compromisso nem pessoal nem institu cional com a rede Nesse caso a instituição poderá inserirse em outro momento ou não o fazer 1999 p136 Os membros citaram também ausência de dotação orçamentá ria própria para execução das atividades se tornando dependente de doações multas e transações penais visualizam a superação dessa di ficuldade com a transformação do grupo em Associação construção em andamento inexistência de ato governamental garantindo a re presentatividade institucional razão pela qual os membros executam suas atividades voluntariamente personalizando a ação ou seja a par ticipação é decorrente de afinidade pessoal com o tema manutenção estruturada e coesa de todas as instituições e parceiros que a com põem diante do seu caráter interinstitucional e multidisciplinar o que demanda pluralidade e conciliação de ideias sem perder o foco dos Eixos que a direciona e sustenta Foi apontado ainda a posição de iso lamento da Rede no que diz respeito a sua interação com outras ONG ou Associações relacionadas à violência doméstica contra mulher As reflexões dos membros entrevistados que compõe a Rede de Enfrentamento sobre a reinvenção do grupo em outras palavras re paginação da proposta no intuito de garantir impactos positivos na operacionalização das diretrizes construídas foram apontadas como de suma importância Elucidaram que os membros precisam se abas tecer de novas informações com fito de se despir dos preconceitos e teorias sexistas presentes no cotidiano e até mesmo atuar em outras frentes temáticas que se vinculam a questão da violência doméstica e familiar contra a mulher 510 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 4 CONSIDERAÇÕES Trabalhar em rede é inovador por ser uma nova estratégia de mudan ça de paradigmas da ação institucional na qual se procura fugir da ideia cada ator em sua caixinha rompendo com a gestão setorizada Tem ganhado espaço no cenário nacional por visualizar instituições governamentais não governamentais e comunidade em uma grande teia de múltiplas interações com objetivos em comum enfrentar algu ma questão social Ocorre que não é tarefa fácil ultrapassar os muros da burocracia e se aproximar da essência dos problemas sociais afinal o mundo é marcado por luta de egos e competição Deste modo co locar a cooperação institucional acima do esforço individual ouso a dizer que seja o maior desafio das políticas públicas pois insere todos como corresponsáveis por determinada situaçãoproblema A REDE DE FRENTE além da capacidade em instituir a ideia de cooperação institucional manteve até o presente momento as ati vidades a todo vapor mesmo diante das dificuldades de orçamento como apontada pelos entrevistados Além de estimular o seu dever enquanto servidor público o projeto proporcionou empatia por parte destes às mulheres vítimas e aos autores de agressão ao prestar um atendimento humanizado e desprovido de julgamentos Fortaleceu os relacionamentos interpessoais entre as instituições permitindo um olhar de parceria e mútua ajuda É nítido que a Rede de Enfrentamento é propulsora do desenvolvimento e expansão dos programas e serviços ofertados pela rede de atendimento quando analisamos o caminho percorrido Por exemplo ter um olhar diferenciado para o autor de agressão proporcionou a criação de um serviço de reflexão aos homens no CREAS e revelou impactos na reincidência destes na prática de violência doméstica Parcela desses homens não compreendem que diminuir a autoestima da sua companheira é um tipo de violência entretanto vivemos em uma sociedade violenta a qual não reconhece determinados atos como violentos e desta maneira a roda do ciclo vicioso continua a girar repetindo padrões até que é ofertado um momento para reflexão e seja possível desconstruir crenças e ressignificar o vivido Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 511 Observase muitos avanços com a atuação da Rede de Enfren tamento formada em Barra do GarçasMT no entanto encontramos alguns pontos frágeis podem provocar impactos no seu desempenho a Dificuldades das instituições em instituir a prática de notifica ção compulsória dos casos de violência portanto tornase primordial esgotar todas as possibilidades de diálogo com os profissionais a fim de entender quais motivos os levam a favorecer a subnotificação mes mo empoderados de conhecimento sobre a obrigatoriedade no cum primento deste e outros atos normativos b Ausência de qualificação dos membros e da própria rede in tersetorial em teorias de gênero Falar de violência doméstica é com preender como o patriarcado estipulou regras de uma relação civil possibilitando direitos sexuais praticamente sem restrições aos ho mens sobre as mulheres configurando como um tipo hierárquico de relação que se corporificou e se materializou em todos os espaços da sociedade como que gênero está interrelacionado com os sistemas capitalistas e racistas é olhar para os símbolos culturais que evocam representações para a necessidade de pensar na linguagem nas insti tuições e superar o binômio homemmulher masculinofeminino co locar o fenômeno do poder no centro da organização social de gênero analisar as estruturas sociais que incorporamos ao longo da vida e que interferem no nosso modo de pensar agir e sentir violência simbóli ca Os membros precisam compreender para uma ação qualificada na perspectiva de gênero c Dificuldades no engajamento institucional A presença de per sonificação da participação profissionais engajados por convicções individuais trajetória profissional e até pelo projeto éticopolítico de trabalho no combate a violência doméstica favorece a descontinui dade das ações quando há substituições de atores indisponibilidades hierárquicas e rompimento de vínculos institucionais Em suma a partir do levantamento das entrevistas dos resulta dos alcançados e literatura revelouse a efetividade do trabalho inter setorial na cidade de Barra do GarçasMT propulsionada pela Rede de Enfrentamento Não resta dúvidas que o movimento de cooperação e integração entre as instituições para um trabalho conjunto e contí nuo é o melhor caminho para reduzir os índices de violência domés tica e familiar contra a mulher que a proposta de enfrentamento por 512 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça intermédio de trabalho em rede fortalece instituições profissionais e comunidade afinal o poder deve ser direcionado nas mãos de todos REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL Rede de enfrentamento de violência contra as mulheres Co leção Enfrentamento da Violência contra as mulheres Secretaria de Políticas para as Mulheres Presidência da República 2011 Disponível em httpswww12senadolegbrinstitucionalomventendaavio lenciapdfsrededeenfrentamentoaviolenciacontraasmulheres Acesso em 09012018 BRASILPacto Nacional de pelo Enfrentamento à violência contra as mulheres Coleção Enfrentamento da Violência contra as mulheres Secretaria de Políticas para as Mulheres Presidência da República 2011 Disponível em httpwwwspmgovbrsobrepublicacoespu blicacoes2011pactonacional Acesso em 09012018 BRASIL Lei Maria da Penha Disponível em httpwwwplanalto govbrccivil03ato200420062006leil11340htm Acesso em 20122017 CASTELLS Manuel Hacia el estado red Globalización economica e instituciones políticas en la era de la información In SEMINÁRIO SOCIEDADE E REFORMA DO ESTADO Brasília 1998 Disponí vel em httpsuvirtualudemeducofilephp2131Documentos BibliografiaBasicaTema3CastellEstado20Redpdf Acesso em 20012018 CASTELLS Manuel 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abstração no feminismo Revista di gital EXIT Krise und Kritik der Warengesellschaft nº 8 Julho2011 Disponível em httpwwwobecoonlineorgroswithascholz15htm Acesso em 10012018 WALBY Sylvia Theorizing Patriarchy Oxford Basil Blackwell 1990 Disponível em httpslibcomorgfilesTheorizing20Patriarchy20 20Sylvia20Walbypdf Acesso em 20122017 YANNOULAS S C Iguais mais não idênticos Revista Estudos Fe ministas Florianópolis v 2 p716 1994 Disponível em httpwww journalufscbrindezphprefarticleview1628614827 Acesso em 18012018 514 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E INTERSECCIONALIDADE APONTAMENTOS SOBRE OS LIMITES DO SISTEMA PUNITIVO ESTATAL Elisa Borges Matos184 Zilda Manuela Onofri Patente185 Resumo O presente artigo se debruçou sobre o estudo de casos de mulheres em situações de violência doméstica no Aglomerado da SerraBelo Horizonte acompanhados durante nosso trabalho no Programa Polos de Cidadania programa de pesquisa e extensão da Universidade Federal de Minas Gerais Buscouse analisar alguns dos desdobramentos simbólicos históricos e punitivos da Lei Maria da Penha bem como avaliar as intersecções entre classe e gênero no âm bito dos casos analisados Evidenciouse a importância do reconheci mento da autonomia da mulher e de seu empoderamento perante as violências sofridas e a premente necessidade de se desenvolver possi bilidades de resolução do conflito externas ao poder punitivo estatal Palavraschave Violência Doméstica Criminologia Crítica Crimi nologia Feminista Justiça Restaurativa 184 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais Estagiária acadêmica da Clínica de Direitos Humanos da UFMG e da Divisão de Assis tência Judiciária DAJUFMG Email borgeselisamgmailcom 185 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais Estagiária acadêmica da Clínica de Direitos Humanos da UFMG Email zildaonofri gmailcom Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 515 1 INTRODUÇÃO O objeto do presente artigo consiste precipuamente em compreender as narrativas de mulheres em situação de violência doméstica e fami liar e através disso tecer observações quanto ao alcance do direito em especial do direito penal no que tange ao enfrentamento des sa demanda especialmente no contexto de vilas e favelas Para além de uma análise estrita do diploma legal da Lei Maria da Penha e sua aplicação buscase debater o desafio de harmonizar os mecanismos institucionais voltados à prevenção combate e redução da violência doméstica a um sistema penal garantista pautado pelo fim do massivo encarceramento de populações vulneráveis Para tanto o presente estudo debruçouse sobre a análise de casos de mulheres em situações de violência doméstica no Aglomerado da SerraBH acompanhados durante nosso trabalho enquanto estagiá rias do Programa Pólos de Cidadania programa de pesquisa e exten são universitária da Universidade Federal de Minas Gerais entre os anos de 2014 e 2015 O Programa Pólos atua em prol de grupos sociais e indivíduos com histórico de exclusão e trajetória de risco e utiliza metodologias como a pesquisaação mediação e teatro popular Trabalhamos em um núcleo localizado na Favela da Serra a maior favela da cidade Belo Horizonte que estava em atividade ali há mais de 16 anos e por isso mesmo gozava de notoriedade e confiança entre os moradores Dentre as atividades do programa era oferecido à população atendimento psicossocial orientações jurídicas encaminhamento institucional mediação e acompanhamento dos casos O trabalho era realizado em contínua articulação com a rede de serviços local como o Centro de Referência de Assistência Social CRAS e o Centro de Referência em Saúde Mental CERSAM Eram acompanhadas tanto demandas individuais quanto comunitárias devidamente registradas em uma ficha de anotação correspondente a cada caso bem como cada estagiário possuía seu caderno de campo para registros de suas atividades e observações No período em que trabalhamos no Progra ma Pólos de Cidadania tivemos contato com 10 de casos de violência doméstica que chegaram através de mulheres que sofriam ou haviam sofrido a violência sendo esta não necessariamente a demanda prin cipal dos atendimentos 516 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Diante disso a perspectiva da qual se parte no presente estudo é principalmente a narrativa destas mulheres sobre suas vivências Selecionamos alguns casos particulares que trazem consigo marcas e símbolos que notamos ser recorrentes em nosso espaço amostral Para narrálos adiante nos utilizaremos de nomes fictícios para proteção da identidade das pessoas envolvidas Através do levantamento qualitativo realizado sobre os casos lo gramos enumerar alguns temas recorrentes e complexos que acredi tamos ser fundamentais para compreender os limites do direito e as dinâmicas particulares das afetividades e relações familiares no con texto de marginalização das grandes favelas Dentre eles destacamos a dinâmica de compartilhamento de moradias em vilas e favelas e a expressão dos laços afetivos e familiares no território a independência financeira da mulher provedora e seu contraste com as recorrentes trajetórias masculinas de toxicomania encarceramento e difícil inser ção no mercado de trabalho e demais itens que serão analisados em maior profundidade nos tópicos a seguir 2 ESTUDO DOS CASOS I Erotismo silenciamento e a sutileza das violências conjugais Os casos estudados denunciam as limitações próprias do direito penal para tratar das dinâmicas de gênero Observamse peculiarida des que tangenciam a violência doméstica e a conexão que essa guarda com as esferas privadas de instituições como a família e o matrimônio especialmente porque os contextos de violência são marcados por di mensões de erotismo sexualidade e jogos de poder que devem ser cautelosamente consideradas Maria Filomena Gregori embasada na perspectiva teórica de Ro land Barthes constrói o conceito de cena onde a prática da linguagem no ambiente conjugal se constitui análoga ao exercício de um direito em busca não da realização de um objetivo específico comunicacional mas da afirmação de ambos enunciadores como coproprietários des se direito GREGORI 2012 p 178 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 517 As réplicas argumentativas nesse ensejo não visam o consenso mas potencializam o dissenso a fim de culminar em um momento de cena onde os jogos de poder e dinâmicas de gênero chegam a seu ápice Isso se desdobra nas circunstâncias que encerram cenas enume radas pela pesquisadora quais sejam o cansaço dos parceiros a inter rupção pela chegada uma terceira pessoa ou a substituição da troca de réplicas pela agressão GREGORI 2012 p179 No caso de Tâmara e Rogério o dissenso e tensionamento que a levou a nos procurar dizia respeito à sua inserção no mercado de trabalho à qual seu marido se opunha irredutível A dinâmica pre sente nas cenas deste casal era particularmente alarmante uma vez que Tâmara é deficiente auditiva e Rogério pastor de uma igreja evan gélica Diante disso observase que o aprofundamento do desnível de poder entre eles vai além do gênero consubstanciandose também no domínio da linguagem por parte de Rogério em face do déficit comu nicacional de Tâmara Esta disparidade obstaculiza a potencialidade de resistência e afirmação de Tâmara através de réplicas argumentati vas propiciando conflitos e cenas protagonizadas por seu companhei ro quase que unilaterais Tâmara comunicavase conosco precipuamente por meio de bi lhetes através dos quais nos apresentou com naturalidade seu rela cionamento com Rogério As violências psicológicas eram múltiplas sutis e majoritariamente caracterizadas por notável desejo de controle e dominação por parte de seu companheiro Rogério cerceava a liber dade de Tâmara impedindoa de sair desacompanhada de casa Tare fas cotidianas como fazer compras ou pagar contas eram realizadas em companhia das irmãs de Rogério por quem Tâmara nutria des confiança As tarefas de casa como atender telefone e pequenas tarefas domésticas eram repassadas à filha do casal Letícia de 10 anos Maria Filomena Gregori constrói o conceito de cena onde as ví timas no que tange aos estereótipos atribuídos ao gênero feminino por exemplo se adequam à uma pressuposta condição de vulnerabili dade intrínseca e à construção de um nãosujeito mulher GREGO RI 2012 Os jogos eróticos e as relações de afetuosidade construídas por Tâmara que afirmava amar Rogério sugerem a análise de Gre gori onde a busca de prazer e a eventual reprodução de vitimização ou culpabilização entre os parceiros está ancorada pela reprodução de 518 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça papéis de gênero bem definidos Ainda destacase dentre seus relatos o fato de que Rogério não a autorizava a comprar suas roupas íntimas Tâmara relatou que seu companheiro insistia em lhe comprar roupas íntimas de numeração menor que seu corpo o que lhe causava des conforto e humilhação Jogos de poder e erotismo atravessam visceralmente o conflito de Tâmara que apaixonada por seu companheiro mantémse su bordinada às violências que atingem sua autoestima e autonomia Ao mesmo tempo em que permanece passiva e aparentemente resignada busca às costas de seu companheiro encontrar um emprego contra riandoo A contradição entre submissão e resistência entre reiteração do estereótipo de gênero feminino e a busca pela autonomia pulsa no interior das tramas conjugais II A vítima virtuosa e a manutenção das relações violentas Conforme elabora Gregori a agressão indica um caminho de ruptura que representa uma potência de convergência quando se es vai estimulando a formação de um novo tipo de arranjo e a partir disso um estímulo ao prazer Ressaltase que a autora não pretende dessa forma justificar as relações violentas tampouco encobrir as di nâmicas de violência entre os gêneros mas sim elucidar como as di nâmicas que se desdobram entre os casais se utilizam muitas vezes da violência como fonte de prazer e dos jogos de vitimização na afir mação de poderes atribuídos ao gênero feminino ou masculino por exemplo GREGORI 2012 p182 A estrutura institucional para o recebimento da notícia crime da representação ou da queixa o despreparo dos profissionais da justiça186 para seu registro e os trajetos procedimentais e processuais penais posterioresseguintes elucidam e reforçam os jogos de poder que permeiam as relações eróticas e sexuais que eventualmente são tecidas dentro de relacionamentos violentos e abusivos Isto pois ao invés de estimular a reflexão crítica sobre os papéis de gênero que as mulheres desempenham dentro de relacionamentos sustentam uma estrutura bem definida e rígida onde se faz necessário definir a todo momento os papéis de vítima e o agressor 186 Aqui nos referimos tanto a policiais no âmbito da lavratura de um boletim de ocorrência quanto ao Ministério Público e Magistrados no âmbito da forma lização da representação criminal ou apresentação de queixacrime Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 519 No relato de nossas assistidas os sentimentos são retratados como apresenta Gregori como uma acumulação paciente de fatos Nele guarda a mulher o papel de benevolência e compreensão irres trita dentro do microcosmo familiar GREGORI 2012 p187 Assim a narrativa que sustentará eventual inquérito policial e processo penal será frequentemente uma narrativa que exterioriza a violência da vida conjugal como um acúmulo de sofrimentos não escolha e passividade embora se observe uma tendência à manutenção dessas relações de violência GREGORI 2012 p191 É o que se observa no caso de Josiane cujo companheiro fazia uso abusivo de drogas e possuía largo histórico de violência e agressões físicas contra ela e os filhos do casal Carlos enfrentava dificuldades para manterse em um trabalho e passou por trajetória de rua quando do agravamento de sua situação de toxicomania e instabilidade psicológica Apesar disso sempre que seu companheiro retornava à casa Josiane o acolhia alimentava emprestava dinheiro e cobria todos os seus gastos Josiane oscilava quanto à possibilidade de divórcio relatando se importar muito com Carlos e se preocupar com a possibilidade de ele não ter onde morar caso ela opte por colocar um fim à relação Em ne nhum momento Josiane expõe seus desejos mas demonstra assumir integralmente a função de responsável pelo cuidado do companheiro A narrativa de Josiane todavia não voltavase à busca da punição de seu companheiro Assim diferentemente do percurso narrativo es tudado por Gregori a construção que Josiane faz de si ao relatarse enquanto vítima virtuosa e esposa diligente passiva e dedicada não tem como objetivo final obter a punição de seu companheiro apenas indica um reconhecimento de função e papel social que ela atribui a si mesma enquanto provedora esposa e cuidadora de Carlos No relato de Josiane o status de vítima virtuosa surge como es pécie de argumento criado por ela e para ela que alicerça a manu tenção do status quo Nesse sentido entendese que a inexistência da pretensão de punir o companheiro se deve dentre outros fatores à natureza do serviço prestado pelo Programa Polos de Cidadania Isto pois sua atuação é notoriamente diversa daquela oferecida por delega cias e demais instituições componentes do sistema penal conferindo maior flexibilidade às demandas dos assistidos e liberdade para que 520 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça nos apresentassem seus conflitos fora dos moldes restritivos exigidos pela lógica jurídica e criminal III Interseccionalidade e o desafio das dinâmicas habitacionais em vilas e favelas É cediço que a interpretação sobre as dinâmicas das cenas nos relacionamentos conjugaisafetivos a reprodução do papel do não sujeito bem como a manutenção de relações de violências não pode ser uma chave de leitura desarticulada das particularidades próprias à vivência de cada mulher Ademais categoria gênero não é uma categoria homogênea que se sobrepõe às outras chaves de interpretação histórica SCOTT 2016 como expõem as peculiaridades das situações de violência narradas por nossas assistidas Uma particularidade determinante à compreensão destas rela ções de violência em contextos de marginalidade é a condição precá ria de moradia aliada às práticas de divisão do terreno entre famílias que habitam favelas vilas ocupações e aglomerados urbanos Nesse ensejo é possível observar a repetição de histórias em que diversos componentes de uma ou mais famílias habitam a mesma residência ou o mesmo lote Em vista da conformação urbana típica de vilas e favelas o recurso mais utilizado para contemplar a ampliação dos nú cleos familiares seja pelo estabelecimento de novas uniões eou pelo nascimento de crianças consiste na construção de espaços anexos a lote já pertencente à família de um dos envolvidos popularmente denominado puxadinho Assim o compartilhamento destes espaços em grande proximi dade a vários membros da família extensa do casal traz a questão da violência doméstica para o âmbito interno de toda a dinâmica fami liar Por isso o rompimento do relacionamento não significa necessa riamente o rompimento do contato de forma definitiva com o excôn juge dado que este permeia muitos outros âmbitos da vida familiar social e comunitária da mulher O caso de Sandra é ilustrativo desta particularidade Sandra pos sui dois filhos pequenos com Anderson que é ciumento e possui traje tória no sistema penal Segundo narra quando propôs a separação ao marido este reagiu com violência agredindoa e afirmando se não Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 521 for comigo não vai ser com mais ninguém Após relatar o episódio Sandra expressa que gostaria que Anderson deixasse a casa mas que caso ele se oponha estaria satisfeita se ele construísse uma casa para si no andar de cima do imóvel em que moravam juntos A história de Rute também expõe como as relações familiares e interpessoais se imiscuem nas histórias de violência Rute após amea ças e agressões por parte de seu companheiro Leonel decide pôr fim ao relacionamento sair da casa onde moravam juntos passando a mo rar em um terreno cedido por seu excunhado Lá construiu sozinha seu próprio barraco uma vez que tinha experiência como assistente de pedreiro Resta nítido portanto que as relações diretas e complexas com os membros da família extensa no contexto habitacional de vilas e fave las é um exemplo de fator interseccional imprescindível à elaboração de estratégias de combate e prevenção à violência doméstica pois são fatores determinantes na saída da mulher em situação de violência ou do lar e consequentemente nas condições afetivas e práticas de um divórcio IV A prole no seio da violência familiares e doméstica À complexidade da situação de moradia somase o envolvimento da família extensa nos desdobramentos da decisão de separação tais como a definição da guarda e da moradia fixa dos filhos menores dentre outros elementos que em face das circunstâncias habitacionais geram impactos em todos os componentes dessa rede familiar Laços afetivos entre pais e filhos bem como a eventual caracterização de uma alienação parental por exemplo é um elemento que dificulta o en frentamento da violência doméstica pela via punitiva Esta problemática se evidencia em casos como o de Catarina em que sua filha de 06 anos Stefane após presenciar as brigas entre os pais e sob a influência de seu pai disse à mãe não quero falar com você porque você não quer namorar com o papai No caso de Eliane seu companheiro de quem pretendia se di vorciar após inúmeras situações de agressões físicas fora preso em virtude de processo penal pelo crime de roubo Nesse contexto apesar do histórico de violência doméstica os filhos do casal relatavam sentir a falta do pai bem como temiam por seu bemestar 522 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Rute por sua vez enfrentava o desafio de acolher e buscar atendi mento psicoterápico para seu filho de 05 anos que passou a apresentar dificuldades de socialização e elevados níveis de estresse após presen ciar os conflitos entre seus pais e as agressões sofridas pela mãe De outro lado estão os casos em que o genitor incorre em agres sões perpetradas também contra os filhos como narrado por Josiane e Maria das Graças Em ambos os casos os filhos se posicionaram em favor do divórcio enquanto que as mães permaneceram relutantes a tomar tal decisão O elemento da violência nesse ensejo difundese entre outras si tuações que a possível separação permeia e o tratamento penalizador dessa situação não permite uma análise sistêmica e cautelosa da rea lidade particular que cada mulher porta O atendimento psicosocial por exemplo não é uma medida de proteção ostensivamente ofertada embora a disposição sobre tal atenção básica seja discriminada no tex to normativo187 3 LEI MARIA DA PENHA NOTAS SOBRE EMANCIPAÇÃO FEMINISTA E CRIMINOLOGIA CRÍTICA Inegáveis são os progressos alcançados por meio das reivindicações do movimento feminista no âmbito da legislação penal brasileira ao longo do tempo Carmen Hein e Salo de Carvalho 2006 citam como exemplos notáveis desse progresso a criação de Delegacias Especia lizadas no Atendimento a Mulheres DEAMs incorporadas como política pública e reformas da legislação tais como a inclusão da vio lência doméstica como circunstância agravante causa de aumento de pena e qualificadora de crimes destacandose os casos de lesão corpo ral188 muito frequentes no âmbito desta sorte de violência 187 Conforme o disposto no artigo 29 da Lei 11340 que diz Os Juizados de Vio lência Doméstica e Familiar contra a Mulher que vierem a ser criados poderão contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar a ser integrada por pro fissionais especializados nas áreas psicossocial jurídica e de saúde 188 Nesse sentido destacamos algumas alterações legislativas relevantes no âmbito do Código Penal I criação da circunstância agravante por crime cometido mediante violência contra a mulher conforme artigo 61 II f redação dada pela Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 523 Na esteira dessas conquistas observase a mudança na interpre tação doutrinária e jurisprudencial dos crimes praticados contra a mulher a exemplo da rejeição da tese da legítima defesa da honra nos crimes de feminicídio motivados por adultério que já foi amplamente aceita nos tribunais Além disso destacase o advento das leis 11106 de 2005 e 12015 de 2009 que tiveram papel fundamental na evolução da legislação penal em prol da liberdade sexual feminina e do reco nhecimento da autonomia e capacidade da mulher No ensejo destes dispositivos legais foram revogados e modi ficados tipos penais discriminatórios e arcaicos como os crimes de sedução rapto e adultério e enfim removeuse em caráter definitivo o termo mulher honesta do Código Penal Promoveram ainda a re vogação dos dispositivos189 que permitiam a extinção de punibilidade com o casamento da vítima com seu ofensor nos crimes sexuais e também a alteração da redação do crime de estupro no sentido de abarcar as condutas punidas anteriormente nos termos do crime de atentado violento ao pudor passando a admitir como sujeito passivo homens e mulheres Ao longo de suas mobilizações o movimento feminista expôs como os próprios instrumentos normativos que discorrem sobre os crimes sexuais por exemplo são capazes de reproduzir dinâmicas de gênero violentas protegendo um ideal de feminino específico mate rializado no conceito de mulher honesta190 por exemplo ou atribuin Lei 11340 de 2006 II criação da modalidade especial do crime de lesão cor poral leve no caso de violência doméstica constante no artigo 129 9º e causa de aumento de pena aos crimes de lesão corporal grave e seguida de morte artigo 129 10º redação dada pela Lei 10886 de 2004 III criação da modali dade qualificada de homicídio por feminicídio nos termos do art 121 2º VI e 2ºA destacandose que a partir disso o feminicídio passou a ser incluído no rol de crimes hediondos vide Lei 8072 1º I e da causa de aumento de pena quando for o feminicídio praticado nas circunstâncias previstas no 7º redação dada pela lei 13104 de 2015 189 Dispositivo correspondente ao antigo artigo 108 do Código Penal que den tre as causas de extinção da punibilidade elencava a possibilidade de extinção pelo casamento do agente com a ofendida nos crimes contra os costumes definidos pelos capítulos I II e III do título VI da parte especial Após pas sar por algumas alterações incluindo o alarmante retrocesso trazido pela Lei 64161977 que ampliou seu escopo para qualquer hipótese em que a vítima viesse a se casar ainda que com terceiros este dispositivo somente veio a ser revogado em 2005 com a Lei 11106 190 A definição deste termo poderia variar de acordo com a doutrina Destacamos o entendimento de Nelson Hungria para quem a mulher honesta era não so 524 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça do maior importância às violências falocêntricas como expresso no crime de estupro que antes da Lei 12015 exigia a configuração de conjunção carnal para sua consumação Ante o exposto observase como a participação do movimento feminista por meio de reivindicações e pressões políticas foi capaz de alterar a dinâmica desempenhada pelo sistema penal de justiça principalmente ao elucidar as especificidades da violência de gênero contida nas relações sociais e mais especificamente nas relações do mésticas e familiares Nesse ensejo a partir da Lei 11340 conhecida como Lei Maria da Penha os espaços competentes ao enfrentamento da violência doméstica ultrapassaram a dimensão privatista do confli to elucidando que as relações de violência contra a mulher têm evi dentes desdobramentos no espaço público Ao considerar as dinâmicas de gênero em um viés amplo a Lei Maria da Penha propõe uma integralidade no tratamento da violência doméstica expressa na aliança entre as medidas assistenciais de pre venção e de contenção da violência Assim extrapolase uma abor dagem exclusivamente jurídica do conflito sinalizando a importância da articulação entre os serviços de assistência já existentes na rede de atendimento à mulher vítima de violência Além disso a Lei cria um sistema jurídicoprocessual que se desvincula da abordagem exclusi vamente penal possibilitando à mulher em situação de violência ins truir no mesmo processo questões cíveis que permeiam o conflito tais como a ação de separação e pensão alimentícia CAMPOS CAR VALHO 2011 p144 Em primeira análise tal dispositivo legal demonstra compatibili dade com os preceitos do direito penal minimalista pois não endossa a política criminal punitivista a partir da criação de novos tipos pe nais não dando margem à criminalização primária191 A Lei Maria da mente aquela cuja conduta sob o ponto de vista da moral sexual é irrepreensí vel senão também aquela que não rompeu com o minimum de decência exigi do pelos bons costumes1947 p 139 apud MONTENEGRO 2015 p 49 e de Edgard Noronha para quem é aquela honrada de decoro decência e compos tura enquanto que a mulher desonesta não é somente a que faz mercancia do corpo mas é também a que por gozo depravação espírito de aventura etc entregase a quem requesta 1995 p 137138 apud MONTENEGRO 2015 p 49 191 Por criminalização primária entendese todo ato e efeito de sancionar uma lei penal material que incrimina ou permite a punição de certas pessoas ZAFFA Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 525 Penha portanto não produz a priori um aumento da repressão pe nal pois trabalha com base em condutas criminalizadas já existentes considerando os efeitos que tal conduta traz nas dimensões sociais e tangíveis do conflito CAMPOS CARVALHO 2011 p150 Contudo ao considerar os desdobramentos processuais da Lei Maria da Penha verificase a supressão de alguns benefícios proces suais aplicados frequentemente aos crimes de menor potencial ofensivo tais como a suspensão condicional do processo e a transação penal192 Nesse sentido ainda que não tenha um apelo direto ao punitivismo temse um agravamento da criminalização secundária193 cujo im pacto reflete precipuamente em populações cuja trajetória de vida é marcada pelo sistema penal194 Com a exclusão dos atos de violência doméstica do rol dos crimes considerados de menor potencial ofensi vo investigados e acusados por tais condutas passam a enfrentar um cenário mais rigoroso com maior probabilidade de encarceramento seja por prisão processual ou prisão penal Diante disso não surpreendem as dificuldades narradas pelas as sistidas do Programa Polos de Cidadania em deflagrar persecução pe nal O que se observou em todos os casos estudados foi um profundo dilema quanto a proceder ou não ao registro do boletim de ocorrência Para estas mulheres tal decisão vinha acompanhada de dimensões de dúvida angústia e medo em face das consequências que poderia acar retar em suas vidas e em suas famílias Dentre os principais motivos para tal relutância narrados ao lon go dos atendimentos destacamse a hipossuficiência em relação ao companheiro e decorrente insegurança quanto ao sustento familiar RONI et al 2003 p 43 192 A Lei Maria da Penha ao vedar expressamente em seu artigo 44 a aplica ção da Lei dos Juizados Especiais Lei nº 909995 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher obstou consequentemente a oportunidade de suspensão condicional do processo e de transação penal pre vistas nos artigo 89 e 76 da Lei 9099 193 Por criminalização secundária entendese qualquer ação punitiva exercida sobre pessoas concretas através da atuação dos agentes policiais judiciários e penitenciários ZAFFARONI et al 2003 p 43 194 De acordo com o Sumário Executivo do Conselho Nacional de Justiça CNJ do ano de 2017 o perfil dos acusados encontrados por meio de pesquisa quan titativa nos Juizados ou Varas de Recife Maceió e Belém por exemplo cor respondem ao perfil do sistema carcerário são negros pardos com baixo nível de escolaridade e baixa renda 526 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça em caso de prisão o temor pelo agravamento das violências e a esperan ça de recuperação da relação de afeto com o agressor Além desses um dos fundamentos mais relevantes à presente análise consiste na rejeição da mulher à hipótese de seu companheiro ou excompanheiro ser preso visto que seu desejo principal é simples o cessar da violência Paola Stuker 2016 ao estudar os significados da renúncia à re presentação criminal por mulheres em situação de violência conjugal trouxe à baila a prática de algumas mulheres que se utilizam dos ins trumentos de registro de ocorrência representação penal e renúncia enquanto elementos de poder e resistência na relação entre vítima e agressor STUKER 2016 p121 O uso estratégico destes mecanis mos jurídicopenais indica principalmente a não passividade da mu lher perante as relações violentas e abusivas A presença do Estado se faz aqui importante para possibilitar o preenchimento da lacuna inerente à desigualdade de poderes entre homens e mulheres ainda que esta resistência se manifeste predominantemente nas mulheres pertencentes a classes mais privilegiadas Stuker expõe ainda o contexto em que as próprias autoridades policiais intolerantes com os casos onde há renúncia impõem a ne cessidade da representação criminal para solicitação de medida prote tiva como o afastamento do cônjuge agressor do lar STUKER 2016 p96 Há nessa prática uma violação ao próprio princípio emanci pador a que tal legislação se propõe Se a Lei Maria da Penha por um lado representa a possibilidade de emancipação da mulher em situação de violência por descortinar violências que se desenvolvem normalmente no âmbito privado a intervenção autoritária do Estado para forçar a representação penal está na contramão do respeito à au tonomia da mulher Para garantir direitos básicos em situação de risco tais como medidas protetivas a mulher se vê coagida a prosseguir com a ação e a aceitar os eventuais desdobramentos lesivos que tal medida pode causar à sua vida familiar e pessoal Os alarmantes índices de renúncia chegam a alcançar 90 dos casos CAVALCANTI 2010 que adentram ao o sistema penal e ex põem a ineficiência do sistema penal para solucionar demandas de gênero tão complexas como esboça a Lei 113402006 Contudo não nos parece razoável que esses elevados índices de renúncia à repre Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 527 sentação legitimem o prosseguimento da ação penal mesmo após a retratação da vítima conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal na ADI 4424DF Tal decisão além da práxis das autoridades policiais retratada por Stuker parecem reproduzir uma lógica em que mais uma vez a mulher em situação de violência é engessada na posição de vítima e destituída da autonomia para gerir a intervenção do Estado Penal na dinâmica dos seus conflitos conjugais Em suma reconhecemos a importância da criminologia feminis ta especialmente por trazer à esfera pública dinâmicas de violências que antes eram restritas ao âmbito privado familiar e doméstico Isso se deve é claro à promulgação da Lei n 113402006 mas inicialmente à edição do Informe n 542001 por parte da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos frente ao paradigmático caso de Maria da Penha Maia Fernandes O caso Maria da Penha foi um marco quanto à responsabilização do Esta do brasileiro por omissão dada a morosidade em processar e punir o agressor bem como ao reconhecimento da necessidade de implemen tar políticas públicas que abordem as violências de gênero a partir de um viés amplo não somente repressor A disposição normativa sobre um problema social complexo que envolve as dinâmicas sociais familiares e a conformação de normas de gênero está longe de solucionar ou exaurir todas as dimensões do conflito Nesse sentido embora a Lei Maria da Penha por si só não constitua instrumento de emancipação feminista é inegável sua im portância histórica enquanto fruto de uma conquista política dos movimentos feministas e simbólica ao reconhecer a natureza socio cultural da violência de gênero e a necessidade desta ser prevenida e combatida pela sociedade e pelo Estado 4 CONCLUSÕES PARCIAIS A JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO VIA POSSÍVEL As mulheres em situação de violência doméstica e familiar que recorrem ao sistema penal geralmente necessitam uma interven ção de caráter urgente como as medidas protetivas de afastamento do agressor do lar Nesses casos as mulheres que possuem melhores 528 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça condições sócioeconômicas têm a possibilidade de sair de casa ou re correr a outros serviços de apoio particulares tais como como psicó logos especializados ou hospitais privados Às vítimas em situações de vulnerabilidade social por sua vez o sistema penal aparece como a via principal para a solução da situação de violência via de regra de sarticulada da oferta precária de serviços públicos previstos na Lei Maria da Penha como abrigos e centros de apoio com serviço social e hospitais CNJ 2017 p39 Por conseguinte os dados referentes às mulheres que acessam o sistema penal reivindicando aplicação da Lei Maria da Penha não re fletem o perfil das mulheres passíveis de sofrer tal violência mas sim o perfil daquelas que têm o sistema penal como primeira via de reso lução do conflito Diante disso as decepções dessas mulheres com o sistema penal são múltiplas e convergem para o fato do sistema penal apropriarse do conflito a partir do necessário reforço dos papéis de vítima e agres sor sem espaço para encontrar soluções que contemplem os desdo bramentos particulares da violência doméstica em suas vivências O prosseguimento da ação penal mesmo com a retratação da mulher em situação de violência doméstica nos crimes de lesão corporal como aduz a ADI 4424 é ilustrativo da visão da mulher enquanto vítima e sujeito hipossuficiente que necessita proteção mesmo que às custas de sua autonomia decisória CNJ 2017 p38 A violência doméstica tem a peculiaridade de se formar no con texto de relações íntimas e de afeto desenvolvidas no seio familiar O foco principal da mulher em situação de violência não está na re tribuição do mal causado no ímpeto punitivo mas sim no romper com ciclo de violência e restabelecer paz no cerne familiar Conforme exposto são ilustrativos e recorrentes os casos em que inexiste na mu lher o ímpeto de persecução penal visto que a manutenção da coe são familiar e reconstrução de vínculos afetivos saudáveis se mostra mais importante especialmente quando há filhos envolvidos Nesse ensejo as saídas propostas pela Justiça Restaurativa apre sentam mecanismos inovadores e pertinentes para administração des ses conflitos concebendo a vítima como protagonista de sua própria Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 529 história CNJ 2017 p29 Diante dos casos analisados vislumbrase a potência da Justiça Restaurativa na efetivação de direitos ao tencionar a atuação em rede na abordagem das partes envolvidas no conflito incluindo filhos e família extensa abordar o problema de forma ampla e interseccional e operar através da capilarização de serviços dentro da rede A partir dessa abordagem a vítima é compreendida de forma in tegral representando o foco central de cuidado e atenção ao longo do processo de resolução do conflito Salientase sua incidência em pon tos relevantes como por exemplo o estresse póstraumático Os resultados sobre a Justiça Restaurativa na resolução de con flitos de violência doméstica e familiar ainda são incipientes e seus os módulos de formação ainda estão em discussão o que limita as pos sibilidades de uma avaliação sistêmica mais aprofundada Contudo cabe pontuar que a reparação de danos almejada pela Justiça Restau rativa não pode se limitar por exemplo a meros pedidos de descul pas muito menos funcionar como uma via de aproximação insegura e indesejada entre agressor e vítima Os processos restaurativos nesse ensejo não devem impor a aproximação nem tampouco o afastamen to entre o agressor e a vítima sob pena de promover uma verdadeira devolução do conflito às partes diretamente interessadas CNJ2017 As relações de gênero de maneira geral são desenvolvidas em nítida desproporcionalidade de poder Nesse ensejo importa observar cuidadosamente a dinâmica das narrativas tanto para que a revitima ção da mulher não aconteça quanto para que o homem agressor não se vitimize O tema é certamente delicado e exige uma formação sóli da dos profissionais envolvidos através por exemplo do oferecimen to de oficinas de capacitação É premente ainda o desenvolvimento de métodos que possibilitem a maior disseminação de informações às mulheres para auxiliar na qualificação de suas escolhas e assim evitar que o Estado escolha por elas De todo o modo a possibilidade de trabalhar com os homens agressores para além do punitivismo é valiosa desde que aconteça sob o foco do fortalecimento da mulher em situação de violência Nesse contexto o trabalho integrado frente às particularidades do relacio namento abusivo em questão apontam para uma solução do conflito potencialmente mais efetiva 530 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Por fim mais do que buscar uma solução única que sirva de for ma universal para a multiplicidade de violências que se sobrepõe no âmbito familiar do conflito ressaltamos a possibilidade de construir uma prática a nível estatal como a justiça restaurativa que estimule a autonomia da mulher de forma horizontalizada sem pressupor sua incapacidade para determinar seus próprios desígnios REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CALAZANS Myllena CORTES Iáris O processo de criação aprova ção e implementação da Lei Maria da Penha Brasil Lei Maria da Pe nha comentada em uma perspectiva jurídicofeminista Rio de Janeiro Lumen Yuris p 3963 2011 CAMPOS Carmen Hein de CARVALHO Salo Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica a experiência brasileira Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídicofeminista Rio de Janeiro Lumen Juris 2011 CAVALCANTI Stela Valéria Soares de Farias Violência doméstica contra a mulher no Brasil análise da lei Maria da Penha n 11340 06 2010 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA CNJ Sumário Executivo Justiça Pesquisa Direitos e Garantias Fundamentais Entre práticas re tributivas e restaurativas A Lei Maria da Penha e os avanços e desafios do Poder Judiciário 2017 DEBERT Guita Grin Desafios da politização da Justiça e a Antropo logia do Direito Revista de Antropologia p 475492 2010 p 488 GREGORI Maria Filomena Cenas e Queixas um estudo sobre rela ções violentas mulheres e feminismo São Paulo Paz e TerraANPOCS 1993 HUNGRIA Nelson LACERDA Romão Cortes de Comentários ao Código Penal t VIII Rio de Janeiro Forense 1947 MONTENEGRO Marilia Lei Maria da Penha uma análise crimino lógicocrítica Editora Revan 2015 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 531 NORONHA E Magalhães Direito Penal v III 22ª ed São Paulo Saraiva 1995 SCOTT Joan W Uma categoria útil para análise histórica Cadernos de Historia UFPE n 11 2016 STUKER Paola Entre a cruz e a espada significados da renúncia à representação criminal por mulheres em situação de violência conjugal no contexto da Lei Maria da Penha 2016 SUPREMO TRIBUNAL FEDERALSTF Ação Direta de Inconstitu cionalidade 4424 Distrito Federal 2012 ZAFFARONI Eugenio Raúl BATISTA Nilo ALAGIA Alejandro SLOKAR Alejandro Direito penal brasileiro primeiro volume Teo ria Geral do Direito Penal Rio de Janeiro Revan 2003 4ª edição maio de 2011 532 A LIMITAÇÃO DA SEXUALIDADE FEMININA PELOS CÓDIGOS PENAIS COMO FORMA DE MANUTENÇÃO DO PATRIARCADO Júlia Somberg195 Resumo O presente trabalho pretende lançar luz ao tratamento dis pensado à sexualidade feminina quando observada sob o viés do Di reito Penal mais especificamente quando se trata de crimes de estu pro perpetrados contra mulheres Sabese que por ser parte e fruto da sociedade o Direito Penal está inserido na lógica patriarcal e machista e por esta razão reproduz as ideias de que a mulher para ser digna de proteção do Estado precisa cumprir com seu papel históricoso cial predeterminado isto é estar subordinada às vontades masculinas bem como ter a todo custo sua sexualidade reprimida Assim temse a intenção de demonstrar de que forma as condutas e hábitos sexuais de mulheres vítimas de violência sexual são historicamente questiona dos com a finalidade de amenizar a conduta do estuprador com a jus tificativa de que a mulher teria facilitado ou provocado referido crime Para tanto o trabalho irá analisar criticamente a tipificação do crime de estupro nos Códigos Penais Brasileiros demonstrando como a ex pressão da sexualidade feminina bem como seu desvio daquilo que é aceito socialmente é comumente utilizado em seu desfavor fazendo com que a mulher seja duplamente vitimizada primeiramente pelo estuprador e em segundo lugar pelo aparato estatal Palavraschave Estupro Direito Penal Sexualidade Machismo Pa triarcado 195 Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais Integrante do Projeto de Extensão Diverso Núcleo Jurídico de Diversidade Sexual e de Gênero Estagiária do Ministério Público de Minas Gerais Email juliasom bergalvesgmailcom Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 533 1 INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objetivo principal formular uma crítica à tipificação do crime de estupro nos Códigos Penais considerandoa da forma que é feita como uma forma de manutenção da cultura pa triarcal uma vez que as vítimas majoritariamente mulheres têm sua sexualidade e seus comportamentos sexuais frequentemente questio nados como forma de amenizar quando não justificar e abonar a ação do homem que pratica este tipo de crime A partir então da crítica fe minista ao Direito o que se busca é a análise da influência do machis mo e dos marcadores de gênero impostos pela sociedade nos casos em que se tem a mulher como sujeito passivo e o homem como polo ativo dos crimes de estupro196 Nesse raciocínio o artigo jogará luz ao tra tamento dado pelo Direito Penal no que diz respeito à mulher e suas liberdades sobretudo a sexual evidenciando a falsa tutela Andrade 2005 p 78197 deste ramo do Direito em relação às mulheres vítimas Neste ponto o que se quer demonstrar é a existência de uma se gunda punição pelo próprio Direito instrumento que em teoria de veria proteger às mulheres vítimas de estupro que não se adequam aos inúmeros padrões sociais Em um primeiro momento a mulher é vítima imediata do estupro que é cometido em seu desfavor resultan do em diversas sequelas consequências físicas e psicológicas recor rentes deste tipo penal Em um segundo momento a mesma vítima terá o seu caráter sua honestidade e dignidade colocados em julga mento em razão de seu comportamento e de sua sexualidade isto é a construção legal do estupro leva em consideração o comportamento da vítima com o objetivo de diminuir a magnitude do crime Girard HennetteVauchez 2012 p 56198 Dessa forma partindo da lógica que o Direito Penal é construído majoritariamente por e para homens pode ser considerado parte da estrutura de dominação masculina e consequentemente instrumento 196 Aqui cabe dizer que os casos em que homens são vítimas de estupro não estão sendo ignorados No entanto serão analisados aqueles em que se tem mulheres como vítimas em razão de serem elas as mais atingidas pela lógica patriarcal 197 ANDRADE Vera A soberania patriarcal o sistema de de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher Revista Sequência nº 50 p 71102 2005 198 GIRARD Charlotte HENNETTEVAUCHEZ Stéphanie Théories du genre et théorie du droit Savoiragir nº 20 p 5359 2012 534 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça de opressão às mulheres Olsen 2009 p 150199 Por isso pretendese analisar a forma extremamente desigual sobre a qual o Direito trata a sexualidade de homens e mulheres sendo vista como uma das formas de afirmação da masculinidade para eles enquanto é considerada um desvio de caráter para elas Montenegro 2015 p 52200 Assim como toda a estrutura patriarcal arraigada na sociedade e suas instituições a diferenciação de tratamento entre as sexualidades masculinas e femininas acaba sendo naturalizada legitimada e perpe tuada pelo Direito Portanto o artigo terá como objetivo principal a análise do tratamento do Direito Penal no que diz respeito à sexualida de feminina sobretudo nos casos de estupro levando em consideração que tanto a legislação quanto a doutrina estão inseridas em uma lógica machista e patriarcal para as quais a mulher que não cumpre com seu papel imposto pela sociedade não parece ser merecedora da mesma tu tela e o mesmo cuidado quando comparada àquela que não o faz 2 METODOLOGIA A metodologia empregada para o cumprimento dos objetivos do tra balho será dividida em três partes Em um primeiro momento preten dese fazer uma breve introdução teórica à Teoria Feminista do Direi to e sua aplicação ao Direito Penal bem como problematizar qual é o lugar da mulher para este âmbito do Direito extremamente marcado pelo machismo e patriarcado Posteriormente o trabalho analisará de forma crítica e relacionada às teorias feministas e de gênero a tipifica ção do crime de estupro e suas circunstâncias nos Códigos Penais de 1830 1890 e 1940 atual com base nos estudos feitos pela professo ra Marília Montenegro201 tentando demonstrar como a sexualidade feminina foi e ainda é questionada como forma de valoração de um possível merecimento do crime de estupro aos quais são submetidas Em seguida serão apresentadas as considerações finais 199 OLSEN Frances El sexo del derecho In RUIZ Alícia Identidad femenina y discurso jurídico Buenos Aires Editora Biblos p 137156 2000 200 MONTENEGRO Marília Lei Maria da Penha uma análise criminológico crí tica 1ª ed Rio de Janeiro Editora Revan 2015 201 A partir da obra Lei Maria da Penha uma análise criminológicocrítica so bretudo nos itens 112 113 e 114 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 535 3 A NECESSIDADE DE UMA CRÍTICA FEMINISTA AO DIREITO PENAL Para o início da breve análise à crítica feminista ao Direito pri meiramente há que se desconstruir a noção de neutralidade asse xualidade e ageneridade do Direito Ao contrário da visão que que as ciências jurídicas tradicionais tentam passar a prática ainda é muito diferente Afinal tal como coloca Carol Smart o Direito é sexista o Direito é masculino e finalmente o Direito tem gênero Smart 2000 p 34202 Partindose da teoria feminista do Direito temse que não só o sistema penal incluindo os Poderes Legislativo e Judiciário e o sistema carcerário mas todo o Direito é fundamentado conforme as nuances do patriarcado e portanto sobre uma visão masculina da sociedade Nesse sentido O Direito constitui uma enorme parcela de hegemonia cultural dos homens numa sociedade como a nossa e uma hegemonia cultural significa que aceitar uma visão da realidade específica de um grupo dominante é considerado como sendo normal no enquadramento da ordem natural das coisas mesmo por quem na realidade lhe está subordinado É assim que o Direito con tribui para manter a posição dominante DAHL p 6 1993203 Assim temse o Direito enquanto produto da sociedade patriar cal e por isso construído e consolidado sob o ponto de vista masculi no reflete e protege valores que atendem às necessidades dos homens Facio 1999 p 30204 e usualmente define direitos e deveres das mu lheres enquanto indivíduos dependentes dos interesses masculinos Nesse sentido foi a análise de Simone de Beauvoir quando a autora diz que o homem define a mulher não em si mas em relação a ele ela não 202 SMART Carol La teoría feminista y el discurso jurídico In BIRGIN Haydée El Derecho en el género y el género en el Derecho Editora Biblos p 3171 2000 203 DAHL Tove Stang O Direito das Mulheres uma introdução à teoria do direito feminista Fundação Calouste Gulbenkian 1993 204 FACIO Alda Hacia otra teoría crítica del Derecho Santiago Género y Dere cho LOM p 1544 1999 536 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça é considerada um ser autônomo além de dizer que a mulher não é senão o que o homem decide que seja Beauvoir 1970 p 10205 O que se vê a partir da análise da teoria e da prática do Direito é que mesmo nas ocasiões em que a legislação visa proteger os inte resses e necessidades das mulheres como é o exemplo da tipificação do crime de estupro pelos Códigos Penais a aplicação da lei por ser feita por indivíduos moldados e influenciados pela pela lógica patriar cal acabam desfavorecendo e deslegitimando as mulheres Jaramillo 2000 p 122206 como será demonstrado adiante Vera Andrade coloca que além das violências sexuais sofrida pelas mulheres elas ainda são vítimas da violência estatal e em suas palavras além da violência sexual representada por diversas con dutas masculinas estupro atentado violento ao pudor etc a mulher se torna vítima da violência institucional plurifacetada do sistema que expressa e reproduz por sua vez dois grandes tipos de violência estrutural da sociedade a violência da rela ções sociais capitalistas a desigualdade de classes e a violência das relações sociais patriarcais traduzidas na desigualdade de gênero recriando os estereótipos inerentes à estas duas for mas de desigualdade o que é particularmente visível no cam pos da violência sexual A passagem da vítima mulher ao longo do controle social formal acionado pelo sistema penal implica nesta perspectiva vivenciar toda uma cultura de discriminação humilhação e estereotipia ANDRADE 2012 p 131132207 Ademais a pesquisadora ainda faz brilhante análise acerca da se letividade do sistema penal o qual segundo ela escolhe tanto crimino sos quanto vítimas Os primeiros os quais a autora chama de a clien tela do sistema penal Andrade p 82 2005208 são majoritariamente homens jovens pertencentes às classes socioeconomicamente desfavorecidas No mesmo sentido levandose em consideração que a dupla autorvítima é dentro do Sistema Criminal uma relação 205 BEAUVOIR Simone de O segundo sexo São Paulo Difusão Européia do Li vro 4ª ed 1970 206 JARAMILLO Isabel C La crítica feminista al derecho In WEST Robin Gé nero y teoria del derecho Bogotá Siglo de Hombres Editores p 103133 2000 207 ANDRADE p 131132 2012 208 ANDRADE Vera RP Pelas mãos da criminologia o controle penal para além da desilusão Rio de Janeiro Editora Revan 2012 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 537 de causa e consequência há também uma seletividade no que diz respeito às vítimas Andrade 2005 p 82209 Assim o que se vê é que embora a igualdade formal seja prevista constitucionalmente a prática parece deixála de lado uma vez que mulheres e homens bem como suas sexualidades são tratados de for ma extremamente desigual perante o Direito tanto no próprio Código Penal quanto em sua aplicação jurisprudencial Nesse raciocínio há que se problematizar o papel do Código Penal no que diz respeito à estigmatização da mulher tendo em vista que não é razoável qualquer tipo de categorização baseada em sua sexualidade situação que nunca ocorreu com os homens em nenhuma das versões do CPB Por exem plo por muito tempo as expressões mulher honesta e mulher vir gem estiveram presentes do CP embora seus equivalentes masculinos nunca tenham constado da legislação Seguindo esta mesma linha de raciocínio Marília Montenegro afirma que a crítica que se faz ao Di reito Penal é que não existe qualquer possibilidade de categorizar a mulher após a Constituição Não existe no Código Penal a expressão homem honesto ou homem virgem destarte não poderia existir di ferenciação entre as mulheres Montenegro 2015 p 54210 E ainda segundo a autora Infelizmente grande parte da doutrina penal foi apática e ape nas reproduziu o que fora escrito pelos autores contemporâ neos do Código de 1940 Poucos criticaram e raros foram aque les que falaram na inaplicabilidade de tais artigos Os autores de Direito Penal pátrio mesmo nas suas edições mais recentes e posteriores à Constituição continuavam dedicando várias páginas para diferenciar mulher honesta das desonestas e das virgens211 MONTENEGRO 2015 p 54 Diante de tal situação problematizar e criticar duramente o trata mento dado à mulher mediante a utilização de termos referentes à sua sexualidade valorar positiva ou negativamente um crime perpetrado contra elas é medida que se impõe urgentemente como será demons trado a seguir 209 Idem 210 MONTENEGRO p 54 2015 211 Idem 538 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 4 A MULHER NOS CRIMES DE ESTUPRO PREVISTOS PELOS CÓDIGOS PENAIS Neste item do trabalho pretendese analisar de que forma a mulher foi e ainda é tratada em algumas partes das seções destinada aos cri mes de estupro tanto no Código Penal de 1830 quanto nos de 1890 e 1940 sendo este considerado antes e depois da Lei 12015 de 2009 na tentativa de demonstrar a presença da cultura patriarcal na legislação que como será demonstrado atua na manutenção do status quo no que diz respeito à limitação e controle da sexualidade feminina 41 O Código Criminal do Império 1830 Primeiramente será analisado o Código Penal de 1830 Em sua seção III no capítulo II intitulado como Dos crimes contra a segu rança da honra temse no art 219 a definição de estupro como o ato de deflorar mulher virgem com menos de dezessete anos sem a necessidade de violência para a configuração do crime estando pre sentes todos os elementos quando existisse o defloramento da mulher virgem menor de 17 anos Montenegro 2015 p 41212 Daí inferese que o real objetivo deste dispositivo não era proteger a dignidade da mulher mas na verdade garantir a manutenção do padrão de com portamento cunhado pela sociedade qual seja aquele em que a se xualidade é subjugada ao único coletivo admitido em nossas leis a família Silva 1983 p 56213 Assim tendo a família patriarcal como a base dos valores so ciais defendidos a categoria de mulher digna de proteção para o Di reito Penal era aquela que permanecia com o bem que lhe tornava merecedora da tutela jurídica a virgindade Nas palavras de Iara Silva leiase virgindade e honestidade da mulher protegida historicamente e entendase sexualidade da mulher reprimida historicamente a fim de ficar assegurada a legitimidade da reprodução dentro da família Silva 1983 p 56214 E nas palavras da professora Marília Montene 212 MONTENEGRO p 41 2015 213 SILVA Lillian P Sistema penal campo eficaz para a proteção das mulheres In BORGES Paulo CC Org Sistema penal e gênero tópicos para a emanci pação feminina São Paulo Editora Cultura Acadêmica 2011 214 Idem Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 539 gro fica claro que a segurança e a honra protegida por esse capítulo era a da família e ainda a preocupação com a perda do pátrio poder Montenegro 2015 p 42215 Como se não bastasse o estuprador estaria isento de pena isto é o crime teria sua punibilidade extinta se ele se casasse com a vítima Neste caso o Direito Penal não só atua mais uma vez a favor do ho memestuprador e contra a mulhervítima como também tem como objeto de tutela o patriarcado uma vez que Se justificava em vista de uma sociedade repressora da sexuali dade feminina A mulher deveria casar virgem Caso ela tivesse mantido relações sexuais antes do casamento estaria inviabili zando um futuro matrimônio por isso tornavase necessário garantir o casamento com aquele que a violou uma forma de reparação do dano MONTENEGRO 2015 p 52216 Isto é tal dispositivo exime o homem que se casa com a mulher estuprada de qualquer responsabilidade colocandoo como autor de uma espécie de favor isto é o favor de se casar com sua vítima como se a mulher ao casar com seu algoz deixasse de sofrer todas as conse quências de um estupro Ainda no Código de 1830 seu art 222 também tipifica como cri me de estupro a conduta de ter cópula carnal por meio de violência ou ameaça com qualquer mulher honesta Necessário se faz o enten dimento do que significa neste contexto ser uma mulher honesta Para o Direito a honestidade da mulher nada tem a ver com qualidade de caráter mas sim com sua sexualidade Isto é Nos costumes absorvidos pelo Direito honesta é aquela mu lher que tinha sua sexualidade controlada pelo marido ou pelo pai Pouco importa se ela é cumpridora de seus deveres se paga suas contas em dia Os dicionários jurídicos no Brasil registra vam que honesta era a mulher que tinha recato por seus atos de decência PEREIRA 2000 p 54217 215 MONTENEGRO p 42 2015 216 MONTENEGRO p 52 2015 217 PEREIRA Rodrigo C Direito amor e sexualidade Anais do II Congresso Bra sileiro de Direito de Família p 5359 2000 540 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Neste artigo como no anterior importante analisar que o legisla dor insere a figura da mulher honesta que analisando tal dispositivo com seu respectivo parágrafo inferese que para o legislador mulher honesta era aquela não considerada prostituta Assim há uma clara diferenciação sobre quais mulheres poderiam protagonizar o papel de vítima isto é quais eram merecedoras da proteção do Direito Penal pois caso contrário passava da condição de vítima para provocadora instigadora do crime cometido em seu desfavor Montenegro 2010 p 138218 Tal afirmação é confirmada neste mesmo dispositivo legal quando o legislador penaliza o crime cometido contra mulher hones ta por meio da prisão entre três e doze anos e diminui a pena para o intervalo entre um mês a dois anos se a vítima fosse prostituta Concluise então que a honra e segurança presentes no título do capítulo e tuteladas por este código eram na verdade da família e principalmente do patriarcado caracterizado neste caso pela figura do pátrio poder Montenegro 2015 p 142219 42 O Código Republicano 1890 Passando para o Código Penal de 1890 algumas mudanças foram feitas mas nenhuma delas no sentido de progresso no que diz respeito à diferenciação de mulheres em razão do comportamento sexual já que a mulher nos crimes sexuais continuava a ser tratada como vir gem honesta e prostituta Montenegro 2015 p 44220 Primeiramen te o título passou a ser Dos crimes contra a segurança da honra e ho nestidade das famílias e do ultraje público ao pudor demonstrando mais uma vez como o Direito Penal estava preocupado na realidade com a manutenção do patriarcado mediante a administração e regula mentação da sexualidade feminina bem como com a manutenção da instituição casamento em conformidade com o status quo da subjuga ção e limitação da sexualidade feminina Silva 1983 p 61221 218 MONTENEGRO Marília Da mulher honesta à lei com nome de mulher o lugar do feminismo na legislação penal brasileira Videre Dourados MS nº 03 p 137159 2010 219 MONTENEGRO p 142 2015 220 MONTENEGRO p 44 2015 221 SILVA p 61 1983 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 541 Em seguida no art 268 o CP coloca que configurava crime estuprar mulher virgem ou não mas honesta Novamente o códi go classifica mulheres entre honestas e não honestas e mantém a substancial diminuição da pena no caso de a vítima ser prostituta e segundo Montenegro mais uma vez entendese que o simples fato de a mulher não ser prostituta ou pública fazia com que fosse con siderada honesta como no Código anterior Montenegro 2015 p 45222 Retomando a discussão acerca do que significava ser mulher honesta temse que esta caracterização tem íntima relação com o pa drão de mulher e de feminilidade cunhado pela sociedade qual seja pautado na maternidade e na fidelidade recato e virgindade como uma sexualidade condizente com sua idade e estado civil Correspon de dizer que a mulher honesta representa o pólo oposto da prostituta SILVA apud MARTINS 2009 p117223 Para Silva mais uma vez fica demonstrado que a legislação concernente aos crimes sexuais vem revestida ao longo de sua formação de implicações da sexualidade em sociedade no sentido de disci plinar a primeira através de um estatuto a fim de preservála como matriz a ser observada por todos SILVA 1983 p 62224 Importante ressaltar ainda que o Direito Penal tem importante papel na consolidação do patriarcado através da construção de uma moral conservadora que tem como um dos objetos principais a tute la da mulher como um ser passivo obediente e nãosexual Segundo Silva isto significa que para os juristas a lei penal não se destina somente a definir infrações mas a criar o poder disciplinador que garanta o efeito de se apropriar do indivíduo e adestrálo Silva 1983 p 60225 222 MONTENEGRO p 45 2015 223 MARTINS Simone A mulher junto às criminologias de degenerada à vítima sempre sob controle sociopenal Revista de Psicologia Fractal vol 21 nº 01 p 111124 2009 224 SILVA p 62 1983 225 SILVA p 60 1983 542 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 43 Código Penal atual 1940 Passamos então para a análise do Código Penal vigente atual mente embora tenha passado por diversas mudanças ao longo do tempo Em sua parte especial na parte destinada aos crimes contra os costumes mais precisamente no art 213 a mulher continua como única opção do pólo ativo do crime de estupro no qual persiste a ca tegorização de mulher honesta e virgem Alguns pequenos avanços de fato foram consolidados no Có digo de 1940 como por exemplo a exclusão da diferenciação da pena para estupros cometidos contra as mulheres consideradas honestas e as prostitutas questão que foi alvo de críticas para os doutrinadores da época tal como colocou Edgard Noronha A meretriz estuprada além da violência que sofreu não suporta outro dano Sem reputação e honra nada tem a temer como consequência do crime Noronha 1995 p 105 1995 apud Montenegro 2015 p 48226 questão que de monstra novamente como a honra e reputação de uma mulher é in trinsecamente ligada à sua sexualidade Montenegro p 48 2015227 Neste ponto destacase que embora o adjetivo honesta tenha sido retirado do texto relativo ao crime de estupro ele permaneceu em re lação ao crime nomeado como posse sexual mediante fraude art 215 e de acordo com o doutrinador Nelson Hungria configurava mulher honesta aquela que não vive no claustro nem no bordel justa mente quem mais pode ser vítima do crime donde logicamente a ne cessidade de proteção legal Hungria 1947 p 139 apud Montenegro 2015 p 49228 e ainda conceitua a mulher desonesta como aquela que por gozo depravação espírito de aventura etc entregase a quem requesta Hungria N p 139 1947 apud Montenegro p 49 2015229 Desde 1940 o Código Penal felizmente passou por diversas al terações sendo a mais recente a lei 1201509 que finalmente passa a tutelar a dignidade sexual em detrimento dos costumes No entanto o que se vê na prática é que apesar das diversas reformas sofridas pelo Código de 1940 e a vigência da Constituição de 1988 alguns dos dou trinadores de Direito Penal não levaram em consideração a completa 226 NORONHA Edgard M p 105 1995 apud MONTENEGRO p 48 2015 227 MONTENEGRO p 48 2015 228 HUNGRIA N p 139 1947 apud MONTENEGRO p 49 2015 229 Idem Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 543 inconstitucionalidade por exemplo da categorização das mulheres entre honestas e virgens Para Montenegro grande parte da doutrina penal foi apática e apenas reproduziu o que fora escrito pelos autores contemporâneos de 1940 Poucos criticaram e raros foram aqueles que falaram na inaplicabilidade de tais dispositivos Montenegro 2015 p 54 2015230 Então se antes da Constituição de 1988 tais aspectos já eram absurdos depois de sua vigência além de inaceitável vai na contramão do princípio básico da igualdade de gênero 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A conclusão que se extrai após o final de toda a análise preten dida para o trabalho é que o Direito Penal contribui e muito para a perpetuação e manutenção da cultura patriarcal que tem como um de seus elementos básicos o controle da sexualidade feminina Saffioti 2015 p 51231 Tal situação demonstra que o Direito Penal está longe de atender aos anseios das lutas feministas por liberdade igualdade e emancipação Ao contrário ele apenas reproduz o pensamento retró grado e enraizado na sociedade de que a mulher para ser considerada digna de proteção estatal não deve usufruir de sua sexualidade Assim O fato é que a sexualidade feminina é a questão que mais des perta discriminação Historicamente o exercício da sexualida de da mulher foi condicionado a ser exercido somente com a fi nalidade de reprodução Assim o controle social manifestase essencialmente pela regulação moral da sexualidade feminina SILVA 2011 p 12232 Entendese que essa perpetuação do entendimento de que a mu lher que não se comporta segundo os padrões exigidos pela sociedade embasada no pensamento patriarcal não deve ser protegida ou tute lada da mesma forma que aquela que se enquadra nos referidos pa drões é uma situação preocupante e problemática tendo em vista que 230 MONTENEGRO p 54 2015 231 SAFFIOTI Heleleith Gênero patriarcado e violência São Paulo Expressão popular 2ª ed 2015 232 SILVA p 12 2011 544 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça garante a manutenção do status quo além de comprovar que o Direito Penal tem como objetivo mediato a limitação e restrição às liberdades das mulheres Conclusão semelhante foi extraída pela importante pesquisa de senvolvida por Vera Andrade na qual afirma que Num sentido forte o SJC233 salvo situações contingentes e excepcionais não apenas é um meio ineficaz para a proteção das mulheres contra a violência particularmente da violên cia sexual que é o tema da pesquisa como também duplica a violência exercida contra elas e as divide sendo uma estratégia excludente que afeta Isto porque se trata de um subsistema de controle social seletivo edesigual tanto de homens como de mulheres e porque é ele próprio um sistema de violência ins titucional que exerce seu poder e seu impacto também sobre as vítimas E ao incidir sobre a vítima mulher a sua complexa fenomenologia de controle social que representa por sua vez a culminação de um processo de controle que certamente ini cia na família o SJC duplica em vez de proteger a vitimação feminina pois além da violência sexual representada por diver sas condutas masculinas estupro atentado violento ao pudor etc a mulher tornase vítima da violência institucional pluri facetada do sistema que expressa e reproduz por sua vez dois grandes tipos de violência estrutural da sociedade a violência das relações sociais capitalistas a desigualdade de classes e a violência das relações sociais patriarcais traduzidas na desi gualdade de gênero recriando os estereótipos inerentes a estas duas formas de desigualdade o que é particularmente visível no campo da violência sexual ANDRADE 2005 p 7576234 Diante do exposto é certo que o Direito Penal coloca limites à liberdade sexual feminina uma vez que a violência contra a mulher é perversa ela não é aleatória ou definida apenas por circunstâncias específicas mas usada como uma arma para punir a mulher que ul trapassar os limites para ela fixados e serve para aterrorizála Baker 2015 p 272235 atuando então como instrumento de manutenção da lógica patriarcal 233 Sistema de Justiça Criminal 234 ANDRADE p 7576 2005 235 BAKER Milena G A tutela da mulher no direito penal brasileiro Rio de Janei ro Editora Lumen Juris 22ª ed 2015 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 545 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE Vera RP Pelas mãos da criminologia o controle penal para além da desilusão Rio de Janeiro Editora Revan 2012 A soberania patriarcal o sistema de de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher Revista Sequência nº 50 p 71102 2005 BAKER Milena G A tutela da mulher no direito penal brasileiro Rio de Janeiro Editora Lumen Juris 22ª ed 2015 BEAUVOIR Simone de O segundo sexo São Paulo Difusão Européia do Livro 4ª ed 1970 BRASIL Código Criminal de 1830 Disponível em httpwwwplanal togovbrccivil03leisLIMLIM16121830htm Acesso em agosto de 2017 BRASIL Código Penal de 1890 Disponível em httpwwwplanalto govbrccivil03decreto18511899d847htm BRASIL Código Penal de 1940 Disponível em httpwww2cama ralegbrleginfeddeclei19401949decretolei28487dezembro 1940412868publicacaooriginal1pehtml Acesso em agosto de 2017 BRASIL Lei 12015 de 2009 Disponível em httpwwwplanaltogov brccivil03ato200720102009leil12015htm Acesso em agosto de 2017 DAHL Tove Stang O Direito das Mulheres uma introdução à teoria do direito feminista Fundação Calouste Gulbenkian 1993 FACIO Alda Hacia otra teoría crítica del Derecho Santiago Género y Derecho LOM p 1544 1999 GIRARD Charlotte HENNETTEVAUCHEZ Stéphanie Théories du genre et théorie du droit Savoiragir nº 20 p 5359 2012 JARAMILLO Isabel C La crítica feminista al derecho In WEST Ro bin Género y teoria del derecho Bogotá Siglo de Hombres Editores p 103133 2000 546 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça MARTINS Simone A mulher junto às criminologias de degenerada à vítima sempre sob controle sociopenal Revista de Psicologia Fractal vol 21 nº 01 p 111124 2009 MONTENEGRO Marília Da mulher honesta à lei com nome de mu lher o lugar do feminismo na legislação penal brasileira Videre Dou rados MS nº 03 p 137159 2010 Lei Maria da Penha uma análise criminológico crítica 1ª ed Rio de Janeiro Editora Revan 2015 OLSEN Frances El sexo del derecho In RUIZ Alícia Identi dad femenina y discurso jurídico Buenos Aires Editora Biblos p 137156 2000 Disponível em httpequisorgmxwpcontent uploads201601S12pdf Acesso em Agosto de 2017 PEREIRA Rodrigo C Direito amor e sexualidade Anais do II Con gresso Brasileiro de Direito de Família p 5359 2000 SAFFIOTI Heleleith Gênero patriarcado e violência São Paulo Ex pressão popular 2ª ed 2015 SMART Carol La teoría feminista y el discurso jurídico In BIRGIN Haydée El Derecho en el género y el género en el Derecho Editora Biblos p 3171 2000 SILVA Lillian P Sistema penal campo eficaz para a proteção das mu lheres In BORGES Paulo CC Org Sistema penal e gênero tópi cos para a emancipação feminina São Paulo Editora Cultura Acadê mica 2011 SILVA Iara MI Direito ou punição Representação da sexualidade fe minina no Direito Penal Dissertação de mestrado pela UFSC Floria nópolis 1983 547 NÃO ME VEJO NA PALAVRA FÊMEA ALVO DE CAÇA CONFORMADA VÍTIMA A INSUFICIÊNCIA DO SISTEMA DE JUSTIÇA FRENTE ÀS DEMANDAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Laura Gigante Albuquerque236 Domenique Assis Goulart237 Resumo Ao analisar a violência doméstica contra as mulheres en tendese que este é um fenômeno mais complexo do que as nar rativas sobre o tema sugerem Em que pese a mulher em muitas situações esteja numa posição vulnerável à violência esse enqua dramento fixo e unívoco acaba invisibilizando a complexidade desse sujeito mulher bem como sua capacidade de agência e resis tência Sendo necessário romper com essa ideia engessada e cons tante da posição de vítima a qual reforça uma lógica patriarcal de docilização será realizada uma análise sobre a complexidade das relações violentas Para tanto partese de uma abordagem teórica crítica pautada por estudos interdisciplinares do fenômeno da vio lência das questões de gênero e das suas interfaces com o Direito 236 Mestranda do Programa de PósGraduação em Ciências Criminais da Ponti fícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Especialista em Ciências Penais pela PUCRS Graduada em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS 237 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS Bolsista de Iniciação Científica CNPq pelo Núcleo de Pesquisas em Direito Penal e Criminologias UFRGS Cofundadora e exassessora Jurídica na GRITAM Grupo Interdisciplinar de Trabalho e Assessoria para Mulheres do SAJUUFRGS 548 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Desse modo central questionar qual é o sujeito mulher tutelado pelas ferramentas institucionais paternalistas oferecidas a fim de que se possa romper com o silenciamento o enquadramento e a essencialização da figura mulher vítima Palavraschave Violência doméstica violência contra as mulheres gênero sistema penal resistências 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Assim como outros movimentos e fenômenos sociais a violência de gênero contra as mulheres também apresenta uma disputa de narrati vas tanto no que concerne ao seu entendimento quanto em relação às melhores intervenções para tentar solucionar ou ao menos oferecer algumas respostas a problemática Nesse contexto o presente traba lho versa sobre a necessidade de se romper com a leitura hegemônica atual a qual coloca as mulheres que sofrem violência doméstica numa relação binária e fixa de agressorvítima como sujeitos apassivados e sem voz dependentes da intervenção de um sistema penal que há muito já se encontra falido A justificativa para o debruçamento sobre tal tema é não apenas a invisibilização das especificidades das mulheres que sofrem violên cia doméstica mas também o quanto o regime de verdade construído sobre o tema acaba por se colocar como amarras e engessamentos das potências e capacidades das próprias mulheres que se encontram em tal contexto Para conseguirem acessar o sistema de justiça e também em virtude de todo o julgamento por parte dos atores jurídicos elas muitas vezes compram essa imagem de si mesmas a de um sujeito cuja agência e voz encontramse totalmente interditados A música escolhida para intitular o presente trabalho de autoria de Juliana Strassacapa merece ser referenciada justamente pela sub versão que propõe da posição da mulher tanto pela forte performance no vídeo clipe quanto pelos trechos que seguem Quem não sem do res Aceita que tudo deve mudar Eu não me vejo na palavra Fêmea alvo de caça Conformada vítima Prefiro queimar o mapa Traçar de novo a estrada Ver cores nas cinzas E a vida reinventar E um ho Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 549 mem não me define Minha casa não me define Minha carne não me define Eu sou meu próprio lar Strassacapa 2016 Assim de uma forma pretensamente transgressora e a partir da inspiração trazida pela música e de um constante diálogo com ela serão trazidos à tona alguns questionamentos a essa posição estática de mulher e de vítima que vem sendo reproduzida acriticamente A metodologia utilizada no presente artigo caracterizase primor dialmente por uma pesquisa teórica que parte de estudos interdisci plinares acerca dos fenômenos da violência do poder das relações de gênero bem como das suas interfaces com o Direito Buscase fugir de leituras e respostas monolíticas acerca do tema a partir da apro ximação entre estudos jurídicos filosóficos e conceitos provenientes da psicologia Para além da pesquisa bibliográfica o presente trabalho apresenta dados quantitativos e qualitativos oriundos de pesquisas empíricas e sociológicas já realizadas sobre os temas aqui propostos em especial sobre a violência contra a mulher e a sua repercussão no sistema de justiça criminal a fim de buscar uma aproximação entre a abordagem teóricofilosófica e a realidade do fenômeno em estudo A partir de uma abordagem foucaultiana percebese que onde há poder há resistência Foucault 2017 p 104 E no fenômeno de violência contra as mulheres no qual existe tensionamentos e desnive lamentos de poder não há motivos para ser diferente Percebese que as mulheres submetidas à violência resistem e resistem de diversos modos A filósofa Judith Butler 2014 expõe que ao contrário do que se pode pensar inicialmente vulnerabilidade e resistência não são coi sas opostas Pelo contrário a vulnerabilidade se mostra como um gati lho como alavanca à resistência De fato o que se busca abordar nesta pesquisa é que existem diversos níveis e modos de resistência das mu lheres que sofrem violência de gênero Ocorre que os mecanismos do sistema de justiça negam tal possibilidade por vezes interpretando re sistências como ausência de vulnerabilidades Esse sistema em última análise acaba por apenas reforçar um olhar paternalista sobre as mu lheres sinalizando que elas só seriam dignas da tutela estatal ao terem a sua autonomia e sua capacidade de agência totalmente renegadas A própria tratativa enquanto mera vítima no sistema de justiça criminal também reforça essa posição unívoca de completa subjuga ção como se a mulher não pudesse figurar em outras posições tais 550 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça como a de protagonista da agressão por exemplo Em um primeiro momento isso pode chocar mas aqui se busca instigar e questionar ao ser negada a possibilidade da mulher enquanto também autora de delitos não estão sendo reforçados os estereótipos e a essencialização da mulher enquanto ser dócil e passivo Por que é necessário beati ficar ou anular a capacidade de agência de uma mulher para ela ser digna de defesa e de tutela estatal adequada Assim se busca questionar o quanto o engendramento dessas narrativas acaba por reproduzir ideias patriarcais de negativa de au tonomia e de autodeterminação a reforçar o papel estático de mulher disseminado socialmente e a implicar na ausência de propostas de mecanismos efetivos de resolução dos conflitos 2 DA SUPERFICIALIZAÇÃO E GENERALIZAÇÃO DO FENÔMENO A NECESSIDADE DE ROMPER COM ESQUEMAS NORMATIVOS SIMPLIFICADORES Um exemplo do reconhecimento de dinâmicas reiteradas é a ne cessidade de que se compreenda o ciclo de violência doméstica o qual recorrentemente faz com que mulheres sejam mantidas em relações conjugais violentas Ocorre que tal fenômeno social não é capaz de explicar todo e qualquer contexto Como refere Vanessa Chiari Gon çalves não existe um modelo explicativo que possa ser aplicado a todas as situações Cada caso possui a sua própria dinâmica o que há são pontos de convergência a serem problematizados Gonçalves 2016 p 42 Apesar disso há uma tendência de enquadramento àque le esquema explicativo dado omitindo desconsiderando e até mesmo desprezando quaisquer outras razões que possam explicar uma confli tualidade em relações domésticas eou conjugais Poderia ser levantado o seguinte contraponto não seria neces sária a propagação de informação sobre violência doméstica a partir do tipo de caso que mais a representa a fim de que mais mulheres se identifiquem Face a isso impende questionar tais narrativas real mente representam a maior parte dos casos Barbara Soares discorda explicitando que apesar de significar a minoria das histórias reais a situação da esposa indefesa apassivada submetida cotidianamente ao Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 551 poder arbitrário e tirânico de seu parceiro masculino aterrorizada e paralisada diante de suas ameaças e agressões passou a representar a matriz universal de todas as violências vividas por mulheres Soares 2012 p 191210 O sistema de justiça criminal da forma como vem lidando com casos de violência de gênero é o exemplo maior de simplificação de um fenômeno social extremamente complexo As varas ou juizados de violência doméstica estão abarrotados com os mais diversos casos de conflitos de gênero desde ameaças e violências verbais até violência sexual e homicídios Sem que haja estrutura e interesse suficientes o tratamento de cada um desses casos de forma séria e individualizada vai se tornando um sonho cada vez mais distante Em vez disso a jus tiça vem aplicando todas as formas de simplificação e essencialização dos conflitos238 as mulheres são frágeis os homens são algozes239 as mulheres que não querem se separar dos agressores ou que abdicam da representação não merecem ou não necessitam verdadeiramente da tutela estatal Se Judith Butler fosse indagada especificamente sobre este assun to se oporia incisivamente a mais este esquema normativo uma vez que o enquadramento binário pressupõe saber tudo o que se precisa saber antes de qualquer investigação efetiva sobre essa realidade cul tural complexa Butler 2017 p 206 E é justamente isso que se busca refutar no presente trabalho Verificase que foram disseminadas nar rativas prontas e simplórias acerca da violência contra as mulheres Ao 238 No entendimento crítico da pensadora Judith Butler a grande tarefa é justa mente formular no interior dessa estrutura constituída uma crítica às cate gorias de identidade que as estruturas jurídicas contemporâneas engendram naturalizam e imobilizam Butler 2017 p 24 239 Aqui é importante especificar de que homem estamos falando quem é o ho mem que figura como agressor nos processos que abarrotam as varas de vio lência doméstica do nosso país O sistema penal é por si só extremamente seletivo desde o momento do oferecimento da denúncia até e principalmente o encarceramento dos acusados O seu alvo Homens em sua maioria negros e pobres de baixa escolaridade Fonte Infopen junho2014 Dessa forma quando falamos da tutela penal para casos de violência contra as mulheres devemos ter em mente os inimigos cuja caça estamos legitimando Nesse sen tido ver também ALENCAR Daniele Nunes de MELLO Marilia Montenegro Pessoa de A Lei Maria da Penha e sua aplicação na cidade de Recife uma aná lise crítica do perfil do agressor nos casos que chegam ao Juizado da Mulher anos 20072008 Revista Sociais e Humanas Santa Maria v 24 n 02 p 0921 juldez 2011 552 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça serem acessados poucos fatos sobre determinada situação já se traça toda uma explicação interna ignorando quaisquer elementos mais complexos e extraordinários que possam estar engendrados àquele caso concreto Sabese que o Direito constitui uma importante ferramenta de resolução de determinados conflitos No entanto ele não pode pre tender substituir completamente as subjetividades dos indivíduos no manejo dos conflitos interpessoais tal como assevera Maíra Marchi Gomes 2017 p 158 De fato conforme bem destacado por Fernanda Martins a própria noção de direito é fundamentalmente seletiva das demandas das mulheres e dos direitos que a elas afetam Martins 2017 p 91 Não se pode negar que a Lei nº 113402006 significou uma gran de conquista no sentido de tirar o problema da invisibilidade pois como demonstra Wânia Pasinato a entrada em vigor dessa legislação representa um marco político nas lutas pelos direitos das mulheres no Brasil e no reconhecimento da violência contra as mulheres como problema de políticas públicas Pasinato 2015 Após a entrada em vigor da Lei nº 113402006 numerosas pes quisas empíricas vêm sendo realizadas com a finalidade de constatar como se dá na prática o atendimento dessas mulheres sujeitadas à vio lência de gênero Fernanda Vasconcellos 2015 p 130131 analisou em sua pesquisa a rede de enfrentamento à violência contra as mulhe res na cidade de Porto AlegreRS A partir da análise do atendimento às mulheres na Delegacia Especializada para Atendimento de Mulheres DEAM a autora explicita que os resultados apontam para a existên cia de uma lógica burocrática de atendimento voltada para a constru ção de vítimas e agressores como categorias estáticas Assim a complexidade destes conflitos é eliminada pelo sistema de justiça penal que não atua no cerne do problema e não apresenta condições de modificar as estruturas sociais que permitem a perpe tração da violência conjugal Além disso a partir de entrevistas reali zadas com mulheres que acessaram o sistema a pesquisa demonstra o descrédito das mulheres em relação aos órgãos de segurança pública seja pela impossibilidade de garantirem a sua proteção seja pela baixa qualidade do serviço prestado Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 553 Outras pesquisas vêm demonstrando como os discursos produ zidos no campo jurídico por se tratar de um campo construído sob a lógica masculina acabam por reproduzir os papéis de gênero e por tanto as desigualdades oriundas do campo social240 É inegável que existem estigmas e papéis de gênero em nossa sociedade a boa mãe241 a boa esposa a mulher honesta e a mulher de vida fácil Contudo como bem apontado por Rochele Fachinetto 2011 p 131 ao julgar casos concretos a partir desses padrões estigmatizantes o discurso ju rídico com a sua força de verdade jurídica acaba criando essas categorias conformando sujeitos nesses lugares Os discursos generificantes como denominado por Judith Butler 2000 p 116 bem como as práticas judiciais que retiram o conflito da voz e das mãos destas mulheres acabam por lançar barreiras cada vez maiores entre a busca pela resolução de um conflito e a possibili dade de se chegar a uma solução por meio do sistema de justiça crimi nal Nesse contexto outra forma de retirar a voz das mulheres sujeitas a situações de violência física é justamente negarlhes a possibilidade de escolha acerca da instauração de processo criminal Após diversas discussões e divergências o Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que o crime de lesões corporais le ves quando praticado em contexto de violência doméstica será de ação penal pública incondicionada242 Isso significa que a propositura do processo criminal contra o agressor poderá ser efetuada pelo Mi nistério Público mesmo contra a vontade da mulher que sofreu a vio lência o que não ocorre no crime de lesões leves praticado fora desse contexto243 Tratase de mais um mecanismo paternalista que visa a 240 Nesse sentido ver ANDRADE Vera Regina Pereira de A soberania patriarcal o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mu lher Revista Sequência n 50 p 71102 jul 2005 e FACHINETTO Rochele Fellini Quando eles as matam e quando elas os matam uma análise dos julga mentos de homicídio pelo Tribunal do Júri 421f Tese Doutorado em Sociolo gia Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre Brasil 2012 241 Sobre o mito do amor materno ver BADINTER Elisabeth Um Amor conquis tado o mito do amor materno Tradução de Waltensir Dutra Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 Ver também BUTLER Judith Problemas de gênero fe minismo e subversão da identidade Tradução de Renato Aguiar 6ª ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2013 p 138 no que concerne à construção discursiva do corpo materno 242 STJ Súmula nº 542 A ação penal relativa ao crime de lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada 243 Lei nº 90991995 Art 88 Além das hipóteses do Código Penal e da legislação 554 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça uma suposta proteção das mulheres sem considerar as suas manifes tações de vontade Além disso muitas mulheres deixam de buscar os mecanismos disponíveis para cessar situações de violência pois sabem que ao postular uma medida protetiva de urgência poderão dar iní cio a um processo criminal contra os seus companheiros Pesquisas qualitativas comprometidas com o rompimento da su perficialidade fornecem subsídios para enxergar esse tipo de questão de maneira mais crítica A análise realizada por Paola Stuker em sua dissertação Entre a cruz e a espada significados da renúncia à repre sentação criminal por mulheres em situação de conjugal no contexto da Lei Maria da Penha Stuker 2016 é uma delas Diferentemente do que se depreende do referido entendimento paternalista do STJ que usurpa a capacidade de escolha das mulheres e determina sentido único de desfecho ação penal pública incondicionada à representa ção a referida pesquisa foi capaz de demonstrar que a decisão acerca da representação criminal envolve fatores de diversas ordens Através de observações de registros de ocorrências policiais e de entrevistas com as mulheres renunciantes Stuker identificou dois gru pos i ações estratégicas mulheres que utilizam o registro de ocor rência policial de modo mais pragmático dispondo de fins específicos ao registrar o Boletim de Ocorrência tais como negociação da relação prevenção de violências mais graves para fins cíveis ou mesmo como complementação de processo de guarda e ii ações dilemáticas situa ções que envolvem dilemas perpassados por valores tradições dogmas religiosos maternidade ou ainda implicadas por afetos e medos Desse modo devese atentar a uma interpretação dos usos e desusos dos me canismos de Direito por estas mulheres e seus diferentes significados nos âmbitos individual conjugal e policial Stuker 2016 p 11 Outrossim de acordo com uma pesquisa realizada recentemente em parceria com o Conselho Nacional de Justiça a maioria das vítimas de violências de gênero se sentem frustradas e não ouvidas além de considerarem a tramitação do processo excessivamente longa Segundo os dados já divulgados244 39 das vítimas não pretendia ao denunciar especial dependerá de representação a ação penal relativa aos crimes de lesões corporais leves e lesões culposas 244 O relatório completo da pesquisa ainda não foi publicado A informação foi retirada de notícia do site do Conselho Nacional de Justiça Disponível em httpwwwcnjjusbrnoticiascnj85601pesquisarevelafrustracaodemu Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 555 o companheiro que ele fosse preso A coordenadora da pesquisa Ma rilia Montenegro destaca que na maioria das vezes as partes saem da audiência sem entender o que se passou e que as equipes de psicólogas e assistentes sociais precisam traduzir esclarecer as questões jurídicas para a vítima assim como para o autor de violência245 As práticas simplificadoras a ausência de escuta das mulheres sujeitadas à violência doméstica eou conjugal os discursos estigma tizantes e a ausência de preparo dos e das profissionais para lidar com tais questões são apenas alguns dos exemplos de como as narrativas e intervenções atuais silenciam e superficializam as violências de gênero sofridas pelas mulheres A mulher que tenta se insurgir contra a violência doméstica so frida é levada a colocarse em uma posição estanque de vítima de submissa para fazerse merecedora dos olhos e ouvidos da tutela es tatal Eventuais atos de agressões mútuas ou de ofensas e agressões que tenham partido da mulher são omitidos dos relatos oficiais A sua narrativa sobre as violências sofridas é moldada desde o registro da ocorrência na Delegacia de Polícia ou até mesmo antes em órgãos de acolhimento para apresentar uma versão beatificada de si mesma ao mesmo tempo em que a imagem do agressor é pintada como a de um monstro O papel de vítima fornece subsídios para que esta mulher tenha amparo credibilidade e proteção a vida conjugal é retratada como um imenso acúmulo de sofrimento nãoescolha e passividade como revela Maria Gregori 1989 p 171 No entanto conforme bem indica a autora não se pode cair nessa visão dual de vítima e algoz em que o primeiro termo esteja associado à passividade ausência de ação e o segundo a uma atividade destruidora e maniqueisticamente domina dora Gregori 1989 p 167 Para além disso a narrativa fixa agressorvítima faz com que as violências recíprocas sejam invisibilizadas e naturalizadas por não se encontrarem contempladas pelas formas discursivas de problemati lheresvitimasdeviolenciaquebuscamsolucaonajustica Acesso em 28 de novembro de 2017 245 Disponível em httpwwwcnjjusbrnoticiascnj85601pesquisarevela frustracaodemulheresvitimasdeviolenciaquebuscamsolucaonajusti ca Acesso em 28 de maio de 2018 556 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça zação da violência Quer dizer as mulheres que não se enxergam nas narrativas prontas de efetiva submissão e de inflexível vitimização por vezes não conseguem enxergar as violências simbióticas e ciclos de relacionamentos não saudáveis em que estão inseridas Outras mulheres não conseguem denunciar as violências sofridas por não quererem ou não conseguirem assumir a carga estigmati zante de vítima o papel da mulher que apanha O que é deixado de fora desse enquadramento normativo faz com que não haja possibi lidade de visibilidade e reconhecimento Cabe lembrar por exemplo que mulheres consideradas fortes empoderadas e referências também podem acabar sendo envoltas em relações abusivas e violentas Ou seja existe uma interface pouco visibilizada das violentas aqui aborda das as quais imprescindível afirmar não se localizam fora de relações de afeto e de territorialidades ou especificidades mais complexas São diversas as críticas cabíveis para o atual modelo de resolução de conflitos oriundos de violência contra as mulheres As práticas e discursos que forjam o sistema de justiça criminal são insuficientes para dar conta da complexidade do fenômeno da violência de gênero As práticas simplificadoras a ausência de escuta das mulheres sujei tadas à violência doméstica eou conjugal os discursos estigmatizan tes e a ausência de preparo dos e das profissionais para lidar com tais questões são apenas alguns dos exemplos de como as narrativas e in tervenções atuais silenciam e superficializam as violências de gênero sofridas pelas mulheres Além disso as instituições e o sistema punitivo apesar de se mos trarem como a única alternativa ou a única resposta para os conflitos de gênero não conseguem sequer romper com os ciclos concretos de violência que chegam até eles Pelo contrário reproduzem estereó tipos e estigmatizam tanto ofendida quanto o ofensor de forma que acabam exponencializando essas violências Retomase assim o questionamento dos esquemas normativos binários em que a mulher é sempre passiva e o homem sempre ativo Entender que as mulheres e seus corpos são locais de ações comissivas e não apenas omissivas faz com que se possa explorar a interface de potencialidade e de alteração na correlação de forças Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 557 3 VIOLÊNCIA RESISTÊNCIA E AGÊNCIA INTERVENÇÃO E PREVENÇÃO SOBRE AS ESTRATÉGIAS DE ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES Quem não sem dores Aceita que tudo deve mudar Strassaca pa 2016 a música que inspira o enlace do presente artigo também relembra o quanto as mulheres dispõem de vontade de tensionamento e questionamento da ordem dada Possível afirmar que nunca antes as mulheres romperam tanto com os padrões de gênero que lhes são cotidianamente impostos Com efeito tais insubordinações e resistên cias se consubstanciam na disposição para arriscar e buscar mudan ças o que demonstra no mínimo consciência de que as mulheres estão rompendo limites significativos impostos pelos valores tradicio nais e fazendo valer alguns de seus direitos aí residindo o germe do empoderamento conforme afirmam Mirian Cortez e Lídio de Souza 2008 p 177 As diferentes formas de resistência podem representar apenas fissuras diante da violência sofrida mas assim como as relações de poder podem tecer também uma rede uma malha de enfrentamento ao poder O fortalecimento desta rede pode ser substancial ao rompi mento da violência Grupos de apoio e espaços coletivos de mulheres ao fomentarem a perspectiva de força combatividade persistência e resiliência podem ter diversos impactos na autoestima das mulheres que experienciaram situações de violência Como exposto acima a visibilização desse prisma pode fazer emergir forma substancial de agência dinamizando as relações de poder Quando não explorada essa interface de tenacidade e autoconfiança focando exclusivamente no caráter vulnerabilizador da violência sofrida deixam de ser poten cializados os construtos de autonomia centrando apenas na perspec tiva de submissão e apassivamento Esse fenômeno pode ser observado por exemplo no fortaleci mento estimulado na Casa de Referência Mulheres Mirabal concre tizada em um prédio ocupado por um movimento social no centro de Porto AlegreRS A partir de manifestações de profissionais que atendem na Mirabal mencionadas em aproximações prévias com tal 558 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça espaço246 é possível depreender que um dos principais êxitos da casa é a construção desse espaço de acolhimento que propicia uma forma ção de laços entre as próprias acolhidas Nesse âmbito ocorre o enco rajamento e o fortalecimento mútuo das mulheres acolhidas sendo salientados seus pontos fortes e suas capacidades de resistências247 Em virtude de tal espaço ser construído por militantes de mo vimentos sociais as acolhedoras da casa também buscam enaltecer a força das mulheres organizadas politicamente em combate às opres sões estruturais Assim inclusive algumas mulheres que entraram como acolhidas na casa passam a ser acolhedoras após processo de transformação e fortalecimento seja entrando formalmente na orga nização da Casa de Referência Mulheres Mirabal ou figurando como elo da corrente de mulheres Aquelas que um dia foram vitimadas pela violência doméstica ou de gênero248 tornamse exemplo e acolhimen to a outras mulheres nesse caminho de superação da situação de vio lência Cabe ressaltar que o espaço se mostra como uma subversão dos esquemas normativos dados eis que por seu próprio caráter de surgimento através de uma ocupação por movimento social de prédio em desuso na capital do Rio Grande do Sul concretizouse o serviço interdisciplinar de acolhimento a mulheres em situação de violência na região como narra Thainá Gawlinski 2016 De forma semelhante o Manual para Profissionais de Avaliação e Gestão de Risco em Rede AMCV 2013 desenvolvido por grupo 246 Entrevistas realizadas para outra pesquisa da autora Domenique Assis Goulart ainda não finalizada 247 Esses pontos de resistência estão presentes em toda uma rede de poder Por tanto não existe com respeito ao poder um lugar da grande Recusa alma da revolta foco de todas as rebeliões lei pura do revolucionário Mas sim resistên cias no plural que são casos únicos possíveis necessárias improváveis espon tâneas selvagens solitárias planejadas arrastadas violentas irreconciliáveis prontas ao compromisso interessadas ou fadadas ao sacrifício por definição não podem existir a não ser no campo estratégico das relações de poder Fou cault 2017 p 104 248 Ao longo da presente pesquisa e também na práxis cotidiana das autoras bus case evitar a simples denominação de vítima por se considerar que a própria designação de vítima acaba engessando a posição da mulher que tenha sofri do a violência situandoa num lugar estático e de permanente vulnerabilidade O que se quer acentuar é que embora todas as mulheres possam ser vitima das ou estar sujeitas à violência doméstica em algum momento elas carregam dentro de si a possibilidade de resistência a essa violência de sair do lugar de vítima Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 559 atuante em Portugal aponta nesta diretriz Segundo o manual o prin cípio geral de intervenção da atuação de profissionais com mulheres sobreviventes a violências de gênero se fundamenta na valorização das trajetórias das próprias mulheres Isso pois elas são peritas de expe riência Os relatos sobre a violência a que foram sujeitadas as expe riências de vida que tiveram e as especificidades de cada uma devem ser reconhecidas respeitadas e validadas AMCV 2013 p 36 O em poderamento está diretamente relacionado ao dever de promoção do fortalecimento individual das sobreviventes com a ciência de que elas são as executoras de suas próprias transformações o que implica no dever de valorizar o percurso das sobreviventes e da sua capacidade de resiliência AMCV 2013 p 40 Para que o rompimento com a violência seja alcançado efetiva mente fazse necessária a participação dos homens autores de violên cia A Lei nº 113402006 em seu artigo 35 inciso V prescreve que os entes federativos poderão criar e promover centros de educação e de reabilitação para os agressores Muitos Juizados de Violência Domés tica já vêm implementando grupos reflexivos com homens autores de violência tais como o Juizado da Comarca de Porto Alegre Porém tal solução frequentemente é deslegitimada em virtude de um prisma punitivista Bárbara Stock desenvolveu pesquisa na Espanha acerca da im plantação da política pública de grupos de reabilitação para homens autores de violência Stock 2015 a qual pode fornecer subsídios para lidar com a problemática da violência contra as mulheres Segundo ela los programas de rehabilitación para agresores constituyen un elemento indispensable de las políticas públicas de combate a la vio lencia de género en razón de los efectos preventivos especiales que presentan Stock 2015 p 312 Quer dizer ao serem realizadas in tervenções com os autores da violência através de discussão da cons trução das masculinidades práticas de controle de emoções e melho ra da autoestima bem como estimulando a reflexão crítica sobre o significado de suas condutas o impacto na reincidência da violência pode ser gigantesco249 Outra abordagem preventiva igualmente pou 249 O Governo de Goiás via Secretaria Cidadã realiza na próxima sextafeira 16 em Anápolis o lançamento do Grupo Reflexivo para Autores de Violência Doméstica na cidade O projeto tem como objetivo a interrupção do ciclo da violência contra a mulher O evento com participação da secretária Onaide 560 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça co explorada apesar de prevista na Lei Maria da Penha250 diz respeito ao desenvolvimento de grupos sobre a temática da violência contra as mulheres com jovens Não se pode cair na facilidade dos mecanismos punitivistas a pluralidade de instrumentos de intervenção que a Lei Maria da Penha oferece deve ser ainda vastamente explorada No entanto ao analisar a realidade dos Juizados de Violência Doméstica e dos caminhos ins titucionais percorridos pelas mulheres que buscam tutela estatal para a violência doméstica sofrida percebese que o caráter extrapenal e preventivo da Lei Maria da Penha resta adormecido praticamente es quecido A partir do entendimento da ineficácia do sistema punitivo na promoção de direitos fundamentais e da compreensão de que o mo delo tradicional de resolução de conflitos tende a negligenciar as nar rativas das mulheres devese buscar um enfoque cada vez maior nas demais estratégias de enfrentamento da violência ora expostas Seja por meio de grupos multidisciplinares de acolhimento às mulheres seja através de intervenções com jovens e grupos reflexivos voltados aos homens percebese que a superação do sistema punitivo é não apenas possível como também necessária Santillo será às 9h30 no Fórum de Anápolis O trabalho é realizado há pouco mais de dois anos e já tem resultados altamente positivos de 350 homens aten didos houve reincidência de apenas três GOIÁS 2018 250 Art 8º A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher farseá por meio de um conjunto articulado de ações da União dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios e de ações nãogovernamentais tendo por diretrizes V a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da vio lência doméstica e familiar contra a mulher voltadas ao público escolar e à sociedade em geral e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres VIII a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gê nero e de raça ou etnia IX o destaque nos currículos escolares de todos os níveis de ensino para os conteúdos relativos aos direitos humanos à eqüidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 561 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS CONTRIBUIÇÕES PARA NOVAS FORMAS DE PENSAR O PROBLEMA Não me vejo na palavra fêmea alvo de caça conformada víti ma Prefiro queimar o mapa traçar de novo a estrada ver cores nas cinzas e a vida reinventar Strassacapa 2016 Este trabalho buscou ensaiar algumas reflexões e tentativas de traçar novas estradas para enfrentar o problema da violência contra as mulheres Entendese que os meios tradicionais de encarar o fenômeno da violência doméstica estão atualmente e constantemente em disputa dentro dos movi mentos de mulheres e do próprio campo jurídico Dessa forma pre tendeuse romper com leituras hegemônicas acerca do fenômeno da violência de gênero a fim de buscar alternativas para superar o binô mio estático vítimaagressor e o apassivamento da mulher produzi dos pelos meios tradicionais de resolução de conflitos dessa natureza Para que se possa superar o lugarcomum dos estereótipos que cercam os discursos sobre a violência de gênero é necessário permi tirse transgredir modelos préconcebidos Que o sistema penal fálico e falido de que dispomos não possui mecanismos eficazes para erra dicar o problema da violência doméstica já é amplamente sabido por pesquisadorases e profissionais da área Agora é necessário queimar o mapa traçar de novo a estrada e implementar novas formas de en carar e lidar com esse fenômeno REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALENCAR Daniele Nunes de MELLO Marilia Montenegro Pessoa de A Lei Maria da Penha e sua aplicação na cidade de Recife uma análise crítica do perfil do agressor nos casos que chegam ao Juizado da Mulher anos 20072008 Revista Sociais e Humanas Santa Maria v 24 n 02 p 0921 juldez 2011 AMCV Associação de Mulheres Contra a Violência Avaliação e ges tão de risco em rede manual para profissionais 2013 Disponível em httpcidadaniaemportugalptwpcontentuploadsrecursosava liacaoegestaoderiscoemredepdf Acesso em 29 de novem bro de 2017 562 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ANDRADE Vera Regina Pereira de A soberania patriarcal o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher Revista Sequência n 50 p 71102 jul 2005 BADINTER Elisabeth Um Amor conquistado o mito do amor ma terno Tradução de Waltensir Dutra Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 BUTLER Judith Corpos que pesam sobre os limites discursivos do sexo In LOURO Guacira Lopes org O corpo educado pedagogias da sexualidade Belo Horizonte Autêntica 2000 Problemas de gênero feminismo e subversão da identidade Tradução de Renato Aguiar 6ª ed Rio de Janeiro Civilização Brasi leira 2013 Rethinking vulnerability and resistance Madrid June 2014 Problemas de gênero feminismo e subversão da identidade Tradução Renato Aguiar 13ª ed Rio de Janeiro Civilização Brasilei ra 2017 Quadros de Guerra quando a vida é passível de luto Tra dução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da Cunha 3ª ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2017 CNJ Conselho Nacional de Justiça Pesquisa revela frustração de mu lheres vítimas de violência com a Justiça Disponível em httpwww cnjjusbrnoticiascnj85601pesquisarevelafrustracaodemulhe resvitimasdeviolenciaquebuscamsolucaonajustica Acesso em 28 de maio de 2018 CORTEZ Mirian Béccheri SOUZA Lídio de Mulheres in subordi nadas o empoderamento feminino e suas repercussões nas ocorrên cias de violência conjugal Psicologia teoria e pesquisa vol 24 n 2 p 171180 2008 FACHINETTO Rochele Fellini Quando eles as matam e quando elas os matam uma análise dos julgamentos de homicídio pelo Tribunal do Júri 421f Tese Doutorado em Sociologia Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre Brasil 2012 Homicídio contra mulheres e campo jurídico a atuação dos operadores do direito na reprodução das categorias de gênero In Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 563 AZEVEDO Rodrigo Ghiringhelli de Org Relações de gênero e sis tema penal violência e conflitualidade nos juizados de violência do méstica e familiar contra a mulher Porto Alegre EDIPUCRS 2011 p 107136 FOUCAULT Michel História da Sexualidade I a vontade do saber Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J A Guilhon Al buquerque 4ª ed Rio de JaneiroSão Paulo Paz e Terra 2017 GAWLINSKI Thainá Nasce em Porto Alegre a Ocupação Mulheres Mirabal A Verdade 25 de novembro de 2016 Disponível em httpaverdadeorgbr201611nasceemportoalegreocupacao mulheresmirabal Acesso em 24 de fevereiro de 2018 GOIÁS Estado Secretaria Cidadã Grupos reflexivos de autores de violência reduzem reincidência 14 de fevereiro de 2018 Disponível em httpwwwsecretariacidadagogovbrindexphpgruposrefle xivosdeautoresdeviolenciareduzemreincidencia Acesso em 28 de fevereiro de 2018 GOMES Maíra Marchi Ser vítima não é um dever algumas consi derações psicanalíticas sobre a Lei Maria da Penha In GOSTINSKI Aline MARTINS Fernanda Org Estudos feministas por um direito menos machista v 2 Florianópolis Empório do Direito 2017 p 155 188 GONÇALVES Vanessa Chiari Violência contra a mulher contribui ções da vitimologia Sistema Penal Violência v 8 n 1 p 3852 janjun 2016 GREGORI Maria Filomena Cenas e queixas mulheres e relações vio lentas Novos Estudos CEBRAP n 23 p163175 1989 MARTINS Fernanda Entrenós radicais ensaio para uma costura criminológicofeminista In GOSTINSKI Aline MARTINS Fernan da Org Estudos feministas por um direito menos machista v 2 Florianópolis Empório do Direito 2017 p 87106 PASINATO Wânia Oito anos de Lei Maria da Penha Entre avanços obstáculos e desafios Estudos Feministas v 23 n 2 p 533545 2015 SENADO Agência Pesquisa DataSenado 66 das mulheres se sen tem mais protegidas com Lei Maria da Penha Senado Notícias 03 de março de 2013 Disponível em httpswww12senadolegbr 564 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça noticiasmaterias20130326pesquisadatasenadoapontaquemu lheressesentemmaisprotegidascomleimariadapenha Acesso em 29 de novembro de 2017 SOARES Bárbara Musumeci A conflitualidade conjugal e o para digma da violência contra a mulher DilemasRevista de Estudos de Conflito e Controle Social v 5 n 2 p 191210 2012 STOCK Bárbara Sordi Programas de rehabilitación para agresores en España un elemento indispensable de las políticas de combate a la violencia de género Política Criminal Revista Electrónica Semestral de Políticas Públicas en Materias Penales n 19 p 297317 2015 STRASSACAPA Juliana Francisco El Hombre Triste louca ou má SoltasBruxa São Paulo Estúdio Navegantes 2016 STUKER Paola Entre a Cruz e a Espada Significados da renún cia à representação criminal por mulheres em situação de violência conjugal no contexto da Lei Maria da Penha Dissertação Mestrado Universidade Federal do rio Grande do Sul Instituto de Filosofia e Ciência Humanas Programa de PósGraduação em Sociologia Porto Alegre 2016 VASCONCELLOS Fernanda Bestetti de Punir Proteger Prevenir A Lei Maria da Penha e as limitações da administração dos conflitos conjugais violentos através da utilização do Direito Penal Tese Dou torado em Ciências Sociais 224 f Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Porto Alegre 2015 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 565 Seção 2 Mulher e Sistema Penal 567 CONTROLE SOCIAL E PENA COMO CONTINUUM NO PROCESSO DE DOMINAÇÃO DAS MULHERES Ana Carolina de Oliveira Marsicano251 Resumo Esse presente artigo aborda o papel exercido pelos femi nismos no âmbito dos estudos do crime e sobretudo no processo de construção de um saber focalizado nas experiências das mulheres e nas relações de poder atuantes sobre seus corpos O sistema de jus tiça criminal e o controle social penal consubstanciado na figura da pena é utilizado como mecanismo de dominação por excelência nas mãos do Estado capitalista e patriarcal Dessa forma requerse pensar estratégias metodológicas a fim de conter os mecanismos de opressão assim como restabelecer um horizonte abolicionista e feminista que permita a emancipação das mulheres das estruturas verticalizadas do nosso sistema Palavraschave Feminismos Controle social Pena Dominação Com o advento da criminologia feminista uma lacuna de gênero nos estudos da criminalidade foi e permanece sendo preenchida com abordagens que conferem importância à conceptualização da variá vel gênero para a compreensão dos processos de criminalização as sim como para as relações de poder que atravessam os mecanismos de contenção e controle exercidos pelo Estado Tendo em vista que tradicionalmente o poder tende a produzir o saber adequado à or dem os feminismos como sujeito coletivo dentro dos espaços que estudam o crime exercem papel fundamental na construção desse sa 251 Mestre em ciências sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora Contato carolmarsicanohotmailcom 568 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ber identificado com a dor e a história das mulheres assim como no processo de consolidação HEIDENSOHN 1997 p774 de estudos assentados na intersecção entre crime e gênero Compreendendo o vácuo analítico existente no âmbito dos estudos do crime apontamos que as estruturas de punição e os discursos legitimantes proferidos por portavozes autorizados BOURDIEU 1998 p175 refletem as estruturas que sustentam nossa sociedade destinando um espaço de silenciamento e opressão às mulheres no cenário de violência A relação entre a mulher e o crime foi tradicionalmente tratada como uma subversão uma rebelião contra os papéis sociais culturais e biológicos atribuídos acabando por reforçar os limites discrimi natórios consolidados através dos processos de rotulação BECKER 2008 do exercício do poder de punir FOUCAULT 2008 e da estig matização social GOFFMAN 1988 Através dos efeitos da rotulação da estigmatização e do poder de punir incide sobre a mulher uma dupla condenação no que se re fere à norma criminal e ao modelo de feminilidade normativo em que a transgressão da legalidade que as conduziu à prisão pode ser de uma forma ou de outra concomitante com a negação das normas que definem a conduta feminina apropriada CUNHA 1994 p24 Agindo em desacordo com as expectativas sociais o sistema de justiça age em grande parte das vezes como julgador de papéis de gênero guiandose por uma visão dicotômica do feminino conciliando o pa pel da mulher recatada passiva dócil maternal do lar ao da mulher perversa que se investe de ocupar o espaço público e assim descura das responsabilidades para com o lar e a família Compreendendo que a mulher que desvia desvia sobretudo do papel social de gênero as experiências das mulheres no âmbito do sis tema de justiça criminal passa a se condicionar por um tratamento mais severo punindoas duplamente no âmbito das práticas institu cionais submetendoas ao enclausuramento em instituições totais GOFFMAN 2013 que exercem uma incapacidade protetora pre ventiva e resolutória dos conflitos relacionados direta e indiretamen te nos casos a ensejarem o processo criminal assim como no âmbito pessoal impactando as relações familiares que grande parte das vezes resulta no abandono afetivo Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 569 Cabe ressaltar que o cumprimento do papel convencional familiar influencia diretamente na forma com que a mulher irá experienciar o trâmite processual no sistema de justiça criminal Segundo Gerlinda Smaus 1998 quando uma mulher comete o crime de furto a fim de garantir a subsistência de sua família face a ausência do marido essa é vista como uma mulher que está agindo em conformidade com o seu papel social de mantenedora maternal e portanto estaria agredindo somente tangencialmente a ordem sendo merecedora de um trata mento mais benevolente por parte da justiça criminal Em contrapar tida quando uma mulher comete um crime que não está associado ao seu papel feminino como na hipótese do crime de homicídio tendem a ser tratadas de forma mais severa Segundo Smaus o sistema de jus tiça julga de forma mais benevolente aquelas mulheres que agem em conformidade com seu papel de gênero como tentativa de manter as estruturas de poder Dessa forma por trás da benevolência estaria es condido o propósito de manter essas mulheres no âmbito privado dos seus lares cuidando de suas famílias 1998 p83 Smart nos traz uma lição importante ao afirmar a necessidade de redimensionarmos a visão quanto à criminalidade feminina para os aspectos sociais econômicos e políticos tendo em vista que tal como muitos criminologistas percebem a criminalidade feminina como um ato irracional irresponsável e não intencional como um desajusta mento individual a uma sociedade consensual e bemordenada 1977 citado por HEIDENSOHN 1985 p 151 assim também percebem os agentes que atuam no sistema criminal Através do discurso jurídico naturalizouse a ideia do que seria considerado normal e do que seria considerado desviante funcionando como engrenagem no círculo vicioso da ciência e do poder masculino que sistematicamente con siste em perpetuar a um só tempo as condições e as consequências das desigualdades sociais dos gêneros BARATTA 1999 p22 Dessa forma muitas explicações no campo do crime acabaram por reificar diferenças de gênero e através do que Foucault 1997 chamou de bio poder reduziramse as explicações ao naturalbiológico O olhar lançado nas diversas esferas do sistema de justiça cri minal é balizado por representações sociais que ditam o que é con siderado normal para homens e mulheres e por isso fazse essencial a problematização dessas representações questionando a conjuntura 570 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça em que são evocadas e seus efeitos nas vidas dessas pessoas Reiteran do essas representações sociais a Justiça reforça o ideal regulatório revelando mais uma faceta do controle exercido sobre as mulheres uma instância onde se reproduzem e intensificam suas condições de opressão via a imposição de um padrão de normalidade ESPINO ZA 2004 p126 Resguardando a prevalência de um comportamento que não condiz com aquele naturalizado como comportamento ideal feminino se assegura a dominação masculina e reforçase a política de controle sob seus corpos Ao longo dos anos os estudos feministas têm expandido cada vez mais o seu nível de abrangência englobando disciplinas mais tra dicionalmente delimitadas nas experiências masculinas do mundo social Os pensamentos feministas enquanto mecanismos analíticos e empíricos possibilitam abordar de forma interseccional e horizontali zada os mecanismos de desigualdadeopressão que incidem sobre as mulheres nos processos de vitimização tanto dentro do âmbito fami liar e pessoal quanto no âmbito institucional através das agências de controle assim como possibilita traçar estratégias para erradicar essa estrutura de dominação a serviço do patriarcado Apesar das diferentes agendas que convergem na construção de um pensamento coletivo feminista pactuamos de uma mesma bus ca por identificar e representar os interesses das mulheres interesses esses considerados insuficientemente representados e acomodados dentro do establishment machista e patriarcal OAKLEY 1981 p335 As críticas feministas se tornam cada vez mais importantes a fim de compreender a forma com que o conhecimento é produzido denun ciando a parcialidade com que os objetos de pesquisa são seleciona dos A perspectiva feminista propõe uma reconstrução das categorias tradicionais sobre o crime através da utilização de uma metodologia e uma epistemologia emancipada transdisciplinar e não hierarquizada em que a narradora assim como suas experiências de repressão e de discriminação integram sua análise Através da realocação dos discursos conferese protagonismo e criase um espaço onde as mulheres encontram a sua própria voz HEIDENSOHN 1997 p 776 buscando dar significados a suas prá ticas e possibilitando emergir fatos associados ao constrangimento de gênero que expressam as vulnerabilidades provenientes das relações de Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 571 siguais de poder proporcionadas por um contínuo e eficiente exercício do poder punitivo Cabe ressaltar que o tratamento ofertado pelas ins tâncias penais e a perspectiva distanciada da realidade social das mulhe res se agrava ainda mais no que diz respeito à mulher ofensora tendo em vista que o olhar que incide sob elas está menos relacionado com os seus supostos objetivos do que no caso dos homens HUDSON 2002 apud MATOS MACHADO 2007 p 1044 Dessa forma não só o órgão julgador mas também outras instâncias sociais de controle e a própria sociedade pautam suas opiniões mais na conformidade do comportamento da mulher aos papeis de gênero ou seja pela sua ima gem social do que no crime cometido objetivamente Os estudos da criminalidade feminina a partir da criminologia crítica e sobretudo da criminologia feminista iniciaram um processo de transição para um novo olhar sociológico acerca do crime cen trando sua análise na figura do Estado no controle formal e informal exercido e nas relações de poder imbricadas no processo de crimi nalização As estruturas patriarcais e as violências inerentes a essas estruturas de dominação repercutem em formas de violência sobre as mulheres que se manifestam como afirma Davis 2001 tanto no espaço público quanto no espaço privado fazendo com que os meca nismos de controle e de punição incidam de forma mais severa Compreendendo gênero como ato performático efeito de pres crições normativas inscritas sobre o modo de agir das pessoas comu mente se analisa de forma dissociada de classe raça etnia ou de rela ções de força e de dominação cada um dos elementos que sujeitam as pessoas a condições de precariedade Analisando o gênero como vetor político possibilitase questionar as práticas sociais que regulam as ações individuais e em que medida as regulações de gênero são não somente uma forma extensa de regulação mas antes uma forma de regulação que afeta diretamente na constituição da subjetividade Compreendendo gênero como categoria relacional SCOTT 1995 e desconstruindo o sexo como categoria natural binária Butler debate a política de identidade e as estruturas fundantes do feminismo BUTLER 2003 e a instabilidade das categorias analíticas utilizadas pelas teorias feministas HARDING 1993 Essa instabilidade possi bilitou uma abertura teóricometodológica anteriormente enrijecida por categorias fixas e estáveis de gênero passando esse a ser com preendido como ato performático BUTLER 1986 2003 572 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Ao incidir sobre a mulher a complexa fenomenologia do controle social representada por um processo que culmina no sistema penal ocorre a duplicação da vitimização feminina transitando a mulher de autora de um crime para vítima da violência institucional pluriface tada do sistema Dessa forma o sistema penal representa um conti nuum do processo articulado e dinâmico de criminalização e de es tigmatização operado pelas instituições de controle formal e informal onde a mecânica do controle produz e reproduz assimetrias que se autoalimentam O aparato regulador que governa o gênero incitando a docilização dos corpos femininos se manifesta no cárcere através de um regime de vigilância intensivo e disciplinar centrado em normas hegemônicas do feminino Analisando a crítica formulada por Angela Davis 2001 pode mos afirmar que o poder regulador que opera a diferenciação feminina por meio das estruturas patriarcais reproduz formas de punição con trole e violência diferentes para as mulheres em relação aos homens assim como produz formas diferentes entre as próprias mulheres conforme diferença de raça classe sexualidade e idade por exem plo Através da docilização de seus corpos associada à codificação dos espaços que aprisionam em limites definidos as imagens de si e do mundo constroemse práticas disciplinares capazes de internalizar nas mulheres outra consciência de si eivada de direitos e direcionada para a sujeição A orientação central da norma penal culmina em soluções cri minalizadoras que privilegiam a danosa intervenção do sistema penal com sua função declarada de realizar e garantir os direitos de proteção às mulheres enquanto na realidade suas funções manifestas coinci dem com a expansão desmedida do poder punitivo globalmente regis trado a partir das últimas décadas do século XX No que diz respeito ao encarceramento em massa de mulheres podemos elencar três as pectos preponderantes para que a lógica punitiva esteja funcionando eficazmente O primeiro deles diz respeito ao aspecto normativo violência institucional concernente à guerra às drogas onde a mulher figura como vítima direta quando prática o crime ou como vítima indireta caso algum parente próximo o cometa O segundo aspecto diz respei to à perspectiva estrutural violência estrutural decorrente do capita Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 573 lismo neoliberal patriarcal onde o patriarcado e o capitalismo como matrizes históricas do sistema penal exercem a função de mecanis mos gerais de reprodução do status quo das sociedades contemporâ neas como instrumento material e ideológico da economia do poder E por último o aspecto processual violência processual figurado por um sistema penal predominantemente cautelar O sistema penal por meio da sua dinâmica punitiva soma ao dano do crime a dor da pena encobrindo os desvios estruturais atra vés da crença em desvios pessoais distribuindo a vitimização sexual feminina com o mesmo critério que a sociedade distribui a honra e a reputação feminina a conduta sexual ANDRADE 2014 Através do rompimento com a concepção formal de crime e a compreensão da natureza política e artificiosa de sua definição possibilitase a criação de condições materiais para a efetivação dos direitos fundamentais da mulher e o rompimento com a monopolizadora enganosamente satisfatória e violenta reação punitiva KARAM 2012 p106 Con frontando a organização cultural do sistema de justiça penal HUL SMAN 2012 p45 evidenciamos uma eficácia invertida uma efi cácia simbólica e legitimadora que confere sustentação sobretudo à política de docilização desses corpos femininos negros em sua maio ria e periféricos que sofrem com o acúmulo de prejuízos Através da relação entre os marcadores sociais raça gênero e clas se expõese uma política punitiva e discriminatória onde coincide o senso comum judicial e policial com o senso comum social Dessa forma podemos traçar que a política criminal é endereçada especi ficamente para um perfil da mulher negra pobre presa provisória e que porta pouca quantidade de droga Tendo como diagnóstico o fracasso do mecanismo punitivo penso que uma das soluções mais compatíveis com a tentativa de ruptura com o modelo político de con trole exercido pelo sistema de justiça criminal é através da adoção de uma metodologia minimalista para fins abolicionistas como propõe Vera Regina Pereira de Andrade 2012 em sua obra Pelas mãos da criminologia o controle penal para além da desilusão Nesta obra considerando diferentes correntes de abolicionismos a autora afirma que a abolição supõe não somente abolir as institui ções formais de controle mas também a superestrutura punitiva Cabe ressaltar que em meio ao autoritarismo ascendente e a política de re 574 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça trocessos e ameaças aos direitos das mulheres o hino à intolerância acaba por legitimar um maior recrudescimento dos mecanismos pu nitivos Através de providências formais como o afastamento da he diondez do tráfico privilegiado as audiências de custódia e a adoção de práticas restaurativas sistêmicas obtémse resultados materiais e substanciais a fim de romper o caráter instituído pela política punitiva que controla contém e neutraliza esses corpos que vivem precaria mente as relações de poder impostas por uma sociedade capitalista e patriarcal Ultrapassando a cobertura ideológica conferida ao sistema penal como solução efetiva para os conflitos sociais deslocase o eixo de ação para a real busca por soluções integralizadas com a realidade dos espaços e comprometidas com a organização de um sistema efetiva mente democrático empenhado em obter respostas que não utilizam do recurso da violência Reconhecendo a incompatibilidade do siste ma penal como estratégia de luta para os feminismos dado que é ope rado majoritariamente por homens socializados por uma cultura ma chista e que portanto operam sob a lógica do patriarcado recaímos na máxima de que o sistema de justiça que dispomos é insuficiente no seu propósito protetivo Ademais precisamos atentar para a necessidade de desmobilizar mos a estrutura de controle sobre os corpos das mulheres desde a sua estrutura elementar para além de uma reivindicação identitária como os feminismos têm proposto nos últimos tempos Ao se dissociar as questões identitárias da agressão física e simbólica exercida pelas es truturas econômicas que condicionam uma realidade social precária e de extrema necessidade e vulnerabilidade recaímos na afirmação de uma identidade pouco problematizada de mulheres que são subor dinadas sistematicamente a um sistema opressor e são destituídas de ferramentas efetivas para que possam compreender seu próprio sofri mento e lutar contra ele Por meio da valorização de lutas micro e macro processuais pos sibilitase e valorizase o exercício cotidiano de práticas abolicionistas efetivamente libertadoras que possibilitam o combate às forças que coadunam na privação social relacional e existencial dessas mulheres punidas pelos crimes que cometeram mas sobretudo pela condição de ser mulher 576 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça HARDING S A instabilidade das categorias analíticas na teoria fe minista Estudos Feministas Florianópolis v 1 n 1 p 7 jan 1993 ISSN 18069584 Disponível em httpsperiodicosufscbrindex phprefarticleview15984 Acesso em 12 nov 2017 HEIDENSOHN F Gender and crime The Oxford handbook of crim inology Oxford Clarendon Press 1997 Women and crime London Macmillan Press 1985 HULSMAN L Alternativas à justiça criminal In PASSETTI Edson Org Curso livre de abolicionismo penal Rio de Janeiro Revan 2012 KARAM M L Alternativas à justiça criminal In PASSETTI Edson Org Curso livre de abolicionismo penal Rio de Janeiro Revan 2012 MATOS R MACHADO C Reclusão e laços sociais discursos no fe minino Análise Social 2007 OAKLEY A From here to Maternity Becoming a Mother Harmonds worth Penguin 1981 SCOTT J W Gênero uma categoria útil de análise histórica Revista Educação e Realidade Porto Alegre 1995 v 20 n 02 SMAUS Gerlinda Análisis Feministas del Derecho Penal Contra dicciones entre Derecho y Control Social Barcelona M J Bosch S L Goethe Institut 1998 577 SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL INSTITUIÇÕES PERSONAGENS E GÊNERO Mariana Pinto Zoccal252 Resumo A cultura do encarceramento em massa vigente no Brasil contém práticas e discursos de diversas instituições e personagens do sistema de justiça criminal os quais são responsáveis por manter a pena privativa de liberdade como principal política de segurança pú blica O cárcere brasileiro tem se mostrado um espaço de exclusão social e de perpetuação das vulnerabilidades e seletividades existentes na conjuntura social extramuros A pena de prisão apesar de eviden temente ter fracassado em seus objetivos declarados tais como as chamadas ideologias res ressocialização reeducação reabilitação representa um eficaz instrumento de punição dos perigosos ini migos e etiquetados enfim para os que majoritariamente figuram como clientes do sistema penal No presente artigo em consonância com a temática do Grupo de Trabalho Sistema de Justiça pensado por Mulheres objetivo tecer um breve panorama acerca de como enxergo as instituições e os personagens que compõem o sistema de justiça cri minal brasileiro abarcando a interseccionalidade entre as questões de gênero raça e classe que pauta a política de guerra às drogas vigente Palavraschave Sistema penal criminalização guerra às drogas gê nero interseccionalidade 252 Mestranda em Direito pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho UNESP bacharela em Direito pela Faculdade de Direito de Franca FDF pesquisadora associada ao Instituto de Pesquisa Direitos e Movimentos Sociais IPDMS e ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais IBCCRIM 578 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1 O SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL SEUS PERSONAGENS E OS PROCESSOS DE CRIMINALIZAÇÃO PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA O sistema de justiça criminal pode ser conceituado como o conjunto ordenado ou propositalmente caótico de agências estatais leis insti tuições práticas e indivíduos que se unem em torno do exercício do poder penal isto é do poder tanto de submeter o corpo como de de terminar a conduta de outras pessoas O poder penal nesse contexto é entendido como a utilização da força para submeter o comporta mento alheio a partir de uma opção política que criminaliza ou não determinadas condutas humanas tornandoas passíveis de uma pena CASARA 2017 p 9293 O Estado brasileiro ao valerse de seu jus puniendi atua por meio do processo de criminalização que é orquestrado por meio de três mecanismos de controle social o mecanismo da produção da norma criminalização primária o mecanismo de aplicação culminando com o juízo criminalização secundária e o mecanismo de execução da pena BARATTA 2011 p 161 A criminalização primária consiste no exercício da função legis lativa em que se selecionam os supostos bens jurídicos a serem pro tegidos bem como as respectivas penas que a violação da norma en seja No entanto é notório que o Poder Legislativo em regra tem se ocupado de formular proposições que expandem o alcance do sistema penal corroborando a onda populistapunitiva em que o Direito pe nal é utilizado de forma simbólica para angariar votos Tal fenômeno se dá muito em função do crescente sentimento de insegurança experimentado pela população que no entender de Silva Sánchez 2013 p 44 foi intensificado pelo modo social hoje dominante do individualismo de massas no qual a sociedade já não é uma comunidade mas um conglomerado de indivíduos atomizados e narcisisticamente inclinados a uma íntima satisfação dos próprios desejos e interesses O processo de criminalização secundária por sua vez ocupase do modo de aplicação desta legislação penal por meio da atuação de atores como as Polícias o Judiciário o Ministério Público e a própria imprensa Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 579 Acerca da atuação policial no sistema de justiça apreendese que o caráter militarizado que pouco evoluiu se comparado ao paradig ma autoritário adotado no período de ditadura militar se mostra avesso à concepção de polícia cidadã que deveria vigorar em um Es tado dito Democrático e de Direito A elevada incidência de autos de resistência escancara a cultura da matança orquestrada em face da população negra e pobre do país No regime militar instaurado no ano de 1964 o aparato poli cial atuava buscando combater inimigos préconcebidos do governo como os comunistas militantes de esquerda do movimento estudan til e demais pessoas que contestassem o status quo vigente Mesmo após a transição democrática ocorrida em 1988 é possível observar que a segurança pública mantémse aliada aos interesses de governos elites ideologias e regimes não se adaptando ao novo paradigma de segurança constitucionalmente concebido Para Kuhn 2011 apud ROSSETI 2012 p 199 a transição para um novo paradigma está longe de ser um processo cumulativo arti culado com o velho paradigma Tratase na verdade de ruptura com novos princípios enunciados métodos e aplicações reconstruídos com o novo paradigma Tal lógica não foi aderida pelo constituinte de 1988 que à contramão do tratamento progressista que ofereceu a muitos temas da nova Carta não questionou de forma adequada o legado autoritário do regime militar na temática da segurança pública Segundo Zaccone 2015 p 05 a violência policial não é um erro de procedimento de alguns policiais despreparados É uma po lítica de Estado no Brasil que recebe apoio e incentivo de parcela da sociedade Quando práticas violentas são colocadas nos holofotes e perdem o seu caráter oculto iniciase um processo de caça às bruxas que tem por objetivo a punição destes policiais que são identificados no abuso do uso da força No entanto eventuais punições em nada resolvem o problema da violência e representam apenas a forma que o Estado tem de não se comprometer com a sua própria política A atuação judicial de mesmo modo se encontra inserida em uma cultura classista ilegalista e autoritária em que os juízes têm fi gurado como agentes de segurança pública em uma suposta guerra contra a criminalidade Luís Carlos Valois em palestra proferida no 23º Seminário Internacional do IBCCRIM afirma que para os juízes 580 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça tem sido mais fácil mandar as pessoas para prisão em uma lauda do que soltar em cinco Tal lógica coloca em xeque princípios como a presunção de ino cência o in dúbio pro reo bem como o dever de fundamentação das decisões judiciais encaixandose no que Lênio Streck descreve como razão cínica brasileira que em síntese dispõe que os juízes sabem muito bem o que estão fazendo mas o fazem assim mesmo Zaffaroni 2014 p 141 descreve este poder em nossa região marginal como uma verdadeira máquina de burocratizar Segundo o autor as agências não judiciais dos sistemas penais latinoamericanos é que na prática possuem poderes para impor penas violar domicílios e segredos de comunicação privar de liberdade qualquer pessoa sem culpa ou suspeita realizar atos de instrução e ocuparse de tudo o que a burocracia judicial lhe deixa por menor esforço Quando as agências não judiciais se veem ameaçadas por tentati vas de reforma legal ou jurisprudencial estas lançam com o apoio dos meios de comunicação de massa uma campanha de lei e ordem cujo objetivo não é outro senão o de fomentar o medo e o sentimento de insegurança na população para pressionar assim as agências políticas ou judiciais e deterem a ameaça a seu poder Assim a burocracia judi cial costuma responder aderindo à campanha impondo penas exem plares utilizando expressões moralizantes nas sentenças que publica e procurando notoriedade pública nas declarações autoritárias que exara ZAFFARONI 2014 p 127 Inseridos em uma cultura de assepsia ideológica de certa neutra lidade valorativa de sobriedade em tudo e de internalização de sinais de falso poder como as inúmeras solenidades e tratamentos monár quicos os juízes creem serem onipotentes e recusam os lampejos de consciência sobre as limitações de seu poder O Ministério Público que constitucionalmente tem por função a defesa da ordem jurídica do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis em regra tem exercido o seu po der de acusar de forma irracional e desenfreada ignorando muitas peculiaridades do caso concreto e corroborando a lógica de combate à bandidolatria253 advinda do senso comum policialesco 253 Referência ao manifesto contra o garantismo e a bandidolatria exarado por Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 581 A condição ministerial de instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado impõe a ele o encargo de zelar pela legalidade democrática e pelo princípio de igualdade dos cidadãos pe rante a lei No entanto noto que comumente a legalidade democrática é deixada de lado em prol da potencialização da repressão Casara 2017 p 136 descreve o Ministério Público como uma das principais instâncias formais de controle do crime e das popula ções indesejadas segundo a lógica neoliberal que separa e seleciona potenciais consumidores daqueles que não possuem poder de consu mo e podem ser excluídos ou eliminados Ainda que involuntariamente compete ao Ministério Público como instância selecionar os fatos criminosos que irão se submeter à persecução penal em juízo e os que serão arquivados Assim sua atuação deveria ser pautada pela razão e afastada da ideia de vingança privada No entanto a classe social a cor da pele e o gênero influem sig nificativamente nas análises dos conflitos penais realizadas por mem bros da instituição que muitas vezes não atingem a impessoalidade necessária para a função que desempenham razão pela qual paulati namente o órgão se afasta de sua gênese democrática A Defensoria Pública que não se encontra integralmente estrutu rada em diversos estados representa um oásis em face do deserto de carreiras engessadas e burocratizadas que integram o sistema penal No entanto Brenno Tardelli 2016 alerta para o perigo de uma adap tação jurídica contemporânea da Revolução dos Bichos de George Orwell O livro trata de uma fazenda em que os animais expulsaram os humanos para implementar uma autogestão com a proposta de serem inovadores mas no fim das contas acabaram por reproduzir a mesma estrutura anteriormente criticada Assim o desafio da Defen soria para os próximos anos será não se perder de si O controle social que objetiva impor as regras vigentes numa de terminada sociedade não é exercido exclusivamente pelas agências de controle penal estatais podendo se dividir em controle social formal e informal O controle formal é exercido por atores que integram o Promotores de Justiça do Rio Grande do Sul Disponível em httpwww defesanetcombrghbrnoticia26662ManifestocontraaBANDIDOLA TRIA Acesso 29 abr 2018 582 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça aparelho punitivo estatal como as polícias o Ministério Público o Ju diciário e o Exército O controle informal por sua vez é levado a cabo por diversas organizações sociais como a família a escola a religião e os meios de comunicação social BUDÓ 2013 p 40 A mídia quando exercida de forma sensacionalista e tendencio sa fomenta na população um sentimento de insegurança em face da criminalidade que a faz clamar por um tratamento penal mais rigo roso aos ditos criminosos bem como enseja o surgimento de uma cultura de repúdio a gramática dos direitos humanos sintetizada na lógica de que bandido bom é bandido morto Budó 2013 p 248 prevê que a atuação dos jornais no tocante ao crime desempenha uma dupla função reproduzem preferencial mente os discursos dos agentes do sistema penal pelo fato de se cons tituírem como fontes oficiais e credíveis auxiliando em sua legitima ção e sensacionalizam a vida social de tal maneira que o crime passa a ocupar espaço em narrativas que geram a propagação de estereótipos entre criminosos e vítimas auxiliando a construção seletiva da crimi nalidade A criminologia crítica busca estudar a operacionalidade do sis tema penal e atinge resultados que o deslegitimam tendo em vista o descumprimento de suas funções declaradas e a descoberta de fun ções ocultas de enfoque políticoeconômico No entanto apesar da deslegitimação teórica atingida verifico o crescimento na América Latina de movimentos em sentido contrá rio que objetivam a sua relegitimação Assim partindo de um discur so de emergência tais movimentos buscam a suspensão de garantias fundamentais o recrudescimento de penas a criação de novos tipos penais e o fomento de discursos que buscam criminalizar movimen tos que contestam a estrutura hierarquizada e injusta do status quo e taxálos como inimigos a serem combatidos O Sistema Penal é formado portanto por tais agências e atores e vem sendo utilizado como um verdadeiro instrumento de controle so cial que tem por finalidade manter o status quo e perpetuar matrizes macroestruturais de opressão como o sexismo o racismo e capitalis mo Dessa forma o sistema penal seleciona a sua clientela conforme critérios de gênero raça e classe Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 583 2 A POLÍTICA DE GUERRA ÀS DROGAS E O ENCARCERAMENTO FEMININO A política de guerra às drogas consiste na criminalização de condutas praticadas por produtores comerciantes e consumidores de drogas tidas como ilícitas e advém de um contexto de fortalecimento do neo liberalismo em que é possível verificar um verdadeiro desmonte do Estado em âmbito social e o incremento do controle penal que passa a ser utilizado como um mecanismo para gestar grupos marginalizados Resta demonstrado que as drogas por si só não causam violên cia Segundo Karam o que causa violência é a proibição visto que a produção e o comércio de drogas não são atividades violentas em si mesmas É sim o fato da ilegalidade que produz e insere no mercado empresas criminalizadas simultaneamente trazendo a violência como um subproduto de suas atividades econômicas Tratase portanto de uma guerra inócua pautada em uma diferenciação artificial e arbi trária do que é lícito e ilícito e que não cumpre com os seus objetivos declarados No tráfico os conflitos de disputa econômica ocorrem à margem do Estado de modo que meios violentos são utilizados para solucioná los Ademais em prol de uma suposta salvaguarda da saúde publica a clandestinidade do comércio impede a ocorrência de um controle de qualidade das drogas fornecidas aos usuários A proibição dificulta também a implementação de uma política de redução de danos pau tada em uma lógica de diálogo e que busque romper com o moralismo e a cultura de estigmatização existente Valois 2017 p 639 expõe que diferentemente dos Estados Uni dos que experimentaram períodos de pleno emprego após o fim da escravidão e legislaram para manter a segregação racial a segregação brasileira se deu pelo desemprego pela formação urbana pelo descaso e pela negação de cidadania por parte do Estado para com a popula ção negra Nesse contexto a guerra às drogas figura como uma estru tura na qual o racismo existente na sociedade continua a ser firmado Um debate honesto acerca da problemática da guerra às drogas deve ser pautado em alicerces interseccionais visto que entre 2000 e 2014 houve um aumento de 5674 no contingente de mulheres en 584 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça carceradas enquanto que o aumento entre os homens foi de 220 O relatório INFOPEN 2014 também expõe que as mulheres encarcera das em regra são jovens têm filhos são as responsáveis pela provisão do sustento familiar possuem baixa escolaridade são oriundas de ex tratos sociais desfavorecidos economicamente Ademais em torno de 68 dessas mulheres possuem vinculação penal por envolvimento com o tráfico de drogas 3 em cada 10 não tiveram um julgamento sendo consideradas presas provisórias e 68 delas são negras Apesar de serem minoria em termos absolutos o expressivo cres cimento da população carcerária feminina explicita a urgência de uma reflexão acerca das modulações que o sistema penal adquire ao tratar do público feminino Juliana Borges 2018 p 90 denuncia que as mulheres encarce radas sofrem uma dupla invisibilidade tanto pela invisibilidade da prisão quanto pelo fato de serem mulheres A autora também traça um paralelo histórico entre as punições femininas e as punições dos escravizados posto que ambas se realizavam no âmbito privado as dos escravos por seus senhores e as das mulheres por seus maridos Assim a menor inserção das mulheres no sistema carcerário não se dá em função de serem elas mais dóceis e menos propensas a pra ticar condutas tidas como ilícitas e sim em razão de as mulheres se rem submetidas a controles sociais informais que não se identificam com o controle punitivo estatal aos homens a criminalidade era considerada algo da nor malidade uma quebra de contrato e portanto em se tratan do o crime de algo da esfera pública de um sistema de justiça público a punição se exercia também no âmbito público Ao passo que se constrói neste período a ideia de mulheres anor malizadas e desestabilizadas portanto loucas e histéricas e que deveriam ser tratadas sob normas e condutas médicas e psi quiátricas BORGES 2018 p 92 No tráfico a lógica da divisão sexual do trabalho permanece de modo que as mulheres em regra ocupam postos de trabalho desvalo rizados O comércio de drogas se mostra uma alternativa de trabalho interessante a estas mulheres pobres e em diversos casos compreende Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 585 uma atividade suplementar por elas exercida em função de necessi tarem auferir maior renda para custar o sustento do lar e a atividade permitir uma ampla flexibilidade de horários Ao serem presas es sas mulheres são facilmente substituídas por outras não afetando em nada a dinâmica e funcionamento da economia das drogas é muito comum o relato de buscas e apreensões invasões sem mandado de busca em seus domicílios tortura e humilha ção para obter informações que sequer elas têm conhecimento relatos de prisão pela proximidade com algum familiar envol vido com o tráfico prisões quando transportando pequenas quantidades sendo que muitas são intimidadas a fazer isso BORGES 2018 p 103 Ademais no sistema penal impera uma racionalidade androcên trica que desconsidera as particularidades das mulheres encarcera das a violação de seus direitos humanos fundamentais e a falta de acesso à justiça Ana Gabriela Mendes Braga e Bruna Angotti 2015 p 21 em pesquisa Dar à luz na sombra explicitam que O modelo de justiça esconde e inviabiliza qualquer diferença positiva tornandoa desigualdade A excepcionalidade do fe minino no sistema faz com que as políticas e espaços voltados às mulheres presas sejam as sobras O discurso de igualdade jurídica esconde a hegemonia masculina no campo da lei O discurso jurídico é hermético não questiona as políticas de ver dade e os efeitos que produz Na dimensão de poder no campo jurídico o gênero atua na disputa pela verdade e se inscreve como mais um binarismo pelo qual o sistema de justiça opera homemmulher acusaçãodefesa culpadoinocente mãecri minosa dentre outros Insta consignar também que as mulheres muitas vezes adentram no sistema prisional para levarem drogas a seus companheiros reclu sos e de lá não saem São mães companheiras tias e avós que quando não são rés se tornam também vítimas do sistema ao serem subme 586 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça tidas a humilhantes revistas vexatórias ao buscarem manter o vín culo afetivo por meio das visitas e gastarem parte expressiva de seus salários para levar aos familiares presos produtos de higiene roupas e demais suprimentos que em tese deveriam ser satisfatoriamente for necidos pela unidade prisional 3 GÊNERO CLASSE E RAÇA UMA INTERSECCIONALIDADE NECESSÁRIA Angela Davis dispõe que as estruturas racistas sexistas e classistas que ordenam nossa sociedade devem ser analisadas de forma interligada pois se apresentam em diferentes formas e nuances sem necessaria mente que uma se sobreponha a outra porque na verdade se inter calam A relação por Davis descrita pode ser exemplificada na po lítica de guerra às drogas O Estado ao insistir na manutenção da falida vedação ao porte e ao tráfico de drogas tidas como ilícitas em prol de uma suposta tutela da saúde pública ignora o fato de que esta proibição em nada altera o consumo e o comércio destas drogas e que ela cotidianamente aprisiona e mata negrasos e pobres que em um cenário de gritantes desigualdades sociais e de falência do Estado de bem estar social encontram neste negócio uma alternativa de adqui rir dinheiro para as suas subsistências e de realizarem seus sonhos de consumo fomentados pelo capitalismo Diante do exposto noto que as mazelas do sistema de justiça cri minal do Brasil são complexas e de difícil superação haja vista sermos o país com a quarta maior população carcerária do mundo e apesar do estado de coisas inconstitucional reconhecido pelo STF na ADPF 347 termos os índices de encarceramento cotidianamente majorados em evidente cenário de colapso Vitórias como a alcançada no Habeas Corpus coletivo HC 143641 em que o STF determinou a substituição da prisão preven tiva pela domiciliar de todas as mulheres presas grávidas e mães de crianças com até 12 anos de idade por crimes cometidos sem violên cia ou grave ameaça representam lampejos de esperança pautados na Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 587 ideia de que construir um outro mundo é possível No entanto pairam dúvidas se tal decisão será amplamente observada por juízes desem bargadores e ministros do STJ Gramsci dispõe que a crise consiste precisamente no ato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer No atual contexto de violação sistemática de direitos fundamentais urge a necessidade de se utilizar da notória crise do sistema de justiça criminal para promo ver nele uma mudança estrutural e profunda permitindose pensar outras formas restaurativas de resolução de conflitos em detrimento do atual sistema punitivo falido e buscandose reverter a conjuntura de encarceramento em massa que possui categorias de classe raça e gênero bem definidas REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARATTA Alessandro Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal introdução à sociologia do direito penal Tradução de Juarez Cirino dos Santos 6 ed Rio de Janeiro Editora Revan 2011 BRAGA Ana Gabriela Mendes Braga ANGOTTI Bruna Dar à luz na sombra condições atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão Série Pensando o Direito Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justi ça Brasília 2015 BRASIL Levantamento Nacional DE INFORMAÇÕES PENITEN CIÁRIAS INFOPEN JUNHO DE 2014 Disponível em httpwww justicagovbrnoticiasmjdivulgaranovorelatoriodoinfopennes tatercafeirarelatoriodepenversaowebpdfAcesso 09 out 2017 BORGES Juliana O que é encarceramento em massa Belo Hori zonte Letramento Justificando 2018 BUDÓ Marília De Nardin Mídia e controle social da construção da criminalidade dos movimentos sociais à reprodução da violência estrutural 1 ed Rio de Janeiro Revan 2013 CASARA Estado pósdemocrático neoobscurantismo e gestão dos indesejáveis 2 ed Rio de Janeiro Civilização brasileira 2017 588 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça DAVIS Angela Mulheres raça e classe Tradução Haci Regina Can diani 1 ed São Paulo Boitempo 2016 DELIA FILHO Orlando Zaccone Indignos de vida a forma jurídica da política de extermínio de inimigos na cidade do Rio de Janeiro 1 ed Rio de Janeiro Revan 2015 SILVA SÁNCHEZ JesúsMaría A Expansão do direito penal aspec tos da política criminal nas sociedades pósindustriais 3 ed São Pau loEditora Revista dos Tribunais 2013 KARAM Maria Lúcia A guerra às drogas é inconstitucional inefi ciente e pior que o próprio uso das drogas Disponível em https wwwstudentsforlibertyorgguerradrogasinconstitucionalinefi ciente Acesso 29 abr 2018 ROSSETI Disney A formulação de políticas de segurança pública no paradigma do Estado democrático de direito uma breve visão das ins tituições policiais pós 1988 Revista segurança pública e cidadania Brasília v 5 n 1 p 177212 2012 STRECK Lenio Luiz Hermenêutica jurídica em crise Porto Ale gre Livraria do Advogado 2011 TARDELLI Brenno Defensoria Pública arrisca ao flertar com o que há de mais atrasado no meio jurídico 22 jan 2016 Justificando Dis ponível em httpjustificandocartacapitalcombr20160122de fensoriapublicaarriscaaoflertarcomoquehademaisatrasado nomeiojuridico Acesso 29 abr 2018 VALOIS Luís Carlos 23º Seminário Internacional do IBCCRIM 2017 São Paulo In Juiz criminal é agente de segurança pública comunicação verbal O direito penal da guerra às drogas 2 ed Belo Horizonte Editora DPlacido 2017 ZAFFARONI Eugênio Raúl Em busca das penas perdidas 5 ed Rio de Janeiro Revan 2014 589 JUSTIÇA RESTAURATIVA E MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS NO CONTEXTO ESCOLAR Um Estudo de Caso do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro Agatha Gabrielle Lorena Seixas254 Resumo Este trabalho busca tratar da aplicabilidade da Justiça Res taurativa às medidas socioeducativas dispostas no Estatuto da Criança e do Adolescentes dentro do contexto escolar já que têm como fim a melhoria e a maior efetividade dos mecanismos de solução de con flitos para que seja restabelecida a paz social sem ferir a dimensão humana do ser A justiça restaurativa é apontada como um dos mais significativos desenvolvimentos da justiça criminal das últimas déca das bem como do pensamento e da prática criminológica contempo rânea Entretanto apesar dessa ideia de solução de conflitos ter ini ciado e se desenvolvido internacionalmente ainda é pouco conhecida no Brasil O presente trabalho terá enfoque no contexto escolar pois a escola é local importante para aplicação de práticas restaurativas já que busca o desenvolvimento do discente enquanto cidadão O debate se faz necessário ao entendermos que a verdadeira justiça só se alcan ça mediante o consenso e para isso é preciso que haja uma atuação integrada que ultrapasse os limites técnicos jurídicos da lide para que seja construída uma maneira adequada de resolução de conflitos ou melhor de transformação dos mesmos por meio da promoção dos direitos humanos inclusão cidadania e paz social 254 Advogada graduada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Email Hta gabrielle94gmailcom 590 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Palavraschaves Justiça Restaurativa Escola Direitos da Criança Di reitos Humanos INTRODUÇÃO Nosso estudo tem como tema a Justiça Restaurativa no contexto do Sistema Socioeducativo tendo por objeto o estudo da aplicação da Justiça Restaurativa nas escolas Consideramos o conflito como algo inerente à vida em sociedade e que pode ser manejado de duas for mas a retributiva e a restaurativa A Justiça Restaurativa tendo por base o diálogo favorece a reflexão e pode ser propulsor de mudanças significativas Sendo assim nossa questão é entender como pode ser utilizada essa forma de solução de conflitos no âmbito do sistema so cioeducativo previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente Os debates sobre Justiça Restaurativa aplicadas no contexto esco lar têm como fim a melhoria e a maior efetividade dos mecanismos de solução de conflitos para que possa ser restabelecida a paz social sem ferir a dimensão humana do ser Portanto considerando o contexto atual de paradoxo do uso de práticas violentas para acabar com a vio lência vislumbrase a necessidade de reflexão sobre o uso de práticas restaurativas ao invés da retributivas ou punitivas Para que seja possível a demonstração e verificação da aplicabili dade da Justiça Restaurativa às medidas socioeducativas dispostas no Estatuto da Criança e do Adolescentes dentro do contexto escolar se rão analisados os dois modelos de justiça e suas respectivas formas de solução de conflitos com a criação de uma relação do uso da Justiça Restaurativa com o fortalecimento do diálogo colocando a vítima no centro e trazendo ofensor e comunidade em cena para que se alcance um consenso quanto à forma de lidar com as situações presentes e prevenir as futuras e por fim será demonstrada a importância do uso da Justiça Restaurativa como meio de solução de conflitos utilizando para tal o estudo de caso do Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro Em um primeiro momento é abordado o conceito de Justiça Res taurativa e o contexto histórico em que essa ideia foi introduzida para Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 591 que se possa entender suas principais metodologias Posteriormente realizase um estudo sobre as disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente sendo feita uma oposição entre o atual modelo de Justi ça Criminal e o modelo restaurativo demonstrando a ineficiência da pena de restrição de liberdade Por fim estudamse as impossibilidades de implementação da Justiça Restaurativa no Brasil tanto no contexto geral como no contexto fático de análise de campo I JUSTIÇA RESTAURATIVA UMA ALTERNATIVA A JUSTIÇA CRIMINAL É difícil estabelecer o percurso histórico da Justiça Restaurativa dian te de diferentes origens tanto no Oriente quanto no Ocidente em ra zão da diversidade de contextos históricos culturais que geram distin tas práticas de caráter restaurativo Contudo em um esforço didático para melhor explicar os primeiros sinais de práticas restaurativas no mundo podese dizer que Os vestígios dessas práticas restaurativas reintegradoras e ne gociáveis se encontram em muitos códigos decretados antes da primeira era cristã Por exemplo o código de Hamurabi 1700 aC e de LipitIshtar 1875 aC prescreviam medidas de res tituição para os crimes contra os bens O código sumeriano 2050 aC e o de Eshunna 1700 aC previam a restituição nos casos de crimes de violência Van Ness e Strong1997 Elas podem ser observadas também entre os povos colonizados da África da Nova Zelândia da Áustria da América do Norte e do Sul bem como entre as sociedades préestatais da Europa255 O ideal de justiça restitutiva negociada foi sendo substituído pelo ideal retributivo ao longo da Idade Média e por tal motivo somente na segunda metade do século XX a Justiça Restaurativa passa a apre sentar as feições e princípios que conhecemos nos dias atuais 255 JACCOUD Mylène Princípios tendências e procedimentos que cercam a jus tiça restaurativa In SLAKMON Catherine DE VITTO Renato Pinto de PIN TO Renato Sócrates Gomes orgs Justiça Restaurativa coletânea de artigos Brasília Ministério da Justiça 2005 p 164 592 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça O ressurgimento de interesse internacional sobre o ideal restau rativo ocorreu devido à constatação da ineficiência e dos altos cus tos do sistema de justiça tradicional e ao fracasso do sistema quan to à responsabilização dos infratores com simultâneo atendimento às necessidades e interesses das vítimas256 Ligada em seu íntimo ao movimento de descriminalização desdobramse inúmeras experiên ciaspiloto do sistema penal a partir da metade dos anos 70 que se institucionalizaram nos anos 80 com a adoção de medidas específicas Entretanto é a partir dos anos 90 que a Justiça Restaurativa se expande e se vê inserida no processo penal257 em vários países como Canadá Nova Zelândia Austrália Estados Unidos Argentina África do Sul ROCHE apud ZAGALLO 2010 p 27 Para Paul Mccold e Ted Watchel258 a justiça restaurativa é uma nova maneira de abordar a justiça penal com enfoque na reparação dos danos causados às pessoas e relacionamentos ao invés da sim ples punição aos agressores ou seja tratase de um processo colabo rativo que envolve as principais partes afetadas pelo crime no intuito de determinar qual a melhor forma de reparar o dano causado pela infração Na literatura brasileira acrescenta a esse raciocínio Renato Sócrates Justiça restaurativa baseiase num procedimento de consenso em que a vítima e o infrator e quando apropriado outras pes soas ou membros da comunidade afetados pelo crime como sujeitos centrais participam coletiva e ativamente na constru ção de soluções para a cura das feridas dos traumas e perdas causadas pelo crime259 256 MORRIS Alisson Criticando os críticos uma breve resposta aos críticos da Justiça Restaurativa In SLAKMON Catherine DE VITTO Renato Pinto de PINTO Renato Sócrates Gomes orgs Justiça Restaurativa coletânea de arti gos Brasília Ministério da Justiça 2005 p 440441 257 JACCOUD Mylène Princípios tendências e procedimentos que cerca a justi ça restaurativa In SLAKMON Catherine DE VITTO Renato Pinto de PIN TO Renato Sócrates Gomes orgs Justiça Restaurativa coletânea de artigos Brasília Ministério da Justiça 2005 p 166 258 MCCOLD Paul WATCHEL Ted Em busca de um paradigma uma teoria de Justiça Restaurativa In Restorative Practices EFORUM Agosto 2003 p 3 259 PINTO Renato Sócrates Gomes Pinto Justiça Restaurativa In Slakmon Cathe rine DE VITTO Renato Campos Pinto PINTO Renato Sócrates Gomes Org Justiça restaurativa é possível no Brasil Brasília DF Ministério da Justiça e Pro grama das Nações Unidas para o Desenvolvimento PNUD 2005 p 20 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 593 A Justiça Juvenil Restaurativa é uma nova forma de perceber a justiça para adolescentes em conflito com a lei que fuja da aplicação das medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente para que haja oportunidade de real inclusão social desses adolescentes Sendo assim o objetivo dessa nova forma de pensar o Direito Penal é compensar os danos individuais patrimoniais e sociais causados pela infração e para isso requer a participação do adoles cente causador do dano das vítimas e da sociedade Como a prática restaurativa não se apoia em um modelo espe cífico não há uma forma única de aplicação Concretamente a utili zação da Justiça Restaurativa consiste em uma alternativa ao sistema penal tradicional pelo qual se busca a eficiência e a humanização na aplicação das medidas a adolescentes em conflitos com a lei A Justiça Restaurativa é necessária no contexto atual brasileiro pois o que temos atualmente é uma sociedade pautada pelo apelo ao punitivismo e altos índices de privação de liberdade tanto para adul tos como para adolescentes além da pauta da redução da maioridade penal Dessa forma prevalece o Estado penal sobre o Estado social que deveria ser implementado o que de fato nunca ocorreu Diante do exorbitante crescimento do crime e violência260 e a per cepção de que o atual sistema retributivopunitivo e o encarceramento dos indivíduos tidos como delinquentes não está sendo efetivo é ne cessária a busca por um novo paradigma capaz de buscar alternati vas para melhoria do sistema penal Nessa seara a justiça restaurativa emerge como possível reformulação judicial agregandose ao sistema penal com possibilidade real de redução significativa dos danos cau sados pelo sistema criminal Apesar da finalidade da justiça juvenil restaurativa ser conforme a doutrina de conscientização do adolescente em conflito com a lei de maneira que ele se entenda como responsável pelo dano causado e a partir dessa responsabilização e conscientização propõe melhoria na administração da justiça com consequente redução de desigualda 260 De acordo com mapeamento feito pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplica da IPEA e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública FBSP lançado no Rio de Janeiro em 5 de junho de 2017 intitulado Atlas da Violência no Brasil 2017 que se baseou em fontes oficiais do Sistema de Informação sobre Mortalidade SIM do Ministério da Saúde e nos registros policiais publicados no 10º anuário Brasileiro de Segurança Pública Disponível em httpwwwipeagovbrportal images170602atlasdaviolencia2017pdf Acesso em 10 nov 2017 594 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça des socioeconômicas existentes na realidade brasileira e diminuição do crime e da violência261 não podemos deixar de fazer uma crítica social ao estado punitivo que se instaurou no Brasil e que cria uma seletividade penal no contexto da criança e do adolescente também O drama da juventude perdida possui duas faces De um lado a perda de vidas humanas e do outro lado a falta de oportuni dades educacionais e laborais que condenam os jovens a uma vida de restrição material e de anomia social que terminam por impulsionar a criminalidade violenta Enquanto isso a sociedade que segue marcada pelo temor e pela ânsia de vin gança parece clamar cada vez mais pela diminuição da idade de imputabilidade penal pela truculência policial e pelo encar ceramento em massa que apenas dinamizam a criminalidade violenta a um alto custo orçamentário econômico e social262 O conceito de Estado penal foi cunhado por Loïc Wacquant so ciólogo francês radicado nos EUA que estuda a segregação racial a pobreza a violência urbana a desproteção social e a criminalização e se caracteriza por diminuir as prerrogativas no âmbito econômico e social e por aumentar as atividades em matéria de segurança su bitamente relegada à mera dimensão criminal WACQUANT 2001 De acordo com Wacquant 2007 p 126127 esse modelo neoliberal de gestão penal destinase a regular senão perpetuar a pobreza e ar mazenar os dejetos humanos do mercado uma verdadeira ditadura sobre os pobres Wacquant 2001 p 10 Voltase para aqueles que compõem o subproletariado negro das grandes cidades as frações desqualificadas da classe ope rária aos que recusam o trabalho mal remunerado e se voltam para a economia informal da rua cujo carrochefe é o tráfico de drogas263 261 PALLAMOLLA Raffaella da Porciuncula Justiça restaurativa da teoria à prá tica São PauloIBCCRIM 2009 p 136 139 262 Trecho constante do Atlas da Violência do Brasil 2017 produzido pelo Institu to de Pesquisa Econômica Aplicada Ipea em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública p 26 263 WACQUANT Loïc Entrevista A criminalização da pobreza Mais Humana dez 1999 Disponível em httpwwwuffbrmaishumanaloic1htm Acesso Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 595 O contexto capitalista no qual estamos inseridos contribui mui to para a seletividade penal sendo de fato possível argumentar que atualmente a atrofia planejada do estado social e a súbita hiper trofia do estado penal são dois movimentos concomitantes e comple mentares Wacquant 2007 p 40 A presente era de globalização do capitalismo que arrasta consigo a globalização dos conflitos e dos riscos é marcada sob o domínio legitimador da ideologia neoliberal por um duplo movimento a sa ber de maximização do poder econômico globalizado x minimização do poder político nacional e fragilização dos canais tradicionais de mediação política entre estado e comunidade ou seja dos atores po líticos tradicionais partidos parlamento administração e do espaço público democrático No prolongamento deste movimento e como seu retrato intrassistêmico desenvolvese um outro de reengenharia institucional o de maximização do estado penal x minimização do estado social a que vimos denominando estado do malestar penal Ao estado neoliberal mínimo no campo social e da cidadania pas sa a corresponder um estado máximo onipresente e espetacular no campo penal os déficits de dívida social e cidadania são ampla e verticalmente compensados com excessos de criminalização os dé ficits de terra moradias educação estradas ruas empregos escolas creches e hospitais com a multiplicação de prisões Estamos pe rante autêntica indústria do controle do crime Christie 1998 que realizando a passagem do estadoprovidência ao estadopenitên cia Wacquant 2001 cimenta as bases de um genocídio em marcha de um genocídio em ato Zaffaroni 1991264 Dentro do contexto brasileiro atual então a ideia de segurança pública é concebida com a finalidade de exibição e por tal motivo a grande maioria das intervenções penais que temos se utilizam de punição severa com tradução expressa da sensação pública de insegu rança o que traz um caráter altamente e somente punitivo265 em06 nov 2017 264 ANDRADE Vera Regina Pereira de A colonização da justiça pela justiça penal potencialidades e limites do judiciário na era da globalização neoliberal Revista de Estudos Criminais Florianópolis v 9 2009 p 42 265 WACQUANT Loïc Punir os pobres a nova gestão da miséria nos EUA Rio de Janeiro Freitas Bastos 2007 p 9 596 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça As medidas que configuram tal postura são pouco originais e singularmente violentas condenações mais severas encarcera mento massivo leis que estabelecem condenações obrigatórias mínimas e perpetuidade automática no terceiro crime three strikes and youre out estigmatização penal restrições à li berdade condicional leis que autorizam prisões de segurança máxima reintrodução de castigos corporais multiplicação de delitos aos quais são aplicáveis pena de morte encarceramento de crianças aplicação de legislação criminal adulta aos me nores de 16 anos políticas de tolerância zero etc Enfim são legislações que nada mais expressam do que o desejo de vin gança orquestrado pelo velho discurso da lei e da ordem 266 Percebemos portanto que dentro do contexto de seletividade penal em decorrência do sentimento de insegurança da população brasileira desenvolvese a existência de uma exceção permanente Dessa forma surgem discursos que procuram legitimar esse endureci mento penal como um Direito Penal do Inimigo onde seria o inimigo quem se desvia permanentemente do direito recusandose a retornar ao comprimento fiel da norma e o que constatamos na prática é que esse indivíduo que é visto como inimigo do Estado não tem seus direi tos reconhecidos mas ao contrário tem uma guerra declarada contra ele267 Esse deslocamento de uma medida provisória e excepcional para uma técnica de governo ameaça transformar radicalmen te e de fato já transformou de modo muito perceptível a estrutura e o sentido da distinção tradicional entre os diversos tipos de constituição O estado de exceção apresentase nessa perspectiva como um patamar de indeterminação entre demo cracia e absolutismo268 E é justamente essa reflexão que se faz necessária nesse momen to Temos instaurada em nossa nação há mais de duas décadas uma 266 ARGËLLO Katie Do estado social ao estado penal invertendo o discurso da ordem I Congresso de Criminologia Londrina novembro 2005 267 JAKOBS Günter CANCIO MELIÁ Manuel Derecho penal del enemigoTrad Madrid Civitas 2003 p 3945 268 AGAMBEN Giorgio Estado de exceção São Paulo Boitempo Editorial 2004 p 13 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 597 Constituição democrática entretanto há vários pontos de emergência permanentes que são de análise necessária uma vez que a justiça res taurativa representa uma alternativa penal que se contrapõe ao en durecimento do sistema criminal que foi causado pelo sentimento de impunidade que a sociedade brasileira sente Existem diferenças básicas entre o modelo formal de justiça denominado retributivo e o modelo impresso na Justiça Restaurativa A Justiça Restaurativa emerge como quebra de paradigma conforme explicado anteriormente a partir do advento do Estatuto da Criança e do Adolescente frente ao que se entende como Justiça Criminal apon tando as falhas e ineficiências e modificando os focos e soluções O enfoque restaurativo se contrapõe ao punitivoretributivo na medida em que considera a infração como violação a um rela cionamento interpessoal e não de leis regras Essa alternativa penal questiona o modelo que pretende acabar com a violência por meio de práticas igualmente violentas o que acaba por na verdade gerar um círculo vicioso Nas palavras de Zehr Culpa e punição são os fulcros gêmeos do sistema judicial As pessoas devem sofrer por causa do sofrimento que provocam Somente pela dor terão sido acertadas as contas O objetivo básico de nosso processo penal é a determinação da culpa e uma vez estabelecida a administração da dor269 A infração no modelo restaurativo deixa de ser encarada como mero tipo penal e passam a ser importantes também as origens do fato deixando de se tratar de uma relação de causa e efeito270 Con forme o exposto fica clara a percepção de que a Justiça Restaurativa é uma metodologia que pode ser utilizada para a transformação das relações o que teria muito mais valor no cunho pedagógico do que a mera retribuição surgindo como proposta real de alternativa à difi culdade do ser humano de coexistir com as diferenças 269 ZEHR Howard Trocando as lentes um novo foco sobre o crime e a justiça São Paulo Palas Athena 2008 p 74 270 ACHUTTI Daniel Modelos contemporâneos de justiça criminal Porto Ale gre Livraria do Advogado 2009 p 73 598 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça O ponto central da discussão é o entendimento de que o ataque das manifestações violentas sem a consideração de suas razões e mo tivações não elimina o problema e essa é a principal característica da disciplina escolar A proposta seria então a construção conjunta de regras representativas da comunidade escolar em questão pois em geral a participação coletiva na construção culmina em maior com prometimento dos membros devido ao sentimento de autoria é um estímulo à ética civil por meio do diálogo e do respeito Cabe salientar que a ideia de educação social não se restringe a incluir e inserir na sociedade os segmentos marginalizados mas for mar cidadãos capazes de raciocínio crítico suficiente para que perce bam e recusem o lugar social que foram enquadrados pelo sistema de classes atuando na superação da exploração II ESTUDO DE CASO DO INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇAO DO RIO DE JANEIRO ISERJ O tema da convivência em ambiente escolar começou a ser foco do Instituto de Soluções Avançadas ISAADRS a partir do período de 2004 a 2008 quando começou a oferecer eventos e projetos de ca pacitação principalmente em temas relacionados à violência escolar como o bullying e abuso verbal Destes encontros e eventos realizados o Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro foi palco de capacitação sobre mediação e justiça restaurativa facilitação de diálogos acesso à justiça e práticas restaurativas entre 2010 e 2015 e isso fez com que o mesmo passasse a adotar em seus documentos a justiça restaurativa como meio de re solução de conflitos como veremos no tópico a seguir271 Primeiramente cabe a colocação da seção IV do Regimento In terno da FAETEC272 que trata das medidas disciplinares aplicadas ao corpo discente que estão dispostas nos artigos 109 e 110 do respectivo texto 271 CENTRO DE APOIO OPERACIONAL DAS PROMOTORIAS DE JUSTIÇA DE TUTELA COLETIVA DE PROTEÇÃO À EDUCAÇÃO A justiça restaurati va no contexto escolar Instaurando o novo paradigma Rio de Janeiro 2016p 10 272 Documento disponível em httpetejkcombrwpcontentuploads201509 regimentopdf Acesso em 20 out 2017 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 599 Art 109 A ação disciplinadora do educando na UE em princí pio tem caráter preventivo e orientador Parágrafo Único a aplicação das medidas disciplinares deverá ser feita sob o princípio de que esta é uma prática educativa sendo garantido o direito ao contraditório e à ampla defesa aos que nela forem envolvidos Art 110 Verificado o não cumprimento de seus deveres e a extrapolação dos seus direitos o Diretor ou Coordenador de Unidade poderá aplicar as seguintes medidas após o exercício regular de defesa do aluno devendo ser oportunizado exercí cio ao contraditório e à ampla defesa com a obrigatória noti ficação de seus pais ou responsáveis notadamente se criança ou adolescente confronto direto com o acusador depoimento pessoal perante a autoridade processante e arrolamentooitiva de testemunhas do ocorrido com condução em sigilo do pro cedimento facultandose ao acusado a assistência de advogado I advertência verbal II retirada do aluno de sala de aula ou atividade em curso e encaminhamento do mesmo à coor denação de turno para os devidos registros e encaminhamento à Orientação Educacional III advertência por escrito com ciência do responsável quando menor de 18 dezoito anos de idade IV suspensão das aulas por no máximo 5 cinco dias letivos V o estudante menor que for suspenso só poderá voltar às suas atividades letivas com a presença de seus responsáveis perante à Orientação Educacional Direção VI transferência compulsória para outra UE da rede VII assinatura de termo de responsabilidade pelo responsável ou pelo aluno maior de 18 dezoito anos de idade e acompanhamento de providências cabíveis Parágrafo Único Quando a conduta do aluno tipificar ato infracional descrito como crime ou contravenção penal o Diretor eou Coordenador deve comunicar através de encami nhamento e relatório a Ao Conselho Tutelar local se o aluno for menor de 18 dezoito anos de idade e posterior encami nhamento à Diretoria da Faetec b Ao Órgão Policial do local se o aluno for maior de 18 dezoito anos de idade e posterior encaminhamento à Diretoria da Faetec Percebemos então que o regimento da FAETEC possui a mes ma base atual do nosso ordenamento jurídico que tem como ideia de Justiça a mesma proporção do ato cometido ou seja a vítima e a comunidade só se sentem saciados quando o infrator é intimidado e repreendido 600 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Logo no início do Plano de Gestão podemos identificar sinais claros do uso da Justiça Restaurativa como meio de resolução de con flitos como podemos ver a seguir Com base no diálogo e na mediação a Direção Geral a Coorde nação Geral de Ensino Superior e a Direção do CApISERJ pro movem como espaço pedagógico de gestão de pessoas os cír culos restaurativos No gabinete da Direção Geral do ISERJ estão permanentemente dispostas em círculo cadeiras curvas geradoras de troca de olhares posturas frente a frente e aconche go humano Nesta estrutura física sempre que necessário e em cooperação com SOE SOP e Inclusão propõese a restauração do compromisso com os valores humanos e a reflexão coletiva sobre o papel social da escola pública Destacase a importância de se humanizar as questões pedagógicas ao invés de criminali zálas Todos são convidados à relativização das posturas indi vidualistas e ao exercício ético das desculpas mútuas Com este procedimento metodológico buscase minimizar o pensamen to dogmático de que os conflitos são intransponíveis e ainda de que a justiça só se estabelece indo às últimas instâncias de de legacias e tribunais 273 grifos da autora Nesse trecho podemos ver manifestação do princípio da inter venção mínima ou ultima ratio do Direito Penal com base no funda mento do Estado Democrático de Direito e na dignidade da pessoa humana ambos dispostos na Constituição Federal da República A observância desse princípio é decorrência imediata do chamado ga rantismo penal que não tolera que o Direito Penal seja o único instru mento de controle social sob pena de banalizar a sua atuação que deve ser subsidiária Também nesse trecho encontramos referência aos círculos res taurativos meio de resolução de conflitos próprio da Justiça Restaura tiva Os chamados círculos restaurativos objetivam ir além do acordo pois são ambientes de encontro onde prevalece o respeito às diferen ças firmando compromisso com a não violência e restaurando a con fiança mútua274 Ressaltase que o círculo de resolução de conflitos não 273 Plano de Gestão do Instituto Superior de Educação 20172019 Rio de Janeiro FAETECSECT 2017 p 35 274 PRANIS Kay BOYESWATSON Carolyn No coração da esperança guia de Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 601 prediz o tratamento ou a solução do conflito mas caminha no sentido da criação de estratégias e acordos para a gestão desse conflito Outro ponto que podemos destacar no Plano de Gestão é o se guinte Tomando como referência o perfil identitário da instituição ISERJ ou seja a Formação de Educadores e o contexto de colapso socioambiental no qual vivemos realidade adversa para a grande maioria da população brasileira destacamos o sentido social da educação pública e ao mesmo tempo o desejo da população fluminense por nova organização socio cultural exemplificados no reconhecimento e na necessidade do processo de escolarização de qualidade em nossa comple xa estrutura urbana e rural Assim enfatizamos a contribuição sócio educacional das instituições públicas de ensino no Esta do Neste cenário o ISERJ configurase centro de referência da formação permanente seja na educação básica ou no ensino superior focando crianças jovens e adultos com necessidades especiais ou não A Educação Básica e o Ensino Superior num mesmo espaço acadêmico pedagógico constitui um dos dife renciais do ISERJ275 grifos da autora Nesse momento do plano podemos nos remeter ao que foi dito sobre a necessidade de um novo olhar do ato infracional à luz do con texto social para superar o distanciamento entre as classes sociais de corrente dos ordenamentos patrimonialistas enraizados em nossa so ciedade É muito importante esse ponto pois a escola com qualidade social é aquela que se atenta para aspectos e dimensões socioeconô micas que circundam as famílias e os estudantes para assim transfor mar o espaço em um lugar de aprendizagem significativa e de vivência efetivamente democrática276 práticas circulares Trad Fátima de Bastiani Porto Alegre Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul 2011 p 21 275 Plano de Gestão do Instituto Superior de Educação 20172019 Rio de Janeiro FAETECSECT 2017 p 21 276 SILVA Maria Abadia Qualidade Social da Educação Pública Algumas Apro ximações Cad Cedes Campinas vol 29 n 78 p 216226 maioago 2009 Disponível em httpwwwcedesunicampbr Acesso em 20 out 2017 602 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça CONSIDERAÇÕES FINAIS Os direitos e garantias fundamentais do ser humano estão previstos tanto no âmbito internacional quanto no nacional no preâmbulo e vá rios outros artigos da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 Além dos direitos e garantias gerais as crianças e adolescen tes por serem indivíduos em condição especial de desenvolvimento encontramse no ordenamento jurídico sujeitas a uma proteção espe cial sendo resguardados pela chamada doutrina da proteção integral que enxerga o ser humano como um todo e não somente a infração penal Entretanto apesar da previsão legal dos direitos humanos o que se verifica no sistema penal atual é sua constante violação O sistema penal encontrase em condições deploráveis e a medida socioeducati va de internação se mostra totalmente ineficaz principalmente para o propósito que foi criada que seria a ressocialização e reintegração do infrator Nesse contexto a Justiça Restaurativa surge como uma promes sa de uma nova forma de pensar e fazer justiça pois nela o respeito e a garantia dos direitos fundamentais e a conscientização levam em conta o ato danoso Além disso a ideia de Justiça Restaurativa é muito mais compatível com a ideia de educação do que a Justiça Retributiva tradicional que visa apenas a pena pela pena sem um processo pe dagógico que instaure o novo pensamento na mente do adolescente infrator Todavia mesmo sendo um modelo ideal de resolução de confli tos na escola não é tão fácil alcançar o modelo de Justiça Restaurativa efetivo na prática e isso se deve a uma série de obstáculos Primeiramente o senso comum de que a Justiça Restaurativa seria equivalente a impunidade o que leva a vítima do ato danoso sua família e os próprios profissionais da educação a entenderem esse modo alternativo de resolução de conflitos como uma ausência de pu nição por parte da escola Em segundo lugar a necessidade da implantação de um modelo que tenha a participação de toda a comunidade o que é muito difí cil de ser alcançado porque é muito trabalhoso o estabelecimento do Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 603 compromisso de todos para o alcance da Justiça Restaurativa Apesar desses obstáculos como relatado no estudo de caso o Ins tituto Superior de Educação do Rio de Janeiro vem caminhando pro gressivamente para instauração de um modelo restaurativo de reso lução de conflitos em contraposição ao modeloregra instaurado por sua mantenedora Fundação de Apoio à Escola Técnica FAETEC que segue as mesmas diretrizes do ordenamento jurídico brasileiro que toma como base a Justiça Retributiva no sistema disciplinar Concluise que a Justiça Restaurativa é um modelo de justiça pe nal que merece atenção e que tem futuro tendo muito mais chances de alcançar os objetivos de ressocialização recuperação e reintegração do infrator principalmente tratandose de crianças e adolescentes no contexto escolar Contudo para que este modelo seja alcançado com plenitude é necessária uma mudança na cultura da sociedade e o entendimento de que é possível a promoção de uma negociação coletiva entre in frator vítima e comunidade com reparação do dano causado pelo ato infracional e possibilidade de retorno ao convívio social sem o uso extremado da força do Estado A aplicação da justiça restaurativa como um novo método de so lução de conflitos se observados ponderações e limites de aplicação criteriosamente definidos tornará o instituto funcional envolvendo uma série de infrações penais o que possibilitará avanços promissores no nosso sistema penal REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ACHUTTI Daniel Justiça Restaurativa e Abolicionismo Penal contribuições para um novo modelo de administração de conflitos no Brasil São Paulo Saraiva2014 Modelos contemporâneos de justiça criminal Porto Alegre Livraria do Advogado 2009 AGAMBEN Giorgio Estado de exceção São Paulo Boitempo Edi torial 2004 604 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ARGËLLO Katie Do estado social ao estado penal invertendo o discurso da ordem I Congresso de Criminologia Londrina novem bro 2005 CENTRO DE APOIO OPERACIONAL DAS PROMOTORIAS DE JUSTIÇA DE TUTELA COLETIVA DE PROTEÇÃO À EDUCA ÇÃO A Justiça Restaurativa no Contexto Escolar Instaurando o novo paradigma Rio de Janeiro 2016 INSTITUTO SUPERIOR DE EDUCAÇÃO DO RIO DE JANEIRO Plano de Desenvolvimento Institucional do ISERJ PDIISERJ 20122016 FAETEC Rio de Janeiro Secretaria de Ciência e Tecnolo gia 2012 Disponível em httpwwwiserjedubrformularioseregu lamentos Acesso em 19 out 2017 Regimento Interno do Instituto Superior de Educa ção do Rio de Janeiro FAETEC Rio de Janeiro Secretaria de Ciên cia e Tecnologia 2009 Disponível em httpwwwiserjedubrfor mularioseregulamentos Acesso em 19 out 2017 Plano de Gestão do Instituto Superior de Educação 20172019 Rio de Janeiro FAETECSECT 2017 Disponível em httpwwwiserjedubrformularioseregulamentos Acesso em 19 out 2017 JACCOUD Mylène Princípios tendências e procedimentos que cer cam a justiça restaurativa In SLAKMON Catherine DE VITTO Re nato Pinto de PINTO Renato Sócrates Gomes Orgs Justiça Res taurativa coletânea de artigos Brasília Ministério da Justiça 2005 p 163188 JAKOBS Günter CANCIO MELIÁ Manuel Derecho penal del ene migo Trad Madrid Civitas 2003 MCCOLD Paul WATCHELTed Em busca de um paradigma uma teoria de Justiça Restaurativa In Restorative Practices EFORUM Agosto 2003 p 3 Também disponível em wwwrestorativepractices org Acesso em 27 set 2017 MORRIS Alisson Criticando os críticos uma breve resposta aos crí ticos da Justiça Restaurativa In SLAKMON Catherine DE VITTO Renato Pinto de PINTO Renato Sócrates Gomes orgs Justiça Res taurativa coletânea de artigos Brasília Ministério da Justiça 2005 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 605 p 439472 PALLAMOLLA Raffaella da Porciuncula Justiça Restaurativa da teoria à prática São Paulo IBCCRIM 2009 PRANIS Kay BOYESWATSON Carolyn No coração da esperan ça guia de práticas circulares Trad Fátima De Bastiani Porto Ale gre Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul 2011 SILVA Maria Abadia Qualidade Social da Educação Pública Algu mas Aproximações Cad Cedes Campinas vol 29 n 78 p 216226 maioago 2009 Disponível em httpwwwcedesunicampbr Acesso em 20 out 2017 WACQUANT Loïc Punir os pobres a nova gestão da miséria nos EUA Rio de Janeiro Freitas Bastos 2007 As prisões da miséria Rio de Janeiro Jorge Zahar 2001 ZEHR Howard Trocando as lentes um novo foco sobre o crime e a justiça São Paulo Palas Athena 2008 606 ABORDAGENS INTERDISCIPLINARES ENTRE AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS E O DIREITO INTERNACIONAL UMA PERSPECTIVA FEMINISTA Camila Soares Lippi277 1 INTRODUÇÃO Quando lemos os trabalhos que fazem um balanço sobre análises in terdisciplinares entre Direito Internacional DI e Relações Interna cionais RI o panorama que nos é apresentado é o de um diálogo truncado DUNOFF e POLLACK 2013 p 36 afirmam que isso é uma consequência da Segunda Guerra Mundial Até então profissio nais das duas áreas tinham um interesse comum na elaboração in terpretação e aplicação do DI Quando a primeira cátedra de RI foi criada em 1919 em Aberyswyth País de Gales no período entre as duas guerras mundiais estudiosos das duas áreas argumentavam que a propagação da democracia e o desenvolvimento de instituições in ternacionais poderia deter uma nova guerra como a que se iniciou em 1914 Mas a Segunda Guerra Mundial teria sido um divisor de águas deixando o DI desacreditado entre cientistas políticos num momento em que ganhava forma nas RI uma teorização realista que rejeitava que o DI poderia constranger os Estados na sua busca pelo interesse nacional Isso levou a que mesmo quando tratassem de temas que implicam na interseção entre o Direito Internacional e a Política Inter 277 Professora de Direito Internacional no curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Amapá UNIFAP Doutoranda em Relações Interna cionais na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUCRio Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 607 nacional juristas e estudiosos das Relações Internacionais o fizessem a partir de métodos conceitos e referenciais teóricos se suas respectivas disciplinas de forma endógena a elas Assim há para esses autores diferenças substantivas sobre as teorias e sobre o que os teóricos de cada área consideram como o papel da teoria há diferentes episte mologias assim como concepções diferentes sobre o papel do Direito Internacional nas duas disciplinas LEANDER e WERNER 2016 p 7576 por sua vez destacam que há um duplo paradoxo no desenho de fronteiras disciplinares en tre as Relações Internacionais e o Direito Internacional por um lado tentativas de cruzar as fronteiras disciplinares são acompanhados por tentativas de fechálas e exemplificam isso pelo debate Keohane e ZumKoskeniemmi e Klabbers os primeiros afirmando a necessidade de cruzar a fronteira para politizar o debate no Direito Internacional seja no tratamento do DI como mero instrumento das RI seja na utilização da política internacional para garantir que o DI seja jus to e os dois últimos afirmando o lado político do Direito Internacio nal e portanto a desnecessidade de uma perspectiva interdisciplinar acusando os dois primeiros de imperialismo disciplinar por outro acadêmicos persistem em avançar suas próprias concepções de legali dade ao afirmar essas fronteiras disciplinares LEANDER e WERNER 2016 sublinham ainda na mesma linha que Dunoff e Pollack que nessa performatividade do desenho de fronteiras disciplinares e nesse diálogo truncado teóricos tanto das RI quanto do DI demonstram reciprocamente um desconhecimento cabal da diversidade teórica epistemológica conceitual e metodológica da outra área Porém quando analisamos a produção teórica feminista tanto no DI quanto das RI o que se observa é o contrário Constatase aí um diálogo interdisciplinar frutífero entre as RI e o DI com conceitos comuns e proximidade metodológica Ao contrário da maioria dos teóricos das RI e do DI que parecem desconhecer a produção teórica da outra área o que percebemos é que teóricas feministas do DI como Hilary Charlesworth e Christine Chinkin frequentemente citam teó ricas feministas das RI como J Ann Tickner e Cynthia Enloe em seus trabalhos de forma respeitosa e deferencial e viceversa A partir dessa constatação procurase compreender porque esse diálogo geralmente tão truncado entre as Relações Internacionais e o Direito Internacional flui tão bem sob um ponto de vista feminista 608 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Argumentase aqui que um dos motivos pelos quais isso ocorre é que feministas nas duas áreas do conhecimento têm um objetivo central em sua teorização que as faz romper todas as barreiras disciplinares para atingilo a emancipação feminina Além disso o conceito de so roridade de ver as mulheres como fazendo parte de uma mesma ir mandade de na mesma rede dandose apoio mútuo nos desafios que enfrentam em suas respectivas carreiras profissionais pode explicar porque ao contrário de um amor contaminado como LEANDER e WERNER 2016 descrevem os diálogos entre as RI e o DI a relação entre feministas nas duas áreas ser aparentemente uma relação de tro ca e compartilhamento de saberes Assim as feministas redesenham as fronteiras do internacional de forma inter e contradisciplinar 2 OBJETIVOS E MÉTODOS Teóricas feministas tanto no DI quanto nas RI têm um objetivo em co mum a emancipação feminina a erradicação do patriarcado pensadas e levadas a cabo pelas próprias mulheres a partir de suas próprias lu tas Por isso em ambas as áreas elas negam a neutralidade da ciência afirmam a impossibilidade de construir conhecimento desinteressa do e assumem um compromisso político na atividade científica o de emancipação das mulheres Nas palavras de J Ann TICKNER 2014 Since many feminists do not believe that it is possible to separate thought from action and knowledge from practice they claim that feminist research cannot be separated from the historical movement for the im provement of womens lives out of which it emerged If the aim of feminist research is to empower women then the researcher must be actively engaged in political struggle and must be aware of the policy im plications of her work CHARLESWORTH 1993 p 5 escrevendo do ponto de vista do Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 609 Direito Internacional vai no mesmo sentido que Tickner afirmando que é objetivo de uma análise feminista erradicar a dominação mas culina na área whatever the cultural context feminist analysis involves a commitment to eradicating male dominance and to achieving real equality between women and men This commitment ma kes it possible to develop international feminist approaches Isso tem implicações no campo metodológico Como já dito aci ma ao colocar a academia como espaço de militância e a produção do conhecimento como tendo por objetivo fundamental a emancipação das mulheres as feministas partem da impossibilidade de que o co nhecimento possa ser neutro e afirmam abertamente que o que pro duzem não é conhecimento neutro e sim conhecimento politicamen te situado em prol da emancipação feminina Por isso ao contrário dos positivistas feministas nas RI negam que haja um único padrão metodológico ou um modo feminista de fazer pesquisa e consi deram na verdade inconveniente construir um método feminista de pesquisa TICKNER 2014 CHARLESWORTH 1993 p 23 afirma também não haver uma única metodologia nas abordagens feministas do Direito Internacional e que é inconveniente que exista pois como há um silenciamento de teorias feministas todas as frentes devem ser usadas para desafiar esse silenciamento Although feminist methodologies are diverse to varying de grees all acknowledge the silencing of women and the deafness of traditional systems of knowledge to womens voices Sandra Harding has usefully identified three categories of feminist analysis empiricism standpoint theories and postmodernism This typology however does not capture the overlap and inter sections between feminist theories Although each of these theories has been critiqued by other fe minists I would argue that all have a place in feminist analysis of international law precisely because the project is in its very earliest phase The great silence of our discipline with respect 610 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça to women needs to be challenged on every front All these fe minist theories need to be tested in an international context so that their contribution can be assessed The feminist project in law is less a series of discrete interpretations than in Ngaire Naffines words a sort of archaeological dig Different techni ques are appropriate at different levels of the excavation Nas palavras de TICKNER 2014 existiriam quatro linhas gerais que costumam informar perspectivas feministas uma preocupação profunda com quais problemas de pesquisa são formulados e por que são formulados o objetivo de formular pesquisas que são úteis para mulheres a centralidade da subjetividade das autoras já que a neu tralidade é vista como impossível pelas feministas e a produção do conhecimento como forma de emancipação Como todo projeto de pesquisa aqueles que partem de qualquer perspectiva devem tratar algo que seja considerado importante para uma determinada disciplina Porém feministas muitas vezes diver gem de outros teóricos em relação ao que é importante tanto no Di reito Internacional quanto nas Relações Internacionais pois o que é importante para as feministas frequentemente é visto como não sendo relevante para os acadêmicos que trabalham com outros referenciais teóricos nessas duas áreas TICKNER 2014 Por exemplo as mulhe res normalmente jogadas às margens das Relações Internacionais são importantes para entender o poder porque o poder é relacional como nos alerta Cinthya ENLOE 2006 Para a autora as mulheres maias da região de Chiapas no México exercendo trabalhos mal remunerados são tão importantes de serem estudadas para entender o Acordo de LivreComércio da América do Norte NAFTA quanto os diplomatas que negociaram esse tratado ou os empresários mexicanos que dele se beneficiaram e que exploram a força de trabalho precarizada dessas mulheres Da mesma forma é importante compreender os impactos es pecíficos do NAFTA na vida dessas mulheres com intensificação da precarização de seu trabalho na perspectiva de emancipação dessas mulheres Compreender o cotidiano das mulheres indígenas em Chia pas algo tratado como rotineiro e sem importância em abordagens convencionais das Relações Internacionais é essencial para entender Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 611 o mundo em que vivemos para as feministas Portanto teóricas femi nistas das Relações Internacionais desafiam as fronteiras performati camente desenhadas entre o internacional e o doméstico ao afirmar a importância para as RI de algo que pesquisadores da área frequen temente entendem como doméstico como a exploração do trabalho mal remunerado e precário de mulheres indígenas como sendo im portante para as Relações Internacionais Da mesma forma CHARLESWORTH 1999 p 381 afirma que abordagens feministas do Direito Internacional levam em considera ção a importância não só do que está expresso nas normas interna cionais mas dos silêncios dessas normas em relação às mulheres De acordo com a autora todos os sistemas de conhecimento dependem da consideração de certos assuntos como irrelevantes ou pouco sig nificantes assim esses assuntos são silenciados durante a pesquisa Mas esses silêncios podem ser tão importantes ao estudo do Direito Internacional quanto as suas normas positivadas ou suas estruturas retóricas Eles não emergem como simples lacunas ou buracos que en fraquecem o edifício do Direito Internacional e que podem ser reme diados de forma rápida eles são parte integral da estrutura da ordem jurídica internacional elementos críticos de sua estabilidade Assim de acordo com a autora ao estudarem o Direito Internacional em pregando essa metodologia as feministas detectam que as mulheres não estão completamente ausentes da ordem jurídica internacional Porém quando entram em foco nesse ramo do conhecimento são frequentemente vistas de forma muito limitada como vítimas como mães ou mães em potencial que necessitam de proteção e não por exemplo como combatentes É como se a vida das mulheres somente ganhasse importância no Direito Internacional quando elas assumem a função da maternidade Assim segundo Charlesworth essa meto dologia é um instrumento extremamente útil de denúncia da exclusão ou de uma subinclusão das mulheres em relação ao Direito Interna cional Portanto algo em comum entre essas autoras tanto nas Relações Internacionais quanto no Direito Internacional é que elas consideram questões que são frequentemente ignoradas em suas respectivas áreas de conhecimento como as margens e os silêncios como importantes e se debruçam sobre essas questões desenvolvendo uma diversidade 612 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça de metodologias comprometidas politicamente com a emancipação feminina partindo do pressuposto de que as vidas das mulheres são importantes e muitas vezes não são compreendidas por seus colegas que costumam tratar seus respectivos trabalhos de anticientíficos e de senso comum conforme veremos com mais detalhes na próxima ses são 3 VOCÊS SIMPLESMENTE NÃO NOS ENTENDEM Em 1997 J Ann Tickner publicou um artigo que hoje é tido como um clássico do pensamento feminista nas Relações Internacionais inti tulado You Just Dont Understand Troubled Engagements Between Feminist and IR Theorist no qual o título desta sessão foi inspirado Nesse trabalho a autora afirma que embora teóricas feministas pro curem dialogar com o mainstream de Relações Internacionais essas tentativas eram infrutíferas TICKNER 1997 p 611 Marysia ZALEWSKI 1996 p 347 por sua vez lembra o quanto o ambiente acadêmico das RI é inóspito para as mulheres ao lembrar da ocasião em que Fred Halliday conhecido teórico marxista na área contou uma piadinha machista infeliz na mesa de um evento e a maio ria da plateia riu Fred Halliday contava a piadinha do diplomata dos Estados Unidos na Inglaterra que ao ser perguntado sobre o que mais sentia falta no seu país respondia um bom hambúrguer ao passo que sua mulher respondia meu emprego O fato de um acadêmico respeitado na área contar uma piada dessas ao compor a mesa de um seminário com a maior naturalidade e a plateia rir em sua maioria em vez de ficar chocada é para a autora o retrato de uma área predo minada por homens na qual a maioria parece não se importar sobre as inúmeras mulheres que largam suas respectivas vidas profissionais para tentar caber na vida de seus respectivos maridos diplomatas nem consegue perceber o quanto os Estados se beneficiam nas relações que estabelecem uns com os outros do trabalho doméstico não remunera do dessas mulheres exercem por exemplo na organização de jantares diplomáticos Escrevendo do ponto de vista do DI CHARLESWORTH 2010 relata a mesma experiência de dificuldade de diálogo com seus colegas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 613 na área pelas quais teóricas feministas das RI como Tickner e Zale wski passam Apesar de tipicamente se colocarem num diálogo com perspectivas do mainstream do DI autoras feministas na área passam pela experiência frustrante de serem ignoradas em suas tentativas de debate experimentando ao invés disso um monólogo como se sua teorização fosse menos importante Segundo a autora Feminist international legal scholarship typically presents itself as in conversation with the mainstream of international law We ask the mainstream to consider womens lives when applying or developing the law we critique the assumptions of interna tional legal principles and we argue for an expanded referen tial universe This conversation is however almost completely onesided a monologue rather than a dialogue It is very hard to find any response from the mainstream to feminist questions and critiques feminist scholarship is an optional extra a deco rative frill on the edge of the discipline CHARLESWORTH 2010 p 35 Em outro trabalho CHARLESWORTH descreve uma experiên cia sua de tentativa frustrada de diálogo empreendida por ela e outras teóricas feministas do Direito Internacional com autores do mains tream da área numa conferência sobre perspectivas feministas do DI As far as I am aware the first conference devoted to feminist approaches to international law was held at the Australian Na tional University in August 1990 It was preceded by a confer ence on The Role of Consent in International Law at which a number of the most venerable figures in international law today spoke Some of these distinguished men including Professor Oscar Schachter stayed on to attend the feminist conference They listened to papers on a wide range of topics Some pa pers ignored the academic conventions of detached analysis they were angry passionate and emotional Worst of all they were personal The sprinkling of men in the room no doubt felt rather vulnerable atypically surrounded by women and having their discipline roundly attacked in an ungentlemanly fashion The day after the conference one of our colleagues demonstrat ed that while he was all in favor of academic debate on serious issues the worst aspect of the proceedings was that they had 614 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça managed to estrange and upset our eminent guests in particu lar we had alienated Oscar CHARLESWORTH 1993 p 1 Fazendo um balanço de sua obra e sua vivência na área de Rela ções Internacionais TICKNER 2014 afirma que na década de 1980 associações profissionais na área como a International Studies Asso ciation ISA eram um território inóspito para pesquisadoras mulhe res e para a teorização feminista Esse não é mais o caso segundo a autora pois a militância feminista na ISA conseguiu a criação da Ses são de Teoria Feminista e Estudos de Gênero da mesma forma que criouse o primeiro periódico feminista na área de RI o The Inter national Feminist Journal of Politics IFJP Esse periódico ainda de acordo com Tickner auxiliou na formação de uma comunidade de acadêmicas feministas dando a elas um espaço para a divulgação de suas pesquisas que elas normalmente não tinham em seus respectivos departamentos e associações profissionais Essa formação de rede per mitiu a troca de conhecimentos entre pesquisadoras feministas de di versas áreas Isso é interessante devido ao machismo que sofriam no dia a dia enfrentando exclusão em seus respectivos departamentos não sendo citadas com frequência por colegas dentro de suas respec tivas áreas feministas na academia se engajaram em projetos de pes quisa colaborativos que cruzam fronteiras disciplinares Isso explica porque feministas nas RI e no DI costumam citar umas às outras com respeito e deferência elas são as únicas interlocutoras possíveis umas das outras Isso se deve pelo fato de que elas são tratadas por seus co legas como estando fora das fronteiras disciplinares das duas áreas e por isso são por eles tratadas como Estados costumam tratar apátri das e refugiados ou seja com exclusão e preconceito e tentativas de expulsão para fora das fronteiras do Estado no caso das feministas para fora das fronteiras de suas respectivas disciplinas Por isso elas não entram utilizando aqui os termos empregados por LEANDER e WERNER 2016 para tratar das relações entre RI e DI no jogo da performance disciplinar desempenhado pelos seus colegas pois fre quentemente a elas são negadas essas fronteiras E a noção de sorori dade é importante para compreender Por sororidade entendese a aliança feminista entre as mulhe res uma relação paritária entre elas que as propicia segurança e apoio Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 615 mútuo no combate ao patriarcado na qual elas se defendem juntas de ataques agressões ou qualquer outra forma de violência maustratos e desrespeitos que sofram decorrente de uma relação patriarcal RÍOS 2009 p 305306 A exclusão e a falta de respeito que diversos de seus colegas homens partidários de perspectivas mais tradicionais tanto no Direito Internacional quanto nas Relações Internacionais parece ter feito com que essas mulheres criassem alianças com base em uma sororidade tão forte que ultrapassou barreiras disciplinares Por isso performar a fronteira disciplinar não é importante para as feministas pois o sentimento de pertencimento a uma comunidade de irmãs que apoiam umas às outras nesses processos de exclusão machista faz com que essas fronteiras simplesmente caiam por terra 4 CONCLUSÕES Viuse na introdução deste trabalho que embora inicialmente as Relações Internacionais tenham mantido um diálogo muito profícuo com o Direito Internacional ele foi interrompido pela emergência da teorização realista nas Relações Internacionais A partir daí as fron teiras entre as duas áreas são desenhadas e performadas com concei tos e epistemologias próprias Por isso quando autores das RI e do DI tentam fazer diálogos entre as duas áreas frequentemente tratase de um diálogo truncado pois teóricos do DI olham para as RI com con ceitos muito endógenos à sua área e vice e versa Assim as duas áreas nessas tentativas infrutíferas de diálogo adotam visões muito simpli ficadoras uma da outra e ignoram de forma recíproca a diversidade teórica metodológica e epistemológica da outra área O mesmo não acontece quando olhamos os trabalhos de teóri cas feministas nas duas áreas que citam os trabalhos umas das outras com deferência e respeito num constante aprendizado recíproco Isso ocorre por dois motivos Um deles é que feministas ao contrário dos teóricos mais tradicionais das duas áreas que adotam uma perspectiva de neutralidade e distanciamento em relação a seus respectivos obje tos de pesquisa fazem teoria com o compromisso político de emanci pação feminista e por isso rechaçam a possibilidade de neutralidade do conhecimento e não colocam essa relação de distanciamento de 616 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça si próprias de seus objetos de pesquisa Isso tem consequências no campo metodológico que as aproxima com metodologias que buscam compreender os silêncios e as margens do Direito Internacional e das Relações Internacionais Outro motivo é que devido ao machismo que sofrem cotidiana mente em seus respectivos departamentos teóricas feministas tanto das RI quanto do DI por mais que tentem não conseguem interlocu tores em suas respectivas áreas pois seus colegas simplesmente tratam seus trabalhos como se não fossem sérios não fossem científicos Por isso elas acabam desenvolvendo uma interlocução com colegas femi nistas fora de seus respectivos departamentos O fato de não se sen tirem bemvindas na comunidade de acadêmicos de suas respectivas áreas de conhecimento o machismo que sofrem dentro delas faz com que elas desenvolvam uma noção de comunidade à qual pertencem uma sororidade tão forte que derruba fronteiras disciplinares entre as RI e o DI produzindo conhecimento interdisciplinar e contradis ciplinar politicamente comprometido com a emancipação feminina REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHARLESWORTH Hilary CHINKIN Christine The boundaries of International Law a feminist analysis Manchester Manchester Uni versity Press 2000 CHARLESWORTH Hilary CHINKIN Christine WRIGHT Shelley Feminist Approaches to International Law The American Journal of International Law vol 85 1991 p 613645 CHARLESWORTH Hilary Alienating Oscar Feminist Analysis of International Law Studies in Transnational Legal Policy 25 1993 p 118 Feminist Methods to International Law The American Journal of International Law vol 93394 1999 p 379 394 The PublicPrivate Distinction and The Right do Development in International Law Australian Yearbook of International Law 12 19881989 p 190204 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 617 The Women Question in International Law Asian Journal of International Law Vol 1 n 1 2010 p 3338 CHINKIN Christine A critique of the publicprivate dimension Eu ropean Journal of International Law V 2 nº 10 1999 p 387395 DUNOFF J L e POLLACK M A International Law and Internatio nal Relations Introducing an Interdisciplinary Dialogue DUNOFF J L POLLACK M A eds Interdisciplinary Perspectives on Interna tional Law and International Relations The State of the Art Cambrid ge Cambridge University Press 2013 p332 ENLOE Cynthia Margins silences and bottom rungs how to over come the underestimation of power in the study of international re lations SMITH Steve BOOTH Ken ZALEWSKI Marysia eds International theory positivism and beyond Cambridge Cambridge University Press 1996 p 186202 LEANDER A and WERNER W Tainted love the struggle over le gality in International relations and international law RAJKOVIC N M T AALBERTS T GAMMELOFTHANSEN T eds The Pow er of Legality Practices of International Law and their Politics Cam bridge Cambridge University Press 2016 p7598 PETERSON V Spike Feminist Theories Within Invisible to and Be yond IR Brown Journal of World Affairs WinterSpring 2004 Vol ume X Issue 2 p 3546 RÍOS Marcela Lagarde de los Sororidad GAMBA Susana Beatriz coord Diccionario de estudios de género y feminismos 2ed Bue nos Aires Biblos 2009 p 305311 SYLVESTER Christine Empathic cooperation A Feminist Method for IR Millenium Journal of International Studies V 23 nº 2 1994 p 315334 TICKNER J Ann A Feminist Voyage through International Rela tions Oxford Oxford University Press 2014 You Just Dont Understand Troubled Engage ments Between Feminist and IR Theorists International Studies Quarterly 1997 41 p 611632 618 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Gendering a discipline some feminist meth odological contributions to International Relations Signs Journal of Women in Culture and Society Summer 2005 p 21732188 Whats Your Research Program Some Feminist Answer to IRs Methodological Questions Boston Consortium on Gender Security and Human Rights Working Paper No 203 Dispo nível em wwwgenderandsecurityorg acessado no dia 11 de novem bro de 2007 YOUNGS Gillian Feminist International Relations a contradiction in terms Or why women and gender are essential to understanding the world we live in International Affairs 80 I 2004 p 7587 ZALEWSKI Marysia All these theories yet the bodies keep piling up theories theorists theorising MITH Steve BOOTH Ken ZALEWS KI Marysia eds International theory positivism and beyond Cam bridge Cambridge University Press 1996 p 340353 619 O SISTEMA PENAL ENQUANTO INSTRUMENTO DE PERPETUAÇÃO DA PRÁTICA AUTORITÁRIA Juliana Costa Chichierchio da Silva278 Resumo Este artigo busca identificar no marco da Criminologia Crí tica exemplos de permanências autoritárias do Sistema Penal brasi leiro por meio do paradoxo que possibilita discurso democráticos e práticas autoritárias presentes em um mesmo contexto social A re lação entre segurança democracia e autoritarismo e a materialização do sistema penal subterrâneo também serão analisados tendo em vis ta que evidenciam clara proposta de manutenção das estruturas de poder e combate ao inimigo O estudo dos instrumentos de controle social no período ditatorial se justifica na medida em que materializa um contexto autoritário pela lógica da guerra exercida por meio da ideologia da Segurança Nacional A abertura democrática perpetua determinados mecanismo de contenção social pelas demandas por ordem típicas do capitalismo neoliberal contemporâneo expressão do poder punitivo seletivamente direcionado que culminou no superen carceramento principalmente em razão da guerra às drogas e a da banalização das prisões cautelares Palavras Chave Sistema Penal Democracia Autoritarismo Deman das por Ordem 278 Mestra em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Programa de Pós Gradua ção em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro especialista em Ciências Criminais e Segurança Pública pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro Graduada em Direito pela Universidade Cândido Mendes Advogada Email julianaccsoutlookcom 620 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1 INTRODUÇÃO Apesar de nos encontrarmos em um Estado compreendido como de mocrático de Direito o Sistema Penal continua a se perpetuar como prática autoritária de controle social por meio de diversas estratégias que culminaram principalmente a partir da década de 90 no endure cimento punitivo causador do grande encarceramento Nesse trabalho nos propomos a analisar o Sistema Penal brasileiro e as permanên cias autoritárias na contemporaneidade assim como as estratégias de controle social típicas do capitalismo contemporâneo e sua influência direta no que entendemos por Estado Democrático de Direito A relevância do tema está em compreender os limites democráti co principalmente por meio do braço punitivo estatal O aniversário de 30 anos da Constituição de 1988 é data simbólica que representa a abertura política após 21 anos de intensa repressão Vivemos um período delicado da democracia em nosso país especialmente após o golpe midiático parlamentar 2016 apoiado pelo Poder Judiciário que contou com projetos de reformas como a trabalhista e previdenciária que podem afetar diretamente a vida e os Direitos Humanos dos cidadãos pela implantação de medidas cada vez mais autoritárias279 compreendidas como alternativa à crise eco nômica e política e tendo a mídia como um de seus suportes princi pais Nos orientamos sob a ótica da Teoria Crítica rompendo com a ideia de neutralidade compreendendo os contextos sóciohistóricos e as estruturas das sociedades de mercado cujo a realização da liberda de e da igualdade permanecem apenas aparentemente reais NOBRE 2004 Nesse contexto recorremos a criminologia crítica para com preender os processos de criminalização a partir das relações de poder e dominação questionando a ordem preestabelecida e os mecanismos 279 Como exemplo destacamos a Intervenção Federal Militar promulgada por meio do Decreto 9288 de 16 de fevereiro de 2018 que tem como objetivo por fim ao grave comprometimento da ordem pública Foi nomeado como interventor o General de exército Walter Souza Braga Netto comandante do Comando Militar do Leste que assumiu o comando da Polícia Militar do Rio de Janeiro da Polícia Civil e do Corpo de Bombeiros além de responder direta mente ao Presidente da República Com a intervenção o Secretário de Seguran ça Pública do Rio Roberto Sá foi afastado do cargo assumindo em seu lugar o General Richard Nunes Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 621 de controle social fundamentais para a manutenção do status quo por meio do enfoque macrossociológico A metodologia utilizada nesse trabalho parte de uma pesquisa teórica por meio da revisão bibliográfica a partir de uma abordagem interdisciplinares jurídicos históricos filosóficos e sociológicos de conceitos e teorias acerca dos fenômenos democráticos das relações de poder bem como de suas consequências no Sistema Penal Para além de tal abordagem recorremos a pesquisas empíricas já realiza das sobre o tema objetivando aproximar o saber teórico da realidade vivenciada cotidianamente pelos selecionados pelo Sistema Abordaremos a interdependência entre os temas segurança au toritarismo e democracia e seus reflexos no Sistema Penal analisando as relações de poder e dominação que permitem que apesar do arca bouço legal que garanta a preservação de garantias fundamentais e a igualdade de Direitos a realidade fática se apresenta por meio da ótica autoritária da violência da seletividade do Sistema e do desrespeito aos preceitos legais principalmente por agentes estatais Um Estado que é incapaz de impor sua legalidade sustenta uma democracia com cidadania de baixa intensidade ODONELL 1993 p 133 2 DEMOCRACIA SEGURANÇA E SISTEMA PENAL É fundamental observarmos a relação existente entre segurança au toritarismo democracia e estado de exceção para compreendermos os mecanismo de funcionamento do Sistema Penal Nas democracias liberais a segurança é compreendida enquanto ideal justificador de políticas criminais de forte viés autoritário Em uma sociedade liberal fundamentada nas teorias do contrato social é clara a dicotomia entre liberdade x segurança na qual o referencial político é centrado na figura do indivíduo De acordo com a teoria do estado de exceção AGAMBEN 2004 os momentos de crise abrem espaço para que medidas excepcionais sejam inseridas temporariamente no contexto social suspendendo a ordem préestabelecida na tentativa de salvaguardala mantendo a segurança por meio de restrições aos direitos do cidadão 622 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Práticas autoritárias comumente encontramse presentes em regimes democráticos O Estado de polícia está inserido no interior do Estado de Direito assim como a exceção está inserido no padrão democrático confrontandose com este dentro do seu próprio mar co em permanente tensão O Estado de Direito é concebido como o que submete todos os habitantes à lei e opõese ao Estado de polícia pois todos os habitantes estão subordinados ao poder daqueles que mandam BATISTA ZAFFARONI et alli 2015 p 41 os agentes de controle estatal não encontram limites de atuação De acordo com a perspectiva crítica cabe ao Direito Penal por meio da atuação do judiciário conter o poder punitivo caso contrá rio estaremos inseridos em um Estado de polícia fora de controle no qual o massacre e o genocídio serão aceitáveis A Escolas crimino lógicas liberal clássica e positivista influenciaram determinantemente a percepção do Sistema Penal atual em razão de seu predomínio no campo da ciência jurídica e dogmática Na sua vertente liberal limita a atuação estatal por meio de um conjunto de regras que legitimam a atuação do poder punitivo na sua vertente positivista desumanizam o criminoso por meio de um rígido determinismo que o coloca na posição de inimigo A ideologia da defesa social é um ponto em comum das referi das teorias e atua como discurso legitimador do Estado de polícia De maneira abstrata e ahistórica baseada no consenso de valores e interesses Tal ideologia orienta as demandas por ordem fornecendo bases para que as relações de poder se perpetuem através dos proces sos de criminalização direcionados ao controle social dos mais pobres O consenso em sua perspectiva hegemônica busca assegurar as ins tituições exercendo o controle através do desincentivo a contestação dificultando a típica luta de forças que busca testar os limites normati vos e favorecendo o afastamento político do cidadão Ordem não é um conceito neutro e sua definição operacional em todos os níveis do processo de tomada de decisão política envolve escolhas que refletem estruturas políticas e ideológicas dominantes Portanto a noção de desordem envolve julga mentos ideológicos e está sujeita a estereótipos e preconceitos sobre condutas indesejada de determinados indivíduos ZA VERUCHA p 49 in TELES SAFATLE 2010 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 623 A necessidade de compreender as demandas por ordem surge da imprescindibilidade de manter cidadãos em obediência na posição subalterna que ocupam PAVARINI 1983 CASTRO 1985 Em um sistema capitalista cuja base se sustenta no monopólio do capital e consequentemente na distribuição desigual da propriedade privada e dos meios de produção a atuação do aparato criminal é voltado para a manutenção desta ordem direcionada a garantir a tranquilidade dos possuidores PAVARINI 1983 Os bens jurídicos mais efetivamente protegidos são aqueles próprios das elites econômicas e políticas cen trados na criminalidade patrimonial SANTOS 2011 Ressaltamos que o controle exercido pela criminalização secundária280 se materia liza de maneira seletivamente racista direcionada para aqueles que as sumem o estereótipo de inimigo Para manter o sistema é necessário que população aceite sua po sição de subordinação por isso há que se garantir ampla aceitação de discursos perigosistas como instrumento justificador de políticas autoritárias inclusive em períodos compreendidos como democráti cos O Estado se utiliza do seu poder punitivo para impor uma refe rência disciplinar revelando sua necessidade de controle Não apenas em razão das disposições legais mas também e principalmente pela atuação das agências de controle formal e informal que evidenciam a posição que deve ser ocupada por cada segmento social para manu tenção do status quo A racionalidade a neutralidade a cientificidade e a ótica utilita rista positivista nos direcionam a ignorar aspectos da realidade social como as estruturas de classe as questões raciais de gênero e demais fatores que influenciam na formação da sociedade e do indivíduo Po rém o discurso punitivo também deve ser percebido na potência do seu silenciamento no exercício da sua seletividade e nas práticas de controle social exercidas através dos variados agente Vale ressaltar que o Brasil ao terceiro país que mais encarcera no mundo INFOPEN 2016 Os dados do Infopen e do Infopen Mu lher esclarecem o perfil da população carcerária Do total de presos brasileiros 64 são negros Apenas 9 dos presos tem ensino médio completo 80 tem grau de escolaridade inferior Nos últimos 16 anos 2000 a 2016 a taxa de aprisionamento de homens aumentou 157 no Brasil INFOPEN 2016 280 Aquela exercida pelas agências formais de controle como a polícia e o Judiciário 624 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Em relação as mulheres encarceradas 62 das mulheres são ne gras 15 tem ensino médio completo enquanto 77 tem grau de escolaridade inferior Em relação ao encarceramento feminino o Bra sil encontrase na quarta posição mundial ficando atrás dos Estados Unidos da China e da Rússia em relação ao tamanho absoluto de sua população prisional feminina Porém se observarmos a evolução da taxa de aprisionamento no período de 16 anos 2000 a 2016 é possí vel observar que a espantosa expansão do encarceramento feminino aumentou em 455 no Brasil No mesmo período a Rússia diminuiu em 2 o encarceramento deste grupo populacional INFOPEN Mu lher 2016 O consenso é racionalmente compreendido para garantir a he gemonia de um determinado grupo que pode se valer da exceção e do Estado de polícia para exercer maior dominação legitimado pelo discurso do medo da crise do inimigo por meio de uma lógica auto ritária de guerra totalmente dissociada do ideário democrático 3 AS DEMANDAS POR ORDEM DA DITADURA Lola Aniyar de Castro 1985 desenvolve a noção de sistema penal subterrâneo como aquele que é operado nos diversos níveis nos me canismos de controle formal e informal Atua à margem da lei de ma neira violenta e arbitrária aplicando a pena de morte tendo como métodos desaparecimentos torturas e outras tantas violações a direi tos humanos Parcela específica da população não está submetida nem mesmo aos princípios do Direito Penal liberal e as garantias processuais penais do indivíduo Por intermédio de uma rede sancionatória informal se instrumentaliza a discricionariedade da atuação dos agentes estatais motivada pelo reflexo social da criminalização primária e secundária O discurso oficial se legitima sob a ótica liberal da neutralidade do sistema restrito ao que está positivado na lei e as suas configurações formais principalmente quando se trata da criminalização primária No entanto a realidade concreta não condiz com o projetado pelo discurso oficial e a criminalização secundária expõe claramen te a lógica seletiva do sistema penal A prisão principal mecanismo Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 625 de controle das sociedades capitalistas é utilizada como instrumento de gestão de pessoas indesejáveis já que na prática não alcança suas funções declaradas de prevenção e correção Tal discurso legitimador exercem também funções ilusórias de encobrimento da natureza des sas relações sociais em geral apresentadas sob forma diversa ou opos ta pelo discurso jurídico oficial SANTOS 2010 p 7 A Ditadura instaurada no Brasil entre 19641985 tem início com o Golpe civilmilitar281 de 1964 legitimado pelo discurso de salvação do Brasil da ameaça comunista a partir da perspectiva do inimigo interno que deveria ser combatido e aniquilado Em uma realidade di tatorial e autoritária como a latinoamericana da década de 60 e 70 o sistema penal subterrâneo recebe o amparo da Doutrina da Segurança Nacional Com isso a demanda por ordem e a busca incessante pelo controle e pela ordem se justifiquem através da cultura do medo das prisões arbitrárias de tribunais especiais do alto número de desapa recidos da prática de tortura e execuções e o desrespeito a princípios processuais CASTRO 1985 O esquadrão da morte grupo formado por policiais materializa o direito penal subterrâneo uma vez que nas décadas de 19501960 sob o comando do temido delegado do Departamento de Ordem e Política Social Dops Sérgio Paranhos Fleury conhecido por caçar bandidos agiam de maneira extralegal atuando efetivamente na tor tura mortes de civis e presos políticos através do extermínio dos in desejáveis Os corpos daqueles que eram mortos por tal organização eram marcados pelas iniciais EM Entre os mecanismos autoritários de imposição da nova ordem estabelecida destacamos a criação de tribunais específicos para o jul gamento de opositores políticos a perda da independência do Poder Judiciário por meio de cassações e aposentadorias forçadas a crimina lização de opositores políticos o desrespeito aos direitos humanos e às garantias processuais previstas na legislação vigente como na suspen são do habeas corpus e a ampliação da competência da Justiça Mili tar para processor e julgar criminosos políticos O aparato autoritário recorre a prisões para averiguações sem embasamento legal e impõe 281 Optamos pela expressão golpe civilmilitar para esclarecer a base social do golpe de 1964 que contou com amplo apoio de importantes setores da sociedade brasileira como civis empresários a Igreja Católica e a mídia hegemônica para a concretização pelos militares de um Estado autoritário e antidemocrático 626 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça graves restrições ao direito de defesa como a incomunicabilidade dos presos entre outros FRAGOSO 1984 Sem dúvida o Direito Penal é um dos ramos do direito mais afe tado quando se estabelece uma novo governo ditatorial em razão de suas relações conflituosas com o poder As pretensões punitivas po dem variar em razão de acordo com quem estiver ocupando os cargos de comando e de seus objetivos políticos Quando isso ocorre é co mum haver a substituição do modelo antigo por um novo que adeque o conjunto de normas penais as práticas adotadas pelo governo e suas agências de controle O Regime Militar também buscou a aparência de legalidade e le gitimidade o que foi chamado por Pereira 2010 de legalidade au toritária mostrando a necessidade de construir um arcabouço legal e burocrático em consonância com o endurecimento repressivo e a onda crescente de violação de direitos que se concretizaram inclusive através dos porões da ditadura fora das instâncias legais criadas pelo próprio Regime BOITEUX BATISTA et alli 2015 Nesse período a militarização da segurança toma grandes pro porções Embora o caráter militar já estivesse sendo incorporado às instituições policiais de forma gradativa é aqui que as Forças Armadas passam a ser a principal referência de polícia política de Segurança Pública direcionadas ao objetivos principal de aniquilar a ameaça comunista e a conter o criminoso comum que nunca deixou de ser alvo de políticas repressivas a polícia militar encontrase submetida ao exército A atuação do Judiciário282 foi fundamental para trazer legitimida de a essa estrutura de poder Independentemente dos motivos que po dem ter influenciado magistrados a compactuar com as violações de direitos praticados pelos agentes da ditadura como identificação ideo lógica ou até mesmo o medo de ser cassado ou perseguido o fato é que a maioria dos magistrados legalistas e liberais continuaram a aplicar direito como se não estivessem sob a ditadura BATISTA BOITEUX 282 Não podemos deixar de mencionar a resistência por parte de parcela do judi ciário A aposentadoria ou remoção compulsória foram utilizadas contra mem bros do judiciário que decidiam em desacordo com o governo inclusive contra membros do Supremo Tribunal Federal como Hermes Lima Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 627 et alli 2015 p 55 Essa aparência de legalidade no entanto encobria a atuação clandestina da repressão as torturas perseguições e mortes A construção do inimigo e da ameaça ocorre por meio da lógica da guerra que justifica a necessidade de defesa da ordem e do controle da população aparada pela Doutrina da Segurança Nacional283 que materializa o estado de exceção legitimando o aparato bélico através da ampliação e do endurecimento do aparato repressivo e de práticas extremamente violentas inclusive fora do âmbito legal A resistência política se fez presente durante as diversas fases do regime ditatorial Porém era constantemente invisibilizada e manipulada por setores que apoiavam o golpe principalmente pela mídia Tal conjuntura excepcional durou 21 anos e fez diversas vítimas no mais longo regime autoritário brasileiro depois da República ime diatamente anterior ao período democrático no qual estamos inseri dos hoje Apesar O processo de abertura democrática se concretizou de maneira negociada sem que houvesse ruptura determinante das relações de poder A transição política da ditadura marca a passagem do Estado de exceção burocrático e autoritário para democracias neoliberais que acentuam as desigualdades sociais SANTOS 2010 Não se dá atra vés da noção de ruptura mas da perpetuação de uma lógica conti nuísta A complexidade demonstra que o novo não surge através da supressão mas sim da justaposição tornando mais difícil superar as permanências autoritárias É visível o prolongamento de elementos típicos dos momentos de exceção em um ambiente democrático as sim como versões atualizadas dessas matrizes e o surgimento de novas estratégias de controle O autoritarismo perpassa o regime ditatorial e democrático de maneira efetiva MARTINS 2011 Na democracia a Constituição garante maior abrangência de direitos porém na prá tica cotidiana o inimigo ainda deve ser eliminado agora em razão da Segurança Pública As negociações em torno da nova Carta movimentou forças opostas Deputados progressistas buscavam maior liberdade partici pação política e a garantia de direitos sociais Porém parte relevante da Assembleia era de composição conservadora e punitivista o que 283 Materializada por leis específicas lei 3835 Lei 89869 entre outros e pelos Atos Institucionais 628 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça fez com que o texto final aprovado fosse por vezes contraditório e que o status quo fosse mantido 4 MANUTENÇÃO DA ORDEM E SISTEMA PUNITIVO NA DEMOCRACIA A manutenção da ordem pública a aderência ao capitalismo neolibe ral e a necessidade de que garantias e direitos fossem respeitadas e va lorizadas em um país que saía de uma ditadura civilmilitar e buscava a redemocratização criaram um ambiente de contradição interna no Sistema Penal A Constituição de 1988 materializa essa ambiguidade quando dispõe um extenso rol de direitos ao mesmo tempo que prevê duras formas de repressão penal ANDRADE 2014 Tal heteroge neidade de forças buscava positivar os anseios da população após um longo período de intensa repressão porém estava direcionada para a manutenção de mecanismos de controle social punitivo por meio do discurso da segurança pública Houve grandes avanços formais como no Título II da CF88 dedicado aos Direitos e Garantias Fundamentais tais como o reco nhecimento do direito de não ser torturado art 5º III a garantia da integridade física e moral dos presos art 5º XLIX a garantia ao con traditório a ampla defesa art 5º LV CF88 ao devido processo legal art 5º LIV entre outros Bem como o Capítulo IV sobre os Direitos Políticos garante a soberania popular o sufrágio universal e o voto direto e secreto art 14 caput positivando direitos inadmissíveis du rante o Regime ditatorial Entretanto o mesmo texto constitucional abrange institutos re pressivos que sinalizam na direção de uma política penal neoliberal já em ascensão nos Estados Unidos concretizada através do fortaleci mento da repressão penal sobre os mais pobres Nesse sentido desta camos a previsão de crime hediondo no Título dedicado aos Direitos e Garantias Fundamentais do texto constitucional art 5º XLIII para os crimes de tortura tráfico ilícito de entorpecentes e terrorismo pos teriormente definidos pela Lei n 807290 que endurecia de manei ra significativa o aparato repressivo e inviabilizava diversos institutos despenalizadores anteriormente garantidos Como afirma Pastana Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 629 observase a utilização políticoideológica da violência sur gindo exatamente no momento de reabertura política Com a anunciada escalada da criminalidade pelo governo e pela im prensa a segurança nacional deu lugar a segurança pública e o que antes incomodava o cidadão ou seja a violência institucio nal passou a ser mostrada como a única forma de proteção O cidadão passou a aceitar um controle mais ostensivo temendo não mais o Estado opressor mas sim o marginal o bandido PASTANA 2003 p 45 Nesse contexto não poderíamos deixar de lado o papel funda mental da mídia para a compreensão da legitimação do contexto bé lico ao atuar como verdadeira agência de controle principalmente a mídia hegemônica televisiva que direciona o clamor por políticas pú blicas mais repressivas e violentas na tentativa de conter o sentimento de insegurança coletivo O endurecimento punitivo resultante da assunção da política neoliberal da busca incessante pela segurança e pela ordem em um contexto histórico social autoritário mas travestido de democráti co permite sem dificuldades o avanço do Estado Penal gerador do grande encarceramento seletivamente direcionado mas legitimado pela população que elevou o Brasil ao terceiro país que mais encarce ra no mundo284 ficando atrás apenas dos Estados Unidos da América e da China Contudo ao passo que EUA e China estão reduzindo suas taxas de encarceramento nos últimos anos o Brasil segue em trajetó ria diametralmente oposta incrementando sua população prisional285 Essa realidade pode ser observada principalmente em razão de dois exemplos o grande número de presos em prisão cautelar que atinge presos constitucionalmente inocentes sem sentença penal con denatória transitado em julgado286 se materializando enquanto es 284 World Prison Brief Institute for Prison Studies e InfopenMinistério da Justi ça jun2016 285 Idem 286 Destacarmos que o processo de endurecimento punitivo está constantemente sendo incrementado Nesse contexto destacamos a ADPF n 44 julgada em 5 de outubro de 2016 pelo STF que analisa a execução da pena após a decisão de segundo grau e visa decidir se a interpretação do artigo 283 do Código de Pro cesso Penal CPP estaria em consonância com as interpretações dos artigos 637 do CPP e 1029 5º do Código de Processo Civil Sem fazer uma crítica específica da decisão entendemos que uma interpretação contra a literalida 630 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça tratégia de fácil aplicação capaz de concretizar a sanha punitiva de maneira praticamente imediata mesmo violando princípios constitu cionais e a política criminal de guerra às drogas que ainda legitima a intervenção militar violenta nas favelas e periferias das cidades Do total de presos no Brasil 40 são provisórios o tráfico de drogas é o crime que mais encarcera 28 dos presos foram condena das por envolvimento no tráfico entre as mulheres a incidência desse tipo penal chega a 62 INFOPEN 2016 Seu principal alvo são os pequenos traficantes e consumidores pobres normalmente morado res de favelas BOITEUX WIECKO 2009 A repressão penal é dis tribuída seletivamente no espaço social Os altos índices de violência somados à sensação constante de medo e insegurança por parte da população fizeram com que a segurança pública assumisse posição central nos discursos políticos O Direito Penal continua a ser encarado em sua perspectiva sim bólica baseado em uma finalidade fictícia que na prática nunca se concretizou que em nenhum momento atingiu suas funções declara das de diminuição do crime ou de contenção da violência Há uma incansável busca pela eliminação de qualquer tipo de ris co Nas palavras de Vera Andrade 2014 p 328 o conceito de risco é a base do conceito de inimigo é a base da imputação objetiva de res ponsabilidade é a base da nova dogmática germânica Jakobs que se globaliza A preocupação com Segurança Pública direcionada a uma conduta futura e incerta nada mais é do que um pretexto para legiti mar o controle social punitivo cada vez mais forte Afirma Zaffaroni que na medida em que o critério objetivo é abandonado entrase no campo da subjetividade arbitrária do individualizador do inimigo que sempre invoca uma necessidade sem limites 2007 P 25 Tanto na ditadura quanto na democracia o sistema penal sub terrâneo se faz presente enquanto perpetuação da prática autoritária Apesar das vedações legais seja por meio das execuções em autos de resistência forjados da perpetuação do modelo militarizado de inter de do art 5º LVII da Constituição brasileira de 1988 tendo a Suprema Corte Constitucional decidido que não é mais necessário o trânsito em julgado de sentença penal condenatória para que um acusado seja tratado como culpado é um retrocesso que alimenta ainda mais o punitivismo e o encarceramento em massa Tratase de uma decisão que enfraquece a democracia em prol de um autoritarismo histórico Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 631 venção estatal com a invasão de favelas e o completo desrespeito aos moradores da violação de direitos de presos ou do desrespeito às re gras e garantias processuais e constitucionais o extermínio da popu lação pobre e negra é corroborado pelo exercício ilimitado do poder punitivo que na narrativa se justificam como medidas necessárias e excepcionais mas na práticas são rotineiras e cotidianas prática ins titucional legitimada inclusive pelo Poder Judiciário ZAFFARONI 2007 p 51 A criminalidade urbana principalmente ocasionada pelas ques tões relativas às drogas é uma das fontes do sentimento de inseguran ça tornandose a principal demanda da segurança pública da política penal brasileira A relação entre a enxurrada de notícias alarmistas pela mídia e o sentimento de insegurança da população gera uma de manda por ordem que se reflete no aumento do controle estatal atra vés da expansão do aparato repressivo Tal demanda é direcionada seletivamente não atinge as metas desejadas e consequentemente não reflete na diminuição da criminalidade O traficante ou qualquer pessoa que possa se encaixar nesse estereótipos normalmente dire cionado a pobres e negros assume a posição de inimigo tornandose alvo principal do Sistema287 A tortura prática estruturante da sociedade brasileira identifi cada ao longo da nossa história sem interrupção Mais recentemente o caso Amarildo se tornou emblemático O auxiliar de pedreiro de 47 anos foi capturado na Rocinha onde morava durante a operação Paz Armada cujo objetivo era prender traficantes por um grupo de policiais da Unidade de Polícia Pacificadora do local Submetido a ses sões de tortura por mais de 40 minutos foi morto e está desaparecido desde 14 de julho de 2013 O caso excepcionalmente ganhou grande repercussão na mídia doze policiais militares foram condenados pelo crime de tortura pela 287 Como exemplo destacamos a chacina de Costa BarrosRJ em 281115 Cinco jovens negros foram brutalmente assassinados dentro de um carro por policiais militares 111 balas foram disparadas Naquele dia um dos jovens tinha rece bido seu primeiro salário e estava indo com seus amigos comer um sanduiche para comemorar Os PMs foram pegos em flagrante ao tentar alterar a cena do crime e chegaram a registrar o caso como auto de resistência versão que foi desmentida pela perícia Fonte httpsnoticiasuolcombrultimasnoticias bbc20151205chacinadecostabarrosnaodevehaverzonasnemlimites paradireitoshumanoshtm 632 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça morte e o desaparecimento de Amarildo Porém este ainda pode ser considerado um caso isolado tendo em vista que muitas vítimas per manecem não apenas invisíveis para o sistema atuante por meio da omissão do judiciário como para a sociedade que por vezes apoia a violência policial principalmente direcionada para aqueles conside rados inimigos Da mesma forma que a tortura o recurso massivo as prisões cau telares e a guerra ás drogas que personifica o inimigo na figura do traficante revelam permanências autoritárias que enfraquecem signi ficativamente nossa já restrita concepção democrática O superencar ceramento surge apenas como consequência do reforço autoritário e de todo processo de negação de direitos orientados pela sanha puni tivista É de fundamental importância perceber que nossa realidade fática contradiz veementemente qualquer racionalidade que o direito penal pretende ter e inclusive com o apoio do STF legitima preceitos que contrariam o texto constitucional Nesse sentido percebemos que não é somente a polícia que age violentamente mas também o judiciá rio que não apenas é conivente como legitima essa ordem excepcional Dessa forma na véspera dos 30 anos da Constituição de 1988 compreendemos a necessidade não apenas de questionar nossa pers pectiva democrática formal como de evidenciar as permanências prá ticas e normativas autoritárias que possibilitam a atuação do sistema penal subterrâneo principalmente direcionado para parcela específica da nossa sociedade Nesse sentido nos propomos a fissurar a concep ção liberal democrática questionando a busca pelo consenso racional que na prática se mostra inaplicável e evidenciando as consequências e os custos de um política penal autoritária para a ordem democrática 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho buscou enfrentar o paradoxo existente entre o discur so democrático e a prática autoritária e sua influência direta sobre o Sistema Penal nas democracia liberais Pelo o que foi exposto perce bemos que o estado de exceção enquanto prática autoritária legitima restrições de direitos em razão de uma suposta crise com a justificati va de salvaguarda da ordem e da segurança Ocorre que o estado de Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 633 exceção contando com o discurso emergencial tem se firmado en quanto paradigma de governo contemporâneo por meio de fabricação de crises institucionais e econômicas Nesse contexto o sistema penal subterrâneo é efetivado de maneira mais evidente mesmo em ordens democráticas com maior necessidade de elaboração do discurso da defesa social para justificar políticas direcionadas à implantando de medidas excepcionais no capitalismo neoliberal com o objetivo de controlar as classes perigosas e perpetuar as posições de poder e do minação através do estado de polícia A necessidade de controle e ordem dentro dessa estrutura se di reciona no âmbito penal para um estado policial seletivamente dire cionado revelando que apenas parte restrita da população tem acesso a determinadas garantias constitucionais de direitos Em contrapar tida a população vulnerável principalmente pobre e negra é morta ou encarcerada excluída de maneira violenta pois frequentemente se enquadra no estereótipo do inimigo Apesar de estarmos formalmente em um regime democrático o Sistema Penal continua a se perpetuar enquanto prática autoritária de controle social concluímos que não apenas em razão do nosso con texto de formação social autoritário mas também pela dificuldade en frentada por nossa justiça de transição que direcionada por meio de um acordo até hoje não conseguiu esclarecer completamente um dos períodos mais sombrios da nossa história recente O Sistema Penal pós abertura inserido dentro do marco capitalis ta e neoliberal favorece tal a perpetuação seja no marco da doutrina de Segurança Nacional seja no contexto democrático onde está incor porada a lógica da segurança pública Tais permanências apresentam se de maneira bastante evidente quando analisamos as execuções a tortura enquanto prática institucional e o superencarceramento seja pelo recurso massivo a prisões cautelares seja em razão do proibi cionismo orquestrado pela guerra às drogas orientada para exclusão exacerbação das desigualdade e personificação do inimigo Por conseguinte entendemos que o Brasil concretiza uma demo cracia de baixa intensidade no qual o Sistema Penal é um dos princi pais instrumentos que materializam a prática autoritária por meio de estratégias de controle social Nessa perspectiva nos cabe não ape nas tensionar os limites das democracias liberais que se apresentam 634 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça como única forma democrática possível na luta por direitos mas principalmente questionar o consenso evidenciar as funções reais e simbólicas do Sistema Penal e suas respectivas contradições a partir da percepção de que a intensa repressão que estamos submetidos é neces sária para a manutenção do sistema de dominação e conservação das estruturas de poder das sociedades capitalistas REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGAMBEN Giogio Estado de Exceção Homo Sacer II I 2ª edição São Paulo Boitempo 2004 ANDRADE Vera Regina Pelas mãos da Criminologia Controle penal para além da desilusão Rio de Janeiro Revan 2012 BARATTA Alessandro Criminologia Crítica e Crítica do Direito Pe nal Rio de Janeiro Revan 2011 BATISTA Nilo ZAFFARONI Eugenio Raúl ALAGIA Alejandro SLOKAR Alejandro Direito Penal Brasileiro Teoria Geral do Direito Penal Vol I Rio de Janeiro Revan 2015 BATISTA Vera Malaguti Introdução Crítica à Criminologia Brasileira Rio de Janeiro Revan 2011 BATISTA Vanessa BOITEUX Luciana et alli Justiça autoritária Uma investigação sobre a estrutura da repressão no Poder Judiciário do Estado do Rio de Janeiro 19641985 Rio de Janeiro Faperj 2015 Disponível em httpwwwcev rioorgbrsitearqFNDUFRJ Justicaautoritariapdf BOITEUX Luciana CASARA Rubens Autoritarismo Democracia e Poder Judiciário no Brasil Clacso nº 6 Buenos Aires 2016 Disponível em httpswwwclacsoorgmegafonpdfMegafon6articulo1De mocraciaPoderpdf Acesso em 050117 BOITEUX Luciana WIECKO Ela BATISTA Vanessa PRADO Ge raldo et alli Tráfico de Drogas e Constituição Um estudo jurídicoso cial do tipo do art 33 da Lei de Drogas diante dos princípios cons titucionaispenais Série Pensando o Direito Brasilia Ministério da Justiça 2009 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 635 CARVALHO Salo de O Direito Penal na luta contra o terrorismo Delineamentos teóricos a partir da criminalização dos movimentos sociais o caso do Movimento dos Trabalhadores Rurais SemTerra Revista Eletrônica da Faculdade de Direito Porto Alegre Entre Garan tias de Direitos e Práticas Libertárias 2012 vol 4 JaneiroJunho pp 1 21 A Política Criminal de Drogas no Brasil estudo crimi nológico e dogmático da Lei 1134306 São Paulo Saraiva 2015 CASTRO Lola A Derechos Humanos Modelo Integral de la Ciencia Penal Y Sistema Penal Subterraneo In Revista del Colegio de Aboga dos Penalistas del Valle nº13 Valle del Cauca Cali 1985 FRAGOSO Heleno Advocacia da liberdade A Defesa nos Processos Políticos Rio de Janeiro Forense 1984 GAGNEBIN Jeanne Marie O preço de um reconciliação extorquida In TELES Edson SAFATLE Vladimir Orgs O Que Resta da Dita dura A Exceção Brasileira São Paulo Boitempo 2010 HOBBES Thomas Leviatã São Paulo Martin Claret 2014 INFOPEN Ministério da Justiça Levantamento Nacional de Informa ções Penitenciárias Infopen 2016 Disponível em httpwwwjus ticagovbrseusdireitospoliticapenaltransparenciainstitucional estatisticasprisionallevantamentonacionaldeinformacoespeni tenciarias Acesso em 13042018 INFOPEN MULHER Ministério da Justiça Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen Mulher 2016 Disponível em httpwwwjusticagovbrseusdireitospoliticapenaltransparen ciainstitucionalestatisticasprisionallevantamentonacionaldein formacoespenitenciarias Acesso em 13042018 MARTINS Rui Cunha Democracia Ditadura e Mudança Política o argumento da historicidade o caso do Portugal contemporâneo In Revista Dhistoria Cultural Espanha 2011 nº 14 Disponível em httpwwwracocatindexphpCerclesarticleview246211329630 Acesso em 11012017 ODONNELL Guillermo Sobre o Estado a Democratização e alguns problemas Conceituais uma visão latinoamericana com uma rápida olhada em alguns países póscomunistas Revista Novos Estudos São Paulo nº 36 1993 pp 123 145 636 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça PASTANA Débora Regina Cultura do medo reflexões sobre violên cia criminal controle social e cidadania no Brasil São Paulo Método 2003 Justiça Penal Autoritária e Consolidação do Estado Puni tivo no Brasil Curitiba Revista de Sociologia Política v 17 n 32 2009 pp 121134 PAVARINI Mássimo Control y dominación Teorías criminológicas burguesas y proyecto hegemónico Buenos Aires Siglo XXI Editores 2002 PEREIRA Anthony Ditadura e Repressão o Autoritarismo e o Es tado de Direito no Brasil no Chile e na Argentina São Paulo Paz e Terra 2010 SANTOS Boaventura de Sousa Refundación del Estado en América Latina perspectivas desde una epistemología del Sur Lima Instituto Internacional de Derecho y Sociedad 2010 ZAFFARONI Eugenio Raúl PIERANGELI José Enrique Manual de Direito Penal brasileiro parte geral São Paulo RT 1997 ZAVERUCHA Jorge Relações Civilmilitares o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988 In TELES Edson SAFATLE Vladi mir Orgs O Que Resta da Ditadura A Exceção Brasileira São Paulo Boitempo 2010 637 Parte V PRISÕES INVISÍVEIS SITUAÇÃO DE MATERNIDADE E SISTEMA DE JUSTIÇA WHO WAS THAT LEGAL EAGLE 59 THOMAS J MCGARD 639 MATERNIDADE E VIOLÊNCIA ATRÁS DAS GRADES Maíra Fernandes166 Mariana Paganote Dornellas167 Resumo O presente trabalho tem por objetivo analisar as condições de maternidade no cárcere atravessadas por diversas formas de vio lência Para tanto iniciaremos abordando o perfil da mulher encarce rada no Brasil hoje para entendermos quais mulheres estão sendo em números cada vez maiores assimiladas pelo sistema punitivo estatal principalmente pelo crime de tráfico de drogas ressaltando a grande proporção de presas sem condenação Então a partir dos dados de pesquisa realizada pelo Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ apenas com grávidas e puérperas encarceradas no Rio de Janeiro po deremos perceber as condições de maior vulnerabilidade e abandono que se encontram as mulheres que vivenciam a maternidade na pri são e como as consequências da privação de liberdade afetam a vida de seus filhos Por fim indicaremos como existe uma espécie de hie rarquia reprodutiva que legitima apenas um modelo de experiência de maternidade o que justifica diversas formas de privações e violações de direitos contra as mulheres presas nos momentos de gestação par to e pósparto manifestos casos de violência obstétrica As encarcera das são culpabilizadas não só pelo crime alegadamente cometido mas pela própria situação de maternidade na prisão Tais observações nos 166 Maíra Fernandes é advogada criminal mestranda em Direito pela Univer sidade Federal do Rio de Janeiro diretora do Instituto dos Advogados Brasi leiros membro do Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher vicepresidente da Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas seção Rio de Janeiro e expresidente do Conselho Penitenciário do Rio de Janeiro 167 Mariana Paganote Dornellas é mestra em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense e integrante da Associação Elas Existem Mulheres Encarceradas 640 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça levam a refletir sobre a necessidade de mobilização de mulheres por condições dignas de vida e direitos como os sexuais e reprodutivos para todas sem distinção de qualquer espécie168 Palavraschave maternidade nas prisões violência obstétrica e en carceramento feminino 1 INTRODUÇÃO O progressivo interesse nos temas relacionados à violência obstétrica nos faz refletir sobre as diversas formas de violência a que as mulheres ainda são submetidas e que sequer são reconhecidas como tais dian te de sua naturalização A discussão sobre a violência obstétrica traz então um desconforto generalizado de muitas vezes a mulher se des cobrir como vítima de violência em um processo não raro doloroso posto que relacionado a um momento tão pleno de vulnerabilidade e de expectativas que é o momento do parto Nossa contribuição ao debate parte de uma perspectiva pouco usual que é a de analisar as condições de maternidade no cárcere um espaço que se contrapõe aos cuidados básicos que se espera nessa fase da vida Se para as mulheres livres a violência obstétrica se manifesta de diversas formas preocupantes para as mulheres em privação de liberdade essas violações são ainda mais intensas posto que legitima das pela posição da mulher de infratora da lei e potencializada pela estrutura de um poder punitivo que não atende às necessidades espe cíficas de mulheres Dessa forma pensar o grande aumento do encar ceramento feminino no Brasil requer pensar em todas as demandas de ordem física e social que atravessam a experiência da mulher no sistema penitenciário inclusive as relacionadas à maternidade e que são invisibilizadas e ignoradas Essas questões evidenciam o fracasso de uma política criminal repressiva que na tentativa vã de solucionar problemas sociais por meio do encarceramento só promove e reforça a violência já vivenciada pelas mulheres em outros âmbitos da vida social 168 Artigo escrito em maio de 2018 e enviado originalmente para publicação no livro DALSENTER Thamis Avila Org Diálogos sobre direitos da gestante direito ao nascimento humanizado e violência obstétrica No prelo Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 641 2 PERFIL DA MULHER ENCARCERADA NO BRASIL Invisíveis e silenciadas as mulheres presas carregam o preconceito e o estigma em todas as suas formas são em sua maioria jovens 50 tem entre 18 e 29 anos negras 62 com baixa escolaridade 50 sequer concluiu o ensino fundamental solteiras 62 e acusadas de tráfico de drogas 62 estão encarceradas por esse crime que prende 26 dos homens segundo o relatório publicado pelo Departamento Penitenciário Nacional em maio de 2018 referente a dados coletados até junho de 2016169 Tal como no mercado formal de trabalho também os chefes do tráfico de drogas destinam às mulheres as posições mais subalternas e menos remuneradas principalmente no transporte e revenda das substâncias não possuindo grande participação no mercado de dro gas São raras as que chegam a ocupar postos mais altos nessa hie rarquia de modo que a maioria está em posição mais vulnerável à repressão policial e portanto mais suscetível ao encarceramento Nes sa seara a feminização da pobreza e a seletividade do sistema penal mostram seus efeitos mais perversos como inferido por Zaccone Isso explica por exemplo o aumento do número de mulheres e crianças envolvidas com o narcotráfico Para ser sacoleiro de drogas não é preciso portar nenhuma arma e sequer integrar alguma dita organização criminosa Basta ter crédito junto aos fornecedores Autônomo no comércio ilegal o estica é presa fácil uma vez que não apresenta nenhuma resistência às ordens de prisão e passa a participar do negócio ilegal oferecendo a sua própria liberdade como caução Desprovido do capital necessá rio para fazer parte como acionista do negócio ilícito o estica se transforma em revendedor comissionado no comércio de dro gas oferecendo o único bem de valor que lhe resta qual seja sua própria liberdade de ir e vir DELIA FILHO 2011 p 22170 169 BRASIL Ministério da Justiça Departamento Penitenciário Nacional Levan tamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN Mulheres 2016 2ª edição Brasília maio de 2018 Disponível em httpswwwjusticagovbr noticiasestudotracaperfildapopulacaopenitenciariafemininanobrasil httpdepengovbrDEPENdepensisdepeninfopenmulheres Acesso em 18052018 170 DELIA FILHO Orlando Zaccone Acionistas do nada quem são os trafican tes de droga 3ª edição Rio de Janeiro Revan 2011 642 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Por serem mulheres também no universo prisional pagam caro por ocupar um lugar predominantemente masculino elas somam 42355 presas num total de 726712 pessoas privadas de liberdade no Brasil Contudo o Infopen Mulher 2016 mostra que a população carcerária feminina aumentou em 656 no período de 2000 a 2016 enquanto o crescimento masculino no mesmo espaço de tempo foi de 293 dados que não nos orgulham171 O grande aumento do nú mero de mulheres presas principalmente devido às suas atividades no comércio de substâncias ilícitas é uma realidade que precisamos compreender e enfrentar A intensificação do encarceramento feminino traz à tona diversas questões relativas à posição que as mulheres ainda ocupam no seio de suas famílias Ressalvada a baixa representatividade da amostra coletada o último relatório apontou que dentre as mulheres presas 74 são mães enquanto apenas 47 dos homens presos têm filhos Ainda segundo esse relatório atualmente há 536 gestantes e 350 lac tantes presas no país Das gestantes 50 estão em unidades que não possuem cela adequada à sua condição e apenas 14 das unidades femininas ou mistas têm berçário ou centro de referência maternoin fantil para que as mulheres permaneçam com os seus bebês logo após o nascimento Diante desses números podemos perceber que o sistema peni tenciário permanece construído por homens para homens e apenas mal adaptado para mulheres Não há uma perspectiva de gênero o que torna a privação de liberdade ainda mais cruel para as mulheres que em muitos casos recorrem ao tráfico justamente para garantir a sua subsistência e a de seus filhos que sem dúvida são os maiores afe tados pelo encarceramento de suas mães Ainda assim um número surpreendente de mulheres é presa an tes mesmo do julgamento de acordo com o Infopen Mulher 2016 45 das encarceradas não possuem condenação sendo impedidas de aguardar o resultado do processo em liberdade o que deveria ser a regra e não a exceção se o princípio da presunção de inocência pre visto em nossa Constituição Federal fosse devidamente observado Além disso embora exista previsão expressa de substituição da prisão 171 BRASIL Ministério da Justiça Departamento Penitenciário Nacional Op Cit Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 643 preventiva por prisão domiciliar no artigo 318 do Código de Processo Penal172 para grávidas lactantes ou mulheres com filhos delas depen dentes o que se observa rotineiramente são essas mulheres sendo compelidas a permanecer presas por todo o processo pelo qual ao final meses ou anos depois podem ser absolvidas ou condenadas a uma pena não privativa de liberdade Recentemente o Supremo Tribunal Federal no Habeas Corpus coletivo nº 143641SP173 determinou com validade para todo o terri tório nacional que seja substituída a prisão preventiva por domiciliar caso as mulheres sejam gestantes ou mães de crianças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência Ocorre que esta louvável decisão não parece estar sendo cumprida segundo alerta da Associação Nacional dos Defensores Públicos Federais Anadef174 Desse modo podemos perceber que o sistema de justiça crimi nal não atinge a todas as mulheres de forma equânime ele é seletivo direcionado principalmente às mulheres jovens negras com baixa escolaridade mães presas principalmente por crimes relacionados ao tráfico de drogas em que ocupam posições de menor prestígio e maior vulnerabilidade O número de mulheres encarceradas está au mentando em ritmo alarmante e não vem sendo acompanhado de políticas públicas que atendam às necessidades dessas mulheres com todas as suas peculiaridades no sistema prisional Essa questão é par ticularmente crítica quando tratamos das mulheres que vivenciam a 172 Art 318 do CPP Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for Redação dada pela Lei nº 12403 de 2011 III impres cindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 seis anos de idade ou com deficiência Incluído pela Lei nº 12403 de 2011 IV gestante Redação dada pela Lei nº 13257 de 2016 V mulher com filho de até 12 doze anos de idade incompletos Incluído pela Lei nº 13257 de 2016 173 BRASIL Supremo Tribunal Federal Habeas Corpus 143641SP Impetrante Defensoria Pública da União Coatores juízes e juízas das Varas Criminais es taduais Tribunais dos estados e do Distrito Federal e territórios juízes e juízas federais com competência criminal Tribunais Regionais Federais e Superior Tribunal de Justiça Relator Ministro Ricardo Lewandowski Decisão proferida em 20 de fevereiro de 2018 174 Defensores Públicos pedem cumprimento de medida que beneficia grávidas e mães presidiárias Anadef alerta que decisão do STF vem sendo descumprida em vários estados do País Disponível em httpwwwaguaboanewscombr noticiasexibiraspid13612noticiadefensorespublicospedemcumpri mentodemedidaquebeneficiagravidasemaespresidiarias Acesso em 02052018 644 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça maternidade na prisão que convivem com a condição de gravidez parto e puerpério em um ambiente absolutamente inadequado às de mandas físicas e psicológicas desse momento e que é muitas vezes hostil e degradante 3 GRÁVIDAS E PUÉRPERAS ENCARCERADAS NO RIO DE JANEIRO Entre junho e agosto de 2015 a pesquisa Mulheres e Crianças Encar ceradas Um Estudo JurídicoSocial sobre a Experiência da Materni dade no Sistema Prisional do Rio de Janeiro entrevistou 41 mulhe res nos dois espaços destinados a gestantes e puérperas no Complexo Penitenciário do Rio de Janeiro a Unidade Talavera Bruce na qual havia 24 grávidas e a Unidade Materno Infantil na qual 17 mulheres estavam com seus bebês recémnascidos175 O perfil das pesquisadas diz muito sobre o encarceramento femi nino em nosso Estado especificamente sobre a realidade das mulhe res que atravessam o período de gestação e puerpério no cárcere elas são predominantemente jovens 78 tem até 27 anos negraspardas 77 solteiras 82 e não recebem visitas na prisão 659 A maioria 756 não possui o ensino fundamental completo e 98 afirmaram não saber ler nem escrever Os principais motivos alegados para terem abandonado os estudos foram porque não se sentiam mais motivadas a estudar na época 333 porque engravidaram 256 porque se casaram 77 porque tiveram que cuidar da casafilhos 77 ou porque vivenciaram problemas familiares 77 Apenas duas concluíram o ensino médio Ao contrário do que se pode imaginar metade delas estava tra balhando na época em que foi presa em empregos precarizados 85 sem carteira assinada e grande parte delas era responsável pelo sus tento do lar 19 integralmente e 22 em parte Enganase quem pensa que a mulher recorre ao crime por amor a pedido de um com 175 BOITEUX Luciana FERNANDES Maíra PANCIERI Aline e CHERNICA RO Luciana Mulheres e Crianças Encarceradas Um Estudo JurídicoSocial sobre a Experiência da Maternidade no Sistema Prisional do Rio De Janeiro LADIH UFRJ Disponível em httpfileserveridpcnetlibraryMesencar ceradasUFRJpdf Acesso em 02052018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 645 panheiro Esses casos até de fato existem mas a grande maioria das entrevistadas afirmou que a razão pela qual veio a delinquir se rela ciona a dificuldades financeiras Ainda mais considerando o contexto em que vivem no qual a baixa escolaridade associada a fatores de gênero e raça e à necessidade de cuidar dos filhos diminuem suas possibilidade de inserção no mercado de trabalho formal o que con tribui para que o tráfico de drogas se apresente como uma estratégia de sobrevivência Dois dados da pesquisa particularmente impressionam a maio ria era ré primária 70 e estava presa provisoriamente 732 Isso mostra a absoluta desnecessidade da prisão cautelar especialmente considerandose a situação das entrevistadas grávidas ou com bebês recémnascidos A manutenção do encarceramento de mulheres que sequer foram julgadas e que não constituem nenhum perigo efeti vo à ordem pública já é suficientemente condenável e mais ainda se nos atentarmos para as condições particulares em que se encontram em que a prisão afeta não apenas as mulheres em si mas de forma desproporcional e inaceitável seus filhos quer estejam no seu ventre quer sejam seus dependentes Impedir que a mulher viva sua gestação em um ambiente digno e sequestrala da convivência com seus filhos desnecessariamente ainda que existam leis e mais recentemente ju risprudência do Supremo Tribunal Federal em sentido oposto é não apenas contrário ao direito é perverso Importa notar que a maioria delas declarou possuir dois filhos 317 ou três filhos 268 e afirmou que não teve a oportunidade de entrar em contato com a sua família no momento da prisão Essa situação importa na violação à Constituição Federal artigo 5º incisos LXII e LXIII176 e não bastasse à normas internacionais firmadas pelo Brasil A segunda recomendação das Regras de Bangkok determina que o procedimento de ingresso de mulheres no cárcere deve receber especial atenção considerando a vulnerabilidade delas nesse momen to e que as mulheres responsáveis pela guarda de crianças devem ter a 176 Constituição Federal Artigo 5º LXII a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunica dos imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada LXIII o preso será informado de seus direitos entre os quais o de permanecer calado sendolhe assegurada a assistência da família e de advogado 646 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça oportunidade de tomar as providências necessárias em relação a elas inclusive prevendo a suspensão da medida privativa de liberdade por um período razoável considerando o melhor interesse das crianças177 Esta previsão já foi incorporada ao direito brasileiro por meio do Marco Legal da Primeira Infância Lei 1325716 que alterou o Código de Processo Penal incluindo disposições que determinam que a autoridade policial indague à pessoa presa sobre a existência de fi lhos respectivas idades e se possuem alguma deficiência bem como o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados deles Tais informações devem ser colhidas pela polícia seja no momento em que tiver conhecimento da prática da infração penal conforme o in ciso X do artigo 6º no interrogatório de acordo com o artigo 185 10 e também na lavratura do auto de prisão em flagrante segundo o art 304 4o todos do referido diploma legal Em que pese a previsão legal contudo essa medida não vem sendo utilizada para assegurar o bemestar da criança quando do momento de prisão de sua mãe mas apenas como um mero registro burocrático que não produz grandes efeitos tendo em vista o imenso número de mulheres presas cautelar mente que são mães Como está meu filho Esta é a pergunta que se repete na voz das detentas Nada é capaz de aplacar a angústia de uma separação que não foi determinada pelo juiz mas é o efeito prático da decisão judicial uma das consequências mais dramáticas do encarceramento feminino que não encontra simetria no masculino Em geral quando o homem é encarcerado sua família se mantém unida principalmen te pelos esforços de sua companheira que se desdobra para realizar as visitas e contribui não só para a manutenção dos laços familiares como para a própria subsistência do apenado com a entrega de itens de primeira necessidade como alimentos remédios e material de hi giene O mesmo não se verifica com as mulheres que são abandonadas após a prisão pois com a sua ausência há em geral um deslocamento do núcleo familiar com efeitos imensuráveis não só para a presa mas 177 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS Regras de Bangkok Regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privati vas de liberdade para mulheres infratoras Disponível em httpwwwcnjjus brfilesconteudoarquivo20160327fa43cd9998bf5b43aa2cb3e0f53c44pdf Acesso em 02052018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 647 principalmente para seus filhos Privadas abruptamente do convívio materno as crianças ficam sob os cuidados de sua família extensa sendo muitas vezes separadas dos irmãos correndo o risco até mesmo de serem desligadas definitivamente de seus parentes Pesquisas sobre o tema revelam os diversos efeitos negativos do encarceramento dos genitores no comportamento e no rendimento escolar das crianças e expõe a maior vulnerabilidade dessas crianças a abusos sexuais e ao envolvimento com o sistema de justiça criminal contribuindo para um ciclo de abuso e negligência que perpassa gerações178 Nos casos em que a presa possui uma mãe irmã ou tia essa mulher fica res ponsável pelas crianças durante todo o cumprimento da pena Ocorre que na maior parte das vezes essa familiar também possui seus pró prios filhos seu trabalho sua vida o que lhe impede de dar assistência à mulher encarcerada e manter frequentes seus laços afetivos Drauzio Varella dedica um capítulo de seu livro Prisioneiras es pecialmente para o tema Os filhos e sentencia A separação dos filhos é um martírio à parte Privado da liber dade resta ao homem o consolo de que a mãe de seus filhos cuidará deles Poderão lhes faltar recursos materiais mas não serão abandonados A mulher ao contrário sabe que é insubs tituível e que a perda do convívio com as crianças ainda que temporária será irreparável porque se ressentirão da ausência de cuidados maternos serão maltratadas por familiares e estra nhos poderão enveredar pelo caminho das drogas e do crime e ela não os verá crescer a dor mais pungente Mães de muitos filhos como é o caso da maioria são forçadas a aceitar a solução de vêlos espalhados por casas de parentes ou vizinhos e na falta de ambos em instituições públicas sob a res ponsabilidade do Conselho Tutelar condições em que podem passar anos sem vêlos ou até perdêlos para sempre Nem sei quantas mulheres atendi em estado de choque pela perda de um filho adolescente morto em troca de tiros com a polícia ou assassinado por desentendimentos na rotina do cri me179 178 BRAMAN Donald Families and incarceration In Mauer Marc Chesney Lind Meda Invisible punishment the collateral consequences of mass imprison ment New York The New Press 2002 p 127 179 VARELLA Drauzio Prisioneiras 1 ed São Paulo Companhia das Letras 2017 p 45 648 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Assim a separação e ausência de informações sobre o destino dos filhos pode ser considerada um incremento de punição para as mulheres presas Esse efeito do encarceramento feminino faz das unidades prisio nais verdadeiros cemitérios de mulheres vivas locais de saudade e solidão A pesquisa acima referida identificou que muitas sequer re cebem visita e entre as que recebem a maior parte é visitada pela mãe 50 enquanto apenas 143 recebem visitas de maridocom panheiro Abandonadas à própria sorte as presas sonham com os mais elementares itens de higiene e limpeza como sabonetes pasta de dentes e absorventes raramente fornecidos pelo Estado e têm que se contentar com a péssima alimentação fornecida que é sempre alvo de reclamações bem como com a escassez de medicamentos Assim podemos observar que a situação das gestantes e puér peras no sistema prisional é ainda mais crítica não só em relação à vulnerabilidade socioeconômica e ao alarmante número de mulheres presas sem condenação como também ao abandono a que são sub metidas A situação de seus filhos também merece atenção pelo afas tamento que lhes é imposto que causa grande sofrimento às mulheres e diversos efeitos prejudiciais para o desenvolvimento das crianças 4 HIERARQUIA REPRODUTIVA E VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NO CÁRCERE Inicialmente é importante notar que a maternidade não é vivida de forma equânime entre as mulheres nem mesmo validada pela socie dade da mesma forma Em uma sociedade marcada por discriminação de gênero raça sexualidade classe geração há modelos ditos ideais de maternidade mais prestigiados e respeitados enquanto outros são considerados ilegítimos ou subalternos e portanto destinatários de preconceito e violação de direitos configurando uma verdadeira hie rarquia reprodutiva180 Esse modelo excludente se sustenta nas teorias 180 MATTAR Laura Davis DINIZ Carmen Simone Grilo Hierarquias reprodu tivas maternidade e desigualdades no exercício de direitos humanos pelas mu lheres Interface Comunic Saude Educ v16 n40 p10719 janmar 2012 p 115 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 649 neomalthusianas para as quais os culpados pela pobreza são os po bres que deveriam deixar de se reproduzir pois assim estão geran do futuros bandidos Tais teorias já foram acertadamente refutadas em muitas obras acadêmicas181 no entanto na prática permanecem sendo reproduzidas em diversos espaços como no ambiente prisio nal em uma manifesta criminalização da pobreza182 Nesse contexto as mulheres presas têm a aceitação de sua maternidade ainda mais comprometida posto que as posições de mãe e transgressora se con trapõem no imaginário social fazendo com que estejam na posição inferior da pirâmide hierárquica da reprodução exercendo uma ma ternidade considerada subalterna183 Por esse motivo as mulheres presas são submetidas a todo tipo de violência antes durante e após o parto que se manifestam de di versas formas seja com desrespeito assédio moral negligência ou até mesmo violência física ou verbal Em princípio cabe destacar que qualquer gravidez na prisão é sempre uma gravidez de risco Não há estrutura mínima de saúde para as grávidas no sistema elas não re cebem um adequado acompanhamento médico no prénatal o que faz com que existam casos de nascimento dos bebês com sequelas de sífilis por exemplo que poderiam ter sido evitadas com diagnóstico e tratamento precoce As frequentes demoras no atendimento por ou tro lado podem ser fatais tanto para as mulheres quanto para os be bês visto que o parto nessas circunstâncias é sempre arriscado devido às condições insalubres do local e às condições de vida das gestantes nesse espaço E as mulheres presas ainda são culpabilizadas por trazer seus filhos ao mundo nessas péssimas condições por agentes peniten ciários recrudescidos pela rotineira violência nos presídios Como é 181 Confirase ALVES José Eustáquio Diniz Demografia democracia e direitos humanos Rio de Janeiro Escola Nacional de Ciências Estatísticas 2005 e ÁVI LA Maria Betânia Modernidade e cidadania reprodutiva em Revista Estu dos Feministas da UFSC volume 1 número 2 Florianópolis 1993 Disponível em httpsperiodicosufscbrindexphprefarticleview16070 Acesso em 22052018 182 Sérgio Cabral quando ainda era governador do Estado do Rio de Janei ro declarou Tem tudo a ver com violência Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas Tijuca Méier e Copacabana é padrão sueco Agora pega na Rocinha É padrão Zâmbia Gabão Isso é uma fábri ca de produzir marginal Confirase em httpg1globocomNoticias Politica0MUL155710560100CABRALDEFENDEABORTOCON TRAVIOLENCIANORIODEJANEIROhtml Acesso em 26052018 183 MATTAR Laura Davis DINIZ Carmen Simone Grilo Opcit p 115 650 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça possível não se sensibilizar e ignorar os lamentos de uma mulher em trabalho de parto Embora pareça impensável foi o que ocorreu com Bárbara Oliveira de Souza no Rio de Janeiro no dia 11 de outubro de 2015 Enfurnada em uma cela de isolamento aos nove meses de gravidez começou a clamar por ajuda ao entrar em trabalho de parto Diante dos ouvidos moucos das agentes penitenciárias deu à luz sozinha na escuridão da cela Acudida tardiamente pelas funcionárias do Estado Bárbara foi encaminhada ao hospital com sua filha ainda presa pelo cordão umbilical 184 Casos como este de indiscutível desumanidade não são isolados apenas não alcançam a grande imprensa e parecem normalizados pelo sistema penitenciário São frequentes os partos nas celas ou nas viatu ras estas só chegam após uma súplica generalizada Nos hospitais as presas em geral dão à luz ou amamentam algemadas verdadeira tortura psicológica imposta por agentes e acatada por profissionais de saúde evidenciando que a pena imposta às mulheres é muito superior à privação de liberdade envolvendo todo tipo de desconforto e humilhação possível Os relatos obtidos no curso da pesquisa acima referida185 ilus tram o tipo de violação e desrespeito aos direitos das mulheres que as gestantes enfrentam antes durante e após o parto As principais denúncias dizem respeito aos agentes do Serviço de Operações Espe ciais SOE responsáveis pela escolta na movimentação das presas ao hospital Elas relatam o descaso com suas demandas a demora injusti ficada no atendimento e o constrangimento proposital que os agentes homens se esforçam para incutir nas presas impondo sua presença durante procedimentos médicos íntimos o que em nosso entendi mento configura uma forma de assédio sexual como exposto a seguir 184 VIEIRA Isabela Presa grávida dá à luz em solitária de presídio no Rio Pu blicado pela Agência EBC Disponível em httpwwwebccombrnoti cias201510presagravidadaluzemsolitariadepresidionorio Acesso em 18052018 185 BOITEUX Luciana FERNANDES Maíra PANCIERI Aline e CHERNICA RO Luciana Mulheres e Crianças Encarceradas Um Estudo JurídicoSocial sobre a Experiência da Maternidade no Sistema Prisional do Rio De Janeiro LADIH UFRJ Disponível em httpfileserveridpcnetlibraryMesencar ceradasUFRJpdf Acesso em 02052018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 651 Comecei a sentir dor desde a madrugada Quando foi pela manhã eu pedi para chamar a SOE porque eu ia ganhar o neném Aí a guarda pediu para eu aguardar um pouco porque ia ter a troca de plantão e às 9h iam me buscar Nisso me chamaram para eu ir ao ambulatório pois achavam que eu não tava sentindo tanta dor para o meu filho nascer Falaram que iam fazer o pedido da emergência novamente e já eram dez e pouco Aí me mandaram para a cela de novo quando foi 1450 minha bolsa estourou e eu estava na cela Só nessa hora que chamaram o SOE e o SOE chegou eram 15h 1515 eu estava dentro do carro e ela nasceu A SOE disse Não fica fazendo força não que você vai arrumar ideia Mas eu continuei fazendo porque vi que ia nascer Quando o SOE viu a cabecinha da minha filha ela segurou pra mim mas eu tive a minha filha praticamente sozinha O SOE dizia que o que a gente tinha na barriga era cachaça ou lom briga Dizia que grávida só toma na cara No dia que fui tomar toque o SOE que era homem ficou lá dentro da sala junto comigo olhando Elas descrevem ainda os variados casos de violência psicológica por meio de insultos e da imposição de algemas em momentos absolu tamente inaceitáveis como enquanto uma mulher aguardava atendi mento para cessar sua hemorragia ou de modo a impedila de dormir ou de amamentar seu bebê O SOE demora muito a chegar quando vem No hospital eu dormi algemada e amamentei o meu filho algemada A enfer meira perguntou se eu tinha alguma coisa e o SOE foi e falou já viu presa ter alguma coisa Presa não tem direito a nada Depois do parto comecei a dar hemorragia e ele me algemou no corredor Fiquei passando mal ali algemada Eles tentaram fazer parto normal em mim mas não tinha pas sagem Estava com muita dor sentei no carro A SOE achou um absurdo eu estar sentada e me algemou Disse que meu neném ia nascer e cair no chão Depois quando tive meu filho à noiti nha eu tava deitada para dormir e eles me algemaram Não dava pra trocar a fralda do meu filho nem amamentar ele 652 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Cabe ressaltar que de acordo com a Súmula Vinculante n 11 do Supremo Tribunal Federal só é lícito o uso de algemas em casos de resistência de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade fí sica própria ou alheia e duvidamos que haja quem ouse defender que uma mulher em trabalho de parto ou imediatamente após o mesmo se encontre em qualquer uma dessas condições capazes de justificar a excepcionalidade da medida Em boa hora o parágrafo único do art 292 do Código de Pro cesso Penal acrescentado pela Lei 1343417 passou a vedar o uso de algemas em mulheres grávidas durante os atos médicohospitalares preparatórios para a realização do parto durante o trabalho de parto e no período de puerpério imediato em conformidade com a Regra de Bangkok nº 24 Tal previsão legal parecia inteiramente dispensá vel em um país cuja Constituição Federal traz a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental e que proíbe a tortura e os tra tamentos degradantes No entanto em que pese as previsões constitu cionais e a bemvinda alteração legislativa não são raros os relatos de utilização de algemas durante todo o processo dificultando o parto e primeiros cuidados com o bebê e criando um enorme desnecessário e ilegal constrangimento Não bastasse quando as mulheres voltam ao sistema peniten ciário após o parto são constrangidas a abandonar todas as ativida des a que porventura se dediquem como trabalho ou estudo para se devotarem exclusivamente em tempo integral a seus filhos num fenômeno denominado hipermaternidade186 Durante esse período a permanência ininterrupta com o bebê é a regra e todos os cuidados dispendidos a eles são submetidos à vigilância constante das agentes penitenciárias com rigor disciplinar com uma permanente tutela do exercício da maternidade por essas mulheres a partir do modelo ideal dentro da hierarquia reprodutiva descrita por Mattar e Diniz Nesse caso embora as estruturas físicas das áreas destinadas à permanência das presas com os bebês sejam melhores o que se verifica é que a ma ternidade se torna um fator para o incremento da punição da mulher seja pelo isolamento que provoca seja pela tutela mais rígida de seu comportamento em toda e qualquer atividade 186 BRAGA Ana Gabriela Mendes ANGOTTI Bruna Da hipermaternida de à hipomaternidade no cárcere feminino brasileiro SUR Revista Inter nacional de Direitos Humanos 22 v12 n22 229 239 2015 p 235 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 653 E então geralmente ao final do prazo mínimo de 6 meses previsto na Lei de Execuções Penais a criança é abruptamente retirada da mãe com um rompimento do vínculo sem uma devida fase de adaptação187 e uma transição imediata da hipermaternidade para a hipomaternida de processo descrito por Braga e Angotti Chamamos de hipo diminuição e não de nula maternidade a vivência da ruptura pois as marcas da maternagem interrom pida da ausência advinda da presença de antes seguem no cor po e na mente da presa Os inúmeros relatos de remédios para secar o leite de febre emocional de desespero ao ouvir o choro de outras crianças evidenciam que a maternidade segue no corpo As expectativas e o medo da separação definitiva ad vindos das falas daquelas que ainda não haviam experimentado o momento mas o temiam ainda na gestação188 Nesse mesmo sentido Drauzio Varella destaca que As celas para onde as mães são transferidas ao dar à luz contêm um bercinho e prateleiras com mamadeiras e fraldas roupinhas penduradas para secar em varais de barbante e boa parte dos utensílios das casas com um recémnascido Passam o tempo todo envolvidas com a criança dando de mamar lavando rou pa trocando experiências com as companheiras as mais velhas orientando as marinheiras de primeira viagem Quando menos esperam vem a separação De uma hora para a outra voltam ao pavilhão de origem e à rotina dos dias repetiti vos que se arrastam em ócio gritaria tranca solidão e saudade do bebê que acabaram de perder de vista Uma semana depois de ver a filhinha levada por uma prima do namorado Margarete presa duas vezes por receptação de mer cadorias roubadas comentou em um fiapo de voz 187 Aos seis meses o bebê ainda é profundamente dependente da mãe e afastar esse vínculo de modo súbito afeta não só sua saúde física mas também a psi cológica com efeitos danosos para ambos mãe e filho A recomendação da Organização Mundial de Saúde é a de amamentação exclusiva por seis meses e complementar até dois anos Drauzio Varella menciona a experiência da Pe nitenciária feminina de São Paulo e considera que A retirada do bebê do colo da mãe ainda com leite nos seios é uma experiência especialmente dolorosa VARELLA Drauzio Op Cit p 46 188 Ibidem p 236 654 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Só não me suicido porque tenho esperança de recu perar minha filha quando sair189 Dessa forma a vivência da maternidade no cárcere é permeada por diversas formas de violência que em nosso entendimento equi valem à tortura e esse tratamento degradante destinado às mulheres que é potencializado quando se tornam mães evidencia o descaso do Estado brasileiro com suas cidadãs e a urgência da mobilização femi nina para combater todas essas violações de direitos e situações de indignidade A nossa aspiração é que as pautas feministas possam incluir TO DAS as mulheres não atuando como legitimadoras de um sistema que demarca hierarquias reprodutivas menosprezando as experiências consideradas subalternas Um feminismo efetivamente transformador deve integrar as mulheres e não ignorar aquelas já reputadas invisíveis para o sistema principalmente as negras que ocupam predominan temente e cada vez mais os cárceres190 Tratase de um evidente pro blema de gênero posto que a maioria delas é presa por cometer delitos com motivação econômica por enfrentarem dificuldades para manter seus filhos mas que são excluídas da agenda geral dos grupos feminis tas por representarem somente um subgrupo em um fenômeno que Crenshaw denomina subinclusão191 Para isso é preciso atuar em conjunto com outras mulheres que embora pareçam muito distantes de nossa realidade estão subordi nadas a diversas formas de opressão como nós com atenção aos di ferentes tipos e intensidades em que se manifestam Que possamos aprender com o conceito de dororidade192 e perceber que no fim o que nos une é a dor imposta por nossa condição feminina e que a nossa resistência deve ser coletiva em defesa dos direitos de todas as mulheres considerando toda a diversidade Assim a luta pelo desen carceramento é também uma luta feminista é uma luta pela dignidade de todas 189 VARELLA Drauzio Op Cit p 4647 190 Sobre encarceramento racismo e feminismo confirase BORGES Juliana O que é encarceramento em massa Belo HorizonteMG Letramento Justifican do 2018 191 CRENSHAW Kimberle W A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero In VVAA Cruzamento raça e gênero Brasília Unifem 2004 p 15 192 PIEDADE Vilma Dororidade São Paulo Editora Nós 2017 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 655 Nesse contexto é nossa responsabilidade tornar os espaços mais democráticos e representativos para que a diversidade enriqueça nos sas relações e potencialize nossa luta por um mundo mais justo e igua litário Sigamos relembrando constantemente a profunda reflexão de Audre Lorde Eu não serei livre enquanto outra mulher for prisionei ra ainda que as correntes dela sejam diferentes das minhas REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOITEUX Luciana FERNANDES Maíra PANCIERI Aline e CHER NICARO Luciana Mulheres e Crianças Encarceradas Um Estudo Jurí dicoSocial sobre a Experiência da Maternidade no Sistema Prisional do Rio De Janeiro LADIH UFRJ Disponível em httpfileserveridpc netlibraryMesencarceradasUFRJpdf Acesso em 02052018 BRAGA Ana Gabriela Mendes ANGOTTI Bruna Da hipermaterni dade à hipomaternidade no cárcere feminino brasileiro SUR Revista Internacional de Direitos Humanos 22 v12 n22 229 239 2015 BRAMAN Donald Families and incarceration In Mauer Marc ChesneyLind Meda Invisible punishment the collateral consequences of mass imprisonment New York The New Press 2002 BRASIL Decretolei nº 3689 de 3 de outubro de 1941 Código de Processo Penal BRASIL Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 BRASIL Supremo Tribunal Federal Habeas Corpus 143641SP Impe trante Defensoria Pública da União Coatores juízes e juízas das Varas Criminais estaduais Tribunais dos Estados e do Distrito Federal e ter ritórios juízes e juízas federais com competência criminal Tribunais Regionais Federais e Superior Tribunal de Justiça Relator Ministro Ricardo Lewandowski Decisão proferida em 20 de fevereiro de 2018 BRASIL Ministério da Justiça Departamento Penitenciário Nacio nal Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN Mulheres 2016 2ª edição Brasília maio de 2018 Disponível em httpswwwjusticagovbrnoticiasestudotracaperfildapopula caopenitenciariafemininanobrasilhttpdepengovbrDEPEN depensisdepeninfopenmulheres Acesso em 18052018 656 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça CRENSHAW Kimberle W A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero In VVAA Cruzamento raça e gênero Brasília Uni fem 2004 DELIA FILHO Orlando Zaccone Acionistas do nada quem são os traficantes de droga 3ª edição Rio de Janeiro Revan 2011 MATTAR Laura Davis DINIZ Carmen Simone Grilo Hierarquias reprodutivas maternidade e desigualdades no exercício de direitos humanos pelas mulheres Interface Comunic Saude Educ v16 n40 p10719 janmar 2012 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS Regras de Bangkok Re gras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medi das não privativas de liberdade para mulheres infratoras Disponível em httpwwwcnjjusbrfilesconteudoarquivo20160327fa 43cd9998bf5b43aa2cb3e0f53c44pdf Acesso em 02052018 PIEDADE Vilma Dororidade São Paulo Editora Nós 2017 VARELLA Drauzio Prisioneiras 1 ed São Paulo Companhia das Le tras 2017 657 GRAVIDEZ NA PRISÃO GRAVIDEZ DE RISCO Aline Cruvello Pancieri193 Resumo O presente artigo busca analisar alguns dos riscos ineren tes à gravidez no cárcere com enfoque nos problemas de saúde e nas violências experimentadas pelas mulheres encarceradas no Rio de Ja neiro O acelerado aumento do encarceramento feminino nos últimos anos que em termos percentuais até ultrapassa o masculino é um fenômeno que chama atenção requer um olhar minucioso para en tender a sua complexidade Nessa ceara também se destaca o fato de grande parte das mulheres presas serem mães como aponta o último relatório do Departamento Penitenciário Nacional 2017 Tendo em vista que o cárcere é essencialmente um ambiente violador de direitos pretendese analisar como isso se dá na práxis do sistema carcerário do Rio de Janeiro O recorte e a metodologia do trabalho por sua vez correspondem às entrevistas realizadas com 41 mulheres grávidas e puérperas nos meses de julho e agosto de 2015 no presídio Talavera Bruce e na Unidade Materno Infantil As linhas teóricas ora trabalha das são interdisciplinares vão desde a criminologia crítica passando pela perspectiva feminista interseccional condensando também olha res da psicanálise Palavraschave Encarceramento feminino Maternidade no Cárcere Sistema de Justiça Criminal Tráfico de Drogas 193 Mestre em Direitos Humanos Sociedade e Arte pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ e graduada em Direito pela mesma instituição Pesquisadora do Laboratório de Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janei ro LADIHUFRJ 658 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça I INTRODUÇÃO Inicialmente é importante salientar que para analisar o fenômeno da maternidade no cárcere devese antes de mais nada falar no acelera do aumento do encarceramento feminino e sua relação direta com o crime de tráfico de drogas Atualmente o Brasil coleciona mais um grande motivo para se envergonhar com 42 mil mulheres presas possuímos a 4ª maior po pulação carcerária feminina do mundo Segundo o relatório do World Female Imprisionment List 2017194 divulgado pelo Institute for Criminal Policy Research da Birkbeck da Universidade de Londres existem mais de 714 mil mulheres e meninas sem liberdade ao redor do mundo e o Brasil se encontra atrás apenas da Rússia China e dos Estados Unidos Desta forma o número de mulheres e meninas pre sas em todo o mundo aumentou por volta de 50 desde o ano 2000 e somente no Brasil esse número agora é 45 vezes maior do que o nível do ano 2000 Segundo os dados do atual relatório do Departamento Peniten ciário Nacional 2017 a população carcerária brasileira total ultra passou a marca de 700 mil pessoas privadas de liberdade sendo que o encarceramento feminino especificamente cresceu 698 nos últimos 16 anos Se em 2000 havia cerca de 5601 mulheres cumprindo me didas de privação de liberdade agora em 2016 o número subiu para 44721 O mesmo relatório revela que 74 das mulheres presas no país possuem pelo menos um filho ao passo que 20 possui dois DEPEN 2017 Além disso temse que 26 dos homens respondem pelo cri me de tráfico mas no caso das mulheres esse número sobe para 62 Somase a isso o dado de que 40 dos presos no Brasil e no Rio de Janeiro são presos provisórios e de que 64 das pessoas presas são negras frente a 53 de negros na população em geral DEPEN 2017 Desta forma existe um claro perfil que é a clientela preferida do truculento sistema de justiça criminal mulheres jovens mães soltei ras em sua maioria negras e de baixa escolaridade INFOPEN 2018 Nesse sentido são mulheres que cometeram crimes sem violência 194 Disponível em httpwwwprisonstudiesorgnewsworldfemaleimprison mentlistfourthedition Acesso em 300618 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 659 mas que na realidade experimentam diversas formas de violações em suas vidas sendo o cárcere apenas mais uma reprodução dessa espiral violenta Diante desse cenário o presente artigo se propõe a trazer um olhar específico sobre as questões de saúde e violência vivenciadas pe las mulheres em situação de maternidade encarceradas no Rio de Ja neiro195 Para tanto foram entrevistadas 41 mulheres na penitenciária Talavera Bruce e na Unidade Materno Infantil196 nos meses de julho e agosto de 2015 Em geral são falas que expressam vidas marcadas pela violên cia que se manifestam a nível físico sexual e psicológico segundo os conceitos de Saffioti 2004 As narrativas revelam inúmeras violações de direitos humanos além de ilegalidades por parte dos atores do sis tema penal O objetivo foi o de fortalecer a voz e a experiência das mulheres assumindo a importância de visibilizar a complexidade dos problemas que envolvem a relação da mulher com o cárcere II DOS RISCOS INERENTES À MATERNIDADE NO CÁRCERE A maternidade vivenciada na prisão se revela como uma das facetas mais perversas do cárcere pois envolve violências contradições e so frimentos intensos tanto para as mulheres presas quanto para os seus filhos Neste sentido alguns estudos apontam que as condições sociais 195 Frisese que esse artigo é baseado na Dissertação de Mestrado Traficantes grávi das no banco dos réus um estudo feminista crítico do controle penal sobre mu lheres em situação de maternidade no Rio de Janeiro defendida no Programa de Pós Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 2017 196 A escolha pelas unidades se explica pela determinação da SEAP no sentido de que as presas grávidas provisórias ou que cumprem pena em regime fechado sejam transferidas para o Talavera Bruce e que todas as mulheres puérperas do sistema penitenciário sejam locadas na Unidade Materno Infantil até que termine o período de amamentação Ambas as unidades se localizam no Com plexo Penitenciário de GericinóRJ Na época em que se realizou o campo ha via dezoito mulheres alocadas na UMI com seus filhos e vinte e seis mulheres grávidas no Talavera Bruce o que significa que apenas três mulheres não foram ouvidas do total da população que se pretendeu investigar conforme constam dos registros oficiais Desta forma foram entrevistadas dezessete mulheres na UMI e vinte e quatro no Talavera Bruce 660 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça das mães que dão à luz encarceradas são precárias tanto no que se re fere à deficiente assistência prénatal alimentação condições de abri gamento stress psicológico e físico além do uso de algemas durante o trabalho de parto no parto e no pósparto Leal Ayres Pereira Sán chez Larouzé 2016 No cárcere se verifica que os direitos reprodutivos das mulheres e aqueles relacionados à sua saúde são amplamente desrespeitados o que está em desacordo com o disposto na Constituição Federal no sentido de que as presas devem ter o mesmo tratamento e acesso à saúde que a população livre Outra questão importante gira em tor no da separação da mãe de seus filhos seja pela prisão em flagrante que os separa seja nos casos em que os bebês após os seis meses de nascimento são retirados de suas mães que voltam para as unidades regulares do sistema carcerário Tal situação tem implicações na saú de psicológica de ambos e mais parece um beco sem saída se de um lado a convivência com o filho dentro da prisão possui consequências nefastas a sua separação prematura da mãe também tem repercussões avassaladoras197 Neste sentido o médico e psicanalista Winnicott 2005 afirma que os perigos decorrentes da separação do bebê podem ser incon tornáveis pois os traumas oriundos do rompimento com o víncu lo materno demoram muito a serem curados ou em muitos casos perduram por toda uma vida A unidade familiar proporciona uma segurança indispensável ao bebê e a criança pequena e quanto mais cedo se der a separação da mãe maior serão os efeitos sobre a perso nalidade da criança sobre o seu desenvolvimento emocional e sobre o desenvolvimento do seu caráter198 197 É importante salientar que desde a década de 90 até hoje o prazo de perma nência da criança dentro do cárcere com a mãe até os seis meses período de amamentação prorrogáveis por um ano em casos especiais 198 Winnicott 2005 também relaciona a tendência antissocial à privação ou seja a um fracasso específico no desenvolvimento da criança A privação por sua vez se dá quando o bebê vivenciou ainda muito pequeno uma experiência de abandono e não houve tempo hábil da mente desenvolver a capacidade de iden tificar o que pertence ao eu e o que não pertence o que justamente acontece nos casos em que os bebês são separados de suas mães prematuramente Desta forma a possiblidade que o bebê separado de sua mãe encarcerada desenvolva um comportamento agressivo que reverbere na criminalidade é altíssima re produzindo a infeliz realidade de sua família Segundo o próprio Winnicott as condutas criminosas devem ser vistas como um pedido de socorro Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 661 O dilema se dá de maneira muito complexa pois segundo Win nicott o bebê se encontra na fase de dependência absoluta da mãe199 momento este em que ocorrem as falhas primitivas no desenvolvi mento o que pode ensejar o surgimento de patologias mentais Se parar a mãe do filho neste momento significa gerar um trauma no desenvolvimento da criança uma real experiência de abandono que muito provavelmente repercutirá em um comportamento agressivo e antissocial Por outro lado a permanência no cárcere na fase em que o bebê ainda é absolutamente dependente faz com que ele absorva intensamente diversos aspectos do meio ambiente200 em que está in serido sem qualquer tipo de filtro É neste sentido que este autor diz sabemos que o mundo estava lá antes do bebê mas o bebê não sabe disso e no início tem a ilusão de que o que ele encontra foi por ele criado 2005 p 19 Desta forma a possibilidade que o bebê separado de sua mãe encarcerada desenvolva um comportamento agressivo que reverbere na criminalidade é altíssima reproduzindo a infeliz realidade de sua família Segundo o próprio Winnicott as condutas criminosas devem ser vistas como um pedido de socorro Winnicott descreveu o desen volvimento emocional primitivo como um percurso que vai desde a dependência absoluta até a independência propondo três etapas prin cipais dependência absoluta dependência relativa e autonomia rela tiva Winnicott 2015 Não existe um entendimento por parte do bebê acerca do si mes mo o que faz com que a sua subjetividade englobe todo o ambiente em que está inserido Sá 2013 afirma que tais questões complexas marcam profundamente a saúde mental do indivíduo e consequente mente a sua adaptação social pode reverberar em um comportamen to social problemático em que uma das possíveis vias de solução 199 Winnicott descreveu o desenvolvimento emocional primitivo como um per curso que vai desde a dependência absoluta até a independência propondo três etapas principais dependência absoluta dependência relativa e autonomia relativa Brum e Shermann 2004 200 É importante destaca que Winnicott confere grande importância ao papel do meio ambiente no desenvolvimento do indivíduo para além de questões in trapsíquicas Meio ambiente é para ele um lugar espaço ou veículo propi ciador de condições físicas e psicológicas com as quais o indivíduo convive Conceição 2005 Disponível em httpdwwecombrIMGpdfoambien teemwinnicottpdf Acesso em 300618 662 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça seria a criminalidade Para o autor em sua perspectiva etiológica e psicológica isto deveria ser levado em consideração pelas autoridades estatais a fim de se pensar em políticas públicas para tratar da mater nidade no cárcere e sobretudo do desencarceramento de mulheres Tais elementos por si só já denotam que toda a gravidez no cárcere é uma gravidez de risco pois existe de fato um aprisionamento paren tal201 Canazaro 2014 Os efeitos da pena202 que em grande parte dos casos se dão de maneira antecipada em prisão provisória sem condenação transitada em julgado claramente se estendem para além da mulher encarcera da afetando toda a sua estrutura familiar Este fato nos leva inevita velmente a pensar que a atual prática judiciária de manter mulheres grávidas e mães encarceradas desrespeita frontalmente um dos princí pios constitucionais norteadores da democracia qual seja da intrans cendência da pena ou da pessoalidade o qual garante que somente a pessoa condenada e ninguém mais poderá responder pelo fato prati cado artigo 5º XLV da CF De fato são diversas as contradições que permeiam o tema da maternidade na prisão a começar pela não consideração dos efeitos da pena na vida que está por vir ao contrário do que se dá por exem plo na criminalização do aborto É o Estado dizendo quais vidas im portam e quais vidas não importam Se a criminalização do aborto é socialmente um desastre203 é igualmente uma tragédia permitir que a vida de tantas mulheres seja afetada tão intensamente por meio do encarceramento 201 Neste sentido um estudo foi realizado pela Universidade de Princeton cons tatou que crianças com pais privados de liberdade têm 44 mais chances de apresentar comportamento agressivo Fragile Families Research Brief 2008 202 Na pesquisa realizada no Brasil e em Portugal Canarazo 2014 constatou que em ambas as realidades o aprisionamento acaba se estendendo aos filhos que segundo ela se submetem as prisões de forma direta Mesmo na experiência portuguesa que conta com mais infraestrutura e com uma unidade projetada para as crianças a autora afirma que os efeitos do aprisionamento são visíveis nas crianças evidenciados pela sua forma de agir 203 A pesquisa realizada pela antropóloga Debora Diniz em 2010 revela que mais de uma em cada cinco mulheres entre 18 e 29 anos já recorreu a um aborto na vida Diniz e Medeiros 2010 A cada dois dias uma mulher pobre morre por aborto inseguro no Brasil Disponível em httpapublicaorg201309ummi lhaodemulheres Acesso em 300618 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 663 Vêse então que tudo gira em torno do não reconhecimento da autonomia da mulher pobre e sobretudo negra e o bemsucedido controle dos seus corpos por parte do poder punitivo formal e infor mal com a manutenção da mulher em um lugar passivo E uma das melhores formas de explicitar tais contradições é verificar empirica mente as experiências das mulheres grávidas e puérperas encarcera das de forma a visibilizar as violações vivenciadas dentro do sistema penitenciário III SAÚDE E VIOLÊNCIA NAS PRISÕES DO RIO DE JANEIRO A partir das entrevistas constatouse que o maior problema de saúde apontado pelas mulheres é a depressão dado este que também é verificado em outras pesquisas realizadas sobre o tema da saúde men tal das mulheres presas Pancieri 2017 Nesse sentido um estudo realizado na Paraíba constatou que 331 das mulheres presas dos no Estado possuíam depressão nú mero superior ao dos homens 229 Em estágio grave o percentual das mulheres também supera o masculino 172 para 105 Araújo 2009 Da mesma forma uma investigação realizada no Rio de Janei ro em 2013 deflagrou que 248 dos detentos possuíam sintomas de pressivos moderados percentual bem mais elevado entre as mulheres 396 Constantino 2016 O fato de o percentual de mulheres com depressão ser mais elevado se comparado aos homens pode ser visto como uma consequência direta dos processos de abandono familiar em que estão submetidas o que ocorre de maneira muito distinta no caso masculino O alto índice de depressão entre as mulheres presas se conecta com o seu múltiplo apenamento que se manifesta sobretudo nos processos de solidão vivenciados por elas Isto porque nenhuma das entrevistas recebia visita íntima e 70 delas não recebia qualquer tipo de visita Pancieri 2017 Além da problemática das visitas também se deve olhar para as dores que envolvem o cerceamento da maternidade na prisão estando 664 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça elas vinculadas a dois extremos tanto aos processos de separação do bebê quanto a imposição de serem mães vinte e quatro horas por dia dentro do cárcere não contando com qualquer tipo de suporte ou qualquer possibilidade de descanso Ademais também foram feitas diversas queixas acerca da des confiança das agentes no que se refere aos pedidos de atendimento médico e de medicamentos pelas entrevistadas que cumpriam pena na Penitenciária Talavera Bruce O fato dos atendimentos não serem rea lizados por um médico o que se dá até mesmo em relação aos cuida dos ginecológicos mas sim por uma enfermeira foi citado de maneira bem negativa por boa parte das presas Pancieri 2017 A falta de desconfiança dos agentes alcança o seu ápice nas si tuações em que as presas já se encontravam em trabalho de parto e solicitam a viatura para ir ao hospital Em razão de não serem ouvidas suas vidas e as de seus bebês são colocadas em alto risco Ressaltase o caso absurdo da presa que deu à luz sozinha na viatura tendo em vista a demora na chegada do transporte Comecei a sentir dor desde a madrugada Quando foi pela manhã eu pedi para chamar a SOE204 porque eu ia ganhar o neném Aí a guarda pediu para eu aguardar um pouco porque ia ter a troca de plantão e às 9h iam me buscar Nisso me chamaram para eu ir ao ambulatório pois achavam que eu não tava sentindo tanta dor para o meu filho nascer Falaram que iam fazer o pedido da emergência novamente e já eram dez e pouco Aí me mandaram para a cela de novo quando foi 1450 minha bolsa estourou e eu estava na cela Só nessa hora que chamaram o SOE e o SOE chegou eram 15h 1515 eu estava dentro do carro e ela nasceu A SOE disse Não fica fazendo força não que você vai arrumar ideia Mas eu continuei fazendo porque vi que ia nascer Quando o SOE viu a cabecinha da minha filha ela segurou pra mim mas eu tive a minha filha praticamente sozinha Ana Nos próximos dois relatos que seguem verificamse as situações limite vivenciadas pelas presas as quais refletem um flagrante descui do em relação às suas demandas e o tratamento desumano dispensa do a elas 204 O SOE Serviço de Operações Especiais é responsável pelo transporte das pre sas das unidades penitenciárias aos hospitais Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 665 Sofri muito até o SOE chegar Achei que fosse ganhar minha fi lha na cela Mas deus foi bom e me ajudou a chegar no hospital Mariana Comecei a sentir dor a noite e quando foi 3h da manhã a co lega chamou o SOE O SOE disse que eu queria passear e que não era para acordálo que era para chamalo as 9h da manhã Chegando na UPA ele disse para mim que eu ia sofrer mais um pouco de massacre ali Aí a enfermeira disse que eu ia ganhar neném para me levar para o Albert O SOE disse que eu não tava ganhando nada e que era para voltar para a cadeia Che gando no Albert eu pedi para fazer xixi quando fui secar já senti a cabeça do neném Chamei a enfermeira e ela pegou na minha mão e disse que eu ia ganhar O SOE ficou duvidando e quando eu entrei na sala ele entrou junto e ficou assistindo o parto O médico tirou o meu filho com uma luva só na mão Nem deu tempo de colocar a outra Cris Neste sentido o controle dos corpos das mulheres é patente e consequentemente as presas vivenciam episódios críticos205 chegando inclusive a dar à luz na cela Acontecimentos como estes denunciam o múltiplo e antecipado apenamento que sofrem as mulheres Lemgru ber 1999 além dos abusos relatados sobre os agentes especialmente no que tange às questões que envolvem a maternidade no cárcere so bretudo o sensível momento do parto São muitas as afrontas constitucionais e legais percebidas a partir dos relatos dignidade da pessoa humana art 1º inciso III CF direi to à saúde da mulher e do bebê art 6º da CF art 14 3 da LEP art 8 4º do ECA Do total das entrevistadas a maioria 537 afirmou não rece ber atendimento ginecológico Frisese que 268 delas afirmaram não saber não lembrar ou não responderam a essa questão Assim os dados indicam a extrema precariedade do atendimento ginecológico não prestado às mulheres em ambas as unidades Pancieri 2017 205 As entrevistadas dizem que não é recorrente mas que partos na cela aconte cem sobretudo em razão da demora na solicitação e chegada do transporte o que se relaciona diretamente com o abuso de autoridade e com o tratamento pouco humanizado dos agentes Salientase ainda o caso emblemático que teve grande repercussão na mídia sobre a presa que deu à luz sozinha em uma cela solitária no presídio Talavera Bruce caso este que também ocorreu no ano de 2015 Disponível em httpagenciabrasilebccombrgeralnoticia201510 presagravidadaluzemsolitariadepresidionorio Acesso em 300618 666 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Outro dado muito alarmante informado pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro foi a existência de apenas um só médico ginecolo gista para todas as presas do Estado no ano em que realizamos a pes quisa de campo Isto motivou o órgão a impetrar uma ação para ga rantir que o Estado preste assistência médica especializada de forma preventiva e emergencial as mulheres encarceradas para mais de duas mil mulheres encarceradas o que foi finalmente determinado pela 16ª Câmara Cível do TJRJ em março do ano passado206 Também verificamos outra questão no que se refere à realização dos exames prénatal a maior parte das entrevistadas 707 disse ter feito os exames parcialmente207 somado a 171 delas que afirmaram não terem realizado Além disto outra queixa muito frequente foi a respeito do não recebimento do resultado dos exames feitos A preca riedade na realização dos exames prénatal em geral é um dos proble mas mais graves enfrentados pelas mulheres gestantes encarceradas como apontam Leal Ayres Pereira Sánchez Larouzé 2016 Todos estes dados nos permitem afirmar que a saúde da mulher en carcerada pode estar em risco diante das falhas no atendimento médico ginecológico relatados o mesmo ocorrendo na realização dos exames prénatal de maneira incompleta e o respectivo recebimento dos resul tados O que se nota é que a saúde e a vida da mulher importa menos e que quando existe algum tipo de preocupação esta se volta apenas para o bebê Aqui se percebe que vigora uma visão autoritária no sentido da mulher enquanto presa não possuir direitos o que foi relatado por elas como tendo sido verbalizado pelos agentes penitenciários em muitas situações No relato abaixo temse um exemplo disto O SOE demora muito a chegar quando vem No hospital eu dormi algemada e amamentei o meu filho algemada A enfer meira perguntou se eu tinha alguma coisa e o SOE foi e falou já viu presa ter alguma coisa Presa não tem direito a nada Angélica 206 O pedido havia sido inicialmente negado pela juíza da 4a Vara da Fazenda Pú blica do Estado por considerar que oferecer atendimento médico ginecológico às presas seria um privilégio em relação as mulheres em liberdade que não tem a mesma garantia Disponível em httpbrasilestadaocombrblogsesta daoriojuizanegamaisginecologistasapresasegerapolemica Acesso em 300618 207 Consideramos que receberam o prénatal completo aquelas mulheres que fi zeram exames de sangue de urina e ultrassonografia Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 667 O caso em destaque também fala de uma prática bem corriqueira na época em que realizamos as entrevistas o uso de algemas de ma neira abusiva tanto durante o trabalho de parto quanto no pósparto Segundo a fala das presas em geral as mulheres não dão à luz algema das o que se deve ao fato da maior parte delas realizar cesariana e não parto normal208 o que impede que entrem na sala de cirurgia algema das Frisese que na época em que realizamos as entrevistas 2015 com exceção das presas que deram à luz fora do hospital em situações extremas todas as outras mulheres foram submetidas à cesariana sem muitas possibilidades de escolha quanto a isto209 Neste sentido nos foram relatadas violações sobre o uso de al gemas com destaque para o caso de Sara que teve hemorragia pós parto e ainda assim foi algemada o que inclusive pode ser conside rado tortura Também destacamos o caso de Flora que exemplifica o constrangimento de ser algemada logo após o parto e a dificuldade de cuidar do bebê nestas condições Depois do parto comecei a dar hemorragia e ele me algemou no corredor Fiquei passando mal ali algemada Sara Eles tentaram fazer parto normal em mim mas não tinha pas sagem Estava com muita dor sentei no carro A SOE achou um absurdo eu estar sentada e me algemou Disse que meu neném ia nascer e cair no chão Depois quando tive meu filho a noiti nha eu tava deitada para dormir e eles em algemaram Não dava pra trocar a fralda do meu filho nem amamentar ele Flora 208 Frente aos relatos é imperioso fazer o debate sobre a violência obstétrica ex perimentada pelas mulheres Segundo a Defensoria de São Paulo o fenômeno pode ser conceituado como a apropriação do corpo e dos processos reproduti vos das mulheres por profissionais de saúde e por meio do tratamento desuma nizado abuso de medicalização e patologização dos processos naturais da mu lher que se dá pela perda de autonomia e capacidade de decidir de forma livre sobre seus corpos impactando a sua sexualidade De fato a impossibilidade de escolher como se dará o parto e a consequente imposição da cesariana confi guram com clareza a opressão em questão Disponível em httpsannelbrito jusbrasilcombrartigos115355541violenciaobstetricaoqueeisso Acesso em 300618 209 A submissão à cesariana sem a possibilidade de anuência da mulher quanto ao procedimento é por si só uma forma de violência São diversos os estudos que indicam os prejuízos do procedimento da cesariana para a saúde da mulher e do bebê Disponível em httpwwwlabjorunicampbrmidiacienciaarticle php3idarticle523 Acesso em 300618 668 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Deste modo considerase que o emprego das algemas nessas si tuações é completamente desproporcional e abusivo mesmo após o parto pois impede a interação da mãe com o bebê além dos cuidados mais básicos como a troca de fraldas e a amamentação O direito à amamentação de forma adequadas é resguardado pela Constituição Federal art 5º inciso L além do art 9º do ECA e da regra n 58 de Bangkok Evidentemente seja em trabalho de parto ou após o parto não pode haver fundado receio de fuga ou qualquer tipo de resistência e risco à integridade física os quais figuram como requisitos para o uso de algemas como dispõe a Sumula Vinculante nº 11 do STF210 e o decreto 885816211 O que se observa na prática é a ampla e ilegal uti lização de algemas de maneira infundada e abusiva contra mulheres grávidas ou parturientes em momento sensível Frisese que há dois anos entrou em vigor no Rio de Janeiro a Lei Estadual n 71932016 que proíbe o uso de algemas em trabalho de parto e após o parto em subsequente período de internação212 Ademais mais recentemente foi sancionada a lei federal que proíbe a utilização de algemas no trabalho de parto e no pósparto em abril do corrente ano213 A questão agora gira em torno de avaliar em que 210 Dispõe a Súmula 11 do STF Só é lícito o uso de algemas em casos de resis tência e de fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia por parte do preso ou de terceiros justificada a excepcionalidade por escrito sob pena de responsabilidade disciplinar civil e penal do agente ou da autoridade e de nulidade da prisão ou do ato processual a que se refere sem prejuízo da responsabilidade civil do Estado 211 O decreto 885816 altera o disposto no artigo 199 da Lei 721084 estabele cendo como diretrizes para o uso de algemas o respeito às Regras de Bangkok e ao Pacto de San José da Costa Rica Neste sentido as algemas só podem ser utilizadas em fundado receio de fuga ou de perigo à integridade física própria ou alheia devendo a sua excepcionalidade ser justificada por escrito O decreto também dispõe que é proibido o emprego de algemas em mulheres presas em qualquer unidade prisional durante o trabalho de parto no trajeto da partu riente entre a unidade prisional e a unidade hospitalar e após o parto durante o período de hospitalização Frisese que o decreto foi publicado em setembro de 2016 mais de um ano após a realização da pesquisa de campo 212 Segundo Art 1º da Lei n 71932016 in verbis Fica proibido o uso de algemas calcetas ou outro meio de contenção física abusivo ou degradante durante o trabalho de parto da presa ou interna e subsequente período de internação em estabelecimento de saúde pública e privada ressalvado o protocolo médico de contenção necessário 213 Lei proíbe uso de algemas em grávidas durante o trabalho de parto Disponível em httpwww1folhauolcombrcotidiano2017041875489leiproibeu Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 669 medida a lei está se cumprindo pois antes da sua vigência já existia a vedação ao uso desproporcional de algemas e é sabido que existe um sistemático desrespeito à legislação em geral V CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante de todo o exposto podese dizer que as mulheres em situação de maternidade sofrem diversas violações enquanto encarceradas Em razão de desafiarem a estrutura do patriarcado sofrem um múltiplo apenamento que se refletem no flagrante desrespeito aos poucos di reitos positivados que possuem seja contra à dignidade da pessoa humana os direitos à sua saúde e também a do bebê Por fim é importante salientar que desde a pesquisa de campo em 2015 o tema da maternidade no cárcere tem ganhado visibilida de e em função disso avanços importantes aconteceram tanto a Lei federal n 1325716 que ampliou notadamente as possibilidades de concessão da prisão domiciliar como as leis estadual e federal que proíbem o uso de algemas no trabalho de parto e no pósparto Devese enfatizar a importância das leis em questão vez que em nossa pesquisa de campo realizada antes da publicação das leis foram denunciados diversos episódios de uso abusivo e ilegal de algemas Em 2017 tivemos o Indulto de Dia das Mães publicado em 120417 pelo governo federal que alcança mães e avós com filhos ou netos de até 12 anos ou portadores de deficiência grávidas com gestação de alto risco e mulheres com mais de 60 ou menos de 21 anos ou deficientes E nesse ano finalmente o Supremo concedeu HC coletivo em nome de todas as mulheres presas grávidas e mães de crianças até 12 anos de idade estendendo também a decisão à adolescentes em situação de maternidade Foi determinado ainda o prazo de 60 dias para que os tribunais de todo o país cumpram integralmente a decisão No entanto fazendo frente aos avanços legais e ao que foi deter minado no HC coletivo que de forma alguma resolve a questão mas guarda um potencial de grande impacto está o intenso punitivismo do judiciário muitos juízes alegam que o HC não tem natureza vincu sodealgemasemgravidasduranteotrabalhodepartoshtml Acesso em 300618 670 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça lante e por isso não o aplicam apesar do voto expressamente ordenar o cumprimento integral da decisão Por fim devese dizer ainda que tais avanços a nível legislativo se deram em meio a um cenário em que a truculência da política de combate às drogas só aumenta Além do extermínio cotidiano de jo vens negros e negras o crescimento do encarceramento feminino pelo crime de tráfico continua a todo vapor e é por isto que se pode dizer que a guerra às drogas também é uma guerra contra às mulheres Nes te sentido a medida mais urgente que pode alterar este cenário do encarceramento feminino e da maternidade na prisão é uma mudança profunda na política de drogas através da regulamentação e legali zação das drogas Necessitamos de mudanças estruturais na política como um todo e essa se coloca como uma das mais urgentes REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE Vera Regina Pereira de A ilusão de segurança jurídica do controle da violência à violência do controle penal 2ª ed Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 ARAÚJO Fábio Alves Ferreira Maia de Prevalência de Depressão e Ansiedade em Detentos Revista Avaliação Psicológica 2009 pp 381 390 BARATTA Alessandro Criminologia crítica e crítica ao direito penal introdução à sociologia do direito penal Tradução Juarez Cirino dos Santos 3ª ed Rio de Janeiro Revan Instituto Carioca de Criminolo gia 2002 BOITEUX Luciana Coord Mujeres y encarcelamiento por delitos de drogas Colectivo de Estudios de Drogas y Derecho CEDD 2015 Disponível em httpswwwacademiaedu21691346Mujeresyen carcelamientopordelitosdedrogas BOITEUX Luciana FERNANDES Maíra CHERNICHARO Lucia na PANCIERI Aline Mulheres e crianças encarceradas um estudo jurídicosocial sobre as experiências da maternidade no sistema pri sional do Rio de Janeiro mimeo 2015 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 671 BRUM Evanise Helena Maio de SCHERMANN Lígia Vínculos ini ciais e desenvolvimento infantil abordagem teórica em situação de nas cimento de risco Ciência e Saúde Coletiva 92457467 2004 CANAZARO D A prisão feminina gravidez e maternidade um estu do da realidade em Porto Alegre RSBrasil e LisboaPortugal 2014 32 f Tese Doutorado Programa de PósGraduação em Ciências Criminais Faculdade de Direito Universidade Católica do Rio Gran de do Sul Porto Alegre 2014 CONSTANTINO Patricia ASSIS Simone Gonçalves de O impacto da prisão na saúde mental dos presos no estado do Rio de Janeiro Brasil Ciênc saúde coletiva online 2016 vol21 n7 pp20892100 DAVIS Angela Y A democracia da abolição para além do império das prisões e da tortura Rio de Janeiro DIFEL 2009 Mulheres Raça e Classe Tradução Hecci Regina Candiani 1 ed São Paulo Boitempo 2016 INFOPEN Ministério da Justiça Levantamento Nacional de Informa ções Penitenciárias Infopen 2017 Disponível em httpdepengov brDEPENnoticias1noticiasinfopenlevantamentonacionalde informacoespenitenciarias2016relatorio201622111pdf Acesso em 300618 INFOPEN MULHER Ministério da Justiça Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias Infopen Mulher 2018 Disponível em httpdepengovbrDEPENdepensisdepeninfopenmulheresin fopenmulheresarte070318pdf Acesso em 300618 LAROUZÉ Bernard SIMAS Luciana VENTURA Miriam Mater nidade atrás das grades em busca da cidadania e da saúde Um estudo sobre a legislação brasileira Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Brasil 2015 LAROUZÉ B SÁNCHEZ AR PEREIRA A E AYRES B V LEAL M C Nascer na prisão gestação e parto atrás das grades no Brasil Ciência Saúde Coletiva 217 p 20612070 2016 LEMGRUBER Julita Cemitério dos Vivos Análise Sociológica de uma Prisão de Mulheres 2ª Edição Rio de Janeiro Forense 1999 672 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça PANCIERI Aline Cruvello Traficantes grávidas no banco dos réus um estudo feminista crítico do controle penal sobre mulheres em si tuação de maternidade no Rio de Janeiro Dissertação de Mestrado defendida no Programa de Pós Graduação em Direito da Universida de Federal do Rio de Janeiro 2017 SÁ Alvino Augusto de Criminologia clínica e psicologia criminal 3 Ed Ver atual e ampl São Paulo Revista dos Tribunais 2013 SAFFIOTI H I 2004 Gênero Patriarcado Violência São Paulo Fundação Perseu Abramo WINNICOTT Donald W Privação e delinquência Tradução Álvaro Cabral 4 ed São Paulo Martins Fontes 2005 673 MATERNIDADE E CÁRCERE NO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL PATRIARCAL Barbara Gaeta Dornellas de Lima214 Sandra Maria Pinheiro Ornellas215 Resumo O presente trabalho demonstra a existência da invisibili dade de gênero da população carcerária feminina notadamente das mulheres que têm filhos menores de doze anos que além de serem abandonas pela família sofrem com o desamparo do sistema de jus tiça criminal que é incapaz de assegurar uma estrutura mínima de cuidado resultando na sobrecarga de limitações em função do trato institucional Apesar da Lei nº 13257 de 2016 ter possibilitado a con versão da prisão preventiva em domiciliar para as gestante e mulheres com filhos de até doze anos é possível observar que os critérios esta belecidos pela novel legislação são ignorados desde o indiciamento até a sentença pois muitas vezes negam tal direito em razão da in terpretação que é feita pelos juízes construindo uma criminalidade seletiva perpetuando desigualdades de gênero típicas da sociedade contemporânea Palavraschaves Maternidade e Cárcere Justiça Criminal Invisibili dade de Gênero Prisão Domiciliar 214 Advogada PósGraduada em Gênero e Direito pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro 215 Delegada da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro PósGraduada em Gênero e Direito pela Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro 674 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Os dados do Departamento Penitenciário Nacional Depen216 demonstram um aumento de 5674 da população carcerária femi nina brasileira em 14 anos enquanto a média de crescimento mascu lino no mesmo período foi de 22020 refletindo o encarceramento em massa das mulheres O número de mulheres presas cresce em torno de 107 ao mês compondo a 4ª maior população feminina encarcerada do mundo com 423 presas brasileiras segundo informações divulgadas pelo Mi nistério da Justiça Apesar deste crescimento o relatório mostra que a maior parte dos estabelecimentos penais foi projetado para o público masculino com somente 7 das unidades prisionais no país destina das às mulheres Verificase que 17 das celas são mistas existindo alas específi cas para o aprisionamento de mulheres dentro de um estabelecimento originalmente masculino que revela a negligência estatal a qual vai desde a desídia com a higiene feminina até a proibição das mães fica rem com seus filhos217 Tratase de um sistema pensado e projetado para os homens o que faz com que as presas fiquem totalmente vulneráveis com a sobre carga de limitações em função do trato institucional A existência de estabelecimentos penais mistos comprova a desconsideração da pers pectiva de gênero no sistema prisional brasileiro uma vez que são rea lizadas apenas adaptações em suas dependências para abrigar mulhe res presas não se priorizando as preocupações quanto ao tratamento de ressocialização como também quanto às questões sobre instalação de creches e berçários para seus filhos218 216 LEVANTAMENTO Nacional de Informações Penitenciárias Infopen Mu lheres Disponível em httpwwwjusticagovbrnewsestudotracaperfil dapopulacaopenitenciariafemininanobrasilrelatorioinfopenmulheres pdf Acesso em 12 jan 2018 217 RAMOS Beatriz Drague Com 42 mil presas Brasil tem a 4ª maior população carcerária feminina Disponível em httpswwwcartacapitalcombrsocie dadecom42milpresasbrasiltema4maiorpopulacaocarcerariafemini na Acesso em 12 jan2018 218 MIYAMOTO Yumi Krohling Aloísio Sistema prisional brasileiro sob a pers pectiva de gênero invisibilidade e desigualdade social da mulher encarcerada Disponível em httpwwwjurpucriobrrevistadesindexphprevistades articleview173 Acesso em 15 jan2018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 675 A maioria dos presídios não possui estrutura adequada para pre servar a saúde da gestante tampouco para garantir um espaço de con vivência decente entre mãe e filho Quando chegam ao hospital não raro estas mulheres dão à luz algemadas tortura e violência obstétrica em último grau219 O confinamento feminino resulta em uma penalização dupla ou seja pelo delito que cometeram e pelo fato de serem mulheres Não se trata exclusivamente da privação de liberdade mas também da viola ção de direitos básicos que deveriam ser garantidos pelo Estado como o acesso à justiça à educação ao trabalho à assistência médica além da negação de suas particularidades de gênero Conforme demonstram os dados do Departamento Penitenciário Nacional 80 delas são mães e na maioria das vezes são separadas do convívio com os seus filhos220 O cárcere vai além da mulher presa pois afeta também as pessoas que estão em seu ciclo familiar Para os companheiros as mulheres perdem seu valor como esposas ou na moradas As suas mães e amigas precisam atravessar a cidade para fazer uma visita e ainda tem de passar pela revista vexatória sofrendo constrangimentos e abusos Sem a ajuda da família e dos companheiros estas mulheres são afastadas da convivência com os filhos e quando estão em liberdade são desprovidas de oportunidades e condições para recomeçar Essa falta de apoio familiar durante o encarceramento revela uma espécie de punição social da mulher por seu mau comportamento No imaginário social dominante esperase que a mulher seja obedien te submissa comprometida com o mundo doméstico linda e sempre disposta ao outro Ao descumprir essas incumbências se desvia de seu papel tradicional havendo um empenho social em tornálas dóceis221 219 FERNANDES Maíra Com prisão domiciliar para grávidas e mães STF prote ge crianças do encarceramento Disponível em httpswwwconjurcombr 2018fev23mairafernandesprisaodomiciliarmaesstfprotegecriancas Acesso em 18 jan 2018 220 OS presídios femininos são construídos sobre violências de gênero Disponível em httpazminacombr201604ospresidiosfemininossaocontruidos sobreviolenciasdegenero Acesso em 15 jan2018 221 DUARTE Thais Lemos GIVISIEZ Fernanda Machado Cárcere feminino mecanismo de docilização de mulheres desviantes Disponível em http justificandocartacapitalcombr20170105carcerefemininomecanismo dedocilizacaodemulheresdesviantes Acesso em 17 jan2018 676 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça O encarceramento feminino reflete a cegueira e a violência de gênero em todos os aspectos De um modo geral percebese que o perfil das presas são os mes mos isto é são jovens negras têm filhos menores de idade são as responsáveis pela provisão do sustento familiar possuem baixa esco laridade são provenientes de classes sociais desfavorecidas economi camente e exercem atividades laborais informais Como advento da Lei nº 132572016 Estatuto da Primeira In fância que assegura políticas públicas para a primeira infância di versas outras leis foram modificadas inclusive alguns dispositivos do Código de Processo Penal foram alterados para incluir a exigência de informações quanto à filiação de mulheres no momento do indicia mento seja no inquérito policial instaurado por portaria seja em fla grante delito Tais informações permitem ao magistrado em conformidade com o inciso IV do art 318 do Código de Processo Penal a substitui ção da prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for gestante não existindo mais o tempo mínimo de gravidez nem que haja risco à saúde da mulher Neste sentido também é o caso das mulheres presas com filhos de até 12 anos que podem ter a conversão da prisão pre ventiva em domiciliar nos termos do inciso V do art318 do mesmo diploma legal222 No entanto de acordo com os dados obtidos em consulta rea lizada no sistema operacional da Polícia Civil do Rio de Janeiro de março de 2016 quando a lei nº 13257 entrou em vigor até dezembro de 2018 foram presas somente em flagrante delito no Rio de Janeiro 5032 mulheres e ao checar o cumprimento da lei foi possível obser var a dificuldade de realizar a pesquisa pela ausência de filtros que permitam cruzar informações relativas à prisão ao sexo e ao tipo pe nal por exemplo As informações estabelecidas na lei não aparecem no corpo do registro de ocorrência tendo sido necessário analisar de per si cada auto de prisão em flagrante o que resultou na averiguação de apenas 222 CAVALCANTE Márcio André Lopes Comentários à Lei 132572016 Es tatuto da Primeira Infância Disponível em httpwwwdizerodireitocom br201603comentarioslei132572016estatutodahtml Acesso em 18 jan2018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 677 10 do total Restou evidente que em nenhum deles constavam in formações relativas aos filhos sendo que em grande parte dos casos constou no auto de prisão em flagrante que a mulher autuada se re servava ao direito de prestar informações em juízo Ao verificar o despacho do auto de prisão em flagrante também não se observou qualquer referência aos critérios determinados pela novel legislação tampouco se examinou o cumprimento da Resolução 02 do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária datado de 08 de agosto de 2017 que determina o encaminhamento de có pia do auto de prisão em flagrante de mulheres grávidas lactantes ou mães de filhos menores de 12 anos ou com alguma deficiência ao Cen tro de Referência em Assistência Social que somente foi publicado no início de 2018 no Boletim Interno da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro A negligência no cumprimento da referida lei não acontece ape nas na Polícia e revela a face patriarcal do sistema de justiça criminal na farsa da aplicação da igualdade formal Com o apoio da Coordenação de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro foi realizado um levantamento no período compreendido entre o dia 30 de novembro de 2015 até 12 de dezembro de 2017 em que a Defensoria recebeu informações de que 146 presas estavam em período gestacional ou de aleitamento sendo que destas 107 são gestantes e 39 lactantes Não foi possível precisar aquelas durante a vigência da alteração legislativa Além dis so insta salientar que houve prova da gestação e do aleitamento em todos os casos Das 107 gestantes 90 são assistidas pela Defensoria Pública To dos os juízos de seus respectivos processos foram informados sobre a gestação das presas incluindo aquelas patrocinadas por advogados particulares A Defensoria protocolizou 79 pedidos de revogação da prisão preventiva eou substituição por prisão domiciliar tendo sido deferidos somente 31 pedidos Das 39 lactantes 29 são assistidas pela Defensoria ocasião em foram protocolizados 19 pedidos de revogação da prisão preventiva e ou substituição por prisão domiciliar sendo que apenas 263 destes pedidos foram deferidos 678 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça No tocante às mães presas com filhos de até 12 anos incompletos das 246 encarceradas 179 estão sob o amparo da Defensoria Pública ou seja 72 Foram protocolizados 110 pedidos de liberdade revoga ção preventivaprisão domiciliar tendo logrado êxito somente em 40 pedidos Foram 19 habeas corpus impetrados sendo 16 denegados e 3 pendentes de julgamento Estes dados revelam que na esfera judicial os requisitos trazidos pela legislação em referência não autorizam a conversão da prisão preventiva em domiciliar de forma automática tendo em conta a in terpretação que é feita por parte dos magistrados É possível observar que a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro não é pacífica quanto ao tema sendo que em muitos casos os juízes deixam de aplicar a nova regra sob a alegação de que tais requisitos não bastam por si só devendo a substituição ser ponderada junto à outras circunstâncias do caso como o tipo de crime praticado a personalidade da presa e o atendimento ao superior interesse do menor A legislação é clara em relação aos pressupostos que autorizam a substituição da prisão preventiva não deixando margem para dú vidas pois é notória a necessidade dos cuidados maternos aos filhos menores de 12 anos Manter a custódia preventiva destas mulheres é fazer com que a criança seja igualmente punida com a privação do convívio materno o que não se afigura viável em um Estado democrático de direito O tema em análise foi discutido no Superior Tribunal de Justiça tendo o Ministro Nefi Cordeiro entendido que a Lei nº 1325716 nor matizou tratamento cautelar diferenciado à gestante e à mulher com filhos de até 12 anos incorporando ao ordenamento jurídico novo critério para a concessão da prisão domiciliar não havendo outro re quisito além dos legalmente exigidos sendo descabida a discussão da necessidade dos cuidados maternos à criança No referido caso o colegiado revogou a prisão preventiva de uma mulher que tem dois filhos com dois e seis anos de idade suspeita de envolvimento com tráfico de drogas O pedido de prisão domiciliar havia sido negado pelo Tribunal de Justiça Um dos fundamentos foi a ausência de demonstração de que a mãe seria a única pessoa capaz de Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 679 cuidar das crianças além da possibilidade de amamentação do filho de dois anos na cadeia pública local Entretanto o Relator do caso o Ministro Nefi Cordeiro223 ao aplicar o Estatuto da Primeira Infância concluiu que Vêse como descabida a discussão de necessidade dos cuida dos maternos à criança pois condição legalmente presumida e não devidamente justificada a insuficiência da cautelar de pri são domiciliar O excepcionamento à regra geral de prote ção da primeira infância pela presença materna exigiria especí fica fundamentação concreta o que não se verifica na espécie evidenciandose a ocorrência de constrangimento ilegal Não obstante as condições em que o crime teria sido cometido a concessão da prisão domiciliar encontra amparo legal na proteção à maternidade e à infância bem como no princípio da dignidade da pessoa humana porquanto se prioriza o bemestar do menor224 Em que pese a Lei nº 132572016 ter sido promulgada em 2016 poucas mudanças ocorreram no intuito de beneficiar as mulheres elencadas no art 318 do CPP O assunto foi levado ao Supremo Tri bunal Federal que em decisão histórica promulgada em fevereiro de 2018 acolheu pedido feito em um HC coletivo impetrado em favor de todas as presas provisórias do país que sejam gestantes ou mães de crianças com até 12 anos bem como deficientes sob sua guarda A Suprema Corte assegurou a conversão da prisão provisória em do miciliar sob o fundamento de que o Estado brasileiro não é capaz de garantir estrutura mínima de cuidado prénatal e para maternidade às mulheres que sequer estão presas Além disso a manutenção de crianças em celas é absolutamente incompatível com os avanços do século XXI225 223 MÃES e pais têm requisitos diferentes para conseguir prisão domiciliar diz STJ Disponível em httpswwwconjurcombr2017abr08maespaisre quisitosdistintosprisaodomiciliarstj Acesso em 18 jan2018 224 STF concede domiciliar a mais duas mães para cuidar de filhos menores Dis ponível em httpswwwconjurcombr2017jun26stfconcededomiciliar duasmaescuidarfilhosmenores Acesso em 20 jan2018 225 STF garante prisão domiciliar a gestantes e mães de crianças que estejam em provisória Disponível em httpwwwmigalhascombrQuentes17 680 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça É importante frisar que a decisão acima não alcançará os casos de crimes praticados mediante violência ou grave ameaça contra os seus próprios filhos ou nos casos em que estas presas tenham perdido a guarda dos mesmos ou ainda em situações excepcionalíssimas as quais deverão ser fundamentadas pelos magistrados que denegarem o benefício mediante pronta comunicação ao STF Com tal decisão mais de quatro mil mulheres encarceradas em todo território brasileiro podem ser beneficiadas De acordo com a advogada e professora Maíra Fernandes226 a Suprema Corte cumpriu o seu papel de garantidora da Constituição Federal impedindo que os direitos fundamentais de mulheres e crianças continuem sendo fla grantemente violados A questão é de humanidade e abre espaço para a discussão do encarceramento feminino que cresceu 680 nos últi mos anos no país O sistema prisional brasileiro mantém regras sexistas tradicio nalmente sob as rédeas do sistema patriarcal que acentua a exclusão social da mulher em relação ao homem A mulher é punida duplamen te pois ao cometer um crime é imediatamente submetida à reação social além da negação de suas particularidades de gênero Quando encarceradas sofrem a punição por terem descumprido o seu papel social tradicional de conformação ao espaço privado ao invadir o es paço público considerado como exclusivo aos homens227 O sistema da justiça criminal deveria combater a criminalidade através de uma redução do encarceramento em massa com o fito de proteger bens jurídicos universais gerando segurança pública e ju rídica contudo constrói uma criminalidade seletiva reproduzindo reiteradamente desigualdades sociais isto é de classe de gênero e de raça228 MI27477841046STFgaranteprisaodomiciliaragestantese maesdecriancasque Acesso em 21 jan2018 226 FERNANDES op cit 227 MIYAMOTOYumi KROHLING Aloísio Sistema prisional brasileiro sob a perspectiva de gênero invisibilidade e desigualdade social da mulher encarce rada Disponível em httpdireitoestadosociedadejurpucriobrmedia9ar tigo40pdf Acesso em 20 jan2018 228 ANDRADE Vera Regina Pereira A soberania patriarcal o sis tema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher Revista Brasileira de Ciências Criminais n 48 maiojunho Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 681 É nítida a invisibilidade social que estas mulheres são lançadas não sendo o foco de atenção dos cientistas dos juristas dos políticos nem do poder judiciário Concluise que o cárcere não só reforça como perpetua as desi gualdades de gênero típicas do meio social contemporâneo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS LEVANTAMENTO Nacional de Informações Penitenciárias Infopen Mulheres Disponível em httpwwwjusticagovbrnewsestudo tracaperfildapopulacaopenitenciariafemininanobrasilrelato rioinfopenmulherespdf Acesso em 12 jan 2018 RAMOS Beatriz Drague Com 42 mil presas Brasil tem a 4ª maior população carcerária feminina Disponível em httpswwwcartaca pitalcombrsociedadecom42milpresasbrasiltema4maiorpo pulacaocarcerariafeminina Acesso em 12 jan2018 MIYAMOTO Yumi Krohling Aloísio Sistema prisional brasileiro sob a perspectiva de gênero invisibilidade e desigualdade social da mulher encarcerada Disponível em httpwwwjurpucriobrrevis tadesindexphprevistadesarticleview173 Acesso em 15 jan2018 OS presídios femininos são construídos sobre violências de gênero Disponível em httpazminacombr201604ospresidiosfemi ninossaocontruidossobreviolenciasdegenero Acesso em 15 jan2018 DUARTE Thais Lemos GIVISIEZ Fernanda Machado Cárcere fe minino mecanismo de docilização de mulheres desviantes Dispo nível em httpjustificandocartacapitalcombr20170105carce refemininomecanismodedocilizacaodemulheresdesviantes Acesso em 17 jan2018 CAVALCANTE Márcio André Lopes Comentários à Lei 132572016 Estatuto da Primeira Infância Disponível em httpwwwdize 2004 p 260290 682 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça rodireitocombr201603comentarioslei132572016estatutoda html Acesso em 18 jan2018 MÃES e pais têm requisitos diferentes para conseguir prisão domici liar diz STJ Disponível em httpswwwconjurcombr2017abr08 maespaisrequisitosdistintosprisaodomiciliarstj Acesso em 18 jan2018 MIYAMOTOYumi KROHLING Aloísio Sistema prisional brasilei ro sob a perspectiva de gênero invisibilidade e desigualdade social da mulher encarcerada Disponível em httpdireitoestadosociedade jurpucriobrmedia9artigo40pdf Acesso em 20 jan2018 ANDRADE Vera Regina Pereira A soberania patriarcal o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher Revista Brasileira de Ciências Criminais n 48 maiojunho 2004 p 260290 STF concede domiciliar a mais duas mães para cuidar de filhos me nores Disponível em httpswwwconjurcombr2017jun26stf concededomiciliarduasmaescuidarfilhosmenores Acesso em 20 jan2018 FERNANDES Maíra Com prisão domiciliar para grávidas e mães STF protege crianças do encarceramento Disponível em https wwwconjurcombr2018fev23mairafernandesprisaodomiciliar maesstfprotegecriancas Acesso em 18 jan 2018 STF garante prisão domiciliar a gestantes e mães de crianças que es tejam em provisória Disponível em httpwwwmigalhascombr Quentes17MI27477841046STFgaranteprisaodomiciliara gestantesemaesdecriancasque Acesso em 21 jan2018 683 MULHERES E A MATERNIDADE NO CÁRCERE Anna Paula de Moraes Bennech229 Fernanda da Silva DÁvila230 Resumo Os estudos sobre os sistemas de justiça criminal e carcerá rio brasileiro majoritariamente marginalizam as questões que con cernem às mulheres A partir da perspectiva de gênero este trabalho tem como objetivo principal observar a realidade do encarceramento feminino e o exercício da maternidade dentro do sistema peniten ciário brasileiro Primeiramente será feita uma breve revisão biblio gráfica acerca do encarceramento e sua construção como instituição masculina e como a perspectiva de gênero é inserida nesse contex to Na segunda seção será analisada a realidade carcerária brasileira com descrição das características das mulheres presas Ademais serão abordadas comparativamente as previsões legais e as condições de fato existentes para o exercício da maternidade nos estabelecimentos prisionais desde a gestação até o período de aleitamento e afastamen to Por fim debateremos o paradigma da maternidade e as transfor mações necessárias para que instituições prisionais sejam adequadas para as necessidades das mulheres Em caráter exploratório este arti go atingiu seu objetivo observando que o arcabouço legal brasileiro 229 Mestra em Ciência Política e bacharela em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFGRS Atual mente é estudante do 5º semestre de Direito na PUCRS Porto Ale gre Brasil Email annabennechgmailcom 230 Advogada Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Porto Alegre Brasil Email fesdavi lagmailcom 684 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça é relativamente avançado em termos de garantias e direitos acerca do exercício da maternidade no cárcere contudo o caráter deontológico da Constituição e das leis não está alcançando a realidade que viola os direitos humanos e princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana e a individualização da pena Palavraschave Sistema de justiça criminal Encarceramento femini no Maternidade no cárcere I INTRODUÇÃO Em tempos de instabilidade institucional e política tal qual vivemos no Brasil há urgência por revisitarmos nos debates públicos princí pios constitucionais basilares do Estado Democrático de Direito como a legalidade a isonomia e a dignidade humana Tratar desigualmente os desiguais é uma maneira de assegurar a igualdade no entanto é preciso observar em que medida as leis são aplicadas de acordo com essa premissa ou seja o que como e para quem Ao refletirmos sobre questões de justiça e institucionalização da democracia os sistemas de justiça criminal e penitenciário funcionam como uma fotografia da sociedade que representam demonstrando quais crimes são identificados como mais nocivos para a coletividade e quais parcelas da população são mais punidas com o encarceramen to Ao analisarmos a realidade carcerária sob este prisma é interessan te pensarmos sobre os motivos pelos quais uma mãe responsável na época por três crianças menores de 12 anos foi presa em flagrante ao roubar ovos de páscoa e um peito de frango e condenada a mais de três anos de prisão231 enquanto Adriana Ancelmo investigada pela Lava Jato por lavagem de dinheiro formação de quadrilha e pertencimen to a organização criminosa232 após ser presa preventivamente teve sua prisão relaxada para regime domiciliar com o argumento de que 231 COPLE Júlia Mãe é condenada a pena maior que réus da LavaJato por roubar ovos de Páscoa Extra Sl 2017 Disponível em httpsextraglobocom noticiasbrasilmaecondenadapenamaiorquereusdalavajatoporrou barovosdepascoa21374988html Acesso em 28 jun 2017 232 NEVES Ernesto Os crimes de Adriana Ancelmo Veja Sl 2017 Disponível em httpvejaabrilcombrblogradaronlineoscrimesdeadrianaancel mo Acesso em 28 jun 2017 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 685 precisava cuidar de seus filhos de 10 e 14 anos uma vez que o pai tam bém está preso233 A realidade da família Cabral é diferente da família da primeira mãe mencionada cujos filhos estão separados sendo que dois ficaram sob os cuidados de familiares e o outro permaneceu com a presa enquanto não completou seis meses234 Ou seja aparentemen te roubar um ovo de páscoa é mais nocivo para a sociedade do que pertencer a uma quadrilha e violar os cofres públicos Observar estes casos em perspectiva comparada proporcionou a inquietação para a elaboração deste trabalho Os estudos no campo de sistemas de justiça criminal e as condi ções do sistema carcerário brasileiro são majoritariamente estuda dos de forma unilateral sonegando uma série de especificidades que são caras à compreensão das realidades sociais em sua complexidade Dessa forma são reproduzidas em larga escala concepções alinhadas ao status quo que não são adequadas ao entendimento das dinâmicas de minorias De maneira geral as questões que concernem às mulhe res são marginalizadas até mesmo ocultadas em especial nas pesqui sas sobre o encarceramento O encarceramento feminino é um campo de estudo essencial para romper paradigmas e auxiliar na ampliação do entendimento dos preconceitos e dos estigmas impostos às mulhe res em reclusão Com enfoque na perspectiva de gênero este trabalho tem como objetivo principal observar o encarceramento feminino e o exercício da maternidade dentro do sistema penitenciário brasileiro de acordo com três eixos legal acadêmico e estatístico Primeiramente será feita uma breve revisão bibliográfica acerca do encarceramento e sua construção como instituição masculina a perspectiva de gênero em estudos de sistema prisional e o encarce ramento feminino Na segunda seção serão analisadas as garantias e previsões legais relativas à maternidade no cárcere Na sequência desenharemos através de dados de acesso público um mapa da reali dade carcerária brasileira descrevendo as características das mulheres 233 TEIXEIRA Patrícia Adriana Ancelmo mulher de Sérgio Cabral vai para prisão domiciliar G1 Sl 2017 Disponível emhttpg1globocomriode janeironoticiapresaemdezembroadrianaancelmovaiparaprisaodomi ciliarghtml Acesso em 28 jun 2017 234 EXTRA Filhos de presa por roubar ovos de Páscoa crescem separados da mãe e dos irmãos Sl 2017 Disponível em httpsextraglobocomnoticiasbra silfilhosdepresaporroubarovosdepascoacrescemseparadosdamae dosirmaos21385158html Acesso em 07 jul 2017 686 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça presas no Brasil e as condições existentes para o exercício da mater nidade nos estabelecimentos prisionais desde a gestação até o afasta mento dos bebês dos espaços prisionais Em termos metodológicos este estudo tem cunho exploratório e utilizará revisão de bibliografia e análise crítica de dados de acesso público do sistema prisional brasileiro A partir deste aparato serão tecidas considerações sobre as diferenças entre as previsões legais a percepção da literatura especializada e o retrato estatístico do encar ceramento feminino e da maternidade no cárcere II O ENCARCERAMENTO Desde o momento em que a humanidade passou a viver em grupos tornouse necessário estabelecer regras de convivência Uma vez que esses grupos familiares evoluíram para grandes sociedades o desafio de controlar as condutas desviantes também cresceu Nesse mesmo sentido as estratégias e os métodos de punição foram diversificados Enquanto o interesse do estado e dos governos concentra vase em produzir exemplos a punição resumiase à violência o que visava a coagir os demais indivíduos a não realizar determinada con duta considerada por sua vez nociva para a sociedade Com o desen volvimento do capitalismo e o consequente aumento dos aglomerados urbanos este interesse ampliouse e além do medo passouse a exigir que os corpos fossem dóceis disciplinados tornando insuficiente a antiga forma de punição Foucault 2008235 O surgimento das pri sões no século XVIII acontece como um reflexo da necessidade não só de segregar os delinquentes mas também de domesticálos con trolando seus corpos e suas vidas para disciplinálos de acordo com a conduta normal esperada236 Assim o Direito Penal funciona como a ultima ratio para reprimir condutas indesejadas Bitencourt 2013237 e os presídios como o instrumento último de repressão 235 FOUCAULT Michel Nascimento da Biopolítica Traduzido por Eduardo Bran dão São Paulo Martins Fontes 2008 236 Ibidem 237 BITENCOURT Cezar Roberto Tratado de Direito Penal parte geral 19ª Ed rev ampl e atual São Paulo Saraiva 2012 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 687 No que tange as questões de gênero é importante pontuar que as prisões foram criadas em um ambiente em que crimes eram execu tados essencialmente por agentes masculinos Isto é reflexo não só de uma sociedade em que os espaços sociais de poder independente mente de classe econômica eram ocupados por homens como tam bém da percepção de que as mulheres são frágeis e confinadas res tritas ao ambiente doméstico Ramos 2010238 em outras palavras domesticadas Desse modo a elaboração das estruturas institucionais prisionais não considerava e ainda não considera as especificidades do público feminino Assim o sistema penal duplica a situação de violência contra as mulheres encarceradas seja pela invisibilização com que as não trata seja por meio da violência institucional que reproduz a violência estrutural das relações sociais patriarcais e de opressão sexista Ramos 2010 p 1207239 As prisões que primeiramente foram feitas exclusivamente para o público masculino foram adaptadas para receber mulheres conde nadas É somente diante do aumento de delinquentes femininas que o Estado timidamente passa a atinar sobre as mulheres presas No Rio Grande do Sul por exemplo até 2010 o Presídio Feminino Madre Pelletier era a única penitenciária do estado para este público240 que funcionava superlotado com número de presas equivalente ao o do bro da sua capacidade Para amenizar este cenário em agosto de 2010 foi inaugurado o presídio Feminino Estadual Feminino de Torres e em abril de 2011 a Penitenciária Estadual de Guaíba Esta realidade ainda que regional demonstra não só a invisibilidade das mulheres encarceradas e as carências que vivenciam como o interesse tardio do Estado em estabelecer locais apropriados para a população carcerária feminina 238 RAMOS Luciana de Souza O reflexo da criminalização das mulheres delin qüentes pela ausência de políticas públicas de gênero Em questão os direitos sexuais e reprodutivos In XIX Encontro Nacional do CONPEDI Fortaleza CE Anais Fortaleza CONPEDI 2010 239 Ibidem p 1207 240 BITTENCOURT Álvaro Hummes Mulheres Sistema Prisional o sentido do trabalho para quem viveu e vive sob a égide do cárcere 2012 120f Dis sertação Mestrado em Ciências Sociais Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2012 Disponível em httphdlhandle net109231953 Acesso em 07 jul 2017 688 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça III O SISTEMA PRISIONAL E O ENCARCERAMENTO FEMININO NO BRASIL É importante a priori destacar que embora reconhecida a rele vância e a urgência de debates e estudos sobre modos de reinventar ou até mesmo abolir a prisão tal qual conhecemos este não é o cerne des te trabalho Ainda que seja flagrante a ineficiência do sistema a pers pectiva de modificálo severamente ou extinguilo é infelizmente de veras distante Portanto consideramos de suma importância observar as características do sistema prisional brasileiro no que concerne ao encarceramento feminino de modo a construir alternativas e soluções ainda que distantes do ideal para promover mesmo que timidamente menor desrespeito às garantias e direitos fundamentais humanos Dito isso em termos de cenário nacional a situação carcerária apresenta total falência institucional retrato da falta de políticas pú blicas investimentos e modernização penitenciária Em outras pala vras o contexto atual é retrato do descaso do estado dos governos e da sociedade civil que em sua maioria alimenta o entendimento de que o encarceramento é a solução para a violência instigando o sentimen to de retribuição por meio da pena do sofrimento O que ocorre hoje é em primeira instância resultado da falta investimentos nos prédios temos prisões construídas para a realida de do século XVIII para receber presos em pleno século XXI Con forme dados do INFOPEN Atualização Junho 2016241 a população prisional brasileira é de 726712 presos para 368049 vagas somando as vagas do sistema penitenciário das secretarias de segurança e car ceragens de delegacias bem como o sistema penitenciário Federal havendo uma ocupação carcerária de 1974 totalizando um déficit de 358663 vagas Em recente atualização de dados penitenciários foi verificado que 49 dos estabelecimentos prisionais foram concebidos para o aprisionamento de presos provisórios Bem como 74 dos estabele cimentos prisionais foram projetados para o público masculino 7 são destinados ao público feminino e 17 foram caracterizados como 241 BRASIL Ministério da Justiça e Segurança Pública Departamento Peniten ciário Nacional Levantamento Nacional de informações penitenciárias IN FOPEN Atualização Junho de 2016 p7 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 689 mistos ou seja são estabelecimentos com alascelas específicas para aprisionamento de mulheres dentro de um estabelecimento original mente masculino242 Em termos de escolaridade é interessante destacar que há uma considerável diferença da média da população prisional em relação à média geral da população brasileira Enquanto 32 da população brasileira completou o ensino médio apenas 8 da população prisio nal total concluiu o ensino médio sendo que 53 sequer completou Ensino Fundamental243 Além da carência estrutural também é histórica a negligência quanto aos dados penitenciários brasileiros que além de incomple tos até 2014 sequer possuíam uniformização244 No tocante às in formações sobre as mulheres encarceradas o último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias foi o primeiro relatório espe cífico elaborado concernente à situação carcerária feminina ou seja até essa data não há informações oficiais sobre os presídios femininos do país quiçá da população carcerária Por sua vez ao analisarmos a evolução da população prisional brasileira por gênero o número de homens privados de liberdade é bem maior que o número de mulheres Todavia é visível que o cresci mento do índice de mulheres encarceradas é mais expressivo do que o de homens o número de mulheres encarceradas cresceu 567 entre os anos 2000 e 2014 o que é quase o triplo em relação ao universo masculino ainda de acordo com o INFOPEN 2014 No mesmo senti do ao passo em que a taxa total de aprisionamento aumentou 119 a taxa de aprisionamento de mulheres aumentou 460 nesse período245 A distribuição por gênero dos crimes das pessoas privadas de li berdade no Brasil ressalta ainda mais as diferenças sociais de gênero 242 RASIL Ministério da Justiça Departamento Penitenciário Nacional Levanta mento Nacional de informações penitenciárias INFOPEN Atualização Junho de 2016 p17 e 19 243 Ibidem p 26 244 BRASIL Ministério da Justiça e da Segurança Pública Departamento Peni tenciário Nacional Levantamento Nacional de informações penitenciárias IN FOPEN Atualização Junho 2016Brasília Ministério da Justiça 2017 p 43 245 BRASIL Ministério da Justiça Departamento Penitenciário Nacional Levan tamento Nacional de informações penitenciárias INFOPEN Mulheres Brasí lia Ministério da Justiça 2014 p 5 690 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça presentes na sociedade Nessa seara é relevante observar que 26 dos crimes pelos quais os homens respondem estão relacionados ao trá fico sendo que para as mulheres os números são mais que o dobro vez que 62 das mulheres privadas de liberdade estão condenadas por este mesmo crime de acordo com dados do Ministério da Justiça246 IV MULHERES E MÃES NO CÁRCERE Mais do que tratar sobre a dignidade das mulheres presas e refletir so bre como a maternidade está inserida no contexto do cárcere é essen cial buscar analisar quem são essas mulheres a idade o estado civil a escolaridade são informações essenciais para produzir insights sobre as suas necessidades e os ambientes a que habitualmente estão ex postas A população prisional feminina brasileira é jovem conforme o INFOPEN 2014247 50 das mulheres encarceradas têm idade entre 18 e 29 anos 18 entre 30 e 34 anos 21 entre 35 e 45 enquanto somente 10 estão na faixa etária entre 46 e 60 anos Esses índices demonstram a predominância dentre as presas de mulheres jovens e em pleno estágio reprodutivo Ao analisarmos a escolaridade das mulheres encarceradas per cebemos ainda que sensível uma condição melhor do que aquela apresentada pelos homens encarcerados ao passo em que 14 das mulheres concluíram o ensino médio o índice entre os homens é de apenas 8 no Ensino Fundamental também existe pequena vanta gem do público feminino vez que a porcentagem de mulheres que não concluíram o ensino fundamental é de 50 e para os homens 53 ainda segundo o INFOPEN 2014 No tocante à taxa de analfabetis mo também há uma sutil diferença 5 dos homens encarcerados são analfabetos contra 4 das mulheres No âmbito do estado civil a maioria das mulheres presas é soltei ra o que corresponde a 57 das presas 26 possuem união estável 9 são casadas 3 são divorciadas e 3 são viúvas De acordo com os dados do Ministério da Justiça declarados no INFOPEN Mulher 2014 a porcentagem de solteiros encarcerados é maior do que a ve 246 Ibidem 247 Ibidem Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 691 rificada na população brasileira que é de 348 conforme o IBGE248 A porcentagem de mulheres solteiras presas pode ser explicada pela alta porcentagem de jovens encarceradas Ademais expõe a função das mulheres no crime enquanto atrizes sociais secundárias pois sua inserção no mundo da criminalidade está intimamente ligada aos seus relacionamentos afetivos com pessoas já envolvidas com este ambien te249 Traçado o perfil sócio demográfico das mulheres brasileiras em situação de privação de liberdade é possível deduzir as necessidades dessas mulheres pois considerando sua idade as probabilidades de já serem mães ou de haver gravidez dentro da prisão são altas Com o intuito de preservar a saúde e a integridade da mulher houve recentes inovações250 na Lei de Execuções Penais para alterar a forma de cum primento da pena privativa de liberdade definindo que os estabele cimentos penais destinados a mulheres serão dotados de seção para gestantes e parturientes e de berçário onde as condenadas possam cuidar de seus filhos e amamentálos no mínimo até os seis meses de idade das crianças bem como de creche para abrigar crianças maiores de seis meses e menores de sete anos251 Entretanto mesmo que as garantias legais já estejam assegura das ao analisarmos os dados do Ministério da Justiça no INFOPEN Mulheres de 2014 percebemos que na prática esses direitos das mães presas não são exercidos Nesse sentido das unidades que custodiam mulheres menos da metade dos estabelecimentos femininos dispõe de cela ou dormitório adequado para gestantes e parturientes sendo que essa porcentagem é menor ainda no caso das unidades mistas em que apenas 6 dispõem de espaço para gestantes A existência de berçário ou centro de referência materno infan til é ainda menor proporcionalmente do que a de celas dormitórios para gestantes enquanto 34 das unidades femininas dispõem de cela 248 BRASIL Ministério da Justiça Departamento Penitenciário Nacional Levan tamento Nacional de informações penitenciárias INFOPEN Mulheres Brasí lia Ministério da Justiça 2014 p 25 249 Ibidem 250 BRASIL Lei 11942 de 28 de maio de 2009 Disponível em httpwwwpla naltogovbrccivil03Ato200720102009LeiL11942htmart2 Acesso em 07 jul 2017 251 BRASIL Lei 7210 de 11 de julho de 1984 Disponível em httpwwwplanal togovbrccivil03leisL7210htm Acesso em 07 jul 2017 692 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça dormitório para gestante só 32 das unidades femininas possui ber çário ou centro de referência materno infantil e nas unidades mistas apenas 3 contemplam berçáriocentro de referência Considerando o baixo número de unidades prisionais femininas e mistas com ambientes próprios para gestantes parturientes lactan tes e bebês não deveria ser espantosa a falta de existência de creches nas unidades prisionais Os dados do Ministério da justiça mais uma vez escancaram a deficiência das entidades penais para cumprir o mínimo estabelecido na própria legislação Ainda segundo os dados lançados em 2014 apenas 5 das unidades femininas dispunham de creche não havendo creches em unidades mistas A atualização do Levantamento Nacional de Informações Peni tenciárias INFOPEN atualização junho de 2016 demonstrou que em 30062016 existiam 105215 profissionais em atividade no siste ma prisional de todo o país sendo apenas 32 o número de médicos ginecologistas nos estabelecimentos penitenciários do Brasil dividi dos em 16 médicos ginecologistas em unidades prisionais masculinas e de 16 médicos ginecologistas nas unidades destinadas ao encarcera mento feminino252 V O PARADIGMA DA MATERNIDADE O ENCARCERAMENTO FEMININO E A MATERNIDADE NO CÁRCERE De forma geral a maternidade é concebida enquanto uma vocação natural das mulheres até mesmo enquanto um propósito de vida De vido a fatores sociais oriundos de discursos religiosos e médicos a capacidade biológica de gerar seres humanos está intrinsecamente associada à percepção de que mulheres nasceram para serem mães e que o amor materno é incondicional instintivo e comum a todas Vásquez 2014253 Destarte as mulheres mães que cometeram cri 252 BRASIL Ministério da Justiça e da Segurança Pública Departamento Peni tenciário Nacional Levantamento Nacional de informações penitenciárias IN FOPEN Atualização Junho 2016Brasília Ministério da Justiça 2017 p 46 253 VÁSQUEZ Georgiane Maternidade e Feminismo notas sobre uma relação plural Revista Trilhas da História Três Lagoas v 3 n 6 p 167181 janjun 2014 Disponível em httpwwwseerufmsbrojsindexphpRevTHarticle Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 693 mes não somente sofrem com o estigma de criminosas o que em teoria também seria contra a natureza da mulher como também são percebidas como um fracasso em relação à maternidade De certa forma permitida uma redução ao absurdo com fins didáticos é como se essas mulheres e consequentemente suas crianças não fossem merecedoras da proteção do estado e das garantias da lei para serem mães e filhos No campo do sistema de justiça criminal a maternidade não é uma pena a ser cumprida pela mulher mas sim um direito a ser exer cido A preocupação com a maternidade no cárcere não deveria estar restrita ao âmbito do poder público e da justiça pois abrange questões que afetam toda a sociedade Ademais não só a mulher é um agente nesse contexto e deve ter seus direitos garantidos como também seus filhos nascituros e bebês são sujeitos de direito Na reflexão acerca da maternidade no cárcere é importante res saltar que a Constituição brasileira assevera que as penas devem ser individualizadas Brasil 1988254 A orientação de individualização da pena ocorre em três esferas legislativa judicial e executória sendo que esta última referese ao cumprimento da pena ou seja que este é individual Bitencourt 2013 p 767255 Dessa forma a maternidade não pode servir como parte ou agravante da pena assim como a pena conferida à mulher não pode ser estendida a outra pessoa ou seja aos seus filhos O arcabouço legal brasileiro prevê através da Lei de Execuções Penais256 que os estabelecimentos penais devem ter berçários e am biente para que as condenadas possam cuidar de seus filhos e ama mentálos no mínimo até os seis meses de idade Ou seja em teoria a criança poderia ficar mais tempo com a mãe caso continuasse sendo amamentada porém na prática o limite máximo é de seis meses257 view472273 Acesso em 07 jul 2017 254 Art 5º XLVI BRASIL Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03constituicaoconstitui caohtm Acesso em 07 jul 2017 255 BITENCOURT Cezar Roberto Tratado de Direito Penal parte geral 19ª Ed rev ampl e atual São Paulo Saraiva 2013 p 767 256 BRASIL Lei 7210 de 11 de julho de 1984 Disponível em httpwwwplanal togovbrccivil03leisL7210htm Acesso em 07 jul 2017 257 FAPESP A maternidade na prisão Pesquisa FAPESP Sl 2016 Disponível em httprevistapesquisafapespbrwpcontentuploads201603086088 694 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Contudo a retirada da criança do cárcere mesmo quando obedece ao mínimo período determinado pela lei não respeita necessariamente o direito da criança de ser amamentada por mais tempo258 Nessa linha de raciocínio ao contrário do que a legislação orienta percebemos que a condição de condenada da mãe e as condições precárias dos presídios brasileiros acabam em certa medida não só estendendo a pena da mãe para a criança como infringindo à presa um sofrimento que não faz parte da pena Ainda neste argumento podemos apontar que ao permitir por exemplo partos dentro de prisões femininas e mistas automaticamente acabamos punindo a criança que já chega ao mundo cumprindo pena por um crime que não cometeu tendo seus direitos restritos Um levantamento realizado pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul na Penitenciária Feminina Madre Pelletier em 2015 entrevistou 121 mulheres presas e constatou que 5041 das mães presas não recebem visitas dos filhos 85 desses menores estão sendo cuidados por pessoas que não têm o poder de guarda defini do legalmente 68 das mulheres não informaram o endereço onde vivem seus filhos 27 dos filhos das presas estão fora da escola e apenas 5 deles recebem algum tipo de acompanhamento psicoló gico259 Esse estudo endossa a percepção de que o princípio da indi vidualização da pena vem sendo violado pois retrata a realidade das mães encarceradas que ao cumprirem suas penas no regime fechado recebem o agravante de terem seus filhos arrancados de si do seu convívio sem sequer o direito de saberem muitas vezes onde e como estão O exercício da maternidade tornase ainda mais conturbado ao considerarmos a estrutura patriarcal da sociedade brasileira em que as mulheres são consideradas as principais quando não exclusivas responsáveis pelo cuidado dos filhos Nessa senda a psicóloga Cláudia Stella aponta que de acordo com censo penitenciário paulista reali Maternidade241pdf Acesso em 07 jul 2017 258 RACY Sonia Vamos aplicar a lei do ventre livre diz Cármen Lúcia Sl 2016 Disponível em httpculturaestadaocombrblogsdiretodafonteva mosaplicaraleidoventrelivredizcarmenlucia Acesso em 07 jul 2017 259 IRION Adriana Projeto de lei prevê política de assistência aos filhos de de tentos ZHClicrbs Sl 2015 Disponível em httpzhclicrbscombrrsno ticiasnoticia201509projetodeleiprevepoliticadeassistenciaaosfilhos dedetentos4844034html Acesso em 07 jul 2017 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 695 zado no ano de 2002 869 das companheiras assume a guarda dos filhos dos homens presos enquanto apenas 195 dos filhos de mu lheres presas ficam com seus companheiros260 Por sua vez a falta de estrutura do estado para garantir que as mulheres presas tenham ao menos informações sobre o paradeiro das crianças acaba desestabili zando as presas Nesse sentido a promotora Aline dos Santos Gonçal ves uma das responsáveis pelo estudo na Madre Pelletier alerta que A sociedade precisa entender que as pessoas presas se não fo rem tratadas voltarão piores para as ruas E que os filhos delas também precisam de proteção até para que se rompa o ciclo de violência No acompanhamento de penas percebese quanto o fator família filhos visitas têm o poder de desestabilizar quem está privado de liberdade Há casos de presas que fogem por preocupação com o paradeiro dos filhos IRION 2015 onli ne261 A atual presidente do Supremo Tribunal Federal Ministra Car mén Lúcia tem como meta do seu mandato criar um centro de aten dimento à presa grávida em cada Estado para os quais as mulheres encarceradas sejam encaminhadas no sétimo mês de gestação A mi nistra sustenta seu projeto dizendo Quero terminar meu mandato sem nenhum brasileirinho nascendo dentro de uma cela Isso é inad missível Isso é simplesmente descumprir uma lei a Lei do Ventre Li vre Brasil 2016262 260 FARIELLO Luiza CNJ prepara resoluções sobre assistência a presidiárias e seus filhos Conselho Nacional de Justiça Sl 2016 Disponível em http wwwcnjjusbrnoticiascnj82663cnjprepararesolucaosobreassistenciaa presidiariaseseusfilhos Acesso em 07 jul 2017 261 IRION Adriana op cit 262 BRASIL Ministra Carmén Lúcia reúnese com presidentes dos TJs para de finir pauta do STF e CNJ Notícias do Supremo Tribunal Federal Sl 2016 Disponível em httpwwwstfjusbrportalcmsverNoticiaDetalheaspid Conteudo325251 Acesso em 07 jul 2017 696 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça VI CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo sobre encarceramento feminino e a maternidade no cárcere desafiam as estruturas institucionais vigentes nos sistemas penitenciá rio e de justiça criminal brasileiros reflexo de instituições pensadas por homens e para homens O problema reside em continuarmos per petuando estes mecanismos institucionais inadequados para mulhe res em pleno século XXI É necessário que as instituições prisionais sejam repensadas e reformuladas de acordo com as necessidades es pecíficas das mulheres o que inclui as gestantes as lactantes e seus bebês O arcabouço legal brasileiro destinado a disciplinar o exercício da maternidade no cárcere pode ser caracterizado como relativamente avançado abrangendo além de direitos e garantias constitucionais ge rais a previsão de que estabelecimentos prisionais possuam a infraes trutura necessária mínima adequada para mães e bebês Todavia o caráter deontológico da Constituição não está alcançando a realidade que viola os direitos humanos e princípios constitucionais importan tes como a dignidade da pessoa humana e a individualização da pena Em viés exploratório este artigo atingiu seu objetivo de refletir acerca da realidade vivida pelas mulheres encarceradas e as condições para o exercício da maternidade na prisão segundo as perspectivas legal acadêmica e estatística O quadro prisional feminino reflete fato res de exclusão e vulnerabilidade sociais reproduzindo no cárcere o cenário severo de desigualdades brasileiro Assim estudos que visem a compreender as dinâmicas e as estruturas desse contexto contribuem não só para dar visibilidade para as condições desumanas do cárcere e a vulnerabilidade das mães e de seus filhos como também para fo mentar o debate público capaz de propor e demandar soluções para essas questões Por fim em se tratando de estudos futuros considerando análi ses doutrinárias e jurisprudenciais a recente decisão da 2ª turma do Supremo Tribunal Federal STF acerca do HC 143641 deferindo o pedido de habeas corpus coletivo a todas as presas grávidas e mães de crianças de até 12 anos de idade tornouse protagonista no debate sobre maternidade no cárcere263 O posicionamento do STF está de 263 POMPEU Ana Supremo concede HC coletivo a todas as presas grávidas e Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 697 acordo com a determinação da Lei 132572016 a qual postula que a prisão preventiva pode ser substituída por prisão domiciliar para mulheres gestantes e mães de crianças até 12 anos que todavia não vinha sendo acatada pelos tribunais264 Desse modo o entendimento jurisprudencial está em consonância com a norma legal ambos apon tando na direção de valorização dos princípios de dignidade da pessoa humana e individualização da pena Contudo novamente a questão para estudo debate e militância repousa sobre a consumação desse direito das mulheres em situação de maternidade REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BITENCOURT Cezar Roberto Tratado de Direito Penal parte geral 19ª Ed rev ampl e atual São Paulo Saraiva 2013 BITTENCOURT Álvaro Hummes Mulheres Sistema Prisional o sentido do trabalho para quem viveu e vive sob a égide do cárcere 2012 120f Dissertação Mestrado em Ciências Sociais Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2012 Dis ponível em httphdlhandlenet109231953 Acesso em 07 jul 2017 BRASIL Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 Dis ponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03constituicaocons tituicaohtm Acesso em 07 jul 2017 Lei 7210 de 11 de julho de 1984 Disponível em httpwww planaltogovbrccivil03leisL7210htm Acesso em 07 jul 2017 Lei 11942 de 28 de maio de 2009 Disponível em http wwwplanaltogovbrccivil03Ato200720102009LeiL11942ht mart2 Acesso em 07 jul 2017 mães de crianças ConJur Sl 20 fev 2018 Disponível em httpswwwcon jurcombr2018fev20supremoconcedehccoletivopresasgravidasmaes criancas Acesso em 29 mai 2018 264 BRASIL Supremo Tribunal Federal Habeas Corpus 143641SP Relator Mi nistro Ricardo Lewandowski Disponível em httpswwwconjurcombrdl votoministroricardolewandowski1pdf Acesso em 29 mai 2018 698 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Ministério da Justiça Departamento Penitenciário Nacional Levantamento Nacional de informações penitenciárias INFOPEN Mulheres Brasília Ministério da Justiça 2014 Disponível em httpwwwjusticagovbrnoticiasmjdivulgaranovorelatoriodo infopennestatercafeirarelatoriodepenversaowebpdf Acesso em 5 jul 2017 Ministério da Justiça e Segurança Pública Departamento Pe nitenciário Nacional Levantamento Nacional de informações peniten ciárias INFOPEN Atualização Junho de 2016 Brasília Ministério da Justiça e Segurança Pública 2017 Disponível em httpwwwde pengovbrDEPENnoticias1noticiasinfopenlevantamentonacio naldeinformacoespenitenciarias2016relatorio 2016 22111pdf Acesso em 30 mar2018 Ministra Carmén Lúcia reúnese com presidentes dos TJs para definir pauta do STF e CNJ Notícias do Supremo Tribunal Fede ral Sl 2016 Disponível em httpwwwstfjusbrportalcmsver NoticiaDetalheaspidConteudo325251 Acesso em 07 jul 2017 BRASIL Supremo Tribunal Federal Habeas Corpus 143641SP Re lator Ministro Ricardo Lewandowski Disponível em httpswww conjurcombrdlvotoministroricardolewandowski1pdf Acesso em 29 mai 2018 COPLE Júlia Mãe é condenada a pena maior que réus da LavaJa to por roubar ovos de Páscoa Extra Sl 2017 Disponível em httpsextraglobocomnoticiasbrasilmaecondenadapenamaior quereusdalavajatoporroubarovosdepascoa21374988html Acesso em 28 jun 2017 EXTRA Filhos de presa por roubar ovos de Páscoa crescem separados da mãe e dos irmãos Sl 2017 Disponível em httpsextraglo bocomnoticiasbrasilfilhosdepresaporroubarovosdepascoa crescemseparadosdamaedosirmaos21385158html Acesso em 07 jul 2017 FAPESP A maternidade na prisão Pesquisa FAPESP Sl 2016 Disponível em httprevistapesquisafapespbrwpcontent uploads201603086088Maternidade241pdf Acesso em 07 jul 2017 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 699 FARIELLO Luiza CNJ prepara resoluções sobre assistência a presi diárias e seus filhos Conselho Nacional de Justiça Sl 2016 Dispo nível em httpwwwcnjjusbrnoticiascnj82663cnjpreparare solucaosobreassistenciaapresidiariaseseusfilhos Acesso em 07 jul 2017 FOUCAULT Michel Nascimento da Biopolítica Traduzido por Eduar do Brandão São Paulo Martins Fontes 2008 IRION Adriana Projeto de lei prevê política de assistência aos filhos de detentos ZHClicrbs Sl 2015 Disponível em httpzhclicrbs combrrsnoticiasnoticia201509projetodeleiprevepoliticade assistenciaaosfilhosdedetentos4844034html Acesso em 07 jul 2017 NEVES Ernesto Os crimes de Adriana Ancelmo VejaSl 2017 Disponível em httpvejaabrilcombrblogradaronlineoscri mesdeadrianaancelmo Acesso em 28 jun 2017 POMPEU Ana Supremo concede HC coletivo a todas as presas grá vidas e mães de crianças ConJur Sl 20 fev 2018 Disponível em httpswwwconjurcombr2018fev20supremoconcedehccole tivopresasgravidasmaescriancas Acesso em 29 mai 2018 RACY Sonia Vamos aplicar a lei do ventre livre diz Cármen Lúcia Sl 2016 Disponível em httpculturaestadaocombrblogs diretodafontevamosaplicaraleidoventrelivredizcarmenlu cia Acesso em 07 jul 2017 RAMOS Luciana de Souza O reflexo da criminalização das mulheres delinqüentes pela ausência de políticas públicas de gênero Em ques tão os direitos sexuais e reprodutivos In XIX Encontro Nacional do CONPEDI FortalezaCE Anais Fortaleza CONPEDI 2010 TEIXEIRA Patrícia Adriana Ancelmo mulher de Sérgio Cabral vai para prisão domiciliar G1 Sl 2017 Disponível em httpg1glo bocomriodejaneironoticiapresaemdezembroadrianaancel movaiparaprisaodomiciliarghtml Acesso em 28 jun 2017 VÁSQUEZ Georgiane Maternidade e Feminismo notas sobre uma relação plural Revista Trilhas da História Três Lagoas v 3 n 6 p 167181 janjun 2014 Disponível em httpwwwseerufmsbrojs indexphpRevTHarticleview472273 Acesso em 07 jul 2017 700 O FORTALECIMENTO DE VÍNCULOS FAMILIARES DE MULHERES PRESAS EM SITUAÇÃO DE MATERNIDADE Ana Clara Gomes Picolli265 Karla Ingrid Pinto Cuellar266 Resumo O presente trabalho tem como objetivo suscitar o debate sobre as possibilidades de pensar e fortalecer vínculos familiares de mulheres presas em situação de maternidade tendo em vista que esse vínculo é essencial para a socialização desses indivíduos e a convivên cia familiar é um direito garantido por lei Para isso será apresenta do o atual perfil das mulheres em situação de privação de liberdade no país trazendo uma análise interseccional que inclui gênero raça e classe Posteriormente será tratada a questão da família enquanto principal agente de socialização primária a matricialidade sociofami liar da Política Nacional de Assistência PNAS e o direito à convivên cia familiar Por fim será feito um debate sobre as particularidades do aprisionamento de mulheres a fragilização e o rompimento dos laços sociofamiliares devido à situação de prisão e como o cárcere tem sido prolongado para suas famílias Palavraschave mulheres presas maternidade prisões política pú blica política social 265 Graduanda de Serviço Social Universidade Federal do Paraná Setor Litoral 266 Advogada Doutora em Direito Docente da Câmara de Serviço Social Uni versidade Federal do Paraná Setor Litoral Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 701 INTRODUÇÃO Dentro da sociedade capitalista patriarcal as mulheres são incumbidas de papéis sociais específicos destinados principalmente ao cuidado Com o crescimento de famílias monoparentais femininas CORTINA 2015 é possível visualizar o acirramento do processo denominado feminização da pobreza A mulher além de ser a principal responsá vel pelas atribuições domésticas acaba sendo encarregada de prover a renda que garante a subsistência de todo seu arranjo familiar É fato que o sistema capitalista se apropria de desigualdades préexistentes a ele como o patriarcado e o racismo com o intuito de atingir maior lu cro com a superexploração das suas forças de trabalho CISNE 2012 Isso reflete no acirramento da exclusão e precarização do trabalho para essa população dificultando a inserção e a permanência no mercado de trabalho formal principalmente quando estas carregam mais de um marcador social como é o caso de mulheres negras eou LGBT Destarte analisar o encarceramento feminino apenas como puni ção a mulheres que cometem delitos é não visualizar a questão histó rica e crítica das desigualdades de gênero raçaetnia e classes sociais que são estruturantes da sociedade capitalista O encarceramento de uma mulher em situação de maternidade traz consequências não só para ela estendese para o arranjo familiar que faz parte e também para toda a sociedade O objetivo desse trabalho é fomentar a discussão sobre o fortale cimento de vínculos familiares de mulheres presas em situação de ma ternidade tendo como base a Política Nacional de Assistência PNAS e o direito à convivência familiar Também se utiliza uma análise a partir do materialismo histórico e da interseccionalidade entre gêne ro raçaetnia classe social entre outras determinações que configu ram o acesso efetivo a direitos QUEM SÃO AS MULHERES PRESAS NO BRASIL É sabido que a criminalidade é socialmente construída SILVA 2014 e atinge as pessoas independente de sua condição de classe e cor porém observando os índices que caracterizam a população prisional 702 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça é nítido que majoritariamente possuem classe e raça267 específicas O autor Loïc Wacquant 2001 define o sistema carcerário como depósi to de indesejáveis agregando uma população que além de ser conside rada perigosa e desviante das normas sociais é também supérflua no plano político e econômico O perfil da população em situação de privação de liberdade e as condições dos estabelecimentos prisionais é apresentado através do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN realizado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública Criado em 2004 o Levantamento reúne dados estatísticos do sistema penitenciá rio brasileiro contribuindo para a publicização e visibilidade da popu lação encarcerada no país Dados de 2017 indicaram que a população prisional do país no primeiro semestre de 2016 era de 726712 destas 42355 são mulhe res tornando o Brasil o 4º país com maior população feminina encar cerada no mundo No ano de 2014 foi divulgado o INFOPEN Mu lheres um levantamento específico da população carcerária feminina indicando que entre os anos 2000 e 2014 o número de mulheres presas no país cresceu em 567 Além disso publicizou informações rele vantes sobre a identidade e características das presas no Brasil sendo 50 jovens268 com 18 a 29 anos 68 pretas ou pardas ou seja duas a cada três mulheres presas são negras 57 solteiras e apenas 11 concluíram o ensino médio Quanto aos crimes tentados eou consumados o INFOPEN 2017 traz que 62 das mulheres são detidas por tráfico de drogas enquanto 26 dos homens respondem pelo mesmo delito Monica Ovinski de Camargo Cortina 2015 debate o tráfico de drogas ilícitas e a feminização da pobreza269 identificando a divisão sexual do traba lho270 através da exposição das atividades desenvolvidas por mulheres no tráfico 267 Utilizamos a categoria raça a partir de la concepción de raza social enten dida como la construcción simbólica cultural y sobre todo política que se ha hecho de lo biológico estrategia en que se donde se sustenta el racismo CURIEL 2002 p 97 268 Segundo a classificação do Estatuto da Juventude Lei nº 128522013 269 Tendo como feminização da pobreza a consideração estatística e social de que a pobreza tem atingido de forma significativa as mulheres e orientado suas escolhas de vida CORTINA 2015 p 767 270 Entendese que a divisão sexual do trabalho é consequente do sistema pa triarcal capitalista que a partir da divisão hierárquica entres os sexos submete mulheres a trabalhos mais desvalorizados precarizados e de menor prestígio social CISNE 2012 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 703 Em regra as mulheres reproduzem nessas organizações crimi nais os papéis ou tarefas associados ao feminino como cozi nhar limpar embalar drogas ou realizar pequenas vendas esta é uma referência à clássica divisão sexual do trabalho que destina às mulheres o trabalho doméstico normalmente não remunerado formando os chamados guetos femininos que se reproduz na esfera do tráfico de drogas CORTINA 2015 p 767 Outro dado expressivo foi a porcentagem da população encarce rada que possui ao menos um a filho a 74 das mulheres contra 47 dos homens Cortina 2015 alerta para o crescimento de famílias monoparentais femininas no país e com relação a isso Amanda Da niele Silva 2014 afirma que As desigualdades fundamentalmente calcadas na questão de gênero afetam diretamente as mulheres de forma geral quan do se enfoca a colocação ou não destas no mercado de trabalho notórias são as diferenças entre os rendimentos recebidos por homens e mulheres mesmo quando exercem a mesma ati vidade As mulheres ainda estão associadas à esfera da reprodu ção mesmo quando são intensamente requisitadas a atuarem no âmbito da produção o que resulta em sua desvalorização e inferiorização Esta realidade contribui para desmistificar o ideário de que as famílias monoparentais femininas são mais pauperizadas pelo simples fato de serem chefiadas por mulhe res SILVA A D 2014 p 109 A dificuldade das mulheres em se inserirem no mercado de tra balho formal com rendimentos suficientes para subsidiar todo o gasto do núcleo familiar pode ser justificado em decorrência da divisão se xual do trabalho conforme Carmen Barroso As mulheres chefes de família têm probabilidade mais alta de estarem desempregadas que a dos homens e quando emprega das sua probabilidade de estar no setor informal é muito maior Além disso as famílias chefiadas por mulheres têm menor nú mero de trabalhadores secundários que possam ajudar na ren 704 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça da familiar o que lhes impede de utilizar a principal estratégia de sobrevivência adotada pelas famílias pobres BARROSO C 1978 p 468 A partir dessas constatações a participação das mulheres no trá fico de drogas pode ser considerada como um dos efeitos da feminiza ção da pobreza que faz com que mulheres jovens e mães responsáveis pela geração da renda familiar sejam um dos perfis da vulnerabilidade social mais difundido internacionalmente Além da utilização de gênero para explicar os complexos proces sos de estratificação social é necessário também utilizar o marcador de raça pois ambos atuam de maneira decisiva na determinação da vida de indivíduos e o segundo trata de desvantagens históricas à po pulação negra As mulheres demoraram para se inserir no mercado de trabalho formal e quando isso ocorreu foi de maneira desigual se comparada aos homens Tratandose das mulheres negras esse atraso no acesso ao trabalho formal e a desigualdade salarial se agravam ain da mais influenciando na hierarquização da diferença e posição social dos indivíduos no sistema de classes sociais Como informa pesquisa realizada pelo Departamento Intersin dical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos DIEESE 2016 em 2015 a taxa de desemprego de mulheres negras nas regiões metropoli tanas e Brasília era superior à de homens negros e do restante da popu lação branca Em Salvador chegou a 207 seguido de mulheres bran cas 174 homens negros 173 e homens não negros 137 DIEESE 2016 p 7 tabela 3 Relatório organizado pela Oxfam Brasil 2017 indica que 67 da população negra recebe até 15 salário mí nimo em contraste com aproximadamente 45 dos brancos O Re latório ainda expõe que os negros são menos numerosos em todas as faixas de renda superior a 15 salário mínimo e que se mantido o ritmo de inclusão de negros observado nesse período a equiparação da renda média com a dos brancos ocorrerá somente em 2089 p 28 As determinações de gênero raça e classe somadas com a redução do Estado com relação à efetivação da cidadania implicam na maior vulnerabilidade social e econômica das mulheres podendo leválas a buscar fontes alternativas legais ou ilegais de renda para subsistên cia da família e tentativa de superação da exclusão social Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 705 O PAPEL SOCIALIZADOR DA FAMÍLIA E O DIREITO À CONVIVÊNCIA FAMILIAR Estudos apontam que a família é o principal agente responsável pela socialização primária que é a transmissão de valores que auxiliam no desenvolvimento de uma identidade social visando preparar os sujei tos para o convívio em sociedade A função socializadora da família tem enfoque em ações que cooperam para a determinação da perso nalidade do sujeito e sua inserção no meio social BRUSCHINI 1997 A Política Nacional de Assistência Social PNAS de 2004 adere a isso e define a Assistência Social como política de proteção social encar regada de propiciar a segurança de sobrevivência acolhida e convívio Esta última segundo Potyara Amazoneida Pereira Pereira 2007 p 71 diz respeito à construção restauração e fortalecimento dos laços familiares e comunitários demandantes da assistência com fracos vín culos afetivos e sociais A PNAS estabelece a matricialidade sociofamiliar sendo a família considerada espaço insubstituível de proteção e socialização primária dos indivíduos constitui o núcleo básico e matricial das seguran ças assistenciais PEREIRAPEREIRA 2007 p 7172 Reconhece também que não existe um modelo ideal de família e sim uma diver sidade de arranjos que se estabelecem a partir dos integrantes que a compõem Consoante Silva Não há configuração familiar certa ou errada O que existem são normatizações e protótipos em sua grande maioria impos tos pelas classes dominantes como forma de fazer prevalecer suas idealizações e interesses em torno do que consideram váli do ou inválido SILVA A D 2014 p 85 A família é alocada na condição de sujeito de direitos sociais e para isso é fundamental compreender as particularidades dos diversos arranjos familiares existentes entendendo que o momento e a situa ção social vivida por determinada família é fruto de processos históri cos Assim a partir de suas especificidades fazse necessário desvelar as variadas determinações que atingem um arranjo familiar para que sejam assegurados seus direitos 706 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Sabemos que as diversas políticas públicas são formuladas para abranger de forma homogênea grande contingente populacio nal enquanto os estudos realizados sobre famílias inferem que estas são marcadas por singularidades e por conseguinte são heterogêneas emergindo daí importantes desafios para a ges tão e execução dos serviços e benefícios sociais GUEIROS e SANTOS 2011 p 78 Apesar da PNAS assumir uma posição quanto à pluralidade dos arranjos familiares fator que enfraquece certos estigmas Solan ge Maria Teixeira 2010 p 10 reconhece que o desenho da política proporciona certa sobrecarga da família ao proclamar suas funções reproduzindo estereótipos dos papéis familiares apesar de o reconhe cimento da pluralidade de formas familiares as homogeneízam em suas funções papéis e relações internas trataa a priori como o lócus da felicidade da proteção social É nessa dialética de responsabi lização da família nas funções protetivas sendo ao mesmo tempo alvo da política de proteção social que pode se observar a estratégia do Estado no que condiz a redução de gastos como se as diversas famílias tivessem as mesmas determinações sociais históricas e condições de materializar suas funções admitese a pluralidade de arranjos fami liares mas os trata como homogêneos em necessidades e em funções TEIXEIRA 2010 p 12 Teixeira 2010 ainda reforça a importância de o trabalho com famílias ultrapassar a dimensão liberal individualista de autonomia e empoderamento através de processos que fortaleçam a autoestima a capacidade produtiva entre outros que auxiliem o indivíduo a se reconhecer como sujeito de direitos A constituição de sujeitos de direitos se dá no processo de com preensão das determinações sociais de suas condições de vida material e afetiva no reconhecimento da força do coletivo e nas possibilidades concretas de acesso aos bens e serviços pro duzidos socialmente TEIXEIRA S M 2010 p 13 Fazse importante reconhecer a família enquanto espaço histó rico e simbólico que se desenvolve a partir da divisão sexual do tra Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 707 balho dos valores espaços atribuições dos destinos e papéis dos homens e mulheres entre outras determinações SARACENO 1992 Diante disso as mulheres presas em situação de maternidade mere cem atenção pois ao se deslocarem temporariamente do cotidiano fa miliar causam consequências não só para elas mas para toda a unida de familiar A família passa a não contar com a presença dessa mulher nos afazeres que lhe eram atribuídos sejam de cuidado ou até mesmo no auxílio financeiro Romper temporariamente com esses vínculos pode trazer ma zelas dificilmente superadas posteriormente A família é a matriz da identidade individual e social e conforme Claudia Stella 2009 quando um membro da unidade familiar apresenta dificuldades em desempenhar seu papel social como ocorre no caso de cumprimen to de pena por privação de liberdade os indivíduos daquela família podem ter seu processo de socialização comprometido A convivência familiar é um direito constitucional de ordem so cial garantido aos filhos e filhas de mulheres em situação de privação de liberdade pela Lei nº 8069 Estatuto da Criança e do Adolescente ECA como rege o parágrafo 4o Será garantida a convivência da criança e do adolescente com a mãe ou o pai privado de liberdade por meio de visitas periódicas promovidas pelo responsável ou nas hipóteses de acolhimento institucional pela entidade responsável independentemente de autorização judicial BRASIL 1990 sp Além disso o ECA prevê proteção integral à criança e ao adolescente A doutrina da proteção integral é decorrente da assunção in terna de valores humanos afetos especificamente à infância e à juventude disputados tanto no âmbito interno quanto no âm bito internacional os pilares desta vertente internacional no ordenamento jurídico brasileiro são a proteção integral especí fica e a prioridade absoluta A promoção e defesa dos interesses da criança e do adolescente requerem para a sua mais perfeita operacionalização e integralidade de um instrumental teórico pragmático que muito além de facilitar a adoção de medidas adequadas também ofereça permanência e emancipação RA MIDOFF M L 2007 p 2223 708 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A família é considerada a base da sociedade em que vivemos po rém não compete somente a ela a materialização do direito à convi vência familiar sendo fundamental a ação conjunta com sociedade e Estado No que tange a mulheres em situação de maternidade cum prindo pena privativa de liberdade o Estado possui uma dupla res ponsabilidade tanto no que condiz à punição característica das pri sões como na proteção e preservação dos vínculos familiares dessas mulheres de forma a assegurar o direito à convivência sociofamiliar A violência estrutural expressada através de violações das liber dades substanciais como o direito à educação à habitação à saú de entre outros de arranjos familiares acrescida à precariedade de apoio institucional à família podem ocasionar a expulsão da infância e juventude dos lugares que lhe são por direito garantidos RAMI DOFF 2007 além de contribuir com o estado de fragilidade socioe conômica do arranjo familiar A família socialmente considerada como geradora de sujeitos acaba também sendo culpabilizada pelas infrações de seus familiares Desta forma a prisão exerce seus mecanismos de poder não só sob os corpos de quem vive sob seu território mas também de sua extensão familiar Percebese neste sentido a prisão como forma de disciplina através do poder sobre o corpo não somente dos reeducandos como de seus familiares para a prisão a família não deixa de ser um instrumento de dominação isto se dá pelo fato históri co dela ter se tornado um dos principais eixos de intervenção devido a ser o primeiro não o único grupo responsável pela socialização interiorizando aspectos ideológicos projetando os modelos criados e recriados dentro de seu interior Neste sentido a família acaba sendo generalizada como responsável pela formação de personalidades fato que leva a instituição prisional a investir suas técnicas de normatização e poder para formatar os sujeitos KLEIN F B 2004 sp Pensar o fortalecimento de vínculos não é só pensar nos direitos da mulher presa é também pensar a família como sujeito de direi tos não estendendo a pena de prisão para todos os seus integrantes Torres 2008 p 38 enfatiza que o sistema penal está estruturalmen Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 709 te montado para que haja o poder de modo seletivo sobre os setores vulneráveis da sociedade e acrescenta que essas instituições estão su perlotadas de criminosos pertencentes a extratos sociais inferiores não por estes possuírem maior disposição de infringir leis mas pelo fato de serem mais criminalizados E são essas pessoas econômica e socialmente marginalizadas que estão mais suscetíveis ao não acesso a direitos fundamentais O ROMPIMENTO DOS LAÇOS SOCIAIS E FAMILIARES DAS MULHERES PRESAS A prisão ao privar temporariamente as mulheres presas do convívio social parece também influir no rompimento de laços sociais e fami liares De acordo com Daiana Hermann 2013 enquanto nas prisões masculinas há grande afluência de visitas nas prisões femininas essa frequência é baixa e isso pode ser decorrente de uma série de fatores como dificuldades financeiras dos familiares para se locomoverem até a prisão pois por serem em número reduzido as penitenciárias normalmente são afastadas das cidades de origem dessas mulheres a prática de revista ser humilhante por considerarem o ambiente pri sional impróprio para visitação dos filhos as e familiares a restrição ao acesso a telefones públicos em unidades prisionais entre outros Grande parte dos internos perde contato com a família em con sequência de sua situação de reclusão ou por estar deslocado de seu lugar de residência visto que as instituições penais são distribuídas por regiões A falta de contato com familiares é ou tro elemento que contribui para a perda de identidade A pena de privação de liberdade recai também sobre os familiares que sofrem e preocupamse com o recluso TORRES S L 2008 p 32 É imprescindível debater vínculos de mulheres em situação de privação de liberdade sem citar o julgamento moral relacionado ao gênero que estas enfrentam A mulher é julgada não apenas pelo sistema de justiça como também pelas pessoas de seu convívio 710 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça anterior à prisão pois além de infringir a lei estando presa ela se ausenta temporariamente do cumprimento de seu papel social no seio familiar e na sociedade Como relata Amanda Daniele Silva 2015 p 177 a família pode vir a sentir vergonha ao ter uma integrante condenada como criminosa contribuindo para o abandono da mesma tal afastamento não ocorre apenas em relação aos familiares mais próximos mas também aos filhos e principalmente companheiros que se envolvem em outros relacionamentos e não se responsabilizam pelo cuidado dos filhos As consequências do rompimento de vínculos podem causar sé rios danos na vida das mulheres presas como dificultar a reinserção social ao sair da prisão e afetar sua própria identidade desencadeando uma série de experiências de não reconhecimento Ao ser separado do restante da sociedade o indivíduo perde uma parte de sua identidade pois no interior do sistema pe nitenciário deixa de ser um cidadão com direitos civis deixa de ser integrante de uma família seja pai filho irmão neto para ser entre tantos outros mais um criminoso que deve pa gar pelo delito cometido O indivíduo fica no anonimato em prol do significado do crime cometido e assim interno perde alguns papéis sociais em decorrência da barreira que o separa do mundo externo TORRES S L 2008 p 31 Ante ao processo de perda de identidade propiciado pelo sistema carcerário aliado ao individualismo característico do sistema capita lista a estigmatização sofrida pela mulher presa pode acarretar sua autoculpabilização pela impossibilidade de manutenção de seu papel social não percebendo todas as implicações sociais condicionantes que influem em determinar sua atual condição CUNHA 2010 Sem reconhecer o processo sociohistórico das opressões e desigualdades sociais os indivíduos tendem a naturalizar estes processos se autores ponsabilizando por opressões sistêmicas e institucionais Outra violação de direito que atinge mulheres em situação de cár cere pode ser explicitada pelas condições de materialização das visitas íntimas afetando a estabilidade e manutenção de seus relacionamen tos afetivos sejam estes hétero ou homossexuais Segundo Silva 2015 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 711 p 179 a negação deste direito embasase na vigilância da sexualidade das mulheres ratificando o pensamento da era patriarcal de que para elas o sexo deve ter apenas a finalidade reprodutiva e não a satisfação do prazer A autora ainda cita que até o ano de 2002 no estado de São Paulo era proibido o direito à visita íntima às mulheres sendo justi ficado através da necessidade de controle de natalidade para prevenir gastos públicos com a manutenção de uma gravidez dentro do cárcere Caroline Howard 2006 p 75 afirma que as visitas permitidas só eram disponíveis às mulheres com parceiros estáveis o que o casal era obrigado a provar com certidões de nascimento do s filho s certidão de casamento ou declaração de união estável Com relação a mulheres presas em situação de maternidade pode ser identificada uma agudização das consequências do encarceramen to às suas famílias principalmente quando se tratam de unidades mo noparentais femininas A reclusão de forma repentina dificulta a pos sibilidade de a mulher organizar como se dará o cuidado de seus filhos as que podem ter seu futuro decidido pelo poder judicial o encarceramento feminino é caracterizado pela imprecisão quanto ao destino dos filhos uma vez que o pai não se respon sabiliza pelo cuidado dos mesmos ou não tem como fazêlo por também estar em situação de aprisionamento com isso juntamente com a reclusão da mulher iniciase um processo de inquietude e preocupação quanto ao estabelecimento de redes de proteção social ou de solidariedade para abrigar estas crian ças enquanto perdurar a reclusão materna ou na ausência destes seguindo os parâmetros de medidas protetivas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente ECA Brasil 1990 SILVA A D 2015 p 184 e 187 O cárcere feminino no Brasil além de não propiciar condições favoráveis à ressocialização tende a romper com as redes que as mu lheres tinham antes da prisão HERMANN 2013 Os vínculos socio familiares são direitos constitucionalmente garantidos nem sempre acessíveis à população prisional do Brasil De acordo com os dados divulgados e aqui expostos essa população em situação de cárcere possui marcadores sociais específicos reproduzindo um padrão de in divíduos que se encontram historicamente excluídos e em situação de 712 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça vulnerabilidade seja no âmbito político econômico eou social sendo majoritariamente os as negros as mulheres LGBT e pobres CONCLUSÕES Através do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN é possível verificar o perfil da população carcerária em nosso país que é majoritariamente negra jovem e de baixa escolari dade Esses indicadores materializam a ausência do Estado na garantia e efetivação dos direitos sociais da população em situação de pobreza majoritariamente da juventude pobre e negra Também são condizen tes com a tendência de judicialização e individualização da questão social271 culpabilizando os indivíduos pela situação de vulnerabi lidade que se encontram concebendo os problemas sociais como problemas do indivíduo isolado perdendose a dimensão coletiva e isentando a sociedade de classes da responsabilidade na produção das desigualdades sociais IAMAMOTO 2001 p 18 A família tida como um dos principais espaços de socialização de seus integrantes é alocada através da PNAS em sujeito de direitos A partir disso se faz necessário pensar na família de indivíduos encar cerados como está e se está sendo materializado o direito à convivên cia familiar Diante de uma sociedade patriarcal machista e sexista as atribuições da mulher nas unidades familiares estão muito associadas ao cuidado por isso a prisão de mulheres em situação de maternidade tende a comprometer a estrutura de toda sua unidade familiar que não mais contará com as contribuições desta para a manutenção de suas atividades sejam essas relacionadas ao cuidado ou no auxílio na composição da renda Por conta de os presídios femininos serem em número reduzido normalmente estão localizados em municípios dis tantes daqueles de origem da mulher em situação de prisão afetando a manutenção de vínculos e o exercício do direito a convivência familiar não só dela mas de seus filhos e filhas 271 Conforme Iamamoto 2001 p 1011 entendese que a questão social en quanto parte constitutiva das relações sociais capitalistas é apreendida como expressão ampliada das desigualdades sociais sendo indissociável do proces so de acumulação e dos efeitos que produz sobre o conjunto das classes traba lhadoras o que se encontra na base da exigência das políticas sociais públicas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 713 É passível de observação a baixa frequência de visita nos presídios femininos tanto de seus familiares como de possíveis companheiros e companheiras amigos entre outros Diferente das prisões masculinas onde a extensa fila nos dias de visita majoritariamente composta por mulheres evidencia a grande distinção da permanência e manutenção de vínculos sociais e familiares entre homens e mulheres em situação de prisão Isso pode ser analisado tanto do ponto de vista econômico por conta da dificuldade financeira de se estabelecer visita aos presídios femininos por conta de suas localidades quanto do ponto de vista social que a partir de uma sociedade estruturada a partir de padrões sexistas patriarcais despeja sob a mulher um julgamento moral que não se restringe à sociedade civil mas também se reproduz através de diversas instituições inclusive o próprio Estado Isso é visível a partir da ausência de locais para visita íntima em muitas das prisões femini nas dados também disponibilizados pelo INFOPEN A estrutura dos presídios femininos impede muitas vezes que a mulher presa exerça seu direito a manutenção de vínculos sociais e familiares seja na difi culdade em receber visita de parentes e amigos as como em exercer sua sexualidade com parceiros ou parceiras que possuía extra cárcere através das visitas íntimas Isso se traduz em uma série de violação dos direitos das mulheres em situação de prisão assim como de seus familiares em executar direito de convivência que é garantido por lei Essa ausência e consecutivo rompimento de vínculos afetam tanto a ressocialização de mulheres presas como a estrutura de suas famílias principalmente quando se tratam de famílias monoparentais femini nas O aumento da participação das mulheres em atividades delituo sas chama atenção para as condições em que o cárcere feminino se materializa no Brasil Pensar o cárcere feminino é pensar nas particu laridades de gênero trazidas por essas mulheres seus vínculos fami liares e as consequências que a prisão acarretará não só em sua vida mas em toda sua unidade familiar principalmente em seus filhos as O convívio familiar permite o fortalecimento de laços sociais que são necessários para o reconhecimento e fortalecimento da identida de São várias as determinações que acirram a fragilização de laços e ambientes como as instituições prisionais afetam as condições mate riais e subjetivas de vida principalmente os vínculos sociais Pensar 714 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça alternativas de cumprimento de pena e manutenção da maternidade para essas mulheres é pensar na efetivação da cidadania e dos direitos básicos dessas mães e de seus filhos as REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL Ministério da Justiça e Segurança Pública Departamento Penitenciário Nacional DEPEN Levantamento Nacional de Infor mações Penitenciárias INFOPEN Brasília 2017 Disponível em httpwwwjusticagovbrnewsha726712pessoaspresasnobra silrelatorio2016junhopdf Acesso em 10 jan 2018 BARROSO Carmen Sozinhas ou mal acompanhadas a situação das mulheres chefes de família In I ENCONTRO NACIONAL DE ES TUDOS POPULACIONAIS 1978 Campos do Jordão Anais do I Encontro Nacional de Estudos populacionais Campos do Jordão ABEP 1978 p 456472 CISNE Mirla Gênero Divisão Sexual do Trabalho e Serviço Social São Paulo Outras Expressões 2012 CORTINA Mônica Ovinski de Camargo Mulheres e tráfico de dro gas aprisionamento e criminologia feminista Revista Estudos Femi nistas Florianópolis v 23 n 3 p 761778 setdez 2015 CUNHA Elizangela Lelis da Ressocialização o desafio da educação no sistema prisional feminino Cadernos Cedes Campinas v 30 n 81 p 157178 maiago 2010 CURIEL Ochy Identidades essencialistas o construcción de identi dades políticas El dilema de las feministas negras Otras Miradas Venezuela v 2 n 2 p 96113 dec 2002 DIEESE Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioe conômicos Inserção da população negra nos Mercados de Trabalho Metropolitanos Brasil DIEESE 2016 Relatório técnico GEORGES Rafael MAIA Katia Org A distância que nos une um retrato das desigualdades brasileiras Brasil OXFAM 2017 Relatório técnico Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 715 GUEIROS Dalva Azevedo SANTOS Thais Felipe Silva dos Matricia lidade sociofamiliar compromisso da Política de Assistência Social e Direito da Família Revista Serviço Social Saúde Campinas v X n 12 p 7397 dez 2011 HERMANN Daiana Mulheres presas e o rompimento de laços so ciais In XXIX Congreso ALAS 2013 Santiago Chile Acta Cientí fica del XXIX Congreso ALAS 2013 HOWARD Caroline Direitos humanos e mulheres encarceradas São Paulo Instituto Terra trabalho e cidadania Pastoral carcerária do Estado de São Paulo 2006 IAMAMOTO Marilda Villela Questão social família e juventude desafios do trabalho do assistente social na área sociojurídica In SA LES Mione Apolinario MATOS Maurilio Castro de LEAL Maria Cristina Orgs Política social família e juventude uma questão de direitos São Paulo Cortez 2004 A questão social no capitalismo Revista Temporalis Brasí lia v 2 n 3 p 0932 janjul 2001 KLEIN Fernanda Bortolini As formas de poder prisional e a família do preso Trabalho de Graduação Bacharelado em Serviço Social Universidade de Cruz Alta Cruz Alta 2004 PEREIRA Potyara Amazoneida Pereira A assistência social prevista na Constituição de 1988 e operacionalizada pela PNAS e pelo SUAS Ser Social Brasília n 20 p 6383 janjun 2007 RAMIDOFF Mário Luiz Direito da criança e do adolescente por uma propedêutica jurídicoprotetiva transdisciplinar 432 f Tese Doutorado em Direito Pósgraduação em Direito Universidade Federal do Paraná Curitiba 2007 SARACENO Chiara Sociologia da família Lisboa Estampa 1992 SILVA Amanda Daniele Mãemulher atrás das grades a realidade imposta pelo cárcere à família monoparental feminina 185 f Disser tação Mestrado em Serviço Social Faculdade de Ciências Huma nas e Sociais Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Fi lho Franca 2014 Mãemulher atrás das grades a realidade imposta pelo cár 716 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça cere à família monoparental feminina São Paulo Editora UNESP São Paulo Cultura Acadêmica 2015 TEIXEIRA Solange Maria Trabalho social com famílias na Política de Assistência Social elementos para sua reconstrução em bases críti cas Serviço Social em Revista Londrina n 1 p 423 juldez 2010 TORRES Sabrina Lopes Os paradoxos da ação profissional no sis tema penal uma análise do Serviço Social na Penitenciária Masculina e no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico 102 f Disserta ção Mestrado em Serviço Social Programa de Pósgraduação em Serviço Social Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 2008 WACQUANT Loïc As prisões da miséria Rio de Janeiro Jorge Zah ar 2001 717 ANÁLISE DAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL SOBRE A POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DE PRISÃO DOMICILIAR DA LEI 1325716 Vanessa Ferreira Lopes272 Mário Bani José Valente273 Resumo Este trabalho tem por objetivo analisar de forma explora tória os impactos da Lei 132572016 na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal no que se refere à concessão de penas alternativas às mães e gestantes Segundo os dados do Departamento Penitenciário Nacional a população carcerária feminina cresceu 700 nos últimos dezesseis anos no Brasil Nesse sentido a presente pesquisa pretende analisar as decisões do Supremo Tribunal Federal de forma a com preender a existência ou não de uma lógica de sedução pela punição que necessita ser urgentemente rediscutida De forma a cumprir os objetivos propostos utilizase método indiciário proposto pelo histo riador italiano Carlo Ginzburg Pretendese portanto traçar as linhas que conectam o Processo Penal e as possibilidades emancipatórias do campo jurídico tendo como objetivo a construção de uma realidade em que se respeite a subjetividade da mulher e em que seja possível construir um Direito de acordo com o Estado Democrático Palavraschave Lei 132572016 encarceramento feminino STF cri minologia crítica 272 Mestranda em Sociologia e Direito pelo Programa de Sociologia e Direito PPGSD UFF 273 Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora UFJF 718 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça I INTRODUÇÃO A presente pesquisa pretende realizar uma análise das decisões judi ciais do Supremo Tribunal Federal buscando verificar a aplicabilidade no que se refere a Lei 13257 de 2016 Estatuto da Primeira Infância com foco na modificação do Código de Processo Penal em seu art 318 que contempla a possibilidade de concessão de prisão domiciliar a mulheres gestantes ou com filhos até 12 anos ou ao pai se este for o único cuidador Dessa forma é essencial verificar qual tem sido o posicionamento do STF quanto à aplicação da medida cautelar de prisão domiciliar às mulheres com filhos até 12 anos ou grávida visto que o encarcera mento feminino também continua a crescer no país visto que esse di ploma normativo poderia contribuir para a diminuição dessas taxas Ademais devese especialmente analisar os requisitos que têm sido utilizados para concessão dessa cautelar Interessa também iden tificar se essas decisões apontam para um paradigma garantidor de direitos fundamentais ou se pelo contrário tem reforçado o que Vera Malaguti 2010 descreve como dogma da pena Os diversos trabalhos de pesquisa sobre o tema do Encarcera mento Feminino no Brasil desde a década de 90 apontam para o aumento vertiginoso do número de mulheres presas no país LEM GRUBER 1999 mas só em 2015 o Infopen Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias produziu um relatório mais detalhado com os dados sobre as mulheres Assim para conceber a complexidade desta problemática e a pe culiar atuação do Poder Judiciário buscarseá entender o funciona mento do campo BOURDIEU 1989 e como se dá a homogeneização das decisões referentes ao já citado diploma normativo Além disso buscarseá relacionar o contexto nacional e interna cional da contemporaneidade dessa etapa do desenvolvimento capita lista relacionando esse último à dinâmica do poder punitivo conside rando as especificidades da América Latina e dos conceitos propostos a partir de uma criminologia crítica e comprometida não só com a diminuição do encarceramento assim como com sua abolição Há que se destacar ainda a temática que abarca a condição das mulheres en Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 719 carceradas no Brasil para tanto recorreremos à revisão de literatura tendo como referência à criminologia brasileira Essa pesquisa pretende ser exploratória pretendese integrar me todologias quantitativas e qualitativas permitindo maior abrangência na explicação e descrição da pesquisa segundo Goldenberg 2002 Para escolha de quais decisões judiciais a serem analisadas utilizar seá o método proposto pelo historiador italiano Carlo Ginzburg 1989 a partir do método indiciário onde buscase extrair da análise de casos provas tidos como emblemáticos o conteúdo que desvela a totalidade do fenômeno a ser analisado Podese apontar a partir dos dados empíricos preliminares ob tidos que significativa parcela das decisões aponta para a negativa da concessão da prisão domiciliar Assim mesmo quando o diploma normativo realiza textualmente um esforço de desencarceramento ainda sim o ethos do campo jurídico é suficientemente coeso para a manutenção da pena de prisão como caminho interpretativo de gran de parcela dos magistrados mesmo tendo em tela a Corte Constitu cional brasileira II CAMPO JURÍDICO EM BOURDIEU O campo significa em Bourdieu 1989 um lócus específico de dispu ta e de competição em torno da produção legítima e do controle dos bens simbólicos Nele os atores desse campo através dos capitais sim bólicos cultural social e econômico que possuem jogam entre si a partir do lugar em que ocupam nesse determinado campo A depen der do controle desses bens simbólicos as posições sociais dos agentes são forjadas dentro do campo criando assim posições hierárquicas e estabelecendo as relações de dominação As regras que definem o campo são denominadas de habitus O conceito de habitus permitiria a Bourdieu 1989 superar a dicotomia presente nas Ciências Sociais entre o individualismo e o estruturalis mo O autor pretendeu sair da filosofia da consciência sem anular o agente na sua verdade de operador prático de construções do obje to BOURDIEU 1989 p62 Isso porque evidencia a reiteração de comportamentos ao mesmo tempo em que indica uma relativa fle 720 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça xibilidade sensível à atuação dos agentes acumulada no tempo e que orientaria a ação social individual dependendo do campo em que se está inserido Numa sociedade constituída pelo sistema capitalista de produ ção marcada pela luta de classes274 tais elementos não desaparecem quando se analisa um campo mas são absorvidos e relidos pelas re gras ali estabelecidas Esses elementos possuem por sua vez uma re lativa autonomia em relação ao mundo exterior De toda forma tais regras reproduzem as desigualdades econômicas e sociais que vão se manifestar no interior do campo por exemplo com atores com menor capital simbólico culturais econômicos ou sociais e que irão permi tir a dominação de certos agentes em relação aos outros configurando a violência simbólica275 Os fenômenos sociais lidos com a chave campos apresentam uma disputa interna sendo que esses agentes em concorrência estão em assimetria em relação à quantidade de capitais simbólicos que pos suem e consequentemente mais ou menos em consonância com o que o habitus daquele campo impõe Assim as relações de domina ção presentes a partir das posições hierárquicas dos atores estão atuantes no campo mas muitas vezes não é percebido pelos próprios pertencentes a ele por isso o habitus é tão sutil permanecendo quase como um dado natural 274 Segundo Wacquanto conceito de classe para Bourdieu retém a insistência de Marx em assentar a classe em relações materiais de poder mas a remete aos ensinamentos de Durkheim sobre as representações coletivas e à preocupação de Weber com a autonomia das formas culturais e a potência do status como distintições sociais percebidas reconhece que os agentes produzem ativa mente a realidade social através de suas atividades mundanas de atribuição de sentido mas destaca que eles assim atuam baseados nas posições que ocupam em um espaço objetivo de constrangimentos e facilitações e com ferramentas cognitivas surgidas desse mesmo espaço WACQUANT 2013 p91 275 Bourdieu explica que as diferentes classes e fracções de classes estão envolvidas numa luta propriamente simbólica para imporem a definição do mundo social mais conforme aos seus interesses e imporem o campo das tomadas de posi ções ideológicas reproduzindo em forma transfigurada o campo das posições sociais Elas podem conduzir essa luta quer diretacmente nos conflitos simbó licos da vida quotidiana quer por procuração por meio da luta travada pelos especialistas da produção simbólica produtores a tempo inteiro e na qual está em jogo o monopólio da violência simbólica legítima cf Weber quer dizer de poder impor e mesmo inculcar instrumentos de conhecimento e de ex pressão taxinomias arbitrários embora ignorados como tais da realidade social BOURDIEU 1989 p12 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 721 Assim no campo jurídico a principal disputa se dá entorno do direito de dizer o direito Essa disputa na qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar de maneira mais ou menos livre ou autorizada um corpus de textos que consagram a visão legítima justa do mundo social BOURDIEU 1989 p212 Para o sociólogo francês o campo jurídico tem uma autonomia relativa contrapondose às teses juspositivistas que vêm no jurídico uma capacidade de racionalização sem a influência dos demais fatores mas também não é adepto do direito como produto da determinação do campo econômico e portanto da reprodução quase exata desse Para ele esse campo tem características próprias que se não anali sadas mais profundamente perdemos as sutilezas que ele traz Além disso o autor destaca as reverberações dos demais campos no Direito Nesse campo a divisão social do trabalho se dá com a cisão entre profissionais aqueles autorizados a enunciar as normas e que aten dem as demandas do habitus e dominam os capitais simbólicos para tanto e profanos esses por sua vez que detém menor capital social dentro do campo e estão sujeitos à dominação pelos primeiros A hierarquia de atores está relacionada ao acúmulo do capital so cial que impõe uma validação técnica e social de um grupo fazendo com que haja uma desqualificação dos chamados profanos em detri mento dos profissionais Esses últimos se diferenciam por dominarem os métodos adequados de leitura do corpus normativo Daí Bourdieu apontar para o poder de nomeação que o processo decisório judicial possui impondose sobre os demais fenômenos sociais BOURDIEU 1989 Isso se dá pois esse campo perpetua a fala da autoridade legíti ma como enunciadora a priori justa do que estiver em disputa 722 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça III PARADIGMA PUNITIVO Para entender o tratamento políticojurídico dado pelo Estado as mu lheres em situação de prisão provisória pelo paradigma punitivo é necessário compreender a racionalidade punitiva brasileira aviltada pelas permanências coloniais e ainda o contexto global de expansão dos diplomas penais No contexto global de governança neoliberal marcado pela de sintegração das políticas estatais de assistência e dos serviços públicos combinados com a desregulação dos direitos trabalhistas e fluidez do capital internacional Wacquant 2001 aponta que uma das estraté gias neoliberais de gestão da pobreza é o encarceramento em massa Com a erosão do modelo de Estado de Bemestar social que nem che gou a firmarse na América Latina Wacquant alerta que estaríamos vivenciando o Estado penal tendo em vista a massificação da crimina lização da pobreza Esse fato é comprovado na medida em que o Estado elege certas categorias como perigosas legitima a política de rigidez máxima e intolerância com os pequenos delitos contribuindo para um clamor punitivo na sociedade e que se traduz em maneira de pensar do sis tema punitivo PIRES 2004 no judiciário em que a única resposta adequada e possível seria a prisão Dentro desse contexto Canotilho 2008 p 235 observa que o discurso antigarantista coloca as garantias processuais penais pre sentes nas constituições como empecilhos à realização da persecução criminal Mas que na verdade esse discurso é sintoma de uma cres cente influência do direito penal contra o inimigo sobre as legisla ções penais que se manifesta pela criminalização antecipada e ainda se traduz na tutela antecipada dos bens jurídicos além da crescente aceitação do crime de perigo indireto atenuação da presunção de ino cência e radicalização da pena de prisão Diante do quadro de adesão subjetiva à barbárie Malaguti 2012 que se caracteriza pelo clamor punitivo da sociedade no con texto neoliberal é necessário atentarse ao agigantamento do Estado Penal principalmente no que se refere a criminalização da pobreza como forma de gestão Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 723 No cenário mais amplo Wacquant 2001 2002 2008 tem apon tado através de suas pesquisas para a crescente penalização da po breza em nível global sendo o encarceramento uma verdadeira forma de gestão das camadas sociais mais baixas A redução do Estado na sua atuação de assistência e garantidor de direitos e a concomitante desregulação do trabalho e da economia propiciam segundo o autor o sentimento de insegurança que subsidiam as políticas de criminali zação da miséria Dessa forma a compreensão desta realidade deve se firmar aqui enquanto ponto de partida sendo necessário um questionamento sério e crítico inclusive da atuação do judiciário Portanto a análise do papel que esse tem desempenhado é fundamental em especial no campo jurídico hegemonizado pelo paradigma punitivista e encarce rador especificamente na temática de gênero em que o patriarcado adiciona mais um peso à balança de Dice IV METODOLOGIA O material foi coletado do mecanismo de pesquisa de jurisprudência do site oficial do Supremo Tribunal Federal httpstfjusbrportal jurisprudenciapesquisarJurisprudenciaasp No campo Pesquisa Li vre foi digitado 13257 OU 13257 OU 132572016 OU 132572016 OU 132572016 OU 1325716 OU 1325716 sem as aspas Marcou se a opção Todas para se pesquisar toda documentação possível do STF Outros campos não foram alterados Essa chave de pesquisa foi utilizada de modo a captar os diferen tes modos de se escrever a lei Em outras palavras a pesquisa retor nou todos os documentos que apresentavam o Estatuto da Primeira Infância desde que escritos das seguintes formas 13257 13257 132572016 132572016 132572016 1325716 ou 1325716 A palavra OU dentro da chave de pesquisa indica que se procura rá qualquer uma das palavras A pesquisa resultou em 17 acórdãos 92 decisões monocráticas 1 decisão de presidência e 4 informativos Importante ressaltar que esses documentos só permitem afirmar pre liminarmente que houve menção aos termos supramencionados Foram descartados os documentos anteriores à promulgação da Lei 724 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1325716 de 08 de março de 2016 nem os informativos restando 6 acórdãos 90 decisões monocráticas e 1 decisão de presidência para análise Para que seja possível a análise qualitativa de processos do STF e da sua seleção empregaremos o método indiciário desenvolvido por Carlo Ginzburg que enfatiza a importância dos fragmentos si nais contidos nas provas A partir desse método é possível captar no particular as expressões da totalidade social Segundo o historiador italiano o método consiste na capacidade de a partir de dados apa rentemente negligenciáveis remontar uma realidade complexa não experimentável diretamente GINZBURG 1989 p152 Ministro INCONCLUSIVO NÃO SIM Total geral ALEXANDRE DE MORAES 3 2 5 CÁRMEN LÚCIA 1 1 CELSO DE MELLO 1 2 3 DIAS TOFFOLI 12 12 EDSON FACHIN 3 1 4 GILMAR MENDES 3 26 29 LUIZ FUX 3 3 MARCO AURÉLIO 1 11 12 RICARDO LEWANDOWSKI 11 2 13 ROBERTO BARROSO 1 1 2 ROSA WEBER 4 1 5 TEORI ZAVASCKI 1 1 Total geral 1 43 46 90 A tabela acima foi confeccionada a partir das chaves de buscas indicadas anteriormente que resultou em um total de 90 processos A classificação por ministro se deu a partir da indicação do ministro relator na ementa A diferenciação entre sim e não se refere tão somente a concessão da prisão domiciliar Cabendo destacar que há casos em que não se conheceu o recurso embora tenha sido concedi do de ofício a cautelar O processo classificado como inconclusivo se Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 725 refere a um caso em que o ministro concedeu mais prazo para a jun tada de documentos que ele considerava necessários para apreciação do pedido inicial Nesse total 43 dos 90 processos a concessão da prisão domici liar foi negada Tendo em vista a literalidade do Estatuto da Primei ra Infância possibilitar a concessão da cautelar sem impor análise do tipo penal ou ainda de requisitos subjetivos além da maternidade ou gravidez podemos inferir com os dados coletados que aproximada mente metade das ordens denegadas aponta significativamente para uma inflexão do dogma da pena Malaguti 2010 Mesmo quando o diploma normativo realiza textualmente um esforço de desencarcera mento ainda sim o ethos do campo jurídico aponta para a manuten ção da pena de prisão como caminho interpretativo V HC 132462 RJ O acórdão foi obtido a partir das chaves de busca já descritas no site do Supremo Tribunal Federal Nesse caso o EmbDAg HC 132462 RJ276 de relatoria do ministro Dias Toffoli expõe as principais posi ções contrárias a aplicação literal das mudanças impostas ao CPP pela lei 1325716 e denega a concessão da prisão domiciliar Consi dera que são necessários mais requisitos subjetivos para a aplicação da cautelar e ainda destaca que ter um filho de menos de um ano de idade não demonstra a necessidade de convívio materno Tal posição expõe o ethos judiciário punitivista e desconsideran do não só os direitos positivados no Estatuto da Criança e do Adoles cente bem como descumpre a própria previsão normativa do Estatuto da Primeira Infância Destacase ainda que os magistrados desde a primeira instância não se preocupam em verificar se o local onde a ré irá cumprir a prisão provisória possui instalações adequadas para o convívio materno 276 STF HC 132 462 RJ RIO DE JANEIRO 0000425792016100000 Relator Min Dias Toffoli Data de julgamento 010216 Data de Publicação DJe 022 05022016 726 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Analisando a influência religiosa na cultura política e jurídica no Brasil desde a sua formação Gizlene Neder 2015277 aponta para as permanências de longa duração de características autoritárias advindas de concepções religiosas que ficam evidenciadas na esfera penal em especial aquelas relacionadas ao tratamento do réu e a concepção de pena intimamente ligados às noções de pecado e punição A historiado ra NEDER 2015 alude ao processo de desumanização e aponta esse processo como ainda presente na cultura jurídica brasileira vis à vis às condições precárias dos presídios que segundo ela mantém na contem poraneidade as penas de morte e degredo presentes no BrasilColônia Quando se analisa as decisões dos magistrados da Corte Cons titucional fica evidenciado a relutância da concessão da cautelar de prisão domiciliar mesmo que ela garanta a mãe e ào filhao a con vivência familiar Especialmente nos casos de mulheres presas várias pesquisas apontam para a questão da diferença de gênero pois as mu lheres recebem muito menos visitas enquanto estão cumprindo pena comparativamente aos homens encarcerados Tomandose em conta ainda a situação agravada pela quebra do vínculo materno os magis trados ao negarem a possibilidade de prisão domiciliar em muitos casos estão reeditando a pena de degredo a essas mulheres o que dá a dimensão da face autoritária e inflexível das decisões No processo o pedido do advogado da parte explicando que a ré tinha dois filhos um menor de 1 ano e que era a mantenedora dos mes mos não foi considerado suficiente atestado da necessidade da manu tenção do convívio familiar tanto a decisão do STJ quanto a do próprio STF apontaram para insuficiente conteúdo probatório visto que Quanto ao pleito de substituição da prisão preventiva pela do miciliar CPP art 318 inciso III torno a consignar que o pa rágrafo único do dispositivo em questão exige a presença de prova idônea para justificar a medida o que não se verifica nos documentos juntados aos autos visto que a agravante não demonstrou quais os cuidados especiais seu filho com pouco mais de um ano de idade necessitaria É firme a juris prudência deste Supremo Tribunal no sentido de que constitui ônus do impetrante instruir adequadamente o writ com os do 277 NEDER Gizlene Cultura jurídica cultura religiosa e questão criminal In De pois do Grande Encarceramento Org Pedro Abramovay Vera Malaguti Batis ta Rio de Janeiro Revan 2010 1ª reeimpressão 2015 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 727 cumentos necessários ao exame da pretensão posta em juízo HC nº 95434SP Primeira Turma Relator o Ministro Ricardo Lewandowski DJe 21009 Mesmo observando simplesmente o conteúdo literal da norma não há qualquer menção à necessidade probatória aludida pelos ma gistrados A prova que se refere o parágrafo único diz tão exclusiva mente em relação a existência de filhos menores de 12 anos ou ainda de gravidez Assim em outras palavras o conteúdo normativo na sua literalidade apontaria que a simples existência da guarda dos filhos tornaria a mãe apta a concessão da cautelar até porque a norma foi editada no contexto do Estatuto da Primeira Infância tendo como es copo salvaguardar ao máximo as próprias crianças dos efeitos penais aplicados às genitoras Toffoli interpretando a norma confere a ela um caráter restritivo impondo as suas convicções encarceradoras impedindo uma herme nêutica que possibilite a concessão da liminar Se não houver a comprovação dessas condições a da relação de cuidado entre mãe e filho convivência e laços de afeto e b de que a genitora seria a única responsável por essa incumbência para com o menor qualquer acusada poderia pleitear a substi tuição da preventiva na forma do inciso V quando comprovado ser mãe de uma criança de 12 doze anos incompletos mera relação biológica ainda que inexista uma relação mínima de cuidado para com esse em razão por exemplo de não possuir sua guarda ou de não ser ela a única responsável pelos cuidados do menor quando por exemplo o genitor ou até mesmo os avós podem exercer esse papel Levar a cabo a literalidade da regra do inciso V tão somente em razão da comprovação do requisito objetivo filho com 12 anos incompletos sem a ob servância de certas condições subjetivas como as que me re feri anteriormente importaria eminentes pares com já dis se em verdadeira subversão da exegese da Lei nº 1325716 aos interesses da própria acusada tornando inclusive letra morta o inciso III do art 318 do Código de Processo Penal que prevê a prisão domiciliar quando o agente for imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 seis anos de ida de ou com deficiência Lei nº 1240311 728 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Álvaro Pires 2004 aponta para concepção da centralidade da pena de prisão como única capaz de responder às conflitividades so ciais modernas tal opção segundo ele passou a colonizar as formas de pensar as políticas criminais inclusive sendo rechaçados os demais caminhos antiprisionais ou desencarceradores Isso porque a pena aflitiva é vista como a única capaz de responder à altura ao crime No que ele denomina racionalidade penal moderna 2004 É a pena aflitiva muito particularmente a prisão que assumirá o lugar dominante no autoretrato identitário do sistema penal Ao mesmo tempo que se elege essa estrutura telescópica privilegiase uma linha de pensamento medieval segundo a qual é a pena aflitiva que comunica o valor da norma de comportamento e o grau de reprovação em caso de desrespeito Dessa forma a pena aflitiva deve ser sempre imposta e o seu quantum deve se harmonizar com o grau de afeição ao bem indicando assim o valor da norma de compor tamento Tal forma de definição pode ser qualificada como uma siné doque aquela figura de linguagem que consiste em definir o todo o crime ou o sistema penal pela parte a pena11 Isso tornará quase impossível pensar o sistema penal ou o crime sem uma dependência quase exclusiva da pena aflitiva bem como suscitará uma ontologização da estrutura normativa do direito penal moderno PIRES 2004 p4142 Tal contexto nos permite apontar para um ethos constitutivo do judiciário brasileiro como marcadamente punitivista e que não en xerga outras opções diferentes da pena de prisão Como destaca Pires 2004 sobre os efeitos da racionalidade penal moderna O segundo problema é que se produzirá uma ilusão de simpli cidade quanto ao trabalho do legislador e do juiz no momento da escolha da sanção tenderseá a crer que eles devem privi legiar a escolha da pena aflitiva particularmente a de prisão de modo que ela aparecerá como uma resposta evidente gri fo nosso PIRES 2004p42 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 729 Mesmo quando há essa opção por parte do legislador como acontece na lei 1325716 que modifica e inclui o art 318 no CPP a li mitação imposta pelo ethos do campo jurídico deforma e informa a lei impedindo números maiores de desencarceramento tão necessário principalmente por se tratar de presas provisórias Outro aspecto merece destaque nesse processo específico que é a importância conferida por se tratar de crime relacionado ao tráfico de drogas mais relevo colocase ainda por ser tipificado como organi zação criminosa tendo vista o lugar pensado da mulher na sociedade e seu julgamento na esfera jurídicopenal A fala jurisdicional STJ concluiu para a periculosidade da ré e a impossibilidade da concessão da cautelar embora isso não seja critério formal para a concessão da mesma segundo os autos apura a sua participação e a de outros in vestigados em complexa organização criminosa voltada para o tráfico de drogas havendo portanto a necessidade de se inter romper ou diminuir a atuação do grupo É necessário compreender como a prisão se configura enquan to dupla pena para as mulheres Como demonstra Julita Lemgruber 1999 em Cemitério dos Vivos análise sociológica de uma prisão de mulheres enfatiza como a mulher em situação de prisão é duas vezes estigmatizada como transgressora não só da ordem social mas de seu papel na família Amanda Silva 2011 identificou em seu estudo que a mulher quando chega ao extremo do encarceramento já enfrentou di versos processos que também influenciados pela questão de gênero como a não inserção no mercado de trabalho e a alta responsabilização pela manutenção da família e do lar a ex cluíram de alcançar a efetividade de seus direitos sociais civis e políticos resultando em sua maior estigmatização e vulnerabi lidade atrás das grades quando comparada ao homem SILVA 2011 p160278 278 Disponível em httpbooksscieloorgidvjtsppdfsilva978857983703606 pdf4 Acesso em 030518 730 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Isso se acentua ainda mais quando congregamos à análise o para digma bélico vigente em relação à política de drogas no Brasil como pontuado por Vera Andrade 2013279 Segundo o paradigma bélico vigente a criminalização das dro gas o tratamento do problema das drogas com o código crime pena seria o caminho adequado para o seu combate combate à produção à distribuição ao consumo e em especial ao tráfico e ao traficante este a figura social e penalmente mais demoni zada na nossa sociedade ANDRADE 2013p 347 Dessa forma aquele que realiza o comércio varejista de drogas passa a figurar como o inimigo Como afirma Zaffaroni no seu clás sico Inimigo do direito penal280 A essência do tratamento diferenciado que se atribui ao inimigo consiste em que o direito lhe nega sua condição de pessoa Ele só é considerado sob o aspecto de ente perigoso ou daninho Por mais que a ideia seja matizada quando se propõe estabelecer a distinção entre cidadãos pessoas e inimigos nãopessoas faz se referência a seres humanos que são privados de certos direitos individuais motivo pelo qual deixaram de ser conside rados pessoas e esta é a primeira incompatibilidade que a acei tação do hostis no direito apresenta com relação ao princípio do Estado de Direito ZAFFARONI 2014 p18 A pesquisa 281 Dar à luz na sombra que analisa a condição das mu lheres puérperas ou grávidas encarceradas em diversos estados brasilei ros e expõe a situação dramática dessas mulheres que têm seus direitos fundamentais violados cotidianamente conclui apontando o desencar ceramento como única saída efetiva para a mudança desse quadro 279 Disponível em httpwwwscielobrpdfseqn6713pdf Acesso em 030518 280 Disponível em httpsdeusgarciafileswordpresscom201510oinimigono direitopenalpdf Acesso em 030518 281 Dar a luz na sombra condições atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão Brasília Ministério da Justiça Secretaria de Assuntos Legislativos IPEA 2015 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 731 O aumento do encarceramento feminino e logo do número de gestantes puérperas e mães encarceradas demonstra que o sis tema de justiça criminal vem ignorando recomendações de or ganizações internacionais contra o uso de prisão para essas mu lheres Concluímos que uma melhor possibilidade de exercício de maternidade ocorrerá sempre fora da prisão e se a legislação for cumprida tanto em relação à excepcionalidade da prisão preventiva como no tangente à aplicação da prisão domiciliar grande parte dos problemas que afetam a mulher no ambiente prisional estarão resolvidos IPEA 2015 p79 VI HABEAS CORPUS 126107 SÃO PAULO282 No caso do Habeas Corpus 126107 SP o ministro Ricardo Le wandowski concedeu a substituição da prisão provisória em domi ciliar construindo o entendimento de que mesmo não conhecido o Habeas Corpus por elementos processuais de não exaurimento das instâncias jurisdicionais ainda sim a caracterização do constrangi mento ilegal veemente autorizava a concessão da cautelar de ofício Houve recurso do Ministério Público Federal porém a ministra Car men Lúcia manteve a decisão anterior Tal processo indicou importante posicionamento do Supremo Tribunal Federal tendo em vista a decisão da instância de origem baseada em fundamentos apenas sobre a suposta periculosidade do crime de tráfico e argumentos moralistas sobre o consumo de subs tâncias ilícitas que não cabem numa sistemática constitucional Além disso condiciona a concessão da cautelar à análise do tipo penal em bora isso não esteja previsto no art 318 CPP incisos IV V e VI A imagem descrita pelo magistrado sobre o tráfico de drogas é a que permeia o imaginário popular aludindo aquilo que Vera Malaguti 1997 na sua dissertação de mestrado expõe como a criação de um novo inimigo interno o traficante de drogas o que justifica seu encar ceramento e ainda no caso brasileiro o genocídio dos jovens negros de periferia 282 STF HC 126107 DF Relator Min CÁRMEN LÚCIA Data de Julgamen to 08012015 Data de Publicação DJe021 DIVULG 30012015 PUBLIC 02022015 732 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça O tráfico ilícito de entorpecentes nos moldes imputados ao indiciado é delito de gravidade social elevada arrebata vidas do seio familiar causa danos à saúde pública afeta a psico logia de toda sociedade É o consumo de psicotrópicos que corrompem o indivíduo socialmente são aliciandoo para o cometimento de delitos contra o patrimônio delitos domés ticos em evolução criminosa até culminar com crimes con tra o bem constitucional vida CONVERTO A PRISÃO EM FLAGRANTE EM PREVENTIVA comunicandose o es tabelecimento prisional em que se encontra detida a indiciada Decisão do Juízo da Vara Única da Comarca de São SimãoSP Ainda sim o ministro Lewandowski não se prende às filigranas processuais para escapar ao debate do tema Enfatiza a ilegalidade da prisão somente fundamentada na gravidade do delito Assim neste primeiro exame tenho que o decreto de prisão preventiva não aten deu aos requisitos previstos no art 312 do Código de Processo Penal uma vez que se fundou basicamente na gravidade abstrata do delito Diante desse cenário e com essas brevíssimas considerações em juízo de mera delibação não conheço da impetração mas concedo o habeas corpus de ofício para determinar a substitui ção imediata da prisão preventiva da paciente por prisão do miciliar sem prejuízo de ulterior decisão do juízo processante quanto ao disposto no art 316 do Código de Processo Penal Decisão do ministro Ricardo Lewandowski VII LIMITAÇÕES METODOLÓGICAS E PROCEDIMENTAIS Durante a realização dessa pesquisa foi apreciado no Supremo Tribu nal Federal o HC Coletivo 143641 SP tendo como relator o ministro Ricardo Lewandowski O deferimento deste Habeas Corpus parece in dicar para a consolidação da aplicação do art 318 CPP independente de outros requisitos que incidentalmente estavam sendo exigidos pe los juízes não só das primeiras instâncias mas também dos tribunais superiores Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 733 O referido HC Coletivo merece ser especialmente analisado em pesquisas futuras com mais ênfase que por limitação de tempo e es paço não pudemos fazer uma análise mais detalhada mas é possível destacar alguns aspectos Em primeiro lugar o pedido do grupo de direitos humanos e das defensorias mostra o relevante dado de que mesmo com a edição do Estatuto da Primeira Infância em 2016 apro ximadamente metade dos pedidos de prisão domiciliar eram negados pelo judiciário Merece destaque ainda o importante relevo dado pelo voto do ministro Ricardo Lewandowski do fato do Brasil não ter se adequado às Regras de Bangkok que impõe que o Estado assegure condições dignas às mulheres encarceradas Além da importantíssi ma extensão da concessão da cautelar de prisão domiciliar a todas as mulheres citadas na lista do DEPEN que estão em situação de prisão provisória no país Uma das limitações se consistiu na coleta de dados do site do Supremo Tribunal Federal uma vez que as palavraschaves utilizadas podem não abranger todas as formas que seus dispositivos podem ser invocados Dessa forma os dados apresentados representam uma par cela do quantitativo das ações movidas por mães e gestantes em con formidade com as disposições legais Outra limitação metodológica encontrada foi o universo de pro cessos a ser trabalhado Pois verificouse que as variáveis relacionadas às expressões art 318 CPP incluíam outro grupo de processos não presentes nas chaves relacionadas à expressão Lei 1325716 Porém como havia uma limitação de recursos e tempo para análise dos pro cessos optouse por manter o universo total de processos obtidos a partir da chave descrita na metodologia Até por se tratar de pesquisa exploratória no tema que não pretende esgotar as possibilidades de análise e reflexões acerca da aplicação do artigo modificativo do Có digo de Processo Penal 734 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça VIII CONSIDERAÇÕES FINAIS Pretendeuse realizar na presente pesquisa a partir da investigação empírica uma análise das decisões do Supremo Tribunal Federal que versassem sobre a concessão da prisão domiciliar nos termos da mo dificação trazida pelo diploma normativo do Estatuto da Primeira In fância É imperioso destacar que o material empírico analisado nos alerta para as reverberações do paradigma punitivo no campo jurí dico tendo em vista que mesmo no âmbito do Supremo Tribunal Fe deral não encontramos unanimidade quanto à aplicação da cautelar substitutiva à prisão provisória nos casos elencados nos incisos IV V e VI trazidos pelo art 318 do CPP REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRAGA Ana Gabriela Coord Dar à luz na sombra condições atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão In Série Pensando o Direito nº 51 Brasília Se cretaria de Assuntos Legislativos Ipea 2015 Disponível em http pensandomjgovbrwpcontentuploads201602PoD51AnaGa brielaweb1pdf BOITEUX Luciana Coord Tráfico de Drogas e Constituição In Sé rie Pensando o Direito nº 12009 Rio de Janeiro Faculdade Nacional de Direito da UFRJ Brasília Faculdade de Direito da Universidade de Brasília 2009 BOURDIEU P O poder simbólico Lisboa DIFEL 1989 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL Relatório nacio nal sobre a população penitenciária feminina do País publicado em 5 de novembro de 2015 e divulgado pelo Ministério da Justiça DE PEN Disponível em httpwwwjusticagovbrnewsestudotraca perfildapopulacaopenitenciariafemininanobrasilrelatorioin fopenmulherespdf Acesso em 20012017 LEMGRUBER Julita FERNANDES Marcia Impacto da assistência judiciária a presos provisórios Um experimento na cidade do Rio de Janeiro Rio de Janeiro Associação pela Reforma Prisional e Centro de Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 735 Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes Setembro de 2011 MALAGUTI BATISTA Vera Coord Adesão subjetiva à barbárie In Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal org Vera Malaguti Batista Rio de Janeiro Revan 2012 2ª ed set 2012 pp 307 ss WACQUANT Loïc A tentação penal na Europa Discursos sedicio sos crime direito e sociedade ano 7 n 11 Rio de Janeiro Editora RevanICC 2002 Punir os pobres a nova gestão da miséria nos Estados Uni dos Rio de Janeiro Instituto Carioca de Criminologia Freitas Bastos 2001 Rumo à militarização da marginalização urbana Discursos sediciosos crime direito e sociedade ano 11 n 1516 Rio de Janeiro Editora RevanICC 2007 As duas faces do gueto São Paulo Boitempo 2008 ZAFFARONI Eugenio Raul O inimigo no direito penal Rio de Janei ro RevanICC 2007 736 A CULPABILIZAÇÃO DE MÃES DE ADOLESCENTES EM PRIVAÇÃO DE LIBERDADE NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO DO RIO DE JANEIRO Mariana Nicolau Oliveira283 RESUMO O presente artigo tem como objetivo discutir a culpabili zação das mães de adolescentes em privação de liberdade no sistema socioeducativo do Rio de Janeiro Apesar dos instrumentos jurídicos e legais apontarem a responsabilidade compartilhada entre família so ciedade e Estado para a efetivação dos direitos dosdas adolescentes ainda ocorre uma penalização para com a família percebese que a re tração do Estado frente ao contexto neoliberal promove consequente mente um aumento das responsabilidades da família A responsabili dade de acompanhar oa filhoa durante todo o processo de execução da medida por conta de um suposto consenso criado socialmente que designa a responsabilidade materna de cuidar dos filhos principal mente quando estão em situação de necessidade recai sobre as mães Essas mulheres são obrigadas a passar por todas as condições impos tas pela unidade para visitar seusua filhoa sendo a revista íntima ve xatória uma violência institucional a qual essas mães são submetidas Palavraschave culpabilização maternidade sistema socioeducativo 283 Graduanda em Serviço Social pela Universidade Federal Fluminense Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 737 I ESTADO SOCIEDADE E FAMÍLIA NA PERSPECTIVA DO ECA O Estatuto da Criança e do Adolescente ECA promulgado em 1990 trouxe uma nova ótica no cenário das políticas sociais acerca do atendimento às crianças e aos adolescentes Através desse estatuto substituemse das normativas as práticas assistencialistas e correcio naisrepressivas por uma proposta de trabalho socioeducativo eman cipadora Com isso superase a Doutrina da Situação Irregular em favor da Doutrina de Proteção Integral Esta estabelece que todas as crianças e adolescentes são sujeitos de direitos civis políticos sociais econômicos e culturais O Sistema Socioeducativo é o conjunto de órgãos que atuam no atendimento ao adolescente autor de ato infracional O Estatuto da Criança e do Adolescente ECA define como ato infracional aquela conduta prevista em lei como contravenção ou crime O ECA prevê seis medidas educativas a serem aplicadas de acordo com as circuns tâncias do fato a capacidade de cumprila e a gravidade da infração são elas advertência obrigação de reparar o dano prestação de ser viços à comunidade liberdade assistida semiliberdade e internação O estatuto também aponta o caráter de excepcionalidade e brevidade que a medida de internação deve possuir Para a efetivação do estatuto atribuise a corresponsabilidade da família da sociedade e do Estado na garantia e efetivação da proteção integral a toda e qualquer criança e adolescente Para tal o ECA utili zase do art 227 da Constituição Federal 1988 que estabelece É dever da família da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente com absoluta prioridade o direito à vida à saúde à alimentação à educação ao lazer à liberdade à profis sionalização à cultura à dignidade ao respeito e à convivência familiar e comunitária além de colocálos a salvo de toda for ma de negligência discriminação exploração violência cruel dade e opressão 738 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A corresponsabilização pode ser considerada uma importante inovação trazida pelo estatuto Anteriormente ao ECA as ações es tatais baseavamse numa irregularidade decorrente de estereótipos e preconceitos que penalizavam e responsabilizavam a criança e sua família por sua condição de pobreza Com isso o Estado limitava sua atuação ao âmbito jurídico considerando a prática do ato infracional ou por conta da condição de pobreza a qual se encontravam Assim a exclusividade sobre a responsabilidade do menor era exclusiva da família abstendose o Estado e a sociedade de qualquer dever Ao longo da história do país ocorreu a institucionalização de crianças e adolescentes oriundos de famílias pobres obedecendo a uma lógica correcionalrepressiva A situação da infância e adolescên cia em condição de pobreza no Brasil é histórica e composta por uma maioria negra ou parda O sistema socioeducativo no Rio de Janeiro atua de maneira correcionalrepressiva registrando vários casos de mortes além de denúncias de violência tortura e maustratos cometi dos dentro das unidades de internação Com isso a medida socioedu cativa passa de medida pedagógica para medida punitiva De acordo com o relatório intitulado Presídios com nome de es cola inspeções e análises sobre o sistema socioeducativo do Rio de Janeiro do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura MEPCTRJ houve um aumento do número de adolescentes em cum primento da medida socioeducativa de internação dado que demons tra a crença dos operadores de direito na privação de liberdade como resolubilidade dos problemas da violência social Há uma prevalência do sistema de justiça ao optar pela aplicação de medida de privação de liberdade mesmo em casos de adolescentes que não praticaram ato infracional com grave ameaça e violência à pessoa A privação de liberdade é um elemento que dificulta enfraquece o direito à con vivência familiar e comunitária se mostra enquanto um ambiente de violação de direitos humanos e tortura e vem sendo utilizados em des cumprimento do que o ECA prevê a partir do caráter de excepcionali dade para casos de grave ameaça e violência à pessoa Os impactos do cumprimento de medidas socioeducativas es pecialmente a privação de liberdade se estendem às famílias dosdas adolescentes principalmente as mulheres que dentro da família rece bem a incumbência de se responsabilizar pelos filhos Sabese que em Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 739 muitos casos a própria família dosdas adolescentes tem seus direi tos ameaçados eou violados Importante ressaltar que esse histórico de violações de direitos não teve início com o cometimento do ato infracional Durante o cumprimento de medidas socioeducativas os familiares se deparam constantemente com negação aos direitos fun damentais situações de tortura violações e discriminação para com essesessas adolescentes principalmente osas que se encontram em privação de liberdade Para além dos impactos na vida dosdas ado lescentes esses rebatimentos se estendem às suas famílias principal mente as mulheres que dentro da família recebem a incumbência de se responsabilizar pelo cuidado de seus filhos e filhas Ao acompanharem a vivência de seus filhos e filhas dentro das unidades de internação num contexto de violações de direitos e tor tura realizada por parte do Estado as famílias dosdas adolescentes também são punidas já que em decorrência disso sofrem e podem até acabar adoecendo devido a dor decorrente do acompanhamento do processo de cumprimento de medida socioeducativa de internação Essa responsabilização das famílias é um dos elementos que de monstra que existe uma canalização da responsabilização e não uma corresponsabilidade De acordo com a Doutrina de Proteção Integral às crianças e os adolescentes devem receber proteção integral por par te da família da sociedade e do Estado sendo o último responsável por desenvolver políticas para o atendimento a promoção e a defesa de seus direitos Mesmo que formalmente esse instrumento se coloque como garantista e participativo não se pode perder de vista que ele está enraizado no processo de reprodução e dominação social deste modo não superando a lógica da dominação e controle social Na perspectiva da Proteção Integral opondose a lógica centra lizada e reducionista do Estado o ECA 1990 coloca o Estado en quanto maior responsável pela promoção de meios que garantam às crianças e aos adolescentes seus direitos de cidadania efetivando a noção que criança e adolescente é prioridade absoluta A delimitação das funções específicas dos órgãos e esferas de governo tem como um dos princípios a descentralização políticoadministrativa o que gerou uma ampliação das competências do município e da comunidade As políticas sociais por parte do Estado têm se mostrado seletivas e excludentes o que não dá condições a família para cumprir com 740 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça sua função Para prover condições para que a família seja espaço de socialização garantidora de direito é necessária a implementação de políticas sociais universalistas que garantam a proteção social e assim efetivando o acesso a direitos civis e sociais ÁLVARES 2006 Para o ECA o papel da família na vida da criança e do adolescen te constituise como elemento fundamental e indispensável dentro do processo de proteção integral e de defesa dos direitos É a família que pode estabelecer a primeira proteção ao reconhecer as necessidades e identificar as violações Assim como a família a comunidade também é um importante núcleo no processo de formação de crianças e adolescentes conforme aponta o direito à convivência familiar e comunitária Inserido nesta perspectiva que o Plano Nacional de Promoção Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comuni tária 2006 coloca a família como o principal núcleo de socialização da criança A instituição família tem um papel muito importante na produ ção e reprodução social já que é a partir dela que é a primeira socia lização e se introduz e normas valores crenças tradições e papéis so ciais que são necessários para a vida em sociedade e são ferramentas para a manutenção do status quo O contexto familiar que as crianças violentadas exploradas e que tem seus direitos violados está à família desamparada e desassistida pelas políticas sociais públicas Para que a família possa desempenhar plenamente sua responsabilidade ela ne cessita ter seus direitos sociais garantidos Em resumo a família ao ter estes direitos violados consequentemente não terá condições de garantir a proteção dos direitos da criança e do adolescente O ECA atribui a sociedade a responsabilidade de fiscalizar e garan tir que o Estado e a família cumpram com seus papéis Isso faz com que a sociedade tenha uma função de garantidor de direitos no que se refere à questão da infância e da juventude Desse modo a omissão da socie dade ao não assumir o seu papel estabelecido legalmente corrobora com a violação de direitos Portanto quando a sociedade não cumpre seu pa pel ela contribui para a não construção de políticas sociais o Estado na sociedade capitalista manifesta os interesses do capital e baseado neles desenvolve suas ações sendo assim não permite às famílias a superação da condição social e as impede de assumir seu papel Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 741 II MATERNIDADE E CULPA A maternidade não pode ser definida somente como um fenômeno biológico de continuidade da espécie tampouco como de caráter sen timental a partir do argumento da afetividade e do amor materno in condicional Essas noções foram construídas historicamente sobre a relação entre mãe e seusua filhofilha e implicaram no julgamento da mulher que opta pela recusa da maternidade Simone de Beauvoir 1967 afirma que não existe destino bioló gico que determina a forma da mulher viver em sociedade ela afirma que ninguém nasce mulher tornase mulher 1 expressão que sinteti za a construção social do ser mulher As interpretações socialmente construídas e reforçadas cotidia namente fazem com que as mulheres sejam subjugadas ao homem e à família e sua manutenção aos papéis de esposa e mãe que visam ape nas a manutenção da ordem social Referindose à construção social do feminino e masculino e nas relações de poder históricas envolvi das o gênero se apresenta como uma categoria histórica e analítica que observa as relações sociais considerando os efeitos das constru ções do que é ser homem e do que é ser mulher na nossa sociedade e no caráter de mutabilidade dessas construções Cabe aqui ressaltar que para entender as relações de gênero se faz necessário compreender as relações de poder para pensar as situações postas pela desigualdade de gênero Portanto compreender o conceito de gênero se faz necessário para a problematização do binarismo hie rárquico entre o feminino e o masculino e consequentemente o papel da mulher e do homem na família A naturalização da maternidade coloca como inerente às mulhe res os atributos para serem mães e o significado da vida da mulher acaba sendo reduzido socialmente a exercer a função de mãe De acor do com Scavone 2001 somente em meados do século XX que a ma ternidade começou a ser compreendida como uma construção social que designava o lugar da mulher na família e na sociedade A maternidade retratada como plena realização feminina que priva a mulher de suas necessidades e desejos é produto de uma so ciedade patriarcal que oprime o gênero feminino A subordinação 742 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça feminina pelas responsabilidades atribuídas à maternidade ainda se configuram aspectos por meio dos quais se reproduz desigualdade de status e poder entre os sexos Badinter 1986 coloca que o patriarcado é a estrutura social que nasce de um poder do pai e tem como ele mento fundamental da sociedade patriarcal o controle da sexualidade feminina O amor materno tido como natural é uma construção social e cultural A concepção do mito do amor materno é fundamentada a partir da ideia do instinto maternal em conjunto com a falsa noção de felicidade feminina propiciada pelo sacrifício O mito do amor ma terno traz a imagem da figura materna como portadora dos atributos de delicadeza dedicação e sacrifício em nome de seus filhos e filhas MESTRE 2015 As mães que fogem dos padrões do ideal materno são penaliza das pela sociedade através da cultura pela imposição da culpa Isso pode gerar um sentimento de fracasso já que são responsabilizadas pela situação de seus filhos e filhas e fazer com que elas se sintam res ponsáveis e internalizem a culpa Diante disso interpretar a materni dade como tarefa exclusiva das mulheres entra em contradição com a realidade concreta de uma grande parte das mulheres O processo de socialização das mulheres inserido numa socie dade historicamente marcada pelo patriarcado foi voltado para o cui dado do outro antes de si própria Isso traz a ideia de que quando a família não está bem é culpa da mulher MESTRE 2015 A cul pabilização da mãe tende a aumentar de acordo com o cometimento daquilo que socialmente é entendido como erro ou fracasso por parte de seus filhos e filhas Segundo Forna A culpa ficou tão fortemente associada à maternidade que é considerada um sentimento natural Pois não é A culpa não é uma reação biológica regulada por hormônios As mulheres se sentem culpadas porque as fazem se sentirem assim FOR NA1999 p21 De acordo com Badinter 1986 as mães que anteriormente eram responsabilizadas passaram a ser culpabilizadas No século XVII a Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 743 confirmou acentuando a responsabilidade da mãe o Século XX trans formou o conceito de responsabilidade materna no de culpa materna p1985 p 179 A reinvenção da maternidade por parte das classes dominantes como vocação feminina exclusiva é uma contradição com a realidade concreta das mulheres pobres que não tem possibilidade de realizar esse ideal Na Europa do século XIX quando as mulheres das famílias operárias começaram a agregar trabalho fora do lar e maternidade instalouse a dupla jornada de trabalho que se consolidou no século XX com o avanço da industrialização A inserção das mulheres no mercado de trabalho foi marcada por profundas desigualdades sociais e sexuais o que fez com que ocorresse mudança nos padrões da ma ternidade SCAVONE 2001 Diferente da realidade das mulheres europeias na formação so cial brasileira escravista a correlação entre gênero e raça gerou a su balternização do gênero segundo a raça conforme aponta a autora Sueli Carneiro 2003 As imagens de gênero que se estabelecem a partir do trabalho enrudecedor da degradação da sexualidade e da marginaliza ção social irão reproduzir até os dias de hoje a desvalorização social estética e cultural das mulheres negras e a supervalori zação no imaginário social das mulheres brancas bem como a desvalorização dos homens negros em relação aos homens brancos Isso resulta na concepção de mulheres e homens ne gros enquanto gêneros subalternizados onde nem a marca bio lógica feminina é capaz de promover a mulher negra à condição plena de mulher e tampouco a condição biológica masculina se mostra suficiente para alçar os homens negros à plena condição masculina tal como instituída pela cultura hegemônica CAR NEIRO 2003 Os escravizados e as escravizadas eram igualmente considerados objetos destituídos de subjetividade Nesse tipo de regime escravo crata que não visava a reprodução da população escravizada o papel central da mulher na procriação era negado Isso significa que as mu lheres negras não exerciam funções sociais particulares relacionadas à reprodução social isso implica na não existência de uma condição 744 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça específica do ser mulher escravizada mas sim de uma condição geral de ser escravizado fato que a distanciava também da condição do ser mulher aplicado a mulheres brancas GIACOMINI 1988 Existe um abismo entre o ideal de mãe e a vida das mulheres das camadas populares que assumem a maternidade nas condições mais precárias e difíceis Conforme aponta Scavone 2001 a maternidade é um fenômeno social marcado pelas desigualdades sociais raciais e pela questão de gênero A partir disso podese dizer que as implica ções sociais da maternidade atingem de forma distinta as mulheres sociedades e culturas De acordo com Scavone 2001 os aspectos ambíguos da ma ternidade enquanto escolha nem sempre fácil possível ou reflexi va quando associados às condições subjetivas e socioeconômicas de quem escolhe podem ser percebidos na análise de diferentes experiên cias da maternidade Segundo a autora só no decorrer do século XX que a maternidade como escolha foi se consolidando A maternidade como escolha é marcada por diversos limites inclusive pelas contra dições de classe e raça A difusão dos métodos contraceptivos se deu de forma distinta entre países de capitalismo central e países de capitalismo dependente o que demarca a existência de contradições nesse processo no caso da França ocorreu como conquista da luta feminista já no Brasil como objetivo das políticas demográficas O declínio progressivo da fecundidade mediante utilização de métodos contraceptivos modernos alterando o perfil demográ fico da população brasileira coincidem com as transformações que resultaram dos processos de industrialização e urbanização no país os quais possibilitaram a introdução e aceitação de no vos padrões de reprodução e consumo e consumo próprios dos países do Norte Este fato está igualmente ligado aos objetivos dos países credores em reduzir o crescimento dos países deve dores no quadro dos planos de ajuste estrutural definido pelo FMI quando da concessão de empréstimo ao Brasil SCAVO NE 2001 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 745 A partir desse dado de realidade acerca dos interesses econômicos do capital internacional através do Fundo Monetário Internacional FMI é possível perceber que o caráter da maternidade como esco lha não é a realidade concreta da mulher da periferia do mundo que não tem direito de escolha porque os interesses de organismos inter nacionais se sobrepõem As mulheres brasileiras submetidas a méto dos contraceptivos mais pesados como a esterilização neste bojo não tiveram direito a uma livre escolha sobre seus direitos reprodutivos foram objetos de políticas que objetivavam o controle de natalidade determinados pelo capital internacional A esterilização das mulheres pretas e pobres é uma prática presente nas políticas de limpeza e con trole social Os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres são atra vessados pelos interesses do Estado e não são concretizados a partir da autonomia sobre sua escolha acerca da maternidade Na sociabilidade capitalista o corpo das mulheres é um elemento que está a serviço da lógica de produção e reprodução social repro dução da força de trabalho através da sua prole que se venderá para o capitalista em troca de um salário e a reprodução dos ideais para a ma nutenção do status quo Corpo esse que na divisão sexual do trabalho possui lugar primordial no trabalho doméstico e no cuidado e por isso é domesticado que também é mercantilizado e sexualizado Tratan dose especialmente das mulheres negras que historicamente tiveram o corpo assimilado como objeto de satisfação dos desejos sexuais dos homens são sujeitas a violação e estupro A formação social brasileira é um importante elemento a ser con siderado para se analisar como a maternidade foi sendo constituída no Brasil e a diferença que esse processo assumiu a depender do fator racial Podese dizer que o trato dado à maternidade e infância pretas contém elementos que historicamente se diferenciam ao trato dado à mulher e infância brancas das classes abastadas No período da escravização no Brasil havia um índice de morta lidade infantil extremamente elevado entre a população escravizada na cidade do Rio de Janeiro a taxa era superior a 88 devido ao des cuidado e aos abusos e também à facilidade em adquirir novosnovas escravizadosescravizadas NASCIMENTO 1978 Sendo assim os escravizados e escravizadas não tinham o direito de constituir uma família já que eles sequer eram considerados hu 746 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça manos No entanto isso não significa que as mulheres negras não engravidassem mais ou tivessem filhos e filhas Cabe aqui ressaltar que esse dado acerca da mortalidade infantil representa concretamente crianças negras morrendo e mães negras perdendo seus filhos e fi lhas o significado social da morte dessas crianças não era valorado enquanto acontecimento importante para os interesses coloniais mas significam um impacto real na vida de suas mães Um meio de renda comum entre os senhores escravocratas era a exploração sexual da mulher africana através de sua prostituição Além disso as mulheres escravizadas serviam a função de satisfazer sexualmente os senhores no nível puramente animal do contato se xual PRADO Jr 1961 Diante dessa conjuntura a prática do aborto e do infanticídio se apresentam enquanto dura estratégia de resistên cia das escravizadas e como únicos meios de evitar a escravidão de seus filhos e filhas GIACOMINI e MAGALHÃES 1988 A exploração sexual da mulher negra fundamentou o processo de miscigenação que foi erguido como um fenômeno de puro e simples genocídio A existência da mulata é resultada do estupro da mulher africana e conforme aponta Abdias após a brutal violação a mulata tornouse só objeto de fornicação enquanto a mulher negra continuou relegada à sua função original ou seja o trabalho compulsório Im portante dizer que a estratégia de embranquecer a população era uma política de Estado NASCIMENTO1978 Ao longo dos séculos a prática de violação e exploração sexual da mulher negra pelo homem branco permaneceu O Brasil herdou de Portugal a estrutura patriarcal de família e o preço dessa herança foi pago pela mulher negra não só du rante a escravidão Ainda nos dias de hoje a mulher negra por causa da sua condição de pobreza ausência de status social e total desamparo continua a vítima fácil vulnerável a qualquer agressão sexual do branco NASCIMENTO1978 p 73 Outra modalidade de exploração à qual a negra escravizada era submetida se dava pela necessidade do leite materno para os bebês da casa grande A venda e aluguel de escravas em período pósnatal Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 747 como amasdeleite atendia a demanda das famílias em que as mulhe res brancas não queriam ou podiam amamentar seus filhos e também pela crença de que as negras são mais saudáveis e seu leite mais forte A mulher negra escravizada tinha além de seu corpo o produ to dele o leite também explorado O que seria alimento para o seu próprio filho não lhe pertence afinal dificultaria sua alocação como amadeleite se o aleitamento não fosse exclusividade da criança bran ca Portanto muitas vezes os senhores separaram as mães escravizadas de seus filhos e filhas e até as convenciam a depositarem seus filhos na Roda dos Enjeitados com a alegação de que caso as crianças sobrevi vessem estariam libertas MAGALHÃES E K C GIACOMINI 1983 As mães então concordariam com o abandono e seriam alu gadas como amasdeleite mas teriam o consolo de que caso seus filhos conseguissem sobreviver viveriam como pessoas li vres Muitas dessas mães na esperança de futura alforria para si mesmas prêmio merecido pelo trabalho como amadeleite executado com dedicação e desvelo alimentaram também a ideia de que uma vez livres poderiam reaver seus filhos KOUTSOUKOS2009 p4 Depois delas serem violentamente separadas dos bebês ainda te riam que se incumbir do cuidado do bebê da casa grande Quando demonstravam sua legítima revolta elas ainda eram tidas como vin gativas e mercenárias O destino de seus filhos e filhas pouco ou nada interessava aos senhores ou aos médicos Não bastando tamanha vio lência ela se estende quando ainda se utilizam ideologicamente o dis curso de que a amadeleite acabava se tornando uma segunda mãe a chamada mãe preta Um aspecto que reforça a ideia de mãepreta como mito é que quando os intelectuais e médicos das últimas décadas do século XIX começam a pensar a mortalidade infantil das crianças brancas atri buem sua causa ao fato da prática delas serem cuidadas por amasde leite escravizadas estas se converterem em vetores de doença Para além da doença acreditavase que também estavam transmitindo através de seu leite os vícios das vidas dos negros para as crianças 748 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Num contexto de epidemias de febre amarela e cólera no qual as criadas são apontadas como possíveis transmissores de doenças para seus senhores aumenta a pressão realizada pelos médicos higienistas para que as próprias mães biológicas alimentem os bebês brancos Data daí meados do século XIX a tentativa dos médicos higienistas de criar uma nova noção de mãe estimulada pelo medo e pela culpa a se encar regar do cuidado da prole a mãe higiênica KOUTSOUKOS 2009 III CONSIDERAÇÕES SOBRE A CULPABILIZAÇÃO DE MÃES DE ADOLESCENTES EM PRIVAÇÃO DE LIBERDADE Os elementos anteriormente apresentados trazem aspectos que re forçam as desigualdades nos processos de maternidade no Brasil no mesmo período de tempo marcadas pela questão de raça e classe As experiências das mulheres brancas da casa grande se distanciam em muito da vivência de maternidade das mulheres pretas escravizadas assim como o significado atribuído a infância de seus filhos e filhas Na atual conjuntura do século XXI as desigualdades ainda são muito marcadas na experiência de maternidade entre mulheres das camadas populares e mulheres das classes dominantes e ainda se acirram ao considerar o fator racial Dentre os fatores que demarcam as violências que a maternidade envolve destacamos os seguintes a violência obstétrica as penaliza ções e mortes de mulheres decorrentes da interrupção da gravidez e a perda de seus filhos e filhas vítimas de ação e omissão do Estado Esses fenômenos não atingem as mães de maneira homogênea o lugar social que essas mulheres ocupam é um marcador fundamental para determinar qual tipo de violência ela poderá estar sujeita assim como a sua intensidade As mulheres negras são as que têm sua vida mais atravessadas pela violência quando se trata do aspecto de violações que envolvem os direitos sexuais e reprodutivos não é diferente A hierarquia social da mulher no Brasil demarca a assistência ao parto assim como as incidências de violações ao longo de toda expe riência de maternidade Em geral as mulheres de baixa renda e escolari dade que são em maioria negras têm uma assistência diferenciada das Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 749 mulheres pagantes do setor privado o que significa para aquelas pouco ou nenhum direito a escolha sobre os procedimentos relativos ao parto A maternidade também pode ser entendida como um privilégio de classe tratandose de poder ver o filho crescer já que um grande número de mulheres não tem esse direito De acordo com o dossiê A situação dos direitos humanos das mulheres negras no Brasil realiza do pelo Geledés Instituto da Mulher Negra em parceria com a Crio laOrganização de Mulheres Negras em 2012 56000 pessoas foram assassinadas no Brasil Destas 30000 são jovens entre 15 a 29 anos e desse total 77 são negras O dossiê aponta que Por trás destes números há também a violência não letal mas intensa e continuada que afeta milhares de mulheres negras em sua maioria mães dos e das jovens assassinados Estas vio lências são vividas tanto nos intensos esforços que desenvolve geralmente em isolamento e solidão para proteger e tentar pre servar a vida de seus jovens mas também após a morte destes ao longo de suas ações para recuperar a dignidade dos jovens assassinados para recuperar e enterrar seus corpos para buscar reparação e justiça E há ainda a culpabilização a representação midiática negativa e preconceituosa desses jovens Esse dado deixa evidente que as mães negras possuem muito mais chances de não poderem criar seus filhos e filhas Para além da culpabilização direta desses jovens que em grande parte são tidos como bandidos a culpa também acaba recaindo sobre as mães que supostamente falharam na sua tarefa já que os filhosas filhas adota ram posturas consideradas socialmente conflitivas Outro fator a ser considerado é a privação de liberdade dos filhos e das filhas que são um fator que rompem com a convivência familiar e comunitária entre essas mães e seus filhosfilhas Seja de mulheres encarceradas que são mães ou mulheres que têm seus filhos em priva ção de liberdade o que gera impactos significativos para a experiên cia da maternidade acompanhar eou sofrer as violações por parte de Estado e ainda serem culpabilizadas é um fator de adoecimento para essas mulheres que em sua maioria são negras e oriundas das cama das populares 750 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Existe uma estigmatização muito grande dosdas adolescentes autores de ato infracional e seussuas responsáveis não só por par te dos profissionais do sistema de garantia de direitos de crianças e adolescente mas da sociedade em geral inclusive dosdas próprios próprias Osas responsáveis são responsabilizados por todos pelo ato infracional do filho o que gera a culpabilização Culpabilização essa que é só uma das expressões da criminalização da pobreza que tem consequências tanto na atuação institucional que pode levar a penali zação das famílias como também a internalização da culpa por parte das famílias que já tiveram tantos direitos violados É certo que recai sobre a mãe a responsabilidade de acompanhar o filho durante todo o processo de execução da medida por conta de um suposto consenso criado socialmente de que é responsabilidade dela o cuidado com os filhos principalmente quando estão em situação de necessidade Diante desse entendimento as mães são obrigadas a passar por todas as condições impostas pela unidade para visitar seu filho e a revista íntima vexatória configura uma das maiores violências institucionais a que são submetidas essas mães Verificase uma grande culpabilização dessas mães que de acor do com essa lógica não teriam conseguido êxito nessa tarefa já que os filhos se encontram em situação de conflito com a lei Na maioria das vezes a mãe é responsabilizada e culpabilizada por toda situação porém em nenhum momento são expostas as condições que essa mu lher possui para educar e orientar seus filhos muitos dos familiares não possuem nem condições de alimentar e prover o sustento para a família Apesar dos instrumentos jurídicos e legais apontarem a respon sabilidade compartilhada entre família sociedade e Estado para a efe tivação dos direitos dosdas adolescentes ainda ocorre uma penali zação para com a família percebese que a retração do Estado frente ao contexto neoliberal promove consequentemente um aumento das responsabilidades da família Sabese que em muitos casos a própria família dosdas adolescentes tem seus direitos violados importante ressaltar que esse histórico de violações de direitos não teve início com o cometimento do ato infracional Assim como oa adolescente não pode ser visto de forma inde pendente de suas relações comunitárias e familiares a instituição fa Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 751 mília não pode ser pensada apartada da sociedade na qual ela está inserida Dentro de determinado contexto social existem elementos sociais históricos e econômicos que determinam a forma de inter venção do Estado Então dentro da sociabilidade capitalista podese dizer que existem políticas e práticas de controle destinadas a popu lação preta e pobre Ao longo da história do Brasil ocorreu a institu cionalização de crianças e adolescentes oriundos de famílias pobres obedecendo a uma lógica correcionalrepressiva É fundamental observar que toda a família está vivenciando problemas concretos que impactam a sua dinâmica sendo necessário o senso crítico e o cuidado para a não reprodução da culpabilização dessas famílias Por conta disso o adolescente e sua família devem ser pensados inseridos numa sociedade racista e machista na sociabilidade do modo de produção capitalista e as desigualdades sociais que influenciam diretamente esses adolescentes e seus familiares e sua vida concreta REFERÊNCIAS ÁLVARES Luciana de Castro PEREIRA Julyana Faria Descentra lização participativa e a Doutrina da Proteção Integral da Criança e do Adolescente In Revista da UFG Vol5 n22004 Disponível em HTTP wwwproecufgbr Acessado em 21 de setembro de 2011 BADINTER Elisabeth Um Amor Conquistado o mito do amor ma terno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 BEAUVOIR Simone de O Segundo Sexo A experiência Vivida Di fusão Européia do Livro São Paulo 1967 BRASIL Constituição 1988 Constituição da República Federativa do Brasil Brasília DF Senado Federal Centro Gráfico 1988 292 p BRASIL Estatuto da criança e do adolescente Lei federal nº 8069 de 13 de julho de 1990 Rio de Janeiro Imprensa Oficial 2002 CARNEIRO Sueli A mulher negra na sociedade brasileira o pa pel do movimento feminista na luta antiracista Brasília Fundação Cultural Palmares 2003 752 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça FORNA A Mãe de todos os mitos como a sociedade modela e re prime as mães Rio de Janeiro Ediouro 1999 KOUTSOUKOS Sandra Sofia Machado Amas mercenárias o discur so dos doutores em medicina e os retratos de amas Brasil segunda metade do século XIX Revista História Ciências Saúde Mangui nhos vol 16 núm 2 abriljun 2009 pp 305324 Fundação Oswaldo Cruz Rio de Janeiro Brasil MAGALHÃES E K C GIACOMINI S M A escrava amadeleite anjo ou demônio In BARROSO Carmem e COSTA Albertina de Oliveira Org Mulher mulheres São Paulo Editora Cortez FCC DPE 1983 p 73 88 MESTRE Simone de Oliveira Amor só de mãe drama e estigma de mães de adolescentes privados de liberdade Zona de Impacto ANO 17 Volume 1 janeirojunho 2015 NASCIMENTO Abdias O genocídio do negro brasileiro processo de um racismo mascarado Rio de Janeiro Paz e Terra 1978 SCAVONE L Maternidade transformações na família e nas rela ções de gênero Interface Comunic Saúde Educ v5 n8 p4760 2001 753 POLÍTICAS DE SAÚDE PARA MULHERES PRIVADAS DE LIBERDADE NO BRASIL UMA REVISÃO DE LITERATURA Flávia Ferreira dos Santos284 Cristiane Batista Andrade285 RESUMO Este texto analisa os conhecimentos produzidos na litera tura nacional acadêmica artigos sobre as políticas de saúde das mu lheres no sistema penitenciário brasileiro com o método da revisão integrativa da literatura As bases de dados utilizadas foram Portal Regional da BVS e SCIELOOrg Foram selecionados 21 artigos para a análise sobre saúde maternidade e gravidez no cárcere Os resul tados mostram as dificuldades de mulheres privadas de liberdade e sua vivência da maternidade e das relações familiares doenças como sífilis HIVAIDS câncer de colo de útero e influências do aprisio namento na saúde mental e emocional De modo geral as pesquisas apontam a necessidade de se garantir os direitos das mulheres e de políticas de saúde dentro e fora do cárcere já assegurados na legisla ção brasileira PalavrasChave gênero saúde cárcere violência prisões 284 Assistente Social pela UNISUAM e especialista em Gênero sexualidade e direi tos humanos Fiocruz ENSPDIHS Email flaviasantos1307hotmailcom 285 Pesquisadora em Saúde Pública Fundação Oswaldo Cruz Doutora em Educa ção e Pós Doutora em Enfermagem pela Universidade Estadual de Campinas Email cristianeandradefiocruzbr 754 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça INTRODUÇÃO A inserção das mulheres no sistema prisional é crescente segundo as informações do INFOPENMulheres de junho de 2014 Nesse pe ríodo havia no sistema penitenciário brasileiro 37380 mulheres e 542401 homens totalizando 579781 pessoas Entre os anos de 2000 a 2014 houve um crescimento de 5674 do número de mulheres e 2202 de homens BRASIL 2014a A questão das mulheres privadas de liberdade perpassa pela pou ca atenção às especificidades delas pois a maioria 74 n1067 dos estabelecimentos prisionais é destinada ao sexo masculino enquanto 7 n 107 são para mulheres e 17 n244 são mistos O perfil predominante das mulheres privadas de liberdade se assemelha com os dados prisionais gerais homens e mulheres pois a maioria é negra 68 possui baixa escolaridade 50 é jovem 27 tem entre 18 a 24 anos e solteira 57 BRASIL 2014a Com relação à maternida de mais da metade das mulheres 74 possuem pelo menos um filho BRASIL 2017a Uma das preocupações ao tecer o debate sobre as condições de vida no sistema penitenciário brasileiro é a saúde das pessoas assistidas e nesta pesquisa a saúde de mulheres privadas de liberdade Assim consideramos que no sistema prisional o processo de adoecimento pode ser influenciado pela superlotação e condições nem sempre fa voráveis e específicas para as mulheres BRASIL 2014a DELZIOVO et al 2015 A história da organização do sistema prisional brasileiro tem como característica a sua atenção para o gênero masculino CERNEKA 2009 BRASIL 2016 por isso a necessidade de considerar a questão do gênero para o atendimento aos direitos humanos destas mulheres sobretudo os sexuais e reprodutivos DELZIOVO et al 2015 É importante portanto que a política do Sistema Único de Saúde SUS esteja garantindo uma atenção ginecológica e obstétrica eficiente e humana a prevenção e diagnóstico precoce de câncer de colo uterino e mama a doenças sexualmente transmissíveis em uma perspectiva psicossocial DELZIOVO et al 2015 p 11 Esses autores ressaltam ainda a necessidade de prevenção de violências que mulheres possam vir a sofrer como a institucional a sexual e aquelas que possam surgir no grupo social dentro do cárcere Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 755 Do ponto de vista das recomendações internacionais para a as sistência às mulheres privadas de liberdade têmse as Regras de Bangkok De acordo com este documento as mulheres que estejam grávidas ou possuem filhos devem ter em seus registros todas as infor mações sobre o cuidado deles localização e dados sobre o responsável pela guarda fornecimento de materiais de higiene pessoal serviços de atenção à saúde cuidados com a violência contra a mulher dentro e fora do cárcere programas de prevenção de DST câncer feminino cuidados com a saúde mental e com a violência auto infligida e ou tros Com relação ao cuidado com os filhos as visitas recebidas pelas mães deverão ser em locais saudáveis e haver incentivos para a perma nência deles com as mães de maneira prolongada Os cuidados com os bebês devem proporcionar o aleitamento materno cuidados médicos para a gestante e criança sendo estimulado o convívio de modo sau dável BRASIL 2016 Em se tratando da realidade brasileira no ano de 2014 foi criada a Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional PNAMPE As diretri zes que norteiam a PNAMPE são a prevenção de violências contra as mulheres humanização da assistência formação de profissionais que atendem as mulheres participação social nesta política levantamento de informações penitenciárias e realização de estudos considerando a categoria de gênero incentivo ao estudo e trabalho garantia de saúde e segurança no cárcere dentre outras BRASIL 2014b Sobre a maternidade e o cuidado com as crianças de mulheres privadas de liberdade esta política prevê a identificação de mulheres grávidas inserção delas em locais adequados autorização de acom panhantes no parto proibição de algemas ou outras contenções neste período acompanhamento pelo SUS e na Rede Cegonha quando ges tante atenção à saúde das crianças e incentivo à amamentação dentre outras medidas BRASIL 2014b Portanto o que norteia esta pesquisa é indagar quais são os conhecimentos produzidos na literatura nacional acadêmica artigos sobre a saúde e a maternidade das mulheres no sistema penitenciário brasileiro Dessa maneira este texto tem por objetivo analisar os co nhecimentos produzidos sobre a saúde e a maternidade das mulheres brasileiras privadas de liberdade 756 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ASPECTOS METODOLÓGICOS A metodologia utilizada foi revisão integrativa da literatura Esse mé todo de pesquisa permite a síntese das produções do conhecimento e possibilita que as ausências e lacunas de uma determinada temática sejam postas o que colabora para que futuros estudos sejam reali zados MENDES CAMPOS GALVÃO 2008 BOTELHO CUNHA MACEDO 2011 Com relação a revisão integrativa da literatura vêse que esse método tem a finalidade de reunir e sintetizar resultados de pes quisas sobre um delimitado tema ou questão de maneira sistemática e ordenada contribuindo para o aprofundamento do conhecimento do tema investigado MENDES CAMPOS GALVÃO 2008 p 759 Depois da escolha da temática das questões norteadoras e dos objetivos optamos por realizar a busca bibliográfica nos bancos de dados do Portal Regional da Biblioteca Virtual em Saúde BVS e do Scientific Electronic Library Online SCIELOOrg no mês de abril de 2018 Os descritores utilizados foram mulher AND pris OR car cere em ambos os bancos de dados Na BVS utilizamos os filtros artigos completos e base de dados nacionais Brasil O resultado foi de 160 artigos No Scielo utilizamos os mesmos descritores e o filtro de coleções Brasil O resultado foi de 316 artigos Todos os artigos n476 foram inseridos no gerenciador de referências Zotero Neste programa retiramos as obras duplicadas o que gerou uma amostra final de 450 documentos Feito isso os critérios de inclusão foram artigos nacionais com textos completos disponíveis com a temática da saúde de mulheres privadas de liberdade com a realidade brasileira e com o recorte tem poral dos últimos cinco anos 2013 a 2017 Os critérios de exclusão foram produções que não fossem artigos científicos não relacionados ao tema aqueles que diziam respeito aos profissionais de segurança pública sobre a saúde de familiares de pessoas privadas de liberdade e os que não eram do contexto brasileiro Sendo assim restaram 37 documentos no período de 2013 a 2017 Com essa amostra um novo critério de exclusão foi realizado a retirada de artigos que não diziam respeito na sua centralidade à saúde de mulheres privadas de liber dade e também aqueles que discutiam a saúde de homens e mulheres Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 757 Neste procedimento além da leitura dos resumos foi necessária a leitura do artigo completo para alguns deles Ao final desta etapa da pesquisa foram selecionados 21 artigos Como categorização dos re sultados optamos por dividilos em duas partes a aspectos de saúde das mulheres privadas de liberdade e b maternidade e gravidez no cárcere RESULTADOS Da amostra selecionada a maioria dos textos é do ano de 2017 segui dos de 2016 e 2015 Percebemos com isso um aumento do número de publicações ao longo dos anos o que pode indicar a preocupação da academia com esta temática A seguir o Quadro 1 mostra o título do artigo os autores e o ano de publicação Dos artigos selecionados n21 428 n9 tem como tema principal maternidade e gravidez de mulheres privadas de liberdade enquanto 572 n12 abordam a temática da saúde Quadro 1 Título dos artigos autores e ano de publicação Título do artigo Autores Ano 1 Gynecologic and obstetric profile of state impris oned female Ribeiro et al 2013 2 Imagens da prisão feminina ilustrações presentes no jornal Só Isso Tavares 2013 3 Fatores de risco para o câncer de colo do útero em mulheres reclusas Anjos et al 2013 4 Mulheres no cárcere significados e práticas cotidia nas de enfrentamento com ênfase na resiliência Lima et al 2013 5 O HIV e a sífilis no Sistema Prisional Feminino do Estado de São Paulo Matida et al 2014 6 Prevalência e fatores associados à violência sofrida em mulheres encarceradas por tráfico de drogas no Esta do de Pernambuco Brasil um estudo transversal Ferreira et al 2014 7 Maternidade atrás das grades em busca da cidadania e da saúde Um estudo sobre a legislação brasileira Ventura Si mas Larouzé 2015 758 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 8 De algozes a vítimas dos direitos cegos e nulos à mulher gestante em situação de cárcere Calhiari San tos Brunini 2015 9 Entre a soberania da lei e o chão da prisão a mater nidade encarcerada Braga 2015 10 A jurisprudência brasileira acerca da maternidade na prisão Simas et al 2015 11 Inquérito sobre condições de saúde de mulheres en carceradas Audi et al 2016a 12 Direitos reprodutivos das mulheres no sistema peni tenciário tensões e desafios Diuana et al 2016 13 Nascer na prisão gestação e parto atrás das grades no Brasil Leal et al 2016 14 AIDS and jail social representations of women in freedom deprivation situations Trigueiro et al 2016 15 Exame de Papanicolau em mulheres encarceradas Audi et al 2016b 16 Trajetórias de mulheres privadas de liberdade práti cas de cuidado no reconhecimento do direito à saú de no Centro de Referência de Gestantes de Minas Gerais Lopes Pi nheiro 2016 17 A saúde física de mulheres privadas de liberdade em uma penitenciária do Estado do Rio de Janeiro Santos et al 2017a 18 Selfconcept dialectical transformation A study in a womens prison Basílio et al 2017 19 Mental health of incarcerated women in the state of Rio de Janeiro Santos et al 2017b 20 Mulheres nas prisões brasileiras tensões entre a or dem disciplinar punitiva e as prescrições da materni dade Diuana Cor rêa Ventura 2017 21 Prevalence of syphilis and HIV infection during pregnancy in incarcerated women and the incidence of congenital syphilis in births in prison in Brazil Domingues et al 2017 Fonte Elaboração própria a partir da revisão bibliográfica 2018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 759 A SAÚDE DAS MULHERES PRIVADAS DE LIBERDADE Duas pesquisas trazem na sua centralidade o câncer de colo uterino e as suas formas de prevenção no contexto carcerário É o caso de Anjos et al 2013 que analisam os fatores de risco para o câncer de colo de útero em mulheres privadas de liberdade no Estado do Ceará As autoras mostram a relação entre os aspectos de vulnerabilidade e o de senvolvimento do câncer o tabagismo o não uso do preservativo para algumas mulheres as relações homossexuais desprotegidas a coitar ca precoce dentre outros ANJOS et al 2013Brazil The selection of the sample occurred according to the availability of female prisoners at the time of collection with a total of 36 women prisoners Regard to the risks for cervical cancer 16 445 A pesquisa de Audi et al 2016b verifica a cobertura do exame de Papanicolau em mulheres privadas de liberdade Mostra a importância da realização de exames preventivos já que a cobertura é muito reduzida para estas mulheres A falta de acesso a esse exame por parte do Estado é uma violação de direitos Em que pese à saúde reprodutiva e sexual de mulheres é impor tante o debate sobre os métodos de prevenção de DST e da gravidez não desejada Nesse sentido a pesquisa de Ribeiro et al 2013 mostra que 317 das mulheres não utilizavam nenhum método contracepti vo nas relações sexuais 303 eram laqueadas e apenas 102 utiliza vam o preservativo masculino Considerando as DST destacamos a produção de Matilda et al 2014 O estudo sobre HIV e sífilis analisa os dados de 8914 mulhe res no sistema prisional no Estado de São Paulo Houve 28 n248 de exames reagentes para o HIV e a triagem para sífilis 7 n616 sendo maior que na população em geral O uso do preservativo na modalidade às vezes foi apontado por 359 das mulheres seguido de nunca por 285 e 204 sempre o usam 38 não utilizam nenhum método anticoncepcional e 357 disseram utilizálo MA TILDA et al 2014 Ainda sobre o HIVAIDS Trigueiro et al 2016 analisam as representações entre as mulheres encarceradas como o medo o sofrimento os estigmas as relações sexuais desprotegidas e também o uso de objetivos pessoais que são compartilhados entre elas dentre outros 760 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A saúde física de mulheres no cárcere é tema da pesquisa de San tos et al 2017a Os autores indicam os fatores de adoecimento como má alimentação aumento ou diminuição considerável de peso hiper tensão arterial diabetes tabagismo DST dentre outros Eles também abordam a criação da PNAMPE já que a prevenção de doenças é pri mordial segundo essa política além de serem essenciais as considera ções das especificidades da mulher Em uma pesquisa realizada com 290 mulheres privadas de liber dade evidenciase a violência de gênero pois 441 n128 das que foram encarceradas por tráfico de drogas declararam a violência sofri da 24 meses antes do aprisionamento Destas 352 sofreram violên cia física 318 a psicológica e a sexual 38 Chama a atenção que 441 das mulheres relataram que o próprio parceiro foi o perpetra dor do ato violento FERREIRA et al 2014 Consideramos que as pesquisas de Tavares 2013 Lima et al 2013 Audi et al 2016a e Santos et al 2017b trazem na sua cen tralidade a saúde emocional e psicológica de mulheres privadas de liberdade Tavares 2013 percebe que as expressões destas mulheres estão relacionadas com a solidão as angústias a hostilidade deste ambiente os estigmas as dificuldades e sonhos vividos por elas A pesquisa encontrou as manifestações das orientações sexuais das mu lheres sobretudo a homossexualidade e suas contradições de senti mentos e os preconceitos Lima et al 2013 relatam que as experiências do encarceramen to obtidas sobretudo por meio de entrevistas evidenciam a solidão o sofrimento as humilhações as hostilidades o abandono por fami liares filhos e maridos dentre outros Nos depoimentos há quem diga que pensou em suicídio outras relataram sintomas depressivos e a sensação de enlouquecimento como diz uma depoente Teve mo mentos aqui na prisão que eu pensei que ia ficar louca não sabia mais quem eu era LIMA et al 2013 p 453 Assim por um lado fica evidente que as situações vividas por estas mulheres influenciam na saúde mental Por outro o enfrentamento das adversidades está na esperança de liberdade do re encontro com a família além do forta lecimento da religiosidade na vivência prisional LIMA et al 2013 Audi et al 2016a apontam o transtorno mental comum em 667 das mulheres entrevistadas dor de cabeça em 595 fraturas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 761 352 problemas ginecológicos 341 e outros O não uso do pre servativo foi apontado por 268 assim como a dependência da ni cotina 261 e o uso de tranquilizantes 191 Sobre a violência vivida por elas no período de um ano que antecedeu o cárcere 371 sofreram violência psicológica 314 a física e 78 a sexual A saúde mental de mulheres encarceradas assinala casos de de pressão e ansiedade distúrbios do sono medos inseguranças e es tresse como afirma a produção de Santos et al 2017a Há situações de violência física sexual e psicológica vivida pelas mulheres antes e durante o período de encarceramento aumentando as possibilidades de transtornos mentais A pesquisa mostra que antes do cárcere al gumas mulheres já eram vítimas de violência em alguma fase da vida Outro ponto abordado é a dificuldade de acesso aos momentos de vi sitas íntimas apesar de ser um direito reconhecido é muito difícil a ocorrência SANTOS et al 2017a As dificuldades das visitas íntimas também são encontradas na produção de Ribeiro et al 2013 pois revelam o sofrimento gerado pela ausência dos companheiros de mui tas mulheres já que as visitas íntimas local pequeno e com banheiro ocorriam a cada quinze dias MATERNIDADE E GRAVIDEZ NO CÁRCERE A partir de uma crítica aos sistemas prisionais Calhiari Santos e Bru nini 2015 tecem análises sobre o processo de gravidez no cárcere e a posteriori a amamentação A fragilidade das políticas públicas para as mulheres privadas de liberdade os estigmas e os preconceitos podem agravar os inúmeros sofrimentos que influenciam a saúde física e psí quica CALHIARI SANTOS BRUNINI 2015 Ventura Simas e Larouzé 2015 discutem a maternidade e o cuidado de filhos de mulheres privadas de liberdade Dialogam a res peito da importância de se colocar em prática pelo poder público os direitos à saúde assegurados às mulheres e seus filhos com vistas à redução dos processos de vulnerabilidade Ressaltam ainda os con flitos existentes no tocante ao período de permanência e aos critérios adotados para a convivência com as crianças VENTURA SIMAS LAROUZÉ 2015 p 615 762 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Em pesquisa sobre a maternidade no cárcere Braga 2015 versa suas análises nas dimensões de raça gênero e classe social Através de um extenso trabalho de campo a autora discute os papéis sociais das mulheres privadas de liberdade na sua dupla dimensão ser mãe e cri minosa o primeiro pautado pela maternidade como vocação natural exclusiva e sacralizada da mulher e o segundo marcado pelo crime como um desvio das expectativas sociais e morais que recaem sobre quem nasce sob o sexo feminino BRAGA 2015 p 527 O sistema prisional do ponto de vista histórico é marcado na sua organização e nas políticas públicas para o atendimento sobretudo de homens Esta pesquisa com rigoroso aprofundamento teórico com perspectiva dos direitos das mulheres e de crianças e das influências do encarceramen to nas vidas delas possibilita o debate sobre a garantia da qualidade na assistência além de reiterar que a prisão domiciliar seja considerada a fim de minimizar os efeitos do cárcere na vida de mães e crianças Uma das discussões trazida é a violência que sofrem as crianças e be bês pois em muitos casos são privados da liberdade de ir à creche escolas ou seja de viver fora do mundo da prisão BRAGA 2015 Na perspectiva da área do direito Simas et al 2015 analisam 122 documentos referentes às decisões judiciais relacionadas ao tema da maternidade no cárcere Sinalizam o pouco debate sobre o tema na área do direito e mostram a invisibilidade social da questão SIMAS et al 2015 p 566 sobretudo com relação aos direitos das crianças e mães além de prevalecerem as negativas judiciais para a prisão domi ciliar e também de liberdade provisória Diuana et al 2016 argumentam que muitas mulheres estão à mercê das precárias condições de vida dentro do cárcere com estru turas que são inadequadas para as mulheres desde falta de absor ventes e roupas íntimas até regulamentos que não contemplam suas especificidades agravam as desigualdades de gênero DIUANA et al 2016 p 2042 Ressaltam ainda o empobrecimento em decor rência do aprisionamento de muitas mulheres já que muitas delas são responsáveis pelo sustento de seus filhos além das influências nega tivas no convívio familiar Mostram inseguranças angústias e culpas isolamento familiar receios de mulheres que estiveram grávidas du rante o período de privação de liberdade Em que pese a violência ins titucional evidenciam pelos depoimentos obtidos o uso de algemas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 763 o não respeito às opiniões das mulheres sobre o corpo e a gravidez cenas de humilhações dentre outros Outra questão posta são as difi culdades de cuidado com os filhos como a amamentação ou a atenção à saúde no aprisionamento DIUANA et al 2016 A pouca atenção à saúde no período de gestação no cárcere foi vista por Leal et al 2016 Chamamos a atenção aos dados sobre a violência sobretudo verbal e psicológica sofrida pelas entrevistadas no momento da internação 156 n37 relataram violênciamal trato pelos profissionais de saúde e 14 n33 pelos agentes peni tenciáriosguardas Com relação ao uso de algemas 357 n86 afirmaram a sua utilização Apenas 29 foram acompanhadas por familiares e somente 118 receberam visitas LEAL et al 2016 O cuidado com as gestantes privadas de liberdade é tema de pes quisa de Lopes e Pinheiro 2016 que abordam a invisibilidade femi nina perante o Estado e a sociedade bem como o histórico da criação das prisões femininas A pesquisa traz a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisio nal PNAISP de 2014 Ela permite integrar as ações do SUS para ga rantir a saúde e a prevenção de doenças Outra observação levantada pelas autoras é que antes do cárcere essas mulheres já sofriam com a vulnerabilidade no acesso aos sistemas de saúde A produção de Diuana et al 2017 relata a gravidez na prisão as separações entre mãe e filho as desigualdades de gênero os mo delos de família maternidade e infância Dentro do sistema peniten ciário as grávidas são colocadas em unidades muitas vezes longe de suas cidades o que dificulta o acompanhamento por parte da família além de muitas vezes serem as responsáveis pelo sustento familiar ou seja as provedoras As autoras argumentam as ausências de políticas públicas para o cuidado destas crianças ao se separarem das mães no momento do encarceramento bem como as desigualdades de gênero o predomínio da mãe como a cuidadora principal dos filhos e as violências institucionais que abrigam mulheres verificase que é a própria prisão que precisa ser afastada a fim de que as mulheres possam viver suas maternidades em um contexto de menos opressão DIUANA 2017 p 744 764 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça DISCUSSÃO Se por um lado as condições de assistência à saúde nos sistemas peni tenciários têm sido reducionistas à medida que tratam sobretudo das doenças e drogas SILVA LUZ CECCHETTO 2011 nesta revisão de literatura foi comum encontrar pesquisas com diversas vertentes achados e perspectivas teóricas e metodológicas Todos os artigos que tratam da maternidade no cárcere evidenciam críticas ao contexto vi vido pelas mulheres e apontam para a necessidade de se analisar o gênero feminino e os desafios de ser mulher privada de liberdade A unanimidade dos achados sobre a saúde destas mulheres no contexto brasileiro é a pouca e precária assistência tanto no que concerne à saúde física e mental quanto no período gestacional e de cuidados aos filhos Em se tratando dos aspectos de saúde dos artigos pesquisados consideramos a sua ampla temática câncer de colo uterino e suas pre venções métodos contraceptivos HIVAIDS sífilis saúde reproduti va sexual emocional e psicológica violência de gênero dentro e fora do cárcere maternidade e gravidez Ao que tudo indica as produ ções científicas têm se debruçado sobre a problemática do cotidiano de vida destas mulheres privadas de liberdade Sendo assim se considerarmos que em uma pesquisa sobre a saúde de presos no Estado do Rio de Janeiro as mulheres relataram ter mais problemas de saúde físicos e depressão que os homens MI NAYO RIBEIRO 2016 é preciso fomentar o debate sobre a saúde no cárcere e a perspectiva do gênero Chamamos a atenção para a questão da violência vivida por mu lheres antes do encarceramento sendo esta perpetrada principal mente pelo parceiro FERREIRA et al 2014 Violências vividas an tes da privação de liberdade também foram encontradas por Almeida 2006 visto que a partir de um estudo de caso com uma mulher em regime semiaberto no Estado de São Paulo foi possível perceber as violências sofridas antes do aprisionamento como nas relações fami liares na infância nos arredores do bairro onde morava e também na sua relação com o marido Além disso a organização do sistema pri sional por vezes reproduz a violência e inúmeras formas de exclusão antes durante e depois do cárcere GUEDES 2006 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 765 Não podemos deixar de reiterar a importância dos estudos da vio lência de gênero e também a noção de patriarcado para compreender as relações entre homens e mulheres na sociedade suas hierarquias e seus poderes É imprescindível o reforço permanente da dimensão histórica da dominação masculina para que se compreenda e se di mensione adequadamente o patriarcado SAFFIOTI 2015 p 110 Não sem razão estas relações estabelecidas e construídas ao longo da história podem estar envoltas pelas marcas da violência dada a supremacia masculina e sua socialização para a docilidade no caso das mulheres SAFFIOTI 2015 p 77 Evidentemente ao tomar estas concepções é concebível que se trate com maior especificidade a saú de das mulheres dentro ou fora da prisão Diante das condições de vida no cárcere marcadas pelo sofri mento e pouca atenção à saúde das mulheres o enfrentamento das adversidades foi analisado por Lima et al 2013 em que mulheres recorreram à religiosidade à fé e ao vínculo familiar para minimizar os seus sofrimento sendo este resultado corroborado também pela pesquisa de Guedes 2006 Ao que parece as formas de enfrentamen to dos obstáculos é por meio da religião e da tentativa de manutenção da ligação afetiva com a família Foi possível compreender o quanto as relações familiares são al teradas com o aprisionamento das mulheres de acordo com os artigos analisados O encarceramento de mulheres e suas influências na vida e no modo de organização familiar foram debatidos por todas as pes quisas sobre maternidade e privação de liberdade Muitas mulheres deixam suas famílias e seus filhos sob o cuidado de outros membros familiares Alguns são destinados à adoção e nesse sentido há preo cupações com o cuidado e a trajetória de vida deles As mulheres po dem se sentir intranquilas diante de novos rearranjos familiares São comuns as queixas de abandono por parte do companheiro e tam bém de outros familiares GUEDES 2006 Esse parece ser um tema central trazido pelas experiências de mulheres privadas de liberdade Em um estudo sobre a saúde de pre sos a dinâmica familiar é posta para homens e mulheres No entanto no que se refere ao gênero feminino temse que as queixas se relacio nam com as poucas visitas de filhos e familiares pelo fato de estarem longe da casa onde moram e também pelo abandono do companhei 766 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ro Outra questão ressaltada é sobre os constrangimentos da família diante das revistas para o acesso ao sistema penitenciário MINAYO RIBEIRO 2016 Dessa maneira devemse considerar as mulheres privadas de li berdade dentro do contexto social e cultural em que vivem Elas fa zem parte de um sistema em que muitas vezes são as responsáveis pelo sustento familiar e pelo cuidado Por consequência concordamos com Cerneka 2009 ao reiterar ser imprescindível a adoção de políti cas públicas de atenção às mulheres saúde violências prevenção do uso de drogas dentre outras e cuidado aos seus filhos Esta revisão de literatura mostra as dificuldades e os sofrimen tos das mulheres em conciliar a vida no cárcere com a maternidade O aspecto legal direitos das mulheres privadas de liberdade os sentimentos de abandono dos filhos tidos ou não no cárcere a culpa e as angústias DIUANA et al 2016 além de serem muitas vezes as provedoras da família também foi verificada na literatura por Gue des 2006 p564 o que as mulheres entrevistadas ressaltam sobre ser mãe no cárcere o receio da perda do vínculo materno perda da guarda legal privação material e alimentar acompanhamento escolar e cuidados com a saúde É um cenário permeado pelo isolamento inseguranças rupturas solidão incertezas A maternidade na prisão traz influências psicossociais para mães e seus filhos BRAGA ANGOTTI 2015 Essas autoras mostram a hipermaternidade expressa pelo convívio intenso das mulheres com seus filhos até o momento da separação ao passo que a hipomaternidade é caracterizada pelas rupturas nos mo mentos de separação de mãe e filhos Pautadas em Foucault analisam a maternidade no cárcere e seu modo conflitivo disciplinar vigiado e enclausurado BRAGA ANGOTTI 2015 o que de certa maneira confirma os achados desta revisão de literatura Um dos relevantes achados relacionados à violência de grávidas diz respeito ao uso de algemas encontrado na pesquisa de Diuana et al 2016 e Leal et al 2016 No cenário nacional o uso de algemas é proibido pela PNAMPE BRASIL 2014b e também pela recente Lei 13434 de 2017 que não permite o seu uso em mulheres grávidas du rante o período de parto e puerpério imediato BRASIL 2017b A respeito da violência institucional psicológica e verbal perpetrada Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 767 por profissionais no momento da internação de gestantes LEAL et al 2016 consideramos necessária a formação e as condições de trabalho adequadas para os profissionais do sistema prisional para a garantia dos direitos às mulheres privadas de liberdade E por fim destacamos a perspectiva apontada pelas Regras de Bangkok que preveem a preferência pelas medidas não privativas de liberdade para as mulheres grávidas ou aquelas que são responsáveis pelo cuidado de filhos pequenos ao passo que a privação de liberdade deve ser feita em casos graves eou envolto pela violência BRASIL 2016 Neste cenário o desejo de que os direitos das mulheres e de crianças sejam respeitados faz com que este debate seja posto diante do sistema judiciário de saúde e da assistência social CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste texto abordamos a saúde a maternidade e a gravidez de mu lheres privadas de liberdade Por meio de uma revisão de literatura percebemos as dificuldades e as experiências destas mulheres Foram unânimes os questionamentos e argumentos para que a vida delas e de seus filhos possam ter na sua centralidade condições saudáveis e dignas Embora os modos de vida no cárcere sejam retratados pelas pes quisas fazse imprescindível cada vez mais dar vozes às mulheres que vivenciam o cotidiano das prisões a fim de assegurar a aproxi mação com a realidade vivida por elas Nesse sentido o mérito está na concepção de gênero utilizada e analisada em muitas pesquisas aqui tratadas A análise da classe social foi apresentada em algumas discussões referentes ao perfil das mulheres No entanto a dimensão de raçaetnia pouco apareceu nas abordagens da temática mostrando a importância de se prevêla em futuras pesquisas Portanto ressaltamos que diante de um assunto tão complexo e essencial para se atender os direitos humanos o diálogo deverá ser alcançado por diversas áreas profissionais E sendo assim concorda mos com Braga 2015 p 543 A academia está longe de sentir na pele o drama da prisão mas não pode se eximir de retratálo como produ ção concreta da in justiça desde um possível lugar de encontro 768 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça REFERÊNCIAS ALMEIDA V P Repercussões da violência na construção da identi dade feminina da mulher presa um estudo de caso Psicologia ciên cia e profissão v 26 n 4 2006 p 604619 ANJOS S DE J S B DOS et al Fatores de risco para o câncer de colo do útero em mulheres reclusas Revista Brasileira de Enfermagem v 66 n 4 p 508513 ago 2013 AUDI C A F et al Inquérito sobre condições de saúde de mulheres encarceradas Saúde em Debate v 40 n 109 p 112124 jun 2016a AUDI C A F et al Exame de Papanicolaou em mulheres encarcera das Revista Brasileira de Epidemiologia v 19 n 3 p 675678 set 2016b BASÍLIO L R M et al Selfconcept dialectical transformation A study in a womens prison Estudos de Psicologia Campinas v 34 n 2 p 305314 jun 2017 BOTELHO L L R DE ALMEIDA CUNHA C C MACEDO M O método da revisão integrativa nos estudos organizacionais Gestão e sociedade v 5 n 11 p 121136 2011 BRAGA A G M Entre a soberania da lei e o chão da prisão a mater nidade encarcerada Revista Direito GV v 11 n 2 p 523546 dez 2015 BRAGA A G M ANGOTTI B Da hipermaternidade à hipomater nidade no cárcere feminino brasileiro SUR Revista Internacional de Direitos Humanos 1222 p 229239 2015 BRASIL Ministério da Justiça e Segurança Pública Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPENMulheres ju nho de 2014 DEPEN Brasília DF 2014a Disponível em httpwww justicagovbrnewsestudotracaperfildapopulacaopenitenciaria femininanobrasilrelatorioinfopenmulherespdf BRASIL Portaria Interministerial Nº 210 de 16 de janeiro de 2014 Institui a Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional e dá outras providências 2014b Disponível em httpwwwjusticagovbrseus direitospoliticapenalpoliticas2mulheres1anexosprojetomu Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 769 lheresportariainterministerial2102014pdf BRASIL Ministério da Justiça e Segurança Pública Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN Atualização junho de 2016 Brasília 2017a Disponível em httpdepengovbr DEPENdepensisdepeninfopenrelatorio20162211pdf BRASIL Lei no 13434 de 12 de abril de 2017 Brasília 2017b BRASIL Conselho Nacional de Justiça Regras de Bangkok regras das nações unidas para o tratamento de mulheres presas e medi das não privativas de liberdade para mulheres infratoras Brasília 2016 Disponível em httpwwwcnjjusbrfilesconteudoarqui vo20160327fa43cd9998bf5b43aa2cb3e0f53c44pdf CALHIARI E A SANTOS L R DA S BRUNINI B C C B De algozes a vítimas dos direitos cegos e nulos à mulher gestante em si tuação de cárcere Psicol argum v 33 n 82 p 393409 2015 CERNEKA H A Homens que menstruam considerações acerca do sistema prisional às especificidades da mulher Veredas do Direito 611 p 6178 2009 DELZIOVO C R et al Atenção à saúde da mulher privada de liber dade Florianópolis Universidade Federal de Santa Catarina 2015 Disponível em httpsaresunasusgovbracervobitstreamhandle ARES7427SaudeMulherpdf DIUANA V et al Direitos reprodutivos das mulheres no sistema pe nitenciário tensões e desafios na transformação da realidade Ciência Saúde Coletiva v 21 n 7 p 20412050 jul 2016 DIUANA V CORRÊA M C D V VENTURA M Mulheres nas prisões brasileiras tensões entre a ordem disciplinar punitiva e as prescrições da maternidade Physis Revista de Saúde Coletiva v 27 n 3 p 727747 jul 2017 DOMINGUES R M S M et al Prevalence of syphilis and HIV in fection during pregnancy in incarcerated women and the incidence of congenital syphilis in births in prison in Brazil Cadernos de Saúde Pública v 33 n 11 21 nov 2017 FERREIRA V P et al Prevalência e fatores associados à violência so frida em mulheres encarceradas por tráfico de drogas no Estado de 770 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Pernambuco Brasil um estudo transversal Ciência Saúde Coleti va v 19 n 7 p 22552264 jul 2014 GUEDES M A Intervenções psicossociais no sistema carcerário fe minino Psicologia Ciência e Profissão 264 p 558569 2006 LEAL M DO C et al Nascer na prisão gestação e parto atrás das grades no Brasil Ciência Saúde Coletiva v 21 n 7 p 20612070 jul 2016 LIMA G M B DE et al Mulheres no cárcere significados e práticas cotidianas de enfrentamento com ênfase na resiliência Saúde em De bate v 37 n 98 p 446456 set 2013 LOPES T C PINHEIRO R Trajetórias de mulheres privadas de li berdade práticas de cuidado no reconhecimento do direito à saúde no Centro de Referência de Gestantes de Minas Gerais Physis Revista de Saúde Coletiva v 26 n 4 p 11931212 out 2016 MATIDA L H et al O HIV e a sífilis no Sistema Prisional Feminino do Estado de São Paulo Bepa Boletim Epidemiológico Paulista v 11 n 125 p 324 2014 RIBEIRO S G et al Gynecologic and obstetric profile of state impris oned females Texto Contexto Enfermagem v 22 n 1 p 1321 mar 2013 MENDES K CAMPOS R C DE GALVÃO C M Revisão integra tiva método de pesquisa para a incorporação de evidências na saúde e na enfermagem Texto contexto enfermagem v 17 n 4 2008 MINAYO M C RIBEIRO A P Condições de saúde dos presos do Estado do Rio de Janeiro Brasil Ciência Saúde Coletiva 217 20312040 2016 SAFFIOTI H Gênero patriarcado e violência 2º ed São Paulo Ex pressão Popular Fundação Perseu Abramo 2015 160p SANTOS M V DOS et al A saúde física de mulheres privadas de liberdade em uma penitenciária do Estado do Rio de Janeiro Escola Anna Nery v 21 n 2 27 abr 2017a SANTOS M V DOS et al Mental Health of Incarcerated Women in the State of Rio de Janeiro Texto Contexto Enfermagem v 26 n 2 26 jun 2017b Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 771 SILVA E F LUZ A M H CECCHETTO F H Maternidade atrás das grades Enfermagem em Foco 21 p 3337 2011 SIMAS L et al A jurisprudência brasileira acerca da maternidade na prisão Revista Direito GV v 11 n 2 p 547572 dez 2015 TAVARES D DE O Imagens da prisão feminina ilustrações presen tes no jornal Só Isso Educação Realidade v 38 n 1 p 137153 mar 2013 TRIGUEIRO D R S G et al AIDS and jail social representations of women in freedom deprivation situations Revista da Escola de En fermagem da USP v 50 n 4 p 554561 ago 2016 VENTURA M SIMAS L LAROUZÉ B Maternidade atrás das gra des em busca da cidadania e da saúde Um estudo sobre a legislação brasileira Cadernos de Saúde Pública v 31 n 3 p 607619 mar 2015 772 MATERNIDADES SEQUESTRADAS PELO PODER PUNITIVO Destituição do poder familiar de mulheres presas Mariana Lins de Carli Silva286 Resumo O texto pretende desenvolver uma análise da destituição do poder familiar de mulheres presas no Brasil evidenciando ilegalida des cometidas a partir de atuações institucionais Elegeuse o método da interseccionalidade de gênero raça e classe aliado às noções bási cas da criminologia crítica como os aportes teóricos aptos a sustentar a reflexão proposta sustentados por dados e relatos que fundamentam essa escolha São mulheres negras e pobres as principais vítimas de ingerência estatal no exercício de suas maternidades marcadas por uma imposição de hierarquias reprodutivas As principais conclusões versam sobre o papel do Estado e das políticas públicas em priorizar a garantia de condições para o exercício da maternidade e da ilegalidade da ingerência do sistema penal para esses casos Palavraschave mulheres presas maternidade poder familiar novo código de processo penal 286 Mestranda em Criminologia na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo USP Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 773 INTRODUÇÃO O presente artigo objetiva investigar o fenômeno da destituição do poder familiar de mulheres aprisionadas A hipótese é de que essa in gerência punitiva na família consiste em uma interdição de materni dades consideradas irresponsáveis ou ilegítimas a partir do contato com o seletivo sistema penal Para tratar desse tema será realizada uma breve síntese do aporte teórico mobilizado para o estudo do sistema penal especialmente do encarceramento feminino seguido de análise do papel das hierarquias reprodutivas determinadas conforme raça e classe para mulheres pre sas mães A partir disso serão exploradas as dinâmicas institucionais que guiam a destituição do poder familiar em casos sem fundamenta ção legal e idônea como para usuárias de drogas e mulheres aprisio nadas Dada a ausência de dados oficiais sobre o tema serão usados como fontes artigos científicos relatos de mulheres gravados em ví deos e reportagens disponíveis em plataformas onlines Por fim será elaborada uma crítica à proposta no Novo Código de Processo Penal que cria uma medida cautelar substitutiva da prisão preventiva que permite a suspensão do poder familiar que na prática seria imposta no contexto das audiências de custódia O texto busca contribuir com a discussão sobre os limites da ingerência do poder público em casos que a motivação consiste na criminalização da pobreza Como ho rizonte de superação sustentase que as principais políticas públicas para combater a violência estudada são o desencarceramento em mas sa e o acesso efetivo e integrado à rede socioassistencial 1 AS GRADES QUE ARTICULAM GÊNERO RAÇA E CLASSE Refletir sobre o sistema penal pressupõe explicitar quais vetores epis temológicos norteiam a análise com o intuito de transparecer ao lei tor ou à leitora as origens da análise que se busca tecer do fenômeno estudado Nesse sentido o presente estudo se baseia nas principais premissas formuladas pela criminologia crítica corrente que em to das as suas vertentes desvenda a dinâmica seletiva do sistema penal 774 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça sintetizada na diferenciação entre imunes e criminalizados segundo as desigualdades nas relações de propriedade e poder BARATTA 1993 p 4950 Especialmente no caso brasileiro a compreensão das fina lidades e da operação do sistema penal exige demarcar sua intrínseca relação com o racismo estrutural mais especificamente na modali dade institucional entendido como aquele que se estabelece nas instituições traduzindo os interesses ações e mecanismos de exclusão perpetrados pelos grupos racialmente dominantes SCHUCMAN 2014 p 91 Nas páginas de uma história oficialmente escrita pela tin ta do mito da democracia racial entendese fundamental racializar a leitura proposta pela criminologia crítica de modo a compreender o racismo enquanto categoria substantiva na estruturação do sistema penal como pressuposto de intelegibilidade do aparato de controle a fim de acessarmos a agenda genocida do Estado arquivando em defi nitivo a leitura pacífica de nossas relações raciais FLAUZINA 2006 s p Ainda sobre a composição do aporte teórico entendese a inter seccionalidade enquanto uma lente analítica potente apta a promover novos ângulos de visão sobre fenômenos sociais complexos O concei to de interseccionalidade deita suas raízes nas demandas do feminis mo negro sobretudo no norteamericano propondo o enfrentamento de diferenças de gênero raça e classe de modo entrelaçado categorias que atuam em uma perspectiva múltipla simultânea e interativa na produção da discriminação CRENSHAW 2012 A constatação de que o direcionamento do poder punitivo estatal é voltado para os cor pos das mulheres negras empobrecidas sinaliza a adequação da análise por meio da interseccionalidade enquanto método como se pretende elaborar neste texto O papel social de gênero racializado guarda em sua história di mensões bastante diferentes das características de docilidade e fragi lidade atribuídas às mulheres brancas Por exemplo para as mulheres negras no Brasil a inserção no mercado de trabalho se diferencia da tradução direta de emancipação feminina Se no período escravocra ta as atividades direcionadas às mulheres negras impunham grandes Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 775 esforços físicos como construir casas fazer colheitas em plantações e carregar cargas pesadas na atualidade isso se atualiza na ocupação de postos de trabalho precarizados materializados no trabalho informal na terceirização e no emprego doméstico Percebese que o encarcera mento busca executar uma moldagem das mulheres encarceradas ao perfil racializado de feminilidade cujo estigma aprofunda os obstá culos a conseguir melhores salários estabilidade jornadas reduzidas benefícios trabalhistas empurrandoas para uma marginalização eco nômica ainda mais intensa e mais controlável O alcance do poder punitivo em relação às mulheres negras pode ser percebido rapidamente pela análise dos dados oficiais sob as len tes analíticas adotadas De 2000 a 2016 a população carcerária femi nina cresceu mais de 700 alcançando o total de 42335 mulheres presas segundo dados oficiais produzidos pelo Ministério da Justiça INFOPEN de 2016 Em uma apertada radiografia das características dessas mulheres sabese que são jovens negras pobres com baixa es colaridade sendo que 74 tem ao menos um filho e 62 são acusadas da prática de tráfico de drogas segundo a mesma fonte Em relação à raça no Acre e no Ceará mais de 90 das mulheres presas são negras Essas mulheres moradoras de regiões periféricas de grandes cidades ou em áreas rurais empobrecidas são colocadas na mira das agências de controle estatal cujo combustível para seleção se baseia no perten cimento à classe com baixo poder econômico e na cor de seus corpos Aprisionadas são submetidas a um cotidiano de tortura PAS TORAL CARCERÁRIA 2016 definido pela insalubridade inerente ao ambiente do cárcere associada às sistemáticas violações de direi tos O dia a dia perpassa o calor das celas superlotadas o raciona mento de água a alimentação precária as raras vagas para estudo e trabalho a dificuldade no acesso à saúde entre outros fatores Finda essa jornada torturante tornamse egressas do sistema prisional e carregam o estigma de criminosa que introduz novos obstáculos para a conquista de melhores postos no mercado de trabalho Esse mesmo estigma produzido desde o primeiro momento da captura pelo sistema penal também afeta o exercício da maternidade que por diversas vezes fica suscetível à possibilidade de ser deslegitima da ou mesmo destituída 776 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 2 DISPUTAS PELA MATERNIDADE E HIERARQUIAS REPRODUTIVAS A maternidade compreende em sua substância uma ampla diversida de de significados todos construídos em momentos históricos especí ficos e localizados em culturas e locais determinados além de necessa riamente articularse a aspectos de raça e classe Em meio às diferentes experiências determinadas por essas condições é possível identificar um conteúdo paradoxal comum a quase todas em maior ou menor medida a maternidade constitui ao mesmo tempo uma especifici dade valorizada o poder de dar a vida uma função social em nome da qual reivindicar direitos políticos ou sociais e uma das fontes de opressão HIRATA et al 2009 p 133 Esse conceito introduz uma visão de disputa das mulheres pela autonomia em suas escolhas de maternidade disputa cujo papel do Estado é fundamental de ser ob servado seja nas políticas públicas de saúde seja no âmbito do siste ma penal pois contribui para a formação de hierarquias reprodutivas Para as mulheres negras brasileiras há que se assinalar a dificul dade de vivenciarem a maternidade com equidade e autonomia Essa dificuldade explicase pela constatação de hierarquias reprodutivas dinâmicas fundadas em um modelo ideal de exercício da maternida de eou da reprodução e cuidado com os filhos Ele é pautado por um imaginário social sexista generificado classista e homofóbico por tanto tratase de um modelo excludente e discriminatório MAT TAR DINIZ 2012 p 114 Conforme MATTAR e DINIZ tratase de uma construção social baseada em uma ideia de normalidade identi ficada estritamente com uma relação estável entre um casal adulto he terossexual monogâmico branco adulto casado e saudável que conta com recursos financeiros suficientes para criar bem os filhos Todas as diferentes relações que estejam fora desse paradigma passam a ser vistas socialmente em maior ou menor grau como ilegítimas irres ponsáveis subalternas No âmbito das práticas institucionais os dados sobre saúde da mulher negra no Brasil revelam em que medida se materializa essa hierarquização da maternidade conforme raça e classe Segundo da dos do Ministério da Saúde 60 das vítimas de mortalidade materna no país são negras e somente 27 das mulheres negras tiveram acom Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 777 panhamento durante o parto Esse mesmo indicador é de 462 para mulheres brancas287 Em 2011 a taxa de mortalidade materna era de 688 a cada 100 mil crianças nascidas vivas no caso de mulheres ne gras e de 506 para brancas288 Constatase que em relação aos direitos reprodutivos o cerceamento condicionase também pelo potencial de controlar eou eliminar a população negra A ideia bastante veiculada de valorização da maternidade não se aplica da mesma forma para mulheres negras e pobres Para esse grupo a maternidade é com preendida como um problema aumento da população da pobreza e se quer controlar o máximo possível a natalidade desse grupo afirma Lucia Xavier289 Se fora do ambiente do cárcere a autodeterminação das mulheres a escolha e as condições para exercer a maternidade de forma saudável são elementos bastante restritos dentro do sistema penal esse cenário é agravado Desde o primeiro momento do contato com a polícia até o cotidiano das prisões a construção da imagem da mulher enquan to transgressora do papel social de mãe é o ponto de partida Com o advento das audiências de custódia por todo o país o contato das mulheres presas em flagrante com juízes e juízas tornase uma das principais oportunidades de julgamentos morais de mulheres A defi nição do ser mulher baseada exclusivamente pelo paradigma branco e elitizado do ser mãe conduz discursos dos agentes do poder judi ciário desde a porta de entrada no sistema penal Você não pensou no seu filho Que tipo de mãe é você É esse exemplo que você quer dar Você pode perder a guarda dela sabia são frases frequente mente pronunciadas por juízes e juízas em audiências de custódia no Estado de São Paulo290 287 Disponível em httpssaudepopularorg201605campanhadecombate aoracismonosuseesquecidapeloministeriodasaude Acesso em 30 abr 2018 288 Disponível em httpswwwvicecomptbrarticlegv35vwdadosviolen cianopartobrasil Acesso em 30 abr 2018 289 Disponível em httppopulacaonegraesaudeblogspotcombr201710ge nocidionasaudedaesterilizacaoashtmlAcesso em 30 abr 2018 290 Nos anos de 2015 e 2017 acompanhei cerca de 50 audiências de custódia no Fórum Criminal da Barra Funda enquanto pesquisadora do Instituto Terra Trabalho e Cidadania ITTC Nessas oportunidades pude escutar as frases mencionadas no texto ditas principalmente por juízes e juízas 778 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Essa visão aliada a outros fatores de política criminal denota uma grande resistência de magistradas e magistrados em aplicar dis positivos legais que garantem a liberdade de mulheres mães como as Regras de Bangkok e o Marco Legal da Primeira Infância este que expandiu as hipóteses de substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar cautelar Atento a essa dificuldade em fevereiro de 2018 o Supremo Tribunal Federal concedeu a ordem no habeas corpus cole tivo nº 143641 para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar às mulheres presas e adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa que sejam gestantes puérperas mães de crian ças de até 12 anos ou de pessoas com deficiência291 Com a dificuldade em conseguir a liberdade o ambiente prisio nal configura um incremento da punição sobre as mulheres presas mães que pode ser visualizado ao menos em quatro trágicas situa ções A primeira consiste na prática de uso de algemas durante e após o parto Mesmo com uma lei específica Lei nº 1343417 para proibir a prática que configura tortura há relatos de que essa realidade ainda permanece292 A segunda tratase da separação forçada do bebê após 6 meses de amamentação Embora o período de seis meses seja o mínimo estabelecido na Lei de Execuções Penais no Estado de São Paulo é instituído como período máximo ocasionando uma abrupta 291 A respeito do tema não se pode esquecer que em 2017 a presidenta do Supre mo Tribunal Federal ministra Carmén Lúcia em atividades desempenhadas no âmbito do Conselho Nacional de Justiça afirmou que passar pelo processo de parto dentro de celas seria descumprir a Lei do Ventre Livre Ainda que mo vida por uma louvável intenção materializada posteriormente na decisão do habeas corpus a comparação com a lei assinada pela Princesa Isabel em 1871 demonstra um total desconhecimento de seu conteúdo que não visava garantir os direitos das crianças muito menos promover a convivência familiar A lei considerava livres todos os filhos e todas as filhas de mulheres escravizadas nas cidos a partir da data da lei enquanto seus pais e mães continuavam escraviza dos Essas crianças cresciam sob custódia dos senhores tendo sua mão de obra explorada ou então eram entregues ao governo Ao completarem 21 anos esses jovens eram marginalizados e eram empurrados para situações de vulnerabi lidade Disponível em httpwwwcnjjusbrnoticiascnj85563numerode mulherespresasmultiplicaporoitoem16anos Acesso em 30 abr 2018 292 Em fevereiro de 2018 o caso de Jéssica Monteiro ganhou repercussão midiá tica após denúncia de ter entrado em trabalho de parto dentro de uma cela em uma delegacia de polícia em São Paulo O que pouco foi comentado é que Jéssica permaneceu algemada à cama após o trabalho de parto contrariando a Lei nº 1343417 Disponível em httpsaopauloestadaocombrnoticias geralomedodeverofilhonascernacela70002196184 Acesso em 30 abr 2018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 779 interrupção do contato da mãe com o bebê como estudado na pesqui sa Dar à Luz na Sombra BRASIL 2015 O terceiro exemplo configu rase com a prática de revista vexatória em bebês e crianças que visitam a mãe presa A despeito de legislações estaduais e de dois projetos de lei federal tramitarem para proibir a revista vexatória sabese que em São Paulo mesmo após a instalação de scanners corporais a prática persiste e atinge também bebês e crianças Nesse contexto repleto de violências institucionais há uma quar ta violência que precisa ser denunciada a suspensão ou perda do poder familiar à revelia dos interesses da mulher mãe e de motivações idôneas 3 DESTITUIÇÃO DO PODER FAMILIAR NO SISTEMA PENAL 31 O gatilho do poder punitivo A gênese do conceito de poder familiar advém da concepção de pátrio poder que era exercido apenas pelo homem na qualidade de pai sen do que somente na ausência do marido as mães estariam autorizadas a chefiar a família Foi a Constituição Federal de 1988 lastreada na con sagração da doutrina da proteção integral de crianças e adolescentes293 que alterou significativamente o conceito que passou a ser identifica do como poder familiar Dessa forma o Código Civil de 2002 passou a permitir a igualdade de exercício do poder familiar tanto pelos pais quanto pelas mães inclusive em famílias homoafetivas294 O acúmulo 293 Destacase o artigo 227 da Constituição Federal caput Art 227 É dever da família da sociedade e do Estado assegurar à criança ao ado lescente e ao jovem com absoluta prioridade o direito à vida à saúde à ali mentação à educação ao lazer à profissionalização à cultura à dignidade ao respeito à liberdade e à convivência familiar e comunitária além de colocá los a salvo de toda forma de negligência discriminação exploração violência crueldade e opressão 294 Art 1634 Compete a ambos os pais qualquer que seja a sua situação conjugal o pleno exercício do poder familiar que consiste em quanto aos filhos I diri girlhes a criação e a educação II exercer a guarda unilateral ou compartilha da nos termos do art 1584 III concederlhes ou negarlhes consentimento para casarem IV concederlhes ou negarlhes consentimento para viajarem ao exterior V concederlhes ou negarlhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município VI nomearlhes tutor por tes 780 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça proveniente dessa trajetória de crítica ao caráter patriarcal da origem do instituto substancia a concepção de poder familiar enquanto um di reitodever conjunto de deveres compartilhados entre pais e mães295 a ser exercido no interesse dos filhos menores de 18 anos DIAS 2013 A articulação entre liberalidade e responsabilidade de pais e mães com o princípio da proteção integral de crianças e adolescentes está circunscri ta a deveres de promover educação saúde alimentação lazer cultura respeito dignidade convivência familiar e comunitária Cabe ressaltar que a corresponsabilidade do Estado para a garan tia dos direitos básicos de crianças e adolescentes por meio de políti cas públicas deve ser abarcada no próprio conceito afastando a exclu sividade da esfera privada em prover a proteção integral e viabilizando condições para o exercício da convivência familiar Se o Estado deter mina as condições para conferir o poder familiar ele também estabe lece as situações em que esse múnus poderá ser destituído e o proce dimento judicial que deve der adotado para esses casos prescritos no Código Civil e no Estatuto da Criança e do Adolescente ECA Das hipóteses estabelecidas destacase a prática de atos contrários à moral e aos bons costumes296 O cristalino caráter genérico dessa prescrição cria uma amplitude de possibilidades que podem ser mobilizadas pelo Poder Judiciário como por exemplo a acusação de ter cometido um crime mesmo sem sentença condenatória transitada em julgado caso de mulheres presas preventivamente ou ainda a condenação criminal tamento ou documento autêntico se o outro dos pais não lhe sobreviver ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar VII representálos judicial e extrajudicialmente até os 16 dezesseis anos nos atos da vida civil e assistilos após essa idade nos atos em que forem partes suprindolhes o consentimento VIII reclamálos de quem ilegalmente os detenha IX exigir que lhes prestem obediência respeito e os serviços próprios de sua idade e condição 295 ECA Art 21 O poder familiar será exercido em igualdade de condições pelo pai e pela mãe na forma do que dispuser a legislação civil assegurado a qual quer deles o direito de em caso de discordância recorrer à autoridade judiciá ria competente para a solução da divergência 296 Código Civil Art 1638 Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que I castigar imoderadamente o filho II deixar o filho em abandono III praticar atos contrários à moral e aos bons costumes IV incidir reiteradamente nas faltas previstas no artigo antecedente V entregar de forma irregular o filho a terceiros para fins de adoção Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 781 por si só O sistema de justiça brasileiro via de regra não considera o fato de a conduta cometida ter como pano de fundo a busca pela garantia de uma vida mais digna para seus filhos como os frequentes casos de furto de leite fralda alimentos remédios pomadas roupas A capitulação no tráfico de drogas raramente é percebida como cami nho viável para a aquisição de renda para sustentar os filhos não raras vezes sem colaboração ou auxílio material e afetivo do pai da criança O varejo de drogas além de ser fonte de dinheiro por vezes facilita o cuidado com as crianças e com o ambiente doméstico sobretudo em contextos marcados pela pobreza No entanto o Poder Judiciário julga o comércio de drogas como um atestado de uma maternidade irres ponsável como demonstrado por pesquisas recentes297 Mas isso não é tudo a política proibicionista e punitiva sobre dro gas mostra suas mais perversas garras quando a mulher mãe é usuária de crack A pesquisa A jurisprudência brasileira sobre maternidade na prisão que realizou uma coleta de acórdãos proferidos no STF STJ e em 4 Tribunais Estaduais no período de 10 anos 2002 a 2012 constatou que no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul havia nove pedidos de manutenção do poder familiar da mãe que se encontrava presa todos foram negados De modo geral fundamen tandose no abandono negligência e ausência ao dever de guarda e cuidado com os filhos Mãe presa em flagrante por envolvimento no crime de tráfico de entorpecentes Pai viciado em crack Apelação Cível 70045900180 Crianças vítimas de descaso e negligência Mãe usuária de crack e atualmente presa por tráfico Situação de extremo risco e vulnerabilidade Apelação Cível 70047165287 Havia mais três pedidos de mudança de guarda também negados às mães E um recurso do Ministério Público deferido para ouvir o consentimento de uma mãe presa que concordava em encaminhar as filhas para a adoção Associase desse modo privação de liberdade e uso de dro gas com perda do poder familiar 297 SIMAS Luciana et al A jurisprudência brasileira acerca da materni dade na prisão Rev direito GV São Paulo v 11 n 2 2015 p 547572 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpi dS180824322015000200547lngennrmiso Acesso em 06 mai 2018 BRAGA Ana Gabriela Mendes FRANKLIN Naila Ingrid Chaves Quando a casa é uma prisão uma análise de decisões de prisão albergue domiciliar de grávidas e mães após a Lei 124032011 Quaestio Iuris Rio de Janeiro vol 09 nº 01 2016 p 349375 Disponível em httpittcorgbrwpcontentuploads201606 Quandoacasaeaprisaoumaanalisedepdf Acesso em 06052018 782 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça No Estado de São Paulo em 2012 foi criado um protocolo que pre via a notificação de hospitais e maternidades às Varas da Infância e Ju ventude quando a equipe médica descobrisse que a mãe era usuária de drogas leiase crack e por isso avaliasse que não teria condições de criar a criança A matéria de jornal Em maternidade para viciada em crack mãe tem alta mas bebê fica298 sintetiza a prioridade em acionar o Poder Judiciário para interromper a maternidade em detrimento de ga rantir políticas públicas que possibilitassem a essas mulheres preservar o vínculo com seus filhos e filhas como tratamento de saúde voluntário programas de transferência de renda e de moradia Embora o artigo 23 do ECA prescreva explicitamente que a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar essa restrição não se verifica no bojo do sistema de justiça criminal Em famílias empobre cidas como a das mulheres encarceradas a dificuldade econômica em garantir todo um espectro de direitos fundamentais pode ser utilizada para desqualificar o exercício da maternidade por meio da associação imediata entre pobres e maustratos ou negligência com filhas e filhos como se situações de violência não ocorressem também em outras classes sociais NASCIMENTO CUNHA VICENTE 2007 Essa desqualificação das famílias pobres tratadas como incapazes deu sus tentação ideológica à prática recorrente da suspensão provisória do poder familiar ou da destituição dos pais e de seus deveres em relação aos filhos MIRANDA 2008 s p Constatase que a mesma criminalização da pobreza que estrutura o encarceramento em massa também pode influenciar no julgamento do sistema de justiça sobre o desempenho da maternidade dessas mu lheres Essa realidade é retratada em dois vídeos gravados e disponibili zados pela Pastoral Carcerária Três mulheres que estavam presas rela tam como perderam o poder familiar de seus filhos de forma bastante violenta por meio de uma articulação perversa entre saúde assistência social e Poder Judiciário299 Na sequência a sínteses desses casos possi bilita uma escuta ainda que remota das vozes dessas mulheres 298 Disponível em httpmfolhauolcombrcotidiano2012121198702em maternidadeparaviciadaemcrackmaetemaltamasbebeficashtml Acesso em 06 mai 2018 299 Disponível em httpswwwyoutubecomwatchvCGlR0Hqsn6k e ht tpswwwyoutubecomwatchvj0UTQmLUg4 Acesso em 06 mai 2018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 783 Telma era usuária de drogas e foi presa Na delegacia disseram que iam avisar a família e levar o bebê para o abrigo A família procu rou saber da criança mas em atendimentos no Judiciário diziam que estava em segredo de justiça e que não poderiam ter acesso a informa ções Depois de um tempo ficou sabendo que o filho foi adotado há 2 anos Telma assinou vários papéis sem saber do que se tratava Eles acham que a gente é obrigada a carregar o nosso filho 9 meses na barriga para do nada pegar e dar nosso filho para os outros sem a gente saber Nem quer saber se a gente quer ou não ficar com a criança Já saem dando nosso filho para os outros Elaine deu à luz e seu bebê ficou internado no hospital porque teve infecção Buscou atendimento junto à assistência social mas o encaminhamento dado foi o envio do bebê para um abrigo sem ela saber Depois de muita procura Elaine encontrou o filho em abrigo Conseguiu visitálo algumas vezes mas havia resistência do abrigo que dizia que ela precisa procurar o juiz Ela foi presa e não soube mais o paradeiro do filho Agora não sei quantos dentes ele tem na boca Eu acho que deram ele porque ele é loirinho dos olhos verdes Uma neguinha ter um filho loirinho dos olhos verdes é Entendeu Paula estava grávida era usuária de crack e tinha um mandado de prisão a ser cumprido Havia iniciado tratamento para parar de usar crack Entrou em trabalho de parto quando tinha usado droga No hospital conta que teve o bebê e a deixaram lá que nem bicho O médico a ofendeu e ela disse que queria falar com a assistência social Procurada a assistente social disse que se ela não calasse a boca tira ria o filho dela Após 15 dias ficou sabendo que o bebê estava sendo levado para um abrigo Chamou sua sogra Perguntou para qual abri go ele ia e não disseram Ficou sabendo na prisão pela Pastoral Carce rária que o filho fora adotado Indignada ela afirma Eu sei dos meus direitos Antes de tirar meu filho tinham que ter procurado o familiar mais próximo Só de tia eu tenho 17 Não por acaso Telma Elaine e Paula são mulheres pobres e ne gras essa é a articulação interseccional que delimita o perfil de mu lheres selecionadas pelo sistema penal e que ficam sujeitas a uma outra 784 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça análise de suas maternidades Outro fator que chama atenção é o papel que o contato com drogas ilícitas desempenhou para ativar atitudes absolutamente violentas de diferentes atores como médicos assisten tes sociais e juízes reforçando a percepção apresentada neste tópico Percebese que o poder punitivo constitui um gatilho que inicia uma série de atos executados por diferentes instâncias movidas pela mes ma ideia de uma maternidade ilegítima irresponsável que deve ser destituída Casos como os narrados dão vida e cor às análises teóricas tecidas exemplificando quão grave é a destituição do poder familiar de mulheres com algum envolvimento com a justiça criminal sem que seja garantido direito de defesa 32 O PROJETO DE NOVO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL E A SUSPENSÃO DO PODER FAMILIAR COMO MEDIDA CAUTELAR Não suficiente as experiências de sofrimento narradas há um novo ataque estatal em jogo e que tem sido pouco comentado Tratase de uma proposta legislativa que prevê a possibilidade de suspensão do poder familiar de mulheres presas enquanto medida cautelar diversa da prisão Essa inovação legislativa está inscrita no projeto de Novo Código de Processo Penal apresentado em 2009 por uma comissão formada por juristas300 e senadores que desde a primeira versão pres creve a possibilidade de suspensão do poder familiar enquanto me dida cautelar301 O artigo estabelece que essa hipótese seria aplicável 300 Juristas integrantes de comissão Antonio Correa Antonio Magalhães Gomes Filho Eugênio Pacelli de Oliveira Fabiano Augusto Martins Silveira Felix Va lois Coelho Júnior Hamilton Carvalhido Jacinto Nelson de Miranda Couti nho Sandro Torres Avelar Tito Souza do Amaral 301 PLS nº 156 de 2009 de autoria do Senador José Sarney PMDBAP Art 521 São medidas cautelares pessoais XIV suspensão do poder familiar Art 592 Se o crime for praticado contra a integridade física bens ou interesses do filho menor o juiz poderá suspender total ou parcialmente o exercício do poder familiar que compete ao pais na hipótese em que o limite máximo da pena cominada seja superior a 4 quatro anos Disponível em httpslegissenadolegbrsdleggetterdocumentod m2966191dispositioninline Acesso em 15 mai 2018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 785 nos casos em que o crime fosse praticado contra a integridade física bens ou interesses do filho menor vinculando a crimes cuja pena má xima seja superior a 4 anos Após a tramitação até maio de 2018 o texto que está sendo discutido na Câmara dos Deputados consiste no substitutivo apresentado pelo deputado federal João Campos302 que manteve boa parte da redação original alterando apenas o requisito da pena máxima do tipo penal que passou para 2 anos Diante da proposta urge dissecar alguns dos principais aspectos de sua ilegalidade e ilegitimidade O primeiro deles se refere à compe tência material para julgamento de casos em que o tema a ser discuti do seja o poder familiar Ainda que o crime imputado seja cometido contra a integridade física do filho menor de dezoito anos o exame de fatos que podem desencadear a imposição da suspensão do poder familiar não é de competência do juízo criminal mas sim das Varas Especializadas da Infância e Juventude conforme prevê o Estatuto da Criança e do Adolescente303 O juízo criminal não foi investido de poder jurisdicional para analisar litígios cujo conteúdo verse sobre o poder familiar ficando adstrito à verificação do cometimento de con dutas tipificadas criminalmente Além disso a inovação legislativa faria com que a aplicação da medida cautelar de suspensão do poder familiar ocorresse principal mente em audiências de custódia procedimento hoje em ampla disse minação pelo país Isso significaria que o instituto criado para avaliar a legalidade da prisão em flagrante averiguar a incidência de tortura 302 Substitutivo João Campos situação de maio de 2018 Art 545 São medidas cautelares pessoais X a suspensão do poder familiar Art 615 Se o crime for praticado contra a integridade física bens ou interesses do filho menor de dezoito anos o juiz poderá suspender total ou parcialmente o exercício do poder familiar na hipótese em que o limite máximo da pena privativa de liberdade cominada seja superior a dois anos Parágrafo único Não é cabível a aplicação da medida cautelar prevista no caput deste artigo se o juízo cível apreciar pedido de suspensão ou extinção do poder familiar formulado com antecedência e baseado nos mesmos fatos 303 Lei nº 806990 art 148 A Justiça da Infância e da Juventude é competente para b conhecer de ações de destituição do poder familiar perda ou modificação da tutela ou guarda 786 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça e violência policial e conceder a liberdade provisória como regra ex pandiria seu poder sendo possível condicionar a liberdade provisória à suspensão do poder familiar Essa medida no contexto desse proce dimento anuncia a inconstitucional antecipação da culpabilidade da pessoa indiciada tendo em vista a proibição de discussão do mérito no bojo das referidas audiências Em outras palavras isso significa que seria admitida a possibilidade de suspender o exercício da maternida de mesmo sem judicialmente ter produzido provas suficientes do co metimento de um crime rasgando princípios constitucionais como a presunção de inocência Verificase assim que as tentativas de acele rar e simplificar o processo de análise da destituição do poder familiar seja pela suspensão seja pela perda atropelam garantias fundamen tais como o direito à convivência em sua família natural e o direito ao exercício da maternidade mitigando o caráter excepcional da medida O segundo aspecto concerne à desnecessidade de uma nova me dida que vise a proteger com urgência crianças e adolescentes amea çados por condutas violentas de seus genitores Para cumprir esse ob jetivo já existem duas medidas cautelares aptas a garantir proteção dos filhos no bojo do processo criminal a proibição de acesso ou frequência a determinados lugares para evitar risco de novas infrações e a proi bição de manter contato com pessoa determinada304 Para a fixação de ambas há que se expor o nexo entre a medida cautelar e os fatos crimi nalizados imputados não sendo permitidas imposições com base em moralismos ou outros juízos de valor alheios ao que se discute Dessa forma se a mulher foi indiciada por furto de alimentos ou tráfico de drogas não se verifica relação direta com um insuficiente desempe nho da maternidade como ocorre na visão moralista e preconceituosa de muitos julgadores Ao contrário por vezes são condutas praticadas em um contexto de ineficiência de políticas públicas de distribuição de renda e almejam efetivar melhores condições de vida para os filhos É justamente a alta carga de arbitrariedade que a proposta com porta o terceiro aspecto a ser criticado Como visto na prática o juízo 304 Artigo 319 Código de Processo Penal II proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando por circuns tâncias relacionadas ao fato deva o indiciado ou acusado permanecer distante des ses locais para evitar o risco de novas infrações III proibição de manter contato com pessoa determinada quando por circunstân cias relacionadas ao fato deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 787 criminal formulará seu entendimento em sede de audiência de cus tódia sem maiores conhecimentos sobre a realidade e o histórico da família o papel de outras pessoas envolvidas nessa relação a visão de psicólogos e assistentes sociais sobre o impacto da medida para a criança e outras possibilidades de encaminhamentos socioassisten ciais que priorizam a manutenção da convivência com a família natu ral A depender de como o juiz ou juíza preside a audiência nem há espaço para escuta que considere de fato a fala da pessoa indiciada Mais ainda quando a pessoa consegue se expressar é interpretada como suspeita desde o início Além disso a previsão de que a medida poderia ser imposta nas possibilidades de crimes cometidos contra interesses dos filhos comporta uma série de interpretações como o fato de entender que a possibilidade de cometimento de qualquer cri me possa ser entendida como necessariamente ir contra os interesses dos filhos Ademais o parágrafo único do referido artigo afirma que não é cabível a aplicação da medida se o juízo cível apreciar pedido de sus pensão ou extinção do poder familiar com antecedência e baseado nos mesmos fatos Embora sua redação pretenda restringir a possibilida de é bastante provável que o alcance do sistema penal seja anterior ao da proteção integral de crianças e adolescentes remanescendo a pos sibilidade de cometimento de um crime ser o gatilho para o sequestro de maternidades vistas como ilegítimas Por todos os argumentos expostos entendese que a hipótese de suspensão do poder familiar no bojo da justiça criminal é absoluta mente incompatível com a garantia de direitos fundamentais CONSIDERAÇÕES FINAIS A relação entre poder punitivo e exercício da maternidade se realiza em várias situações como mais uma punição direcionada especificamen te às mulheres Percebese que como demonstrado a criminalização da pobreza também informa o olhar criminalizador de determinadas maternidades entendidas como ilegítimas e irresponsáveis e que por tanto podem e devem ser interditadas Do outro lado as narrativas de mulheres que tiveram seus filhos retirados de seus braços cuja única 788 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça motivação foi terem sido acusadas de cometer crimes concretizam o tom trágico das consequências da destituição do poder familiar Nes se ponto emerge a primeira conclusão do texto tomar à força bebês e crianças de suas mães selecionadas pelo sistema penal sem que haja comprovada e judicialmente um grave motivo para isso consiste em um verdadeiro sequestro dessas maternidades pelo poder punitivo Com o objetivo de contribuir para o enfrentamento dessa violên cia institucional a argumentação jurídica sustentou a ilegalidade e a ilegitimidade da proposta legislativa que passa a permitir a suspensão do poder familiar no âmbito do sistema de justiça criminal Enten dese assim que discutir judicialmente o poder familiar de mulhe res aprisionadas é incompatível com a jurisdição atribuída à justiça criminal especialmente na esfera das audiências de custódia criadas para atingir outros objetivos constitucionais Esta é a segunda gran de conclusão do trabalho Na contramão dessa iniciativa temse ob servado legislações no sentido de salvaguardar o convívio familiar de filhos e filhas com pais e mães em situação de aprisionamento como exemplo a Lei nº 1296214 que veda a perda do poder familiar em razão de condenação criminal exceto nos casos referentes à conde nação por crime doloso sujeito à reclusão contra o próprio filho ou filha No mesmo sentido o Marco Legal da Primeira Infância Lei n 1325716 ampliou as hipóteses de prisão domiciliar cautelar em ra zão da maternidade Embora ainda exista muita resistência nos tri bunais em aplicála para desencarcerar mulheres essa legislação cris taliza o reconhecimento legal da importância em manter o convívio familiar em liberdade Por fim a terceira conclusão do trabalho referese ao papel do Estado que além de empenhar esforços para o desencarceramento de mulheres precisa assegurar políticas públicas que garantam condi ções econômicas a todas e ampliar o acesso a redes socioassistenciais para o pleno exercício da maternidade Antes de intervir na família que julga ser negligente o Estado deve colaborar com a efetivação dos direitos fundamentais É bem verdade que a autonomia da família não é absoluta em razão da prevalência da dignidade e dos interesses de filhos e filhas No entanto é inadmissível que a suspensão ou perda do poder familiar se desloque dessa medida extrema e última de proteção para ser aplicada de forma banal como mais uma prática de criminalização de mulheres pobres e negras Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 789 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARATTA Alessandro Direitos Humanos entre a violência estrutu ral e a violência penal Trad De Ana Lúcia Sabadell In Fascículos de Ciências Penais Ano 6 Vol 6 Porto Alegre Sergio Antonio Fabris Editor 1993 BRASIL Ministério da Justiça Secretaria de Assuntos Legislativos Dar à luz na sombra condições atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão Brasí lia Ministério da Justiça IPEA 2015 Departamento Penitenciário Nacional Levantamento Nacio nal de Informações Penitenciárias INFOPEN Mulheres 2ª edição 2017 CRENSHAW Kimberle A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero Painel Cruzamentos raça e gênero Ação Educativa 2012 DIAS Maria Berenice Manual de direito das famílias 9 ed São Paulo Revista dos Tribunais 2013 FLAUZINA Ana Luiza Corpo negro caído no chão o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro Dissertação de Mestrado apresentada à Universidade de Brasília 2006 HIRATA Helena et al Dicionário Crítico do Feminismo São Paulo Editora UNESP 2009 MIRANDA Paola Frassinetti Alves de Família sociedade e Estado juntos pela violação dos direitos fundamentais da criança e do adoles cente o instituto da destituição do poder familiar e os abrigos para menores 2008 MATTAR Laura D DINIZ Carmen S G Hierarquias reprodutivas maternidade e desigualdades no exercício de direitos humanos pelas mulheres Interface Comunic Saude Educ v 16 n 40 p 107119 janmar 2012 NASCIMENTO Maria Lívia do CUNHA Fabiana Lopes da VI CENTE Laila Maria Domith A desqualificação da família pobre como prática de criminalização da pobreza Revista psicologia política São Paulo v7 n14 dez 2007 790 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça PASTORAL CARCERÁRIA Tortura em tempos de encarceramento em massa ASAAC São Paulo 2016 Disponível em httpcarcera riaorgbrwpcontentuploads201703RelatorioTortura2016pdf SCHUCMAN Lia Vainer Entre o encardido o branco e o branquíssi mo branquitude hierarquia e poder na cidade de São Paulo São Pau lo Annablume 2014 Parte VI CIDADE REDES ARTICULAÇÕES MOVIMENTOS SOCIAIS FORMULAÇÕES DE POLÍTICAS PÚBLICAS E CONTROLE SOCIAL This course is conducted 793 FORMAÇÃO DE MULTIPLICADORES PARA O ACOLHIMENTO DE MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO Relato de uma experiência extensionista em educação feminista Luciana da Silva Oliveira305 Paula Land Curi306 Resumo A proposta deste trabalho é apresentar uma possibilidade de intervenção da universidade pública na sociedade através de uma experiência educativa feminista voltada para a construção coletiva de conhecimentos sobre gênero violências e cuidados a Formação de multiplicadores para o acolhimento de mulheres em situação de vio lência gênero A metodologia utilizada nesta ação extensionista de ca pacitação e qualificação de discentes e profissionais que trabalhavam com violência de gênero foram as Oficinas em Dinâmica de Grupo uma prática de intervenção psicossocial que pode ser desenvolvida em diferentes contextos seja ele pedagógico clínico comunitário ou de política social Realizada no formato de oficinas a formação de multiplicadores constituiuse em uma potente experiência políti copedagógica que possibilitou uma interação dialógica entre estu dantes e profissionais que trabalham com violência contra a mulher produzindose debates relevantes que articularam formação gênero e feminismo e que colocaram em análise as práticas e processos produ zidos peloas profissionais junto às mulheres em situação de violência Palavraschave formação gênero violência feminismo 305 Doutoranda do Programa de PósGraduação em Psicologia da UFF Niterói 306 Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da UFF Niterói 794 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça INTRODUÇÃO A universidade pública enquanto espaço de produção de conheci mentos de formação e de integração com a comunidade por meio de atividades de ensino pesquisa e extensão deve estar comprometida com processos e práticas que favoreçam a reflexão dosas estudantes a criação de novos problemas e o desenvolvimento de uma atitude crí tica frente a problemáticas centrais de nossa época Considerando que ainda hoje vivemos em uma sociedade patriarcal fortemente marca da por desigualdades discriminações e opressões de gênero sendo muitas as violências sofridas pelas mulheres seja no âmbito público ou privado humilhações desigualdade e precariedade no mercado de trabalho violência conjugal violência sexual assédios abusos etc podemos afirmar que a violência contra a mulher constituise uma dessas problemáticas que demandam uma atitude crítica para o seu combate e enfrentamento Colocamse assim algumas questões Qual o compromisso das universidades com os direitos das mulheres Que formação essas instituições têm oferecido para osas futurosas e atuais profissionais lidarem com toda a complexidade que perpassa o cuidado com as mulheres em situação de violência Como a univer sidade pode contribuir para a criação o desenvolvimento e o aprimo ramento de políticas para mulheres Quais as possibilidades de inter venção dessas instituições no que concerne à promoção da igualdade de gênero e ao combate à violência contra as mulheres Este trabalho apresenta e discute uma possibilidade de inter venção da universidade pública na sociedade por meio de uma ex periência educativa feminista voltada para a construção coletiva de conhecimentos sobre gênero violências e cuidados a Formação de multiplicadores para o acolhimento de mulheres em situação de vio lência gênero Esta ação de formação para a capacitação e qualificação de discentes e profissionais que trabalham com violência de gênero foi desenvolvida no Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense UFF durante o segundo semestre de 2017 no âmbito do projeto de extensão Por que também temos de falar de violência que é vinculado ao Programa UFF Mulher 307 Nesse espaço de for 307 O Programa UFF Mulher é uma ação extensionista da PróReitoria de Exten são PROEX que desenvolve ações voltadas para a promoção do diálogo e de trocas de saberes entre a Universidade e a sociedade por meio de atividades Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 795 mação os saberes e as experiências dos sujeitosparticipantes foram reconhecidos e produziramse discussões relevantes que articularam formação feminismo e psicologia intensificando reflexões sobre a atuação dosas profissionais de psicologia e também de outras áreas junto às mulheres em situação de violência A metodologia utilizada nessa formação foram as Oficinas em Di nâmica de Grupo Afonso 2000 uma prática de intervenção psicos social que pode ser desenvolvida em diferentes contextos seja ele pe dagógico clínico comunitário ou de política social Tratase de uma metodologia participativa que abrange interrelações e contribuições de diferentes teorias e autores como o grupo operativo de PichonRi vière e a pedagogia da autonomia de Paulo Freire Apresentamos e discutimos neste trabalho a experiência da for mação descrevendo a metodologia utilizada e dando destaque para o enfoque dialógico reflexivo e problematizador que valoriza a di mensão da experiência na construção coletiva do conhecimento de modo a contribuir para o reconhecimento e para o fortalecimento da atuação de discentes e de profissionais diante do problema da violên cia de gênero FORMAÇÃO UNIVERSITÁRIA E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER REPENSANDO NOSSOS PROCESSOS EDUCATIVOS A violência contra a mulher se configura como um problema social grave frequentemente legitimado pela sociedade patriarcal que ao banalizar e naturalizar tal violência nega às mulheres direitos funda mentais e põe em risco suas potencialidades colocandoas diante de situações de risco medo incerteza e silenciamento que compreendem a necessidade de realizar a valorização do papel da extensão universitária frente às questões sociais e de relações de gênero principalmen te das mulheres O projeto Por que também temos que falar de violência vinculase ao Programa UFF Mulher e tem suas ações centradas na temática da violência contra a mulher apostando prioritariamente em duas formas de ação ações e eventos no território e prestação de serviço à comunidade sob a forma de atendimento psicológico às mulheres em situação de violência de gênero 796 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça O enfrentamento desse fenômeno complexo e multifacetado requer análise de múltiplos fatores incorporação da perspectiva de gênero no cuidado abordagem multiprofissional e articulação inter setorial dosas profissionais que trabalham com a violência de gênero visto que além de ser uma questão que convoca um novo olhar da para a sociedade tem muitas especificidades Trabalhar com violên cia de gênero requer assim conhecimentos amplos não só da área de inserção dosas profissionais mas também e especialmente das relações de poder que perpassam as relações de gênero das políticas públicas intersetoriais e da sociedade em geral A questão que se coloca é que por mais que alguns cursos de psi cologia e também de outras áreas ligadas à saúde e assistência che guem a oferecer disciplinas que abordam os estudos de gênero há uma lacuna entre estudálos e trabalhar com violência contra a mulher O segundo pressupõe não só o conhecimento teórico das questões que atravessam toda a discussão de gênero mas também o conhecimento de questões muitas vezes de ordem prática concernentes às políticas públicas ao manejo de casos que envolvem violência e mesmo ao su jeito Ou seja convoca também uma capacidade do sujeito a se dispor a escutar o outro lidar com seus próprios afetos e realizar interven ções sem perder de vista a reflexão sobre as estruturas de poder que se colocam no contexto em questão Demanda do sujeito um fazer que é ação e reflexão crítica simultaneamente uma práxis que como Paulo Freire 1987 nos lembra não deve reduzirse nem ao teoricis mo nem ao ativismo Assim essa lacuna na formação acadêmica que não aborda a concretude das especificidades dos casos que envolvem situações de violência contra a mulher repercute negativamente na prática dosas profissionais que se sentem pouco preparadosas para a abordagem de temas delicados Além disso vale também questionar se os modelos tradicionais de formação acadêmica frequentemente baseados em uma concep ção de educação vertical e hierárquica que valoriza a racionalidade e a cognição investe nos especialismos e se efetiva por meio de uma prá tica bancária de transferência de depósito de conhecimentos doa educadora noa educandoa Freire 1987 de fato têm colaborado para qualificar a atuação dosas futurosas profissionais Nesse modelo em geral há uma valorização da racionalidade em detrimento de um Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 797 olhar que ao considerar a integralidade da questão poderia acolher os afetos e as experiências dos e das estudantes que muitas vezes nos di ferentes âmbitos de sua vida também lidam com diversas situações de violência Por exemplo como ficam as estudantes mulheres que pelo atravessamento das questões de gênero e com frequência de raça e classe também podem sofrer todo tipo de discriminação explora ção e opressão tanto nos espaços públicos na própria universidade nos estágios na rua etc como no âmbito privado de suas relações afetivas e familiares Na sala de aula quando porventura conteúdos relacionados a gênero e violência são abordados há espaço para que essas estudantes possam compartilhar suas experiências e afetos É nesse sentido que diante das demandas que se colocam na formação de profissionais para o enfrentamento da problemática da violência de gênero processos educativos voltados para a construção coletiva e compartilhada do conhecimento que rompem com a lógica tradicional da educação podem ser uma valiosa ferramenta no fortalecimento do fazer dosas futurosas profissionais Partindo de uma perspectiva feminista adotamos uma concep ção de educação transformadora baseada no diálogo na escuta e no respeito entre educadora e educandoa buscando valorizar respei tar e incorporar o saber forjado nas experiências de vida dosas edu candosas enquanto um dos aspectos do processo de construção do conhecimento Vale destacar também que assim como Freire 1987 consideramos que a educação é sempre um ato político e que as práti cas educativas devem ser pautadas na formação crítica dosas educan dosas o que não ocorre por meio do simples depósito de conteúdos mas sim através da problematização dos sujeitos em suas relações com o mundo por meio do diálogo com oa educadora ambosas consi deradosas investigadoresas críticosas Porém para efetivar essa educação política comprometida com a formação crítica dosas educandosas por meio da problematização é importante que osas educadoresas se ocupem de certas tarefas de senvolvendo algumas estratégias pedagógicas como por exemplo re pensar permanentemente a prática educativa usar técnicas e recursos didáticos que estimulam o senso crítico a criatividade e o interesse tratar os conteúdos de forma a articular teoria e prática política bus car relacionar o local com o global atenção constante às mudanças contextuais às necessidades de cada momento etc 798 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Procuramos nos ocupar dessas tarefas durante o planejamento e a realização da experiência em educação feminista aqui apresenta da em que oferecemos uma formação introdutória para o trabalho com mulheres em situação de violência por meio de uma metodologia dialógica e participativa as Oficinas em Dinâmica de Grupo Afonso 2000 Por meio dessa formação voltada para estudantes profissionais e voluntáriosas que trabalhavam ou tinham interesse pela questão da violência contra a mulher abordamos algumas temáticas fundamen tais para o enfrentamento da violência de gênero fazendo uso de fer ramentas técnicas atividades vivenciais e debates que de algum modo pudessem contribuir para o trabalho cotidiano de acolhimento e aten dimento às mulheres em situações de violência AS OFICINAS EM DINÂMICA DE GRUPO E A FORMAÇÃO DE MULTIPLICADORES As Oficinas em Dinâmica de Grupo constituemse em um trabalho es truturado com grupos que independentemente da quantidade de en contros tem como foco uma questão central que o grupo se propõe a refletir e elaborar em um contexto social Tal elaboração almejada nas Oficinas não se reduz a uma reflexão racional mas envolve os sujeitos de forma integral modos de pensar agir e sentir Afonso 2000 Per mite assim que o grupo reflita elabore e promova mudanças pessoais e sociais se inserindo numa perspectiva emancipatória que assegura aos indivíduos espaço de reflexão logo de reconstrução de práticas e hábitos Essa metodologia possibilita o uso de técnicas lúdicas que faci litam o processo de motivação interação reflexão elaboração e mu dança no grupo Porém as atividades lúdicas devem ser usadas com cuidado e sempre como um meio e não como um fim em si mesmo sendo importante combinálas com momentos de reflexão e de elabo ração através da circulação da palavra e da troca de experiências Este trabalho deve contar ainda com um planejamento flexível que possi bilite mudanças no planejamento inicial permitindo assim o acompa nhamento do processo do grupo Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 799 As oficinas que compuseram a Formação de multiplicadores para o acolhimento de mulheres em situação de violência de gêne ro realizadas na UFF no segundo semestre de 2017 contaram com a participação de alunas da graduação da UFF que integravam o projeto de extensão Por que também temos que falar de violência em que realizavam atendimentos psicológicos e outras ações voltadas para as mulheres em situação de violência Participaram também três profis sionais parceiras do projeto duas psicólogas e uma assistente social vinculadas a serviços de saúde eou assistência social acessados pelas mulheres em situação de violência Atuamos como facilitadoras deste grupo de formação que contou com oito encontros de três horas cada realizados quinzenalmente com uma média de quinze participantes Descrevemos a seguir o modo como os encontros se organizaram narrando mais detalhadamente o primeiro encontro pela sua relevân cia para a compreensão da construção da proposta de trabalho O objetivo do primeiro encontro da formação era realizar o aco lhimento e o conhecimento inicial das participantes por meio da apre sentação dos objetivos das oficinas e de um momento de apresentação das próprias participantes também tinha como objetivo construir o contrato do grupo por meio de acordos e combinados importantes para o seu funcionamento bem como levantar as expectativas e os te mas que seriam trabalhados ao longo da formação Assim em um pri meiro momento após as facilitadoras darem as boas vindas e apresen tarem os objetivos da formação foi proposta uma técnica de interação entre as participantes buscando facilitar a apresentação de cada uma para o grupo As participantes formaram duplas e após conversarem durante alguns minutos sobre suas trajetórias vida e sobre as experiên cias que as constituem enquanto mulheres cada uma apresentou sua dupla para as demais Após esse primeiro momento foi entregue uma folha de papel em branco para cada participante e foi pedido que elas escrevessem uma carta de acordo com duas instruções a carta deveria ter um destinatário e deveria responder a seguinte pergunta qual a sua questão com a violência de gênero O objetivo dessa atividade foi criar condições que favorecessem a emergência das experiências de cada uma das presentes com relação ao tema central da oficina sen sibilizando as participantes para o início do trabalho com a violência de gênero Após finalizarem a escrita cada uma realizou a leitura de sua carta em voz alta para o grupo Esse compartilhamento das cartas 800 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça foi muito rico nos permitindo começar a perceber a relação das inte grantes do grupo com a temática por meio dos diferentes elementos acionados na escrita das cartas possibilitando assim o início do deba te sobre a relevância de uma formação voltada para o enfrentamento da violência de gênero Após esse momento de mobilização e sensibilização mais geral para o tema da violência de gênero foi realizada uma atividade com o intuito de levantar as expectativas com relação aos conteúdos mais específicos a serem abordados ao longo dos encontros da formação Explicamos que pela nossa experiência de trabalho nas políticas pú blicas para mulheres em situação de violência considerávamos que al gumas temáticas eram fundamentais de serem abordadas ao longo da formação e como estávamos sentadas em círculo espalhamos no cen tro da roda no chão da sala alguns cartões com esses temas escritos Eram eles socialização de gênero desigualdade de gênero tipos de violência contra a mulher ciclo da violência mitos da violência Lei Maria da Penha rede de enfrentamento à violência Deixamos cartões em branco e canetões ao alcance das participantes e então pedimos que elas pensassem e escrevessem livremente outros temas e assun tos que achassem relevantes para a formação surgindo assim outras temáticas masculinidades mulheres trans mulheres negras corpo romantização da violência violência obstétrica cuidado violência e uso de álcool e outras drogas os impactos da violência no corpo e na saúde mental das mulheres em situação de violência movimentos fe ministas Por fim as participantes foram movendo os cartões espalha dos no chão e experimentando diferentes propostas e configurações de modo que construímos conjuntamente um ordenamento para os temas a serem trabalhados ao longo dos encontros da formação Che gamos assim ao seguinte planejamento geral 1º encontro Apresentação e construção da proposta 2º encontro Socialização de gênero e desigualdades de gênero 3º encontro Masculinidades 4º encontro Corpo Mulheres negras Mulheres trans 5º encontro Mitos sobre a violência Ciclo da violência Ro mantização da violência Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 801 6º encontro Lei Maria da Penha Lei nº 113402006 Tipos de violência Violência obstétrica 7º encontro Violência e uso de álcool e outras drogas Impactos da violência no corpo e na saúde mental das mulheres Cuida dos Rede de enfrentamento à violência contra a mulher 8º encontro Movimentos feministas Avaliação do trabalho de senvolvido Combinamos que esse ordenamento das temáticas poderia ser modificado que o planejamento poderia ser revisto ao longo do trabalho de acordo com as necessidades do grupo e com o modo como os debates e dis cussões fossem se desenrolando nos encontros Também construímos o contrato do grupo estabelecendo com as participantes alguns com binados para o bom funcionamento do trabalho que diziam respeito por exemplo ao horário e local dos encontros sigilo uso de celulares etc As participantes também propuseram que ao final de cada en contro fosse construída uma frase coletiva que sintetizasse o trabalho realizado no dia Esses combinados foram escritos em uma cartolina à medida que foram sendo pactuados Ao final desse encontro intro dutório foi realizada uma breve avaliação do trabalho realizado no dia e as participantes demonstraram grande expetativa para o início do trabalho com os temas propostos A frase criada coletivamente para sintetizar o trabalho do dia foi histórias cruzadas construindo cami nhos remetendo às narrativas e às experiências compartilhadas entre as participantes por meio das cartas que escreveram Conforme previsto na metodologia das Oficinas em Dinâmica de Grupo AFONSO et al 2006 buscamos estruturar os demais encon tros em que trabalhamos as diferentes temáticas mencionadas ante riormente em 3 momentos 1 Um momento introdutório breve em que era retomado verbalmente o que havia sido trabalhado nos encon tros anteriores e as participantes eram preparadas para o trabalho a ser realizado no dia seja através de uma dinâmica ou técnica de aqueci mento ou mesmo de uma conversa que atualizava a proposta daquele encontro 2 Um momento intermediário que tomava a maior parte do encontro em que o grupo se envolvia com atividades variadas com o intuito de refletir e elaborar o tema trabalhado Nesta parte do en 802 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça contro recorremos a diferentes ferramentas e recursos para facilitar a elaboração da temática do dia técnicas e dinâmicas variadas fil mes documentários participação de convidadas que trabalhavam ou pesquisavam o tema para o compartilhamento de suas experiências etc esses recursos eram usados seguidos ou mesmo intercalados com momentos de conversa e reflexão sobre os sentimentos e ideias das participantes sobre as situações vividas e experimentadas no encon tro sempre buscando expandir essas vivências para pensar situações cotidianas parecidas relacionadas com o tema abordado Também era um momento de compartilhar informações sobre o tema em articu lação com as experiências e saberes partilhados pelas participantes possibilitando composições e a produção de novos sentidos sobre a temática trabalhada no encontro 3 Um momento de fechamento em que era realizada uma síntese do trabalho realizado no dia construin dose coletivamente uma frase que resumia esse trabalho também era realizada uma breve avaliação do encontro pelas participantes e pelas facilitadoras que juntas refletiam e trocavam impressões sobre as atividades desenvolvidas E por fim era apresentado o tema a ser trabalhado no encontro seguinte Uma vez que é necessária abertura e flexibilidade na realização dos processos formativos é importante destacar que esses três mo mentos que estruturavam os encontros não eram estanques ou enri jecidos de modo que sempre havia a possibilidade do planejamento ser revisto e alterado dependendo do que acontecia em cada encontro e também das necessidades colocadas pelas participantes Nesse sen tido é fundamental que as facilitadoras dos processos formativos se atentem para o caráter vivo e dinâmico desse trabalho que pode ser atravessado por imprevistos das mais diversas ordens situações novas inesperadas que rompem com o planejamento inicial e demandam inventividade O último encontro da formação contou com a presença de uma militante feminista para compartilhar sua experiência junto aos mo vimentos de mulheres contribuindo para a discussão do tema pre visto para o dia os movimentos feministas Além do trabalho com o tema do dia foi reservada uma parte do encontro para a realização de uma avaliação de todo o processo de formação e uma despedida por meio da elaboração do fim da oficina Neste momento retomamos em Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 803 conjunto com as participantes o trabalho realizado desde o primeiro encontro e os materiais produzidos ao longo dos encontros ficaram expostos na sala para facilitar o rememorar de todo o processo De um modo geral as participantes avaliaram positivamente o processo tanto com relação à metodologia utilizada quanto com relação aos conteú dos trabalhados Deram destaque positivo para algumas atividades vi venciais realizadas durante a oficina e para o uso de alguns recursos como filmes e documentários Um ponto apontado como problemáti co foi com relação ao 7º encontro em que planejamos trabalhar com várias temáticas mas não tivemos tempo hábil para aprofundálas fi cando o trabalho com alguns conteúdos prejudicado A RELEVÂNCIA DA EXPERIÊNCIA DO DIÁLOGO E DA PROBLEMATIZAÇÃO NOS PROCESSOS FORMATIVOS A experiência educativa aqui apresentada buscou fortalecer a compreensão crítica das participantes por meio de um enfoque dialó gico e reflexivo construído em torno de temas e problemas relaciona dos à violência contra a mulher cujo debate desafiou o grupo a refle xão e aprendizagem No processo de construção do trabalho consideramos a impor tância de que as temáticas trabalhadas na oficina mobilizassem o gru po relacionandose à experiência das participantes tocando em suas necessidades receios dúvidas conflitos e possibilidades estimulando assim a participação e a troca de experiências Afonso et al 2006 Por isso à priori não tínhamos uma programação fechada sendo o planejamento construído a partir do diálogo com o grupo possibili tando que as integrantes indicassem temáticas de seu interesse e tam bém participassem ativamente do ordenamento dos conteúdos que seriam trabalhados nos encontros Para que a dialogicidade que se iniciou na escolha dos conteúdos da formação perpassasse todo o processo educativo foi fundamental que durante os encontros lançássemos mão de diferentes estratégias com destaque para a escuta atenta e a valorização das experiências das participantes todas mulheres que de algum modo já vivenciaram em suas vidas situações de opressão discriminação ou mesmo de violência 804 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça pelo simples fato de serem mulheres devendo pois serem reconheci das como sujeitos do conhecimento e da ação política transformadora o diálogo problematizador entre as diferentes perspectivas dessas mu lheres e o estímulo constante de um posicionamento crítico diante das questões de gênero e dos aspectos naturalizados da vida cotidiana Levando em consideração uma perspectiva feminista que aponta para a importância da experiência considerada como desencadeadora da produção do conhecimento essas estratégias dialógicas utilizadas na formação de multiplicadores nos direcionaram para a construção de uma práxis educacional feminista em que a formação se deu num processo permanente de reflexão sobre as experiências individuais e coletivas das participantes por meio de técnicas ferramentas e in tervenções que alargaram a compreensão crítica de diferentes temas que atravessam as discussões de gênero e consequentemente tam bém ampliaram o engajamento para a transformação social Para tal salientamos mais uma vez o quanto foi importante ouvir as partici pantes das oficinas em seus anseios suas experiências e seus saberes trazendo suas perspectivas sobre as diferentes temáticas relacionadas a gênero e violência Ou seja uma exigência pedagógica fundamental nesse processo foi ter sempre como foco os sujeitos participantes do processo educativo e o contexto no qual estavam inseridos Portanto enquanto facilitadoras da formação nosso esforço foi no sentido de promover um diálogo autenticamente problematizador buscando dar visibilidade para as diferentes perspectivas em jogo e também possibilitar novas composições entre nossas experiências e saberes e as das participantes incorporando uma perspectiva crítica aos saberes da experiência que amplia o engajamento em um agir transformador CONSIDERAÇÕES FINAIS A experiência educativa feminista apresentada e discutida nes te trabalho indica a possibilidade de construção coletiva de conhe cimentos sobre violência gênero e cuidado por meio da valorização das experiências dosas educandosas e do diálogo problematizador que possibilita o despertar de uma visão crítica dosas educandosas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 805 Esse despertar crítico dosas educandosas só é possível quando assumimos a impossibilidade de uma educação baseada na neutrali dade e quando reconhecemos que a educação é política e que é neces sário adotar um posicionamento crítico sobre a situação dos grupos violados pela lógica dominante para que a mudança seja possível Foi nesse sentido que a formação de multiplicadores buscou promover uma educação comprometida com a transformação da condição das mulheres em especial daquelas em situação de violência A violência contra a mulher exige descolonizar as práticas pro fissionais repensando modelos de intervenção tradicionais princi palmente aqueles modelos voltados para a individualidade É preci so muita atenção para enquanto profissionais nos nossos diferentes campos de atuação em especial nas políticas públicas não operacio nalizarmos lógicas opressivas racistas sexistas tencionando práticas e intervenções hegemônicas que não levam em conta as especificida des dos contextos socioculturais das mulheres Tratase de promover alternativas comprometidas com uma perspectiva política e social que favoreçam as condições para superação da situação de violência po tencializando a crítica social sobre o papel da mulher na sociedade e sobre as formas que esta sociedade cria para enfrentar a violência Assim é inegável a importância de uma formação diferenciada para osas profissionais que trabalham com o atendimento de mulhe res em situação de violência O enfrentamento à violência de gênero as transformações nas vidas das mulheres em situação de violência exige a formação crítica dos sujeitos dosas futurosas profissionais de nossa sociedade E sem dúvida a universidade pública tem muito a contribuir com este processo de mudança sendo um dos caminhos fundamentais a formação de atores políticos engajados É neste sentido que podemos dizer que a formação de multiplicadores para o acolhimento de mulheres em situação de violência gênero realizada no formato de oficinas representou uma potente experiência políticopedagógico possibilitando uma interação dialógica entre estudantes e profissionais que trabalham com violência contra a mulher produzindose debates relevantes que articularam formação gênero e feminismo Isso contribuiu para uma construção compartilhada de conhecimentos que colocou em análise as práticas e processos produzidos peloas profissionais junto às mulheres em si 806 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça tuação de violência potencializando não só a qualidade dos atendi mentos e intervenções realizadas mas também as discussões acerca dos dilemas tensões e as perspectivas inerentes à temática REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AFONSO L Oficinas em dinâmica de grupo um método de inter venção psicossocial Belo Horizonte Edições do Campo Social 2000 AFONSO L et alii Oficinas em dinâmica de grupo na área da saú de São Paulo Casa do Psicólogo 2006 FREIRE P Pedagogia do Oprimido 17ª ed Rio de Janeiro Paz e Ter ra 1987 807 A OCULTAÇÃO DO PROTAGONISMO FEMININO COMO FATO SOCIAL E PRODUTO DA DESIGUALDADE ECONÔMICA Beatriz Neder Mattar308 RESUMO O presente trabalho visa tratar do fenômeno de ocultação do protagonismo e do domínio de espaços pelas mulheres tratados a partir de perspectiva da construção histórica e suas consequências sociais para o contexto atual Nesse sentido caracterizase esta como Fato Social por sua frequência e produto da desigualdade econômi ca respectivos objetos de estudo dos sociólogos clássicos Émile Dur kheim e Karl Marx PALAVRASCHAVE Ocultação Protagonismo Mulher Fato social Desigualdade econômica 01 INTRODUÇÃO Historicamente a mulher e toda a simbologia envolta no feminino têm sido registradas a partir de perspectivas masculinas e consequen temente gerado valorização de pontos específicos alvos de desejo ou interesse do homem Exemplos tradicionais constam nos livros bíbli cos quase em totalidade escritos por figuras masculinas por muito tempo a única fonte de conhecimento para diversas comunidades e de interpretação restrita aos líderes das igrejas também homens que retratam a mulher como figura frágil e submissa Além da Bíblia uma 308 Graduanda do Curso de Direito Universidade Federal do Pará BelémPA beatriznmattargmailcom 808 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ilustração ainda anterior e influente para composição de parte do es tereótipo nela presente fazse na Vênus de Willendorf a estatueta de pequenas medidas que traz enorme carga informativa acerca do belo feminino apreciado no período Paleolítico já contemplando o corpo a partir do culto à fertilidade Apesar da antiguidade das referências acima as heranças dei xadas por elas refletem em preconceitos gerados atualmente pela sobreposição de questões subjetivas sobre dados concretos É o caso de mulheres serem ainda vistas como sexo frágil que necessita de proteção e maiores cuidados mesmo que a taxa de mortalidade seja menor quando comparada à masculina ou que mantenham dupla jor nada de trabalho ao arcar com maior quantidade de compromissos domésticos Dessa forma a intuitiva relação entre o ser mulher e a necessá ria apreciação pelo belo físico independente do padrão comparativo ao que se refere é causa direta para que haja na figura feminina uma ideia de fonte de sedução fruto de desejo e não de conhecimento ca paz de gerar aprendizado ou apreciação contundente Sendo esta le vada à direção de caráter passivo enquanto o homem atinge a posição ativa e determinante Nesse sentido comprovam o exposto a opinião expressa por Nietzsche na qual Comparando no seu conjunto homem e mulher pode dizerse A mulher não teria engenho para se enfeitar se não tivesse o instinto do papel secundário que desempenha prejudi cial pela importante influência científica moral e filosófica a ele rela cionada Da mesma maneira que as repressões durante o movimento sufragista de luta pela igualdade de participação no cenário político entre os gêneros em forma de fortes campanhas publicitárias foram emitidas na tentativa de depreciar a imagem da mulher que se mobili zava em favor do movimento O objetivo era de inibir tal protagonis mo atacando pontos considerados de compromisso obrigatório Por isso cartazes com frases como a suffragettes home ou lar de uma sufragista aliadas à imagem de uma casa desorganizada com crianças chorando e um marido insatisfeito depois de um dia de trabalho eram utilizados como instrumento de intimidação Tendo em vista tal realidade as teorias de Émile Durkheim e Karl Marx são passíveis de análise diante de comparação entre seus respec Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 809 tivos objetos de estudo e todo o processo de minimização do reconhe cimento de conquistas e colaborações femininas para a humanidade Por isso cabe visualizar a ocultação do protagonismo das mulheres tanto como Fato Social quanto como produto de desigualdades eco nômicas refletidas na produção e no mercado diante de trabalhos fe mininos 02 O FATO SOCIAL DE DURKHEIM E A TRADICIONAL SUBMISSÃO POR GÊNERO Objeto de estudo da sociologia Durkheimiana o Fato Social é concei tuado pelo autor sobre duas bases necessárias a exterioridade e a coer citividade Sendo a nomeação para ações típicas de uma comunidade com existência própria e não dependente da individualidade de suas partes componentes Assim posto o sociólogo parte da premissa de que padrões humanos de comportamento são impostos pela socieda de ao indivíduo em suas dimensões particulares partindo de fora para dentro com tom imperativo ainda que não obrigatório ou necessário mas que quando não realizado impreterivelmente gera repressão e repreensão social A fim de ilustrar sua teoria Durkheim aponta os tradicionais de veres de esposo e as práticas religiosas como Fatos Sociais ambos exis tentes pelo estabelecimento de estereótipos e consequente cobrança aplicada sobre cada pessoa para que corresponda às expectativas gera das E é a partir deste ponto que nos é permitido pensar a submissão da mulher como coisa de igual natureza Coisa pela necessária identi ficação deste fenômeno social como externo ao sujeito que inclusive o promove para que seja possível o estudar cientificamente e com preender seu processo de causalidade E de igual natureza pois parte de contribuições específicas que tornam padrão ambos os fenômenos É dessa maneira que lamentavelmente a ocultação do protagonismo feminino nas diversas comunidades é classificado Fato Social normal devido alto grau de desenvolvimento em inclusive mais do que a média das sociedades em correspondente avanço além de ser condicionado por circunstâncias gerais do cotidiano coletivo Facilmente perceptível em mesma proporção que o perfil de 810 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça esposo apontado pelo sociólogo o papel qual se espera que venha a ser assumido pela mulher em distintos aspectos sociais é externo e coercitivo Expressão deste Fato Social são as convencionais discriminações recorrentes no ambiente de produção e transmissão do conhecimento científico Até a conclusão do ensino acadêmico básico e fundamental professoras preenchem os cargos de mestras os quais quando direcio nados às crianças sugerem automaticamente o acréscimo de cuidados como alimentálas e às fazer dormir Enquanto em graus de ensino médio técnico ou superior mulheres são minorias especialmente em áreas de comum presença masculina é o caso de Engenharias ou mesmo especialidades de profissões como a medicina na qual a neu rocirurgia é quase em totalidade dominada por homens Mulheres modelos e atrizes são facilmente reconhecidas pela tradição de sua atividade ligada ao culto do corpo e da beleza à ex posição física para atrair atenção enquanto filósofas químicas físicas e historiadoras dificilmente são lembradas sem que haja esforço para apontarmos pelo menos um nome em cada uma destas categorias Estudiosos clássicos de diversas áreas do conhecimentos são homens e protagonizam sem dúvidas os espaços de riqueza intelectual 03 DESIGUALDADE ECONÔMICA INFLUENTE À SUBORDINAÇÃO FEMININA No que se refere aos estudos de Karl Marx e sua teoria sociológica fundamentada no materialismo histórico a ocultação do protagonis mo feminino pode ser analisada a partir da realização de analogias e comparações entre os conceitos de caráter econômico elaborados pelo autor e o processo de ocupação dos espaços sociais pela mulher durante os séculos Para isso fazse necessário esclarecer que o sociólogo acreditava no desencadeamento de um processo histórico pela frequência da in teração humana em busca da satisfação de suas necessidades e não pela determinação e coordenação de um Espírito Absoluto conforme defendido por Hegel Sendo assim a concepção marxista se estende Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 811 ainda para crença de que os aspectos social político e intelectual ge rais se condicionam em favor do modo de produção material em vigor Seguindo com o estudo da sociedade baseado na economia es pecialmente na vida material do homem Marx afirma que os indi víduos participam voluntaria ou involuntariamente de relações de produção inerentes ao desenvolvimento do processo produtivo e componentes do que seriam as forças produtivas De maneira tal que estas forças seriam o conjunto de matériaprima meios de produção e os trabalhadores envolvidos ou seja todos os instrumentos do traba lho enquanto as relações de produção seriam as interações humanas recorrentes durante atividades produtivas tanto em formato homem homem quanto homemambiente externo Consequentemente diante do processo produtivo os homens desenvolvem relações entre si à medida que suas forças de produção progridem ou seja que ele vive Além de considerar que mudanças nestas relações estão portanto condicionadas a transformações des tas forças produtivas Tais forças e as relações apresentadas compõem a estrutura econômica e por isso a infraestrutura de uma sociedade influente em todas as suas dimensões Para gerar constatações visto que a organização da sociedade é produto da ação recíproca dos indivíduos dependendo de como rea gem às forças produtivas não há livre escolha sobre a formação des ta comunidade por parte de cada pessoa Estamos condicionados a determinadas características a depender da classe social que nos en contramos e se ocupamos ou não o lugar de proprietário E logo se ocupamos cargo de dominância Tendo sido exposta parte da teoria podemos abordar o caso da desigualdade de gênero focando a submissão feminina a partir da perspectiva de que mulheres historicamente nunca estiveram no topo desta cadeia de dominação do processo produtivo e que afirman do conforme Marx que este condiciona todo o restante da vida social de alguém elas automaticamente estão subjugadas aos homens Temse como axioma marxista que classes passam a ser domi nantes sobre outras através do uso da força e que esta força apesar de surgir em razão de uma dominação econômica relativa às posses dos meios de produção não se restringe a ele O domínio econômico 812 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça que se manifesta pelo exercício dos interesses do proprietário possui também um âmbito ideológico capaz de considerar opinião geral de uma comunidade a opinião proferida por sua classe de maior poder pois diante de soberania econômica e política passa a haver difusão de valores desta classe para as demais proporcionando a consolidação do poder dos dominantes É o que observamos face à tradicional concepção de que homens possuem capacidades e direitos além dos concedidos às mulheres um pensamento que por ter caráter dominativo não se restringe aos que dominam proprietários e neste caso pais e maridos mas em grande parte atingem os dominados Mulheres repreendem outras por manterem durante a vida relações próximas e pessoais ainda que de amizade com vários homens ou promovem discursos como os que validam o dever feminino absoluto de dedicação à maternidade enquanto homens possuem a opção de exercer ou não a atividade de pais Da mesma forma que parcela dos proletários acredita estar correta a relação ainda que abusiva de dominação sobre eles mulheres também se encontram nesta espécie de prisão invisível e de automanutenção Se não há dominação feminina ou ainda equilíbrio entre o espa ço ocupado por pessoas de sexos distintos não costuma haver prota gonismo feminino e quando houver será comumente ofuscado Não haverá visibilidade ainda que exista capacidade para tal Exemplo re cente foi observado na premiação do Globo de Ouro 2018 na qual apesar de pautas como o assédio sexual e a representatividade terem sido discutidos houve perceptível manifestação de insatisfação diante da indicação somente de homens na categoria melhor diretor ainda que nomes como Greta Gerwig diretora de Lady Bird filme vence dor na categoria musicalcomédia tenham sido destacados Vale lembrar que em 75 anos somente uma mulher foi premiada por dire ção Barbra Streisand em 1984 Não distante desta realidade muitas mulheres assinaram obras com pseudônimos masculinos ou mesmo com nomes de seus par ceiros para que seus trabalhos fossem igualmente divulgados ou não sofressem repreensão do mercado Registramse assim casos como os de Charlotte Brontë Mary Ann Evans e Joanne Rowling conhecida propositalmente por J K Rowling devido assinatura somente de suas iniciais para que não houvesse presunção de que seria uma mulher Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 813 Dessa forma retornando à teoria de Karl Marx constatase que a classe de força material também será a de força espiritual e que as ideias dominantes passarão a ser a expressão do ideal a ser seguido nas relações de produção e portanto sociais Assim se o desenvolvimento e reconhecimento na vida social depende do trabalho e o conjun to das relações forma a estrutura econômica da sociedade que será base para sua superestrutura de aspectos jurídicos e políticos somente quando houver transformação das forças produtivas e consequente mente das relações de produção haverá revolução social e transfor mação das super e infraestruturas Diante do exposto somente após tal revolução poderá existir po der do proletariado ou por analogia da mulher em ambiente no qual é subjugada a fim de que possam ser superadas barreiras arcai cas de desigualdade que recaem sobre os direitos individuais e a eco nomia Menores salários em cargos semelhantes recusa de emprego devida possibilidade de gravidez ausência ou mínimas promoções em cargos profissionais justificadas por falta de autoridade são exemplos que precisam ser superados ainda que não haja tamanha revolução 04 CONCLUSÃO Conforme apresentado o trabalho buscou expor a problemática da ocultação do protagonismo feminino como consequência de extenso processo histórico cercado pela estereotipização e geração de precon ceitos além de demonstrar sua atualidade através da exemplificação e relacionálo aos objetos de estudo de dois dos clássicos teóricos da sociologia Assim pela infelizmente recorrência nas sociedades sua exte rioridade e coercitividade pode esta subordinação da mulher ser con siderada Fato Social teorizado por Émile Durkheim assim como pode ser classificada como fruto produto de desigualdade social estudada por Karl Marx desencadeada pelas peculiaridades do processo pro dutivo no qual a mulher sempre ocupou posição marginalizada Cabe recordar que nenhum dos dois autores se referiu ao caso de submissão feminina nas obras e definição de conceitos analisados o trabalho foi construído a partir de associação com exemplos de pos 814 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça sível comparação mas não semelhantes como a descrição de deveres do irmão e do marido realizada por Durkheim assim como foi reali zada analogia no que se refere à relação de dominação entre proprie tário e proletário e homens e mulheres consideradas ambas de grave natureza REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS SELL Carlos Eduardo Sociologia Clássica Marx Durkheim e We ber Petrópolis Editora Vozes 2015 DURKHEIM Émile As regras do método sociológico São Paulo Martins Fontes 2007 MARX Karl Contribuição à crítica da economia política São Pau lo Editora Expressão Popular 2008 815 MOBILIZAÇÃO FEMININA PARA A CONQUISTA DE DIREITOS DA POPULAÇÃO COM ALERGIA ALIMENTAR Maria Cecilia Cury Chaddad 309 Fernanda Mainier Hack310 Resumo Em um contexto de grande urbanização e industrialização com o aumento do consumo de alimentos ultraprocessados as mu lheres que já respondem de forma sobrecarregada pelos afazeres do mésticos e pelas refeições das famílias são ainda mais sobrecarregadas quando advém o diagnóstico de alergia alimentar em um membro da família em razão da necessidade de mudança de hábitos alimentares e de maior atenção na leitura de rótulos dos produtos industrializados Diante desse cenário um grupo de mulheres empoderase e busca a mudança na legislação de forma a sensibilizar e mobilizar a sociedade para o tema da alergia alimentar e o Poder Público para formulação de política pública consistente na regulamentação da rotulagem dos principais ingredientes que causam alergia alimentar Palavraschave direito à cidade direito à saúde direito humano à alimentação adequada direito à informação desigualdade de gênero mobilização social ativismo feminino 309 Doutora em Direito pela PUC SP Mestra em Direito Constitucional pela PUC SP Graduada em Direito pela PUC SP 310 Graduada em Direito pela UERJ Procuradora do Estado do Rio de Janeiro 2000 Coordenadora do movimento Põe no Rótulo 816 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça INTRODUÇÃO Em um cenário de maior urbanização mais tempo dedicado ao tra balho e ao deslocamento depara o trabalho e residência tanto por homens quanto por mulheres há um distanciamento entre o pro dutor do alimento e o consumidor com o consequente aumento do consumo de alimentos industrializados desde a matériaprima até os denominados produtos ultraprocessados Tais produtos ultraproces sados são definidos no Guia Alimentar para a População Brasileira como formulações industriais feitas inteiramente ou majoritariamente de substâncias extraídas de alimentos óleos gorduras açúcar amido proteínas derivadas de constituintes de alimentos gorduras hidro genadas amido modificado ou sintetizadas em laboratório com base em matérias orgânicas como petróleo e carvão corantes aromatizan tes realçadores de sabor e vários tipos de aditivos usados para dotar os produtos de propriedades sensoriais atraentes BRASIL 2014 p 41 Neste contexto o rótulo dos alimentos ganha especial relevância por se tratar do meio pelo qual o produtor deve se comunicar de modo satisfatório com o consumidor vale dizer é papel do rótulo informar ao consumidor o que cada qual dos produtos disponibilizados à venda contém e quais os riscos que o seu consumo pode gerar A leitura dos rótulos dos alimentos é medida recomendada pelo já mencionado Guia Alimentar a todas as pessoas mas para alguns grupos é conditio sine qua non para sua segurança e bemestar como no caso da população que convive com alergia alimentar cujo trata mento depende única e exclusivamente da correta adesão à dieta de exclusão de um dado alergênico ou mais a depender do número de alimentos que causa reação alérgica naqueles indivíduos Este fato resulta em uma sobrecarga ainda maior nas mulheres às quais costumam ser as responsáveis pelos cuidados com toda a fa mília o que se agrava quando há algum dos familiares com alergia ali mentar condição de saúde que consoante será apresentado no tópico a seguir demanda uma série de cuidados especiais e constantes Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 817 1 ALERGIA ALIMENTAR COMO PROBLEMA DE SAÚDE PÚBLICA A alergia alimentar pode ser definida como uma reação imunológica do organismo a alimento consumido ou após contato desse alimento com a pele ou o com trato respiratório causando reações classificadas em leves ou severas BRASIL 2012 p 67 SOLÉ 2018 p 14 As formas de manifestação das alergias alimentares dependem do mecanismo envolvido na manifestação alérgica se a reação imu nológica é mediada por IgE ou não As reações não mediadas por IgE costumam ser tardias em geral são menos graves apresentandose como dermatites vômitos diarreias dentre outros podem levar de horas ou até mesmo dias para se manifestar e trazem impacto sig nificativo na qualidade de vida e no desenvolvimento do alérgico e também impacta seus familiares Por sua vez as reações mediadas por IgE costumam ser imediatas e em um período de até duas horas da ingestão ou contato podem surgir urticárias inchaçosedemas falta de ar entre outros sintomas podendo causar a anafilaxia forma mais grave de reação alérgica que pode levar uma pessoa alérgica à mor te principalmente se não socorrida a tempo e de maneira adequada BEND 2006 p 284 Em virtude de diversos fatores como genética hábitos de vida consumo de alimentos ultraprocessados e excesso de higiene aqui incluídos por exemplo o uso excessivo de antibióticos esterilização constante dos ambientes menor contato com a zona rural o número de casos de alergia alimentar vem aumentando consideravelmente ao redor do mundo TANG 2016 p 260 A alergia alimentar é um problema de saúde pública em cresci mento no mundo todo e também no Brasil sendo que a população brasileira com alergia alimentar está estimada em 6 das crianças menores de 3 anos e 35 da população adulta segundo a Associação Brasileira de Alergia e Imunologia ASBAI SOLÉ 2018 p 9 Da dos preliminares sobre incidência de anafilaxia forma mais grave de reação alérgica que pode levar à morte no Brasil que apontam a uma prevalência em torno de 62 sendo a alergia alimentar a segunda causa de anafilaxia logo atrás das reações a medicamentos GAGETE 2017 p 9 818 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Qualquer alimento pode ser responsável por uma reação alérgica entretanto os alimentos que mais provocam alergia são leite soja ovo trigo peixe crustáceos amendoim oleaginosas SOLÉ 2018 p 14 e uma vez diagnosticada a alergia o paciente é orientado a retirar o ali mento que lhe causa reação o alérgeno de sua alimentação e demais formas de contato Vale dizer o tratamento depende unicamente da observância da dieta prescrita pelo profissional de saúde que neces sariamente passa pelo controle rígido do que é ingerido e tocado por quem tem alergia alimentar Deste fato resulta a necessidade de cuidado extremo com o que se oferta a uma pessoa com alergia alimentar envolvendo atenção na escolha dos ingredientes utilizados no preparo de alimentos e da leitu ra de rótulos dos produtos industrializados Com isso até meados de 2016 quando houve a entrada em vi gor da regulamentação da rotulagem de alergênicos pela Agência Na cional de Vigilância Sanitária Anvisa aprovada em junho de 2015 muitos produtos traziam uma lista de ingredientes pouco legível com fonte pequena falta de contraste entre a lista e o fundo do rótulo in formação em área de selagem ou torção Ademais os rótulos se limitavam a trazer ingredientes com no menclatura técnica ou em outra língua pouco acessíveis ao consu midor brasileiro como caseinatos ghee whey albumina lisozima dentre outros sem a devida tradução para linguagem de leigos os consumidores A situação era agravada pela falta de uniformidade no que tange à prestação de informações em relação ao risco da presença de traços de alergênico em virtude de algum insumo ou do processo de produção alguns rótulos traziam informações sobre este risco e outros simples mente omitiam este dado Acrescentese que muitas vezes o serviço de atendimento ao consumidor não estava atendendo por não ser horário comercial ou se recusava a prestar a informação requerida fatos que impediam o consumidor cidadã ou cidadão de fazer escolhas seguras no ato da compra Estudo realizado pelo Instituto da Criança da Unidade de Aler gia e Imunologia do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 819 Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo HCFMUSP apontou número bastante considerável de reações alérgicas em razão da falta de qualidade das informações nos rótulos sendo que 395 das reações alérgicas foram relacionadas a erros na leitura de rótu los 184 relacionados a má interpretação ou falta de entendimen to dos rótulos dos produtos Registrese que o estudo recomendava como uma das estratégias para orientação de pacientes com alergia a existência de legislação sobre rotulagem de alergênicos BINSFELD 2009 Passados mais de 18 meses da entrada em vigor da legislação que regulamenta a rotulagem destacada dos principais alergênicos acreditamos que este resultado será bastante distinto caso o estudo seja refeito Nesse sentido temse que o cuidado com a saúde das pessoas com alergia alimentar implica na necessidade de se viabilizar que este grupo possa manter a dieta isenta de alergênicos a fim de evitar da nos ao seu bemestar Temse portanto a constatação de que há que se garantir meios para que esta dieta possa de fato ser adequada às necessidades da população alérgica Com isso um alimento somente pode ser visto como adequado se ele atender às necessidades dietéti cas especiais de uma dada parcela da população sendo condição para a fruição de outros direitos de grande importância como o direito à saúde Acrescentese que a retirada de um ou mais alimento da die ta não pode resultar na exclusão social da pessoa que convive com a alergia alimentar Assim o pleno exercício do direito à cidade dessa parcela da população LEFEBVRE 2001 p 118 engloba a garantia de seu direito a ter acesso a uma alimentação adequada tanto no acesso econômico a bens alimentares face quantitativa quanto em relação à sua segurança e inocuidade face qualitativa BURITY 2010 Assim a dieta de uma pessoa com alergia alimentar deve ser ade quada não apenas do ponto de vista nutricional mas deve conside rar ainda a necessidade de exclusão dos ingredientes que desen cadeiam reações alérgicas para garantia dos seus direitos à saúde e à vida Surge então o dever de o Estado garantir o acesso à informação clara nos rótulos sobre a composição e riscos dos produtos postos no mercado Afinal o direito em especial os direitos humanos tutela não 820 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça apenas os interesses da maioria mas também e especialmente os interesses de cada um dos seres humanos individualmente considera dos de modo que se possa garantir a igualdade material entre todos Isto porque a efetiva concretização do direito à igualdade passa pela consideração das diferenças donde se conclui serem necessárias não apenas políticas universalistas mas outras específicas endere çadas a grupos socialmente vulneráveis PIOVESAN 2008 p 22 com a efetiva consideração de suas especificidades e peculiaridades de modo que possam ser integrados à sociedade da melhor e mais segura forma possível Resta claro portanto que era urgente a proteção da população com alergia alimentar a qual demanda uma informação qualificada sobre a composição e sobre o risco da presença de dados alimentos nos produtos industrializados como forma de fruição de seus direitos à saúde e à alimentação adequada CHADDAD 2014 2 DEVER DE PROTEÇÃO DA POPULAÇÃO COM ALERGIA ALIMENTAR Entre os direitos fundamentais incidentes no caso em tela destacam se a proteção dos direitos à saúde à alimentação adequada e à infor mação que resultam na garantia do direito à vida inerente à dignida de humana Internacionalmente os direitos à saúde e à alimentação adequa da são reconhecidos no âmbito global pela Declaração Universal dos Direitos Humanos art25 e pelo Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais PIDESC art11 e 12 sendo rele vante destacar que o Comitê de Direitos Econômicos Sociais e Cul turais das Nações Unidas recomenda no Comentário Geral nº 12 que a partir do poder do Estado de estabelecer políticas públicas se jam adotadas medidas para garantir o direito humano à alimentação que abrange três elementos a saber disponibilidade acessibilidade e adequação sendo que este último abrange as ideias de adequação no que se refere à quantidade e à qualidade do alimento UNITED NATIONS 1999 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 821 No que se refere à legislação nacional a Constituição Federal de 1988 assegura a todos os cidadãos os direitos fundamentais à saúde à alimentação e também à informação art 6º e 196 e inciso XIV do artigo 5º e impõe ao Estado o dever de salvaguardar tais direitos Destarte cabe ao Poder Público através da adoção de políticas públicas em especial por meio da regulação das relações de consumo o importante papel de definir parâmetros a serem observados para que se garanta meios para exercício dos direitos do consumidor espe cialmente no que tange à vida e à saúde desses consumidores além de ações no sentido de assegurar a sua implementação inclusive no que se refere ao direito à alimentação adequada Nesse sentido ganha especial importância a garantia do direito à informação à população que convive com alergia alimentar parcela da população que conforme exposto no item precedente necessita para fins de tutela de seu direito à saúde de informações precisas acerca do conteúdo dos produtos alimentícios e de eventual risco de conta minação cruzada com um dos principais alergênicos durante o seu processamento Por tal razão o Estado deve agir no sentido de salvaguardar os direitos deste grupo de pessoas sendo válido registrar que aquele que a legislação classifica como consumidor é um cidadão isto é sujeito dos direitos constitucionalmente garantidos Cumpre registrar ainda que para além da constante leitura dos rótulos os cuidados com a alergia alimentar exigem readaptação da dieta com exclusão do alimento causador da alergia e recaem sobre tudo sobre as mulheres que assumem na maior parte das vezes a responsabilidade pelas refeições da família MILLS 2016 p 120 e a atenção com os familiares como será visto no capítulo a seguir No ce nário abordado em item acima no qual inexistia legislação impondo o dever de destacar os principais alergênicos a falta de clareza nos rótu los significava um peso ainda maior sobre as mulheres resultando em evidente situação de agravamento da desigualdade de gênero tema ao qual se dedica o tópico a seguir 822 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 3 DESIGUALDADE DE GÊNERO A partir da segunda metade do século passado como fruto da grande urbanização das longas jornadas de trabalho e da intensa industriali zação passase a dispor de menor quantidade de tempo para os afaze res domésticos especialmente para realizar o preparo de refeições da família com o consequente aumento do consumo de alimentos indus trializados WHO WORLD HEALTH ORGANIZATION 2016 p 107 RIBEIRO 2017 p 190 Mesmo com alguns avanços e rearranjos sociais como o direito ao acesso ao mercado de trabalho e alteração na legislação matrimo nial quando a esposa deixa a condição de relativamente incapaz e passa a ser ao menos formalmente reconhecida em igualdade de con dições com o homem311 as mulheres ainda se veem com dificuldades de conciliar as vidas profissional e privada ITABORAÍ 2017 p 102 Considerando a existência de uma assimetria na divisão das ta refas domésticas o trabalho feminino fora de casa têm forte influên cia nessa mudança no padrão de consumo familiar que passa a ter maior ingestão de alimentos industrializados de preparação rápida SCHLINDWEIN 2014 p 50 Assim em que pese grandes avanços em termos de igualdade formal com a Carta de 1988 igualdade de homens e mulheres em direitos e obrigações art 5º I proibição de diferença de salários de exercício de funções e de critério de admissão art 7º XXX reco nhecimento da união estável art 226 3º igualdade de direitos e deveres referentes à sociedade conjugal art 226 5º planejamento familiar como livre decisão do casal art 226 7º é dever do Estado criar mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações fa miliares art 226 8º ainda há muitos avanços a serem feitos para garantia da igualdade material BARROSO 2018 p 162 Neste ponto cumpre registrar a sobrecarga maior nas mulheres inseridas no mercado de trabalho mas em uma sociedade ainda pa triarcal as mulheres brasileiras enfrentam uma dupla jornada isto é ao lado de suas atividades profissionais acumulam muitas vezes sem 311 Somente em 1962 após a aprovação da Lei nº 412162 Estatuto da Mulher Casada foi conferida a capacidade para o exercício de direitos pela mulher casada e foi permitido o livre exercício da profissão Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 823 apoio de outra pessoa as atividades domésticas que incluem o pre paro de alimentos e cuidados da casa além do cuidado com os filhos A título de ilustração registrese que em 2015 a jornada total média semanal das mulheres superava em 75 horas a dos homens BAN DEIRA 2016 p 57 IPEA 2017 p 4 Com isso uma realidade que já é bastante desigual na qual 90 das mulheres realizam trabalho doméstico contra 50 dos homens inclusive no grupo das mulheres que exercem atividade remunerada variando de 94 a 795 conforme a renda IPEA 2017 p 4 se torna ainda mais assimétrica quando alguém da família recebe o diagnósti co de alergia alimentar O impacto na vida das mulheres é significativo eis que como dito anteriormente o diagnóstico de alergia alimentar determina a re visão da dieta do alérgico alimentar ou mesmo da mãe que amamen ta quando indicada a ela a dieta de exclusão Impõese assim mudança de conduta com a adoção de novas estratégias para que as pessoas que convivem com a alergia alimentar possam alimentarse com segurança excluindo aqueles alimentos que causam reações Tornase indispensável neste cenário conhecer a origem dos alimentos sua composição e modo de produção especialmente dos alimentos processados e ultraprocessados além da necessidade do preparo caseiro de refeições adaptadas Tratase portanto de questão de gênero e por tal razão muitas mulheres buscam redes de apoio presenciais e virtuais para troca de informações e experiências formadas sobretudo por mulheres ainda que abertas à coletividade para darem conta destas novas demandas 4 O MOVIMENTO PÕE NO RÓTULO E A APROVAÇÃO DA RDC 2615 Neste contexto de informações precárias e insegurança alimentar o ativismo feminino ganhou um contorno particular mães em busca da informação sobre a composição dos alimentos processados e ul traprocessados passaram a fazer contatos frequentes com os serviços 824 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça de atendimento ao consumidor das empresas que na maior parte das vezes não solucionavam a questão excluindo este grupo do acesso aos alimentos industrializados A partir daí começou a ser tecida uma rede de mulheres que ao se perceberem em grupo empoderamse individualmente conside radas e também como um coletivo Neste contexto a partir de 2014 mulheres se reuniram em um movimento social então denominado Põe no Rótulo com o objetivo de conscientizar a população brasileira sobre a alergia alimentar mobilizandoa para apoiar a mudança das regras de rotulagem no Brasil de modo que os rótulos passassem a destacar a presença dos principais alergênicos e informar o risco de contaminação cruzada Liderado por mulheres mães de bebês e crianças com alergias alimentares que somando as suas expertises profissionais articula ramse em rede para mobilizar a sociedade visando à adoção de po lítica pública para a proteção da população com alergia alimentar in cluindo ações que visavam à regulamentação da rotulagem destacada dos principais alimentos alergênicos nos rótulos dos alimentos No primeiro semestre de 2018 o Põe no Rótulo contava com o apoio virtual de mais de 130 mil pessoas em sua página do Facebook sendo certo que as mulheres representavam a maioria das apoiado ras 85 sendo a maior parte na faixa entre 25 e 44 anos de acordo com dados da rede social Facebook o que reafirma que o impacto do diagnóstico da alergia alimentar de um membro da família recai especialmente sobre as mulheres O impacto e a relevância do tema e do movimento que colaborou fortemente para a maior visibilidade da população com alergia ali mentar na sociedade extrapolou o universo virtual ganhando apoio de reconhecidas instituições brasileiras e estrangeiras O coletivo feminino mobilizou a sociedade civil para parti cipar ativamente do processo de discussão da legislação de rotu lagem de alergênicos em curso na Anvisa resultando em recorde de participação popular nas etapas de consulta pública audiência pública e nas reuniões públicas da Diretoria Colegiada da agência reguladora para tratar da regulamentação da rotulagem de alergê nicos em alimentos Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 825 Vale reiterar que até a entrada em vigor da legislação que trata da rotulagem destacada de alergênicos em alimentos a Resolução de Diretoria Colegiada nº 26 de 02 de julho de 2015 RDC nº 2615 os alimentos processados muitas vezes traziam nomes técnicos ou não informavam de maneira clara e precisa sua composição resultando em reações alérgicas em patente desrespeito às normas de Direito do Consumidor A legislação aprovada pela Anvisa definiu como principais aler gênicos para fins de rotulagem de alimentos embalados na ausência do consumidor os seguintes produtos trigo centeio cevada aveia e suas estirpes hibridizadas crustáceos ovos peixes amendoim soja leites de toda espécie de mamífero amêndoa avelã castanhadeca ju castanhadoBrasil ou castanhadopará macadâmias nozes pe cãs pistaches pinoli castanhas e o látex natural Findo o prazo de 12 meses para a adequação dos rótulos à nova regulamentação os alimentos fabricados a partir de 3 de julho de 2016 passaram a ter que necessariamente destacar os principais alergêni cos de modo destacado caixa alta negrito cor contrastante com a do fundo do rótulo registrandose que os produtos comercializados an tes desta data poderiam ser comercializados até o fim do seu prazo de validade Como produto desta mobilização feminina a aprovação da RDC nº 2615 que garante acesso a rótulos de alimentos que destacam a presença dos principais alergênicos resultou em inegável melhoria no grau de socialização da população que convive com alergia alimen tar grupo de pessoas igualmente merecedor de respeito por parte da sociedade SOLÉ 2018 p 62 com a consequente garantia aos seus direitos à informação à alimentação adequada à saúde e à vida Re sultou ainda no fortalecimento de mulheresmães de crianças com alergia alimentar que apesar de ainda se encontrarem sobrecarregadas com a dupla jornada e a reponsabilidade pelos afazeres domésticos e cuidados com o alérgico alimentar passam a ganhar mais indepen dência com o acesso a informações legíveis e acessíveis nos rótulos Neste sentido o Põe no Rótulo exemplo de movimento social emancipatório SANTOS 2003 p 71 levou mulheres em rede a ocu parem espaços de decisão promovendo a democracia ativa e influen ciando na adoção de política pública de proteção a uma minoria até 826 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça então invisibilizada Mulheres que passam a ter o papel e voz ativos da condição de agente de mudança promotoras dinâmicas de transfor mações sociais e influenciando a natureza da discussão política e be neficiando a vida de homens mulheres e crianças SEN 2010 p 246 CONCLUSÃO A alergia alimentar assim definida como resposta exagerada do siste ma imunológico a um ou mais alimentos impõe a necessidade de exclusão dos alimentos alergênicos Em um contexto no qual as mulheres assumem posições no mer cado de trabalho sem que haja ao mesmo tempo uma readequação na divisão das tarefas domésticas os cuidados com familiares alérgi cos costumam onerar sobretudo quando não unicamente as mulhe res exponenciando a desigualdade de gênero Como consequência aumentase o consumo de alimentos pro cessados e produtos ultraprocessados sendo fundamental especial mente quando há familiares alérgicos a leitura dos rótulos tarefa que nem sempre é simples Até a entrada em vigor da legislação de alergênicos aprovada pela Anvisa os rótulos pouco informavam em virtude da ilegibilidade da lista de ingredientes da tecnicidade da nomenclatura de alguns dos ingredientes e da omissão quanto ao risco de contaminação cruza da Neste contexto muitas pessoas alérgicas cuja segurança dependia sobretudo da adesão à dieta apresentavam reações que poderiam ser evitadas caso os rótulos fossem mais claros e adequados às necessida des deste grupo de pessoas O ônus da identificação de produtos seguros que neste período englobava a leitura atenta dos rótulos a busca por mais informações nos serviços de atendimento aos consumidores e em grupos virtuais de apoio recaía sobretudo sobre as mulheres ainda que estas já es tivessem com sua jornada pessoal e profissional bastante extenuante Esta experiência pessoal de busca de alimentos seguros para si nutrizes em dieta de exclusão e para seus filhos alérgicos levou mu lheres a se unirem com o objetivo de mobilizar a sociedade para a Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 827 importância de rótulos mais claros e adequados para a população que convive com alergia alimentar levando à criação de movimento social que conquistou alcance e reconhecimento nacional e internacional e que foi um dos catalizadores do processo que resultou na aprovação da legislação que cuida das regras de rotulagem destacada de alergêni cos em alimentos e bebidas A mobilização feminina do Põe no Rótulo influenciou a adoção de política pública consistente na aprovação da legislação de rotula gem de alergênicos pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária marco na vida de diversas famílias resultando na possibilidade de mais segurança e inclusão no contexto social da vida urbana com a possibilidade concreta de exercício do direito da cidade por esta par cela da população bem como garantia dos direitos à saúde à alimen tação adequada e à informação REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BANDEIRA L M et al As pesquisas sobre uso do tempo e a pro moção da igualdade de gênero no Brasil In Uso do tempo e gênero organizadoras Fontoura N et al Rio de Janeiro UERJ 2016 BARROSO L R Um outro país Belo Horizonte Forum 2018 BEND L G et al Anafilaxia guia prático para o manejo Rev bras alerg imunopatol Vol 29 Nº 6 2006 BINSFELD B de L et al Conhecimento da rotulagem de produtos in dustrializados por familiares de pacientes com alergia a leite de vaca in Rev Paul Pediatr 2009273296302 BRASIL Ministério da Saúde Guia Alimentar para a População Bra sileira Brasília Ministério da Saúde 2014 Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde De partamento de Atenção Básica Política Nacional de Alimentação e Nutrição 2ª ed Brasília Ministério da Saúde 2012 BURITY V et al Direito Humano à Alimentação Adequada no Con texto da Segurança Alimentar e Nutricional Brasília DF Ação Brasi 828 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça leira pela Nutrição e Direitos Humanos ABRANDH 2010 CHADDAD M C C Rotulagem de Alimentos o direito à informa ção à proteção da saúde e à alimentação da população com alergia alimentar Curitiba Juruá 2014 GAGETE E et al Who has anaphylaxis in Brazil Validation of a questionnaire for population studies in World Allergy Organization Journal 2017 IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada Retrato das Desi gualdades de Gênero e Raça 1995 a 2015 Base de dados Disponível em httpwwwipeagovbrportalimagesstoriesPDFs170306re tratodasdesigualdadesdegeneroracapdf Brasília Ipea 2017 ITABORAÍ N R Temporalidades plurais desigualdades de gênero e classe nos usos do tempo das famílias brasileiras in Uso do tempo e gênero organizadoras Fontoura N et al Rio de Janeiro UERJ 2016 LEFEBVRE H O direito à cidade São Paulo Centauro 2001 MILLS S et al Health and social determinants and outcomes of home cooking A systematic review of observational studies in Appetite v 111 p 116134 2016 PIOVESAN F Concepção contemporânea de direitos humanos desafios e perspectivas in Direitos humanos desafios humanitários contemporâneos 10 anos do estatuto dos refugiados lei n 9474 de 22 de julho de 1997 coord João Carlos de Carvalho Rocha Tarcísio Humberto Parreiras Henriques Filho Ubiratan Cazetta Belo Hori zonte Del Rey 2008 RIBEIRO H et al Alimentação e sustentabilidade in Estudos Avan çados 31 89 2017 SANTOS B Poderá o direito ser emancipatório in Revista Crítica de Ciências Sociais 65 Maio 2003 37 SCHLINDWEIN M M et al Consumo domiciliar de alimentos Uma análise para a região CentroOeste do Brasil Economia Re gião LondrinaPr v2 n1 p4964 agodez 2014 SEN A Desenvolvimento como liberdade São Paulo Companhia das Letras 2010 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 829 SOLÉ D et al Consenso Brasileiro de Alergia Alimentar in Arq Asma Alerg Imunol vol 2 nº 1 2018 TANG M L et al Food allergy is prevalence increasing in Intern Med J 2017 Mar473256261 doi 101111imj13362 UNITED NATIONS Committee on Economic Social and Cultural Rights CESCR General Comment No 12 The Right to Adequate Food Art 11 of the Covenant 1999 WHO WORLD HEALTH ORGANIZATION UNHABITAT Glob al Report on Urban Health equitable healthier cities for sustainable development Executive Summary Centre for Health Development Kobe UNHabitat Nairobi 2016 830 INSURGÊNCIAS NEGRAS E A NEGAÇÃO DO DIREITO A VIDA Trajetórias políticas de mulheres frente ao genocídio da juventude negra do luto a luta Dayana Christina Ramos de Souza Juliano312 Esta proposta de estudo foi apresentada no grupo de trabalho Ci dade Redes Articulações Movimentos Sociais Formulações de Polí ticas Públicas e Controle Social no Seminário Gênero Feminismos e Sistema de justiça promovido pelo Laboratório de Direitos Humanos da UFRJ Desde 2007 temos o interesse de seguir com pesquisas sobre as temáticas variadas que se referem às relações étnicoraciais e sua pertinência e relevância face ao Serviço Social no Brasil nesse ano elaboramos o trabalho de conclusão da graduação intitulado Ações afirmativas para a população negra no Brasil uma contribuição na perspectiva do Serviço Social Esse interesse é aguçado devido a inequívoca ausência de produ ção dessa temática na formação e na produção desta categoria aliado a observações e experiências empíricas realizadas e vivenciadas no âmbito da atuação profissional em programas e projetos sociais volta dos a defesa promoção e garantia dos direitos humanos em favelas e espaços populares da região metropolitana do Rio de Janeiro 312 Assistente Social graduada pela UFF Especialista em Política Social e Interse torialidade pelo IFFFioCruz Mestranda do Programa de Pós Graduação da UFRJ Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 831 Sendo assim chegamos ao tema genocídio da juventude negra quando por motivo de conclusão de Especialização em Política Social e Intersetorialidade utilizamos como aporte metodológico o estudo de caso sobre o fato que ficou conhecido como a Chacina de Costa Barros onde ocorreu o assassinato brutal de cinco jovens negros313 dialogando também com a análise das relações sociais nos campos das desigualdades de cunho étnicoracial e de classe Entendemos que as desigualdades que apresentam as relações ét nico raciais no Brasil não devem ser apreendidas de forma aleatória e isolada em fatos que representam preconceito e discriminação de cunho racial mas como resultado de uma violência histórica motiva da sobretudo pelo racismo uma das expressões da questão social no Brasil Nesse sentido utilizamos os dados oficiais e indicadores es tatísticos que pontuam sistemática e quantitativamente o fenômeno social denominado genocídio da juventude negra brasileira Seguindo essa trajetória chegamos ao seguinte objeto analisar o genocídio da juventude negra de forma articulada com os processos de engajamento e militância política vivenciado por mulheres a partir da perda de familiares No desenvolvimento do estudo pretendemos compreender a morte sistemática de jovens negros através de indi cadores estatísticos e dados oficiais bem como através de relatos de experiências de mulheres que ressignificaram o processo de luto atra vés da mobilização e inserção em espaços de lutas sociais e defesa de direitos humanos O estudo que será brevemente apresentado aqui está ligado a linha de pesquisa Lutas Sociais Estado Políticas sociais e Serviço Social do programa de pós graduação em Serviço Social da Univer sidade Federal do Rio de Janeiro O aludido projeto de pesquisa foi pesquisa apresentado e aceito pela comissão de seleção do referido programa de pósgraduação e será desenvolvido no decorrer do curso de Mestrado em Serviço Social nos anos de 2018 e 2019 313 Os jovens Wilton Wesley Cleiton Carlos Eduardo e Roberto tinham idade entre 16 e 15 anos de idade e foram assassinados com 111 tiros disparados pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro contra o carro em que se encon travam saindo de um espaço público de lazer onde comemoraram o primeiro emprego de um deles 832 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça O termo Genocídio da juventude negra é utilizado para abordar a violência que atinge os jovens negros de forma letal Entendemos que as relações desiguais de Raça314 e Classe interferem diretamente nas condições de vida e sociabilidade de um determinado segmento populacional ou seja jovens do gênero masculino negros315 e em sua maioria moradores de favelas e territórios populares Essa forma espe cífica de violência rompe com um direito fundamental que é o Direi to a Vida tendo implicações na morte sistemática dos jovens negros brasileiros Ao nos debruçarmos sobre o genocídio da juventude negra bra sileira nos deparamos com um tipo de violência institucionalizada e operacionalizada também pelo Estado que ao invés de assegurar e garantir direitos promove através de suas ações destinadas a política de segurança pública um verdadeiro extermínio onde muitas vidas são extintas Neste cenário onde o Estado se exime em garantir direitos o que de fato ocorre é a restrição desses e a juventude negra é afetada de maneira singular pela negação de diversos direitos a citar alguns exemplos educação saúde cultura livre circulação e acesso à cidade No Brasil um dos entraves que ainda precisamos transpor no campo teórico ideológico e prático para as investidas de enfrenta mento ao racismo discriminação desigualdade e preconceito racial é o Mito da Democracia Racial que como consta em Lopes 2004 tratase da Expressão sob a qual se aninha a falsa ideia da inexistência de racismo na sociedade brasileira Construída a partir da ideolo gia do luso tropicalismo procura fazer crer que graças a um escravismo brando que teria sido praticado pelos portugueses as relações entre brancos e negros no Brasil seriam em regra cordiais LOPES 2004 p214 Contrariando as investidas da dita democracia racial os indica dores sociais não deixam lacunas para análises e avaliações que des cartem o racismo como elemento determinante nas condições de vida 314 Conforme assinala Antônio Sergio Guimarães Raça é um termo de análise sociológica e não biológica 315 De acordo com a classificação em relação ao quesito raçacor do IBGE Negro é o somatório da população auto declarada Preta e Parda Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 833 de jovens negros expondo que o racismo é um elemento fundamental para compreender a questão social no Brasil e suas relações sociais estruturalmente assimétricas e desiguais O Atlas da violência IPEA 2017 informa que a cada 100 pes soas assassinadas no Brasil 71 são negras Ainda de acordo com infor mações do Atlas os negros possuem 235 maiores chances de serem assassinados em relação a brasileiros de outras raças assimetria racial que só se justifica pela predominância do racismo na sociabilidade brasileira Ao analisar os dados do Mapa da Violência no Brasil de 2016 que traz informações sobre homicídio por arma de fogo no Brasil vimos que a principal vítima da violência homicida no Brasil é a juventude na faixa de 15 a 29 anos de idade onde o crescimento da letalida de violenta foi bem mais intenso do que no restante da população Observase também que há uma significativa queda no número de homicídios de jovens brancos ao passo que aumenta o morticínio de jovens negros Em relação a cor das vítimas de mortalidade por armas de fogo no período compreendido entre 2003 e 2014 o referido docu mento revela que houve queda de 261 na população jovem branca enquanto o número de vítimas negras sofre aumento de 469 A disparidade racial já se fazia presente entre os 2 grupos mas se acirra e fica ainda mais evidente a medida que identificamos como o risco de morte por arma de fogo diminui entre o grupo de jovens brancos A Anistia Internacional Brasil reconhecida organização volta da a promoção e defesa dos Direitos Humanos de 20162017 sinaliza que os jovens negros principalmente os que moram em favelas e pe riferias são desproporcionalmente afetados pela violência por parte de policiais Esta organização lançou a campanha Jovem Negro Vivo em Novembro de 2014 com o objetivo de mobilizar a sociedade e romper com a indiferença perceptível na agenda política para o fato de que 30000 jovens são vítimas de homicídio por ano e 77 destes são jovens negros De acordo com a Organização das Nações Unidas ONU 834 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Entendese por genocídio qualquer dos seguintes atos cometi dos com a intenção de destruir no todo ou em parte um grupo nacional étnico racial ou religioso tal como a assassinato de membros do grupo b dano grave à integridade física ou men tal de membros do grupo c submissão intencional do grupo a condições de existência que lhe ocasionem a destruição física total ou parcial d medidas destinadas a impedir os nascimen tos no seio do grupo e transferência forçada de menores do grupo para outro grupo ONU 1948 A partir dessa definição não é exagero afirmar que a juventude negra brasileira é alvo de um processo de genocídio Ainda de acordo com os dados aqui apresentados entendemos que esse processo ocorre com a anuência do Estado brasileiro seja através de suas instituições de segurança pública seja pela falta de respostas objetivas com ações governamentais capazes interferir de forma eficaz nesse quadro Os efeitos do racismo na sociabilidade brasileira devem ser in vestigados sem perderse de vista o Estado com as políticas sociais estabelecidas a partir da doutrina neoliberal e a lógica do Capital pois como aponta Florestan Fernandes 1978 em seus estudos a luta de classes no Brasil sempre foi sinônimo de luta de raças Este sociólogo aponta que o passado nem tão remoto de escravidãocolonização deixou marcas profundas na formação social brasileira e que essas marcas se apresentam configurando e reconfigurando o capitalismo tardio brasileiro expressandose em uma realidade e dinâmica social extremante racializadas Quanto a formação social brasileira e as marcas estruturais deixa das como herança da aliança entre capitalismo e racismo o sociólogo de grande relevância intelectual Octavio Ianni encampa em seus es tudos a tentativa de desvelar a sociedade de classes brasileira não só pelas demarcações da contradição do capital x trabalho mas também levando em consideração em suas mediações as relações étnico ra ciais como forma de compreender as opressões e explorações atingem expressivamente a população negra no Brasil Ele afirma que Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 835 A questão racial sempre foi tem sido e continuará a ser um di lema fundamental da formação conformação e transformação da sociedade brasileira Está na base das diversas formas de or ganização social do trabalho e dos jogos das forças sociais bem como das criações culturais Praticamente tudo o que constitui a economia e a sociedade a política e a cultura compreende sempre algo ou muito da questão racial Os longos períodos de tirania realizamse com ampla ou total exclusão do negro e ou tras etnias assim como os episódicos períodos de democracia realizamse com alguma participação do negro e de outras et niasIanni 2005 p9 De forma organizada os movimentos sociais negros vêm há pelo menos 4 quatro décadas denunciando o racismo e suas interferên cias na sociedade visando dar prioridade ao enfrentamento as vio lências vivenciadas diretamente pela população masculina negra e jovem Sendo assim o processo desse genocídio é apontado delatado e combatido desde então É importante destacar que a compreensão sobre a questão social na contemporaneidade precisa passar pelo reconhecimento do racismo e do cenário de violência racial o que é agravado com a égide da doutrina Neoliberal instaurada no Brasil a partir da década de 1990 trazendo no seu bojo a retração e desmonte dos direitos sociais conquistados levando em consideração que a população negra sofre diretamente os impactos dessa conjuntura em especial no que se refere ao agravamento da violência urbana e letal que atinge sobretudo a população jovem negra moradora de favelas e espaços populares O Estado as relações sociais e sua estrutura determinadas a partir do capitalismo racismo e patriarcado que repercutem em desi gualdades sociais e violências são elementos importantes neste estudo não apenas na perspectiva de compreender o genocídio da juventude negra mas também para abranger as formas de resistência a essa vio lência letal essas respostas vão além do luto e extrapolam o campo privado da vida tomando o espaço público de forma coletiva e or ganizada registrando assim a pertinência da interface com o Serviço Social permeando sua inserção e atuação diante deste cenário de ne gação do Direito a Vida 836 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A referida proposta deste estudo até então intitulada Insurgên cias negras e a negação do direito à vida trajetórias políticas de mu lheres frente ao genocídio da juventude negra do luto à luta tem por objetivo geral compreender o genocídio da juventude negra a partir do engajamento político de mulheres em lutas sociais e a interface com o Serviço Social E como objetivos específicos temos entender as particularidades do genocídio da juventude negra brasileira visi bilizar o engajamento político de mulheres em lutas sociais frente ao genocídio da juventude negra e fomentar a reflexão ação do Serviço Social frente ao genocídio da juventude negra Para analisar as relações sociais e toda a sua complexidade no atual contexto o estudo proveniente da proposta valerseá da razão dialética oriunda da teoria social crítica teoria que nos instrumentali za para o conjunto de mediações necessárias que parte das aparências para a essência dos fenômenos aos quais encontramos no cotidiano com ênfase especial ao chamado genocídio da juventude negra Rocha 2016 ao abordar o Racismo na série Assistente Social no combate ao preconceito publicação do Conselho Federal de Serviço Social CFESS 2016 chama atenção para a diversidade de atuações do racismo que influi nas relações sociais através de discriminação e desigualdade racial Rocha sinaliza que o racismo é gerador de múlti plas violências guerras perseguições religiosas e extermínio e pode estar subjacente a ideias preconceituosas e a práticas de segregação isolamento social e aniquilamentos ROCHA 2016 p11 É importante ressaltar que o Serviço Social é uma profissão in serida na divisão social e técnica do trabalho que lida através de po líticas programas e projetos públicos e sociais com as múltiplas ex pressões da questão social Essa profissão tem compromisso ético e político com a defesa intransigente dos direitos humanos e nos mais diversos espaços sócioocupacionais indivíduos e famílias estão no cerne de sua atuação profissional como público alvo e por isso essa categoria se configura como um campo privilegiado para atuar frente as demandas dessa sociabilidade desigual e racializada No que tange a questão social e suas expressões Iamamoto 2007 registra a importância do devido destaque as particularidades e espe cificidades que se apresentam no concreto da sociedade ou seja no conjunto das relações sociais no tecido do cotidiano a autora nos re mete a seguinte reflexão Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 837 A gênese da questão social encontrase enraizada na contra dição fundamental que demarca esta sociedade assumindo roupagens distintas em cada época uma sociedade em que a igualdade jurídica dos cidadãos convive contraditoriamente com a realização da desigualdade Assim dar conta da ques tão social hoje é decifrar as desigualdades sociais de classe em seus recortes de gênero raça e etnia religião naciona lidade meio ambiente e etc Mas decifrar também as formas de resistência e rebeldia com que são vivenciadas pelos sujeitos sociais Iamamoto 2007 p114 Seguimos empreendendo sobre o genocídio da juventude negra a partir da perspectiva de mulheres vitimadas ou seja que sofreram com a perda de familiares e vivenciam essa dor engajandose nas lutas sociais pelos direitos humanos e o Serviço Social sinalizamos que o Projeto ético político do Serviço Social316 fortalece a defesa dos di reitos humanos o compromisso com a classe trabalhadora apoio e assessoria aos movimentos sociais Corroborando com esse entendi mento Duriguetto 2014 afirma que O mergulho no cotidiano das necessidades e resistências tam bém nos abre possibilidades programáticas de intervenção junto às organizações e movimentos sociais associações comu nitárias e sindicatos assessorandoos na perspectiva de iden tificação de demandas formulação de estratégias para defesa e acesso aos direitos articulação de ações para discussão das políticas e construção de alternativas para suas reivindicações de construção de estratégias e táticas de mobilização junto aos usuários para a participação em fóruns conselhos e conferên cias de políticas públicas entre outros Ressaltamos a impor tância de socializarmos nesses espaços informações acerca das políticas em que atuamos atribuindo transparência e visibili dade às situações de inexistência oferta precária ou violação dos direitos Além disso podemos atuar prestando assessoria aos movimentos e organizações populares nos processos de formação política e de consciência de classe Duriguetto op cit p 09 316 Ancorado no código de ética Profissional de 1993 na Lei que regulamenta a profissão também de 1993 e nas Diretrizes Curriculares da Associação Brasilei ra de Ensino e Pesquisa em Serviço Social ABEPSS de 1996 838 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Mais uma vez ressaltando a pertinência do investimento no tema ser explorado a partir das narrativas de mulheres e suas experiências com o processo de engajamento político que atravessa o luto e faz com que essas mulheres se apresentem nos contexto de movimentos sociais em defesa dos direitos humanos de modo a enfileirar as trin cheiras de lutas sociais pela valorização do direito a vida em movi mentos sociais negros e feministas negros trazemos a baila a seguinte ponderação um desafio posto ao nosso projeto na dimensão interventiva da política é articular forças e construir alianças estratégicas com os que sofrem opressões econômicas e de classe no cam po racial de orientação sexual gênero e outras que têm como projeto uma sociedade justa fraterna igual e capaz de autode terminar seu futuro Behring e Boschetti 2007 p199 Tendo em tela o genocídio da juventude negra brasileira ainda nos cabe a noção de Necropolítica de Achille Mbembe filósofo cama ronês A noção de necropolítica possibilita uma análise crítica dos fe nômenos de violência e mortes sistemáticas que estão no âmbito das ações do Estado e de acordo com a égide do capitalismo e doutrina neoliberal onde o seu desmonte no que diz respeito ao esvaziamento no campo das políticas sociais realiza o declínio e retirada de direitos sociais Podemos compreender que toda a dinâmica de desconstrução do que se propõe como BemEstar Social é feita por meio da crimi nalização da pobreza através de políticas de segurança pública midia tizadas como guerra as drogas o que nos direciona ao entendimento de que a regra na periferia brasileira do capitalismo é a barbárie e au toritarismo em aliança com a mais explícita violência racial Para o desenvolvimento do presente estudos propomos como metodologia o desenvolvimento de pesquisas bibliográficas e docu mental utilizando como fontes periódicos livros pesquisas e outras publicações que versem sobre o tema genocídio da juventude negra Será denotado ênfase aos dados oficiais e indicadores estatísticos que quantificam o cenário de extermínio desse segmento articulando es ses elementos teórico e metodológicos do Serviço Social especial mente as que tem como aporte a teoria social crítica Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 839 Como forma de valorizar as narrativas de mulheres e o processo de luto a luta frente ao genocídio da juventude negra podemos contar com o apoio de grupos e associações já existentes a citar como exem plos Fórum Social de Manguinhos Associação de mães vitimadas pelo Estado AMARRJ Associação de Mães e Amigos da Criança e Adolescente em Risco Movimento Moleque movimento de mães pelos Direitos dos Adolescentes no sistema socioeducativo Criola ONG com atuação na defesa e promoção de direitos de mulheres ne gras É importante registrar que a partir do lugar de luto famílias vitimadas pelas mortes violentas de jovens negros em especial as mulheres tem ocupado reconhecido espaço nas mobilizações e engajamento social em defesa dos direitos humanos Reconhecemos assim as formas de resistência e rebeldia das que perderam membros de suas famílias nessa violência atroz contra pobres jovens negros pobres pois como as mesmas pronunciam em uma das suas atividades de ativismo político e social Nossos mortos tem voz REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEHRING Elaine Rossetti e BOSCHETTI Ivanete Política Social fundamentos e história São Paulo Editora Cortez 2007 BRITTES C M Valores ética direitos humanos e lutas sociais um debate necessário In Direitos humanos e serviço social polêmicas debates e embates 2 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2012 CARVALHO Maria do Carmo Brant de e NETTO José Paulo Coti diano Conhecimento e crítica São Paulo Editora Cortez 2007 CRESS 7ª Região RJ Assistente Social ética e direitos Rio de Ja neiro 2003 DURIGUETTO Maria Lúcia Questão social sociedade civil e lutas sociais desafios ao Serviço Social In Revista CRESS 6ª Região nº 04 ano 03 1º sem de 2014 FERNANDES F A integração do negro na sociedade de Classes 3ed São Paulo Ática 1978 V1 840 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça GUIMARÃES Antônio Sérgio Alfredo Racismo e antirracismo no Brasil São Paulo Ed 34 1999 HASENBALG C A Discriminação e desigualdades raciais no Brasil Rio de Janeiro Edições Graal 1979 IANNI Octávio A dialética das relações raciais Comunidade Virtual de Antropologia v 18 n 50 p 2130 2004 Disponível em http wwwantropologiacombrarticolaba16oiannipdf Acesso em 13 dez 2016 O negro e o socialismo São Paulo FPA 2005 Disponí vel em httpswwwmarxistsorgportuguestematicalivrosdiversos negropdf Acesso em 07122017 IAMAMOTO Marilda V O Serviço Social na contemporaneidade trabalho e formação profissional São Paulo Cortez 1999 Serviço social em tempo de capital fetiche Capital financeiro trabalho e questão social Cortez Editora São Paulo 2007 IPEA Atlas da Violência 2017 Brasil 2017 LOPES Nei Enciclopédia brasileira da diáspora africana São Paulo Selo Negro 2004 MBEMBE Achille Necropolitics Public Culture 15 2003 p 1140 Necropolítica una revisión crítica In GREGOR Hele na Chávez Mac Org Estética y violencia Necropolítica militariza ción y vidas lloradas México UNAMMUAC 2012 p 130139 NETTO José Paulo Introdução ao estudo do método em Marx São Paulo Editora Expressão popular 2011 Cinco notas a propósito da questão social IN Tempo ralis nº 3 ABEPSS Brasília2001 pp4149 A construção do projeto ético político do Serviço So cial IN Serviço Social e Saúde formação e trabalho profissional São Paulo Cortez 2006 PP141160 PAIXÃO M et al Org Relatório anual das desigualdades raciais 20092010 Constituição Cidadã seguridade social e seus efeitos sobre as assimetrias de cor ou raça Rio de Janeiro Garamond 2010 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 841 PINTO Elisabete O Serviço Social e a questão étnicoraciais no Serviço Social São Paulo Ed Terceira Margem 2003 ROCHA Roseli Assistente Social no combate ao preconceito Ra cismo CFESS Brasília DF 2016 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da Violência 2016 Homicídios por arma de fogo no Brasil FLACSO Brasil 2016 842 COMBATE À VIOLÊNCIA DE GÊNERO NOS ESPAÇOS PÚBLICOS NA AMÉRICA LATINA MUITO ALÉM DAS LEIS Uma análise crítica das respostas do Estado ao assédio sexual em espaços públicos Alice Junqueira Terra Caffaro317 Ana Carolina Almeida Santos Nunes318 Resumo O assédio sexual nos espaços públicos é um fenômeno re corrente em todo o mundo que encontra especial gravidade na Amé rica Latina e vem ganhando espaço nas pesquisas acadêmicas e no debate público na última década O presente trabalho visa apresentar um panorama sobre as respostas do Estado na região divididas entre proposições legislativas nacionais e iniciativas do poderes Executi vo e Judiciário e debater a sua pertinência Para isso foram levan tadas propostas iniciadas entre 2010 e 2017 em 5 países latinoame ricanos Brasil Chile Guatemala Peru e Uruguai A partir de uma perspectiva feminista interseccional as autoras analisam criticamente as respostas que compõem a amostra e apresentam uma reflexão so bre a necessidade de avançarmos o debate para que se possa chegar a soluções efetivas para o combate ao assédio sexual em espaços pú blicos na América Latina que leve em conta as realidades de desi 317 Universidad de Chile Mestre em Análise Sistêmica Aplicada à Sociedade e pesquisadora do NEF PUCSP alicejtcgmailcom 318 UFABC Mestre em Políticas Públicas ananunes14gmailcom Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 843 gualdades raciais socioeconômicas e de gênero dos países da região Os resultados apontam para uma grande concentração de respostas em campanhas de sensibilização mecanismos de denúncia e aumen to da punição às pessoas agressoras e pouca atenção ao acolhimento de vítimas e à reeducação aos perpetradores desse tipo de violência Palavraschaves legislação políticas públicas violência de gênero as sédio sexual América Latina INTRODUÇÃO Em pleno 2018 milhões de mulheres e meninas de todo planeta ainda sofrem diariamente assédio sexual nos espaços públicos Esse tipo de violência de gênero afeta diretamente a segurança e o conforto das mulheres em seus afazeres diários impossibilitando que elas usu fruam plenamente do seu direito à cidade Nesse sentido durante a última década houve um esforço em ampliar a produção de estudos e publicações acadêmicas sobre o as sédio sexual nos espaços públicos em vários países Esses textos têm abordado principalmente três aspectos a definição do conceito assé dio sexual em espaços públicos e a revisão das ações do movimento feminista em relação a ele a descrição do fenômeno e seus impactos e a reflexão sobre a legislação vigente e a necessidade de sanção a agres sores e quais seriam os melhores tipos de sanção No entanto grande parte da bibliografia encontrada se concentra em sistematizar e ana lisar políticas públicas contra o assédio sexual no transporte público e há pouca reflexão sobre a necessidade de se implementar iniciativas que dêem conta de enfrentar o fenômeno em todos os ambientes de convivência pública pois o fenômeno não ocorre apenas quando se utiliza o transporte público O assédio sexual nos espaços públicos é um fenômeno recorrente em todo o mundo que encontra gravidade na América Latina assim como a violência doméstica Se levarmos em conta os aspectos históri cos culturais e sociais comuns aos países latinoamericanos é possível depreender a importância de se expandir as fronteiras no debate sobre as soluções ao problema 844 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Por essa razão o presente trabalho visa apresentar um panorama das propostas de resposta do Estado em torno do tema na região e debater sua pertinência Para isso foi feita uma pesquisa online com o objetivo de levantar proposições de leis nacionais em tramitação ou aprovadas e exemplos de iniciativas dos poderes Executivo e Judiciá rio iniciadas entre 2010 e 2017 em 5 países latinoamericanos Brasil Chile Guatemala Peru e Uruguai Ao longo do texto as autoras analisam criticamente as respostas que compõem a amostra e apresentam uma reflexão sobre as necessi dades de avanço no debate para que se possa chegar a soluções efetivas para o combate ao assédio sexual em espaços públicos na América La tina Buscouse realizar a análise a partir de uma perspectiva feminista interseccional Hirata 2014 centrada nas realidades de desigualdades raciais socioeconômicas e de gênero dos países da região O artigo está estruturado em cinco partes Na primeira é defini do o conceito de assédio sexual em espaços públicos e em seguida o problema é abordado no contexto latinoamericano Na terceira parte é descrita a metodologia e são apresentados os dados levantados que são analisados criticamente em seguida Na última parte são levan tadas questões sugeridas para o aprofundamento do debate sobre as políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero nos espaços públicos DEFINIÇÃO DO CONCEITO O assédio sexual nos espaços públicos é uma das formas de violência de gênero mais naturalizadas e legitimadas uma vez que ainda hoje é pouco reconhecida como tal Da mesma maneira constantemente se descre ve o fenômeno como cantada flerte ou prática da cultura local o que além de naturalizar e legitimar esse tipo de violência deixa de con siderar todas manifestações que não se limitam à manifestação verbal Existem diferentes definições para o conceito assédio sexual em espaços públicos criadas tanto por organizações da sociedade ci vil e estudos acadêmicos como por legislações e acordos políticos in ternacionais319 Além disso vale ressaltar que não há um termo único 319 Exemplos de onde se pode encontrar mais definições sites das organizações Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 845 utilizado para nomear esse tipo de violência sendo possível encontrar outros nomes para o fenômeno tais como assédio público assédio público baseado em gênero e assédio de estranho tradução livre das autoras O termo mais utilizado em inglês é street harassment VeraGray 2016 cuja tradução literal é assédio de rua em portu guês Em espanhol o termo mais utilizado é acoso callejero tradução do termo em inglês que passou a ser utilizado por vários movimentos sociais na América Latina Especificamente no Brasil apesar do uso da tradução literal do termo em inglês e espanhol assédio de rua o termo que tem sido mais utilizado é assédio sexual em espaços públi cos Esse termo também começou a ganhar mais utilização em espa nhol com a argumentação de que é importante reforçar que se trata de uma violência sexual e por tanto o termo mais adequado seria acoso sexual callejero em vez de acoso callejero Seja qual for o termo utilizado há consenso no fato de que ao redor do mundo considerase o assédio sexual em espaços públicos como um tipo de violência de gênero que faz parte de um conjunto de violências praticadas contra as mulheres Ou seja é uma violência que ocorre porque a vítima é mulher ou se expressa de acordo com o que se considera como o gênero feminino que na maioria de nossas sociedades contemporâneas ainda é considerado inferior ou com menos poder em relação ao gênero masculino Dessa maneira o as sédio sexual em espaços públicos está relacionado ao que se impõe e se espera que seja o comportamento e o papel da mulher e do homem na sociedade Nesse sentido ainda que a grande maioria das vítimas sejam as mulheres homens também podem sofrer assédio sexual nos espaços públicos principalmente aqueles que se identificam como gays transexuais intersexo ou queers já que essas pessoas geralmente não se expressam ou agem de acordo com as características impostas socialmente para uma pessoa do sexo masculino Stop Street Harassment iHollaback Harassmap legislações do Peru Chile Bélgica e outros países que consideram o assédio de rua como crime textos acadêmicos de Fairchild K Fileborn B Vera Gray F entre outras acordos internacionais da ONU Comissão Interamericana de Mulheres entre outros organismos 846 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Também se trata de um tipo de violência sexual320 isto é o ato sexual ou a tentativa de chegar ao ato sexual por coerção sem consen timento e ao mesmo tempo de um tipo específico de assédio já que existem outros tipos como o assédio físico verbal ou psicológico que podem ser sexuais ou não A definição que adotamos neste artigo é a criada pelo Observa torio Contra el Acoso Callejero Chile que caracteriza uma ação ou atitude como assédio sexual nos espaços públicos com base em cinco pilares conforme definição abaixo Práticas de conotação sexual exercidas por uma pessoa des conhecida em espaços públicos como a rua o transporte ou espaços semi públicos shopping universidade parques etc que podem gerar malestar à vítima Estas ações são unidire cionais isto é não são consentidas pela vítima e quem assedia não tem interesse em estabelecer uma comunicação real com a pessoa agredida321 Também vale pontuar que pelas características das definições existentes no âmbito das legislações muitas vezes o assédio sexual em espaços públicos pode ser entendido não apenas como um tipo de assédio sexual mas também como uma ação que se encaixa em outros crimes ou contravenções penais enquadrados ou não nos Có digos Penais Entre eles estão o abuso sexual a agressão sexual o ato obsceno e o estupro É igualmente importante pontuar que quando falamos em espaços públicos ruas praças transporte público etc devem ser considerados os espaços semipúblicos os espaços privados onde há convivência pública como é o caso das escolas ambientes de trabalho estacionamentos etc O assédio sexual em espaços públicos também acontece nesses espaços e nesse sentido há pessoas que consideram o 320 De acordo com a Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mu lheres 1993 os outros tipos de violência além da sexual são físicas ou psico lógicas Além disso dependendo da perspectiva dos instrumentos políticos e legais a violência pode ser caracterizadas ainda em outros tipos como institu cional patrimonial econômica etc 321 Tradução livre das autoras Definição original em espanhol disponível em wwwocachileorg Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 847 internet como um espaço semipúblico ou ainda como uma extensão do espaço público Finalmente não se pode deixar de mencionar que esse tipo vio lência como todo fenômeno social vinculase a diversos aspectos demográficos e situacionais tais como raça idade etnia situação de pobreza deficiência física ou mental orientação sexual identidade de gênero status migratório entre outros de acordo com os diferentes contextos O PROBLEMA NO CONTEXTO LATINOAMERICANO Na América Latina o debate público sobre o tema vem se acentuando graças ao esforço de movimentos feministas e de mulheres em posi cionar o problema na agenda pública Entre os dados existentes está o de que nas áreas metropolitanas de Bogotá Cidade do México Lima e Santiago seis em cada dez mulheres já sofreram atos de abuso e as sédio sexual no espaço público Rozas Arredondo 2015 Já o re latório da CEPAL 2016 Autonomía de das Mujeres e Igualdad en la Agenda de Desarrollo Sostenible apresenta os seguintes números por país em Lima Peru 9 de cada 10 mulheres entre 18 e 29 anos fo ram vítimas de assédio de rua dados de 2013 em Bogotá Colômbia dados de 2014 na Cidade do México México dados de 2016 6 de cada 10 mulheres já vivenciaram algumas agressão sexual no trans porte público e no Chile 5 de cada 10 mulheres entre 20 e 29 anos declaram haver sofrido assédio sexual em espaços públicos dados de 2015 Já no Brasil segundo dados de pesquisas nacionais 70 da po pulação brasileira considerava que as mulheres sofrem mais violência nos espaços privados que nos espaços públicos Data Popular Insti tuto Patrícia Galvão 2013 enquanto 86 das mulheres relataram já haver sofrido assédio de rua Action Aid 2016 A violência de gênero no espaço público ganha um contorno ain da mais cruel quando se leva em conta o contexto de desigualdades la tinoamericano Segundo a Comissão Económica para América Lati na o Caribe CEPAL 2016 a agressão sexual no transporte público afeta fundamentalmente mulheres jovens e adolescentes estudantes e trabalhadoras de extratos médios e baixos Apesar de atingir mu lheres de todos os estratos socioeconômicos aquelas que se deslocam 848 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça por longos períodos seja de transporte público para acessar as áreas centrais das cidades seja a pé meio de transporte mais usado por mulheres pobres e trabalhadoras estão mais expostas a esse tipo de violência Jaimurzina Fernández Pérez 2017 No entanto os diferentes recortes na incidência dessas violên cias não devem levar a conclusões preconceituosas e discriminatórias as quais muitas vezes fazem parte de discursos que difundem infor mações equivocadas Entre essas conclusões está a afirmação de que quem pratica o assédio sexual em espaços públicos são exclusivamente os homens com piores condições econômicas e educacionais ou imi grantes Da mesma forma as razões para a maior vulnerabilidade de certos grupos são múltiplas e devem ser analisadas à luz de cada con texto Entre essas várias razões estão fatores como maior tempo de deslocamento no espaço público das pessoas em situação de pobreza hiperssexualização das mulheres negras indígenas ou migrantes feti chização da infância e juventude nãoconformidade com estereótipos de gênero percepção de maior vulnerabilidade com relação a pessoas com deficiência entre outras Além disso esse tipo de violência dificulta fortemente a quebra do ciclo da pobreza por essas meninas e mulheres uma vez que limita seu acesso a estudo e trabalho e consequentemente suas possibili dades de mobilidade social Action Aid 2016 Portanto tanto a alta segregação espacial dos espaços urbanos da América Latina quanto às desigualdades de gênero raça e classe estão profundamente ligadas ao contexto no qual esse tipo de violência se dissemina Conforme evolui a visibilização do problema o poder público nos diferentes países tem produzido respostas para enfrentar o fenô meno Essas na região têm se concentrado em duas frentes reforço da lei e sensibilização Com relação à frente do reforço da lei o Peru foi o país que aprovou em 2015 a primeira lei latinoamericana que busca garantir especificamente proteção às vítimas de assédio sexual no espaço público Desde então tem aumentado o número de países que buscam fazer o mesmo com uma certa variedade no formato e abrangência dos seus projetos de lei Além disso instituições públicas tanto nacionais como de estados e cidades passaram a lançar campa nhas que visam sensibilizar a população prevenir agressões e estimu lar vítimas a denunciarem esse tipo de violência Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 849 METODOLOGIA E SISTEMATIZAÇÃO DOS DADOS Para realizar o levantamento da amostra analisada foi feita uma pes quisa nas bases online oficiais do poder legislativo nacional dos cinco países selecionados322 com o uso das palavraschave assédio sexual público acoso sexual público acoso callejero avulsas ou em combinação entre si Também foram usados os mesmos termos para a realização de uma busca nas ferramentas Google e Google Acadêmi co usando os resultados disponíveis até a 10ª página de consulta ou em casos específicos quando considerado necessário até a 15ª para encontrar artigos acadêmicos e notícias disponíveis na internet que envolvessem o tema Em seguida selecionouse os resultados relevantes e esses fo ram classificados por autoria abrangência status de tramitaçãoim plementação se cria novo tipo penal se propõe ou aumenta sanção penal ou civil para a pessoa agressora ou para empresas prestadoras de serviço de transporte se determinapropõe acolhimento à vítima se determinapropõe reeducação da pessoa agressora e se determina propõe penas alternativas ou multas Sabemos que a metodologia escolhida não dá conta de levantar de maneira contundente e com precisão quantitativa todas as ini ciativas realizadas nos países no entanto o intuito desta pesquisa e artigo é fazer um primeiro retrato a ser aprofundado por trabalhos posteriores A primeira dificuldade foi encontrar todas as proposições legislativas nacionais apenas usando as bases oficiais Para diminuir essa dificuldade esperouse que a busca no Google e no Google Aca dêmico complementasse os resultados por meio de artigos ou notícias sobre proposições legislativas Isso não ocorreu de maneira relevan te encontrouse apenas conteúdos pontuais e em sua maioria sobre o Brasil em razão do algoritmo dessas ferramentas que funcionam de acordo com a localização geográfica de onde a busca é realizada Os resultados da classificação podem ser verificados no quadro abaixo323 As iniciativas estão divididas por país e segundo as siglas 322 Os países foram selecionados para compor a amostra de maneira intencional a partir da motivação das autoras em garantir uma diversidade no contexto latinoamericano uma vez que se tratam de nações com diferenças em seus contextos históricos composição étnica e situação socioeconômica 323 A versão completa da tabela encontrase em documento anexo 850 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça PL proposições legislativas federais e IEJ iniciativas dos Pode res Executivo e Legislativo Nas colunas seguintes são contabilizadas quantas iniciativas foram identificadas em cada dimensão observada Tabela 1 Sistematização e classificação das respostas do Estado nos cinco países pesquisados Qtd Leis aprovadas inicia tivas em anda mento Criam novo tipo penal Propõem ou au mentam sanção para pessoa agressora Pro põem sanção para empresas de trans porte Pro põem acolhi mento às vítimas Pro põem reedu cação da pessoa agres sora Pro põem penas alter nativas ou multas Brasil PL 9 1 7 7 0 1 0 3 Brasil IEJ 12 3 e 2 sem informa ção 0 0 0 2 3 0 Chile PL 5 0 4 4 2 2 2 4 Chile IEJ 3 1 0 0 0 0 0 0 Gua tema la PL 2 0 2 2 0 0 1 1 Gua tema la IEJ 4 1 e 1 sem informa ção 0 0 0 0 0 0 Peru PL 1 1 1 1 0 1 0 1 Peru IEJ 17 16 15 15 0 0 0 15 Uru guai PL 1 1 0 1 0 1 1 0 Uru guai IEJ 3 2 1 1 0 0 0 0 Fonte Elaboração própria Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 851 ANÁLISE DOS DADOS LEVANTADOS Entre as proposições legislativas encontradas destacamse dois gru pos aquelas voltadas ao combate específico ao assédio ou abuso se xual por meio de mudanças no código penal e as que trabalham com o combate à violência de gênero de maneira mais abrangente mas que trazem em seu bojo o assédio sexual como um tipo de violência a ser enfrentada No primeiro grupo destacase a legislação aprovada em 2015 no Peru visando a prevenção e combate ao assédio sexual em espaços públicos que se destaca por propor acolhimento às vítimas Na Gua temala foram encontradas duas propostas ainda em tramitação com o objetivo de tipificar essa violência como crime e aumentar a sua san ção Já o Brasil apesar de já contar com a Lei Maria da Penha voltada ao combate à violência de gênero conta com várias iniciativas recentes que buscam a tipificação penal do assédio sexual nos espaços públicos considerada por algumas ativistas feministas como um empecilho à responsabilização de agressores Apesar de ultrapassar o limite tempo ral da pesquisa em 2018 foi aprovada na Câmara dos Deputados um desses projetos de lei324 O segundo grupo abrange proposições legislativas que tratam do combate à violência de gênero em suas variadas formas São os casos do Chile onde essa proposta segue em tramitação que define espe cificamente o que é assédio de rua e determina o estabelecimento de multas e do Uruguai onde uma lei formulada pelo Executivo insere essa modalidade entre os tipos de violência de gênero mas não espe cifica sanção A diferença mais notável das proposições desse grupo é o foco na assistência às mulheres enquanto as do primeiro grupo concentramse na punição às pessoas agressoras Foi encontrada entre as proposições de legislação no âmbito na cional apenas uma que determina a criação de espaços exclusivos para mulheres no Chile ainda em tramitação No entanto apesar de não fazer parte do âmbito de abrangência definido pela pesquisa nacional vale mencionar que nas buscas apareceram propostas similares em casas 324 Conforme noticiado na Agência Brasil Disponível em httpagenciabrasil ebccombrpoliticanoticia201803camaraaprovacrimedeimportunacao sexualeaumentapenaparaestupro acesso em 5 de maio de 2018 852 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça legislativas estaduais e municipais do Brasil o que denota o alto apelo que essa solução encontra junto a tomadoras e tomadores de decisão O que também implica que para uma análise das proposições legisla tivas mais profunda é preciso contemplar todos os níveis de abrangên cia uma vez que as leis criadas ou adaptadas seguem o modelo de di visão de competências nacionais estaduais e municipais de cada país Com relação a iniciativas realizadas pelos poderes executivos e judiciários a pesquisa feita no Google e no Google Acadêmico apre sentou principalmente artigos acadêmicos e notícias sobre o tema em sua maioria com conteúdos que compartilhavam análises e dados sobre o fenômeno Isso já era esperado em razão da limitação da me todologia de pesquisa utilizada porém conforme mencionado a in tenção era fazer um primeiro panorama sobre as respostas do Estado na região Os resultados das buscas mostraram poucas ações realizadas nos 5 países A maioria das iniciativas encontradas são do poder Executi vo em parceria com organizações de outros setores ou instituições do Poder Judiciário No entanto também foram identificadas iniciativas criadas pelo Poder Judiciário que igualmente buscou parcerias com organizações de outros setores além de instituições do Poder Execu tivo Entre as iniciativas encontradas a maior parte foi realizada no nível municipal e de maneira pontual não permanente porém tam bém foram encontrados casos nos níveis nacional e estadual A grande maioria das iniciativas são voltadas à sensibilização so bre o tema concentrandose na realização de campanhas com uso de meios físicos e online para divulgação ponto importante para que as pessoas possam ter acesso à informação também no momento que sofrerem a violência O conteúdo principal das campanhas em todos os países é a promoção de informações sobre o que é o assédio sexual em espaços públicos e que se trata de uma violência o incentivo à denúncia por parte das vítimas e testemunhas e os canais existentes para fazer as denúncias Também foi levantado pela busca a realização de eventos pontuais sobre o tema no Brasil no Chile na Guatemala e no Uruguai Especificamente no Peru foram encontradas iniciativas de nor mativas municipais que determinam o pagamento de multas pelas pessoas agressoras Podese inferir que isso se deve ao fato de o Perú Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 853 ser o único país com legislação específica aprovada que tipifica o assé dio sexual em espaços públicos como crime Finalmente encontrou se um Marco Conceitual público no Peru e dois Planos de Ação pú blica no Uruguai relacionados ao tema De todas as ações encontradas apenas duas ações brasileiras pro põem acolhimento às vítimas e outras duas a reeducação da pessoa agressora QUESTÕES PARA O DEBATE A partir do panorama trazido abordamos alguns tópicos ao debate sobre as formas de enfrentamento ao assédio sexual em espaços pú blicos A A instrumentalização das lutas dos movimentos sociais para legitimar medidas punitivistas e o encarceramento em mas sa É notável que as proposições legislativas no âmbito federal estão concentradas no aumento das punições especial mente sanções penais às pessoas agressoras Essa pode ser mais uma evidência de que o sistema penal tem sido co locado como a principal saída para os males da socieda de inclusive a violência de gênero Por outro lado existe uma demanda real pela responsabilização das pessoas que assediam e abusam sexualmente de mulheres nos espaços públicos como maneira de enfrentar a ampla naturalização desses tipos de violência As lutas dos movimentos sociais no entanto podem estar sendo instrumentalizadas por par lamentares que buscam em suas ações e discursos reforçar o que se convenciona como Estado penal É urgente obser var portanto como ambos discursos se encaixam no con texto latinoamericano onde o sistema de justiça é marcado por políticas de encarceramento em massa e extrema seleti vidade racial e de classe Kilduff 2010 854 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça B A eficácia do uso de novos tipos penais na diminuição da recorrência da violência A eficácia da criação de novos tipos penais para diminuir o assédio sexual nos espaços públicos não é consensual entre as organizações da sociedade civil e representantes dos governos O argumento de quem defen de as leis se baseia no fato de não haver instrumentos legais suficientes para proteger as vítimas contra esse tipo de vio lência No entanto defendem que as leis tenham o foco na prevenção e não apenas estabeleçam sanção Nesse sentido incentivam a obrigatoriedade de campanhas de sensibiliza ção e penas alternativas e reforçam que a lei deve abranger e proteger as pessoas de todos os sexos e identidades de gê nero Por outro lado o argumento de quem se coloca contra é que novos tipos penais reforçarão a criminalização e o en carceramento de determinados grupos já amplamente mar ginalizados e discriminados como as populações negras indígenas e imigrante Da mesma maneira ressaltam que o acesso à justiça entre as mulheres não é igualitário Mulheres negras indígenas ou imigrantes igualmente não têm a mes ma oportunidade de acessar e quando acessam são tratadas de maneira ainda pior Pasinato MacDowell Santos 2008 Dessa maneira apontase que é preciso entender não apenas o contexto jurídico dos países mas também o social Final mente em alguns países alegase o existente mal funciona mento de implementação de leis e processos de denúncia o que faz com que essa estratégia não seja prioritária e tenha um baixo custobenefício C O grau de efetividade da implementação das políticas públicas Se as respostas do Estado ao assédio sexual nos espaços públicos estão centradas na sensibilização e na sanção às pessoas agressoras o processo de denúncia tornase seu elemento principal Sendo assim é importante levar em conta as diferentes dinâmicas sociais políticas e territoriais que incidem diretamente na capacidade de recebimento e encaminhamento das denúncias Por exemplo como mu lheres sem endereço fixo profissionais do sexo ou em con flito com a lei são acolhidas quando denunciam de assédio Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 855 sexual nos espaços públicos A própria implementação de sistemas de denúncia e acolhimento pode esbarrar nas di ficuldades dos profissionais do sistema de justiça e dos ser viços públicos em lidar com as diferentes subjetividades das vítimas Portanto é essencial buscar mecanismos de adaptação do desenho institucional das políticas públicas às peculiaridades de cada território e às distintas necessi dades das mulheres evitando processos que impliquem em longas trajetórias das vítimas na busca por acolhimento Outro ponto crítico da discussão é a implementação de ini ciativas com viés de segregação que encontram apelo signi ficativo nos países pesquisados como é o caso da criação de vagões exclusivos nos transportes públicos D A escassez de ações de acolhimento às vítimas Enquanto o Estado tende a se concentra no incentivo à denúncia tão ou mais importante que a denúncia é a implementação de ações de acolhimento que ofereçam apoio psicossocial às vítimas pois o assédio sexual em espaços públicos gera consequên cias à saúde física e emocional das pessoas Além disso a existência de uma punição para a pessoa agressora não é o único fator que leva à denúncia Por esse motivo é preciso que a criação e o funcionamento dos canais de denúncia venham acompanhados de ações de acolhimento umas vez que o foco das iniciativas de combate ao assédio sexual em espaços públicos deveria ser antes de tudo o interesse e o cuidado das vítimas Finalmente vale ressaltar que a auto nomia das pessoas nos espaços públicos não está vinculada só à diminuição da violência mas também à diminuição do temor e sentimento de ameaça à violência que são bastante impactados pela experiência do assédio sexual em espaços públicos E A dificuldade em inserir a ressocialização de agressores no âmbito das políticas públicas de enfrentamento à violência de gênero nos espaços públicos Entre todas as iniciativas analisadas pouquíssimas propõem ou determinam alguma 856 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ação de reeducação das pessoas agressoras Isso significa que até então a forma interpretada pelo Estado de prevenir o as sédio sexual nos espaços públicos é a punição que não ne cessariamente leva à desconstrução do entendimento de que os corpos das mulheres são públicos Essa interpretação vai no sentido contrário da implantação da justiça restaurativa que tem como foco enfrentar o problema e não a punição A resistência do Estado em relação a medidas educativas por um lado reforça os problemas já enumerados do sistema de justiça e por outro inibe ainda mais ação das vítimas que nem sempre estão de acordo comas medidas punitivas sobre seus agressores e por isso não seguem adiante com as denún cias CONCLUSÕES Entendemos que é necessária uma abordagem integral da questão que deve ao mesmo tempo envolver ações de âmbito nacional e a ob servação do contexto regional com o intuito de compreender de que forma as questões estruturais pautam a construção histórica da socie dade patriarcal na América Latina Se esse tipo de violência for tratado com medidas simplistas e reducionistas as tensões sociais já existentes serão agravadas e não se chegará a soluções que efetivamente dêem conta de enfrentar o problema O que se observa nos países analisados é a concentração das ini ciativas em torno da sensibilização e do incentivo à denúncia como formas primordiais de combate ao assédio sexual nos espaços pú blicos Por um lado elas contribuem para a narrativa que busca des naturalizar essa violência em sociedades fortemente marcadas pelo machismo Por outro lado joga sobre as vítimas ou em alguns casos também as testemunhas a responsabilidade em buscar a solução para as agressões que sofrem diuturnamente denunciando seus agresso res e seguindo até o fim com o processo de responsabilização judicial A busca pela punição das pessoas agressoras no entanto não só reforça a baixa eficiência operacional da aplicação da lei e dos sistemas de denúncia como também intensifica sistemas de justiça já colapsa Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 857 dos pela seletividade racial e de classe Falta às respostas do Estado na América Latina não só melhorar os sistemas de denúncia da violência de gênero mas o próprio acolhimento às vítimas o que pode in clusive aumentar os incentivos para que busquem o apoio do poder público em caso de assédio sexual nos espaços públicos Por fim destacamos a ausência de iniciativas que visem à pre venção desse tipo de violência por meio da inteligência de dados e de transformações no próprio espaço da cidade que poderiam e deve riam ser promovidas de maneira participativa Sendo o assédio sexual nos espaços públicos um problema multidimensional ainda há muito o que caminhar para que as soluções não repitam velhas fórmulas e promovam ações mais efetivas no seu enfrentamento REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Action Aid 2016 Em pesquisa da ActionAid 86 das brasileiras ouvidas dizem já ter sofrido assédio em espaços urbanos Acesso en 5 de maio de 2017 CEPAL 2016 Autonomía de das Mujeres e Igualdad en la Agenda de Desarrollo Sostenible Data Popular Instituto Patrícia Galvão 2013 Para 70 da população a mulher sofre mais violência dentro de casa do que em espaços públicos no Brasil Acesso en 05 de maio de 2018 GEKOSKI Anna et al 2015 What works in reducing sexual ha rassment and sexual offences on public transport nationally and inter nationally a rapid evidence assessment Project Report UK Middle sex University British Transport Police Department for Transport London HIRATA H Gênero classe e raça Interseccionalidade e consubstan cialidade das relações sociais Tempo Social revista de sociologia da USP v 26 n 1 pp 6173 junho 2014 JAIMURZINA A FERNÁNDEZ C PÉREZ G 2017 Género y transporte experiencias y visiones de política pública en América Lati na CEPAL Serie Recursos Naturales e Infraestructura N 184 CEPAL 858 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça KILDUFF F 2010 O controle da pobreza operado através do sistema penal Revista Katálysis en línea 13 JulioDiciembre ONU 1993 Declaração sobre a Eliminação da Violência contra as Mulheres 1993 PASINATO W MACDOWELL SANTOS C 2008 Mapeamento das Delegacias da Mulher no Brasil Acesso à justiça para mulheres em situação de violência Estudo comparativo das Delegacias da Mulher na América Latina Núcleo de Estudos de Gênero Pagu Universidade Estadual de Campinas PAGUUNICAMP ROZAS B Patricio ARREDONDO S Liliana 2015 Violencia de género en el transporte público Una regulación pendiente Serie Recursos Naturales e Infraestructura N 172 LCL4047 Santiago de Chile Comisión Económica para América Latina y el Caribe CE PAL Publicación de las Naciones Unidas VERAGRAY F 2016 Mens Intrusion Womens Embodiment A critical analysis of street harassment UK Routledge 859 AS OCUPAÇÕES ESTUDANTIS COMO AFIRMAÇÃO RADICAL DA DEMOCRACIA O MOVIMENTO DOS ESTUDANTES PAULISTAS NO ANO DE 2015 Carlos Eduardo Cunha Martins Silva325 RESUMO O ensaio trata das ocupações estudantis que se estabelece ram nas unidades escolares da rede estadual de ensino do estado de São Paulo e da instituição de um novo formato de organização social tendo inspiração direta no movimento das chamadas Jornadas de Junho Primeiramente o artigo descreve a experiência pioneira das ocupações estudantis no estado de São Paulo como forma de resis tência ao ato administrativo da reorganização escolar levado a efeito pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo Posteriormen te o trabalho aborda a intransigência institucional que culminou na tentativa fracassada de implementação da reorganização escolar pelo governo estadual de São Paulo na rede estadual de ensino paulista Em seguida o trabalho destaca a vivência política da realização coletiva de direitos demonstrada a partir das experiências dos estudantes que participaram da constituição das ocupações das escolas da rede esta dual de ensino de São Paulo a fim de protestar contra o cerceamento de suas prerrogativas de acesso à educação pública e de reivindicar ser parte constituinte de seu processo educacional Ainda mencionase a 325 Doutorando em Direito pela PUCRio Mestre em Direito pela PUCRio Es pecialista em Criminologia Direito e Processo Penal pela UCAM Graduação em Direito pela UFF Coordenador do Núcleo de Prática Jurídica e Professor Assistente de Processo Penal do Departamento de Direito do Instituto de Ciên cias Humanas e Sociais do Pólo Universitário de Volta Redonda da UFF Pro fessor da Especialização em Criminologia Direito e Processo Penal da UCAM 860 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça existência de um direito materialmente fundamental à ocupação das unidades escolares concretizado pelos estudantes que articularam as ocupações de escolas da rede estadual de ensino paulista com especial destaque para a atuação política desempenhada por eles a qual efeti vou uma disputa sobre um conjunto de significações culturais que im plicaram na ressignificação de certas práticas democráticas Por fim concluise que os estudantes que articularam as ocupações estudantis paulistas empregaram uma nova gramática social para assegurar seu acesso à educação pública e o seu direito de ser parte ativa nos rumos de seu processo educacional PALAVRASCHAVE ocupações estudantis movimento estudantes paulistas afirmação democracia 1 PONDERAÇÕES INICIAIS SOBRE O TEMA As ocupações estudantis que se estabeleceram nas unidades escolares da rede estadual de ensino do estado de São Paulo instituíram um novo formato de organização e de arranjos sociais tendo inspiração direta no movimento das chamadas Jornadas de Junho onda de pro testos que se alastrou por diversas cidades brasileiras alcançando o seu auge no mês de junho de 2013 Segundo o entendimento de Bringel e Pleyers as Jornadas de Junho constituíram definitivamente um momento de abertura social no país sendo que uma vez inaugurado o espaço de protesto pelas ma nifestações iniciais outros atores se uniram a estes levantes populares para expressar suas próprias reivindicações sem que necessariamente mantivessem alguma ligação com as passeatas originais e não repetin do as formas a cultura organizacional as referências ideológicas ou os repertórios de ação empregados em mobilizações anteriores BRIN GEL PLEYERS 2017 pp 78 Assim cabe afirmar que a herança deixada pelas Jornadas de Junho inscreveu o Brasil definitivamente em uma nova geopolítica da indignação global caracterizada pela busca de uma ruptura com ciclos políticos sujeitos práticas e concepções prévias Podese falar de uma reconfiguração do ativismo brasileiro que influenciou os ato Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 861 res as práticas as formas de mediação a expressividade as matrizes discursivas e as visões de mundo envolvidas IBIDEM p 14 No que tange aos atores deve ser enfatizado um maior distan ciamento dos sujeitos das organizações As mobilizações de massa passaram a ser menos controladas por organizações sociais e políti cas sendo difundidas e reproduzidas de forma viral sob uma lógica que abre um espaço maior para os indivíduos Logo os processos de engajamento militante se modificaram com especial destaque para a inserção individual em pequenas coletividades redes e grupos de afi nidades IBIDEM p 14 Nesse contexto as novas tecnologias de informação e comunica ção assumiram uma posição destacada não somente por sua capacida de de contrainformação de interação e de difusão mais veloz e menos mediada por terceiros como também pela possibilidade de aproximar a participação política da vida cotidiana Por tal motivo as novas for mas de vivenciar individualmente e coletivamente as experiências do ativismo e do compromisso político compuseram uma mudança so cial e cultural mais ampla que situou os cidadãos comuns no centro dos debates das iniciativas e das práticas militantes IBIDEM p 15 Por sua vez as práticas e expressividades dos atores emergentes com os movimentos de massa de 2013 afastaramse de um forma to mais convencional e dos repertórios de mobilização guiados por bandeiras previamente definidas sendo a expressão de tal compor tamento os acampamentos do Occupy e dos indignados Embora na concepção de alguns esse fenômeno poderia ser visto como um ato de intolerância para significativa parcela dos manifestantes constituiu a afirmação de sua autonomia diante das instâncias clássicas de sociali zação política e de organização dos militantes promovendo a criativi dade e o compromisso pessoal com as lutas IBIDEM p 16 Desse modo sob os rastros deixados pelas mobilizações de massa das Jornadas de Junho estruturaramse as bases necessárias ao sur gimento das ocupações estudantis no cenário brasileiro pois como ressalta Losurdo encontrávamonos e ainda encontramonos em uma quadra histórica cuja tendência é direcionada por um processo em curso de redução teórica da democracia já que ela não consegue efetivar suas promessas tanto no que diz respeito à observância dos direitos materiais quanto à participação dos cidadãos nas escolhas po líticas LOSURDO 2004 p 279 862 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 2 A TRAJETÓRIA INICIAL DAS OCUPAÇÕES ESTUDANTIS NO ESTADO DE SÃO PAULO A experiência das ocupações estudantis originouse no contexto bra sileiro de forma pioneira no estado de São Paulo Seu advento foi resultado da medida que se nominou de reorganização escolar levada a efeito pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo e que teve ampla divulgação pública na grande mídia no dia 23 de setembro de 2015 O objetivo da reorganização escolar segundo divulgou a Secre taria da Educação do Estado de São Paulo foi a divisão das escolas da rede estadual de ensino em ciclos sendo que cada unidade escolar seria sede apenas de um dos ciclos componentes da estrutura de ensi no das escolas estaduais quais sejam Ensino Fundamental I Ensino Fundamental II e Ensino Médio JANUÁRIO et al 2017 pp 23 Com a finalidade de justificar a divisão das escolas da rede esta dual de ensino paulista a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo baseavase em dados colhidos pela Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados que sinalizavam uma redução de demandas por matrículas nas unidades de ensino bem como em um estudo condu zido pela Coordenadoria de Informação Monitoramento e Avaliação Educacional órgão ligado à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo o qual sugeria que o desempenho dos alunos nas escolas de ciclo único seria superior em 10 dez por cento às demais escolas IBIDEM p 3 Contudo a reorganização escolar capitaneada pela Secretaria da Educação do Estado de São Paulo tinha o propósito de promover o fechamento de 93 noventa e três unidades escolares além da impo sição de um ciclo único para 754 setecentas e cinquenta e quatro es colas o que alcançaria 311000 trezentos e onze mil alunos e 74000 setenta e quatro mil professores da rede estadual de ensino paulista NUNES 2016 Ademais ressaltese que a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo não abriu qualquer margem de discussão e participação da comunidade escolar das unidades escolares diretamente impactadas pela medida desconsiderando inteiramente os prejuízos infligidos aos alunos matriculados e às suas famílias Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 863 Contra a medida autoritária e unilateral que representava o pro cesso de reorganização escolar na rede estadual de ensino paulista manifestouse primeiramente o Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo posicionandose no sentido que tal medida não fazia sentido tendo em vista o aumento de alunos por sala de aula e pelo fato de que tal providência implicaria na diminuição de postos de trabalho As faculdades de educação de universidades pú blicas estaduais e federais também se somaram aos posicionamentos contrários à reorganização escolar denunciando o potencial privati zante da medida Pedagogos e intelectuais da área da educação não se furtaram ainda a apontar a falta de rigor da pesquisa que sugestionava o melhor desempenho dos alunos matriculados em escolas de ciclo único JANUÁRIO et al 2017 pp 45 Entretanto a reação mais contundente à reorganização escolar veio daqueles que seriam os mais abalados com a medida as famílias e principalmente o alunado que externalizaram seu descontentamento inicialmente pelas redes sociais notadamente no perfil da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo a qual ignorou os protestos vir tuais desqualificando a crítica realizada como falta de entendimento acerca dos objetivos da medida proposta IBIDEM pp 6 e 9 Em decorrência disso a indignação estudantil eventualmente acompanhada de pais e professores tomou a forma de atos de rua con tra a reorganização escolar em cerca de 60 sessenta municípios do estado de São Paulo inicialmente com um protagonismo do interior IBIDEM p 9 A contar do dia 28 de setembro de 2015 foram 6 seis semanas de protestos em quase 200 duzentas aparições diferentes As mani festações estudantis assumiram diversos contornos Foi possível veri ficarse desde simples protestos que paralisavam aulas até abraços em torno da escola ato fúnebre no dia de finados para velar a escola que seria fechada passeatas trancamentos de vias de tráfego de veículos e atosdebate Registrese que uma diversidade de locais foram utiliza dos no desiderato de expor o inconformismo estudantil com a reor ganização escolar notadamente as praças e terminais de transporte público assim como as sedes dos poderes públicos locais das Direto rias de Ensino da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo do governo estadual e até mesmo algumas aparições públicas do governador Geraldo Alck min IBIDEM pp 910 864 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Todavia a reiterada intolerância da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo em não discutir a reorganização escolar com as estudantes e os estudantes fez com que as manifestações não surtissem o efeito desejado já que o aludido órgão trilhava uma estratégia de derrubar o movimento estudantil pelo cansaço IBIDEM pp 1011 Em razão desse impasse o alunado da rede estadual de ensino paulista encontrou outra forma de crítica e de verbalização de sua in satisfação que foram as ocupações das unidades escolares sendo a Es cola Estadual Diadema situada no município de Diadema na Região Metropolitana de São Paulo a primeira ocupada pelos alunos em 9 de novembro de 2015 DEUS 2015 A ideia surgira em uma assembleia conjunta realizada na Escola Estadual Fernão Dias na zona oeste da cidade de São Paulo na qual se chegou à conclusão de que as manifestações não estavam sendo um canal adequado de reivindicação do direito à participação nos rumos de discussão e de implementação do processo de reorganização esco lar JANUÁRIO et al 2017 p 11 As unidades escolares ocupadas guiaram suas formas de lutas de modo distinto As primeiras escolas inspiraramse na cartilha Como ocupar um colégio traduzida e adaptada pelo coletivo O Mal Edu cado com base em documento elaborado pela seção argentina da Frente de Estudiantes Libertários Este texto de inspiração na luta dos secundaristas chilenos intitulada de Revolta dos Pinguins descrevia e registrava a experiência argentina de luta estudantil além de um pla no de ação estratégica para a defesa de uma educação pública gratuita e de qualidade o qual enfatizava ser a tática da ocupação um último recurso depois que todos os canais de diálogo se findassem IBIDEM p 12 Nesse diapasão é importante salientar que a cartilha Como ocupar um colégio continha sugestões de como organizar as assem bleias no interior das ocupações prática que se tornou comum e que colocava em discussão desde a organização dos assuntos do seu coti diano como limpeza e segurança até decisões políticas acerca de seus rumos e da articulação externa com outras escolas Além do mais recomendavase também no mencionado documento a realização de atividades de formação ou recreativas durante o dia envolvendo os alunos professores pais e todos aqueles que apoiassem as ocupações IBIDEM p 12 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 865 Toda essa estrutura organizacional fezse necessário como estí mulo ao cumprimento integral das tarefas tal qual para o estabeleci mento de um modelo de democracia direta de modo que não se per mitisse qualquer ingerência nos processos decisórios adotados pelas ocupações Cabe enfatizar que as ocupações escolares na rede estadual de ensino paulista que alcançaram o quantitativo de cerca de 200 du zentas escolas DEUS 2015 articularamse até o momento em que foi anunciada a suspensão da reorganização escolar pelo governo es tadual de São Paulo em 4 de dezembro de 2015 sendo aos poucos as unidades escolares desocupadas NUNES 2016326 O legado trazido pelas ocupações estudantis paulistas foi muito além do adiamento da política de reorganização escolar culminan do na abertura de um diálogo franco entre a comunidade escola e alunos que resultou em um engajamento político maior e mudanças práticas a exemplo do uso de unidades escolares aos sábados para ofi cinas e debates culturais bem como a participação mais ativa de pais e mães no movimento em prol de um ensino público de qualidade tendo os responsáveis inclusive formado o Comitê de Mães e Pais em Luta NUNES 2016 3 ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE A ABORDAGEM INSTITUCIONAL EM RELAÇÃO ÀS OCUPAÇÕES ESTUDANTIS PAULISTAS A falta de diálogo e a intransigência institucional representaram os aspectos mais marcantes de todo o processo que culminou na tenta tiva fracassada de implementação da pauta da reorganização escolar por parte do governo estadual de São Paulo na rede estadual de ensino paulista no final do ano de 2015 326 Em 4 de dezembro de 2015 o governador Geraldo Alckmin anunciou que adiaria a reorganização escolar e que o ano de 2016 seria de debate sobre a pro posta Na mesma data o secretário estadual de educação de São Paulo Herman Voorwald renuncia ao cargo Em 5 de dezembro de 2015 é publicado no Diá rio Oficial a revogação do decreto que autorizava a transferência de funcioná rios e professores Tal decreto era o que permitia que houvesse a reorganização escolar In DEUS Lara Entenda a evolução das ocupações de escolas em São Paulo Acesso em 11 jan 2017 866 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça O ápice desse autoritarismo e intolerância aconteceu quando as ocupações estudantis ganharam corpo no estado de São Paulo ou seja aproximadamente três semanas depois de seu advento no inicio do mês de dezembro de 2015 DEUS 2015 ocasião em que o governo estadual fez uso de uma severa repressão policial aos estudantes ar ticuladores das ocupações de unidades escolares da rede estadual de ensino paulista em que pese a existência uma decisão judicial datada de 23 de novembro de 2015 que negara a reintegração de posse das unidades escolares que foram ocupadas MACIEL 2015 Com o adensamento das ocupações das escolas da rede estadual de ensino paulista os ocupantes começaram a traçar estratégias pa ralelas às ocupações de unidades escolares no propósito de chamar a atenção para as suas reivindicações Uma dessas estratégias o blo queio de ruas recebeu uma forte reprimenda da Polícia Militar do Estado de São Paulo fato que resultou em diversas detenções e enca minhamentos de adolescentes a delegacias de polícia IBIDEM Nessa conjuntura subsistiam ainda relatos de que de maneira arbitrária policiais majoritariamente militares estavam atuando di retamente nas unidades escolares da rede estadual de ensino paulista geralmente fardados mas também à paisana promovendo sistemati camente episódios de abusos de autoridade constrangimentos amea ças intimidações e torturas psicológicas contra os seus ocupantes IBIDEM Reforcese que essa situação de embrutecimento das ações go vernamentais estaduais se acentuou a partir do discurso do chefe de gabinete da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo Fernando Padula de que seria colocada em prática uma verdadeira guerra327 contra os ocupantes das escolas da rede estadual de ensino paulista e os seus círculos de apoiadores incluindo membros de movimentos 327 No dia 29 de novembro de 2015 o chefe de gabinete da Secretaria da Educa ção do Estado de São Paulo Fernando Padula reuniu dirigentes regionais de ensino e traçou uma estratégia para debelar as ocupações Em ligação telefônica referente ao contexto do encontro a qual teve seu áudio divulgado pela rede de coletivos intitulada Jornalistas Livres Padula fala em retratar as ocupa ções estudantis paulistas como radicalizadas e em usar táticas de guerrilha e ações de guerra para retirar os alunos das escolas In REDAÇÃO Em vídeos e fotos a repressão da PM aos estudantes secundaristas Carta Capital Blo gs Parlatório Sociedade São Paulo 2 dez 2015 Disponível em httpwww cartacapitalcombrblogsparlatorioemvideosefotosarepressaodapmaos estudantessecundaristas8726html Acesso em 11 jan 2017 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 867 sociais e os responsáveis que acompanharam seus filhos em ocupações e manifestações REDAÇÃO 2015 Observese que a mencionada declaração de guerra do chefe de gabinete da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo aos ocupantes das escolas da rede estadual de ensino paulista seus res ponsáveis e aos seus círculos de apoiadores se sustenta em uma lógica que alberga como propósito a negação ontológica de outro ser quali ficandoo como inimigo Sob tal ponto de vista o exercício da guerra é então a realização extrema da inimizade não sendo algo normal ou ideal permanecen do constantemente presente na medida em que a qualificação como inimigo conserve o seu sentido SCHMITT 2008 p 35 Notoriamente inspirada na distinção amigoinimigo encontrase a seguinte assertiva de Jakobs Quem não presta uma segurança cognitiva suficiente de um comportamento pessoal não só não pode esperar ser tratado ainda como pessoa mas o Estado não deve tratálo como pes soa já que do contrário vulneraria o direito à segurança das demais pessoas JAKOBS CANCIO MELIÁ 2009 p 40 A lógica de enfrentamento do inimigo ampara assim as argu mentações em favor da manutenção da segurança de uma determina da sociedade que se rege por um paradigma de excepcionalidade o qual submete provisionalmente os sujeitos classificados como inimi gos a uma condição sistemática de opressão Nesse diapasão Reyes Mate declara que O que se deve entender por excepcionalidade A opressão a que provisionalmente se via submetida uma parte da humani dade O que constitui para uma parte da população em opri midos é o fato de serem tratados como nãosujeitos como se res carentes dos direitos próprios do ser humano e portanto como nua vida A eles se aplica esse modo de política chamado biopolítica porque velase nela tudo o que essa atividade hu mana coletiva possa ter de vontade ou racionalidade RE YES MATE 2005 p 94 868 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Outrossim em relação à retirada dos direitos dos oprimidos condição que os sujeita ao abandono de uma vida nua Agamben destaca que Na biopolítica moderna soberano é aquele que decide sobre o valor ou sobre o desvalor da vida enquanto tal A vida que com as declarações dos direitos tinha sido investida como tal do princípio da soberania tornase agora ela mesma o local de uma decisão soberana AGAMBEN 2002 p 149 Desse modo o conceito de vida nua agambeniano o qual repre senta o conteúdo primeiro do poder soberano encontrase em uma esferalimite no agir humano que se mantém somente no contexto de uma relação de exceção Tal esferalimite atinente à decisão soberana é a que suspende a lei ou a declaração de direitos no estado de exce ção IBIDEM pp 9091 Nesse contexto a repressão empregada pela Polícia Militar do Es tado de São Paulo contra os ocupantes das escolas da rede estadual de ensino paulista seus responsáveis e os seus círculos de apoiadores para além da lógica do combate ao inimigo deixa à mostra tam bém o fato de que no entender de Batista a cidadania no Brasil real é restrita a uma dimensão negativa simbolizada por um conjunto de limitações constitucionais e legais à intervenção estatal sobre a pessoa humana a qual encontra no processo penal um amplo espectro de situações exemplares BATISTA 1996 pp 7172 Acerca do amesquinhamento da cidadania Wacquant expõe que as desordens populares e as sublevações urbanas dos últimos tem pos na sociedade ocidental capitalista guardam pertinência com a transformação histórica observada nas economias que a compõem fato que se relaciona diretamente à desregulamentação dos mercados financeiros à dessocialização do assalariado à flexibilização do em prego à polarização social de suas cidades e às políticas estatais que tem promovido mais ou menos abertamente os interesses das grandes empresas e a mercantilização em detrimento da proteção social WA CQUANT 2013 pp 5455 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 869 Diante de tal quadro Wacquant sustenta que a combinação entre as divisões étnicas sejam elas reais ou imaginadas e a desproletari zação dentro dos enclaves deteriorados da metrópole associados ao desprovimento das capacidades organizativas necessárias ao estabe lecimento de uma identidade e à formulação de reivindicações cole tivas no espaço político anunciam muito mais desordens à vista e apresentam um desafio inédito à consecução da cidadania nos tempos vindouros IBIDEM p 55 Tecidas essas considerações devese reforçar que o autoritarismo empregado pelo governo estadual de São Paulo na condução dos as suntos relacionados às ocupações estudantis paulistas espelhou uma clara ausência de compreensão institucional que redundou na descon sideração do fato de que os movimentos de massa herdeiros das Jor nadas de Junho seriam reflexos da falta ou inadequação dos espaços institucionais disponíveis tal qual da necessidade de grupos dissiden tes de recorrer a formas alternativas de expressão social PRADO et al 2015 p 249 4 O PODER CONSTITUINTE DAS OCUPAÇÕES ESTUDANTIS PAULISTAS E A CONSTITUIÇÃO DE UM PARADIGMA GENUINAMENTE DEMOCRÁTICO Sob o ponto de vista veiculado por Abensour a verdadeira democra cia que atinge sua verdade enquanto forma de politéia é a política por excelência Assim conclui o sobredito autor que a compreensão da verdadeira democracia perpassa pela lógica da coisa política ABEN SOUR 1998 p 72 Quando se aborda o tema da política mostrase conveniente des tacar que o seu exercício se origina propriamente do terreno do confli to o qual refoge a uma tentação de aprisionamento das singularidades por meio de um fundamento calcado na ideia de unidade Seguindo essa perspectiva de entendimento Finley expõe que a política como tal constitui uma forma de comportamento público que pode existir em inúmeras sociedades radicalmente diferentes FINLEY 1998 p 45 870 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Reforçando a importância da diferença como marca da política Berlin destaca que o pluralismo com a dose de liberdade negativa que ele propicia lhe parece um ideal mais verdadeiro e humano do que as metas daqueles que buscam nas grandes estruturas disciplina das e autoritárias o ideal do autodomínio positivo por parte de clas ses povos ou de toda a humanidade BERLIN 2002 p 272 Assim sendo sob o conduto de uma vivência política de realiza ção coletiva de direitos a partir do reconhecimento das diferenças é que se mostra muito ilustrativa a experiência dos estudantes que parti ciparam da constituição das ocupações das escolas da rede estadual de ensino de São Paulo a fim de protestar contra o cerceamento de suas prerrogativas de acesso à educação pública e ser parte constituinte do seu processo educacional No âmbito do exercício reivindicatório de tais direitos em face da intransigência apregoada pelos artífices da reorganização escolar os ocupantes das escolas da rede estadual de ensino de São Paulo apro ximaramse então do pensamento de Bignotto de que o bem público não pode estar nunca em contraste com a manutenção da liberdade dos cidadãos simplesmente porque não há bem público lá onde não existem cidadãos livres e capazes de se manifestar livremente nas pra ças públicas BIGNOTTO 2000 p 65 Nesse panorama a constituição das ocupações escolares assu miu a forma de um verdadeiro ato constitutivo de geração de direitos amoldandose ao conceito de poder constituinte formulado por Ne gri cabendo destacar que tal fenômeno desvelou a ausência de diálogo da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo com a comunidade escolar a respeito da imposição da política de reorganização escolar nas unidades escolares da rede estadual de ensino paulista fato que se afina com o marco conceitual do constitucionalismo também pelo trabalhado pelo sobredito autor sendo ambos os conceitos expostos na passagem textual abaixo destacada Com efeito a práxis do poder constituinte foi a porta pela qual a vontade democrática da multidão multitudo e consequen temente a questão social entrou no sistema político destruin do o constitucionalismo ou pelo menos debilitandoo inten samente Este último define a ordem social e política como o Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 871 conjunto articulado seja de ordens sociais distintas seja de poderes jurídicos e políticos distintos o paradigma constitu cionalista é sempre o da constituição mista da mediação da desigualdade e na desigualdade portanto um paradigma não democrático NEGRI 2002 pp 2021 Trilhando o caminho de associação intrínseca entre democracia e poder constituinte Negri explicita que este é uma força que irrompe quebra interrompe desfaz todo equilíbrio preexistente e toda conti nuidade possível IBIDEM p 21 sendo um arroubo de ruptura e expansão indispensável à prévia constituição do arcabouço da totali dade de um paradigma democrático opondose de maneira frontal contundente e permanente ao constitucionalismo que encontra uma de suas possíveis traduções em um governo limitado pela lei e pelo controle jurisdicional dos seus atos administrativos Nesse viés pontuese que a pretensão do constitucionalismo que pode ser compreendido como um poder constituído é a regulação ju rídica do poder constituinte fracionandoo e bloqueando sua tempo ralidade constitutiva desconstituindose a ideia de que a constituição não seria um ato do povo mas sim de governo Por isso devese evidenciar como exemplo de um dos mecanismos internos do constitucionalismo que objetiva ao controle recíproco de diferentes singularidades no propósito de refrear uma radicalização da vontade democrática o sistema de freios e contrapesos checks and ba lances como bem pontua Leal no trecho abaixo transcrito Assim para que as reivindicações populares pudessem even tualmente converterse em lei válida exeqüível seria preciso transpor um semnúmero de obstáculos Não poderia haver portanto um estado mais bem estruturado para servir aos in terêsses da burguesia naquela fase histórica do que o estado liberal com poderes divididos segundo o sistema de freios e contrapesos MONTESQUIEU foi sem dúvida o grande cons trutor do liberalismo político porque êle soube descrever essa forma de estado de maneira magistral Aí está portanto explicado o verdadeiro sentido sociológico da divisão de poderes Era um sistema concebido menos para impedir as usurpações do executivo do que para obstar as rei vindicações das massas populares ainda em embrião mas já carregadas de ameaça LEAL 1955 p 108 872 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Isto posto vale esclarecer que o poder constituinte prega a cons tituição do social nutrida pelo desejo o qual alimenta constantemente o impulso constitutivo Frisese que a categoria na qual opera a lógi ca constituinte é a chamada multidão que segundo Hardt e Negri é composta por um sistema biopolítico expansivo e inclusivo no qual toda a população tornase necessária já que a sociedade global fun ciona conjuntamente como um todo complexo e integrado HARDT NEGRI 2005 p 420 A partir de uma perspectiva de se produzir no comum e ao mes mo tempo de produzilo a multidão esvazia a distinção entre produ ção econômica e governo político ao edificar uma organização políti ca da sociedade baseada na comunicação cooperação relações sociais e formas de vida Nessa linha de entendimento observamos a democracia da mul tidão como um exercício absoluto da liberdade e do governo capaz de manter aberto aquilo que o pensamento jurídico por meio de pos tulados defendidos na via do constitucionalismo gostaria de enclau surar Sobre o tema pronunciamse Hardt e Negri no trecho abaixo destacado Uma forma de entender a democracia da multidão portanto é uma sociedade dos códigosfonte abertos ou seja uma socie dade cujo códigofonte é revelado para que todos possam tra balhar em cooperação na solução de seus problemas e na cria ção de novos e melhores programas sociais IBIDEM p 425 Nesse ínterim cumpre mencionar que na organização da multi dão o direito à desobediência e à diferença ocupam um papel funda mental pois não existe qualquer obrigação a princípio em relação ao poder visto que se trata de um conjunto difuso de singularidades que produzem uma vida comum Sob os auspícios dessa vida em comum teorizada por Negri é que se empoderaram os estudantes que participaram da construção das ocupações das unidades escolares da rede estadual de ensino paulista tendo os ocupantes efetivamente se tornado sujeitos ativos da consti tuição do processo de ensinoaprendizagem da gestão do espaço da Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 873 unidade escolar e da colaboração ativa nos assuntos atinentes à admi nistração da escola inclusive zelando pela sua transparência e publi cidade Essa nova realidade estudantil adéquase aos contornos da lição de educação libertadora concebida por Paulo Freire a qual estabelece que no contexto de acesso à educação os sujeitos devem gozála de maneira livre autônoma e independente de conceitos e teorias frag mentadas senão vejamos A educação que se impõe aos que verdadeiramente se compro metem com a libertação não pode fundarse numa compreen são dos homens como seres vazios a quem o mundo encha de conteúdos não pode basearse numa consciência espacializada mecanicista compartimentada mas nos homens como corpos conscientes e na consciência como consciência intencionada ao mundo Não pode ser a do depósito de conteúdos mas a da problematização dos homens em suas relações com o mundo Neste sentido a educação libertadora problematizadora já não pode ser o ato de depositar ou de narrar ou de transfe rir ou de transmitir conhecimentos e valores aos educandos meros pacientes à maneira da educação bancária mas um ato cognoscente FREIRE 2005 pp 7778 Aliás uma prática libertária no campo educacional só se revela factível na medida em que se radicaliza a vivência democrática o que ocorre quando se confere a importância devida às dimensões consti tutivas do desejo e da liberdade coletiva que só os movimentos sociais sabem produzir NEGRI COCCO 2005 p 54 Salientese assim que as lutas tocadas pelos estudantes que ocu pavam as unidades escolares da rede estadual de ensino paulista con formamse ao conceito de Negri e Cocco de novo pacto que seria uma espécie de New Deal dentro da globalização latinoamericana em razão de seu potencial de abertura de um novo tempo constitutivo de uma nova lógica social e produtiva no ambiente escolar sendo tal acontecimento identificado como uma das formas possíveis de consti tuição das bases materiais da cidadania IBIDEM pp 5455 A propósito uma perspectiva cidadã não pode desconsiderar as vozes dos estudantes das ocupações paulistas pois de acordo com a 874 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça convicção veiculada por Balibar se não existir resistência em qual quer de suas formas não necessariamente violentas grupos sociais podem ser destituídos de sua capacidade de lutar por suas prerroga tivas sendo despojados de seus direitos formais e proteções jurídicas colocandose em cheque a sua capacidade de existir politicamente BALIBAR 2013 pp 109110 Desse modo é oportuno ressaltar a convicção de Spinoza de que ninguém pode reivindicar seus direitos senão no Estado democrático sendo que aqueles nascidos de genitores no pleno gozo de suas prer rogativas cívicas no território nacional ou que fizeram por merecer a República possuem legalmente seu direito de cidadania SPINOZA 1994 p 149 Logo a reivindicação é uma das bases constituintes da cidadania constituindo a ocupação de unidades escolares um dos seus desdo bramentos possíveis Nessa seara cabe registrar que o exercício desta prerrogativa é essencial para que vivenciemos concretamente em uma democracia que na convicção de Abensour significa a constituição por excelência de tal maneira que sua interpretação dará a essência da constituição ABENSOUR 1998 p 73 5 AS OCUPAÇÕES ESTUDANTIS PAULISTAS CONSTITUÍRAM UM NOVO DIREITO FUNDAMENTAL A título de esclarecimento inicial devese citar a seguinte ponderação de Alexy sobre o que constituiriam as normas de direito fundamental Essa questão pode ser formulada de forma abstrata ou concreta Ela é formulada de forma abstrata quando se indaga por meio de quais critérios uma norma independentemente de pertencer a um determinado ordenamento jurídico ou a uma Constituição pode ser identificada como sendo uma norma de direito funda mental A pergunta assume uma forma concreta quando se ques tiona que normas de um determinado ordenamento jurídico ou de uma determinada Constituição são normas de direitos funda mentais e quais não ALEXY 2008 p 65 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 875 No plano constitucional brasileiro cabe asseverar que os direi tos fundamentais são concretizadores das exigências do princípio da dignidade da pessoa humana estabelecendo métodos de limitação do poder para conter o arbítrio e a injustiça inobstante a perceptível sub jetividade que se observa na tentativa de definir a nota de fundamen talidade de um direito MENDES BRANCO 2016 p 138 Ao ensejo uma definição a respeito da fundamentalidade de um direito congrega dois sentidos possíveis um formal e outro material A fundamentalidade formal geralmente associase à constitucionali zação e possui quatro aspectos relevantes as normas consagradoras de direitos fundamentais enquanto normas fundamentais são colo cadas no grau superior da ordem jurídica como normas constitucio nais encontramse submetidas aos procedimentos agravados de revi são como normas incorporadoras de direitos fundamentais passam muitas vezes a constituir limites materiais da própria revisão como normas dotadas de vinculação imediata do Poder Público constituem parâmetros materiais de escolhas decisões ações e controle dos ór gãos administrativos legislativos e jurisdicionais Já a fundamentali dade material se define pela ideia de que o conteúdo dos direitos fun damentais é decisivamente constitutivo das estruturas do Estado e da sociedade CANOTILHO 2003 pp 378379 Nesses termos afigurase importante o destaque da seguinte con ceituação de Sarlet a respeito do que constituem os direitos funda mentais Direitos fundamentais são portanto todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas que do ponto de vista do direito constitucional positivo foram por seu conteúdo e im portância fundamentalidade em sentido material integra das ao texto da Constituição e portanto retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos fundamentalidade formal bem como as que por seu conteúdo e significado possam lhes ser equiparados agregandose à Constituição material tendo ou não assento na Constituição formal aqui considerada a abertura material do Catálogo SARLET 2004 p 89 876 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Dessa forma podese dizer que o artigo 5º 2º da Constitui ção da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece uma norma permissiva da abertura material do catálogo de direitos fundamentais permitindo que novos direitos fundamentais se incorporem ao orde namento jurídico brasileiro Com isso estabeleceuse então um sistema aberto de direitos fundamentais não podendo ser considerada taxativa a enumeração de direitos fundamentais no texto constitucional tendo em vista a existência de prerrogativas materialmente fundamentais que não es tão inscritas na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 mas que são assim consideradas em virtude de seu objeto e dos princípios constitucionais adotados MENDES BRANCO 2016 pp 168169 Consequentemente cumpre esclarecer que se a fundamentalida de de um direito no ordenamento jurídico brasileiro decorre de suas conexões a postulados jurídicos ligados ao valor da dignidade huma na tal prerrogativa em vista de sua relevância não deve ser relegada à disponibilidade do legislador ordinário IBIDEM p 169 Com o fito de qualificar os direitos materialmente fundamentais Canotilho expressa que as referidas prerrogativas podem ser extraí das das mais diversas possibilidades de direitos que se propõem no horizonte da ação humana merecendo a classificação como funda mentais aquelas que sejam equiparáveis tendo em vista o seu objeto e relevância aos direitos formalmente fundamentais CANOTILHO 2003 p 404 Sendo assim não se pode negar o caráter singular do direito à ocupação das unidades de escolares da rede estadual de ensino de São Paulo como uma prerrogativa resultante daquela que prevê a liber dade de expressão cujo assento está no artigo 5º incisos IV e IX da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e da que com base no artigo 5º 2º da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 permite o enquadramento da resistência como um di reito fundamental decorrente do regime democrático brasileiro SIL VA 2013 pp 196197 Destarte considerandose o assento constitucional do direito à ocupação das unidades de escolares da rede estadual de ensino de São Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 877 Paulo como materialmente fundamental e descrevendoo como ex pressão coletiva da cidadania firmase assim uma posição de que a conduta estudantil de ocupar os espaços das escolas paulistas como mecanismo de reivindicação de direitos não deve ser considerada cri minosa amoldandose a essa conclusão as razões que levaram à edi ficação do seguinte julgado paradigmático no Superior Tribunal de Justiça HC CONSTITUCIONAL HABEAS CORPUS LIMI NAR FIANÇA REFORMA AGRÁRIA MOVIMENTO SEM TERRA Habeas corpus é ação constitucionalizada para preservar o direito de locomoção contra atual ou iminente ilegalidade ou abuso de poder Const art 5º LXVIII Admissível a concessão de liminar A provisional visa a atacar com a possível presteza conduta ilícita a fim de resguardar o direito de liberdade Fiança concedida pelo Superior Tribunal de Justiça não pode ser cassada por Juiz de Direito ao fundamento de o Paciente haver praticado conduta incompatível com a situação jurídica a que estava submetido Como executor do acórdão deverá comunicar o fato ao Tribunal para os efeitos legais Não o fazendo preferindo expedir mandado de prisão comete ilegalidade Despacho do Relator no Tribunal de Justiça não fazendo cessar essa coação por omissão a ratifica Caso de concessão de medida liminar Movimento popular vi sando a implantar a reforma agrária não caracteriza crime contra o Patrimônio Configura direito coletivo expressão da cidadania visando a implantar programa constante da Constituição da República A pressão popular é própria do Estado de Direito Democrático328 gn Por oportuno vale ainda destacar que o direito materialmente fundamental à ocupação das unidades escolares só adquire a relevân cia que ostenta na medida em que se reconhece o seu sustentáculo a partir de um processo de institucionalização da diversidade cultural concretizado pelos estudantes que articularam as ocupações de esco las da rede estadual de ensino paulista com especial destaque para a atuação política desempenhada por eles a qual efetivou uma disputa 328 BRASIL SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA HC 5574SP 6ª Turma Rel designado Min Luiz Vicente Cernicchiaro Acórdão decidido por maioria Jul gado em 08041997 Publicado no DJU em 18081997 878 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça sobre um conjunto de significações culturais que implicaram na res significação de algumas práticas democráticas Tal fato guarda então uma plena consonância com a afirmação de Santos e Avritzer de que os movimentos sociais estariam inseridos em movimentos pela ampliação do político pela transformação de práti cas dominantes pelo aumento da cidadania e pela inserção na política de atores sociais excluídos transformando assim toda uma gramática social até então vigente SANTOS AVRITZER 2002 p 53 CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando se observam as ocupações estudantis paulistas originadas no ano de 2015 resta evidente a singularidade da experiência vivenciada pelos estudantes que animaram e consolidaram a sua militância po lítica a partir desses espaços Suas trajetórias parecem ter trilhado os contornos da emancipação intelectual descrita por Rancière na passa gem abaixo transcrita O círculo da potência A experiência pareceu suficiente a Jacotot para esclarecêlo podese ensinar o que se ignora desde que se emancipe o alu no isso é que se force o aluno a usar sua própria inteligên cia Mestre é aquele que encerra uma inteligência em um cír culo arbitrário do qual não poderá sair se não se tornar útil a si mesma Para emancipar um ignorante é preciso e suficiente que sejamos nós mesmos emancipados isso é conscientes do verdadeiro poder do espírito humano O ignorante aprenderá sozinho o que o mestre ignora se o mestre acredita que ele o pode e o obriga a atualizar sua capacidade RANCIÈRE 2002 p 27 Galgando os degraus da emancipação intelectual os estudantes que articularam as ocupações estudantis paulistas empregaram uma nova gramática social para assegurar seu direito de acesso à educação pública e de ser parte constituinte dos rumos de seu processo educa cional em face da ausência de diálogo estabelecida pelo governo esta dual de São Paulo no tocante à impossibilidade de discutir publica Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 879 mente a política da reorganização escolar e na imposição acrítica da mesma Dessa maneira as ocupações estudantis paulistas situaramse em um horizonte assemelhado à ideia da revolução permanente TEXIER 2005 p 188 cunhada pela interpretação de Texier sobre o pensamento de Marx e Engels visto que instauraram um novo marco de soberania dos estudantes e de suas perspectivas ideológicas sobre a lógica autoritária da reorganização escolar imposta pelo governo es tadual de São Paulo sendo possível verificarse assim um aprofunda mento e radicalização da democracia por meio da conquista de um novo direito social fundamentado na faculdade de ocupar as escolas da rede estadual de ensino de São Paulo Tamanha foi a abertura revolucionária da experiência das ocupa ções estudantis paulistas que as mesmas acabaram servindo de inspi ração para outros enfrentamentos às práticas educacionais realizadas nos mais diversos estados componentes da federação brasileira329 A propósito esses levantes em outros estados brasileiros ostenta ram os mesmos caracteres gerais que marcaram a experiência original paulista tais como o zelo pelo patrimônio público demonstrado pelos ocupantes a autoorganização em equipes de limpeza e manutenção dos equipamentos escolares o apoio da comunidade escolar e a 329 As ocupações estudantis começaram no estado de São Paulo entre setembro e dezembro de 2015 quando cerca de duzentas escolas públicas foram ocupadas contra um projeto chamado de reorganização escolar que tinha intenção de fechar noventa e três unidades escolares proposto pelo governo estadual de São Paulo O movimento foi vitorioso ao forçar o cancelamento do plano e ter minou por inspirar uma onda de ocupações no estado de Goiás no qual outro plano estadual previa terceirizar a gestão de escolas públicas a organizações privadas Trinta escolas chegaram a ser ocupadas em Goiás desde janeiro de 2016 e a última só foi desocupada em março do mesmo ano Após essa onda de ocupações de escolas nos estados de São Paulo e Goiás em que diversas insti tuições de ensino foram tomadas por seus próprios alunos em protesto contra o abandono do poder público e cortes de verbas o movimento ressurgiu com ainda mais vigor sendo observado nos últimos tempos mais de duzentos e trin ta ocupações dispostas em sete estados brasileiros da região nordeste ao sul do país com estudantes protestando por melhores condições de ensino infraes trutura e alimentação In GARCIA Raphael Tsavkko Movimento secundaris ta se alastra pelo Brasil já são mais de 230 escolas ocupadas em 7 estados Global Voices América Latina Brasil 24 mai 2016 Disponível em https ptglobalvoicesorg20160524movimentosecundaristasealastrapelobra siljasaomaisde230escolasocupadasem7estados Acesso em 11 jan 2017 880 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça promoção das mais diversas atividades culturais e políticas pelos ocu pantes professores voluntários e apoiadores das ocupações estudantis GARCIA 2016 Desse jeito cabe pontuar que as ocupações estudantis paulistas ao longo de toda a sua trajetória no ano de 2015 afirmaram a radica lidade democrática como um parâmetro possível de ser vivenciado Nesse propósito para que se experimente uma afirmação radical da democracia urge necessário atentarse à lição de Quijano de que a democratização deve implicar em um processo de descolonização das relações sociais políticas e culturais entre grupos e elementos de existência social europeus e nãoeuropeus levandose em conta o fato de que a estrutura de poder na América Latina continua ainda a ser organizada sobre e ao redor do eixo colonial QUIJANO 2005 p 84 E essa premissa central de ruptura com as relações coloniais de poder foram perfeitamente assimiladas pelas ocupações estudantis paulistas constituídas no ano de 2015 com as quais temos muito a aprender em termos de democracia REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BENSOUR Miguel A democracia contra o Estado Marx e o mo mento maquiaveliano Trad de Cleonice Paes Barreto Mourão Con suelo Fortes Santiago Eunice Dutra Galéry Belo Horizonte UFMG 1998 AGAMBEN Giorgio Homo Sacer o poder soberano e a vida nua I Trad de Henrique Burigo Belo Horizonte UFMG 2002 ALEXY Robert Teoria dos direitos fundamentais Trad de Virgílio Afonso da Silva São Paulo Malheiros 2008 BALIBAR Étienne Ciudadanía Trad de Rodrigo MolinaZavalía 1 ed Buenos Aires Adriana Hidalgo 2013 BATISTA Nilo Fragmentos de um discurso sedicioso In INSTI TUTO CARIOCA DE CRIMINOLOGIA Discursos Sediciosos cri me direito e sociedade Ano 1 n 1 janjun 1996 Rio de Janeiro Relume Dumará 1996 p 6977 pp 7172 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 881 BERLIN Isaiah Dois conceitos de liberdade In Estudos sobre a hu manidade uma antologia de ensaios Trad de Rosaura Eichenberg São Paulo Companhia das Letras 2002 p 226272 BIGNOTTO Newton Humanismo cívico hoje In BIGNOTTO Ne wton org Pensar a República Belo Horizonte UFMG 2000 p 49 69 BRASIL Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03constituicao ConstituicaoCompiladohtm Acesso em 02 jan 2017 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA HC 5574SP 6ª Tur ma Rel designado Min Luiz Vicente Cernicchiaro Acórdão decidido por maioria Julgado em 08041997 Publicado no DJU em 18081997 BRINGEL Breno PLEYERS Geoffrey Junho de 2013dois anos depois polarização impactos e reconfiguração do ativismo no Bra sil Nueva Sociedad Democracia y política en América Latina out 2015 Conjuntura Disponível em httpnusoorgmediaarticles downloadsCOY1BringelPleyerspdf Acesso em 11 jan 2017 CANOTILHO José Joaquim Gomes Direito constitucional e teoria da constituição 7 ed Coimbra Almedina 2003 DEUS Lara Entenda a evolução das ocupações de escolas em São Paulo Revista Educação São Paulo 18 dez 2015 Disponível em httpwwwrevistaeducacaocombrentendaaevolucaodasocu pacoesdeescolasemsaopaulo Acesso em 11 jan 2017 FINLEY MI org O legado da Grécia uma nova avaliação Trad de Yvette Vieira Pinto de Almeida Brasília UnB 1998 FREIRE Paulo Pedagogia do Oprimido 49 ed Rio de Janeiro Paz e Terra 2005 GARCIA Raphael Tsavkko Movimento secundarista se alastra pelo Brasil já são mais de 230 escolas ocupadas em 7 estados Global Voi ces América Latina Brasil 24 mai 2016 Disponível em https ptglobalvoicesorg20160524movimentosecundaristasealastra pelobrasiljasaomaisde230escolasocupadasem7estados Acesso em 11 jan 2017 882 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça HARDT Michael NEGRI Antonio Multidão Trad de Clóvis Mar ques Rio de Janeiro Record 2005 JAKOBS Günther CANCIO MELIÁ Manuel Direito Penal do Ini migo noções e críticas Trad de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli 4 ed Porto Alegre Livraria do Advogado 2009 JANUÁRIO Adriano et al As ocupações de escolas em São Paulo 2015 autoritarismo burocrático participação democrática e novas formas de luta social Revista Fevereiro política teoria cultura v 9 p 126 pp 23 Disponível em httpwwwrevistafevereirocom pdf912pdf Acesso em 11 jan 2017 LEAL Victor Nunes A Divisão de Poderes no Quadro Político da Burguesia In CAVALCANTI T e outros Cinco Estudos Rio de Ja neiro FGV 1955 p 92113 LOSURDO Domenico Democracia ou bonapartismo triunfo e de cadência do sufrágio universal Trad de Luís Sérgio Henriques São Paulo UNESP Rio de Janeiro UFRJ 2004 MACIEL Camila Movimento de direitos diz que repressão a estu dantes em São Paulo é atentado EBC Agência Brasil Educação São Paulo 03 dez 2015 Disponível em httpagenciabrasilebccom breducacaonoticia201512movimentodedireitoshumanosdi zquerepressaoestudantesdespeatentado Acesso em 11 jan 2017 MENDES Gilmar Ferreira BRANCO Paulo Gustavo Gonet Curso de direito constitucional 11 ed São Paulo Saraiva 2016 NEGRI Antonio COCCO Giuseppe Mario GlobAL biopoder e lutas em uma América Latina globalizada Trad de Eliana Aguiar Rio de Janeiro Record 2005 O poder constituinte ensaio sobre as alternati vas da modernidade Trad de Adriano Pilatti Rio de Janeiro DPA 2002 NUNES Dimalice O que restou das ocupações nas escolas em São Paulo Carta Educação São Paulo 1 fev 2016 Disponível em httpwwwcartaeducacaocombrreportagensoquerestoudaso Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 883 cupacoesnasescolasemsaopaulo Acesso em 11 jan 2017 QUIJANO Aníbal Colonialidade do poder eurocentrismo e Amé rica Latina In LEHER Roberto SETÚBAL Mariana orgs Pensa mento crítico e movimentos sociais diálogos para uma nova práxis São Paulo Cortez 2005 p 3595 RANCIÈRE Jacques O mestre ignorante cinco lições sobre a emancipação intelectual Trad de Lilian do Valle Belo Horizonte Autêntica 2002 REDAÇÃO Em vídeos e fotos a repressão da PM aos estudantes secundaristas Carta Capital Blogs Parlatório Sociedade São Paulo 2 dez 2015 Disponível em httpwwwcartacapitalcombrblogs parlatorioemvideosefotosarepressaodapmaosestudantesse cundaristas8726html Acesso em 11 jan 2017 REYES MATE Manuel Memórias de Auschwitz atualidade e polí tica Trad de Antônio Sidekum São Leopoldo Nova Harmonia 2005 SANTOS Boaventura de Sousa AVRITZER Leonardo Introdução para ampliar o cânone democrático In SANTOS Boaventura de Sousa org Democratizar a democracia os caminhos da democracia participativa Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2002 p 3982 SARLET Ingo Wolfgang A eficácia dos direitos fundamentais 4 ed rev atual e ampl Porto Alegre Livraria do Advogado 2004 SCHMITT Carl O conceito do políticoTeoria do partisan Trad de Geraldo de Carvalho Belo Horizonte Del Rey 2008 SILVA José Afonso da Curso de direito constitucional positivo 36 ed rev e atual até a Emenda Constitucional n 71 de 29112012 São Paulo Malheiros 2013 SPINOZA Benedictus de Tratado político Trad de Norberto de Paula Lima São Paulo Ícone 1994 TEXIER Jacques Revolução e Democracia em Marx e Engels Trad de Duarte Pacheco Pereira Rio de Janeiro UFRJ 2005 WACQUANT Loïc Los condenados de la ciudad gueto periferias y Estado Trad de Marcos Mayer 2 ed Buenos Aires Siglo Veintiuno 2013 884 INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GRAVIDEZ A TEORIA FEMINISTA E AS CRÍTICAS DE RONALD DWORKIN Layana Izabel Aguiar Silva330 Resumo O debate acerca da interrupção voluntária da gravidez confi gurase como um complexo conjunto de fundamentos morais filosó ficos jurídicos e científicos no qual torna possível a divergência entre ideias até mesmo entre as correntes favoráveis à prática O movimento feminista defende baseandose no rol de direitos fundamentais per tencentes às mulheres e que contribuirão para uma maior igualdade entre os sexos Nesse contexto o renomado filósofo jurídico Ronald Dworkin apresenta algumas críticas às argumentações feministas es pecialmente a da autora feminista radical Catherine A MacKinnon responsável por criticar e negar a argumentação baseada no direito constitucional à privacidade Palavraschave Interrupção voluntária da gravidez Feminismo Ra dical Liberalismo 1 INTRODUÇÃO A descriminalização e regularização da interrupção voluntária da gravidez é uma demanda fortemente presente na defesa dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres Nesse contexto o feminismo e suas diversas vertentes tornase um movimento de fundamental im portância neste debate sendo um portavoz dos questionamentos e 330 Bacharel em Direito pelo Centro Universitário do Pará CESUPA Email layanaizabelsilvagmailcom Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 885 argumentações favoráveis às gestantes Não há como haver um debate envolvendo a seara política e moral da prática sem incluir os funda mentos feministas assim como sempre o fazem com os fundamentos da doutrina religiosa Na obra Domínio da Vida Aborto Eutanásia e Liberdades Indivi duais de Ronald Dworkin o autor explora esses fundamentos supracita dos quando trata da moralidade da interrupção voluntária da gravidez Contudo o movimento é visto apenas como um crítico às argumenta ções majoritariamente liberais que fundamentam o direito de inter romper a gravidez com base no direito constitucional de privacidade das mulheres bastante disseminado pelo liberalismo político Nesse sentido esta pesquisa objetiva analisar os argumentos so bre a interrupção voluntária da gravidez de Dworkin presentes em Domínio da Vida e problematizar a noção liberal da concessão do direito fundado na privacidade da mulher a partir dos argumentos de MacKinnon como um resultado correto a partir dos meios equivo cados O presente estudo é eminentemente teórico e fora desenvolvido com base na leitura das obras de Ronald Dworkin Catherine A Mac Kinnon e Carol Gillian Vale ressaltar que optamos por nos referir às práticas abortivas utilizando o termo interrupção voluntária da gra videz por entender que o termo aborto carrega o estigma da prática criminalizada pelo Código Penal enquanto neste trabalho estamos nos referindo a um direito fundamental pertencente às mulheres 1 DIREITO CONSTITUCIONAL À PRIVACIDADE E AS OBJEÇÕES FEMINISTAS Em Domínio da Vida Dworkin 2003 apresenta dentre várias te máticas envolvendo liberdades individuais e o direito à vida a questão da interrupção voluntária da gravidez permeando não apenas a sea ra jurídica mas também a moral científica e filosófica envolvendo o leitor em uma trama de questionamentos constitucionais teológi cos políticos e sociais que se interligam formando o complexo debate acerca do tema 886 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça No capítulo 2 intitulado a moralidade do aborto Dworkin 2003 busca desmistificar o consenso sobre este ser essencialmente um debate moral e metafísico de se o feto é uma ou não uma criatu ra humana com direitos e interesses próprios para dialogar com au toras feministas acerca da decisão Roe contra Wade responsável por conceder o direito à interrupção voluntária da gestação com base no argumento da privacidade feminina Este argumento fora altamente criticado por autoras feministas especialmente aquelas pertencentes a vertente radical De acordo com a interpretação de Ronald Dworkin 2003 p 70 os argumentos e estudos feministas se baseiam igualmente em preo cupações positivas que reconhecem o valor da vida humana não ape nas na negação de que o feto não seja uma pessoa ou de que mesmo se fosse a interrupção voluntária da gravidez ainda seria permissível A partir disso o autor 2003 centraliza sua crítica nas objeções feministas à argumentação que as mulheres possuem direito constitu cional à privacidade e com base neste direito podem optar pela inter rupção da gravidez antes do final do segundo trimestre de gestação Esta fundamentação se faz presente na sentença do juiz Blackmun no caso Roe e no Habeas Corpus 124306 redigido pelo Ministro Luiz Roberto Barroso 2016 Nesse sentido Dworkin 2003 questiona Por que as feministas insistem não apenas em apresentar um argumento adicional a partir da questão da igualdade mas também em rejeitar o argumento do direito à privacidade em que o tribunal se havia fundamentado Não deveriam defen der ambos argumentos assim como tantos outros que pareçam pertinentes DWORKIN p 72 2003 Para autoras feministas como MacKinnon a rejeição a este ar gumento ocorre por acreditar que o direito à privacidade seja uma ilusão Na sociedade contemporânea dominada por homens o direi to de escolha das mulheres deve ser defendido como uma tentativa genuína de aumentar a igualdade entre os sexos e quando a sentença apela à privacidade prejudica justamente qualquer chance de êxito no tocante a igualdade Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 887 Catherine A Mackinnon acredita que o direito à privacidade pressupõe uma distinção falaciosa entre questões que são em princí pio privadas como atos e decisões sexuais do casal e que não devem ter interferência estatal das questões públicas sobre o qual este tem ingerência MACKINNON 2014 Essa distinção é problemática porque pressupõe a liberdade fe minina na esfera privada acarretando uma limitação desta no espaço público ademais pela não ingerência estatal as mulheres acabam por ser subjugadas sexualmente na esfera privada e este ajuda a manter a subordinação política e econômica das mulheres na comunidade po lítica Assim MacKinnon Apud DWORKIN 2003 p 72 acredita que o discurso com base no direito à privacidade possa ser equivocado e perigoso para as mulheres de muitas maneiras uma vez que pressu põe que as mulheres sejam realmente livres para tomar decisões por si próprias na esfera privada Ao mesmo tempo implica que o governo não tem nenhuma preocupação legítima com o que pode ocorrer com as mulheres atrás da porta do quarto e que não tem a responsa bilidade de financiar assim como faz com o parto o aborto induzido Contudo Dworkin 2003 p 73 acredita que essa retórica é pou co convincente uma vez que o direito constitucional à privacidade defende na verdade que as mulheres sejam agentes verdadeiramente livres em material de decisões sexuais sendo importante insistir na concretização deste direito constitucional que garante a autonomia sobre os próprios corpos O sentido de privacidade tanto para o aludido autor 2003 p 75 quanto para os demais estudiosos que fundamentaram o direito à interrupção voluntária da gravidez com base no direito à privacidade significa ter soberania quanto a decisões pessoais e este abrange o direito de interromper de forma voluntária a própria gravidez e de não ser estuprada ou forçada a fazer sexo Vale ressaltar que MacKinnon integra uma vertente feminista no qual diferentemente do feminismo liberal acredita que o meio e as condições de vida das mulheres estão diretamente vinculados à sua situação de opressão portanto acredita que todo o debate envolvendo a interrupção da gravidez ocorre porque a mulher é socialmente opri 888 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça mida Por essa razão acreditase no equívoco da teoria de Dworkin no sentido que há dificuldades em compreender as críticas da autora ao direito à privacidade tratandose de diferentes concepções de um mesmo direito Diante disso Catherine A MacKinnon 1991 p 189 acredita que os argumentos favoráveis à interrupção da gravidez baseados no direito das mulheres em controlar o próprio corpo não levam em con sideração a situação de opressão vivida pelas mulheres na sociedade no qual seus corpos a elas não pertencem mulheres não tem controle dos seus propósitos e destinos De acordo com a autora 1991 p 192 não pode haver a presun ção de que a garantia da privacidade garanta a liberdade de escolha das mulheres Devendo assim a interrupção da gravidez ser assegu rada como um direito público não como um privilégio privado uma vez que nem todas as mulheres possuem condições para arcar com ônus de um procedimento seguro apenas as mulheres com privilé gios incluindo privilégios de classe conseguem direitos MACKIN NON 1991 p 192 2 REDE DE RESPONSABILIDADES Ademais perpassando as argumentações sobre direito à privacidade a advogada feminista Robin West Apud DWORKIN 2003 p 80 ale ga que um discurso baseado na responsabilidade deve ser enfatizado isto é a interrupção da gravidez não surge como um ímpeto assassi no das mulheres em cessar com um potencial de vida mas sim pela dura realidade de um parceiro financeiramente irresponsável uma sociedade indiferente aos cuidados com os filhos e um ambiente de trabalho incapaz de atender às necessidades dos pais que trabalham WEST 1990 Apud DWORKIN 2003 p 80 sendo assim a prática surge como uma rede de responsabilidades que conflitam entre si e são irreconciliáveis Nesse contexto Dworkin 2003 p 81 apresenta a teoria da so cióloga Carol Gillian 1982 no qual houve um estudo com 29 mu lheres grávidas que estavam decididas a interromper suas gestações e os resultados desse estudo mostram que as preocupações constantes Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 889 destas mulheres se baseavam não na possibilidade do feto ser um su jeito com direitos e interesses violados ou se já deveria ser considerado uma pessoa mas sim em um conflito de responsabilidades a partir da noção de responsabilidade ética e moral Estas responsabilidades referemse principalmente a preocupa ção em gerar uma criança o cuidado com esta se será possível ou se a mãe teria condições para cuidar e fazêla crescer com dignidade é uma questão que perpassa a noção de importância e respeito pela vida feminina e como esta pode afetar outras vidas Conforme expõe Dworkin 2003 Até mesmo ela estava preocupada como as outras não com o status metafísico do feto mas com um conflito de responsabi lidades que via como influência de sua família das pessoas em geral e de suas próprias crenças DWORKIN 2003 p 82 Nesse contexto o autor 2003 parece estar em concordância com as argumentações apresentadas no estudo de Gillian 1982 no qual nos mostra que apesar de parte das mulheres entrevistadas ter sofrido um período de depressão e um estágio de luto após a interrupção da gravidez estes momentos foram paralelos à concepção de que cessar a gestação significou assumir responsabilidades tendo sido a decisão correta a ser tomada Por fim podemos observar que se torna lacunosa e para Mac Kinnon tornase até falaciosa uma fundamentação em defesa deste direito baseado somente na argumentação de que o direito à privaci dade está sendo violado Uma vez que o movimento feminista com suas diversas vertentes nos mostra um rol de direitos violados bem como uma complexa teia de objeções morais quando se restringe a interrupção voluntária da gravidez 2 CONCLUSÃO Por fim o movimento feminista com suas diversas vertentes nos mostra um rol de direitos violados quando se restringe a interrupção 890 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça voluntária da gravidez Contudo Catherine A Mackinnon criticou os fundamentos favoráveis à interrupção voluntária da gravidez basea dos no direito à privacidade por entender que eram problemáticos para firmar a prática como um direito fundamental das mulheres e encarálos como uma questão de saúde pública não apenas uma de cisão a ser tomada no âmbito privado que não dependa da assistência do Estado para garantir que tais práticas ocorram de forma segura e digna Além disso essa argumentação defendida por Dworkin e rejei tada por MacKinnon cria um espaço favorável para o surgimento de lacunas conforme nos mostra o pensamento feminista radical da au tora Estas lacunas surgem nesse contexto porque o direito à inter rupção voluntária da gravidez baseouse principalmente no direito constitucional à privacidade e MacKinnon nos mostrou que este di reito pode ser ilusório para as mulheres que por conta do machismo e da submissão feminina ainda não são plenamente livres e autôno mas no ambiente privado Assim como ocorria no Brasil331 nos anos 80 no qual a luta pró escolha concentrouse em demandas que garantissem a efetivação do direito em decorrência do crime de estupro e risco de vida da ges tante Direitos estes que já estavam garantidos no Código Penal mas não eram devidamente realizados pelos serviços de saúde pública Desta forma as argumentações e discursos próescolha devem expor fundamentos que não admitam interpretações controversas e não permitam lacunas para que posteriormente cause a retirada des tes direitos ou sua concretização ocorra de forma falha sendo preju dicial às mulheres Por fim podemos observar que apesar das mulheres entrevista das na pesquisa de Carol Gillian não mencionarem um possível status metafísico do feto como observou Dworkin não se deve anular o fato de que o debate moral esteve presente ao longo do estudo Isto nos mostra que a decisão de interromper a gravidez não é isolada e sem 331 Outra tática do movimento feminista foi demandar garantia do direito aos casos previstos por lei risco de vida da mulher e gravidez decorrente de estu pro que permitia sobretudo realizar o que já estava legislado Se de um lado a realização desse tipo de aborto nos serviços públicos de saúde tem se ampliado ela só foi instituída efetivamente em um hospital público a partir de 1989 SCAVONE 2008 p 678 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 891 pre vem acompanhada de uma série de responsabilidades e de discur sos que enfatizam a prática como um assassinato majoritariamente segundo Dworkin 2003 p 83 maquiando uma crença de que tais práticas possuam um defeito moral REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DWORKIN Ronald Domínio da Vida Aborto Eutanásia e Liberda des Individuais São Paulo Martins Fontes 2003 MACKINNON Catharine A Toward a renewed equal rights amend ment now more than ever Harvard Journal of Law 2014 Disponível em httpharvardjlgcomwpcontentuploads201407MacKin nonpdf Acesso em 20 out 2017 Reflections on Sex Equality Under Law Yale Law Jour nal Vol 100 No 5 mar 1991 Disponível em httpswwwjstor orgstablei232708refreqidexcelsior3Ad10823f56328f17538ce d2a68a6362bb Acesso em 18 out 2017 Only Words Harvard University Press Cambridge Massachusetts 1993 SCAVONE Lucila Políticas Feministas do Aborto Estudos Feministas Florianópolis 162 440 maio agosto 2008 892 RELENDO A CIDADE SOB A PERSPEC TIVA DE GÊNERO AS GESTÕES FEMI NISTAS NA PREFEITURA DE SANTO ANDRÉ ENTRE 1989 E 2016 Silmara Conchão332 Sonia A Calió333 RESUMO É impossível falar de democracia sem levar em conta as desigualdades sociais persistentes entre homens e mulheres Essa lógica é estruturante e permanece em nossa sociedade pois ainda vivemos um paradoxo cultural e histórico de um lado a submissão das mulheres e do outro a dominação dos homens Investir em políticas para as mulheres sob a perspectiva de gênero significa potencializar a inclusão o desenvolvimento com sustentabilidade e a transformação social Este trabalho mostra a atuação feminista durante as cinco gestões do Partido dos Trabalhadores PT no município de Santo André ocorridas entre 1989 e 2016 e baseada sobretudo no enfrentamento da violência contra as mulheres e na promoção da equidade de gênero As informações registradas neste artigo podem ser úteis tanto para os movimentos de mulheres e organizações feministas quanto para os as gestoresas públicosas no sentido de servir de exemplo como melhores práticas para futuras iniciativas no âmbito da gestão local PALAVRAS CHAVES políticas públicas de gênero mulheres e polí tica administração pública local Gênero e Cidades 332 Secretária de Políticas para as Mulheres SPMPSA 2013 2016 333 Consultora ADMPSA 1990 1992 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 893 O IMPACTO DOS MOVIMENTOS DE MULHERES A PARTIR DE 1980 Sob o impacto da democratização e da luta de movimentos feministas e de mulheres desde os anos 80 tem ocorrido no Brasil um lento processo de incorporação da perspectiva de gênero nas agendas go vernamentais Uma ação governamental incluindo a dimensão de gê nero consiste na redução das desigualdades sociais entre mulheres e homens reconhecendo tanto suas diferenças quanto suas necessida des específicas e contemplandoas em suas políticas públicas Nos anos 1980 as mulheres organizadas nas Comunidades Eclesiais de Base CEBs na Pastoral da Criança na Associação das Mulheres de Santo André AMUSA promoveram lutas por creche saúde sacolões comunitários e combate à desnutrição infantil Ainda nesta década trabalhadoras de várias categorias sindicais juntamen te com outros grupos de mulheres organizaram a Coordenação de Mulheres do ABCDMRR composta por Santo André São Bernardo do Campo São Caetano do Sul Diadema Mauá Ribeirão Pires e Rio Grande da Serra realizando seminários manifestações e fazendose presente em encontros nacionais e internacionais 1989 A 1992 PRIMEIRO PERÍODO DE GESTÃO FEMINISTA NA PREFEITURA DE SANTO ANDRÉ PSA Por reivindicação do movimento de mulheres foram dados os pri meiros passos nas políticas municipais de gênero Assim em 1989 na primeira gestão do PT foi criada a Assessoria dos Direitos da Mulher ADM diretamente vinculada ao gabinete do prefeito tendo como coordenadora a feminista e socióloga Ivete Garcia Esta Assessoria foi uma das referências de implantação de políticas públicas de gênero em âmbito de gestão local no Brasil Destacamos aqui algumas pala vras do prefeito quando do 1º Encontro de Mulheres de Santo André em 1991 Nossa administração quer combater a violência sofrida pelas mulheres tanto nas ruas no trabalho como em suas casas porque entende que se trata de uma questão de caráter social 894 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça e político e que portanto deve ser objeto de ação do gover no Quando esta administração defende o Direito à Cidade é porque quer estabelecer outra forma de relacionamento entre o poder público e os cidadãos e cidadãs que privilegie os direitos sociais e garanta uma nova cultura política em direção ao refor ço da cidadania de todas as pessoas CONSÓRCIO 2003 p 2 Com a atribuição de incluir nas políticas públicas as demandas femininas a ADM centrou seu trabalho no enfrentamento à violência de gênero Uma de suas primeiras ações foi a de colaborar com o go verno estadual na criação da primeira Delegacia de Defesa da Mulher de Santo André DDM em 1990 Concomitantemente instituiu junto a esta Delegacia dois outros serviços essenciais o Atendimento social e jurídico especializado e a Casa de Apoio às Mulheres Vítimas de Violência Percebendo a necessidade de envolver todas as secretarias da Pre feitura com as políticas para as mulheres a ADM criou logo no início da gestão o Grupo Intesecretarial Elo Mulher com o objetivo princi pal de transversalizar as políticas de gênero por todas as suas secreta rias Este foi então o compromisso de cada uma das participantes do Elo Mulher lutar pela inclusão da perspectiva de gênero em sua área de atuação quando da formulação das ações governamentais Um primeiro exemplo deste envolvimento para atingir a trans versalização da perspectiva de gênero foi o trabalho desenvolvido pela ADM junto à Secretaria de Planejamento na discussão do Plano Di retor de Santo André PD e que culminou com o ponto de vista das mulheres aí incluído Assim o município de Santo André foi o pri meiro do país a inserir a dimensão de gênero em sua proposta de de senvolvimento urbano Com a consultoria da feminista e geógrafa So nia Calió realizada de 1989 a 1992 organizouse uma agenda pública de discussão em grupos nos bairros sobre o PD Formados sobretudo por trabalhadoras estudantes e donas de casa estes grupos discutiram e propuseram diversas ações urbanísticas que foram absorvidas pelo PD Porém devido aos recuos perpetrados pela gestão seguinte ele não foi aprovado pelo legislativo No entanto a belíssima experiência ficou registrada e inspirou ações futuras como veremos mais adiante Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 895 A ADMINISTRAÇÃO SEGUINTE E A EXCLUSÃO DAS POLÍTICAS DE GÊNERO De 1993 a 1996 a exclusão das políticas de gênero na administra ção seguinte sob o comando do Partido Trabalhista Brasileiro PTB marcou o retrocesso as mulheres foram excluídas da agenda local pela extinção da ADM e de todos os serviços de atendimento específicos Neste caso vale frisar o descumprimento do Art 278 da Lei Orgânica Municipal de 8 de abril de 1990 que enuncia Fica garantido na estrutura administrativa do Executivo órgão destinado a elaborar coordenar executar e fiscalizar políticas públicas de forma integrada com todos os órgãos da adminis tração pública direta e indireta que garanta o atendimento das necessidades específicas e enfrente as diferentes formas de dis criminação da mulher no próprio Poder Público e no municí pio SANTO ANDRÉ 1990 Apesar da reação do movimento de mulheres com manifestações e pedidos de audiência à administração nada foi realizado por essa gestão no que se refere às políticas de gênero O retorno das políticas de gênero gestões de 1997 a 2008 Foram três gestões consecutivas em que a Prefeitura Municipal de Santo André voltou a ser administrada pelo PT reacendendose as políticas de gênero e fazendo ressurgir a Assessoria dos Direitos da Mulher 1997 a 2000 segundo período de gestão feminista da ADM Coordenada pela feminista e liderança do movimento negro Ma tilde Ribeiro de 1997 a 2000 a atuação da ADM foi marcante Em 1998 foi criado o Centro de Referência da Mulher em Situação de Violência Vem Maria que se fortaleceu como política pública a tal ponto que em 03 de maio de 2004 foi institucionalizado por meio da Lei Municipal nº 8616 Esta Lei prevê apoio psicossocial e formação 896 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça profissional para as mulheres conquistarem sua autonomia e fazen do encaminhamentos às DDM Casas Abrigos e ou outros serviços de apoio para as mulheres poderem sair do ciclo de violência Seguindo a estratégia de empoderamento das mulheres e fortale cendo a sua atuação a ADM incluiu a perspectiva de gênero e raça na gestão participativa do Projeto Gerenciamento Participativo para as Áreas de Mananciais GEPAM uma parceria entre a municipalida de o governo e a universidade canadenses envolvendo a preservação ambiental da região Vale destacar ainda o esforço da ADM no fortalecimento de po líticas públicas de gênero junto ao Consórcio Intermunicipal Grande ABC criado em 1990 que tornou possível e real a articulação entre os poderes públicos municipais e os agentes socioeconômicos regionais sendo instituído neste período o Grupo de Trabalho de Combate de Violência contra as Mulheres neste Consórcio Nesta época a ADM coordenou o processo de formação da Fren te Regional de Combate à Violência contra as Mulheres com repre sentantes do executivo do legislativo e do movimento de mulheres da região do ABCDMRR Unindo esforços pactuando ações e compro missos esta Frente fortaleceu a agenda pública em defesa dos direitos das mulheres na região Com toda esta forte organização e articulação regional foi possí vel a concepção de uma casa abrigo regionalizada com a finalidade de proporcionar segurança e proteção às mulheres da região ameaçadas de morte por violência doméstica e familiar O processo envolvendo a implantação deste equipamento públi co regional foi impulsionado desde 1991 pelo movimento de mulhe res da região o que exemplifica o lento processo de incorporação da perspectiva de gênero nas agendas governamentais 2001 a 2004 terceiro período de gestão feminista da ADM No período de 2001 a 2004 a ADM passa a ser liderada pela so cióloga e feminista Silmara Conchão que fortaleceu o Programa Gê nero e Cidadania focado nas relações de gênero e violência doméstica nos projetos de habitação popular programa este que conquistou em Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 897 2002 o prêmio ONU Habitat de melhores práticas do mundo em gestão pública Foi por meio deste Programa que as primeiras ações de discussão a respeito das masculinidades tiveram início na cidade com grupos reflexivos com homens Diversas ações da gestão anterior tiveram continuidade e outras foram criadas Um exemplo referente ao enfrentamento à violência de gênero foi o Curso Promotoras Legais Populares PLP para formar lideranças comunitárias como multiplicadoras a fim de promover jus tiça direitos e cidadania em suas comunidades ou seja empoderando mulheres para conquistar autonomia financeira física e de tomada de decisões É fundamental destacar que do Curso de PLP em 2003 nasceu o Fórum de Luta das Mulheres Andreenses Fórmula Lilás Constituído por organizações de mulheres da sociedade civil discutia relações de gênero raça e cidadania organizava o calendário das ações relacionadas às datas afirmativas e realizava o controle social das políticas públicas fazendo as vezes de um Conselho de Direitos das Mulheres que nesta época ainda não existia Neste mesmo período na discussão do novo Plano Diretor da cidade a ADM criou diversas estratégias em conjunto com o Fórmula Lilás Com inspiração na gestão da ADM de 19891992 resgatouse materiais da época de 1990 Com estes nas mãos as mulheres se dedi caram a estudar também o Estatuto da Cidade e atuaram propositiva mente dividindose nas diversas comissões setoriais para que fossem ouvidas e as suas principais necessidades fossem consideradas Para que se multiplicasse na região esta iniciativa a ADM orga nizou também um seminário regional O Olhar Feminino sobre as Cidades no Consórcio Intermunicipal Grande ABC Novamente po dese ter o apoio total do mandato da Vereadora feminista na época a socióloga Ivete Garcia que foi a primeira Assessora dos Direitos da Mulher no município Por fim foi promulgado o Novo Plano Diretor da cidade Lei Mu nicipal nº 8696 de 17122004 Este incorporou além da linguagem inclusiva em todo seu texto no inciso XIX do artigo 8º que trata dos objetivos gerais da política urbana incluir políticas afirmativas nas diretrizes dos planos setoriais visando a redução das desigualdades de gênero SANTO ANDRÉ 2004 898 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Em 2003 houve o lançamento do Plano Regional do ABC de Combate à Violência contra as Mulheres pelo Grupo de TrabalhoGT Gênero e Raça do Consórcio Intermunicipal Grande ABC que oficia lizou a primeira Casa Abrigo Regional e previu a criação da segunda casa com a participação financeira dos sete municípios Esta segunda Casa Abrigo foi possível com investimento do Governo Federal por meio da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República 2005 a 2008 extinção da ADM e a criação de um novo organismo de gestão A gestão seguinte do PT de 2005 a 2008 com o propósito de for talecer a transversalidade de gênero extinguiu a ADM e em seu lugar criou o Núcleo de Políticas de Gênero Raça Geração e Pessoa com Deficiência ligado diretamente à Secretaria de Governo Na verdade esta mudança veio na contramão dos estudos feministas que defen diam e continuam defendendo um organismo específico de políticas públicas para as mulheres e com status de primeiro escalão visto que gênero e raça são estruturais na sustentação das desigualdades discri minações e preconceitos estabelecidos na sociedade diferentemente das diferenças de idade e por deficiência No entanto o fato de estar em um local estratégico de poder não garantiu o sucesso de suas ações pois a desconsideração pelos 12 anos de experiências desenvolvidas anteriormente não colaborou para que este Núcleo levasse à frente políticas inéditas de gênero pelo contrá rio fragilizou as ações em andamento provocando distanciamento dos movimentos sociais Com a extinção do Grupo de Trabalho Inter secretarial Elo Mulher houve também a desarticulação das políticas de gênero entre as áreas do governo Em 2005 sob a coordenação da cidade de Santo André o Consór cio Intermunicipal lançou o Projeto Gênero Raça Pobreza e Emprego do ABC GRPE que colocou nas ruas das sete cidades a campanha As diferenças são naturais as desigualdades não tendo a participa ção dos movimentos sociais e do poder público Realizou também um extenso curso de formação com mais de 100 gestores e gestoras e lide ranças sociais produzindo inclusive material de sensibilização sobre a questão diversidade de gênero e raça Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 899 Realizouse neste período o Seminário Regional de Combate à Violência contra as Mulheres e Perspectiva Racial no Grande ABC Lançouse também a Revista Programa Gênero Raça Pobreza e Em prego do Grande ABC É importante registrar duas ações neste período que fizeram a diferença na área da saúde por meio da Rede de Saúde para Atenção à Violência e Abuso Sexual RESAVAS criada em 2002 que foram a notificação compulsória para a criação do banco de dados da violência contra as mulheres crianças e adolescentes e a assistência ao aborto legal no âmbito municipal 2009 2012 Nova gestão da Prefeitura e a luta das mulheres no município Uma nova gestão do PTB foi eleita no município Dentre os avan ços e os retrocessos ocasionados por diferentes administrações essa gestão manteve na Secretaria de Governo o modelo do núcleo referido acima mas agora com o nome de Departamento de Humanidades Todavia a atuação do movimento de mulheres nunca parou na cidade Além dos movimentos já existentes desde a década de 1990 como FéMinina Movimento de Mulheres de Santo André Negra Sim Movimento de Mulheres Negras de Santo André Viva Melhor Associação de Apoio às Mulheres Mastectomizadas Em 2009 so mase a Associação de Promotoras Legais Populares de Santo André PROLEG Esta Associação desde este período tomou a frente da organização do Curso de Formação de Promotoras Legais Populares com ou sem apoio da Prefeitura Outra entidade a FéMinina a partir de 2011 levou o curso para os bairros Estes cursos seguem até os dias de hoje realizados no centro e nos bairros da cidade multiplicando se e fortalecendose em suas ações exercendo um papel essencial na garantia dos direitos e fortalecimento da Rede de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres da cidade Em 2009 as mulheres andreenses conquistaram também o Conse lho Municipal dos Direitos da Mulher CMDM Lei Municipal 9194 de 14122009 órgão deliberativo e indicativo da política municipal de gênero que busca assegurar às mulheres o exercício pleno de sua cidadania sua integração nas atividades sociais econômicas políticas 900 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça e culturais Relevante considerar a importância do CMDM mulheres organizadas na Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres em 2011 aprovaram a proposta de criação de uma Secretaria de Polí ticas para as Mulheres SPM em Santo André Nas eleições municipais de 2012 mulheres feministas assumem a disputa para cargos no legislativo levantando a importância do res gate das experiências já ocorridas no município e dessa forma com prometendo publicamente o candidato a Prefeito do PT de então com as causas das mulheres e a criação da primeira Secretaria de Políticas para as Mulheres em Santo André 2013 a 2016 inovando a política de gênero Eleita a nova administração do PT de 2013 a 2016 que inovou e fez história atendendo à reivindicação do movimento de mulheres criou a Secretaria de Política para as Mulheres SPM expressão de um novo modelo de gestão comprometido com a igualdade no sentido de fomentar novas relações sociais de superar o machismo e o racismo visando à construção de uma sociedade mais justa sem violência e democrática para mulheres e homens A pressão do movimento de mulheres em geral através do CMDM e a articulação das feministas nos partidos políticos foram as responsáveis pela inclusão da criação da SPM como órgão admi nistrativo de primeiro escalão na Lei de Reforma Administrativa 95462013 A SPM foi o primeiro e único organismo de política para as mulheres de primeiro escalão entre as cidades da região do Gran de ABC E no início de 2014 tomou posse a feminista e socióloga Silmara Conchão como primeira Secretária da SPM de Santo André experiente coordenadora da ADM em anos anteriores Não sem dificuldades é inegável e comprovada historicamente a importância que teve as gestões do PT nas esferas do poder executivo para a incorporação das pautas feministas na região do Grande ABC que se tornou um verdadeiro laboratório de pesquisas acadêmicas de gestão de políticas públicas pautadas nestas experiências aqui breve mente relatadas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 901 O impacto das Políticas Públicas coordenadas pela SPM em quatro anos de gestão A ascensão do governo democrático popular reiniciado em 2013 direcionou o sentido das políticas sociais ampliando a responsabili dade do governo local em priorizar a reestruturação de políticas pú blicas de gênero através da criação da SPM Ao longo deste governo reivindicações históricas das mulheres se materializaram por ações tais como a assinatura do Pacto Nacional de Enfrentamento à Violên cia contra a Mulher e a campanha Compromisso e Atitude pela Lei Maria da Penha a lei é mais forte foram marcos iniciais de retomada do governo em defesa dos direitos da mulher Desenvolver estratégias para que a dimensão de gênero fosse considerada por todas as secretarias municipais no momento de pla nejar políticas públicas foi bastante desafiador por um lado levou à ruptura com a verticalização usada para produzir e ofertar serviços e por outro a integração de objetivos e procedimentos dos órgãos de governo acabando com o paralelismo e a pulverização das ações duas das maiores deficiências das gestões públicas atuais A nova secretaria ao utilizar a transversalidade como método de gestão para a inclusão da perspectiva de gênero no cerne da política de governo como forma de permear todos os setores comandou um tra balho sistemático contínuo e abrangente no decorrer de toda a gestão O lugar estratégico de primeiro escalão que a SPM então ocupa va foi fundamental em sua autonomia quanto à articulação das ações Trabalhar sem receios era como ter ar oxigênio para falar de igual para igual com qualquer autoridade fosse ela juiz ou juíza delegado ou delegada todo o secretariado etc possibilitando várias ações ime diatas e incisivas tanto no enfrentamento à violência contra as mulhe res como na questão da equidade de gênero Com o objetivo de promover a igualdade entre homens e mulhe res e combatendo todas as formas de preconceito e discriminação a SPM buscou incluir a cidadã em todo o processo de desenvolvimento social econômico político e cultural de Santo André Com este mode lo de gestão a Prefeitura ratificou seu compromisso com a promoção da igualdade e da equidade através de políticas que contribuíram para a transformação das relações entre as pessoas Suas ações basearamse em dois eixos de trabalho 902 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça EIXO I Enfrentamento da violência contra as mulheres do qual faziam parte o Vem Maria Centro de Atendimento às Mulher em Situação de Violência Doméstica Lei Municipal 86162004 oferece atendi mento integral às mulheres Quando em risco de morte iminente são encaminhadas a um local sigiloso de moradia com segurança e prote ção para retomarem suas vidas a Casa Abrigo Regionalizada Desde o início da gestão da SPM houve 70 de aumento de atendimento Em 2018 o Vem Maria completou 20 anos de existência Programa E Agora José criado em parceria com o Fórum Gêne ro e Masculinidades do ABC Este programa era articulado sobretudo com as áreas de Segurança Saúde e Participação promove atividades educativas em grupos de reflexão com abordagem responsabilizante com homens autores de violência contra as mulheres condenados e encaminhados pelo poder Judiciário Atualmente com a extinção da SPM o programa não está mais vinculado à Prefeitura Municipal é coordenado pela OSC Organização da Sociedade Civil Entre Nós em parceria com o Fórum da Comarca de Santo André EIXO II Equidade de Gênero composto dos seguintes programas Quem Ama Abraça Fazendo Escola em parceria com a Secreta ria de Educação este programa objetivava fortalecer o espaço escolar como campo privilegiado para a superação das diferentes formas de violência de gênero Iniciado em 2014 envolveu equipes municipais de ensino em rodas de conversas com alunosalunas e suas famílias Projeto Gênero Saúde e Meio Ambiente ações socioeducativas com mulheres e jovens das áreas de mananciais Parque Andreense e Vila de Paranapiacaba em parceria com a Faculdade de Medicina ABC Pontos de Gênero discussões sobre relações de gênero em todos os cantos da cidade Diversos cursos oficinas e palestras aconteceram como por exemplo PLP Mulheres e homens pela paz contra o tráfico de mulheres e violência sexual Se liga na parada Gênero com juven tude Formação para servidoras e servidores Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 903 Datas Afirmativas dando visibilidade às lutas e conquistas das mulheres realizaramse atividades alusivas ao mês da mulher Alguns exemplos a Parada Lilás passeata pelas principais ruas do centro da cidade para valorização da mulher e afirmação de seus direitos Outu bro Rosa mês internacional de prevenção contra o câncer de mama 21 dias de ativismo pelo fim da violência de gênero Campanha de prevenção das doenças coronárias nas Mulheres Quem Ama Cuida Elo Mulher Grupo Intersecretarial de Políticas para as Mulhe res enfrentando as desigualdades de gênero mensalmente o Elo Mu lher reuniase com a responsabilidade de promover as políticas pú blicas de forma matricial e integrada garantindo a transversalidade de gênero como por exemplo Agenda integrada do mês da mulher Outubro Rosa Pacto nacional pelo enfrentamento à violência contra as mulheres Assessoria LGBT com base nos princípios constitucionais de liberdade igualdade não discriminação e dignidade da pessoa huma na esta assessoria atuou para garantir direitos à população LGBT Al guns exemplos atividades no Dia de combate à Homofobia formação profissional e inserção no mercado de trabalho rodas de conversa saraus e oficinas formação para servidores e servidoras seminários o Transfeminismo II Conferência Regional LGBT atendimento e encaminhamento para a rede de proteção CMDM Conselho Municipal dos Direitos da Mulher atuou para assegurar às organizações de mulheres o exercício pleno da cida dania através da organização de um sistema de controle social fiscali zando e propondo políticas públicas Grupo de Trabalho GT Gênero do Consórcio Intermunicipal do Grande ABC objetivava o fortalecimento de políticas para as mu lheres na região através de ações regionais multiplicando experiên cias exitosas e espaços de formação Mulheres de Santo André em Pauta a SPM em parceria com a Secretaria de Orçamento e Planejamento Participativo lançou em março de 2015 esta publicação apresentando um perfil socioeconô mico feminino e o mapa da violência contra as mulheres que subsi diou a elaboração de políticas municipais especialmente as relativas ao risco de violência e baixa qualidade de vida das mulheres redire cionando as ações municipais para as regiões mais vulneráveis 904 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A IV CONFERÊNCIA MUNICIPAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES Em março de 2015 a SPM realizou 32 préconferências de prepa ração da IV Conferência Municipal de Políticas para as Mulheres com o tema Mulher diga a cidade que você quer A partir da distribuição de 98 urnas por toda rede municipal de ensino com este tema conse guiuse atingir neste processo em parceria com o grupo intersecre tarial Elo Mulher e o grupo da Secretaria de Educação Quem Ama Abraça mais de 5000 mulheres andreenses Em relação ao trabalho nas escolas com as urnas Mulher diga a cidade que você quer percebeuse grande envolvimento das famílias das funcionárias alunas e alunos dos Conselhos de Escola e Conse lhos Mirins da Educação de Jovens e Adultos e dos Cursos Profissio nalizantes O empenho das multiplicadoras da Campanha Quem Ama Abraça que já vinha discutindo questões de gênero nas escolas faci litou o potencial desta ação o que fez mudar o cenário de descrédito Muitas Escolas criaram o Cantinho Lilás e organizaram Chá de Mulheres Em algumas ocorreram discussões produtivas e até emo cionantes Outras envolveram homens funcionários para oportunizar a participação de suas esposas irmãs e mães valorizando suas opi niões Outras ainda enviaram a pesquisa para casa para serem preen chidas e devolvidas pelas crianças Uma escola trabalhou o tema da violência nas rodas de conversa depois fez a leitura da Lei Maria da Penha em cordel Houve relatos de casos de mães parentes vizinhas alunas e alunos que sofreram violência doméstica Uma verdadeira revelação epidemiológica da violência contra a mulher e ainda silen ciada na vida dos alunos e alunas professores e professoras Mais do que nunca todo esse processo envolvendo discussões trouxe à tona a questão da Segurança como a mais significativa prin cipalmente quanto ela se refere à violência de gênero vivida tanto em casa como na rua Elas clamaram por justiça e punição aos homens agressores Em segundo lugar apareceu a área da Saúde com a de manda de atendimento mais agilizado e mais humanizado para as especialidades femininas Em terceiro lugar veio a Educação muitas disseram que por trabalharem o dia todo ficariam mais seguras ten do suas filhas e filhos em período integral nas escolas Assim sendo Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 905 pediram mais vagas no Projeto Mais Educação apontando ainda a ne cessidade de vagas em creches e a qualificação do ensino médio De forma menos expressiva apareceu a preocupação com melhorias no transporte público e a manutenção de áreas de lazer e vias públicas inclusive iluminação Vale ressaltar que existe uma diversidade de condições sociais e econômicas Muitas mulheres são chefes de família e outras não tra balham fora de casa Porém todas são responsáveis pela educação e sustento dos filhos e filhas dependendo de equipamentos sociais fora do turno escolar para garantir uma melhor qualidade de vida Neces sitam serviços ampliados e mostraramse preocupadas com a forma ção de professores e professoras a respeito da a questão da violência contra a mulher que ocorre nas escolas e na rua Analisando as demandas apontadas observouse que a realida de vivida por essas mulheres se caracteriza por uma rotina de muito trabalho e luta cotidiana necessitando de apoio em vários aspectos e também de oportunidades de estudo e emprego Verdadeiras guerrei ras a maior parte acumula jornada de trabalho dentro e fora de casa com o acompanhamento escolar das filhas e filhos sem tempo neces sário para cuidarem de si da sua saúde física sexual e emocional A partir deste grandioso processo ficou a convicção de que avan çar é necessário para que as mulheres tenham como um direito a re taguarda das políticas públicas e uma vida livre de qualquer forma de discriminação ou violência Direitos só saem do papel quando as pessoas puderem exercêlos com igualdade Um município fortaleci do é aquele que fortalece as potencialidades de todos e de todas seus sonhos e projetos de vida Direito à Cidade CONSIDERAÇÕES FINAIS Diferentemente dos outros setores do poder executivo que têm áreas de responsabilidade claramente definida com normas rotinas e procedimentos bem estabelecidos os organismos que envolvem ges tão de gênero têm de se articular com os outros setores e promover políticas integradas Precisam mostrar e divulgar suas ações seus re sultados e seu impacto sobre as desigualdades de gênero Qualquer 906 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça avaliação de seu alcance deve considerar as ações de outras secretarias que podem favorecer ou dificultar seu funcionamento principalmen te se a área de políticas para as mulheres não tiver poder para promo ver a articulação necessária dentro e fora da gestão Embora a transversalidade de gênero nas políticas públicas não deva se constituir apenas por ações ou programas que atendam às ne cessidades das mulheres há que se dar visibilidade às mulheres jovens às idosas às lésbicas às negras às pobres às deficientes e a toda varie dade de situações enfrentadas por elas As mulheres são mais da metade da população e estão assumindo cada vez mais papel decisivo em vários setores da sociedade inclusi ve na economia e na política do país Mas ainda há muitos espaços a serem alcançados até porque as mudanças avanços e conquistas que tivemos ainda não atingiram de maneira igualitária toda a diversidade do universo feminino A construção de políticas de gênero é um processo sobretudo pela complexidade das mudanças que isso traz Implica em mudanças na própria organização da sociedade civil na organização da máquina pública implica em mudanças de ordem econômica social política e sobretudo cultural A mudança na organização da máquina pública se faz com muita dificuldade visto que comumente as Assessorias eou Coordenado rias da Mulher estão situadas hierarquicamente em espaços destituídos de poder e com baixíssimo orçamento Dentro da estrutura de poder o trabalho ainda é o de convencimento dos e das gestoras e funcionárias em geral O Estado é masculino e é um representante institucional do poder patriarcal Em última instância a perspectiva de gênero nas políticas públicas subverte a estrutura do poder constituído Com estas considerações percebese que desde 1989 a traje tória das políticas públicas de gênero no município de Santo André apresentou avanços significativos porém consideráveis retrocessos Estes aconteceram nos períodos das gestões de 19931996 20092012 e 20172020 originados pelo fato de os partidos de centrodireita ocu parem o poder De 2013 a 2016 com a criação da SPM reivindicações históricas do movimento de mulheres e feminista foram institucionalizadas As Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 907 políticas de gênero foram elevadas ao primeiro escalão na estrutura administrativa do governo com autonomia orçamento e estruturas próprias Confirmando o que DENÚBIA 2015 em sua pesquisa de mestrado sobre o desenvolvimento do trabalho intersetorial nas po líticas públicas de gênero em Santo André constata é perceptível que a posição desse organismo no primeiro escalão potencializou articu lação entre os demais setores a elaboração e execução de políticas e programas e enfrentamento como a transversalidade de gênero nas políticas Apesar de que a SPM fez avançar a justiça de gênero para as mu lheres andreenses como um todo em suas ações ela priorizou aquelas em situação de maior vulnerabilidade pobres negras e trans com o olhar especial da interseccionalidade para que pudessem ampliar suas oportunidades em usufruir de políticas públicas e exercer a cidadania plena O fato da SPM ter poder no primeiro escalão do governo possi bilitou pautar questões polêmicas e que os governos sempre evitam Garantiuse segurança e acessibilidade na realização do aborto legal no Hospital da Mulher Maria José Stein de Santo André Este serviço havia sido implementado em 2007 interrompido entre 2009 a 2012 e retomado com a criação da SPM em 2013 Antes as mulheres que precisavam deste procedimento eram encaminhadas para o serviço de referência existente na capital É importante deixar aqui registra do que o atendimento ao aborto legal não pôde ser publicizado pelo temor do grupo dirigente ou núcleo duro do governo de contrariar setores fundamentalistas Outra ação polêmica foi a parceria histórica com a Secretaria de Educação a capacitação em gênero foi levada para dentro da rede de ensino municipal em um momento adverso quando setores con servadores e defensores da escola sem partido atuam para tirar do Plano de Ensino todas as referências às palavras gênero diversidade educação sexual A incidência das políticas para as mulheres na desconstrução da cultura patriarcal foi um trabalho incansável Um bom exemplo foi que a SPM esteve de prontidão apontando a necessidade do uso da linguagem inclusiva A Lei Municipal n 8241 de 27 de setembro de 2001 instituiu o uso de linguagem inclusiva na legislação municipal 908 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça e o Decreto nº 16530 de 26 de junho de 2014 ampliou a regulamen tação desta lei ao disciplinar a forma de alusão à pessoa do gênero feminino em atos normativos a cargos empregos funções públicas e documentos oficiais e reconhecer o nome social da cidadã e do cida dão travesti e transexual SANTO ANDRÉ 2001 2014 Ampliouse a transversalidade e a intersetorialidade ao se consi derar as políticas de gênero no planejamento estratégico governamen tal Porém o Grupo Intersecretarial Elo Mulher que se propunha a tratar a transversalidade de gênero não foi por si só capaz de transver salizálo na estrutura do governo como um todo Ocorreu neste grupo um processo de sensibilização e formação que atingiu diferentemente suas participantes Algumas secretarias mostraramse impermeáveis às questões de gênero e às políticas que deveriam ser tratadas trans versalmente muitas de suas ações acabavam por reforçar estereótipos de gênero Foi preciso muito esforço para que as ações da SPM tives sem eco em ações próprias das demais secretarias Essa dificuldade em trabalhar com transversalidade e interseto rialidade é característica das políticas sociais Por sua complexidade deveriam atuar integradamente e reconfigurar numa nova lógica as estruturas de poder das políticas públicas a partir de mudança de va lores e da cultura organizacional repensar o velho modelo de atuação especializada e setorizada Quanto às ações que garantissem maior autonomia econômica às mulheres constatouse que foram poucas e bastante frágeis devido sobretudo as políticas locais atuarem muito subordinadas às macro políticas A autonomia depende muito mais dos contextos e do nível de desenvolvimento da sociedade isto é depende do resultado de mu danças na sociedade no que diz respeito ao aumento de liberdade e na diminuição das desigualdades CEPAL 2015 Apesar da SPM ter sido criada e existido em um governo demo crático popular em nível local a centralidade da economia global con tinua sendo na reprodução do capital A autonomia econômica das mulheres está estreitamente ligada a pensar alternativas que não fo ram contempladas pela teoria econômica neoclássica nem tampouco pelo marxismo ENRIQUEZ 2015 Como defende a economia femi nista dificilmente um governo local teria êxito em mudar por si só essa centralidade do capital para romper com o estabelecido ao pôr luz Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 909 na sustentabilidade da vida entendida como uma relação dinâmica e harmônica entre humanidade e natureza e entre humanas e humanos CARRASCO 2006 Um desafio importante é o do poder público encontrar condições orçamentárias suficientes para investir em políticas de gênero visto que com o avanço do neoliberalismo o Estado vem cada vez mais diminuindo direitos e garantias nas políticas sociais atingindo de ma neira brutal os mais pobres e entre eles sobretudo as mulheres Outra questão que a SPM não conseguiu enfrentar foi a injustiça da representação feminina Além de não ter sido aprovada no Con gresso Nacional uma reforma política de forma a garantir a partici pação equânime não houve tempo e recursos para ações no sentido de fortalecer as candidatas aos cargos no legislativo local Assim a re presentatividade feminina nos espaços de poder e decisão mantevese insignificante Como defende FRASER 2002 nem a redistribuição nem o reconhecimento são possíveis sem representação Estes são alguns novos desafios que poderiam ser assumidos na continuidade da SPM no município Infelizmente não houve tempo para que as políticas públicas voltadas às mulheres se tornassem polí ticas de Estado tendo sido extintas pelo governo neoliberal que assu miu em 2017 No final de 2016 o governo petista perdeu as eleições municipais e a nova gestão passou a ser comandada por prefeito do PSDB que extinguiu a Secretaria de Políticas para as Mulheres no mu nicípio Ou seja um passo à frente e dois para trás novamente um grande retrocesso334 334 Não podemos deixar de registrar que em 11 de maio de 2016 um dia depois da abertura da Conferência Nacional de Política para as Mulheres em Brasília vimos de perto o histórico e lamentável episódio do impeachment da Presiden ta Dilma Rousseff a primeira mulher eleita para o comando do país e arranca da do poder por interesses pessoais políticos e econômicos Esse golpe além de desconsiderar os 54 milhões de votos que a elegeu pela segunda vez veio prejudicar os processos democráticos de gestão e fortalecimento de políticas sociais tão necessárias à igualdade justiça e recuperação econômica do Brasil 910 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CARRASCO C La economía feminista Una apuesta por otra econo mia Estudios sobre género y economía v 15 p 29 2006 CEPAL N U Informe regional sobre el examen y la evaluación de la Declaración y la Plataforma de Acción de Beijing y el documento final del vigesimotercer período extraordinario de sesiones de la Asamblea General 2000 en los países de América Latina y el Caribe 2015 CONSÓRCIO INTERMUNICIPAL GRANDE ABC Plano Regio nal do ABC de Combate à Violência à Mulher Santo André 2003 DENÚBIA L A A intersetorialidade no enfrentamento a violên cia contra a mulher uma análise da experiência do município de Santo AndréSP Dissertação de mestrado da Escola de Administração de Empresas FGV São Paulo 2015 ENRÍQUEZ C R Economía Feminista y Economía del Cuidado Aportes Conceptuales para el estudio de la Desigualdad Nueva so ciedad n 256 pp 3044 2015 FRASER N A justiça social na globalização redistribuição reco nhecimento e participação Revista crítica de ciências sociais v 2012 n 63 p 0720 2012 JUNQUEIRA L A P Novas formas de gestão na saúde descentra lização e intersetorialidade Saúde e Sociedade v 6 n 2 p 3146 1997 SANTO ANDRÉ Lei Orgânica de Santo André de 8 de abril de 1990 Disponível em httpwwwcmsandrespgovbrindex phpoptioncomcontentviewarticleid473Itemid24 Acesso em 30052018 Lei Municipal 82412001 Dispõe sobre o uso da Linguagem Inclusiva na Legislação Municipal 2001 Disponível em httpcon sultasiscamcombrcamarasantoandrearquivoId35010 Acesso em 14082017 Lei Municipal 86962004 Institui o novo Plano Diretor do município de Santo André 2004 Disponível em httpwwwcm sandrespgovbrindexphpoptioncomcontentviewarticlei d505Itemid64 Acesso em 30052018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 911 Decreto Municipal nº 165302014 Dispõe sobre o uso da Linguagem Inclusiva na Legislação Municipal 2014 Disponí vel em httpconsultasiscamcombrcamarasantoandrearqui voId47227 Acesso em14082017 912 A FEMINICIDADE UMA ANÁLISE SOBRE A AUSÊNCIA DAS MULHERES NO DISCURSO URBANÍSTICO E A DESPATRIARCALIZAÇÃO DAS CIDADES Letícia Graça Generoso Pereira335 Gabriela Mendes Cardim336 Resumo A epistemologia urbanística assim como as ciências sociais de forma geral possui uma forte lacuna no tangente a presença fe minina em seu processo de desenvolvimento O presente artigo de cunho qualitativo preocupado com os lugares designados às mulhe res na atualidade lugares esses físicos e abstratos objetiva investigar como a relação entre as origens do capitalismo a divisão sexual do trabalho o surgimento das cidades e a construção do conhecimento como um saber localizado influencia no direito à cidade para as mu lheres A partir do levantamento bibliográfico sobre o tema e da aná lise de um estudo de caso acerca do projeto de resistência feminista chamado Corpo Político Corpo Sensível concluise que os espaços urbanos são reflexos de um arranjo teórico e prático que obedece as bases fundamentais do capitalismo e que as mulheres só conseguirão subverter essa dinâmica social através da apropriação dos saberes da construção coletiva e do uso das cidades Palavraschave Saberes lo calizados ausência feminina direito à cidade 335 Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ 336 Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 913 1 INTRODUÇÃO A sociedade foi moldada ao longo de toda a história da humanidade conhecida e registrada até a idade contemporânea através de diversas nuances Uma das principais características que podemos utilizar para definir seus diferentes períodos é o processo produtivo encontrado nos registros de cada um desses Para a sociedade urbana dois marcos pertinentes ao proces so produtivo devem ser ressaltados como divisores de águas no que tange a sua formação O momento em que o nomadismo deixou de ser a principal forma de vida existente através do fim da soberania dos povos caçadorescoletores Em seu lugar aqueles que adotaram a agricultura como modo de se fixar a um único espaço demarcado encontraram facilidades que foram essenciais para o surgimento das primeiras grandes civilizações O segundo momento a ser destacado é a influência da era industrial a partir da passagem da manufatura para a adoção de maquinário na definição do espaço urbano e como ele se configurou em prol da absorção de excedentes jamais vistos na história O autor David Harvey defende que como a urbanização depende da mobilização de excedente emerge uma conexão estreita entre o desenvolvimento do capitalismo e a urbanização HARVEY 2012 p74 Portanto o processo histórico no qual o capitalismo ascendeu como regime econômico político e social possui segundo a visão tra dicionalmente aceita a revolução industrial como seu mito fundador As bases para esse sistema encontram suas raízes nas grandes transfor mações contidas no surgimento das cidades europeias durante o sé culo XVIII O advento da indústria nascente consolidou o modelo de sociedade na Europa pioneiramente na Inglaterra que posteriormen te se tornou aquele a ser perseguido pelas demais ao redor do mundo no qual um complexo urbano se aglomerava em torno do epicentro que as fábricas representavam sendo ele de controle e distribuição do capital excedente detidos por uma parcela social minoritária enquan to a grande maioria da população acumulavase na chamada classe trabalhadora aquela que não detinha os meios de produção e conse quentemente não detinha o capital financeiro 914 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A hierarquização da sociedade em classes categorias amplamen te sustentadas pelos estudos do sociólogo Karl Marx e do filósofo Frie drich Engels que segundo os mesmos era fundamental para manuten ção do sistema capitalista ou seja um sistema no qual a exploração da classe dominante sobre a trabalhadora definia o desenvolvimento da sociedade através do acúmulo da propriedade de bens materiais Dentre os bens materiais acumulados a posse e o controle sobre espaços urbanos e rurais foi decisiva para a construção da dinâmica das cidades transformadas durante a revolução industrial O exponen cial crescimento demográfico resultou em verdadeiros formigueiros ao redor das fábricas no entanto os moldes de exploração tornavam a vida da maior parte da nascente sociedade urbanoindustrial permea da por má condições de saúde e habitação Em A situação da classe trabalhadora na Inglaterra de Friedrich Engels em 1945 escreveu um capítulo para retratar a vida dos prole tários nas cidades industriais inglesas do século XIX no qual o au tor aponta o gradual isolamento das classes mais pobres em direção a bairros distantes e insalubres onde verdadeiro caos de casas amon toadas mais ou menos inabitáveis e cujo interior está em perfeita har monia com a sujeira das redondezas A exploração brutal da mão de obra com pagamento de baixos salários e condições de trabalho de gradantes nas fábricas completa o quadro de miséria em que viviam os operários ingleses ENGELS 1975 p 35108 Observando a gênese dos grandes centros urbanos em conjunto com o capitalismo vários autores teorizaram acerca de como decorreu essa imposição do sistema sobre a sociedade seus espaços e corpos como elementos urbanos No entanto dentro dessas bases teóricas consagradas é de fácil percepção a ausência de um lugar para o fe minino que cruze a narrativa hegemônica sobre o capitalismo e seus centros urbanos Durante a lenta e gradual instalação do capitalismo onde estavam essas mulheres A que papel elas foram submetidas dentro da Divisão Internacional do Trabalho Porquê suas narrativas não estão presentes nas bases teóricas do capitalismo que construíram as cidades E que papel elas exerciam antes da dominação capitalista dos seus corpos Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 915 2 A AUSÊNCIA FEMININA NA NARRATIVA HISTÓRICA NO URBANISMO E NAS CIDADES a As raízes históricas da ausência feminina uma análise sobre a caça as bruxas Realizando um resgaste histórico ao período anterior ao fim do feudalismo no qual a divisão sexual do trabalho ainda não havia sido estabelecida pelos moldes das transformações urbanas iniciadas no sé culo XVIII um evento em específico pode ser apontado como respon sável pela supressão da participação feminina marcada por sua força seus saberes e sua resistência que é presente até os tempos recentes Tal evento é aquele conhecido como Caça as bruxas liderado pela igreja católica e aristocracias feudais presente nos livros de história e demais registros como uma tentativa de aniquilar aquelas mulheres que detinham magia e a utilizavam para o mal segundo as crenças medievais No entanto o que podemos extrair a partir desse evento símbolo é que o feudalismo foi em período histórico muito diferente daquele que é ensinado nos livros didáticos Não foi um período monótono com suas damas e cavaleiros Pelo contrário havia muita luta porque as pessoas percebiam que estavam sendo afastadas da terra e de suas vidas comuni tárias naquele tempo que viria ser reconhecido como um em brião do capitalismo Federeci 2017 As comunidades de quase todo o mundo possuíam a presença das mulheres em espaços além daqueles que tradicionalmente vemos designados a elas Elas acessavam a terra eram lavradoras pedreiras curandeiras parteiras Possuíam conhecimento sobre a natureza so bre ervas origem da visão que as crucificou como bruxas decidiam sobre reprodução tinham direito a seus corpos e espaços Segundo a historiadora italiana Silvia Federeci em sua obra intitulada Calibã e a Bruxa 2017 Ali os processos reprodutivos estavam em pé de igual dade com a produção 916 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Dessa maneira a caça as bruxas pode ser entendido como a base para a estrutura da exploração capitalista uma vez que o sequestro da autonomia das mulheres inaugurou uma hierarquização da divisão sexual do trabalho a partir de uma separação entre a produção e a reprodução O resultado da queima das mulheres sábias independen tes irreverentes muitas vezes pobres e solteiras as bruxas resultou no confinamento daquelas que tiveram permissão para sobreviver aos cuidados do lar e a reprodução obediente associando essas atividades a capacidade e dom natural da mulher dentro da sociedade Por outro lado aos homens foi dado o papel exclusivo de trabalhar fora de casa e o recebimento de dinheiro como recompensa Assim junto com as mulheres queimadas na fogueira foi também destruída a resistência ao incipiente capitalismo ao mesmo tempo que se estabeleceu a dependência e subordinação aos homens já que eles eram aqueles que obtinham dinheiro e portanto o controle das cida des espaço essencial para o desenvolvimento desse sistema No entan to por ter sido uma implantação lenta e gradual o lugar reservado a mulher de afastamento do trabalho e subordinação masculina se en raiou na dinâmica da sociedade e passou a ser vista como algo com pletamente normal Federeci 2017 argumenta que na verdade eram bases criadas para o sistema capitalista e que funcionam até hoje Para a autora italiana esse mecanismo de alienação da autono mia feminina é repetidamente utilizado quando o capitalismo se sente ameaçado Estamos acostumados a pensar na caça às bruxas como algo que já passou mas sempre que o capitalismo bambeia voltamos a experimentála É uma história do presente FEDERECI 2017 Em seu livro Calibã e a Bruxa é citado um exemplo atual que ilustra tal prerrogativa A crescente violência contra as mulheres assim como as minorias compostas por negras e negros e pela comunidade LGBT é chamado de colonização global b O debate teórico sobre os saberes localizados uma perspectiva feminista sobre a ausência da mulher no Urbanismo A partir de que perspectiva é construída a cidade a casa a fábrica e o parque A autora Donna Haraway desenvolve o conceito de saberes loca lizados isto é o conhecimento localizado devido a limitação da expe Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 917 riência considerada que serve de base para a perspectiva epistemológi ca hegemônica Essa limitação coloca desafios a objetividade feminista para o posicionamento em unidade e a construção de um discurso úni co Haraway defende a necessidade de posicionamento para a criação de uma doutrina e uma prática que privilegie a contestação a desconstru ção as conexões em rede e a esperança dos sistemas de conhecimento e nas maneiras de ver HARAWAY 1995 p 24 O saber privilegiado permeia todo o conhecimento produzido até os dias de hoje A suposta universalidade criada para a produção científica ignora a necessidade de ampla consciência coletiva para que o conhecimento seja reflexo de uma produção condizente com a rea lidade de todos os sujeitos sociais e que carregue representatividade As mulheres têm assistido a sua exclusão ao protagonismo epistemo lógico através de diversos processos nos quais a sua identidade é apro priada assim como suas ideias Além disso é fato que o favorecimento de biografias a seletividade das memórias históricas e a alteração das narrativas têm contribuído para esse processo A resistência das mulheres a continuidade da perspectiva parcial acerca dos saberes vem trazendo frutos para a alteração dessa lógica imposta Segundo Durán em sua obra intitulada La ciudad comparti da conocimiento afecto y uso En el siglo pasado y en este ha habido importantísimas pro ducciones intelectuales dimanadas de la conciencia de que una sola clase social no podia hablar en representación de todas En este fin de siglo XX y comienzos del XXI les toca a las mujeres un acceso generalizado a la conciencia colectiva a la posibili dad por primera vez en la historia de repensar o recrear la cultura desde su propia experiencia histórica y presente que ha sido y sigue siendo todavía muy diferente a la de los varones DURÁN 2008 p 17 Assim dentro da ciência urbanística não poderia ser diferente A grande maioria do que se têm escrito sobre as cidades possui como preceitos teóricos a análise do sujeito privilegiado que produz conhe cimento acreditandose que é um sujeito universal e transparente exatamente como argumenta a autora MariaÁngeles Durán 918 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça La arquitectura y el urbanismo están atravesados de la misma contradicción metodológica que las ciencias humanas y socia les De un lado la pretensión científica y técnica domina los duros procesos de aprendizaje el entrenamiento para resolver con éxito las dificultades de la construcción o el diseño de los espacios Pero la ordenación o jerarquía de estos espacios úni camente puede hacerse si se conoce el modo en que se va a vivir dentro El arquitecto no puede limitarse a los materiales y las formas DURÁN 2008 p20 Como resultado observamos que existem poucas publicações e estudos dentro do urbanismo moderno que seja de autoria de mulhe res E mesmo aquelas que por outra via são utilizam como ponto de partida consagrados manuais urbanísticos escritos por homens e que contém a perspectiva masculina posta como universal Até mesmo as teorias que definem as relações entre mulheres e cidades são atingidas por essa problemática A consequência natural analisada é extraída a partir da observa ção dos espaços urbanos A teoria se reflete na prática e portanto as ci dades não são pensadas para as mulheres gerando um enfrentamento diário para as mesmas em suas vivências e necessidades c O projeto Corpo Político Corpo Sensível e a percepção feminista da cidade Atualmente o Estado de São Paulo registra um caso de femini cídio a cada quatro dias A Grande São Paulo é a região na qual mais houve registros desde 2015 foram 40 casos enquanto o número re gistrado na capital foi de 27 casos Entre as vítimas fatais a maioria estava entre 18 e 25 anos ou na casa dos 30 anos e mais da metade das mulheres eram de cor branca1 A cidade de São Paulo e região adjacente pode ser utilizada como um exemplo para análise de como o espaço urbano é percebido pelas mulheres e como diversos fatores contribuem para que ele seja limi tado do ponto de vista feminino A partir da tradução do reflexo epis temológico da construção das cidades dentro do sistema capitalista a ausência da autonomia decisória das mulheres quanto aos lugares Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 919 designados a seus corpos nas áreas urbanas possui como motivador aspectos que tangem principalmente a segurança mas também restri ção em relação a mobilidade mulheres com filhas e filhos mulheres grávidas conforto e lazer É possível perceber que o direito à cida de para as mulheres esbarra nas restrições ao fluxo contínuo de seus corpos e maneiras de se estar no espaço público Em resposta a tais restrições vêm crescendo a cada dia os movimentos de mulheres que reúnem a necessidade das mesmas de emancipação nos mais diversos quesitos e dentre eles a retomada da cidade como um espaço feito de mulheres e para as mulheres David Harvey um dos maiores autores contemporâneos que teoriza sobre o urbano ilumina a relação entre grupos sociais e a influência que o seu trânsito pela cidade exerce so bre eles A questão de que tipo de cidade queremos não pode ser divor ciada do tipo de laços sociais relação com a natureza estilos de vida tecnologias e valores estéticos desejamos O direito à cida de está muito longe da liberdade individual de acesso a recursos urbanos é o direito de mudar a nós mesmos pela mudança da cidade Além disso é um direito comum antes de individual já que esta transformação depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo de moldar o processo de urbanização A liberdade de construir e reconstruir a cidade e a nós mesmos é como procuro argumentar um dos mais preciosos e negligen ciados direitos humanos HARVEY 2012 P 74 Além da desconstrução dos sujeitos de conhecimento do urbanis mo moderno em um processo epistemológico de superação de uma perspectiva parcial privilegiada narrada do ponto de vista masculino a faceta prática da emancipação feminina encontra nas ruas das cida des o seu local de ação O projeto Corpo político corpo Sensível é um exemplo da reunião de mulheres que buscam modificar as possi bilidades de se estar no espaço público através do entendimento e do desenvolvimento da consciência feminina sobre o que é a cidade e o que ela representa para cada uma através de depoimentos recolhidos em suas atividades 920 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Eu tinha uns 13 anos dai eu andava só com o cabelo preso assim O espaço público era onde tinha mais agressões porque era onde a pessoa passava e falava ah seu cabelo é bonito por quê você não prende o cabelo As vezes eu tava com o cabelo meio preso e tinha que prender mais ainda Eu queria andar com o cabelo solto mas não podia Estamos fragmentadas Eu fico pensando se isso tem a ver com o lugar que a gente tá que é São Paulo ou se isso tem a ver com um sentimento nosso Nesse espaço de tensão Você não sabe aonde o seu corpo é bemvindo e aonde ele não é Um bom jeito de construir a cidade é pensar a partir do uso da cidade né Essa relação com o corpo337 O projeto Corpo político corpo Sensível o fluxo das mulheres no espaço público e o direito à cidade foi um projeto criado e coor denado pelos coletivos APRAÇA composto por Gabs Leal e Lari Mo lina e Espaço Fixos e Fluxos composto por Gabriela Leirias O projeto teve duração total de 10 meses e nasceu com o objetivo comum por parte de suas criadoras de dar visibilidade aos fluxos dos corpos e relatos sensíveis das minas manas monas meninas mulheres no es paço urbano O projeto foi contemplado no Edital Redes e Ruas 2016 promovido pela Prefeitura do Município de São Paulo por meio da Secretaria Municipal de Cultura da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania e da Secretaria Municipal de Serviços O projeto une dois coletivos paulistas APRAÇA e FFluxos o primeiro com o olhar focado na antropologia urbana e direito à cidade e o segundo na investigação das linguagens artísticas e cartográficas no campo da educação geografia e produção artística Esses dois co letivos confluem na problemática do cerceamento do direito à cidade para as mulheres e é a partir desse ponto em comum que é proposto diferentes formas de visibilidade dos fluxos dos corpos e dos relatos das experiências sensíveis das mulheres no espaço urbano dialogando com a permanência e o movimento e criando pontes entre territórios 337 Depoimentos extraídos de VIDEO MAPPING CORPO POLÍTICO COR PO SENSÍVEL Corpo político corpo sensível São Paulo Aline Belfort 2017 954 Disponível em httpswwwfacebookcomcorpopoliticocorposensivel videos243008876163875 Acesso em 28 dez 2017 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 921 da cidade e dimensões imateriais Com o intuito de construir uma cartografia coletiva foram convidadas mulheres de várias regiões da cidade dos fluxos e afetos a acontecer na Praça Ouvidor Pacheco e Silva A intenção das mulheres que compõe os coletivos e que estavam a frente do projeto era que esses fluxos e afetos espraiados pela cida de se encontrassem culminando em rodas de conversa e reflexões de como essas sensações influenciam a fruição do direito à cidade Ao final o mapeamento realizado foi utilizado como base para uma Inter venção Urbana Digital com vídeo mapping na praça debates e outras expressões artísticas desenvolvidas durante os dez meses do projeto CONCLUSÕES FINAIS A análise da relação existente entre a fuga dos direitos das mulheres executada no período medieval a divisão sexual do trabalho imposta a alienação dos saberes femininos e o desenvolvimento das cidades contemporâneas sustentadas pelo capitalismo é de simples conclusão Assim sendo a ausência das mulheres nas bases teóricas que estudam as cidades é apenas um reflexo do lugar dado a elas na dinâmica social do capitalismo dentro dos espaços urbanos O Direito à Cidade para as mulheres é claramente restringido e condicionado tal qual todos os outros espaços designados a elas pela imposição personificada do ca pitalismo o homem branco europeu heterossexual e cisgênero Des sa maneira assim como os espaços urbanos são reflexos de um arranjo teórico e prático que obedece as bases fundamentais do capitalismo que necessitam da exploração e da exclusão de determinados grupos sociais esse artigo buscou demonstrar que as cidades também devem ser cultivadas como local de debate e disputa É através da apropria ção dos saberes da construção coletiva e do uso das cidades que as mulheres e demais sujeitos marginais conseguirão subverter essa di nâmica social A cidade é território para emancipação feminina e pro jetos como Corpo Político Corpo Sensível são fundamentais para que a experiência compartilhada possa modificar a realidade do fluxo dos corpos femininos em seus caminhos diários assim como propôs Harvey A democratização deste direito e a construção de um am plo movimento social para fortalecer seu desígnio é imperativo se os despossuídos pretendem tomar para si o controle que há muito lhes 922 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça tem sido negado assim como se pretendem instituir novos modos de urbanização Lefebvre estava certo ao insistir que a revolução tem de ser urbana no sentido mais amplo deste termo ou nada mais HAR VEY Por fim é preciso ressaltar a importância do resgate histórico do papel feminino no desenvolvimento das cidades a fim de preen cher com fatos e memórias o ausente feminino no discurso urbano Só assim a partir da experiência compartilhada e do equilíbrio das perspectivas epistemológicas entre todos os grupos sociais se torna possível pensar a cidade cada vez mais integrada respeitando e garan tindo o direito a ela para todos os grupos sem deixar de considerar as especificidades de cada um REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS COSTA Ana Alice VIEIRA Claudia Andrade Fronteiras de Gênero no Urbanismo Moderno Revista Feminismos v 2 n 1 2014 DANGELO Helô A caça às bruxas é uma história do presente diz Silvia Federeci em lançamento de livro em SP Revista Cult 21 de julho de 2017 Disponível em httpsrevistacultuolcombrhomesilvia federicicalibaeabruxa Acesso em 05 jan 2018 DURÁN MaríaÁngeles PEZZI Carlos Hernández La ciudad com partida Consejo superior de los Colegios de Arquitectos de España 1998 ENGELS Friedrich As grandes cidades A situação da classe traba lhadora na Inglaterra p 67116 1975 FACEBOOK Corpo político corpo presente Disponível em https wwwfacebookcomcorpopoliticocorposensivel Acesso em 02 jan 2018 FEDERICI Silvia Calibã e a bruxa Mulheres o corpo e a acumulação primitiva São Paulo Elefante Editora 2017 FOLHA DE SÃO PAULO SP registra um feminício a cada 4 dias 63 das vítimas morrem em casa Disponível em httpwww1folhauol Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 923 combrcotidiano2017081912194spregistra1feminicidioacada 4dias63dasvitimasmorrememcasashtml Acesso em 05 jan 2018 HARAWAY Donna Saberes localizados a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial Cadernos pagu n 5 p 741 1995 HARVEY David O direito à cidade Lutas Sociais ISSN 1415854X n 29 p 7389 2012 ROLNIK Raquel O que é cidade Brasiliense 2017 924 FEMINISMOS DO SÉCULO XXI UMA CONSTRUÇÃO DE CONCEITOS SOB A ÓTICA DOS DISCURSOS NAS REDES SOCIAIS Suhed Acioli Mansur Lopes338 RESUMO A proposta do presente artigo é discutir quais os feminis mos do século XXI através da análise de discursos encontrados nas redes sociais Qual o impacto desses discursos Em que eles melho ram modificam favorecem ou dificultam o movimento no cenário atual O objetivo desta é desmistificar o que se conhece por feminis mo desconstruindo o discurso negativo e machista que presente na sociedade dificulta o entendimento desse movimento social e chegar a questionamentos eou conclusões do que se apresenta como o feminismo deste século já que as configurações sociais demandam desdobramentos e subdivisões numa tentativa de atender as dife rentes necessidades de quem milita pelos ideais que o movimento car rega fazendo o recorte a partir do ano de 2015 uma vez que este é considerado o ano do feminismo na internet e levando em conta que 50 da população brasileira tinha acesso à internet naquele ano PALAVRASCHAVE Redes Sociais Feminismo Estado 338 Graduanda no curso de Direito do Centro Universitário Tiradentes UNIT MaceióAL Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 925 INTRODUÇÃO Se o objetivo do leitor desse escrito é encontrar respostas prontas qua dradas milimetricamente formuladas para atender anseios e questões sociais profundas de logo fique ciente de que a leitura poderá ser frus trada porque se assim o fosse iria de encontro com um dos propósi tos fundamentais do movimento feminista atual qual seja a constan te desconstrução de conceitos que enraizados tão profundamente no seio social impedem que ideias sejam colocadas em prática de forma mais simples se estas fossem analisadas com mais cuidado e atenção e não apenas reproduzidas nas redes sociais com interpretação irres ponsável e equivocada Porém cumpre dizer que não é por não dar respostas que as perguntas formuladas nesse trabalho não serão váli das é justamente o contrário O mais importante é a reflexão sobre as questões levantadas e conteúdos debatidos para que por fim obtenha mos um novo formato de pensamento a construção de um conceito que não necessariamente vinculase com as ideias já formadas e por isso a necessidade de conhecer fundamentos e conceitos básicos se faz primordial justamente para que a interpretação seja correta e correlata com as demandas reais do movimento feminista numa perspectiva da militância virtual 1 FEMINISMO Há não muito tempo um vídeo do professor Mário Sérgio Cortella tem circulado nas redes e feito bastante sucesso nele o educador e filósofo explica da forma mais simples possível o que é feminismo e bastou apenas sintetizar que feminismo não é o contrário do machis mo pois este prega a superioridade do gênero masculino sobre o femi nino enquanto aquele é um movimento social que busca a igualdade entre os gêneros Mas será que é só essa a demanda do movimento De onde ele surgiu O que ainda o faz ser tão incompreendido na era da informação e tecnologia Embora seja possível encontrar escritos que denunciem a condi ção de opressão feminina nos séculos XV e XVIII só a partir da revo lução francesa é que se pode atribuir cunho feminista ao contexto so 926 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça cial e político vivido pelas mulheres ou seja é durante o Iluminismo que surgem historicamente as primeiras lutas feministas modernas Além disso perguntar o que mais o Feminismo demanda me pa rece como uma faca de dois gumes vez que essa questão pode nos levar por pelo menos duas vertentes a primeira delas nos faz refletir e perceber o que já foi conquistado e questionar o que mais está fal tando pois como o próprio nome sugere o feminismo está ou deveria estar sempre em movimento Por outro lado temo que o questionamento na verdade tenha efeito reverso e nos estagne numa linha de pensamento e de descrença de ações pelo simples fato de que chegaríamos à conclusão de que o que conquistamos nesse século são demandas do século anterior e nossa urgência é pela mudança no presente para não seja comprome tido o nosso futuro numa perigosa regressão dos Direitos e proteções já positivadas Para entender melhor sobre o movimento como todo jovem do século XXI comecei minha pesquisa pela internet e me chamou a atenção a manchete do site Think Olga 2015 o ano do feminismo na internet Ora pareceu perfeito pesquisar o impacto do referido ano três anos após o considerado ápice do movimento num dos maiores meios de comunicação moderna a internet Mas como definir o conceito moderno do que está sempre em movimento Bingo Analisando os discursos de quem movimenta o globo Já que 2015 era o ano através de um recurso que utilizamos muitas vezes sem entender para o que serve fui à busca das hashtags do ano sobre o assunto O que acabei encontrando foi a pluralidade do movimento algo que passarei a explicar mais adiante No sentido de pluralidade as várias vertentes do feminismo mos traram que por ainda sofrer tanta censura e repressão patriarcal os conceitos encontrados sobre cada uma delas confundemse com os discursos vazios de fundamentação teórica e prática com os de ódio também e principalmente com as fake News Nesse arcabouço posso tentar definir a natureza desse artigo como a tentativa de esclarecimento acerca dos conceitos verdadei ros ou mais próximos da verdade de cada vertentedemandaluta do movimento feminista moderno Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 927 2 AS HASHTAGS 21 ASKHERMORE A primeira hashtag que realmente chama a atenção teve repercussão internacional pois surgiu na maior premiação do cinema mundial durante a festa do Oscar de 2015 o assunto entrou para os trendtopics do twitter e demandava que a imprensa perguntasse mais as atrizes do que simplesmente o que estavam vestindo que joias estavam usando qual a grife de seus sapatos ou quem tinha feito a beleza delas para aquele dia em que possivelmente receberiam um dos maiores reco nhecimentos de suas carreiras Elas queriam ser vistas como mais do que simples vitrines ou artigos de decoração pois realmente o são elas tinham opiniões fortes sobre temas internacionais relevantes e real mente queriam ser ouvidas Essa hashtag me remeteu principalmente à colocação das mu lheres no mercado de trabalho ao desempenho de suas funções e à diferença salarial absurda que pode chegar a mais do que 30 ou seja o fato de você ser mulher tira mais ou menos 30 do seu salário em comparação ao que um homem que desempenha a mesma função e tem a mesma ou menor carga horária Tendo sido iniciada durante a Revolução Industrial no século XIX a exploração da mão de obra feminina já começa precária e extre mamente segregada pelo patriarcado Ocupando funções degradantes e sem possibilidade de ascensão as mulheres eram consideradas força de trabalho de baixo custo e suas características eram consideradas como fatores que as impediam de perceber o mesmo valor remunera tório que os homens 22 MARCHADASMARGARIDAS No mesmo ano 70 mil pessoas pararam BrasíliaDF na Marcha das Margaridas Eram trabalhadoras rurais extrativistas indígenas e quilombolas que tomaram as ruas da capital federal numa tentativa de diálogo com o governo federal sobre suas reivindicações por desen volvimento sustentável com democracia justiça autonomia igualda de e liberdade 928 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A escolha do nome da Marcha e da data referese a uma homena gem à Margarida Maria Alves presidente do Sindicato dos Trabalha dores Rurais de Alagoa GrandePB Margarida fora assassinada em 12 de agosto de 1983 a mando de latifundiários da região Por mais de dez anos presidiu o sindicato Dentre suas lutas o fim da violência no campo a busca por direitos trabalhistas como a obediência às jornadas de trabalho carteira assi nada 13º salário férias remuneradas etc Ela costumava dizer que era melhor morrer na luta do que morrer de fome A Marcha das Margaridas num contexto literário representaria a luta das mulheres feministas e Severinas numa alusão à obraprima do poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto 19201999 Ser Severina nesse diapasão nos levaria a uma espécie de subclassifica ção das mulheres seriam elas a minoria sem privilégios da já mi noria segregada de mulheres 23 VIOLADAVISNOEMMY Só no Brasil no momento da cerimônia o discurso da atriz e ativista norteamericana foi mencionado mais de 7 mil vezes em compartilhamentos Nele Viola falava sobre representatividade so bre oportunidades de trabalho para mulheres negras Num discurso claro em defesa do Feminismo Negro a artista disse que não poderia representar papéis que não existissem ou seja se o espaço de empo deramento não fosse aberto para ser visto e ter reconhecimento de mostrando assim a capacidade óbvia da mulher afrodescendente de chegar a lugares que antes patriarcalmente foram entregues a mulhe res brancas não por possuírem mais capacidade como regra mas pelo simples fato de serem brancas Porque sejamos francos como sentirse empoderada se tudo o que você vê lhe representar é o significado de mais opressão em razão do seu gênero e da sua cor Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 929 24 VIOLÊNCIACONTRAAMULHERNOENEM O ano de 2015 também foi representativo para o feminismo no âmbito da educação presencial as duas vertentes de ensino virtual e presencial se fundiram para que o Exame Nacional do Ensino Médio testasse o conhecimento dos adolescentes concluintes do 2º grau sobre a Violência Contra as Mulheres na prova de Redação Tema este que veio a calhar uma vez que nesse mesmo ano a Lei do Feminicídio foi sancionada fazendo alterações no ordenamento jurídico pátrio Nas redes sociais 55 dos discursos foram proferidos por homens 25 PRIMEIROASSÉDIO Essa hashtag tem um contexto interessante ela surgiu após a participante de um reality show infantojuvenil de apenas 12 anos sofrer comentários maldosos e criminosos de cunho sexual na inter net Eram comentários pejorativos sobre o desenvolvimento do corpo daquela criança o que encorajou milhares de mulheres a relatarem suas histórias de assédio utilizando a referida hashtag como forma de protesto Foram mais de 100 mil relatos no twitter o que revelou que as mulheres sofrem o primeiro assédio antes mesmo de completar 10 anos de idade CONCLUSÃO Se disso tudo for possível alguma conclusão o ano de 2015 foi importante para o movimento pois nunca se falou ou pesquisouse tanto sobre feminismo e empoderamento feminino os números refle tem um aumento de 867 e 3545 nas buscas por esses respectivos tópicos O problema mais se faz na discrepância dos discursos que se misturam entre radicais verdadeiros e de ódio que tomados por ironia e compartilhados em massa através da velocidade e do poder de comunicação da internet ainda causam confusão sobre o conceito do feminismo como movimento social e como feminismos da ótica de suas vertentes e demandas 930 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Na maioria das vezes os discursos compartilhados referemse ao acolhimento e a proteção dessa diversidade como uma tentativa de fazer com que as demandas e as respostas públicas e sociais se deem ainda neste século afinal 982 anos parece ser um tempo razoável para acertar o passo social rumo a igualdade de oportunidades e entre os gêneros REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEAUVOIR Simone de O segundo sexo 4 ed Trad Sérgio Milliet Rio de Janeiro Nova Fronteira 1980 BONNICI Thomas Teoria e crítica literária feminista conceitos e tendências Maringá Eduem 2007 HTTPSTHINKOLGACOM TIBURI Marcia Feminismo em comum para todas todes e todos Marcia Tiburi 1ª ed Rio de Janeiro Rosa dos Tempos 2018 TRINDADE Tiziana Morel O trabalho da mulher e do menor In Âmbito Jurídico Rio Grande XVII n 124 maio 2014 Disponí vel em httpwwwambitojuridicocombrsitenlinkrevistaar tigosleituraartigoid14765 Acesso em maio 2018 931 NÃO VEM PRA RUA A NEGAÇÃO DO DIREITO À CIDADE AOS LGBTS E O ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA E À INVISIBILIDADE NOS ESPAÇOS URBANOS BRASILEIROS Gabriela Mendes Cardim339 Letícia Graça Generoso Pereira340 Resumo O presente artigo pretende compreender a forma como os LGBTs não ocupam as cidades e a relação de invisibilidade e violên cia sofridas pelas minorias sexuais materializadas nos espaços físicos urbanos Para isso é preciso observar a cidade enquanto reflexo da ideologia aceita e difundida pelas classes dominantes Desta maneira o conceito de cidadearmário trazido por Carvalho e Júnior 2017 é adequado ao interpretar a esfera pública como extensão do domí nio privado vivido pelos LGBTs Além de apresentar estatísticas sobre violência e hostilidade no Brasil às minorias o estudo traz vias de en frentamento eficazes para a realidade aterradora do país no que diz respeito aos LGBTs nas cidades Estão elencados neste trabalho um exemplo de política pública bemsucedida o projeto Rio Sem Homo fobia e a Parada Gay enquanto um movimento não institucionalizado de protagonismo de lésbicas gays bissexuais e transexuais Palavraschave direito à cidade LGBTfobia violência enfrentamen to 339 Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 340 Graduanda em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 932 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1 INTRODUÇÃO Quando se pensa em cidade algumas imagens saltam a mente gran des edifícios ruas movimentadas uma multidão de pessoas o baru lho incessante dos carros O conceito de cidade parece estar atrelado primeiramente ao mundo material A matemática perfeita da arqui tetura o estudo do urbanismo a tecnologia e a neutralidade que a acompanha contribuem para a sensação de que a cidade é exata e po sitivista Pode ser compreendida a partir de uma boa gestão de uma análise estrita de dados e plantas Esta percepção de cidade é postulada pelo urbanismo modernis ta Em oposição a noção materialista da cidade Henri Lefebvre dis corre acerca dos fatores sociais presentes na cidade impossíveis de resolução apenas com instrumentos técnicos A conceituação dos es paços urbanos começa a se modificar e a imaterialidade ganha lugar nas discussões Neste artigo o aspecto imaterial da cidade se faz relevante O ci mento as vigas as avenidas os edifícios são menos cruciais à análise do que as ações reforçadas e tomadas entre as construções urbanas A hostilidade a violência e a invisibilidade de uma parcela da população aqui os LGBTs mas podendo a análise ser estendida a pobres negros mulheres e periféricos fazem parte do imaginário social da cidade Entender como se forma o aceito e o nãoaceito da sociedade e a maneira como as ideologias dominantes reverberam dentro dos espaços urbanos é o objetivo primário deste trabalho Partindo deste ponto a exclusão a violência e a invisibilidade aos LGBTs conseguem ser explicadas e mais do que isso são provadas estatisticamente nos dados apresentados na segunda seção A materialidade do discurso é a violência mas a maneira de construir uma cidade igualitária é por meio de políticas públicas e manifestações pensadas e direcionadas às lésbicas gays bissexuais e transexuais O Rio Sem Homofobia e a parada LGBT serão tratados de maneira específica como iniciativas de enfrentamento e acolhimento Resumidamente pretendese entender as causas de cidades vio lentas e hostis aos LGBTs os resultados das violações e a possibilidade de mudar a realidade aterradora aos desviantes das normas sexuais amplamente aceitas e impostas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 933 2 A CIDADE O ARMÁRIO O DISCURSO E A VERDADE A CONSTRUÇÃO DE ESPAÇOS URBANOS HOSTIS AOS LGBTS Considerando a exposição do debate conceitual feita anteriormente sobre cada um dos elementoschave do presente artigo a cidade e os LGBTs é crucial entender a maneira como funcionam em conjunto a maneira como se relacionam se opõem se congregam e se distin guem A cidade se ergue firmada na concretude de seus prédios e cons truções como repercussão dos valores aceitos e almejados pela socie dade uma projeção material do imaginário imaterial social A cidade que se deseja é invariavelmente convergente com que desejamos nos tornar enquanto pessoas Harvey 2013 apud Carvalho Junior 2017 No entanto devese olhar com cautela para o uso da primeira pessoa do plural nessa definição de cidade nós não são todos nós nós representa o que é difundido como a totalidade de pessoas mas em realidade é apenas uma parcela da população São os atores dominantes os detentores de poder e de capital os responsáveis pela difusão dos ditames das cidades conforme expõe Lefebvre 1991 Ainda segundo o autor nos espaços urbanos se refle tem os conflitos internos e os interesses basilares de sua constituição Esse apanhado de ideias até aqui expostas são muito bem elenca das por Claudia Oliveira Carvalho e Gilson Santiago Macedo Junior em um artigo de 2017 intitulado Isto é um lugar de respeito a cons trução heteronormativa da cidadearmário através da invisibilidade e violência no cotidiano urbano Os autores trazem um conceito es sencial para a compreensão da constituição da cidade e de sua não relação com lésbicas gays bissexuais e transexuais Tratase da cida dearmário uma extensão da invisibilidade da existência dos LGBTs ao espaço público antes reservada ao espaço privado O armário em que a minoria em questão vive confinada amedrontada e envergo nhada A cidadearmário é sustentada por sistemas já estabelecidos por uma questão de classe Reafirma o argumento de que a cidade é espe lho da sociedade em que está inserida e sua normatividade vigente 934 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça É neste ponto que é necessário tocar para entendermos porque o espaço urbano é tão violento e hostil aos LGBTs Parece fácil concluir a consequência direta entre os valores pregados pelo capital e pelas classes dominantes e a dinâmica das cidades mas o raciocínio deve se estender para além disso De forma a distinguir o que é falso do que é verdadeiro o que é norma do que é desviante Carvalho e Júnior 2017 trazem à luz as ideias de Foucault 1992 Cada sociedade tem seu regime de verdade sua política ge ral de verdade isto é os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros os mecanismos e instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos a maneira como se sanciona uns e outros as técnicas e os pro cedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro FOUCAULT 1995 p 12 Os sistemas de verdade para Foucault se sustentam e se retroali mentam em relação aos sistemas de poder Os chamados micropode res são a congregação dessas duas existências Toda sociedade escolhe seus discursos em que as verdades se apresenta e a partir delas é per mitido distinguir o que é verdadeiro ou falso o que é ou não aceito quem deve ser punido e quem tem autoridade para dizer o que é ou não verdade Foucault 1995 A sacralização da heterossexualidade o respeito à moral e a família nada mais são do que os discursos que mantém o sistema de poder Além disso os binarismos homem e mu lher heterossexual e homossexual lícito e ilícito tomam seu lugar nos espaços urbanos É importante que se ressalte a importância do significado atribuído a cidade Sem estar relacionada com um sistema de verdade é apenas um amontoado de construções impessoais uma dinâmica incapaz de ser imaginada A cidade é o que é porque existe um discurso que embasa sua existência e lhe atribui significado Stuart Hall 2011 esquematizou o raciocínio de Foucault a respeito da materialidade e imaterialidade das ideias e objetos conforme o extrato a seguir The idea that physical things and actions exist but they only take on meaning and become objects of knowledge within dis course is at the heart of the constructionist theory of meaning and representation Foucault argues that since we can only have a knowledge of things if they have a meaning it is discourse not the thingsinthemselves which produces knowledge Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 935 Subjects like madness punishment or sexuality only exist mea ningfully within the discourses abot them HALL 2011 p 73 Além de ressignificar a cidade o discurso ressignifica a loucura a punição e a sexualidade Curiosamente três conceitos intimamente relacionados ao longo da história Os sistemas de verdade criam as regras sociais e são resultados de discursos Assim o sistema no qual a sociedade atual se embasa determina o padrão passível de aceitação e de liberdade de ir e vir Assumindo suas posições enquanto construções ideológicas os espaços urbanos não aceitam e nem podem aceitar os LGBTs porque estes rompem com as normas e os acordos de sexualidade com o discurso embasa dor Seus corpos e suas identidades divergem dos ideais pregados pelo patriarcado e pela cisheteronormatividade Aos LGBTs é negado mais do que o direito de transitar livremente é negado o direito de existir Dessa forma a lógica evolui para a realidade violenta e aterradora que permeia as cidades brasileiras O ponto seguinte explora a relação entre violência LGBTfóbica e o direito à cidade 3 A VIOLÊNCIA LGBTFÓBICA NO BRASIL Nesta seção dados e estatísticas são apresentados para embasar a argumentação de que a construção de espaços urbanos hostis a lésbi cas gays bissexuais e transexuais fere psicologicamente e fisicamente as minorias todos os dias Além disso é reforçada a ideia da cidade como refletora do discurso das classes dominantes O discurso torna legalizado os atos de matar e ferir quem desvia da norma aceita Há legitimidade naqueles que praticam crimes LGBTfóbicos já que o Es tado em consonância com as classes dominantes legaliza claro que indiretamente o uso da força nessas ações violentas Aos LGBTs restam a violência o medo e a descrença no Estado que não atua conforme a teoria do Direito brasileiro Citando a Cons tituição da República Federativa do Brasil de 1998 artigo 5º Todos são iguais perante a lei sem distinção de qualquer natureza garan tindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a invio labilidade do direito à vida à liberdade à igualdade à segurança e à propriedade Entretanto as estatísticas têm mostrado o contrário 936 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça O Grupo Gay da Bahia GGB341 entidade sem fins lucrativos monitora os assassinatos e crimes perpetrados contra as minorias se xuais desde os anos 1980 É tido como referência na coleta e análise de dados do assunto A contabilização é feita a partir de casos em que a orientação sexual foi a motivação dos delitos e assim mesmo com o desconhecimento de uma parcela significativa dos crimes os números são alarmantes Nesse espaço de tempo de pesquisa 1980atualidade foram mais de seis mil mortes no Brasil No último relatório lançado pelo grupo de 2016 atestouse a morte de 343 LGBTs durante o ano uma média de uma morte a cada 25 horas342 É o país mais letal a transexuais no mundo e detentor de taxas de homicídios aos LGBTs maiores do que em países onde a homossexualidade bissexualidade e transexualidade são considerados crimes passíveis de pena de morte Segundo o Relatório de Violência Homofóbica no Brasil ano 2013343 elaborado pelo Ministério de Direitos Humanos a maior par te das violações acontece na rua vide gráfico 341 O Grupo Gay da Bahia é a mais antiga associação de defesa dos direitos hu manos dos homossexuais no Brasil Fundado em 1980 registrouse como so ciedade civil sem fins lucrativos em 1983 sendo declarado de utilidade pública municipal em 1987 O que é o GGB Grupo Gay da Bahia Disponível em httpwwwggborgbrggbhtml Acesso em 03 jan 2018 342 GRUPO GAY DA BAHIA Relatório 2016 Assassinatos de LGBT no Brasil Salvador 2016 p 1 343 SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS DO MINISTÉRIO DAS MULHERES DA IGUALDADE RACIAL E DOS DIREITOS HUMANOS Rela tório da Violência Homofóbica no Brasil ano 2013 Brasília 2016 p 23 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 937 Este é um ponto trazido por Carvalho e Júnior 2017 já citados anteriormente Os autores traçam um paralelo entre o espaço público e privado entre casa e rua A casa é a esfera privada reservada auto ritária no qual a autoridade é ditada por gênero e idade já a rua é o medo o descontrole os elementos caóticos o movimento a novidade Há a assunção da casa enquanto lugar seguro e da rua como espaço temido No entanto para os desviantes da norma sexual tanto casa quanto rua são lugares a ser temido O gráfico apresentado traz empiricamente o argumento teórico A rua detém 268 das agressões e a casa 257 Não há portanto lugar seguro para existência das lésbicas dos gays dxs bissexuais e dxs transexuais Não há acolhimento em casa não há direito às ruas Sobre a violência perpetrada contra os LGBTs Martins Fernan dez e Nascimento 2010 a explicam em seu artigo O recurso da vio lência parece irromper quando a ideologia e a dominação masculina encontramse enfraquecidas e deslegitimadas despontando como um recurso para a anulação e a subordinação dos outros inferiorizados e fracos aos seus interesses e controle Ao fazer uma análise histórica da violência homofóbica é per ceptível que sua existência surge após a emergência da homossexua lidade na cultura pósindustrial Como um medo de perder os valo 938 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça res morais machistas heterossexuais e patriarcais a violência é a reação às mudanças sociais Martins Fernandez Nascimento 2010 Tipificando sobre violência os autores se apropriam da distinção pro posta por Maria Mércedes Gomez 2008 A autora distingue violên cia excludente de violência hierárquica a partir do preceito no qual a primeira é exercida para liquidar a representação do outro e fazêlo desaparecer enquanto a segunda atua para marcar a subordinação e inferioridade de um sobre o outro Na cidade o poder imaterial subentendido ocultado entre as construções é exercido como violência excludente cerceia liberdades é hostil a manifestações sexuais desviantes não garante segurança aos LGBTs Em atos violentos perpetrados nas ruas a violência hierárqui ca mostra sua faceta expõe claramente o domínio dos heterossexuais dentro das normas sobre lésbicas gays bissexuais e transexuais So cos pontapés lampadadas mortes agressões determinam quem bate e quem apanha 4 ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA E A INVISIBILIDADE POLÍTICAS PÚBLICAS E MANIFESTAÇÕES Para fazer frente à violência desmedida é preciso haver a politização do movimento LGBT e sua inserção como protagonista na luta por direitos básicos na agenda estatal É preciso ressignificar o lugar dos corpos desviantes na lógica urbana assegurar segurança e liberdades além de fornecer garantias e qualidade de vida No entanto devem ser reconhecidas iniciativas para além das estatais como a Parada LGBT feita por e para o público LGBT No âmbito das iniciativas estatais algumas políticas públicas des tinadas aos LGBTs são encontradas O primeiro documento governa mental que cita homossexual foi feito em 1996 no Plano Nacional de Direitos Humanos344 O Ministério de Direitos Humanos em sua 344 MARTINS Marco Antonio Marcos FERNANDEZ Osvaldo NASCIMENTO Érico Silva do Acerca da violência contra LGBT no Brasil Reflexões e Tendên cias Fazendo Gênero 9 Diásporas Diversidades Deslocamentos Florianópolis v9 p8 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 939 página na internet contabiliza apenas dois comitês estaduais no Acre e em São Paulo para o enfrentamento da LGBTfobia e responsáveis pela articulação entre sociedade civil instituições privadas e governo Dentre os 27 estados mais o Distrito Federal do país o número repre senta a falência em lidar com o tema No entanto existem políticas públicas que fogem ao escopo do Ministério Um caso merecedor de destaque é o Rio sem Homofobia cuja atuação é efetiva no território fluminense mas que apresenta pro blemas na tramitação enquanto lei e recente esvaziamento por falta de recursos a Rio sem Homofobia A iniciativa surgiu a partir do Projeto de lei nº 33672010345 de autoria dos Deputados Estaduais Carlos Minc e Gilberto Palmares Foi apresentado como um Programa Estadual de Combate à Violência e à Discriminação a LGBTs que visa o desenvolvimento de políticas públicas O programa apresenta uma variedade de serviços voltados aos LGBTs elencados a seguir o Disque Cidadania LGBT serve ao aco lhimento e orientação de pessoas em situações de violência ou que se sintam desamparadas e sozinhas em crise Também informa sobre ações e instituições voltadas ao público LGBT Os Centros de Referên cia de Promoção da Cidadania LGBT prestam atendimento jurídico social e psicológico aqueles que sofreram violência e a seus familiares e amigos O Núcleo de Monitoramento Técnico de Crimes Homofóbicos atua como base de dados para mapear casos de homofobia no estado já o SOS Saúde LGBT responde a casos de violência e discriminação e pretende ser implantado primeiramente em Santa Cruz A Comissão Processante para Cumprase da Lei 34062000346 também de autoria do Carlos Minc verifica a aplicação da lei que pune estabelecimentos 345 Conteúdo na íntegra do projeto disponível em httpalerjln1alerjrjgov brscpro0711nsf012cfef1f272c0ec832566ec0018d831db54cd166bbd008e 832577f30045221aOpenDocument Acesso em 3 jan 2018 346 Conteúdo na íntegra da lei httpalerjln1alerjrjgovbr CONTLEINSFc8aa0900025feef6032564ec0060dfffcdee250b 14447c00032568ea006760e4OpenDocument Acesso em 3 jan 2018 940 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça comerciais discriminatórios por orientação sexual e identidade de gê nero É um programa com iniciativas palpáveis e eficazes na proteção e acolhimento de lésbicas gays bissexuais e transexuais Está fisicamente alocado no prédio da Central do Brasil no sétimo andar Além disso premia todos os anos personalidades relevantes no enfrentamento à homofobia e patrocina a parada do Orgulho LGBT no Rio O Rio sem Homofobia esteve na luta pelo reconhecimento da união estável entre casais homossexuais e também foi responsável por levar a questão do casamento civil entre pessoas do mesmo sexo ao Superior Tribunal Federal STF Os dois casos foram bem sucedidos o primeiro foi aprovado em 2011 pelo STF e o segundo foi dado a partir de uma decisão do Conselho de Nacional de Justiça CNJ O Conselho instituiu que todos os cartórios brasileiros são obrigados a celebrar matrimônio entre homossexuais Apesar de seus feitos significativos o projeto de Lei que institu cionaliza o programa ainda não foi aprovado Isso porque tramita na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro ALERJ desde 2010 com parecer favoráveis com alteração em algumas emendas es pecificamente treze mas com alguns pareceres contrários No ano de 2013 o deputado Marcelo Freixo do Partido Socialista e Liberdade PSOL emitiu parecer contrário ao projeto e argumentou a respeito da já existência do programa no âmbito da Secretaria Estadual Assis tência Social e Direitos Humanos Sobre a atuação do Rio sem Homofobia fora do escopo do Direi to Carlos Minc discursou na ALERJ em novembro de 2017 acerca da entrada do projeto de lei em pauta novamente e da não votação de sua instituição Conforme discurso transcrito no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro em 08 de novembro de 2017 Quero esclarecer aos Deputados e Deputadas que este Projeto entrou em pauta há dez dias recebeu 12 Emendas e a Sessão caiu duas antes deste Projeto de Lei Foi quando foi pedida a ve rificação do Projeto de Lei do Deputado Marcelo Freixo sobre o Dia do Desarmamento havia 34 presentes Então o Projeto não foi votado Já haviam entrado 12 Emendas as Emendas fo Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 941 ram consignadas e continuam aqui Aliás eu li todas a maioria desfigura completamente o Projeto Eu só queria dizer a todos e a todas que este programa Rio Sem Homofobia existe Ele não existe é por lei Ele existe há mais de dez anos Foi um programa pioneiro no Brasil O Cláudio Nas cimento esteve à frente dele durante nove anos Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro 08112017 8 ANO XLIII N 206 PARTE II p 8 No último ano teve seu atendimento ao público interrompido devido à falta de recursos e a crise fiscal perpassada pelo Rio de Ja neiro O descaso com o Rio Sem Homofobia começou com a posse do pastor Everaldo Teixeira na Secretaria de Assistência Social e Direitos em 2016 Por pressão dos movimentos sociais uma verba de dois mi lhões foi liberada ao programa no fim do mesmo ano No pronunciamento de novembro de 2017 do deputado Car los Minc o descaso com a iniciativa foi retomado em seu discurso E ele o programa tem sido asfixiado diminuído Ele chegou a ter nove centros de referência contra a homofobia na Baixa da Zona Oeste Região dos Lagos milhares de pessoas foram atendidas centenas de conferências foram feitas inclusive para policiais militares policiais civis para muitas pessoas vítimas de humilhação de violência O que acontece Esse progra ma está morrendo desidratado É claro que existe a crise econômica mas também existe uma orientação política Então muitas vezes a crise economia serve de pretexto para assassinar em vida um programa que foi pioneiro no Brasil ganhou prêmios internacionais e gerou frutos Diante da premissa de que a cidade é reflexo das normas sociais aceitas é evidente que um programa como o Rio Sem Homofobia cuja eficácia é inegável sofreria com manifestações contrárias e problemas políticos Como poderiam cidades construídas sobre alicerces patriar cais e cisheteronormativos conviverem pacificamente com programas que protegem acolhem e cuidam dos desviantes da norma sexual 942 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça b Parada LGBT A parada do Orgulho LGBT erroneamente cunhada de Parada Gay o que invisibiliza as outras minorias LBTs teve início nos Estados Unidos precisamente em Nova Iorque Foi uma reação à truculência da polícia que espancou e prendeu lésbicas e gays que frequentavam o Bar Stonewall em 28 de junho de 1989 A partir desse caso duas mil pessoas foram as ruas e o dia 28 ficou reconhecido como dia oficial do orgulho LGBT A parada é o momen to de maior ocupação de lésbicas gays bissexuais e transexuais da rua Uma vez ao ano e em um local e horário marcado os transgressores das normas sexuais podem sentir que as ruas os pertencem Podem ser livres expressar sua sexualidade seu amor e sentiremse seguros Experimentam a sensação de ter domínio dos espaços urbanos sem discriminação sem a possibilidade de serem violentados A parada LGBT é um grito por existência por direitos pela vida É a congregação de revolta pela violência de orgulho de ser quem se é e finalmente de direito à cidade Tem sido um movimento protago nizado pelas minorias e com públicoalvo LGBT É um exercício de protagonismo e empoderamento 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS À luz do que foi exposto acerca da dinâmica da cidade da construção de espaços urbanos enquanto reflexos ideológicos e dos interesse das classes dominantes o presente artigo se propôs a analisar teoricamente a relação entre cidades e os LGBTs e trazer dados empíricos de violência e homofobia que comprovassem a argumentação Além disso para retirar o olhar de incapacidade e de analisar lésbicas gays bissexuais e transexuais como pessoas de mão atadas frente à violência e à invisibilidade observase a existência de políticas públicas de enfrentamento e acolhimento voltadas aos LGBTs e por eles protagonizadas Ao utilizar o exemplo do Rio Sem Homofobia não se pode es quecer o simbolismo existente nas tentativas de esvaziamento do pro Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 943 grama com a justificativa de crise financeira Está fora do interesse do regime de verdade conceito trazido por Foucault desenvolver pro gramas capazes de garantir direitos aos desviantes dos sistemas domi nantes Dessa maneira podese inferir que a violência é resultado de um discurso homofóbico e patriarcal discurso este refletido nas paredes das cidades e na forma como ela não acolhe os LGBTs A dinâmica urbana violenta e opressora encontra materialidade nas ações agres sivas e letais perpetradas às minorias sexuais No entanto nesse ciclo onde discurso gera violência e violência gera revolta somente esta úl tima é capaz de alterar a lógica dominante na cidade É a partir da revolta que se constrói enfrentamento que se pensam programas para melhoria da qualidade de vida e garantia de direitos básicos O enfrentamento e a capacidade de ação são os pontos princi pais deste artigo a serem ressaltados para construir uma cidade justa onde todos têm direito e acesso à ela é preciso ressignificar regimes de verdade e garantir que estes sejam inclusivos e igualitários É preciso demolir as estruturas as edificações os arcabouços imateriais que sus tentam a violência e a hostilidades estas sim muito materiais REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL Constituição 1988 Constituição da República Federativa do Brasil Brasília DF Senado Federal Centro Gráfico 1988 292 p CARVALHO Claudio Oliveira JÚNIOR Gilson Santiago Macedo Isto é um lugar de respeito a construção heteronormativa da cida dearmário através da invisibilidade e violência no cotidiano urba no Revista de Direito da Cidade v 9 n 1 p 103116 2017 FOUCAULT Michel História da sexualidade 3 o cuidado de si Rio de Janeiro Graal 1985 GRUPO GAY DA BAHIA Relatório 2016 Assasinatos de LGBT no Brasil Salvador 2016 Disponível em httpshomofobiamatafiles wordpresscom201701relatc3b3rio2016pspdf Acesso em 01 jan 2018 944 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça LEFEBVRE Henri FORTUNA Carlos O direito à cidade São Pau lo eSP SP Centauro 2001 MARTINS Marco Antonio Matos FERNANDEZ Osvaldo NASCI MENTO Érico Silva do Acerca da violência contra LGBT no Brasil Entre reflexões e tendências Seminário Internacional Fazendo Gê nero v 9 2010 PODER LEGISLATIVO Diário oficial do Estado do Rio de Janeiro 8 ano XLII N 2016 Parte II Disponível em httpswwwescavador comdiarios576678DOERJpoderlegislativo20171108page8 Acesso em 01 jan 2018 SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS DO MINIS TÉRIO DAS MULHERES DA IGUALDADE RACIAL E DOS DIREI TOS HUMANOS Relatório de Violência Homofóbica no Brasil ano 2013 Brasília 2016 Disponível em httpwwwmdhgovbras suntoslgbtdadosestatisticosRelatorio2013pdf Acesso em 01 jan 2018 WETHERELL Margaret TAYLOR Stephanie YATES Simeon J Dis course theory and practice A reader Sage 2001 945 SEGREGAÇÃO E HOSTILIDADE A CARTOGRAFIA DA CIDADE EXCLU DENTE Helenice Pereira Sardenberg347 Renan de Souza Cid348 Resumo O presente trabalho tem como objetivo pensar a questão do direito à cidade pela comunidade LGBT em especial no que con cerne à utilização dos espaços públicos e também de vivência urba na enquanto resultado da interação social Entretanto percebese a construção de uma urbe excludente produzida para poucos e que seleciona de diversas formas aqueles que poderão utilizar determi nados espaços Buscase a partir do cenário encontrado outrossim demonstrar que vivemos em uma sociedade segregatória tendo em vista os alarmantes números resultantes da violência contra gays lés bicas bissexuais e transexuais Muito do que se presencia tem estreita relação com a estruturação de uma cidadearmário que veda deter minados espaços públicos para aqueles que não estão dispostos a se enquadrarem no perfil estipulado pelas camadas dominantes dono convívio urbano Por fim apontamos proposta de políticas públicas de caráter repressivo e promocional com a intenção de que possamos observar futuramente a convivência pacífica entre diversos grupos da cidade nos mais distintos espaços urbanos PalavrasChave cidades exclusão espaços urbanos comunidade LGBT políticas públicas 347 Doutora em Serviço Social UERJ Pósdoutora em História Política UERJ pro fessora e pesquisadora no Centro Universitário La Salle do Rio de Janeiro UNILASALLERJ 348 Acadêmico de Direito do Centro Universitário La Salle do Rio de Janeiro UNILASALLERJ 946 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1 INTRODUÇÃO Inegavelmente temse hoje a urbanidade como uma das mais com plexas e importantes áreas na qual o Estado deve atuar a fim de que a justiça social pretendida pelo Direito possa prevalecer Na questão urbana inseremse matérias referentes à mobilidade dentro do território acesso ao lazer meio ambiente moradia e tra balho por exemplo Hodiernamente entretanto a forma como estes direitos têm sido tutelados passa pelo que denominamos Direito à Cidade Desenvolvido por Henri Lefebvre no final da década de 60 este direito à cidade tem como essência a garantia de produção e reprodu ção bem como a utilização do que a polis pode oferecer Esta fruição deve se dar ainda de acordo com o pensamento de Lefebvre de forma universal e integral sem que haja necessariamente uma contraparti da do cidadão portanto de forma gratuita pela simples condição de conviver na urbe A ideia central do Direito à cidade seria assim a prevalência da função social da cidade em detrimento à atuação hegemônica do ca pital econômico nos rumos da urbe Como discorreremos ao longo deste trabalho notase que atualmente esta garantia possui previsão em muitos documentos internacionais elaborados e no ordenamento jurídico brasileiro O que contemplamos entretanto é que sua efetividade se dá de forma limitada ou seja atinge parcelas da sociedade de forma dife rente incidindo mais sobre uns e encontrandose afastada de tantos outros Almejamos neste estudo demonstrar que o Direito à Cidade encontrase relegado à população LGBT pelo fato desta não perten cer a uma matriz heteronormativa predominante na medida em que quanto mais apartado desta matriz esta população menos salvaguar dada está Acerca disto cabe mencionar Harvey349 2012 quando este diz que 349 HARVEY D O direito à cidade Revista Lutas Sociais São Paulo n 29 p 73 89 juldez 2012 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 947 A absorção de excedente através da transformação urbana tem um aspecto obscuro Ela tem acarretado repetidas contendas sobre a reestruturação urbana pela destruição criativa que quase sempre tem uma dimensão de classe já que é o pobre o desprivilegiado e o marginalizado do poder político que pri meiro sofrem com este processo p 82 grifo nosso Este cenário caracterizase em razão da construção de uma urbe excludente produzida para poucos isto é para camadas hegemônicas que seleciona de diversas formas aqueles que poderão utilizar deter minados espaços públicos excluindo daí quem se encontra fora dos grupos dominantes Nas palavras de MARICATO350 2015 p83 A representação da cidade é uma ardilosa construção ideológica na qual parte dela a cidade da elite toma o lugar do todo Desta forma fazse necessário refletir acerca das restrições ob servadas quanto ao habitar nas cidades em razão da mera condição de não enquadramento ao padrão heterossexual imposto buscando tam bém a apresentação de propostas que visem à amenizaçãoerradicação de tais violações de direito através de políticas públicas eficientes para tal 2 O DIREITO À CIDADE Sabese notadamente que as cidades em sua maioria são seletivas e normalmente garantem o ir e vir daquele ou daquela que pertence às categorias hegemônicas Não sem razão se faz mister discutir portan to a quem pertence a cidade e como ela se constitui o direito de todo e qualquer sujeito independente de cor credo orientação sexual ou identidade de gênero sendo estas últimas objeto deste trabalho O direito à cidade como objeto essencial de estudo é trazido por Henri Lefebvre como mencionado anteriormente em 1968 na Fran ça Foi inicialmente divulgado através da obra Le Droit à la ville e teve como pano de fundo a denominada tragédia dos banlieusards na qual diversas pessoas por força da estrutura econômica vigente à época 350 MARICATO Ermínia Para entender a crise urbana São Paulo Expressão Popular 2015 948 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça foram forçadas a viver em guetos residenciais longe dos centros da ci dade As ideias defendidas pelo autor voltaram a ganhar força na déca da de 1990 através de geógrafos arquitetos e urbanistas que passaram a combater o capital imobiliário e sua forma de conceber as cidades Acerca do conteúdo deste direito cabe salientar o que foi trazido pela Organização das Nações Unidas ONU 2016 na Nova Agenda Urbana351 Partilhamos a visão de cidades para todos no que se refere à igualdade de utilização e fruição de cidades e aglomerados ur banos procurando promover a inclusão e assegurar que todos os habitantes das gerações presentes e futuras sem discrimi nações de qualquer ordem possam habitar e construir cidades e aglomerados urbanos justos seguros saudáveis acessíveis resilientes e sustentáveis e fomentar a prosperidade e a quali dade de vida para todos Salientamos os esforços envidados por governos nacionais e locais no sentido de consagrar esta visão referida como direito à cidade nas suas legislações declara ções políticas e diplomas p5 grifo nosso É possível afirmar que a matéria aqui tutelada transpassa o aspecto da moradia ou de qualquer outra garantia ligada à urbanidade defendida de forma isolada Mais do que isso o direito à cidade só fará sentido se for possível garantir com que todas as necessidades urbanas encontremse atendidas e efetivadas a todos os citadinos Assim este direito está ligado estreitamente a um padrão de vida adequado na urbe na qual se deve garantir também o direito de minorias como os direitos à comunidade LGBT Inegável é constatar que o direito à cidade desta forma resguar da uma gama enorme de garantias fundamentais previstas pelos mais diversos ordenamentos jurídicos mundiais No Brasil não é diferente A política urbana e portanto as questões ligadas às cidades receberam tratamento constitucional através dos artigos 182 e 183 da CRFB88 que foram responsáveis por trazer avanços significativos no tratamen 351 ORGANIZAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS ONU Nova Agenda Urbana Quito 2016 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 949 to desta questão ao afirmarem como exemplo a existência da função social da propriedade urbana A efetividade jurídica da proteção constitucional entretanto se deu apenas em 2001 com o advento da Lei 10257 de 10 de Julho de 2001 o Estatuto das Cidades que discorre em um dos seus artigos que Art 2º A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da proprieda de urbana mediante as seguintes diretrizes gerais V Oferta de equipamentos urbanos e comunitários transpor te e serviços públicos adequados aos interesses e necessidades da população e às características locais Destacase propositalmente o inciso V do referido artigo ten do em vista que a problemática que aqui se trata referese à fruição dos espaços públicos pela comunidade LGBT Este recorte se dá por acreditarmos que hoje a maior problemática enfrentada pela referida comunidade é de convivência pacífica em meio aos diversos grupos da cidade haja vista que vivemos progressivamente em áreas urbanas dividas e tendentes ao conflito HARVEY 2012 p 81 Gondim e Lima352 2007 apontam que a segregação espacial nas grandes cidades associada à exclusão social e à violência crescentes remetem a uma questãochave para a governabilidade urbana e para o próprio convívio entre os citadinos como garantir a sociabilidade entre os moradores de uma cidade se eles estão cada vez mais apartados entre si em razão de suas carências de seus medos de sua prepotência ou subordinação p 422 Diversos outros documentos internacionais trataram de dar su porte ao Direito à Cidade através do conteúdo que trazem Entre ou tros podemos citar a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 352 GODIM L M DE P LIMA M M B Espaço público e direitos de cidadania na cidade contemporêna In RODRIGUES Francisco L L Org Estudos de direito constitucional e urbanístico São Paulo RCS Editora 2007 950 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1948 o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos de 1966 o Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais de 1966 e a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 A primeira previsão expressa em um documento internacional a respeito deste direito se deu em 2000 quando a Carta Europeia de Sal vaguarda dos Direitos Humanos na Cidade previu que um espaço co letivo pertence a todos os seus habitantes que têm direito a encontrar as condições pra sua realização política social e ecológica assumindo deveres de solidariedade 3 A SOCIEDADE SEGREGATÓRIA Em relação ao cenário brasileiro podemos afirmar que as cidades do país não toleram minorias em especial aquela a que nos referimos Esta assertiva decorre dos números divulgados acerca da violência contra a população LGBT no país O relatório divulgado pelo Grupo Gay da Bahia chegou à conclusão de que uma pessoa LGBT é assas sinada no país a cada 25 horas353 o que faz com que tenhamos tido o número de 343 mortos no ano de 2016 O número porém tornase mais alarmante se compararmos com as 130 mortes percebidas no ano de 2000 o que representa um au mento de 266 na violência registrada Entre as mortes de 2016 50 eram gays e 42 pessoas transexuais354 A respeito destes números é possível afirmar ainda que existe uma espécie de homofobia governamental visto que não existem números oficias a respeito dessas mortes sendo este levantamento realizado por intermédio dos relatos de familiares de algumas vítimas e de dados obtidos pela divulgação dana imprensa O que chama atenção e reforça a intolerância percebida é a for ma como a morte de LGBTs ocorre Foi observado nos casos apu rados que não é rara a crueldade na prática destes ilícitos seja por meio de tortura ou por meio da queima do corpos por exemplo As 353 GRUPO GAY DA BAHIA Assassinatos de LGBT no Brasil Salvador GGB 2016 354 GRUPO GAY DA BAHIA Assassinatos de LGBT no Brasil Salvador GGB 2016 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 951 travestis se caracterizam neste contexto como um grupo ainda mais vulnerável visto que é numericamente menor do que o de gays po rém representam 42 das mortes Afirmamos assim que o caminho contrário ao heteronormativo é eminentemente uma estrada de mor te haja vista que quanto mais singular o indivíduo se mostra maior a violência sofrida Ressaltase que a violência mostrase dividida ao longo do terri tório brasileiro enquanto a taxa de homicídio de LGBTs no país é de 169 por milhão de habitantes o Norte brasileiro configurase como a região mais homofóbica tendo em vista que ostenta a taxa de 302 mortes por milhão de habitantes no seu espaço geográfico O Estado do Amazonas e em especial a cidade de Manaus são destaques nega tivos neste levantamento O que talvez cause maior aflição e medo em relação a estas mor tes é a proximidade dos agressores em relação aos seus alvos Cerca de 47 dos assassinos mantinham algum vínculo com as vítimas in cluindose aqui seus companheiros ou parentes Neste sentido percebese o claro processo de homogeneização das cidades através do qual o díspar não é aceito e o pertencimento é negado à parte da população que encontrase privada de fruir in tegralmente de determinados espaços urbanos Este modelo de pa dronização se dá de forma simbólica por meio e influência da moral predominante fazendo com que uma das características mais signifi cativa das cidades seja ocultada que é a pluralidade de pessoas pensa mentos e ideologias Acerca disto Pescarolo355 2017 reconhece que as cidades grandes apresentam dinâmicas semelhantes Nelas também há grupos que estão em posição de dominação e por isso podem segregar aqueles que não se encontram na mesma posição É claro que essa segregação não precisa ser ex pressa de forma verbal ou em avisos e placas Ela é potencial mente pior por ser simbólica invisível Ela é sentida principal mente quando aqueles que estão à margem decidem frequentar os mesmos lugares que as elites p 89 355 PESCAROLO Joyce K Sociologia Urbana e da Violência Curitiba InterSa beres 2017 952 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Desta forma importante destacar o que anuncia Bourdieu356 2001 quando fala sobre tal violência pois que A violência simbólica é essa coerção que se institui por inter médio da adesão que o dominado não pode deixar de conceder ao dominante portanto à dominação quando dispõe apenas para pensálo e para pensar a si mesmo ou melhor para pensar sua relação com ele de instrumentos de conhecimento parti lhados entre si e que fazem surgir essa relação como natural pelo fato de serem na verdade a forma incorporada da estru tura da relação de dominação Logo a vedação de parte da cidade a uma parcela da sociedade vem se solidificando e ampliando na medida em que o grupo hege mônico se utiliza do seu poder de comando sobre as demandas da urbe para que as suas ambições sejam asseguradas Nas palavras de HARVEY357 2012 p87 O direito à cidade como está constituído agora está extremamente confinado restrito na maioria dos casos à pequena elite política e econômica que está em posição de moldar as cidades cada vez mais ao seu gosto Este movimento se dá de forma mais perceptível em algumas lo calidades das metrópoles nacionais Lugares públicos como estádios de futebol e parques urbanos são exemplos óbvios de resistência e hostilidade à demonstração de afeto LGBT A existência destes mu ros espalhados pela pólis não nos causa estranheza visto que não estamos diante de um procedimento recente O que chama atenção porém é que temos nos deparado com uma aceitação cada vez maior deste tipo de cenário Não há mais resistência efetiva a estes atos To mada de medo a comunidade LGBT tem aberto mão muitas vezes de parte do território urbano que é público e que assim deve permanecer É impensável que atualmente ainda existam locais que não são lugar de gay 356 BOURDIEU Pierre Meditações pascalianas Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2001 pp 206207 357 HARVEY D O direito à cidade Revista Lutas Sociais São Paulo n 29 p 73 89 juldez 2012 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 953 Comparando cabe citar sobremaneira o que Lefebvre358 2010 fala em relação à classe operária enquanto parcela excluída naquele contexto e que se aplica ao que nos referimos A estratégia urbana baseada na ciência da cidade tem necessi dade de um suporte social e de forças políticas para se tornar atuante Ela não age por si mesma Não pode deixar de se apoiar na presença e na ação da classe operária a única capaz de pôr fim a uma segregação dirigida essencialmente contra ela Ape nas esta classe enquanto classe pode contribuir decisivamente para a reconstrução da centralidade destruída pela estratégia da segregação e reencontrada na forma ameaçadora dos centros da decisão Isto não quer dizer que a classe operária fará sozi nha a sociedade urbana mas que sem ela nada é possível A in tegração sem ela não tem sentido e a desintegração continuará sob a máscara e a nostalgia da integração p 113 Ademais notadamente as minorias sofrem o silenciamento im posto pelos grupos hegemônicos este processo é responsável pelas vozes mudas de diferentes grupos minoritários na cidade conforme explicitado por Berticelli apud Sardenberg 2011359 quando diz que no discurso se constituem lugares portanto vozes Vozes falantes que falam bem alto vozes que falam mais baixo vo zes que mal sussurram e vozes mudas Tudo depende do lu gar que cada qual ocupa por força da interpelação com graus maiores ou menores de assujeitamento p18 Assim este instrumento de silenciamento tem sido de veras eficiente haja vista que não havendo vozes discor dantes não há de existir conflitos na urbe e esta manterá invariavelmente seu status quo favorável sempre a quem detém o poder e portanto a dominação 358 LEFEBVRE Henri O direito à cidade São Paulo Centauro 2001 359 SARDENBERG H P Uma cidade partida Itacaré e os dilemas da desterrito rialização pelo turismo 2011 Tese Doutorado em Serviço Social Universi dade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2011 954 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Em razão do desenvolvimento de uma urbe que exclui parcela da população devido a sua orientação sexual ou identidade de gênero podemos pensar no conceito de cidadearmário que conforme Mace do Júnior360 2017 pode ser entendida num primeiro momento como a interdi ção de espaços urbanos a partir de uma construção ideológica feita pelos citadinos e pela própria cidade significa ainda uma forma de espacialização de cidadania tendo como ponto de inflexão a própria sexualidade eou identidade de gênero dos que se propõem acessar a urbe de modo a constituir espaços interditos mediante uma constru ção discursiva e por conseguinte ideológica p48 Este modelo de pólis é responsável pela interdição de parte da ci dade a partir de um pensamento ideológico que se contrapõe ao con siderado normal no caso em tela pela comunidade LGBT Assim viver na urbanidade para aqueles que fazem parte desta comunidade se reduz a manterse preso dentro de si mesmo a fim de que um míni mo de aceitação e convívio seja permitido Qualquer tipo de conduta desviante deve ser para este grupo restrito aos espaços privados O ambiente do armário faz com que aqueles que não se adéquam aos padrões heteronormativos impostos sintamse menos violados quanto à sua privacidade Destacase que este armário tem como objetivo a preservação daqueles que não se encontram na matriz cis e heterossexual361 de modo que conceber a existência de cidades que se enquadrem neste perfil seria permitir nesta visão com que a par cela da sociedade a qual nos referimos sintase aceita desde que não contrarie o modelo de família afeto e relacionamento protegido pela sociedade patriarcal e homofóbica vigente 360 MACEDO JÚNIOR Gilson S Por uma cartografia da cidadearmário In INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO URBANÍSTICO IBDU Direito à Cidade Vivências e Olhares de identidade de gênero e diversidade afetivase xual São Paulo IBDU 2017 361 Cf httpsperiodicosunifapbrindexphpletrasarticleviewFile3073pdf Acesso em 18052018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 955 4 DESAFIOS DA COMUNIDADE LGBT E ESPAÇOS URBANOS A despeito dos problemas enfrentados pela comunidade LGBT quan to à utilização dos espaços públicos e de fruição do direito à cidade fazse necessário pensar em políticas públicas capazes de combater a segregação percebida Estas políticas públicas se justificam de acordo com Oliveira362 2013 na medida em que o Estado deve garantir a liberdade de cada indivíduo ser o que é possibilitando sua autonomia no exercício de suas caracterís ticas preferências e interesses As ações estatais interventivas que determinam a limitação da conduta humana se justificam e se legitimam apenas para salvaguardar interesses coletivos direitos individuais indisponíveis ou demais bens e interesses que colidem com outro de menor valor p477 Não podemos entretanto deixar de mencionar que algumas experiências foram intentadas no país ao longo dos últimos anos vi sando enfrentar a exclusão de determinadas camadas da sociedade Quanto a gays lésbicas bissexuais e transexuais podemos citar como exemplos os programas Brasil sem Homofobia e o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT A partir do ano de 2002 o Brasil passou a experimentar uma gestão em seu Executivo Federal mais voltada à esquerda através da ascensão do Partido dos Trabalhadores PT ao poder com Luiz Inácio Lula da Silva O programa Brasil sem Homofobia configurase como o primeiro projeto iniciado em 2004 deste governo a fim de se enfrentar a problemática resultante do preconceito Como avanços decorrentes do Brasil sem Homofobia podemos citar a capacitação de profissionais da Educação para o trabalho com o tema da identidade de gênero e orientação sexual além da intensifi 362 OLIVEIRA Frederico B Políticas públicas e diversidade sexual no Brasil In BERTOLIN P T M SMANIO G P Org O direito e as políticas públicas no Brasil São Paulo Atlas 2013 956 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça cação na área da saúde do combate a doenças sexualmente transmis síveis Grande parte deste projeto entretanto não foi concluída Em 2008 surgiu o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos LGBT O diferencial deste projeto consistia na divi são das atividades entre diversos órgãos do Governo Federal além da existência da colaboração de outros entes federativos neste processo As diretrizes deveriam ser concluídas até o ano de 2012 porém ob servamos que o referido plano não foi capaz de solucionar as diversas violações de direitos da comunidade LGBT na atualidade Acreditamos outrossim em relação a novas políticas públicas de combate ao cenário de cerceamento de garantias desta parcela da população num modelo que envolva ações repressivas e promocio nais As políticas públicas promocionais derivam da necessidade de conscientização da diversidade sexual existente e renegada ensejan do portanto na autoafirmação de LGBTs como discorre Oliveira363 2013 A ausência do reconhecimento por parte do Estado e pela socie dade impulsiona a depreciação das minorias ainda dominadas pela cultura da heteronormatividade As orientações sexuais e as identidades de gênero que não se encaixam nesse paradigma precisam ser reconhecidas para que o dano à subjetividade da condição da população LGBT não seja menosprezado em fo mento à homofobia que precisa ser combatida por uma cultura autoafirmativa p 488489 Este modelo passa também pela utilização da educação como ferramenta de propagação deste pensamento plural e mitigação da discriminação visto que é no ambiente escolar que observamos im portantes relações sociais que interferem na construção do caráter e também uma grande quantidade de condutas preconceituosas e não menos homofóbicas Aqui o resultado deve ser a igualdade entre aqueles que excluem e os que são excluídos neste processo permitindo com que todos pos suam acesso à cidade e que a médio e longo prazo o desequilíbrio combatido seja imperceptível 363 Op Cit Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 957 Já as ações de caráter repressivo se justificam na medida em que conforme dados já mencionados a violência contra LGBTs tem cres cido exponencialmente no país motivando desta forma uma respos ta mais rígida por parte do Estado Defendemos ainda que a crimina lização da homofobia é a priori uma atitude política de se colocar de forma contrária aos atos de violência sofridos pela comunidade LGBT legitimandoos Não sem razão entendermos outrossim que a cidadania é para poucos à medida que a exclusão de um determinado grupo se faz pre sente sem que o poder público tome as devidas providências Neste sentido destacase o que fala Wacquant 2005364 quando afirma que a cidadania não é uma condição adquirida ou garantida de uma vez por todas e para todos mas um processo instituído conflituoso e desigual que precisa ser continuamente conquistado e reassegurado p 39 grifo do autor Desta forma cabe especialmente dizer que na ausência de po líticas públicas que salvaguardem as minorias estas acabam como fala este mesmo autor por se inserirem num processo de guetização como forma inclusive de se proteger criando instituições específi cas que substituam aquelas dominantes Ressaltase que o gueto não é necessariamente localizado em áreas mais pobres da cidade mas sobretudo pode ser caracterizado como uma formação socioespacial delimitada racial eou culturamente uniforme baseada no banimento forçado de uma população negativamente tipificada WACQUANT 2005 p 52365 Diante do exposto é importante salientar que as políticas aqui pensadas e estudadas devem possuir como principal objetivo a re apropriação dos espaços urbanos de forma com que os ambientes an tes proibidos à comunidade LGBT tornemse públicos de fato e seus acessos facilitados desconstruindo os guetos que vêm se formando em função da intolerância e discriminação Sendo assim podemos afirmar que tais medidas resultarão em uma convivência pacífica entre os diferentes grupos da cidade ao in vés da produção de espaços urbanos diferenciados para os variados segmentos de pessoas como observamos hodiernamente 364 WACQUANT Loïc Os condenados da cidade estudos sobre marginalidade avançada Rio de Janeiro Revan 2005 365 Op Cit 958 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 5 CONCLUSÃO O direito à cidade aqui tratado envolve mais do que o simples habitar Almejase que todos possam produzir cidades e interagir com elas in dependentemente de quem sejam ou como sejam promovendo uma sociedade plural Apesar da tutela do direito aqui estudado almejamos neste tra balho abordar a questão referente à fruição de espaços públicos da cidade visto que LGBTs têm sido frequentemente excluídos destes locais através de violência simbólica e física Observamos ainda que ordenamentos jurídicos internacionais têm se debruçado em resguardar as garantias ligadas à urbanidade No plano internacional destacase o posicionamento da ONU em 2016 acerca da existência do Direito à Cidade No Brasil o Estatuto das Cidades surgiu em 2001 como instrumento de tutela dos direitos relacionados aqueles pensados por Lefebvre em 1968 A garantia dos direitos atrelados à urbe deve ser responsável ainda pela garantia da segurança de seus habitantes e principalmente das minorias marginalizadas na cidade O acesso aos espaços públicos assim como a fruição nestes devem ser conquistados pela comunidade LGBT que mormente se mantém à margem destes direitos Constatouse que apesar dos avanços concernentes aos aspec tos legais temse verificado ineficiência na garantia de direitos dos grupos excluídos em especial no que tange à vivência urbana Isto se mostra latente quando nos debruçamos sobre os números de mortes de gays lésbicas transexuais e bissexuais apenas pela razão de serem quem são em um claro desrespeito à peculiaridade dos indivíduos A violência cotidiana das nossas metrópoles nos faz viver em ver dadeiras cidadesarmário nas quais para que se possa garantir o mí nimo de vivência dentro do território urbano diversos LGBTs preci sam forçadamente abnegar de suas singularidades para serem aceitos Assim através deste estudo chegase a conclusão de que a exclu são de pessoas fora do padrão heteronormativo da vivência urbana é algo recorrente e banalizado o que faz com que políticas públicas efetivas de promoção e prevenção se tornem necessárias para garantir o convívio harmônico entre as diversas parcelas da coletividade Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 959 Não descartamos as experiências registradas em nossa história de políticas voltadas à promoção desta parcela de nossa sociedade Con sideramos entretanto que muitas destas tentativas se mostraram ei neficazes especialmente pela descontinuidade Por isso acreditamos na utilização de um modelo dual de ações que passa pela equiparação da comunidade LGBT aos demais grupos e pela repressão das discri minações vividas em diversos locais da cidade Estas ações que apontamos almejam a igualdade entre parcelas desiguais da pólis Por intermédio destas ações poderemos enfim nos deparar com a verdadeira cidade harmônica plural e diversa que desejamose que todo o ordenamento jurídico brasileiro discorre Mais do que leis positivadas desejamos que o Direito à Cidade ganhe o campo da plena existência a fim de que este seja o pilar mais básico de vivência de todo e qualquer ser humano nas inúmeras urbanidades REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOURDIEU Pierre Meditações pascalianas Rio de Janeiro Ber trand Brasil 2001 GODIM L M DE P LIMA M M B Espaço público e direitos de cidadania na cidade contemporânea In RODRIGUES Francisco L L Org Estudos de direito constitucional e urbanístico São Paulo RCS Editora 2007 GRUPO GAY DA BAHIA Assassinatos de LGBT no Brasil Salva dor GGB 2016 HARVEY D O direito à cidade Revista Lutas Sociais São Paulo n 29 p 7389 juldez 2012 LEFEBVRE Henri O direito à cidade São Paulo Centauro 2001 MACEDO JÚNIOR Gilson S Por uma cartografia da cidadearmá rio In INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO URBANÍSTICO IBDU Direito à Cidade Vivências e Olhares de identidade de gênero e diversidade afetivasexual São Paulo IBDU 2017 MARICATO Ermínia Para entender a crise urbana São Paulo Ex pressão Popular 2015 960 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ORGANIZAÇÕES DAS NAÇÕES UNIDAS ONU Nova Agenda Urbana Quito 2016 PESCAROLO Joyce K Sociologia Urbana e da Violência Curitiba InterSaberes 2017 SARDENBERG H P Uma cidade partida Itacaré e os dilemas da desterritorialização pelo turismo 2011 Tese Doutorado em Serviço Social Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2011 WACQUANT Loïc Os condenados da cidade estudos sobre margi nalidade avançada Rio de Janeiro Revan 2005 961 O ACESSO À JUSTIÇA DA PESSOA DE BAIXA RENDA Rodrigo Galvão do Amaral366 Resumo O princípio do acesso à justiça está previsto na Constitui ção Federal de 1988 em seu art 5º XXXV e é de suma importância para o Estado Democrático de Direito uma vez que garante que os outros direitos fundamentais serão implementados e cumpridos pelo Estado bem como respeitado pelos outros cidadãos Dentre as diver sas formas de implementálo ganha destaque no Brasil a atuação da Defensoria Pública para promover o acesso à justiça da pessoa de baixa renda No entanto questões políticas e financeiras restringem sua atuação prejudicando a efetivação de direitos fundamentais dessa parte da população em especial PalavraChave Acesso à Justiça Direitos Humanos Defensoria Pú blica Pessoas de Baixa Renda INTRODUÇÃO A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 ao inaugu rar um novo sistema jurídico no país baseado em novos princípios e objetivos trouxe no parágrafo único de seu primeiro artigo a famosa redação de que Todo o poder emana do povo que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente nos termos desta Constitui ção Nesse sentido se o poder ao povo pertence e a Constituição e as Leis que moldam a maior parte do Direito Brasileiro são em ultima ratio manifestação indireta do poder do povo podese afirmar com certa segurança que o sistema jurídico é feito por e para o povo 366 Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 962 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Desse modo o Poder Judiciário ao ser o caminho para que o grande arcabouço legal brasileiro ganhe efetividade prática frente às inúmeras violações na vida cotidiana deve ser de fácil e amplo acesso a todo e qualquer cidadão Assim surge como de extrema importância para a própria manutenção da existência do Estado Democrático de Direito o princípio do acesso à justiça ou inafastabilidade de jurisdi ção previsto na Constituição Federal de 1988 no seu artigo 5º XXXV com a seguinte redação a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito Frente a um Poder estigmatizado como moroso e seletivo que não atende ao clamor dos que deveriam ser sua razão de existir so mado a leis de elevada complexidade e rebuscado vocabulário foise necessário a implementação de maneiras de promover maior acesso à justiça pois não há eficácia na simples menção de que toda ação deve ser apreciada pelo Judiciário se este não é célere imparcial e de qualidade Ademais a figura do Advogado como intérprete de todo esse sis tema com lógica própria distante da maior parcela da população toma especial atenção em relação ao acesso ao Judiciário Aqueles que não podiam arcar com um profissional do direito estavam pratica mente excluídos da Justiça Cruel um sistema criado para e com o po der do povo que o excluí Com o intuito de mudar esse cenário de grande exclusão muitas medidas foram tomadas ao longo do tempo para garantir especial mente a população mais pobre e de menor escolaridade o acesso à justiça As figuras do Advogado Dativo e da Defensoria Pública por exemplo permitiram de forma gradual a aproximação do cidadão comum ou seja aquele que não tem maiores conhecimentos das áreas do Direito com o profissional habilitado para defender seus interesses em juízo Na mesma esteira surgiu no Brasil pela primeira vez em 1984 ainda com o nome de Juizado Especial de Pequenas Causas e posteriormente reformulado pela Lei 9099 de 1995 já à luz da Cons tituição Cidadã os Juizados Especiais Todos esses instrumentos buscam trazer a possibilidade de efeti vação de direitos feridos ou ameaçados em especial à população de baixa renda comumente de mais baixa instrução e menos ciente dos seus direitos e a forma de protegêlos somada a uma distância muitas vezes não só econômica mas também geográfica da informação Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 963 No presente artigo buscouse analisar como está no Brasil a ver dadeira efetivação do acesso à justiça da pessoa de baixa renda por meio dos instrumentos criados para atendêla frente à falta de inte resse real político e econômico em subvencionar a atuação da Defen soria Pública principalmente uma vez que está constitucionalmente prevista com esta finalidade I O PRINCÍPIO DO ACESSO À JUSTIÇA Por boa parte da história da humanidade a regra foi a separação Seja por classe por status ou algum outro atributo o homem conti nuamente apropriavase da ideia de superioridade em relação a seu igual Essa falsa ideia por milênios suportou a diferença entre cida dãos e nãocidadãos na Roma por exemplo a escravidão em diver sas formas pela história a privação de direito das mulheres e negros dentre tantos outros exemplos de discriminação presenciados pelo ser humano Assim ao criaremse normas e um sistema que garantisse sua correta aplicação qualquer que fosse o seu nível de sofisticação quan do fruto de uma sociedade com esses ideais os refletia em sua atuação Desse modo por boa parte da História o acesso à justiça era limitado aos privilegiados Com o passar do tempo no entanto aproximando se da modernidade ganharam força ideais contrários Preocupados com os que pouco possuíam os vulneráveis que sempre estiveram e infelizmente ainda estão à margem da sociedade aparecem mo vimentos que dão importância à garantia mínima de direitos funda mentais a essas pessoas A teoria da Justiça de John Rawls por exemplo como expressão dessa paulatina preocupação com os que menos direitos possuíam tem como um de seus princípios básicos capazes de se gerar a justiça em uma sociedade a liberdade igual Desse modo Rawls critica o utilitarismo ao não acreditar que seja possível que um indivíduo seja privado de seu status de igualdade em prol do bem social e essa seja considerada uma sociedade justa pois ao colocar um indivíduo com valor menor que os outros que tenha que se ver sacrificado em algu ma de suas liberdades direitos etc se está agindo de forma injusta 964 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça com alguém e se ela é uma sociedade injusta com alguém é injusta em toda sua extensão367 A Declaração Universal dos Direitos do Homem subscrita em Paris em 1948 e o Pacto Social de Direitos Civis e Políticos aprova do pela ONU em 1966 trazem também uma excelente ilustração da mudança de prioridades pela humanidade de forma a se reconhecer como essencial para que uma sociedade seja justa e democrática a proteção de um mínimo de garantias e direitos a cada um de seus ci dadãos independente de classe cor sexo religião ou qualquer outra forma de se categorizar seres humanos As grandes atrocidades assistidas pelo mundo durante a Segunda Guerra Mundial e a existência de governos ditatoriais em diversos países na mesma época culminando em muitas violações à direitos humanos fez com que todos repensassem a importância de os guarda rem e protegerem Assim da segunda metade do século XX em diante viuse surgir além de tratados internacionais diversas constituições e normas na maioria dos países do globo preocupados com essas ques tões movimento do qual nossa Constituição Cidadã é fruto Contudo logo descobriuse que a mera menção ao direito plas mada em norma não trazia a efetividade necessária para garantirse a sua observância Assim o princípio do acesso à justiça ganha notorie dade e importância uma vez que o Judiciário se torna o instrumento capaz de materializar os direitos fundamentais abstratamente previs tos e muitas vezes sem efetividade Atentos à necessidade de se promover o acesso à justiça como meio de se garantir a efetividade dos próprios direitos humanos Mau ro Cappelleti e Bryant Garth visitaram diversos países com o intuito de pesquisar causas da ineficiência do Judiciário pelo mundo O com pilado da pesquisa e dos trabalhos subsequentes ganhou a denomina ção de Projeto Florença e boa parte de suas conclusões foi compar tilhada através de sua obra Acesso à Justiça de 1978 Nessa obra os renomados autores notaram que pelo menos no mundo ocidental havia um parâmetro utilizado pelos países ao des pertar o interesse pela garantia do acesso à justiça Assim apresenta 367 RAWLS John Uma Teoria da justiça Tradução Almiro Pisetta e Lenita M R Esteves São Paulo Martins Fontes 1997 Coleção Ensino Superior p 64 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 965 ram três ondas renovatórias do acesso à justiça que seriam três po sições básicas que nessa ordem eram utilizadas para promover de forma efetiva esse princípio representando de outro lado os óbices mais comuns à sua prestação368 A primeira onda denominada assistência judiciária para os po bres representa o mais imediato grupo de causas e efeitos que dis tanciavam o cidadão da Justiça Em suas pesquisas os autores per ceberam que o custo do processo e da contratação de um advogado representavam um obstáculo material para que pessoas de baixa renda pudessem ter acesso ao sistema judiciário Já a segunda onda está calcada na representação dos interesses difusos A concepção tradicional do processo civil até então não con tinha espaço para o litígio que envolvesse direitos de titularidade de uma coletividade as regras concernentes à legitimidade processual citação provas e todo o processo em geral partiase do pressuposto que se tratava de interesses individuais próprios em litígio A terceira onda por sua vez denominada por Cappelletti de um novo enfoque de acesso à justiça engloba as duas últimas e as trans cende requerendo ações preocupadas com reforma nos próprios pro cedimentos do direito processual de forma a se adequarem às necessi dades reais de cada pleito levado ao Judiciário Para o presente artigo o que mais nos interessa é a primeira onda uma vez que é a que está mais ligada ao acesso à justiça pela pessoa de baixa renda merecendo um aprofundamento 11 A primeira onda renovatória do acesso à justiça A primeira onda denominada assistência judiciária para os po bres representa o mais imediato grupo de causas e efeitos que dis tanciavam o cidadão da Justiça Em suas pesquisas os autores per ceberam que o custo do processo e da contratação de um advogado representavam um obstáculo material para que pessoas de baixa renda pudessem ter acesso ao sistema judiciário369 368 CAPPELLETI Mauro e GARTH Bryant Acesso à Justiça Porto Alegre Fa bris 2002 Tradução de Ellen Gracie Northfleet p 32 369 CAPPELLETI Mauro e GARTH Bryant Acesso à Justiça Porto Alegre Fa bris 2002 Tradução de Ellen Gracie Northfleet p 312 966 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Dessa forma foi constatado que o método utilizado para tentar solucionar esse problema geralmente era o de advogados particulares que deveriam fazer trabalhos voluntários sem qualquer tipo de con traprestração munus honorificum370 Contudo Cappelleti afirma371 que se tratava de uma alternativa altamente ineficiente pois estes pro fissionais escolhiam dar maior atenção aos seus trabalhos remunera dos além de limitarem excessivamente os que poderiam ser atendidos por esse sistema Tendo como partida esse método reconhecendo sua ineficácia paulatinamente foi sendo adotado por diversos países no mundo372 o modelo pelo qual o advogado presta sua assistência de forma gratuita à parte para ser posteriormente remunerado pelo Estado Chamado de sistema judicare foi eficaz em atrair mais advogados particulares para prestarem esse serviço e ampliar o número de pessoas atendidas No entanto ainda sim é alvo de críticas pois conforme nos relata Cappelletti haviam muitas limitações para a habilitação dos beneficiá rios desse sistema além de no modelo Inglês não prover assistência para processos a serem realizados perante Tribunais Especiais373 es paço onde muitos dos novos direitos deveriam ser pleiteados Já no modelo Francês os valores pagos aos advogados eram considerados inadequados374 Além desses problemas verificase que essa solução não resolve completamente o óbice representado por esta onda pois ainda deixava a cargo dos financeiramente hipossuficientes a missão de reconhecer seus direitos não encorajando ou permitindo que os profissionais os auxiliem a compreendêlos e identificar os remédios possíveis de serem utilizados375 não importando assim em um acesso amplo e efetivo 370 Op Cit p 32 371 Op Cit 372 À época da pesquisa de Cappelletti encontrado na Áustria Inglaterra Ho landa França e Alemanha Ocidental Como visto em CAPPELLETI Mauro e GARTH Bryant Acesso à Justiça Porto Alegre Fabris 2002 Tradução de Ellen Gracie Northfleet p 32 373 Op Cit p 36 374 Op Cit p 37 375 CAPPELLETI Mauro e GARTH Bryant Acesso à Justiça Porto Alegre Fa bris 2002 Tradução de Ellen Gracie Northfleet p 389 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 967 O segundo sistema que surge no contexto da primeira onda é o do Advogado Remunerado pelos Cofres Públicos376 Ao contrário do anterior essa alternativa iniciada através do Programa de Serviços Ju rídicos do Office of Economic Opportunity de 1965 propõe a criação de escritórios da vizinhança em que há profissionais do direito devi damente habilitados cuja função primordial consiste em promover o direito dos pobres enquanto classe377 Ao contrário do anterior prima pela conscientização do seu públicoalvo quanto aos direitos que pos sui e incentivaos a exigílos Inserta nesse modelo há no Brasil a criação da Defensoria Pú blica embora de forma paulatina plasmada na Constituição Federal de 1988 como instituição essencial à justiça Enquanto órgão voltado exclusivamente para o atendimento de pessoas de baixa renda e de seus interesses enquanto classe promove uma assistência judiciária mais efetiva mas a lentidão em sua interiorização em todos os Estados brasileiros e a insuficiência de recursos ainda a limita na consecução de seus objetivos378 Ressaltase ainda que o benefício da gratuidade de justiça criado por meio da Lei 1060 de 5 de fevereiro de 1950 e hoje previsto no art 98 do Código de Processo Civil demonstram também os esforços brasileiros dentro dessa primeira onda No entanto a crítica feita a esse sistema consiste na sua depen dência do governo para atividades de natureza política o que facil mente resulta em insuficiência de recursos e limitações à sua atuação bem como a possibilidade desses advogados remunerados pelo Estado deixarem as reivindicações individuais de seus assistidos em segundo plano focando seus melhores recursos na promoção de causas coleti vas que atinjam mais pessoas e tenha maior repercussão379 Por fim quanto a esta onda Cappelletti informa que há países como a Suécia que optaram por um modelo combinado entre os dois anteriores utilizandoos como complementares380 Assim há a possi bilidade de o indivíduo escolher entre o advogado particular e o ad 376 Op Cit p 39 377 Op Cit p 40 378 SALES José Rômulo Plácido Acesso à Justiça e Defensoria Pública no Bra sil Revista das Defensorias Públicas do Mercosul Número 1 Outubro de 2010 p 25 379 CAPPELLETI Mauro e GARTH Bryant Op Cit p 38 380 CAPPELLETI Mauro e GARTH Bryant Acesso à Justiça Porto Alegre Fa bris 2002 Tradução de Ellen Gracie Northfleet p 434 968 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça vogado servidor público que tem como função única a defesa jurídica dos mais necessitados Dessa maneira garantiriase que tanto as ques tões coletivas e comunitárias afetas a essas pessoas como as meramen te individuais pudessem ter um tratamento de qualidade minandose os problemas de cada modelo individualmente II A SITUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA NO PAÍS A Constituição de 1988 preocupada em se distanciar do período ditatorial do qual representou a superação trouxe diversos direitos e garantias fundamentais estando boa parte elencada no seu artigo 5º De forma a se garantir também a efetivação desses direitos previu no inciso XXXV do mesmo artigo a regra da inafastabilidade de juris dição a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito Dessa redação temos como principal efeito segundo Fredie Di dier Jr o princípio do acesso à justiça ou direito de ação se tratan do de um complexo de situações jurídicas381 contendo o direito de provocar o Judiciário o direito de escolher o procedimento o direito à tutela jurisdicional e o direito ao recurso por exemplo 382 Não é uma garantia afeta apenas ao cidadão pessoa física mas também às pessoas jurídicas e alguns entes despersonalizados tais quais órgãos administrativos PROCON p ex ou as chamadas pessoas formais condomínio massa falida espólio etc383 sendo todo sujeito de di reito beneficiário da garantia do direito de ação Ressaltase que não se tratou de uma inovação no Direito pátrio havendo previsões correlatas em Constituições anteriores Por outro lado com um suporte em uma constituição garantista pôde se desen volver com maior amplitude No inciso LXXIV do mesmo artigo 5º a CF88 previu que o Es tado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que compro 381 DIDIER Jr Fredie Curso de Direito Processual Civil introdução ao direito processual civil parte geral e processode conhecimento 19ª ed Salvador Ed Jus Podivm 2017 p 200 382 Op Cit 383 Op Cit p 20 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 969 varem insuficiência de recursos Já no artigo 134 previu a criação da Defensoria Pública Regulamentando o dispositivo constitucional a Lei Complemen tar 80 de 12 de janeiro de 1994 trouxe normas de organização para a Defensoria Pública da União do Distrito Federal e dos Territórios bem como normas a serem seguidas na instituição das Defensorias Estaduais Nesse momento a atuação deste órgão era muito limitada e não gozava ainda da importância institucional que necessitava No entanto a Emenda Constitucional 45 de 30 de dezembro de 2004 que trouxe grandes mudanças em todo o Poder Judiciário passou a tratá la como uma instituição permanente e essencial à função jurisdicio nal do Estado determinando a autonomia financeira administrativa e orçamentária das Defensorias Estaduais384 Após a contínua luta385 para reclamar novos horizontes às Defen sorias a Lei Complementar 132 de 7 de outubro de 2009 trouxe nova redação para diversos artigos da Lei Complementar 80 de 1994 e da Lei 1060 de 1950 regulamentando a autonomia financeira adminis trativa e orçamentária das Defensorias Estaduais dandolhes inédita força386 no cenário jurídico brasileiro de modo a permitir uma atuação mais independente que comumente se dá contra o Estado Essa mesma Lei Complementar ao alterar o artigo 1º da LC 801994 elevou a Defensoria Pública à instituição instrumental do regime democrático tendo como função essencial a promoção dos direitos humanos e a orientação jurídica judicial e extrajudicial de forma individual ou coletiva Seguindo a mesma linha de evolução legislativa a Emenda Cons titucional 80 de 4 de junho de 2014 positivou nos artigos 134 e 135 da Constituição Federal o caráter de instituição permanente essencial à função jurisdicional do Estado reservado à Defensoria bem como seus princípios institucionais quais sejam a unidade a indivisibilida de e a independência funcional trazendo de forma definitiva à Defen 384 BURGER Adriana Fagundes Burger KETTERMANN Patrícia LIMA Sérgio Sales Pereira Defensoria Pública o reconhecimento constitucional de uma metagarantia Brasília ANADEP 2015 p 165 385 Op Cit p 166 386 Op Cit p 1667 970 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça soria Pública o caráter de instituição constitucional autônoma sem qualquer subordinação387 A referida Emenda ainda incluiu o artigo 98 no Ato das Disposi ções Constitucionais Transitórias Esse artigo determina que o núme ro de Defensores Públicos na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda pelo serviço e à respectiva população No parágrafo primeiro dispõe que no prazo de oito anos deverão os entes federa tivos e à União providenciar a presença de Defensores Públicos em todas as unidades jurisdicionais Já no seu parágrafo segundo prevê que a lotação de Defensores ocorrerá prioritariamente observando os índices de exclusão social e adensamento populacional Contudo ao analisarse a atuação da Defensoria enquanto pro motora de acesso à justiça através da defesa técnica dos hipossufi cientes não se pode ater somente à teoria Nada adianta por exemplo o artigo 98 do ADCT prever que o número de defensores públicos na unidade jurisdicional será proporcional à efetiva demanda pelo serviço da Defensoria Pública e à respectiva população quando na prática 63 das comarcas brasileiras sequer contam com a atuação da Defensoria388 Essa ausência da Defensoria em mais da metade do território brasileiro resulta em uma grande dependência ainda da figura do advogado dativo389 Tal fato gera grande problema para a efetivação do acesso à justiça pois mitigase a representação judicial dos direitos de pessoas de baixa renda Afinal atualmente a Defensoria Pública tem caráter de função essencial à justiça e tem dentre seus deveres a pro moção de direitos humanos e a defesa de direitos coletivos Embora o advogado dativo possa exercer individualmente a defesa de certo di reito a ausência da Defensoria enquanto instituição que promoveria assistência jurídica também extraprocessual consciência de direitos e 387 BURGER Adriana Fagundes Burger KETTERMANN Patrícia LIMA Sérgio Sales Pereira Defensoria Pública o reconhecimento constitucional de uma metagarantia Brasília ANADEP 2015 p 167 388 BRASIL Ministério da Justiça Centro de Estudos sobre o Sistema de Justiça IV Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil Brasília Ministério da Justi ça Secretaria de Reforma do Judiciário 2015 389 CONJUR Acertando as contas Defensoria de SP pagará dativos de convê nio com a OAB no dia 27 de janeiro Conjur Revista Consultor Jurídico 26 de janeiro de 2016 Disponível em httpswwwconjurcombr2016jan21 defensoriasppagaradativosconveniooabdia27 Acesso em 01112017 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 971 deveres e defesa de direitos transindividuais representa grande perda para a população pobre das comarcas em que é omissa José Rômulo Plácido Sales exDefensor PúblicoGeral Federal em artigo publicado na Revista das Defensorias Públicas do Mercosul defende que é possível extrair dos artigos 5º LXXIV e 134 da Consti tuição Federal de 1988 que a Defensoria Pública possui o monopólio da assistência jurídica gratuita pública ou oficial em nome do Esta do390 No entanto ressalta que não se trata de defender que a Defen soria é a única que possa prestar assistência jurídica gratuita Porém em que pese o cidadão necessitado dessa assistência possa escolher se deseja ou não que seu patrocínio seja feito por meio desta instituição o Estado não tem a mesma escolha Assim defende que se o Estado Brasileiro por qualquer de seus entes almeja aplicar dinheiro público na assistência jurídica aos necessitados obrigatoriamente deve aplicá lo na Defensoria Pública391 Dessa forma de acordo com esse entendimento os R 20 mi lhões que o Governo de Minas Gerais deve de honorários à advogados dativos392 por exemplo deveriam ser investidos na Defensoria Minei ra de forma a contribuir para a promoção mais organizada e institu cional da defesa dos direitos da população de baixa renda Embora tenha princípios e objetivos nobres a verdade é que atualmente a Defensoria não cumpre com eficiência o que deveria Os dados oficias do IV Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil o mais recente publicado até o momento demonstram a precariedade da instituição no país Além dos dados mostrados no subtópico ante rior cabe ressaltar outros que contribuem para a percepção do estado atual de abrangência da atividade da Defensoria Desse modo em todo o país em 2014 as Defensorias Públicas 390 SALES José Rômulo Plácido Acesso à Justiça e Defensoria Pública no Bra sil Revista das Defensorias Públicas do Mercosul Número 1 Outubro de 2010 p 19 391 Op Cit 392 GRILLO Brenno Cofre vazio Governo de Minas Gerais deve R 20 milhões aos advogados dativos do estado Conjur Revista Consultor Jurídico 13 de setembro de 2017 Disponível em httpswwwconjurcombr2017set13 governominas20milhoesaosadvogadosdativosestado Acesso em 01112017 972 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Estaduais estiveram presentes em aproximadamente apenas 13 das unidades jurisdicionais A atual crise econômica vivenciada no país acaba por criar um ambiente favorável ao surgimento de litígios e consequentemente aumentando a demanda do cidadão pelo judiciá rio Entre 2009 e 2014 aumentou em 176 os atendimentos realizados pelas Defensorias Estaduais passando de 3762606 para 10380167 não havendo sequer similar aumento quanto ao número de servidores ou orçamento No entanto ainda mais preocupante neste Diagnóstico se encon tra nos questionários realizados diretamente com os Defensores que passam como ocorre na prática essa defasagem Em que pese diversas Defensorias manterem convênios com outros órgãos para encaminha mento de casos não cobertos da qual a DPESP é exemplo através de seu convênio com o OABSP para a atuação dos dativos 80 infor maram desconhecer a realização dessa prática em suas unidades Dessa forma o cidadão de baixa renda e comumente também de baixa escolaridade ao procurar a Defensoria considerandose privile giado por não fazer parte das 63 das comarcas brasileiras que sequer possuem esse órgão caso não consiga ser atendido seja pela renda ultrapassar os limites próprios da Defensoria393 seja pela insuficiência de membros ou simplesmente porque sua matéria não têm sido aten dida pela Defensoria394 tampouco terá encaminhamento para outro lugar em que possa ter acesso à um advogado ficando completamente desprotegido Para uma pessoa com algum conhecimento jurídico talvez insis tisse e procurasse outros órgãos como a OAB ou diretamente o Po der Judiciário e lá pleiteasse a gratuidade de justiça e a nomeação de um advogado dativo Contudo para a esmagadora população de baixa renda a recusa de atendimento pela Defensoria pode acabar na recu sa direta de seu próprio direito perquerido 393 Que são mais restritas que as regras para a concessão da gratuidade de Justiça Sendo atualmente o limite para ser atendido na Defensoria Púlica da União a renda bruta familiar de R 200000 ignorando a quantidade de pessoas que formem esse núcleo familiar de acordo com a Resolução nº 133 de 07 de dezembro de 2016 do Conselho Superior da Defensoria Pública da União 394 Em que pese a Defensoria Pública da União ter competência para atuar na Justiça do Trabalho a mesma se recusa a atender estes casos sem tampouco dar qualquer solução alternativa Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 973 CONCLUSÃO Tendo em vista a importância histórica e prática de se promover o acesso à justiça a todos os cidadãos como forma de se assegurar a pró pria eficácia de todos os direitos e garantias individuais a Defensoria Pública surge como função essencial à justiça como expressamente previsto pela Constituição Federal de 1988 e único meio de se chegar ao Poder Judiciário para uma enorme parcela da população brasileira que não tem meios financeiros para contratar um advogado e tampou co possui instrução acerca de seus direitos e deveres Contudo embora o Poder Público e a legislação pátria reconhe çam a necessidade e a importância de se promover o acesso à justiça através da atuação de um advogado inclusive assim também defende Mauro Cappelletti posto que essa discussão se insere em sua 1ª onda de acesso à justiça essa promoção da aproximação entre o advogado seja particular ou público e o cidadão395 de baixa renda é feita na prá tica de forma ainda muito precária Conforme constatamos há muito descaso na forma como esse serviço é entregue para a população de baixa renda Havendo muitas comarcas órfãs da Defensoria o Estado tampouco consegue prover um sistema de qualidade e eficiência para que a parte tenha acesso a um profissional habilitado fazendo com que na prática haja sérios impedimentos na aproximação entre cidadão pobre e o advogado e consequentemente a justiça Assim demonstrase que na verdade a realidade de parcela muito expressiva da população brasileira de baixa renda está ainda presa nos problemas trazidos pela 1ª onda renovató ria do acesso à justiça levantada por Cappelletti REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL Conselho Nacional de Justiça Dia Nacional da Conciliação Disponível em httpwwwcnjjusbrprogramaseacoesconcilia caoemediacaoportaldaconciliacaosemananacionaldeconcilia cao Acesso em 07112017 395 Ressaltase no entanto que também é permitido às Pessoas Jurídicas o gozo do benefício da gratuidade de justiça e o patrocínio pela Defensoria Pública 974 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Conselho Nacional de Justiça Justiça em Números Dis ponível em httpwwwcnjjusbrprogramaseacoespjjusticaem numeros Acesso em 18102017 Ministério da Justiça Centro de Estudos sobre o Sistema de Justiça IV Diagnóstico da Defensoria Pública no Brasil Brasília Ministério da Justiça Secretaria de Reforma do Judiciário 2015 BURGER Adriana Fagundes Burger KETTERMANN Patrícia LIMA Sérgio Sales Pereira Defensoria Pública o reconhecimento constitucional de uma metagarantia Brasília ANADEP 2015 CÂMARA Alexandre Freitas O Novo Processo Civil Brasileiro Rio de Janeiro Atlas 2015 CAPPELLETI Mauro e GARTH Bryant Acesso à Justiça Porto Ale gre Fabris 2002 Tradução de Ellen Gracie Northfleet CARPENA Márcio Louzada Da Garantia da Inafastabilidade de Ju risdição do Controle Jurisdicional e o Processo Contemporâneo in PORTO Sérgio Gilberto org As Garantias do Cidadão no Proces so Civil Relações entre Constituição e Processo Porto Alegre Editora Livraria do Advogado 2003 CASTRO Flávia Lages de História do Direito Geral e do Brasil 6ª Ed Rio de Janeiro Editora Lumen Juris 2008 CONJUR Acertando as contas Defensoria de SP pagará dativos de convênio com a OAB no dia 27 de janeiro Conjur Revista Con sultor Jurídico 26 de janeiro de 2016 Disponível em httpswww conjurcombr2016jan21defensoriasppagaradativosconvenio oabdia27 Acesso em 01112017 DIDIER Jr Fredie Curso de Direito Processual Civil introdução ao direito processual civil parte geral e processode conhecimento 19ª ed Salvador Ed Jus Podivm 2017 GRILLO Brenno Cofre vazio Governo de Minas Gerais deve R 20 milhões aos advogados dativos do estado Conjur Revista Consultor Jurídico 13 de setembro de 2017 Disponível em httpswwwconjur combr2017set13governominas20milhoesaosadvogadosdati vosestado Acesso em 02112017 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 975 GRECO Leonardo Garantias fundamentais do processo o processo justo in Estudos de Direito Processual Campo dos Goytacazes Fa culdade de Direito de Campos 2005 OAB RIO DE JANEIRO Tabela de Honorários Disponível em httpwwwoabrjorgbrtabeladehonorarios Acesso em 07112017 RAWLS John Uma Teoria da justiça Tradução Almiro Pisetta e Le nita M R Esteves São Paulo Martins Fontes 1997 Coleção Ensino Superior p 64 SALES José Rômulo Plácido Acesso à Justiça e Defensoria Pública no Brasil Revista das Defensorias Públicas do Mercosul Número 1 Outubro de 2010 p 19 SANTOS Denise Tanaka dos Efetividade e interpretação das 100 Regras de Brasília O acesso à justiça das pessoas em condição de vulnerabilidade in Revista das Defensorias do MERCOSUL Defen soria Pública da União nº 3 Brasília DPU 2013 SÃO PAULO Defensoria Pública do Estado de São Paulo Assesso ria de Convênios Convênio OAB Disponível em httpswwwde fensoriaspdefbrdpespDefaultaspxidPagina5859 Acesso em 31102017 SCOCUGLIA Livia Aos 10 anos Defensoria paulista enfrenta crí ticas sem orçamento JOTA 8 de fevereiro de 2016 Disponível em httpsjotainfojusticaaos10anosdefensoriapaulistaenfrenta criticassemorcamento08022016 Acesso em 31102017 SCRIBONI Marília Disputa pelos pobres dativo recebe mais que defensor no Espírito Santo Conjur Revista Consultor Jurídico 25 de abril de 2012 Disponível em httpswwwconjurcombr 2012abr25advogadodativorecebedefensorpublicoespiritosan to Acesso em 01112017 976 DUQUE DE CAXIAS PROJETO DE SUPERAÇÃO DO MARCO DE PODER CLIENTELISTA MASCULINO E BRANCO PELA AÇÃO SOCIAL FEMINISTA Yasmin de Melo Silva396 Daises Santos397 RESUMO O presente artigo pretende demonstrar o Marco de Po der vigente na cidade de Duque de Caxias e suas implicações para a opressão e invisibilização construída para o Movimento de Mulhe res na cidade fluminense Por outro lado também se apresenta a re sistência histórica e incansável e suas propostas de superação desse marco clientelista miliciano masculino e branco O texto acrescenta uma leitura de geração de receita na região metropolitana que atenda à baixada fluminense e seja capaz de gerar materialidades que possam ser usadas pela autonomia das pessoas e sua cidade através de novas representações e fortalecimento dos movimentos sociais PALAVRASCHAVE Direito à cidade epistemologia feminista fe minismo em Duque de Caxias Movimento de Mulheres da Baixada 396 Advogada Mestranda no Programa de Pós Graduação em Direito da Univer sidade Federal do Rio de Janeiro PPGDUFRJ 397 Militante do Coletivo Rua Movimento Negro Unificado MNU e Diretora do Fórum de Mulheres da Baixada Fluminense Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 977 1 IDENTIFICAR E RESISTIR AO CAMPO O universalismo caiu por terra O Direito tem classe cor e gênero Não há revolução que não seja feminista e preta A resistência femi nista abraça a transdisciplinaridade e assume seu caráter de afirmação e reivindicação política Expõe as fissuras da busca pela verdade uni versalista e abala o muro que divide pesquisa de militância Os movi mentos feministas reivindicam independência autonomia e espaço dão cara à teoria e prática à ciência questionam e desconfiam do que parece dado do que está posto e não aceitam um todos que não inclua as mulheres tampouco leis feitas para proteger uma mulher vítima mantendoa longe do domínio dos espaços públicos Quando Ângela Davis diz que se há esperança em algum lugar reside nas mulheres negras latinoamericanas e caribenhas398 quer di zer que nestas reside a potência capaz de provocar o escárnio de toda a exclusão e dominação promovida e encampada pelo Estado lidera do por um grupo específico de interesses Pensando audaciosamente então se propõe olhar para Duque de Caxias cidade da Baixada Flu minense pelas lentes da resistência feminista da cidade Um estudo de olhar regional sabendo que pensar regionalmente saber regional mente depende da valorização do saber local Não enquanto folclore mas enquanto potência criadora seja ela econômica social política etc Portanto pensar em dar condição referência materialidades de vida digna enfim a uma localidade é antes de tudo reconhecer sua competência para o protagonismo Adotase a visão materialista dos Direitos Humanos Herrera Flores 2009 utilizando a linguagem econômica com o intuito de des construir o mito da racionalidade única da economia por um lado e por outro o mito de riqueza desta cidade da baixada fluminense e ex por o marco de poder North 2004 O marco de poder é a hegemo nia histórica e cultural que delineia a formulação de políticas públicas e projetos de desenvolvimento econômico segundo Douglass North 398 Ângela Davis em palestra proferida na reitoria da Universidade Federal da Bahia no dia 25 de julho de 2017 em comemoração ao dia da mulher afro latinoamericana e caribenha ao se referir às lideranças de mulheres negras nos movimentos antirracistas corrigiu sua fala e salientou a importância de se referir às lideranças feministas negras pois assim se incluiria o paradigma de classe sexualidade e gênero para além do convencional binário 978 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça tratase de um conceito dinâmico de nuances históricas que passa do plano cognitivo ao institucional e culmina no plano econômico O marco de poder de Caxias além de clientelista é masculino e branco A superação desse ciclo vicioso399 se alinha com os estudos que apontam para a necessidade de pensar não apenas a crise que atinge o Estado do Rio de Janeiro mas a geração de receita e captação de ati vidades indutoras para a região metropolitana do Rio de Janeiro que deve entender a capitalidade da cidade do Rio sem invisibilizar e me nosprezar características e potencialidades regionais400 Osorio Silva 2005 Afinal o discurso econômico e as materialidades financeiras que pode trazer podem estar alinhadas a uma gestão por direitos hu manos e não servir apenas para a negação de direitos Na linha do que propôs David Harvey acreditar na contrarrevolução neoliberal que começou nos anos 1970 o autor afirma que não é a igualdade regio nal e harmonia socialista que deve ser buscada pelos anticapitalistas mas a coordenação da sua própria dinâmica de desenvolvimento geo gráfico desigual a produção de espaços emancipatórios de diferença semear transformações do capitalismo rumo a um futuro anticapita lista Harvey 2016 pág 17 11 Metodologia e leituras de campo A metodologia utilizada abarca a coleta documental no acervo da cidade em parceria com a assessoria da Biblioteca Municipal de Duque de Caxias e o Museu Vivo do São Bento401 Valese de dados 399 Como demonstram os dados socioeconômicos Relatório SEBRAEIETS 2016 Baixada Fliminense I e II 400 Atividades indutoras são aquelas capazes de gerar renda nova como indústria cinema e vídeo turismo engenharia estas sustentam renda associada como o setor de serviços em geral A efetivação de direitos as lutas pela obtenção de materialidades para uma vida digna passam diretamente pelo estabeleci mento de um ciclo virtuoso em um contexto metropolitano sustentando uma educação em direitos humanos permitindo materialmente o desenvolvimen to de uma cultura em direitos humanos Vale ressaltar que políticas públicas desenvolvidas neste marco masculino e branco serão mais do mesmo se não forem críticas e considerarem os dados alarmantes em relação às mulheres da baixada notadamente as mais pobres e negras 401 Especialmente representada na figura de Marlucia Santos de Souza e seus estudos sobre história política de Duque de Caxias no Centro de Memória e Documentação da História da Baixada Flu Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 979 socioeconômicos402 acerca da cidade da baixada além de vivências e experiências do Movimento de Mulheres articulado na mesma Muitas vezes a precariedade sinaliza quase uma ausência de ci dade um nascimento em torno de um não ser um não lugar Seja pela característica dormitório ainda preservada pelo quarto da popu lação que trabalha e gera riqueza na cidade do Rio de Janeiro403 seja pela ocupação não planejada que deixa de priorizar direitos humanos A cidade parece seguir crescendo em torno da metrópole que a inclui sem incluir fazendo parte de um território que não a integra e priori zando interesses alheios à sua necessidade Nesse contexto as mulhe res saem duplamente invisivilizadas e as mulheres negras literalmente subjulgadas Considerando que a formação sócioespacial brasileira a forma ção do território brasileiro é produto das relações sociais no Brasil Santos De Souza Silveira 1998 p 25 o Marco de Poder vigente se relaciona diretamente com a construção de políticas públicas as teorias e ideologias que nortearão a gestão pública na cidade Mais o marco de poder influencia na construção da noção de território e ci dade por isso a noção de não lugar acima mencionada não se trata de negar a cidade mas de observar que as moradoras e moradores se referem à noção de centro como centro do Rio de Janeiro e Caxias ao centro de Duque de Caxias referindose apenas ao bairro ou favela como espaço urbano reconhecido enquanto casa Esse fato se rela ciona diretamente ao desenvolvimento da cidade voltado à cidade do Rio e não ao próprio espaço urbano as linhas de trem e deslocamento minense e a Associação de Professores Pesquisadores de História APPHClio 402 O Painel Regional Baixada Fluminense I e II Observatório SebraeRJ em parceria com o IETS Instituto de Estudo do Trabalho e Sociedade trouxe em 2016 um olhar preciso sobre a Baixada Fluminense e cada um dos 13 municí pios que a compõem em uma edição especial do painel regional Nele é possível identificar que além de não ser uma cidade rica Duque de Caxias é uma cidade que pratica rotineiramente má gestão pública de recursos 403 Fonte Censo IBGE 2010 Para mais dados com leitura regional ver SOBRAL Bruno Leonardo Barth A questão metropolitana em perspectiva o desafio de tornar a periferia da RMRJ mais densa produtivamente e com melhor infraes trutura básica In Uma agenda para o Rio de Janeiro Estratégias e políticas pú blicas para o desenvolvimento socioeconômico Organizado por Mauro Oso rio Luiz Martins de Melo Maria Helena Versiani e Maria Lúcia Werneck Rio de Janeiro FGV Editora 2015 980 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça pensam a ligação de mão de obra com o Rio e não a integração do próprio território Uma visão regional de longo prazo que ganhe em autoestima e resignifique o contexto da cidade fluminense é fundamental para estabelecer o ciclo virtuoso urgente mas precisa estar ainda associada a uma leitura feminista da cidade sob pena de não reverter o quadro socioeconômico que assola principalmente as mulheres negras 2 CONTEXTO HISTÓRICO E MARCO DE PODER 11 Análise de contexto socioeconômico Duque de Caxias é o município mais populoso da baixada fluminense e o segundo em área atrás apenas de Nova Iguaçu como demonstra o levantamento socioeconômico feito pelo Painel Regional Baixada Fluminense I e II Observatório SebraeRJ em parceria com o IETS Instituto de Estudo do Trabalho e Sociedade em 2016 Apesar do mito de riqueza construído em torno da Refinaria Duque de Caxias Reduc e do Polo Petroquímico404 a receita adicionada não inclui uma margem de riqueza real uma vez que a necessidade de gastos públicos é elevada e a renda per capita baixa É ainda o município da Baixada em que serviços e comércio possuem a maior participa ção relativa em termos de VAB 676405 Valor Adicionado Bruto ou seja ainda que seja a participação mais expressiva da indústria na baixada fluminense não se apresenta como suficiente para classificar o município como zona industrial como prova um Valor Adicionado Bruto tão associado a serviços Observase ainda que apesar da participação da Indústria na dis tribuição de estabelecimentos no município ser a maior da baixada fluminense e difundida pelo senso comum como pujante não signi fica participação na geração de empregos a ponto de eliminar a he 404 Assecampe Associação das Empresas de Campos Elíseos da qual fazem parte 13 treze sociedades empresárias instaladas no município da baixada flumi nense ALE ARLANXEO Performances Elastomers BRASKEM IPIRAN GA LIQUIGÁS Petrobrás NITRIFLEX PETROBRAS PETROBRAS DISTRI BUIDORA SA SUPERGASBRAS TRANSPETRO e ULTRAGAZ 405 O Painel Regional Baixada Fluminense I e II Observatório SebraeRJ em parceria com o IETS Instituto de Estudo do Trabalho e Sociedade 2016 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 981 rança de cidade dormitório406 visto que 14 da população ocupada de Duque de Caxias ainda trabalha e produz riqueza na cidade do Rio enquanto gera gastos de serviços públicos na cidade da baixada Sig nifica dizer que as características de Duque de Caxias concentram a precarização do emprego e baixa qualidade de vida Como se observa nas passagens a seguir Duque de Caxias apesar de possuir a maior receita da região a 4ª maior do ERJ está entre as 15 menores receitas per capita 78ª posição no ranking estadual dado o tamanho expressivo de sua população Sua despesa é a 3ª maior do ERJ407 As duas maiores concentrações urbanas apareciam com mais de 1 milhão de pessoas se deslocando para trabalho e estudo Em São PauloSP as maiores ligações ocorriam entre os mu nicípios de Guarulhos e São Paulo 1463 mil e entre Osasco e São Paulo 1124 mil No Rio de JaneiroRJ apareciam entre Niterói e São Gonçalo 1203 mil Duque de Caxias e Rio de Janeiro 1190 mil e entre Nova Iguaçu e Rio de Janeiro 1096 mil Ressaltase ainda o número elevado de deslocamentos presentes na ligação entre a capital mineira e Contagem com 1196 mil no arranjo Belo HorizonteMG e a da capital per nambucana com Jaboatão dos Guararapes com 1182 mil no arranjo RecifePE408 Grifei 406 Cidade dormitório é o conceito atribuído a cidades nas quais parte expres siva da população precise se locomover para trabalhar em cidades vizinhas mantendo movimentos pendulares diários que combinam o tempo de trabalho ao longo tempo de deslocamento Estudos recentes porém associam a noção de cidade dormitório com características além do deslocamento para traba lho como a baixa qualidade de vida visto que cidades da região metropolitana de São Paulo por exemplo que apresentam forte movimento pendular vem aumentando o padrão de moradias e qualidade de vida Para mais informa ções PASQUOTTO Geise Brizotti SILVA Paula Francisca Ferreira SOUSA Luana de Souza GARCIA Viviane SILVA Mariana Scarpinatte Muniz A expansão urbana de Americana e a questão regional In RUA online 2014 no 20 Volume II ISSN 14132109 Disponível no Portal Labeurb Revista do Laboratório de Estudos Urbanos do Núcleo de Desenvolvimento da Criativida de httpwwwlabeurbunicampbrrua 407 O Painel Regional Baixada Fluminense I e II Observatório SebraeRJ em parceria com o IETS Instituto de Estudo do Trabalho e Sociedade 2016 Pág 12 408 MOBILIDADE URBANA E MERCADO DE TRABALHO NA REGIÃO ME TROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO Estudo Estratégico Observatório SebraeRJ Nº 06 SETEMBRO DE 2013 Pág 21 disponível em httpsm sebraecombrSebraePortal20SebraeUFsRJMenu20InstitucionalSE BRAEEPGset13moburbmerctrabrjpdf 982 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 12 Industrialização modernidade ou neocolonialismo Após 1930 a baixada deixa de ser vista como vocacionada à área rural e assume papel de periferia urbanoindustrial porém sem uma industrialização desenvolvimentista como a que se projetava no ce nário nacional principalmente no que toca à infraestrutura pensada em melhorias pontuais para instalações específicas como a Fábrica Nacional de Motores e não em uma rede que se sustentasse e ganhasse em autonomia à longo prazo Os investimentos promovidos pelo de senvolvimentismo Varguista foram fundamentais para alterar o papel da cidade o que não se alterou foi a subalternidade e o clientelismo Marlucia Souza explica a relação de Caxias com o projeto nacional de colonização e modernização inaugurado pelo Governo Vargas É possível identificar nesse projeto algumas características a redescoberta e a ocupação de espaços vazios principalmente de áreas desvalorizadas por meio da redução das áreas desvalorizadas por meio das áreas pantanosas do controle das doenças e do aumento da produção agrícola o desenvolvimento industrial a partir da forte intervenção estatal e o fornecimento de uma educação técnica que promovesse o nacionalismo e o progresso agrário e industrial Esse projeto deixou marcas em Duque de Caxias e foi efetivado por meio da forte intervenção do poder público expresso na instalação do Núcleo Agrícola de São Bento da Fábrica Nacional de Motores e da Cidade dos Meninos409 SOUZA 2014 Pág 115 Cada uma dessas marcas tinha um papel no projeto que não era de integração regional mas de fato colonizador as ocupações e in centivos agrários por exemplo além de manter a concentração de terras entre os favorecidos e influentes da região freavam a ocupa ção em loteamentos das altas taxas migratórias que se acumulavam na baixada tratavase de uma forma de manter o poder e a sensação de segurança da capital além de garantir o abastecimento O projeto atendeu a uma lógica de investimento regressivo a infraestrutura não acompanhou as necessidades de crescimento não houve articulação logística para escoamento de produção e para manter o valor da terra 409 SOUZA 2014 Pág 115 Nas páginas seguintes a autora especifica o Núcleo Colonial de São Bento e divide a produção por bairros Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 983 os proprietários loteavam e vendiam os moradores passaram então a fazer da autoconstrução uma realidade e da ausência de infraestrutura de transportes lazer saneamento uma rotina No que se refere à segunda marca uma cidade para menores pri meiro devese mencionar o projeto da primeira dama Darcy Vargas de 1939 uma fundação com seu nome para receber meninas aban donadas para formação moral e religiosa em um projeto de seguran ça nacional que projetava no trabalho a lógica de controle informal enquanto o sistema penal desenvolvia a lógica de controle formal o controle informal exercido sobre as mulheres e meninas fica evidente nesse projeto descrito por Marlucia Souza Em 1942 o Decreto nº 34675 desmembrou uma área de 19 mi lhões de metros quadrados pertencente ao Núcleo Colonial São Bento e em 1943 transferiua para a fundação Darcy Var gas Decreto nº 5441 Nessa área teve início a instalação da Cidade das Meninas ten do como objetivo inicial receber meninas abandonadas ou de famílias empobrecidas para que recebessem preparo físico moral educacional e religioso A Cidade das Meninas foi idealizada juntamente com ou tros projetos voltados à moralização a contenção das situações de violência urbana promovida por desabrigados e populações empobrecidas ao treinamento para o trabalho ou seja à for mação do trabalhador nacional e finalmente à promoção e à diversificação agrícola e ao desenvolvimento industrial SOU ZA 2014 Pág 120 A autora menciona ainda citando Rubens Porto que a Cidade das Meninas atendia às orientações do Primeiro Congresso Latino Americano de Criminologia realizado em Buenos Aires em 1938 Tornase fundamental acrescentar os apontamentos da criminologia crítica contra os estudos criminais que relacionam criminalidade à pobreza ou à condições físicas criminólogos críticos demonstram as lógicas de controle formal e informal que transformam o cárcere em fábrica no domínio dos corpos notadamente os corpos negros no controle formal e de mulheres no informal 984 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Ainda que a criminologia crítica tenha se ampliado enquanto teoria ou perspectiva crítica na década de 1960 quando a análise do fenômeno social se ampliou e descolouse o objeto para a criação de reprodução do crime e não para o criminoso em si ao passo que esse não existia de forma espontânea e natural mas sim como criação so cial Baratta 1999 e Andrade 1995 a sua capacidade de releitura al cança o universalismo contratualista rousseauniano por ter represen tado o momento em que a privação de liberdade se tornou a punição por excelência quando os cidadãos abririam mão de sua liberdade em prol do Estado Com a afirmação do modelo capitalista como do minante o cárcere se uniu à fábrica como salientaria Foucault e os corpos passaram a servir à produção devendo atender aos padrões estabelecidos brancos e burgueses quando não deveriam ser contro lados e regulamentados O conceito de tempo de trabalho surge no Estado Moderno atre lado à ideia de ressocialização adequada à disciplina para a produção Na passagem para o Estado Neoliberal a disciplina passa a ser para a manutenção da ordem para o consenso e não apenas para a força de trabalho a qual passa a ser instrumento Melossi e Pavarini 2014 Quanto à regulamentação Rushe e Kirsheymer na obra Punição e Es trutura social demonstram o importante papel do Direito enquanto entendido como norma posta para a manutenção do controle Estos regímenes se caracterizan también por una estricta lega lización em el sentido de derecho escrito de las relaciones sociales En tal sentido La ley adquiere un carácter más extremo que en los países del primer grupo pues en forma totalmente consciente y definida solo está referida a un pequeño grupo de sujetos del país y por otra parte es solamente el producto de um determinado grupo de personas Como los juristas nunca aparecen como lós hacedores de la ley y el derecho el poder le gislativo reducido a la junta militar respectiva tiene un consejo asesor de juristas que es el que redacta las leyes La ley surge así y también el derecho según ya lo dijo RADBRUCH de quien tiene el poder para imponerla y como tal poder lo tienen las Fuerzas Armadas la ley representa la fuerza y no un proceso trasparente de participación y es al mismo tiempo la esencia más característica de una ideología RUSHE e KIRSHEYMER 1984 p 56 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 985 Assim a análise criminológica crítica se abre em dois cominhos o controle formal e o controle informal Como demonstra Teresa Mi ralles Bergalli et al 1983 p 3749 95120 o controle formal se mo difica historicamente sobre os corpos femininos mas o informal man tém a maior força repressiva Exercido pela família a religiosidade os fármacos e manicômios o controle informal mantém mulheres de todo o mundo alinhadas com a visão de mães republicanas que pre cisam ser controladas em seus desejos e impulsos Quando o controle informal não se apresenta suficiente e as mulheres teimam em trans gredir surge a criminalização feminina não sendo esta uma pauta au tônoma nos estudos da criminalidade mas posta como alternativa ao controle de ordem privada e velado enquanto constróise a mulher como vítima natural O Direito exerce portanto papel de controle formal notadamen te através do direito penal e da privação de liberdade mas não apenas uma vez que métodos alternativos de punição penal continuam sen do métodos de controle ao passo em que normatizam e regularizam ações humanas legitimando o direito penal enquanto pacificador so cial Stanley Cohen410 pontua que mesmo políticas sociais são polí ticas de controle conformando os corpos a assumiram as posições de trabalhador ou prisioneiro o que faz parecer muito natural que o trabalhador seja protegido enquanto esteja contribuindo e mais e es pecialmente para as mulheres que precisem ser protegidas A relação Rio Caxias tornouse nesse período uma relação não só de subordi nação mas de controle claramente desenhado contra a pobreza que a subordinação histórica ajudou a desenhar Com o fim do Estado Novo a Fundação Darcy Vargas teve seu patrimônio transferido para a Fundação Abrigo Cristo Redentor uma escola agrícola agora só para meninos a qual as meninas foram pos teriormente incorporadas a ideia era formar lavradores de subsistên cia sem acesso à terra como salienta Marlucia Souza o nó da terra de Erminia Maricato411 continuava plenamente instalado Marlucia 410 COHEN Stanley Visions of Social Control Polity Press Cambridge 1985 411 MARICATO Erminia A terra é um nó na sociedade brasileira também nas cidades Disponível em httplabhabfauuspbrbibliotecatextosmaricato terranosociedadebrasileirapdf Neste artigo a autora demonstra que a concen tração fundiária é fundamental para os deslocamentos migratórios no Brasil famílias inteiras mudam de cidade não só pela esperança de empregos mas também par ter acesso à terra A ausência de regularização e infraestrutura 986 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça aponta ainda para uma questão que torna evidente a necessidade de leitura crítica e qualitativa dos dados da industrialização nesse perío do como havia espaço ocioso na Cidade dos Meninos devido aos parcos recursos investidos em 1947 o Ministério da Saúde ocupou como empréstimo cerca de oito pavilhões para que fosse instalado o Instituto de Malariologia Souza 2014 pág 123 Para atender à necessidade de DDT o instituto de malariolo gia planejou a construção de uma fábrica de HCH Hexacloro Ciclo Hexano também conhecido como BHC A fábrica foi inaugurada em 1950 na Cidade dos Meninos associando menores a pesticidas e quando o uso do químico já era questionado como cancerígeno em diversos países A erradicação da malária poderia ser comemorada com sucesso se o preço pago não tivesse sido a contaminação do solo dos rios da produção agrícola e principalmente dos menores e da população local Souza 2014 pág 125 A possibilidade do Brasil tornarse autossuficiente no mercado internacional e diante da neces sidade estadunidense pelo produto caiu por terra diante dos estudos da relação com o químico e o câncer As articulações internacionais com os Estados Unidos especi ficamente viabilizou a construção da CSN Companhia Siderúrgica Nacional e também da Fábrica Nacional de Motores cuja instalação se deu em Duque de Caxias por uma série de fatores que se relacio nam com o clientelismo e não com um projeto de aproveitamento e emancipação para o território José Ricardo Ramalho em seu livro Estado patrão e luta operária o caso FNM demonstra a construção de uma verdadeira fábrica militar muito porque o genro de Getúlio Vargas Amaral Peixoto queria dar status de cidade industrial à Du que de Caxias se valendo das condições físicas de Xerém com água em abundância e próxima a estradas de ferro além de estar localizada entre serras aumentando a segurança militar Ramalho 1989 A disciplina e a racionalidade militar faziam não um projeto de industrialização mas um projeto de cidade Ramalho salienta que a fábrica era um lugar de ensinamento e construção da libertação in dustrial por meio da hierarquia e equivalência entre o trabalho na na baixada mais os loteamentos baratos feitos por proprietários para reaver o valor da terra após a desvalorização das produções agrícolas foi fundamental para a ocupação de paraibanos e pernambucanos principalmente Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 987 fábrica com prestação do serviço militar ou seja tanto poderia ser expedido um certificado de reservista quanto poderiam ser conside rados desertores os que deixassem o trabalho requinte que talvez nem Foucault pudesse prever Por outro lado aparecia um perfil paternalis ta de valorização e construção de uma cidade sustentável no entorno da fábrica com estrutura urbana e infraestrutura como não havia sido planejada até então Os trabalhadores eram divididos em assentamentos e as diversi dades claramente não poderiam ser dribladas pela força e hierarquia apenas Marlucia Souza aponta que com o fim do Estado Novo o pro jeto da Fábrica foi alterado foi transformada na principal indústria de montagem de veículos pesados no país e posteriormente como So ciedade Anônima foi sendo entregue ao capital internacional nesse período Duque de Caxias ficou conhecida como a cidade do Motor do trabalho do trabalhador Souza 2014 pág 136 Posteriormente com a crescente movimentação de pessoas que residiam em Caxias mas trabalhavam no Rio cunhouse a imagem de cidade dormitório De periferia da periferia Souza 2014 pág 114 a cidade dos menores do motor trabalho e trabalhador até dormitório412 Du que de Caxias passou pela modernidade desenvolvimentista nacional rompida pelo período militar sem colher autonomia Nesse caminho a Região Metropolitana do Rio de Janeiro se desenhava como marco institucional mas sem uma integração regional que levasse às cida des além do Rio à captação expressiva de recursos condizente com as necessidades de gastos principalmente de infraestrutura O fato da região ter convivido com duas unidades federativas até 1974 preju dicava a captação e repasse de recursos estaduais para as cidades que compõem a região metropolitana Osorio 2005 daí as diferenças 412 Duque de Caxias apresentou imenso crescimento populacional como área de escoamento do Rio de Janeiro principalmente com a instalação da via férrea que facilitava o acesso à capital Marlucia Santos de Souza em seu impressio nante livro Escavando o Passado da Cidade História Política da Cidade de Du que de Caxias descreve a histórica colocação regional da cidade da baixada como periferia da periferia fazendo referência à periferia da cidade do Rio a população que não detinha meios para ocupar a periferia do Rio ocupava a região da baixada fluminense notadamente o distrito do centro de Duque de Caxias 1º Posteriormente cidade dos menores com dois projetos voltados à doutrinação da pobreza desde a infância e a cidade do motor trabalho e tra balhador com a instalação da Fábrica Nacional de Motores e a necessidade de mão de obra gerada pelo Rio 988 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça percebidas entre as cidades industriais e das regiões metropolitanas de São Paulo e Belo Horizonte em relação ao Rio de Janeiro O pró ximo capítulo questiona aos gestores e movimentos sociais o projeto de cidade e desenvolvimento que vislumbram ou vislumbraram para Caxias bem como o que entendem por esses conceitos e sua relação com direitos sociais 2 LUTA FEMINISTA E RESISTÊNCIA O MOVIMENTO DE MULHERES DA BAIXADA Daises coautora desse artigo e membro do Fórum de Mulheres da Baixada Fluminense expõe os dados na forma de relato Vivemos em uma sociedade extremamente machista onde as mulheres são as principais vítimas Sou moradora da Cidade de Duque de Caxias na Baixada fluminense e sei como é difícil ser mulher nessa cidade que a cada 2 dias 5 mulheres são estupra das como aponta a pesquisa no site do Instituto de Segurança Pública ISP Nós mulheres somos mais da metade da população da cidade e mesmo assim não somos representadas e muito menos temos proteção Temos os nossos corpos desrespeitados não nos sen timos seguras ou à vontade ao andar sozinhas na rua A mesma pesquisa feita pela ISP aponta que a região da Baixada é a área do estado com maior número de mulheres vítimas de estupro ou quase violentadas Mesmo com alto índice de casos de estu pros dos 13 municípios pertencentes à região Baixada Flumi nense apenas alguns contam com delegacias especializadas como Belford Roxo Nova Iguaçu e Duque de Caxias Na cidade de Duque de Caxias a delegada Débora Rodrigues que atua na delegacia especial de mulher registrou 257 casos de estupros em 2013 e a coleta de dados continua precária e invisibilizada Podemos mais uma vez ver que nós mulheres so mos as mais atingidas por essa sociedade Mas infelizmente a violência na baixada não tem uma grande visibilidade em geral o porquê todas nós sabemos é interessante que a baixada con tinue invisível Nós mulheres somos a resistência Não Somos apenas mulhe res para parir que trabalham e que cuidam da casa Somos fortes e bravas apesar de desrespeitadas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 989 O Fórum de Mulheres de Duque de Caxias parte do Movimento de Mulheres da Baixada Fluminense se organizava na PUC Caxias e em alguns CIEPs Centros Integrados de Educação Pública sofreram opressão policial e se organizaram para fazer a marcha no dia 28 de março mas muitas desistiram da luta por medo Lutam pela democra cia por qualidade de educação recursos pela saúde das mulheres por projetos de emancipação financeira também além de delegacias que possam receber mais as demandas promover palestras Conseguiram a delegacia das mulheres de Duque de Caxias A precarização do trabalho na baixada mais os deslocamentos para trabalho no Rio e o conservadorismo que mantém as jornadas duplas intactas assola principalmente as mulheres O marco de poder miliciano e clientelista fez com que a polícia oprimisse as reuniões de mulheres na PUC há relatos de que as militantes eram aconselhadas a procurar uma roupa pra lavar e uma comida pra fazer O cansaço e desesperança tomou conta de muitas das participantes mas as mobi lizações se mantém na prática do possível com lugares alternativos de encontro e mobilizações virtuais até que a invisibilização do fórum de mulheres também pelas secretarias pelo marco clientelista que não prioriza direitos humanos muito menos direitos das mulheres possa ser superado uma fissura de cada vez Não se trata de um bando de mulheres paneleiras é dar visibi lidade para as mulheres de Caxias como expôs a Daises durante a apresentação do artigo no Seminário Mulheres que sempre se or ganizaram em luta mulheres que se valeram da capitalidade da ci dade do Rio a concentração política e econômica que rondava a en tão Capital Federal para se aliar à União Feminina Brasileira UFB aberta e fechada no mesmo ano 1935 pela repressão de Vargas Com a opressão à rebelião comunista de 1935 e as prisões de feministas em Caxias como eu outras cidades foi criado o Comitê de Mulheres PróAnistia pela libertação de presas e presos Souza 2014 pág 217 Nomes de militantes de Caxias constam entre os movimentos na cionais e internacionais como a Lydia Cunha presente na delegação feminina no Congresso Mundial de Mulheres em Copenhague Sou za 2014 pág 218 Lutaram e lutam contra a concentração fundiária pela democracia pelos direitos das mulheres e políticas públicas de direitos humanos que marcassem a especial necessidade das mulhe 990 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça res Porém as marcas da opressão se fortaleceram diante da invisibili zação e subalternidade reservadas à cidade como um todo As propos tas sempre foram múltiplas algumas alinhadas às lutas comunistas outras liberais e pela emancipação econômica enquanto empresárias individuais algumas anarquistas todas questionam a subalternidade fluminense e reivindicam voz Não há resposta fácil para a superação do marco de poder clien telista miliciano masculino e branco de Duque de Caxias mas a re sistência feminista acredita em um fazer diferente em fissuras e arti culação de gestão pública em prol de marcos de demandas diferentes através de novas representações políticas e fortalecimento das institui ções e da cidade enquanto autônoma criadora de suas vivências São mulheres que resgatam as experiências locais como criativas e reivin dicam espaços integrados de saúde educação e lazer além de traba lho digno oportunidades razoáveis que as permitem se locomover por vontade para ganhar outros espaços quando quiserem sem aju dar a construílos às custas da exploração de seu tempo e trabalho São mulheres que constroem coletivamente a luta por direitos se articulando com outros movimentos como Movimento Negro Unifi cado Rede de Advogados Populares da Baixada e Fórum Grita Bai xada além dos movimentos culturais Cine Clube MateComAngu e LiteraCaxias Para que a opressão sofrida não cale suas vozes acredi tam na integração entre as pautas o que pode ser considerado uma concessão a curto prazo mas a permanência da luta à médio e longo prazos Passa ainda por uma necessária fase de articulação política e fissuras locais contra o histórico clientelismo a serviço do poder que exerce a capitalidade da cidade do Rio de Janeiro e um fortalecimento e emancipação dos movimentos sociais e principalmente o movimen to de mulheres Infelizmente a pauta que define a cidade é também a pauta que une os movimentos em Duque de Caxias a luta contra o Marco de Poder sigamos Juntas e juntos Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 991 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE Vera Do paradigma etiológico ao paradigma da rea ção social mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum Disponível em httpwwwbuscalegis ufscbrrevistas V 16 n 30 1995 BARATTA Alessandro Criminologia crítica e crítica do direito penal introdução à sociologia do direito penal 2 ed Rio de Janeiro Freitas Bastos 1999 BELTRÁN Elena y MAQUIEIRA Virginia eds ÁLVAREZ Silvina y SÁNCHEZ Cristina Feminismos Debates teóricos contemporâneos Alianza Editorial SA Madrid 2008 BERGALLI Roberto BUSTOS Juan González Z Carlos MIRAL LES Teresa DE SOLA Ángel VILADAS Carles El Pensamiento Cri minológico vol II Estado y Control Obra dirigida por R Bergalli y J Bustos Editorial Temis S A Bogotá Colombia 1983 DAVIS Angela Y Mulheres raça e classe Tradução Heci Regina Can diani 1 edi São Paulo Boitempo 2016 HARVEY David 1992 Condição pósmoderna Uma pesquisa so bre as origens da mudança cultural São Paulo Loyola 17 Contradições e o fim do capitalismo São Paulo Boitempo 2016 HERRERA FLORES Joaquin A reinvenção dos Direitos Humanos Tradução de Carlos Roberto Diogo Garcia Antonio Henrique Gra ciano Suxberger e Jefferson Aparecido Dias Florianópolis Fundação Boiteux 2009 KRUGMAN Paul FUJITA Masahisa VENABLES Anthony J Eco nomia espacial urbanização prosperidade econômica e desenvolvi mento humano no mundo São Paulo Futura 2002 MATOS Marlise O movimento e a teoria feminista em sua nova onda entre encontros e confrontos seria possível reconstruir a teoria feminista a partir do sul global Revista de Sociologia e Política V 18 Nº 36 6792 JUL 2010 Disponível em httpwwwfafichufmgbrnepem wpcontentuploads201606MATOSmarlisematosOMOVI MENTOEATEORIAFEMINISTAEMSUANOVAONDApdf MELOSSI Dario e PAVARINI Massimo Cárcere e Fábrica As ori gens do sistema penitenciário séculos XVIXIX Revan ICC Rio de 992 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Janeiro 2006 Pensamento criminológico v II 2ª edição agosto de 2010 1ª reimpressão setembro de 2014 NORTH Douglass C Instituciones cambio institucional y desem peño económico México Fondo de Cultura Económica 1993 MANTZAVINOS C SHARIq S 2004 Learning institu tions and economic performance Perspectives on politics Vol 2 Nº 1 P 119 OLIVEIRA Hipólita Siqueira de Desenvolvimento Regional recente no Brasil EPapers Rio de Janeiro 2010 PAINEL REGIONAL Baixada Fluminense I e II Observatório Se braeRJ Rio de Janeiro SEBRAERJ 2016 Disponível em ht tpsmsebraecombrSebraePortal20SebraeUFsRJAnexosSe braePainelBaixadaFluminensepdf RAMALHO J Ricardo Estado patrão e luta operária o caso FNM Rio de Janeiro Paz e Terra 1989 RUSCHE Georg e KIRCHHEIMER Otto Pena y Estructura Social Editorial TEMIS Librería Bogotá Colombia 1984 Trad Emilio Gar cía Méndez SANTOS Milton DE SOUZA Maria Adélia A SILVEIRA Maria Laura Org Território Globalização e Fragmentação Editora HU CITECANPUR 1998 SILVA Mauro Osorio Rio nacional Rio local mitos e visões da crise carioca e fluminense Rio de Janeiro SENAC 2005 SOBRAL Bruno Leonardo Barth Limites ao Desenvolvimento do Estado do Rio de Janeiro Aspectos Estruturais de seu Processo de Industrialização no Período Recente Econômica Programa de Pós Graduação em Economia da Universidade Federal Fluminense Rio de Janeiro 7Letras v 11 nº 2 p 133 154 2009 SOUSA SANTOS Boaventura A crítica da razão indolente contra o desperdício da experiência 8ª edição São Paulo Cortez 2011 SOUZA Marlucia Santos de Escavando o passado da cidade história política da cidade de Duque de Caxias Duque de Caxias RJ APPH CLIO 2014 993 A LEI MARIA DA PENHA NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE RONDÔNIA ENTRAVES E SOLUÇÕES PARA A EFETIVIDADE LEGAL NOS CASOS DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO Daniela Christina Klemz Eller Sityá413 Resumo O presente trabalho é parte de pesquisa em andamento desenvolvida no Programa de PósGraduação Mestrado Profissional Interdisciplinar em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça na qual pretendo analisar os casos de violência de gênero trazidos à apreciação do Tribunal de Justiça de Rondônia com a finalidade de propor à referida instituição ao final e como produto do estudo novas políticas judiciárias ou práticas bemsucedidas em outras instituições para aplicação e maior efetividade da Lei Maria da Penha como ferra menta eficaz no enfrentamento da violência contra a mulher A Lei 1134006 cognominada Lei Maria da Penha veio como uma resposta do Estado à premente necessidade de criar mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher configuran do verdadeira ação afirmativa para assegurar os direitos humanos das mulheres trazendo previsões promissoras de implantação de ações articuladas entre os diversos poderes e setores da sociedade daí a re levância de se analisar como o aparato judiciário vem cumprindo seu papel 413 A autora é discente do PPG Mestrado Profissional Interdisciplinar em Direitos Humanos e Desenvolvimento da Justiça da Universidade Federal de Rondô nia Unir em parceria com a Escola da Magistratura do Estado de Rondônia Emeron e Servidora do Tribunal de Justiça de Rondônia É pesquisadora da temática Violência Doméstica sob a orientação do Professor Dr Osmar Siena 994 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A pesquisa tem como locus o Tribunal de Justiça Rondoniense localizado numa região que enfrenta diversos problemas sociais com baixo índice de desenvolvimento humano e taxas alarmantes de violência e pobreza além de marcante diversidade cultural o que reclama ainda mais atenção na defesa dos direitos humanos com atuação eficiente do Judiciário como garantidor desses direitos O estudo será realizado por meio de pesquisa quantitativa e qualita tiva na qual será realizado um diagnóstico do problema da violência doméstica no Estado de Rondônia por meio do levantamento de da dos estatísticos que indiquem o número de ocorrências registradas número de casos judicializados número de desistências por parte da vítima e número de casos de reincidência confrontando estes últimos como um possível indicativo de falta de efetividade da decisão judicial efetiva aplicação da Lei Maria da Penha e da eficiência do atendi mento dos profissionais envolvidos e da própria prestação jurisdicio nal Além disso o estudo buscará apontar para a possibilidade de articulação do poder judiciário com outros setores da comunidade local em geral a exemplo das diversas universidades e organizações existentes ou ainda com o poder executivo secretarias autarquias especialmente em relação ao atendimento multidisciplinar das víti mas legalmente previsto e atualmente de aplicabilidade nula parcial ou insatisfatória Caberá relatar experiências e práticas boas práticas de outros tri bunais ou setores envolvidos e ainda apontar eventuais ausências ou barreiras institucionais que possam configurar entraves para a conse cução da efetivação da justiça pretendida pela lei buscando propor um modelo viável dialógico e adequado de prestação jurisdicional ao Tribunal de Justiça de Rondônia de possível implantação e que atenda de forma mais justa e significativa à mulher em situação de vulnerabi lidade contemplando os pontos trazidos no texto legal e conforman do o direito positivo à realidade concreta Palavraschave Lei Maria da Penha efetividade poder judiciário violência doméstica políticas públicas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 995 1 INTRODUÇÃO O tema da pesquisa nasce da inquietação experimentada pela pesqui sadora como servidora do Poder Judiciário de quem está do outro lado do balcão e diariamente presencia casos concretos de violência contra a mulher trazidos à apreciação da justiça O advento da Lei Maria da Penha Lei 113402006 fez surgir inúmeras discussões nas mais diversas áreas acadêmica jurídica so cial política Certamente essa inovação legislativa trouxe visibilidade no cenário brasileiro às diversas facetas de um problema sério e com plexo que é a violência contra a mulher Historicamente as mulheres sofreram violações desde os tempos mais remotos Os ideais iluministas do século XVII e XVIII baseados na premissa de que os homens nascem livres e iguais não pretendiam considerar homens no sentido de gênero humano vez que as mu lheres estavam excluídas dessa noção de igualdade Filósofos como Rousseau e Locke embora revestidos das con cepções liberais no campo econômico e político justificavam a dico tomia existente entre o masculino e o feminino em suas teorias as quais chancelavam as definições sociais baseadas no costume dos papéis que deveriam ser desempenhados por homens e mulheres sob a alegação de que os homens eram seres dotados de força e razão e por isso deveriam protagonizar direitos e deveres cabendolhes a esfera pública e que o espaço naturalmente adequado às mulheres era a esfera privada doméstica dada a sua fragilidade e racionalidade inferior Treviso 2008 p 541 lembra que a presença da mulher era na verdade a história de sua ausência já que sempre foi tratada como uma pessoa subordinada ao marido ao pai sem direito de voz e ain da marcada pelo regime da incapacidade jurídica E complementa dizendo que a história da mulher no Direito ou melhor o lugar dado pelo Direito à mulher sempre foi considerado um não lugar Com a Revolução Francesa e a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão 1789 as mulheres timidamente iniciaram sua luta pela igualdade de direitos e contra a dominação masculina até hoje marcadamente presente nas relações sociais o que podemos 996 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça perceber analisando o alarmante número de registros de ocorrências envolvendo violência de gênero Nesse sentido Maria Berenice Dias afirma que Ninguém duvida que a violência sofrida pela mulher não é ex clusivamente de responsabilidade do agressor A sociedade ain da cultiva valores que incentivam a violência o que impõe a ne cessidade de se tomar consciência de que a culpa é de todos O fundamento é cultural e decorre da desigualdade no exercício de poder e que leva a uma relação de dominante e dominado Essas posturas acabam sendo referendadas pelo Estado Daí o absoluto descaso de que sempre foi alvo a violência doméstica DIAS 2008 p15 A violência contra a mulher é fruto pois de uma construção his tórica e social baseada no conceito de inferioridade e subordinação da mulher em relação ao homem e portanto representa um fenômeno social complexo cujo tratamento demanda para além da formulação de leis políticas públicas consistentes e sistemas jurídicos especiais para a sua eliminação e enfrentamento Tratar uma questão de raízes profundas e múltiplas nuances não é tarefa fácil Nem rápida Experimenta diversas formas de resistência inclusive no âmbito jurídico e do sistema de justiça e passa por um processo gradual e lento certamente em tempo inversamente propor cional à necessidade de mudança A elaboração de uma lei específica contra a violência de gênero surgiu no Brasil como expoente das conquistas obtidas pelos movi mentos de mulheres e vem regular aqui direitos assegurados inter nacionalmente como integrantes dos Direitos Humanos exigindo mudança de postura do Estado e das respostas deste para o que agora deve ser encarado como problema social Nasceu assim a Lei Maria da Penha Lei n 1134006 que im pôs às instituições jurídicas a obrigação de reconhecer as relações de poder desiguais entre homens e mulheres e portanto a necessidade de tratamento especial aos sujeitos de direito principalmente por meio de dispositivos que visam garantir proteção e procedimentos humani Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 997 zados a quem dela se socorre pretendendo incluílos num patamar de igualdade constitucionalmente garantido Para tanto busca de imprimir novos paradigmas comportamen tais relacionais e claro também no campo jurídico e nas práticas judiciárias aplicadas aos casos de violência doméstica instrumentali zando a atuação de seus aplicadores com inovações materiais e proce dimentais Tratase assim de uma lei inovadora que modificou o papel e a atuação das autoridades públicas e dos sujeitos envolvidos na relação jurídica processual criou novas formas procedimentais processo pe nal protetivo de violência doméstica e o processo criminal de violência doméstica Fernandes 2015 p 0102 convocou os entes estatais as organizações as instituições governamentais e não governamentais a sociedade civil e a própria família a tomar lugar no enfrentamento e coibição desse tipo específico de violência definindo em especial ao Estado novos compromissos e a responsabilidade de dar efetividade ao texto legal Ainda neste ponto a Lei Maria da Penha trouxe diretrizes de atuação das equipes multidisciplinares na assistência à mulher vítima de violência doméstica e familiar em seu título III propondo um con junto articulado de ações para a elaboração desenvolvimento e frui ção de políticas públicas capazes de promover e garantir os direitos humanos das mulheres art 8º Lei 1134006 Nesse sentido mais do que munir o aplicador do direito a quem nos interessa no presente estudo com ferramentas legais para funda mentar suas decisões a Lei Maria da Penha chama o judiciário para o compor a rede de enfrentamento contra a violência de gênero o que acaba por lhe exigir o desempenho de seu inarredável papel político no qual reside digase grande expectativa social como instrumento capaz de promover a justiça na medida que deve garantir e dar efeti vidade à execução dos direitos já previstos nos dispositivos legais Passados mais de dez anos desde a entrada em vigor da Lei Ma ria da Penha muitas são as dificuldades já e ainda identificadas para trazer a previsão legal ao mundo real nos diversos setores pelos quais caminha Delegacias Ministério Público equipes multidisciplinares e o judiciário ao que se vê não configura exceção 998 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Esta realidade parece também refletida no Tribunal de Justiça do Estado de Rondônia TJRO A vivência da pesquisadora como participante da Instituição indica que embora a Lei Maria da Penha contenha diretrizes específicas objetivas e bem delineadas a respeito do que deve ser entregue em termos de aplicação legal à mulher que sofre violência doméstica muitos dos procedimentos ou ferramentas ali previstas não são aplicadas nas decisões judiciais ou não são sufi cientes levando a crer no distanciamento entre a aplicação e a finali dade da lei no caso a Lei 1134006 2 A LEI MARIA DA PENHA NO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE RONDÔNIA A Lei Maria da Penha coloca o Juiz e portanto o Estado como dito diante de um leque de ferramentas jurídicas que tem a finalidade de assegurar as garantias individuais da mulher que sofre violência Por meio dessa atuação portanto impõe ao Poder Judiciário a responsa bilidade de desempenhar seu papel social e político a saber dar efeti vidade à finalidade da norma Para tanto a Lei Maria da Penha prevê como forma de efetivação dos direitos humanos das mulheres uma série de políticas a serem criadas e aplicadas pelos atores sociais entre eles por óbvio o poder judiciário que deve empenharse em entregar a prestação jurisdicional mais adequada art 8º da Lei 1134006 Neste ponto considerando a previsão do mencionado dispositi vo legal alguns pontos devem ser trazidos à discussão no que tange à realidade atual do TJRO no atendimento à mulher em situação de violência Exemplificando iniciamos mencionando que há apenas um Juiza do Especializado Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher JVDFCM situado na capital Porto VelhoRO cuja compe tência se refere exclusivamente ao julgamento das ações relacionadas à violência contra a mulher no âmbito doméstico Isso configura por si só e de forma objetiva diferença de tratamento entre jurisdicionados da capital e do interior Citarei apenas alguns pontos a seguir Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 999 O JVDFCM dispõe na capital de uma equipe multidisciplinar formada por psicólogos e assistentes sociais Núcleo Psicossocial NUPS para atendimento unicamente daquela varajuizado Existem ainda projetos em andamento para atendimento da vítima e do agres sor nos quais os profissionais das equipes multidisciplinares fazem o acompanhamento das partes No interior entretanto as ações judicializadas são analisadas pe los juízes das varas criminais as quais cumulam outras competências materiais Não existe equipe do NUPS para atendimento exclusivo ou com capacitação especial dos profissionais envolvidos da mulher em situação de violência e do agressor ou demais pessoas afetadas Falando especificamente da realidade observada em Cacoal uma das principais cidades do interior do Estado situada no centrosul a cerca de quinhentos quilômetros da capital poucos são os casos em que há encaminhamento das partes envolvidas para atendimento ou acompanhamento pelo NUPS Faltam programas sociais nas esferas do poder executivo e outras organizações e mesmo institucionais in ternos que possibilitem o acompanhamento da decisão judicial e da possível solução ou cumprimento da decisão judicial do caso con creto o chamado atendimento em rede Verificamos ainda que embora não seja raro que a vítima depen da economicamente do agressor poucos são os pedidos de alimentos ou que versem acerca do patrimônio do casal formulados pela Auto ridade Policial e destes um número quase nulo é decidido no pedido de medidas protetivas ou mesmo na vara criminal sendo em geral apontado à requerente na decisão que formule o pedido pela via ordi nária cível Este quadro parece contribuir por exemplo para a falta de efe tividade dos direitos e garantias fundamentais das mulheres para o descrédito na lei e na atuação do poder judiciário frustração das ex pectativas sociais o que pode gerar por sua vez reflexos no número considerável de vítimas que sofrem novas agressões ou desistem de medidas que a princípio teriam o condão de lhes proteger Em suma na prática a prestação jurisdicional oferecida pelo TJ RO à mulher que sofre violência doméstica parece tratar de forma não adequada uma questão tão complexa e relevante que é a violência de 1000 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça gênero o que faz emergir a necessidade de novas propostas prático profissionais para a questão O Estado de Rondônia possui índices de violência e hipossufi ciência social assustadores e acima da média nacional Em geral as populações de regiões com tais marcadores tendem a ter maior expec tativa em relação à atuação do poder judiciário como garantidor de di reitos inclusive aqueles eventualmente vilipendiados pelo ente estatal Segundo Sadek 2009 p 178 quando há obstáculos no acesso à proteção dos direitos humanos maior é o distanciamento entre o legal e o real tornando o papel do poder judiciário ainda mais relevante na medida que neste cenário figura como principal garantidor dos direitos humanos pois é ao Judiciário que se recorre quando algum direito é violado Quando isso não se efetiva estamos diante da chamada violên cia institucional que é aquela exercida por meio de relações de poder desiguais entre os profissionais das instituições públicas e os usuários desses serviços Noto 2012 p 16 Neste contexto relevante saber de que forma o Tribunal de Justi ça de Rondônia campo eleito para a pesquisa por meio de suas práti cas processuais procedimentais e de conteúdo decisório realizadas pelos atores nelas envolvidos vem atendendo ao conteúdo legal nos casos concretos Pelo cotidiano dos procedimentos trazidos à apreciação do poder judiciário de forma bastante comum e recorrente percebemos por assim dizer o retorno da vítima à situação de vulnerabilidade não raro pela reincidência do agressor ou desistência por parte da vítima da tutela jurisdicional pela falta de tutela real a exemplo da desistên cia das medidas protetivas por questões patrimoniais e de subsistên cia de modo que vemos a necessidade de identificar caminhos para a melhoria de tratamento das questões envolvendo violência contra a mulher no âmbito doméstico e pela necessidade de tratamento da questão como violação de direitos humanos merecedores de ação enérgica do Estado como garantidor desses direitos Este quadro faz emergir a necessidade de pesquisas e apontamen tos que chamem a atenção para os problemas identificados tornando Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1001 os resultados objeto de interesse público de modo a possibilitar a mu dança da realidade social e humana da região por meio da otimização eou reformulação do Sistema de Justiça 3 AS NORMAS PROTETIVAS DOS DIREITOS DAS MULHERES E O PAPEL DO PODER JUDICIÁRIO A Lei Maria da Penha é atualmente a maior exponente das reivin dicações dos movimentos de mulheres quanto aos direitos femininos Foi considerada pela ONU Organização das Nações Unidas a ter ceira melhor legislação de gênero de combate à violência doméstica do mundo e é conhecida hoje por 98 noventa e oito por cento da população414 Ainda assim desde o início da sua entrada em vigor diversas fo ram as controvérsias a respeito de sua aplicabilidade e muitas foram as formas de resistência por parte dos aplicadores do direito O Supremo Tribunal Federal precisou se manifestar quanto à constitucionalidade da Lei Maria da Penha ADI n 4424 e ADC n 19 e a ONU interveio publicando regras com orientações acerca da aplicabilidade da lei em nosso ordenamento jurídico Em algumas delas é destacada a neces sidade de fortalecimento do Poder Judiciário para que as mulheres tenham mais acesso à justiça quando há violência familiar Devem ser fornecidos também dados e monitoramento além da necessidade de se assegurar recursos financeiros e humanos para que o programa seja realizado E não temos somente a Lei Maria da Penha A convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher convenção interamericana para prevenir punir e erradicar a violência contra a mulher e convenção de Belém do Pará sem contar confe rência internacional sobre a população e desenvolvimento Cairo e declaração e plataforma de ação da IV Conferência Mundial sobre a Mulher de Beijing são considerados diplomas globais impulsiona 414 Segundo Pesquisa Data PopularInstituto Patrícia Galvão realizada pela Cam panha Compromisso e Atitude com apoio da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência disponível em httpwwwcompromissoeatitude orgbrleimariadapenhasaibamaissobrealeiqueprotegeasmulheres acesso em 08 mai 2018 1002 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça doras dos direitos humanos das mulheres com diretrizes objetivas de aplicabilidade No âmbito interno recentemente o Conselho Nacional de Justiça CNJ publicou a Portaria n 152017 que reforça o papel do poder ju diciário como ente público responsável pela efetividade da Lei Maria da Penha no enfrentamento da violência contra a mulher A referida Portaria institui a Política Judiciária Nacional de enfrentamento a vio lência contra as Mulheres no Poder Judiciário elencando de forma bas tante didática os objetivos desta política judiciária e reforçando entre outras a necessidade de estruturação de unidades judiciárias capitais e interior com competência para o processamento de causas relativas à prática de violência doméstica e familiar contra a mulher baseadas no gênero bem como a implantação de equipes de atendimento mul tidisciplinar seja no âmbito do poder judiciário ou por meio de parce rias entre órgãos governamentais e não governamentais nas diversas áreas de atuação órgãos prestadores dos serviços de reeducação e res ponsabilização para atendimento dos agentes envolvidos Instituições de ensino superior o Poder Executivo ou seja a implementação da chamada rede de atendimento integral e multidisciplinar às mulheres e respectivos dependentes em situação de violência doméstica e famí lia Prevê ainda a fomentação da política de capacitação permanente de magistrados e servidores em temas relacionados às questões de gê nero promoção de campanhas de ampliação ao acesso das mulheres aos seus direitos civis e o aprimoramento da prestação jurisdicional em casos de violência doméstica e familiar por meio do Programa Na cional Justiça pela Paz em Casa destinado à realização de esforços concentrados de julgamento de processos cujo objeto seja a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher Além disso mencio na o aperfeiçoamento dos sistemas de informação dos tribunais com especial atenção à coleta de dados e informações estatísticas quanto à litigiosidade dos casos objeto de tutela da Lei Maria da Penha para de sempenho do Programa Justiça em Números e para monitoramento do programa Justiça pela Paz em Casa Reforça por fim a necessidade de estimular a promoção de ações institucionais entre os integrantes do sistema de Justiça para aplicação da legislação pátria e dos instrumen tos jurídicos internacionais sobre direitos humanos e a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres Brasil 2017 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1003 4 CONCLUSÃO A problemática da violência de gênero como fenômeno social com plexo e derivado de um processo cultural e histórico de opressão e de negação de direitos às mulheres deve ser enfrentada combatida e internalizada por toda a sociedade notadamente na assunção da questão como um problema de todos A despeito disso e do tempo de existência da Lei 1134006 o próprio sistema de justiça parece ainda não ter sido capaz no que lhe cabe de efetivar as promessas contidas na Lei A partir da experiência profissional da pesquisadora e do estudo realizado será possível identificar de dentro para fora quais são as dificuldades ou eventuais ausências no atendimento eficaz das rela ções envolvendo violência de gênero no âmbito do poder judiciário rondoniense e se tais problemas contribuem para a falta de efetivi dade da lei ou implica em obstáculo ao acesso à justiça pela mulher vítima De posse dos dados representativos obtidos com a pesquisa será possível identificar de modo objetivo as demandas e os pontos ne vrálgicos para a implementação de ações estratégicas ou de melhorias que venham a contribuir para a efetividade dos direitos das mulheres que sofrem violência na esfera judiciária do estado de Rondônia pro pondo políticas internas que ofereçam soluções ou inovações para o acesso e realização da justiça Vale mencionar que o presente estudo é em si mesmo uma ma terialização do que preceituam as normas internacionais para a tutela dos direitos das mulheres a implementação das políticas judiciárias instituídas pelo CNJ e do próprio art 8º da Lei 1134006 in verbis A política pública que visa coibir a violência doméstica e fa miliar contra a mulher farseá por meio de um conjunto ar ticulado de ações da União dos Estados do Distrito Federal e dos Municípios e de ações nãogovernamentais tendo por diretrizes II a promoção de estudos e pesquisas estatísticas e outras in formações relevantes com a perspectiva de gênero e de raça 1004 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ou etnia concernentes às causas às consequências e à frequên cia da violência doméstica e familiar contra a mulher para a sistematização de dados a serem unificados nacionalmente e a avaliação periódica dos resultados das medidas adotadas BRASIL 2006 Por fim entendemos que os estudos acadêmicos precisam apro ximar cada vez mais a teoria e a prática a realidade local com a rea lidade genérica e por meio do empenho de pessoas experiências e instituições acreditamos que conseguiremos avançar na redução das vulnerabilidades às quais grande parte da população brasileira está submetida REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL Lei nº 11340 de 07 de agosto de 2006 Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher Brasília DF 2006 Constituição 1988 Constituição da República Federativa do Brasil BrasíliaDF Senado 1988 Portaria n 15 08032017 Conselho Nacional de Justiça BrasíliaDF 2017 CAMPOS Carmen Hein Criminologia e Feminismo Porto Alegre Editora Sulina 1999 Violência Doméstica no espaço da Lei Tempos e Lugares de Gênero Org Cristina Bruschini e Céli Regina Pinto Editora Funda ção Carlos Chagas 2001 COSTA Ana Alice Alcântara O Movimento Feminista no Brasil Dinâmicas de uma intervenção Política Revista Gênero v 5 n 2 p 934 1sem NiteróiRJ 2005 DIAS Maria Berenice A Lei Maria da Penha na Justiça A efetividade da Lei 113402006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher 2 Tir São Paulo Editora Revista dos Tribunais 2008 FERNANDES Valéria Diez Scarance Lei Maria da Penha o processo Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1005 penal no caminho da efetividade abordagem jurídica e multidiscipli nar inclui Lei de Feminicídio São Paulo Atlas 2015 GREGORI Maria Filomena Cenas e Queixas um estudo sobre as mu lheres relações violentas e prática feminista São Paulo paz e terra 1993 LOURENÇO Edssandra Barbosa da Silva A Lei Maria da Penha entre o Direito Formal e o Direito de Fato A Necessidade de Formação Per manente da Rede de Proteção às Mulheres em Situação de violência doméstica no Estado do Tocantins Dissertação apresentada à Univer sidade Federal do Tocantins Palmas 2015 Disponível em httprepo sitoriouftedubrbitstream116121101Edssandra20Barbosa20 da20Silva20LourenC3A7o2020DissertaC3A7C3 A3opdf acesso aos 23022017 NOTO Bianca Paes In Curso de Capacitação em Gênero acesso à justiça e violência contra as mulheres 2012 Rio de Janeiro EMERJ 2013 176 p Série Aperfeiçoamento de Magistrados 14 Disponível em httpwwwemerjtjrjjusbrserieaperfeicoamentodemagistrados paginasseries14capacitacaoemgeneropdf acesso 08052018 PASINATO Wania Acesso à Justiça e violência doméstica e familiar contra as mulheres as percepções dos operadores jurídicos e os limi tes para a aplicação da Lei Maria da Penha Revista Direito FGV São Paulo 11 2 p 407428 juldez 2015 RIFIOTIS Theophilos Violência Justiça e Direitos Humanos refle xões sobre a judicialização das relações sociais no campo da violência de gênero Cadernos Pagu Print Version ISSN 01048333 Online version ISSN 18094449 Cad Pagu no 45 Campinas Dec 2015 SABADELL Ana Lucia Violência doméstica críticas e limites da Lei Maria da Penha Boletim do Instituto de Ciências Penais Belo Hori zonte v 7 n 85 março 2008 SADEK Maria Tereza Aina Acesso à Justiça porta de entrada para a inclusão social In LIVIANU R Coord Justiça cidadania e demo cracia Rio de Janeiro Centro Edelstein de Pesquisa Social 2009 TREVISO Marco Aurélio Marsiglia A Discriminação de Gênero e a Proteção à Mulher Rev Trib Reg Trab 3ª Reg Belo Horizonte v47 n77 p2130 janjun2008 Disponível em wwwtrt3jusbrescola downloadrevistarev77MarcoTrevisopdf acesso em 08 mai 2018 1006 AS MULHERES TRABALHADORAS O ANARCOSSINDICALISMO AS RESPOSTAS DA TEORIA JURÍDICOTRABALHISTA CRÍTICA A NECESSIDADE DE REVISITAR AS NARRATIVAS E UMA ANÁLISE ARTICULADA A PARTIR DAS TEORIAS DOS MOVIMENTOS SOCIAIS Ariston Flavio Freitas da Costa415 Tieta Tenório de Andrade Bitu416 Resumo Atualmente ainda se percebe que a doutrina jurídicotra balhista clássica prioriza as relações individuais em detrimento das relações sindicais Deixando praticamente de registrar sobretudo nos manuais o papel do anarcossindicalismo na formação operária brasi leira Nesse contexto identificase também uma enorme negligência e uma tentativa de apagar da história o papel exercido pelas mulheres nessa construção Dessa forma fazse fundamental conhecer o movi mento operário brasileiro de raiz anarcofeminista Movimento que es creve uma história fascinante e instituiu lutas marcantes de caracteres ao mesmo tempo reformistas e emancipatórias Portanto objetivase com esse texto promover um olhar críticoprospectivo sobre as pos 415 Doutorando em Direito Universidade Federal de Pernambuco Advogado e professor universitário Integra o Grupo de Estudos Direito do Trabalho e Teoria Social Crítica 416 Mestranda em Direito Universidade Federal de Pernambuco Advogada Inte gra o Grupo de Estudos Direito do Trabalho e Teoria Social Crítica e o Tecer o Coletivo Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1007 sibilidades emancipatórias e contrahegemônicas que envolveram o surgimento do sindicalismo incluindo a efetiva contribuição da luta feminina Acreditase que a busca pela desconstrução e ampliação do tradicional objeto de estudo da doutrina juslaboralista clássica além de aprofundar o viés social no sentido de defender o ajuntamento dos diversos setores sociais amplia e reforça a luta política revolucionária e emancipatória das mulheres para uma construção social com maior efetividade de direitos Compreendese que essa mudança de perspec tiva no mundo do trabalho para além da dogmática é capaz de interfe rir nas estratégias coletivas de luta que hoje como sabido não se limi tam mais aos sindicatos Portanto no rastro dos estudos realizados e elaborados pela linha de pesquisa Direito do Trabalho e Teoria Social Crítica da UFPE se observa que é urgente o encontro e a retomada dos movimentos reformistasrevolucionários tipicamente trabalhistas com os novos movimentos sociais contrahegemônicos como espaços privilegiados de articulação e de lutas coletivas PALAVRAS CHAVE Anarcofeminismo Anarcossindicalismo Mo vimentos sociais Teoria Social Crítica Mulheres Trabalhadoras 1 INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objeto a história do anarcossindicalismo brasileiro Nesse sentindo efetiva o necessário resgate histórico e obje tiva demonstrar a negligência da doutrina jurídicotrabalhista clássica acerca do tema Assim logo de início é possível se confirmar que a maior par te da doutrina permanece praticamente omissa em relação ao estudo da formação da classe operária brasileira que é imprescindível para a concepção do direito do trabalho e para compreensão do próprio ope rariado Também será possível se identificar uma enorme negligência e uma tentativa de apagar da história o papel exercido pelas mulheres nessa construção Sendo assim indagamos como pode a doutrina tradicional quan do passa a tratar da histórica da formação operária brasileira omitir justamente a primeira fase dessa história Como pode deixar de re 1008 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça conhecer as lutas as insurgências e os embates políticos e ideológicos travados entre a classe operária nascente e as elites do campo e da cidade Porque silenciar a participação das mulheres na luta por con quista e efetivação de direitos Com a finalidade de alcançar o objetivo da pesquisa o presente artigo foi dividido em três etapas Num primeiro momento abordam se as concepções anarquistas na perspectiva do anarquismo enquan to teoria social e política Em seguida será desenvolvida uma abordagem da história do anarcossindicalismo no Brasil o apogeu do movimento operário sua experiência ideológica E por fim para se compreender o cenário de exploração de opressão e luta feminina e para se ter uma noção exata de como se desenvolveu a construção do novo modelo social e da classe social que vivia do e para o trabalho buscamse os embates travados nas entra nhas das convulsões sociais Como dito a luta feminina se insere nesse contexto Assim ao final se centra na temática do movimento operário brasileiro de raiz anarcofeminista Movimento que escreve uma história fascinante e instituiu lutas marcantes de caracteres ao mesmo tempo reformistas e emancipatórias Contudo mostrase que a ausência do resgate histórico dando a devida atenção ao papel das mulheres é um fato que empobrece a teoria e principalmente os fundamentos do Direito Sindical clássico enquanto fenômeno históricocultural 2 O ANARQUISMO COMO TEORIA POLÍTICA Rediscutir o anarquismo sob uma perspectiva teóricocientífica é im prescindível para resgatar a ideologia que impulsionou contundente mente os movimentos sociais em meados do século XIX Nessa pers pectiva é fundamental uma análise da sistemática da estruturação da sociedade internacional com ênfase no surgimento do anarquismo de base reivindicativa para analisar sobretudo a sua influência nas reformas sociais Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1009 Nesse ínterim é imprescindível a retomada aos seus fundamen tos basilares concomitantemente com a alusão histórica ao período em que desencadeou a máxima influência dessa ideologia Nesse sen tido Nettlau ressalta Uma história da ideia anarquista é inseparável da história de todas as evoluções progressivas e das aspirações à liberdade É preciso pois procurar estudar o movimento histórico favorável em que surge essa consciência de uma existência livre pregada pelos anarquistas cuja garantia só intervém após a supressão completa dos fundamentos autoritários e sob a condição de que paralelamente os sentimentos sociais de solidariedade reciprocidade abnegação etc tenham se desenvolvido o sufi ciente adquirindo a mais ampla expansão NETTLAU 2008 p27 Como foi explicitada a concepção de anarquismo transmuda conforme cada vertente analisada ou a depender de cada perspectiva do historiador Assim o termo anarquismo é constantemente associa do a componentes heterogêneos e até mesmo antagônicos MINTZ 2005 p8 Devido à variedade de concepções sobre a ideologia libertária há dificuldade em sintetizar a essência dos ideais anarquistas Na busca do conteúdo comum entre as correntes anarquistas é fundamental a concatenação entre os diversos posicionamentos acerca da teoria anar quista com fulcro de sintetizar as ideias precípuas desse movimento Conforme afirmou Sferra na seara política o ponto em comum dos anarquistas se baseava no reconhecimento do mal provocado pela presença do governo Por isso visavam a aniquilação deste protótipo artificial e autoritário ao propagar a ideologia do indivíduo absoluto uma sociedade baseada na organização livre SFERRA 1987 p 25 26 Para Woodcock a essência do pensamento anarquista está cen trada no ideal moralista que não é explicitado cabalmente pelos de mais pensadores devido ao fato da maioria dos teóricos anárquicos negarem a influência da moral A política simplista propagada pela ideologia anarquista não remonta à necessidade de supressão dos ór 1010 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça gãos governamentais a fim de que a sociedade funcione naturalmen te A finalidade precípua é o elemento moral presente nas teorias anar quistas Dessa forma o anarquismo observa o progresso não como o acréscimo patrimonial mas como uma moralização da sociedade por meio da eliminação do autoritarismo e da desigualdade econômi ca WOODCOCK 2014 p2931 Para Malatesta muitos anarquis tas negam a associação com a moral mas desconsideram que para rechaçar a moral burguesa individualizadora utilizase da moral da solidariedade MALATESTA 2011 p101 Estaríamos perdendo a essência da atitude anarquista se ig norássemos o fato de que ânsia de chegar à simplificação social não tem origem no desejo de que a sociedade funcione de for ma mais eficiente nem sequer no desejo de eliminar os órgãos autoritários responsáveis pela destruição da liberdade indivi dual mas em grande parte numa convicção moral sobre as virtudes de uma vida mais simples WOODCOCK p29 Para o italiano Enrico Malatesta a anarquia seria uma concepção de governo sem autoridade com a harmonia de interesses da coletivi dade MALETESTA 2011 p106 De modo geral o ideal libertário propõe uma reconstrução da visão do indivíduo e sua relação em sociedade frente à desconjuntura na sociedade atual que é fruto dos incessantes litígios entre indivíduos que ignoraram a cooperação e o respeito aos interesses dos demais MALATESTA 2008 p62 Desse modo respaldado em refutações ao modo de vivência vigente a ideologia libertária possui a pretensão de reconstrução social 3 O APOGEU DO MOVIMENTO OPERÁRIO E SUA EXPERIÊNCIA IDEOLÓGICA A história do movimento associativista de trabalhadores no Brasil se confunde com o início de ideias anarquistas e a imigração no país O anarcossindicalismo inaugura o início da resistência do movimento de trabalhadores de característica industrial Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1011 O movimento anarquista favoreceu o nascimento da organização da classe proletária permitindo que esta enquanto estrutura organi zada em uniões sindicais pudesse gozar de força maior para pleitear melhores condições de trabalho Sendo assim entendese que o sin dicato passou a ser encarado como um poderoso elemento de educa ção social dos trabalhadores ZAIDAN 2011 p 22 e para assumir o papel de instrumento para viabilização de concepções libertárias tornarse tanto mais libertário quanto garantidor de uma verdadeira emancipação social É válido ressaltar que o Brasil no início do século XX não possuía um ambiente favorável à luta organizada de trabalhadores que deram origem ao movimento sindical brasileiro o nosso país era eminentemente agrário ainda com utilização de mão de obra escrava não havia nenhuma sombra que pairasse sobre algum direito estabelecido para esta classe A organização econômica do Brasil colônia era formada de uma estrutura bastante simples reduzindose praticamente a duas classes de um lado os proprietários rurais que constituíam a classe mais abas tarda e do outro a massa da população de trabalhadores formada por escravos Senão vejamos Esta massa de escravos índios ou negros constituía a maior parte da população colonial Quanto à parte que embora livre não dispunha de recursos suficientes para se classificar entre os grandes senhores e que dependia por isso para sua manuten ção do trabalho próprio tinha ela que forçosamente sofrer a in fluência aviltante da massa escrava que a circunda e que punha seu marco deprimente em todo o trabalho da colônia por isso o próprio trabalho em princípio livre pouco se diferenciava do escravo PRADO JÚNIOR 1945 p 45 Podemos afirmar neste contexto até mesmo ser impensável uma perspectiva de integração de trabalhadores que lutassem por condi ções mínimas de dignidades para estes trabalhadores uma vez que a infraestrutura econômica e social era dotada de uma extrema simpli cidade 1012 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Não se admitia o direito do trabalhador se revoltar de protestar contra o poder do Estado todo poderoso e uma oligarquia que possuía o direito ilimitado de tomar terras escravizar seus modestos ocupan tes e até mesmo de matar inclusive os que se opunham as suas deter minações O Brasil possuía a época uma realidade distinta das transfor mações ocorridas na Europa às chamadas corporações de ofício que antecederam os sindicatos no contexto europeu não encontravam re verberação na sociedade proletária do Brasil Se deve aos imigrantes europeus essa conscientização reivindicativa baseada numa corrente ideológica insurgente com características anarquistas ou marxistas Esta é a fase inicial do sindicalismo brasileiro que a doutrina jurí dicotrabalhista brasileira omite descrevendo apenas dois momentos históricos aquele instituído a partir de 1937 como o advento do Es tado Novo do chamado sindicalismo de raiz corporativa fascista e aquele que se desenvolveram a partir da Constituição de 1988 consi derado como Sindicalismo Pósconstituinte Esta fase inicial do sindicalismo no Brasil foi marcada por um ambiente de extrema conturbação política ideológica e econômica Sendo um momento bastante fértil para grandes lutas operárias que marcariam para sempre as conquistas trabalhistas em nosso país Muitas são as denominações que esta fase inicial do sindicalismo possui de acordo com vários doutrinadores que tomam por base as mais variadas características devido ao fato de que na época apesar de existir certa autonomia entre os trabalhadores não havia uma defini ção formal de sindicalismo pois era inconcebível qualquer regulação normativa no ambiente do trabalho Contudo a expressão utilizada por grande parte de historiadores desse período foi à denominação de anarcossindicalismo É latente o caráter ideológico existente nesse período firmandose como caracte rística do movimento trabalhista a marcante aversão ao poder público uma ruptura dos limites impostos pelo Estado Outra expressão utili zada pela doutrina para este período inicial do sindicalismo brasileiro é o sindicalismo revolucionário devido à composição das caracterís ticas dos sujeitos envolvidos na constituição desses movimentos ope rários Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1013 A espinha dorsal do movimento operário brasileiro era constituí da de lideres militantes no anarcossindicalismo como força ideológi ca mais influente do movimento tendo editado a maioria dos jornais e dominado a organização dos sindicatos Apesar de haver diversas variações a mensagem comum do anarquismo é que a liberdade e a igualdade só serão alcançadas quando o capitalismo e o Estado forem destruídos Os anarcossindicalistas acreditavam que seu objetivo seria atingindo com a derrubada da burguesia do poder sem um longo período de transição posterior Isso seria alcançado atra vés de um grande ato a greve geral revolucionária O sindicato anarquista dirigido por comissões que deveriam expressar a vontade dos sindicalizados e não sua própria vontade repre sentava um esboço de sociedade que pretendia instaurar Uma sociedade sem Estado sem desigualdade organizada em uma federação livre de trabalhadores FAUSTO 1995 p 298 O anarquismo considera a propriedade privada como fonte prin cipal dos problemas da sociedade assim como a apropriação dos re cursos naturais para fins pessoais como um verdadeiro roubo uma vez que tais recursos pertencem a todos os homens A teoria anarquista entende o capitalismo como o sistema que produziu a exploração e o empobrecimento de muitos para o enriquecimento e avareza de pou cos A entrada do anarquismo no Brasil se deu por trabalhadores es trangeiros imigrantes que ao desembarcarem transformavamse em verdadeiros missionários dos ideais libertários pregados pela teoria anarquista Eles assumiram papel decisivo na formação política do movimento operário com base em princípios de liberdade de livre experimentação da solidariedade e da fraternidade A classe operária tornouse assim um verdadeiro protagonista na vida pública do país se tornando amplo organizado e complexo Os operários se organizavam em sindicatos federações sindicais e dife rentes tipos de organizações chegando até mesmo a criar em 1906 uma central sindical de organização anarquista a Confederação Ope rária Brasileira COB a classe operária tinha uma única finalidade 1014 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça através da ação direta e autônoma a abolição do capitalismo e instau ração da anarquia Os anarquistas no Brasil se organizaram na classe operária por meio de associações de luta e reivindicações voltadas para a propagan da melhoria das condições de vida do trabalhador e do seu acesso a educação Os ideais e táticas do anarquismo no Brasil derivam quase que inteiramente da literatura e das lutas do socialismo europeu Seu desenvolvimento em nosso país foi fruto da própria experiência ape sar de sua evolução e prática tenha experimentado mudanças seme lhantes às do movimento anárquico na Europa O início da propagação do movimento no Brasil foi pautado pelo voluntarismo Os ideais anarquistas se difundiam por meio de jornais que tentavam sobreviver apenas através de contribuições escassas eram poucos os militantes em seu início e consequentemente parcos eram os recursos que dispunham levando a uma pouca durabilidade dos periódicos anarquistas O jornal anarquista A Terra Livre foi o mais bem sucedido no período anterior à Primeira Guerra Mundial editando no período de 1905 a 1910 75 publicações As dificuldades financeiras eram muitas e passaram a vender assinaturas assim como enfrentavam dificuldades na organização de greves eram criadas contribuições espontâneas ta xas e fundos obrigatórios promovendo até mesmo festas e rifas para levantamento de fundos consideradas a época corruptas O anarquismo em sua essência mais profunda se opõe a qualquer tipo de estrutura A autoridade e organização são consideradas uma repressão a liberdade sendo considerada herança do autoritarismo burguês Neste contexto temos o anarcossindicalismo que representou uma verdadeira evolução do anarquismo brasileiro expondo uma fissura dogmática à teoria anarquista O sindicato nesta estrutura se torna o verdadeiro instrumento de propagação dos ideais anarquistas na classe operária brasileira O anarcossindicalismo vem afirmar que o principal interesse do trabalhador é o pão e não a teoria revolucio nária O sindicato é portanto o meio mais eficaz de difusão do anar quismo Neste sentido temos matéria do jornal Correio da Manhã publicada em 19 de agosto de 1903 senão vejamos Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1015 o trabalhador absorve mais facilmente a propaganda anar quista conseguindo uma compreensão cada vez mais clara so bre a origem de seus problemas e fica moral e materialmente preparado para conhecer a conclusão lógica do movimento sin dicalista a expropriação revolucionária da terra e de todos os meios de produção JORNAL CORREIO DA MANHA 19 de agosto de 1903 apud MARAM 1979 p78 Os anarcossindicalistas dominavam o movimento anarquista no Brasil estando em sintonia com os interesses e necessidades da classe operária sendo uma adaptação do anarquismo as realidades das civi lizações mais modernas Diferente do sindicalismo revolucionário que tendia a reagir à in dustrialização evocando a uma existência agrária o anarcossindicalis mo não se opunha à industrialização mas sim aos que o controlavam pois uma vez nas mãos da classe operária produziria uma distribuição mais eficiente e igualitária das mercadorias e serviços Foram os livros dos teóricos sindicalistas residentes na França que espalharam pela Itália Espanha e Portugal as teorias e táticas do anarcossindicalismo No Brasil foi à imprensa por meio de panfletos e resoluções dos Congressos Operários que difundiram o chamado anarcossindicalismo Neste sentido com relação à importância da rea lização dos Congressos Operários e hegemonia do movimento anar quista na classe operária se posiciona Carlos Addor vejamos Bons indicadores da hegemonia anarquista no movimento operário brasileiro nas duas primeiras décadas do século são a meu ver os fatos de que em primeiro lugar são militantes libertários os principais organizadores dos mais representativos Congressos Operários realizados no Brasil nesse período e em segundo lugar as principais teses ou resoluções aprovadas nes ses congressos expressavam claramente a posição anarquista em relação ao movimento sindical ou seja tem um claro con teúdo anarcosindicalista ADDOR 1986 p 92 1016 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça O inimigo comum é o capitalismo sendo necessária a realização das chamadas ações diretas para que tomasse conhecimento das ne cessidades da revolução através da própria experiência A ação direta era a bandeira do sindicalismo que realizava greves boicotes sabo tagem por meio do agir solidário dos trabalhadores na luta por me lhores condições de vida para toda a classe operária tendo a greve ge ral revolucionária como ação direta final que destruirá o capitalismo Neste sentido afirma Boris Fausto vejamos A partir dessa breve descrição podemos perceber que os anar quistas encaravam as lutas por reivindicações imediatas como simples instrumento da grande ação revolucionária Além dis so a obtenção de conquistas deveria ser feita sem o auxilio do Estado e mesmo contra o Estado Qualquer vantagem assegura da em lei poria em risco os objetivos estratégicos do movimen to operário Adversários do marxismo eles assumiam entre tanto ao pé da letra a firmação de Marx de que a emancipação dos trabalhadores cabia aos próprios trabalhadores FAUSTO 1995 p 298 A violência era uma ferramenta aceitável na ação direta e era o que distinguia o anarcossindicalismo das demais formas de sindica lismo no Brasil 4 ANARCOFEMINISMO AS MULHERES TRABALHADORAS E A LUTA REFORMISTA E REVOLUCIONÁRIA Como foi possível se perceber ao longo do texto há por parte da dou trina jurídicotrabalhista clássica uma priorização das relações indivi duais em detrimento das relações sindicais O que nos leva a concluir que são poucos os registros acerca da real origem da formação operá ria brasileira E que são ainda mais escassos os registros históricos do papel exercido pelas mulheres nessa construção Assim tornase importante primeiro colocar em relevo que esse campo do conhecimento jurídico Direito do Trabalho surge das lutas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1017 reformistarevolucionárias que se deram no interior e fora das orga nizações produtivas Ficando fácil perceber que o trabalho os modos de produção a organização social e a vida das trabalhadoras e dos trabalhadores têm um centro comum Para qual convergem os temas capital trabalho gênero e classe Dessa forma importa destacar que a doutrina liberal consolidou há mais de duzentos anos o conceito de trabalho livre buscando de monstrar uma superação histórica que é o resgate do gênero humano do trabalho escravo e do trabalhoservil Frisase que para o escravo a condição humana se igualava a de um animal hoje em situação de maus tratos e no trabalho servil ha via certa emancipação física porém existia uma grande subordinação para se manter na sobrevivência E hoje no entanto como reforça os ensinamentos do professor Everaldo Gaspar Lopes o trabalho livre e contraditoriamente subordinado legitima uma nova forma de socia bilidade que muitas vezes explora o trabalho humano e atua como uma forma de colonização da vida Nesse contexto é importante ressaltar que a ideia de feminismo que o presente texto buscar fortalecer compreende a emancipação da mulher uma construção interseccional E com essa perspectiva defen de a compreensão da referida temática considerando também aspec to como ser negra LGBT trabalhadora e explorada Essa busca pela interação de fatores e consequências captura por tanto as diferentes formas de subordinação o racismo a LGBTfobia o machismo e claro as relações de trabalho E partindo desse aspecto se visualiza a necessidade de resgate histórico não apenas no que tange a origem do sindicalismo mas principalmente da atuação das mulheres nesse momento da história Como dito a luta feminina se insere nesse contexto E nesse período de ebulição anárquica no Brasil é possível se traçar um elo entre a teoria política anarquista e algumas das reivindicações femini nas que a época já existiam Com base nos textos de Samanta Colhado Mendes e Monica Si queira de Barros facilmente se verifica a intensa produção da época Nos jornais anarquistas viamse anúncios que retratavam a união e atuação das mulheres No jornal A Plebe O Amigo do Povo La Barricata 1018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça e Germinal tomavase conhecimento sobre a formação da União das Costureiras e liase artigos assinados por mulheres a exemplo de Matilde Magrassi Angelina Soares Isa Ruti Maria Lacerda de Moura Maria de Oliveira Josefina Stefani Bertachi Angelina Soares que atua vam como colaboradoras dos periódicos mas também e promoviam discursos em manifestações ou nos festivais operários Fazse então fundamental conhecer o movimento operário bra sileiro de raiz anarcofeminista E focar na importância da ação das mulheres nesse movimento pois é seguro e cabível afirmar que o de bate acerca da mulher trabalhadora não é um tema da atualidade e muito menos é limitado apenas ao universo do trabalho É plenamente adequado dizermos que elas inovaram deram um novo viés um novo enfoque ao anarquismo tanto em termos teóricos como em termos de atuação no movimento Apresentando uma nova vertente dentro desse corpo de pen samento tão vasto que é o anarquismo o anarcofeminismo As mulheres não foram meras coadjuvantes na teoria e prática anarquista mas que atuaram e mais ainda atuaram como mu lheres mostrando a opressão sentida por elas mesmas em todos os termos que vão da moral até à economia e a política e que claramente se expressa na vida cotidiana e no trabalho princi palmente nas fábricas da república velha MENDES Samanta Colhado 2010 p 1 Assim tornase essencial considerar que desde a Primeira Repú blica período de formação do capitalismo industrial no país princi palmente nas áreas de São Paulo e Rio de Janeiro crianças e mulheres concentradas em maior número nas fábricas têxteis e atividades de costura faziam parte do grande número de obreiros explorados E é fundamental recordar que essas mulheres se organizaram em sindi catos e ligas e participaram dos movimentos reivindicatórios atuando significativamente por exemplo na Greve de 1917 Contudo afirmase que mesmo se tratando de uma corrente do anarquismo o movimento que era integrado por mulheres ia além das pautas que apresentavam temas como sociedade não autoritária cui dado e apoio mútuo construção social baseada na cooperação Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1019 Elas buscavam concretizar a emancipação da mulher num con texto muito mais amplo do que envolve o mundo do trabalho A au tonomia desejada desde daquela época envolvia os campos moral sexual político intelectual cultural e econômico Lutavam sobretudo contra a igualdade formal aquela construí da nos pilares da sociedade capitalista Que colocou a mulher no nú cleo da sociedade centro da família sem no entanto valorizar sua individualidade A atuação das mulheres era no sentido de combater o patriarca do Estrutura que mantinha sobre elas valores modelos e maneiras de conduta impostas muitas vezes de forma silenciosa e violenta E que acabavam por eliminar sua subjetividade e sua liberdade E nesse contexto a burguesia nascente da Primeira República apoiada nas ideias positivistas na moral católica e na ciência afirmam e reafirmam cada uma a sua maneira a suposta inferioridade da mu lher A fim de mantêlas ligadas ao ceio familiar pois a família é a instituição central da sociedade burguesa Por essas questões que as mulheres anarquistas que tiveram uma forte atuação na cidade de São Paulo alçaram vôos mais longes que a visão básica do movimento anarquista A concepção das mulheres anarquistas envolvia uma transformação total da sociedade Possuíam essa forte crítica à moral burguesa às instituições à política e a eco nomia No jornal anarquista O Amigo do Povo a operária Matilde Magrassi defendia Matilde Magrassi por exemplo colocava que a luta das mu lheres operárias não deveria ficar restrita às fábricas à reivin dicação de melhores condições de trabalho e melhores salários Deveria ser uma luta contra a sociedade de classes contra a exploração do capital e contra o Estado E nesse sentido a educação da mulher trabalhadora seria instrumento de luta importantíssimo Essa educação proporcionaria à operária a desmistificação dos modelos de mulher MENDES Samanta Colhado 2010 p 1 1020 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Contudo acreditavase que a emancipação da mulher não existe sem a emancipação da humanidade sem educação E também nas palavras de Maria Lacerda de Moura a única solução para a mulher conseguir se emancipar do cativeiro que se encontra é a emancipação intelectual que poderá ser alcançada através da educação MENDES Samanta Colhado 2010 p 10 Reforçase assim que essa luta estava além do âmbito político partidário As ações coordenadas pelas mulheres incluíam desde suas atuações nos movimentos políticos como as greves até a resistência cotidiana os movimentos culturais como por exemplo o teatro li bertário e as escolas Logo é possível se concluir que as ideias anarcofeministas são muito mais amplas se constroem com base na crítica da submissão da mulher não apenas na esfera doméstica ou do trabalho Sim as anarcofeministas propunham amor livre maternidade livre e consciente a educação sexual e libertária e criticavam o ca samento monogâmico e contratual Chegaram inclusive a discutir à hierarquia com relação ao sexo no ambiente de trabalho criticando o machismo inclusive nos meios operários onde circulavam as ideias anarquistas Mas sobretudo defendiam que a educação das operárias desmistificaria os modelos de mulher e incluiria a concepção libertá ria da mulher e da família na sociedade de classe e ressignificaria sua importância e sua contribuição para no movimento de emancipação e justiça social 5 CONCLUSÃO Após promover um olhar críticoprospectivo sobre as possibili dades emancipatórias e contrahegemônicas que envolveram o sur gimento do sindicalismo incluindo a efetiva contribuição da luta fe minina E tendo como pressuposto o reconhecimento das diversas etapas históricas seus compromissos políticos e ideológicos ratifica se não ser razoável se desvencilhar das estratégias de lutas coletivas e das integrações que envolvem os seres sociais Não se sustenta a manutenção da clássica forma de análise jusla boralista Ela pois infelizmente reforça a tradição da educação ma Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1021 chista sexista e autoritária que de forma nítida suprime um conheci mento sobre as mulheres libertárias Com o todo apresentado no texto se afere que o ideal libertário que consolida as bases do anarquismo se respalda nas refutações ao modo de vida vigente no sentindo de propor uma reconstrução do indivíduo e das relações desse com a sociedade Apresenta portanto a pretensão de reconstrução social Nesse contexto e no que tange ao anarcossindicalismo passouse a encarar os sindicatos como um elemento fundamental de educação social dos trabalhadores capaz de assumir o papel de instrumento de viabilização de concepções libertárias tornandose esse um elemento um meio garantidor de uma verdadeira emancipação social Para compreender o cenário de exploração de opressão e luta fe minina e para se ter uma noção exata de como se desenvolveu a cons trução do novo modelo social e da classe social que vivia do e para o trabalho devese buscar o reconhecimento das diversas etapas histó ricas seus compromissos políticos e ideológicos Sendo fundamental não se desvencilhar das estratégias de lutas coletivas e da história de luta que envolve as mulheres Por esse caminho é possível desenvolver uma versão analítica consistente sobre as mulheres trabalhadoras e sua vasta contribuição para formação do sindicalismo brasileiro quando se percebe que elas junto com movimento anarquista favoreceram o nascimento da orga nização da classe proletária a fim de pleitear melhores condições de trabalho e uma completa emancipação social Por fim acreditase que a busca pela desconstrução e ampliação do tradicional objeto de estudo da doutrina juslaboralista clássica além de aprofundar o viés social no sentido de defender o ajuntamen to dos diversos setores sociais amplia e reforça a luta política revo lucionária e emancipatória das mulheres para uma construção social com maior efetividade de direitos Compreendese que essa mudança de perspectiva no mundo do trabalho para além da dogmática é capaz de interferir nas estratégias coletivas de luta que hoje como sabido não se limitam mais aos sin dicatos A busca pelo reconhecimento dos pontos e pautas comuns a soma do diálogo que converge em torno dos novos movimentos so 1022 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ciais agem no combate das opressões nos leva a acreditar no agrupa mento e na construção de um debate tecido para uma narrativa de luta que deve ser elaborada de forma conjunta REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADDOR Carlos Augusto DEMININICIS Rafael História do anar quismo no Brasil Volume 2 Rio de Janeiro Achiamé 2009 ANDRADE Everaldo Gaspar Lopes de Direito do trabalho e pós modernidade fundamentos para uma teoria geral São Paulo LTr 2005 Direito do trabalho na filosofia e na teoria social críti ca São Paulo LTr 2014 AZEVEDO Raquel de A resistência anarquista uma questão de identidade São Paulo Arquivo do Estado Imprensa Oficial 2002 BARROS Mônica Siqueira Leite de As mulheres trabalhadoras e o anarquismo no Brasil Campinas SP 1979 Originalmente apresen tada como dissertação de mestrado Universidade de Campinas FAUSTO Boris História do Brasil São Paulo 2º Ed Editora da Uni versidade de São Paulo Fundação do Desenvolvimento da Educação 1995 MALATESTA Errico Escritos revolucionarios São Paulo Hedra 2008 MARAM Sheldon Leslie Anarquistas imigrantes e o movimento operário brasileiro 18901920 Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 MENDES Samanta Colhado ANARQUISMO E FEMINISMO as mulheres anarquistas em São Paulo na Primeira República 1889 1930 Franca 2010 In httplegacyunifacefcombrnovopublica coesIIforumCom20EPhtml MIGUEL Luis Felipe e Biroli Flávia Feminismo e política 1 ed São Paulo Boitempo 2014 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1023 MINTZ Frank P O anarquismo social São Paulo Imaginário 2005 NETTLAU Max Historia da Anarquia das origens ao anarcoco munismo Frank Mintz org e intro Plinio Algusto Coelho Trad São Paulo Hedra 2008 OITICICA José A doutrina anarquista ao alcance de todos 5ª edi ção Rio de Janeiro Achiamé 2006 PRADO JÚNIOR Caio Evolução política do Brasil ensaio da in terpretação dialética da história brasileira 2ª edição São Paulo Bra siliense 1947 História econômica do Brasil 26ª edição São Paulo Brasiliense 1981 SFERRA Giuseppina Anarquismo e anarcossinicalismo São Paulo Editora Ática 1987 SAFFIOTI Heleieth Iara Bongiovani A mulher na sociedade de clas ses 3 ed São Paulo Expressão Popular 2013 Gênero patriarcado violência 2 ed São Paulo Expres são Popular Fundação Perseu Abramo 2015 WOODCOCK George História das ideias e movimentos anarquis tas Vol 1 a ideia Porto Alegre LPM Pocket 2002 História das ideias e movimentos anarquistas Vol 2 o movimento Porto Alegre LPM Pocket 2006 ZAIDAN FILHO Michel Anarquistas e comunistas no Brasil Reci fe Núcleo de Estudos Eleitorais Partidários e de Democracia UFPE 2011 1024 PLANEJAMENTO URBANO COM RES PONSABILIDADE DE GÊNERO A CASA DE REFERÊNCIA DA MULHER E MOVIMENTO DE MULHERES NA CIDADE DE BELO HORIZONTE Maria Walkíria de Faro Coelho Guedes Cabral417 Ana Carolina Machado Amoni Girundi418 RESUMO O relatório final do caso 12051 Relatório nº5401 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos CoIDH reconheceu que as mulheres brasileiras de modo geral vinham sofrendo reitera das violações de direitos humanos que seguiam um padrão institucio nalizado No intuito de atender à decisão da CoIDH o governo brasi leiro iniciou uma série de modificações na estrutura governamental e jurídica dentre essas o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres instituído em 2004 bem como a elaboração da Lei 1134006 nomea 417 Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais 2018 Mestra em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Ge rais 2013 Especialista em Estudos Diplomáticos pela Faculdade de Direito Milton Campos curso coordenado pelo Centro de Direito Internacional CE DIN 2011 Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Mi nas Gerais 2010 Bacharel em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais 2008 Advogada popular e Coordenadora do Núcleo Jurídi co da Casa de Referência da Mulher Tina Martins 418 Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais 2017 com programa sanduíche para a Middlesex University London 2014 Participou junto ao Atelier Rua em Lisboa nos projetos de revitalização urbana dos centros de Moscavide e Sacavém ganhadores de con curso e custeados pela Câmara Municipal de Loures Em 2016 iniciou seus es tudos em planejamento urbano com responsabilidade de gênero com ênfase na cidade de Belo Horizonte participando da Ocupação Tina Martins Atualmen te atua como coordenadora da Casa de Referência da Mulher Tina Martins Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1025 damente Lei Maria da Penha No tocante à estrutura governamental a Lei Maria da Penha em seus artigos 8º e 34 e seguintes estabelece a criação de políticas públicas para prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher imputando a todos os entes da federação responsabilidades para a realização deste fim o que na prática não está acontecendo no país A fim de exigir dos governos nos seus mais va riados níveis a concretização de direitos das mulheres o Movimento de Mulheres Olga Benário iniciou na cidade de Belo Horizonte uma série de medidas que resultou na Casa de Referência da Mulher Tina Martins que será apresentada no presente trabalho PALAVRASCHAVE Planejamento urbano Direitos das Mulheres Lei Maria da Penha 1 INTRODUÇÃO Não acredito que existam qualidades valores modos de vida especificamente femininos seria admitir a existência de uma natureza feminina quer dizer aderir a um mito in ventado pelos homens para prender as mulheres na sua condição de oprimidas Não se trata para a mulher de se afirmar como mulher mas de tornaremse seres hu manos na sua integridade Simone de Beauvoir A violência contra mulheres no Brasil é ainda hoje alarmante Em 2006 foi criada a Lei 1134006 também conhecida como Lei Maria da Penha que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher com o objetivo de prevenir punir erradicar qualquer tipo de violência além de criar juizados de violência domés tica e familiar Apesar da Lei de acordo com pesquisa realizada pelo Data Po pular em 2014 60 das mulheres brasileiras declararam já ter sofrido algum tipo de violência enquanto 56 dos homens declaram já ter sido agressores em algum nível A casa ambiente doméstico é tida 1026 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça como o lugar mais inseguro para a mulher uma vez que 48 dos casos acontecem na própria residência 77 das agressões são diárias e em 80 dos casos documentados os agressores já tiveram algum vínculo afetivos com a vítima Assim no Brasil atualmente 5 mulheres são espancadas a cada 2 minutos 1 mulher é estuprada a cada 11 minutos 13 mulheres são assassinadas por dia 179 de relatos via ligação para o 180 de agressão por dia Em 2016 após 12 anos da criação do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres o PNPM e 10 anos após a Lei 1134006 estudos realizados por discentes da Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais apontam que o caminho para salvaguardar as mulheres na cidade de Belo Horizonte ainda é longo e caro Gastase em média R 1800 de deslocamento entre os centros de atendimento delegacia Instituto Médico Legal Centros especializados de atendi mento às mulheres em situação de violência casasabrigo e ao em torno de 15 horas para completarem o ciclo de atendimento antes de serem completamente acolhidas Na prática o que se nota hoje no Brasil é que nenhuma violência será extinta se não houver uma mudança estrutural Do que adianta às mulheres uma Delegacia Especializada que não funciona 24 horas em cujos atendimentos temse a presença de homens que não estão dis postos a entender o que se passa com uma mulher que sofre violên cia e que após tais atendimento não há como direcionar a mulher em situação de violência por falta de lugares que a acolham Esses são só exemplos de problemas cotidianos após a implementação da Lei 113402006 Assim como na decisão final do caso 12051 ignorase o pedido principal da ação a aplicação da mesma seguirá o ritmo entoado pelos juízes que digase de passagem são em sua maioria homens incapa zes de se colocarem no lugar de uma vítima de violência em razão do gênero Em outras palavras o sistema jurídico brasileiro não irá ata car de frente o problema enquanto não se der conta de que existe um problema estrutural maior do que a simples existência ou ausência de leis falocêntricas A fim de amenizar um pouco da violência vivida pelas mulheres na Cidade de Belo Horizonte e arredores o Movimento de Mulheres Olga Benário MMOB no dia 8 de março de 2016 ocupou prédio Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1027 público localizado na rua Guaicurus famosa por ser um espaço de prostituição exigindo do Governo brasileiro políticas públicas efeti vas que visem erradicar a violência contra as mulheres Dessa ocu pação acordos foram sendo firmados com os Governos federal e es tadual que culminou na concessão de uma casa de propriedade do governo de Minas Gerais para que o MMOB pudesse se realocar e dar início ao projeto da Casa de Referência da Mulher até então ausente no estado mineiro Nasce assim a Casa de Referência da Mulher Tina Martins 2 A LEI MARIA DA PENHA E O RELATÓRIO nº 54 DA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS O relatório final do caso 12051 Relatório nº5401 da Comissão In teramericana de Direitos Humanos CoIDH reconheceu que as mu lheres brasileiras de modo geral vinham sofrendo reiteradas viola ções de direitos humanos que seguiam um padrão institucionalizado A Comissão não determinou simplesmente que fosse dado às mulhe res direitos mas sim que fossem implementadas todas as exigências do artigo 7º da Convenção de Belém do Pará considerando que em que pese a existência já naquele ano de Delegacias Especializadas e de abrigos públicos para as mulheres restava demonstrado no pedido inicial a ineficácia da justiça brasileira e a tolerância com a violência contra as mulheres OEA 2001 No intuito de atender à decisão da CoIDH o governo brasileiro iniciou uma série de modificações na estrutura governamental e ju rídica dentre essas o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres instituído em 2004 bem como a elaboração da Lei 1134006 nomea damente Lei Maria da Penha No aspecto processual tema mais abordado no Relatório da CoI DH as medidas prometidas pela Lei Maria da Penha modificam for malmente desde a forma de denúncia dos casos de violência a partir da criação de delegacias especializadas até o tipo de procedimento ju dicial a ser implementado nesses casos 1028 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça No tocante à estrutura governamental a Lei Maria da Penha em seus artigos 8º e 34 e seguintes estabelece a criação de políticas públi cas para prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher imputando a todos os entes da federação responsabilidades para a rea lização deste fim A criação de casasabrigo como medida de proteção contra esse tipo de violência seria uma das formas concretas de solu ção nos moldes do artigo 35 inciso II da Lei 3 A SITUAÇÃO DAS MULHERES EM BELO HORIZONTE A população de Belo Horizonte de acordo com as pesquisas do IBGE BRASIL 2010 é constituída primordialmente de mulheres Dos 1433 milhões de habitantes 5312 são considerados mulheres e 4688 homens Cabe ressaltar que a pesquisa porém adota o siste ma binário que classifica sexo e gênero em apenas duas formas femi nino e masculino de acordo com o que foi designado no nascimento Assim deixamos aqui registrado que ainda que efetiva em diversos aspectos a pesquisa pode representar discriminação e estigma de pes soas intersexo e transgêneras além de reforçar papéis sociais e iden tidades de gênero que não se aplicam eou reforçam uma sociedade patriarcal e excludente No tocante à violência contra a mulher Belo Horizonte registra cerca de mil casos por mês Segundo indicadores do Coletivo Nossa BH 2018 a cada 1531 habitantes mulheres de 20 a 59 anos 1995 são internadas na rede pública decorrente de alguma agressão Os in dicadores consideram as internações na rede pública de mulheres de 20 a 59 anos por causas relacionadas a possível agressão por 10 mil moradoras dessa faixa etária por local de moradia NOSSA BH 2018 Ainda os indicadores consideram casos de agressão e possível agressão porém por motivo não esclarecido ou que corresponda a explicações tipicamente usadas para encobrir agressão o que acaba por incluir situações de não agressão nos índices No entanto sabendo que em muitos dos casos de agressão em BH não irá ocorrer interna ção na rede pública hospitalar o indicador é ainda assim considerado efetivo Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1029 Há ainda índices que apontam os casos de tentativa e consu mação de estupro ocorridos em Belo Horizonte por local de ocor rência por cem mil habitantes de acordo com a Secretaria de Estado de Defesa Social de Minas Gerais MINAS GERAIS 2018 Os da dos desconsideram identificação de gênero sexualidade idade raça e classe social dando a todos os casos de estupro o mesmo peso e valor social A diferença entre a pior e a melhor das regiões resulta em uma proporção de 532 vezes de desigualdade e em 67 dos casos os agressores são pessoas próximas da vítima Além disso segundo dados do CINDS MINAS GERAIS 2018 p 17 o maior número de vítimas na maioria dos tipos de violência é observado na Risp 01 por englobar a capital mineira possuidora da maior população de todo estado Apenas a violência patrimonial ocorreu com maior frequência na Risp 04 Juiz de Fora Em tempo cabe ressaltar que no ano de 2017 somente em Belo Horizonte foram registrados 43 feminicídios MINAS GERAIS 2018 Necessário ainda entender a situação das mulheres no tocante à Renda Domiciliar Em Belo Horizonte é possível perceber que na maioria das regiões os homens recebem mais que as mulheres com quem moram o que pontua quase que em totalidade uma dependên cia financeira que coloca mulheres em situação de vulnerabilidade Além disso de acordo com dados recolhidos considerando nível de instrução é possível constatar que quanto maior é o nível desta maior é a desigualdade salarial entre os gêneros BRASIL 2010 Assim considerando a violência patrimonial como uma das mais recorrentes e talvez a menos denunciada dentre as formas de violência domésti ca cabe observar que a tendência é que o controle e a dominação do homem continue a ser exercida nesse aspecto pela ausência de eman cipação feminina nesse sentido Quanto aos dados sobre deficiência em Belo Horizonte cabe res saltar que estes são difusos e pouco precisos Divididos entre número de pessoas com deficiência em assentamentos formais aqui apresen tado e assentamentos informais apresenta manchas genéricas e que pouco dizem sobre as especificidades da cidade Sabese que pessoas com deficiência são mais vulneráveis a abusos uma vez que são mais dependentes e por vezes incapazes De acordo com a The Internatio nal Network of Women with Disabilities INWWD a violência con 1030 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça tra mulheres e meninas com deficiência não só é um subconjunto da violência baseada no gênero como também é uma categoria interse torial relacionada com a violência baseada no gênero e na deficiência Assim como acontece com as pessoas com deficiência as pessoas idosas são mais vulneráveis a violência por serem mais dependentes ou incapazes De acordo com Monteiro 2015 p9 o Estatuto do idoso foi um grande avanço na defesa dos direitos das pessoas ido sas apesar de rechaçar a violação de direitos não criou mecanismos para coibir a violência nem de proteção às vítimas Também não se deteve em fazer qualquer distinção de gênero mesmo considerando a predominância quantitativa das idosas De maneira geral os índices relativos às idosas na capital mineira se apresentam sempre de manei ra genérica inseridos dentro dos dados relativos aos idosos em geral haja vista o levantamento da CINDS MINAS GERAIS 2018 que não apresenta análises com relação a esse grupo especificamente Resta claro que idosos são tratados muitas vezes como invisíveis tendo sua sexualidade gênero seus desejos e necessidades ignorados Por fim ainda que tratem de diversos assuntos os dados en contrados sobre a cidade de Belo Horizonte possuem muitas lacunas no que diz respeito à violência contra mulheres Não existem dados precisos sobre as moradoras de rua bem como são ignoradas as mu lheres transexuais que são menosprezadas por exemplo em abrigos onde são tratadas por seus nomes de batismo e locadas junto com os homens sendo frequentemente abusadas as pertencentes à comu nidade LGBT e às dependentes químicas entre outras mulheres mais vulneráveis a violações por estarem em mais de uma categoria de vulnerabilidade social Além disso a questão racial é frequentemente tratada de maneira genérica tratando as pessoas como branca negras ou pardas e ignorando as demais raças Cruzando todas as informações anteriores chegamos algumas sínteses sobre a violência contra a mulher em Belo Horizonte Podese perceber que em geral as áreas mais críticas no que diz respeito à violência contra a mulher estão nas extremidades da cidade As zonas Leste Nordeste e Barreiro são as mais afetadas possuindo maior com binação de situações eou dados que colocam a mulher em situação de vulnerabilidade Além disso é possível perceber que os índices de agressão coincidem quase que em totalidade com os índices de estu Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1031 pro e que estes estão também diretamente relacionadas aos índices de gravidez na adolescência419 Em seguida buscase entender a origem de tais dados bem como a assistência dada no trato dos mesmos Minas Gerais possui diversas carências no que diz respeito ao apoio às mulheres vítimas de violência Dos 853 municípios apenas 11 possuem casas abrigo para mulher sendo 13 no total além ape nas de 44 Delegacias de Atendimento à Mulher em todo o estado o que representa um total de 81 de municípios sem estrutura especí fica para formulação coordenação e implementação de políticas para mulheres A falta de infraestrutura fica ainda mais injustificada uma vez que de acordo com a Pesquisa Econômica Aplicada Minas Gerais ocupa o segundo lugar entre os estados com o maior número de assas sinatos de mulheres no Brasil Em Belo Horizonte embora existentes os serviços de apoio à mulher violentada são insuficientes e atendem uma parcela muito in ferior aos reais números de vítimas O apoio se dá principalmente através da Delegacia de Mulheres da Benvinda Centro de Apoio à Mulher da Coordenadoria Municipal dos Direitos da Mulher COM DIM que promove ações em três eixos Formação para a Cidadania Políticas Afirmativas e Inclusão Social e Produtiva da Casa Abri go Sempre Viva e do CERNA que atende mulheres em situações de violência de gênero nos âmbitos doméstico eou familiar oferecendo atendimento psicológico individualizado acompanhamento social e orientações jurídicas Além disso a construção da Casa da Mulher Brasileira prevista pelo programa Mulher Viver Sem Violência pre visto pela Lei Maria da Penha 2006 foi anunciada em junho de 2015 mas até o momento não foi concretizada De acordo com a SPM a ideia é que a Casa abrigasse em um mesmo espaço todos serviços es pecializados para os mais diversos tipos de violência contra as mu lheres acolhimento e triagem apoio psicossocial delegacia Juizado Ministério Público Defensoria Pública promoção de autonomia eco 419 Segundo dados da Secretaria Municipal de Saúde relativos às mães adolescen tes apresentam desigualdade entre as áreas de maior incidência e as de menor de 2405 vezes mostrando que a diferença de valor é significativo e pode ser fa cilmente associada a classe social Além disso os dados relativos à gravidez na adolescência estão diretamente relacionados às de abandono do ensino médio tornando ainda mais crítica a situação de vulnerabilidade dessas mulheres que são também estigmatizadas e sofrem preconceito constante Não raro mulhe res são consideradas menos aptas a cargos por terem filhos 1032 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça nômica cuidado das crianças brinquedoteca alojamento de passa gem e central de transportes o que diminuiria o desgaste da vítima aumentando seu conforto e segurança A Prefeitura de Belo Horizonte disponibiliza ainda uma cartilha para ajudar mulheres em situação de violência sendo um poderoso instrumento de instrução Além de explicar os tipos de violência exis tentes muitas vítimas têm dúvidas sobre o que é considerado violên cia funciona como um guia para que a mulher saiba como agir após a constatação e apresenta a rede de apoio existente na cidade Apesar de instrutivo o guia desconsidera mulheres em situação de extrema vulnerabilidade como as mulheres trans eou LGBT e apresenta um fluxo de atendimento por exemplo de uma situação ideal o que não acontece com frequência nas situações cotidianas Além disso a carti lha pode ser acessada online o que faz com que muitas mulheres nem saibam da existência da mesma a tornando menos efetiva Por fim entendendo a educação como meio de enfrentamento direto à violência contra à mulher Belo Horizonte oferece programas que atendem primordialmente o público jovem notase a necessidade de atingir outras faixas etárias nessa discussão uma vez que a idade média dos agressores é de 40 anos e estão classificados em espor tivos culturais e de educação onde se incluem os centros culturais e museus que oferecem atividades inclusivas e educativas em algum nível Alguns dos programas são ProJovem Urbano que oferece supor te para que jovens se formem no ensino fundamental e se profissio nalizem além de fornecer aulas de informática incluir os jovens em programas sociais e acolher os filhos dos estudantes do programa du rante as aulas Espaços BH CidadaniaCRAS que promove palestras oficinas campanhas reuniões e grupos de reflexão com intenção de melhor a qualidade devida das famílias incluídas fortalecendo os laços internos das mesmas PBH ensina a fazer renda que oferece cursos que oferece cursos gratuitos de manicure pedicure jardinagem pintura e bordados Criança Cidadã que oferece a crianças e adolescentes o contato direto com o esporte Programa Escola AbertaPEA que pro porciona à comunidade escolar e local espaços alternativos nos finais de semana para o desenvolvimento de atividades esportivas culturais de geração de renda e qualificação profissional através de oficinas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1033 São também importantes nessa etapa o CMDCA CEDCA e SEDE SE e notase a existência de programas e ações não institucionaliza dos promovidos por ONGS grupos artísticos e de pesquisa e grupos religiosos Embora existentes e atuantes estes são um tanto invisíveis atuando de maneira não abrangente e muitas vezes de acordo com crenças e preceitos morais que podem ser excludentes Os serviços que apresentam suporte público para mulheres após a agressão são interligados pela Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher de Belo Horizonte Embora existam são poucos os serviços específicos para atender mulheres em situação de violência sendo a Rede insuficiente para o nível de incidência de crimes e viola ções Dentre os serviços disponíveis estão os serviços de atendimento jurídico atendimento psicológico casas de apoio hospitais para víti mas de violência sexual hospitais para atendimento de pessoas vio lentadas delegacias das mulheres e delegacias em geral Atualmente os serviços em funcionamento em Belo Horizonte podem ser relacionados entre os seguintes IML onde são feitos os exames para constatação de crimes hospitais com atendimento di recionado para vítimas de violência sexual sendo o Hospital Odilon Behrens das Clínicas Hospital Odete Valadares e Hospital Júlia Ku bitscheck hospitais que atendem pessoas agredidas UPAS Hospital João XXII XXIV e Risoleta Tolentino casas de apoio para a mulher em situação de violência CERNA Benvinda420 Casa Abrigo e Sempre Viva universidades que oferecem serviços gratuitos de atendimento psicológico jurídico e de fisioterapia como UFMG FUMEC e PUC MG CERSAMs que oferecem atendimento direcionado e prolonga do para saúde mental além de serem constituídos por centros de con vivência que oferecem diversas oficinas e moradias protegidas CAPS que buscam ressocializar os usuários de serviços de saúde mental o Núcleo de Atendimento às Vítimas de Crimes Violentos do Estado de Minas Gerais NAVCVMG COMDIM Coordenadoria dos Di reitos da Mulher Delegacia especializada de crimes contra a mulher DEPAM Defensoria Pública especializada na defesa dos direitos das 420 Surgido em 1996 o Benvinda Centro de Apoio à Mulher oferece atendimento jurídico social e psicológico às mulheres vítimas de violência As usuárias che gam até ele por meio de encaminhamento dado em hospitais postos de saúde conselhos tutelares e abrigos ou por meio do Disque Cidadã pelos cartazes espalhados em vários pontos da cidade e por indicação de amigos parentes ou conhecidos 1034 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça mulheres em situação de violência NUDEM 18ª Promotoria espe cializada no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher Consórcio regional de promoção da cidadania mulheres das gerais Polícia Militar de Minas Gerais que apresenta ainda o serviço de Pa trulha da Violência Doméstica PVDPMMG Tribunal de Justiça de Minas Gerais que se organizou para manter três varas criminais 13ª a 15ª disponíveis para resolução exclusiva de casos em que se aplica ria a Lei Maria da Penha421 e Instituto ALBAM422 421 Cabe denunciar aqui o atraso na atuação do TJMG para organizar por defini tivo os Juizados Especializados em casos de Violência Doméstica como prevê a Lei Maria da Penha Essa desorganização em varas criminais geram cons tantes discussões acerca da competência dos juízos em que pese o artigo 33 da Lei 1134006 para a resolução de casos que aparentemente seriam encami nhados às varas de família como divórcio ou alimentos porém por abarcarem situação de violência doméstica deveriam ser solucionados perante os Juizados Especializados conforme artigo 29 e ss da Lei 1134006 Art 29 Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que vierem a ser criados poderão contar com uma equipe de atendimento multidis ciplinar a ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial jurídica e de saúde Art 30 Compete à equipe de atendimento multidisciplinar entre outras atri buições que lhe forem reservadas pela legislação local fornecer subsídios por escrito ao juiz ao Ministério Público e à Defensoria Pública mediante laudos ou verbalmente em audiência e desenvolver trabalhos de orientação encami nhamento prevenção e outras medidas voltados para a ofendida o agressor e os familiares com especial atenção às crianças e aos adolescentes Art 31 Quando a complexidade do caso exigir avaliação mais aprofundada o juiz poderá determinar a manifestação de profissional especializado mediante a indicação da equipe de atendimento multidisciplinar Art 32 O Poder Judiciário na elaboração de sua proposta orçamentária po derá prever recursos para a criação e manutenção da equipe de atendimento multidisciplinar nos termos da Lei de Diretrizes Orçamentárias Art 33 Enquanto não estruturados os Juizados de Violência Doméstica e Fa miliar contra a Mulher as varas criminais acumularão as competências cível e criminal para conhecer e julgar as causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher observadas as previsões do Título IV desta Lei subsidiada pela legislação processual pertinente Parágrafo único Será garantido o direito de preferência nas varas criminais para o processo e o julgamento das causas referidas no caput 422 O Instituto Albam é uma organização não governamental fundada em 1998 pioneira no desenvolvimento de grupos reflexivos com homens autores de vio lência de gênero e mulheres em situação de violência atuando em parceria com o Poder Judiciário e com a Secretaria de Defesa Social do Estado de Minas Ge rais Além desses eixos o Instituto promove capacitações seminários e cursos Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1035 Destacase ainda os programas BH Cidadania presente em todas as regiões da cidade o Disque Cidadã e o Fala Mulher e notase que a grande maioria dos serviços está localizada na região central da cida de que apesar de ser de acesso fácil ou médio para toda a população não possui os índices de violência mais graves A Delegacia Especializada de Crimes Contra a Mulher423 está lo na temática de gênero e violência Já recebeu diversos prêmios com destaque para os prêmios nacional e estadual Objetivos de Desenvolvimento do Milênio ODM concedido pela ONU Governo Federal e Governo Estadual Disponí vel em httpalbamorgbrquemsomos 423 Relato pessoal sobre experiência na delegacia de mulheres de Belo Horizonte em abril de 2016 Entendese aqui que o ambiente que deveria ser de acolhi mento também violenta Como é hoje a delegacia de mulheres é também uma agressão Hoje eu entendi de verdade as causas que eu defendo Diante de uma situação de abuso dentro do meu círculo eu vi bem de pertinho o despre paro da cidade da polícia e da população a começar por mim diante de uma vítima de violência sexual A gente lê todo dia A gente briga todo dia Constata todos os dias o machismo a misoginia o crime romantizado a culpabilização da vítima e nada do que eu já tinha visto de longe tinha me mostrado as dores que hoje eu vi bem de pertinho Se chegar na delegacia foi um processo que exi giu tato sorvete e cuidado com o espaço da pessoa violentada permanecer nela por 4 horas que ainda hão de se estender exigiu muita força Fomos recebidos por policiais homens e desinteressados que faziam cara ruim ao serem solici tados e por vezes eram debochados Policiais que acharam ruim quando pedi pra tirar de perto de nós um cara alcoolizado agressor de uma das mulheres e que não parava de mexer com todas sentadas lá Policiais que cumprem ordens de maneira cega e tratam a agressão como apenas mais uma As vítimas e os agressores dividem a mesma sala de espera e não é mito que o policial tenta fazer a vítima pensar melhor se quer mesmo acabar com a vida daquele cara que só cometeu um deslize Não é boato que a maior parte das pessoas são homens e que o atendimento não é humanizado Da sala de espera ouvese a vítima contando sua história Na sala onde ela conta sua história pessoas in terrompem quando bem entendem Quando uma mulher se exalta e xinga seu agressor que está sentado do lado dela o policial diz ironicamente pra ela ficar quietinha Hoje eu conheci muitas mulheres incríveis Mulheres que sofrem com caras que elas afirmam ser ótimo pais apesar disso tudo Mulheres inteiras e cheias de histórias Tinha a moça grávida que apanhou do ex e tenta a todo custo justificar o ato dele dizendo que ela é nervosa demais A moça que sofre humilhações a anos e hoje quando teve forças pra fazer uma denúncia teve que ir pro hospital pois não teve tempo de pegar os remédios controlados e é epilética A moça que divide o cigarro com o agressor enquanto conta como ele deu uma facada nela A que foi empurrada na parede A que foi ameaçada de morte pelo marido na frente do policial A que repetiu que não queria muitas vezes A que diz quase ter matado o marido quando reagiu e tinha que espera lo dar depoimento pois não tinha como ir embora sem ele A que tinha medo de voltar pra casa A que era julgada o tempo todo pela amiga por aceitar apa nhar A trans que não foi apenas agredida mas também ridicularizada pelos 1036 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça calizada no Barro Preto região central e foi criada para funcionar em regime de plantão funcionando 7 dias na semana 24h por dia A ideia é que por ser central o maior número possível de pessoas chegue ao local utilizando apenas um ônibus e minimizando os gastos Na delegacia teoricamente todos os crimes de flagrante são tra tados como prioridades fazendo com que a vítima que busca o servi ço por conta própria espere cerca de 4h no local O atendimento não é humanizado privativo e nem feito apenas por mulheres o que leva a um constante desconforto por parte das vítimas Além disso vítimas e agressores dividem o mesmo espaço e não há suporte psicológico ou médico durante o processo Após fazer a denúncia a vítima é en caminhada para o Instituto Médico Legal onde são feitos exames de perícia que constatam ou não os crimes relatados pela vítima princi palmente as de violência sexual O tempo gasto nessa etapa é de cerca de 3h Ao final dos exames a vítima deve retornar a delegacia para confirmação da denúncia onde ela permanece por cerca demais 3h e todos os trajetos devem ser feitos de ônibus a vítima pode apresentar um documento provando que estava na delegacia ficando isenta de pagar a passagem A palavra da vítima é colocada o tempo todo a prova sendo requeridos exames e depoimentos invasivos que descon sideram o estado psicológico da mesma O Conjunto Floramar aqui utilizado como exemplo por possuir níveis altos de violência em todos os aspectos e poucos serviços ofe recidos para prevenção ou suporte para vítima de violência surgiu de uma ocupação por parte de 685 famílias moradoras de aluguel de vários bairros que ocuparam por 24h um terreno na Vila São José e em seguida o adro da Igreja São José A pressão se estendeu e surtiu efeito e através do programa Próhabitação de convênio com a Urbel de assistência técnica da Setas e de apoio do Programa de Apoio ao Auto Construtor foram construídas unidades habitacionais que hoje abrigam 1100 habitantes em 320 domicílios policiais e agressores quando entrou querendo fazer denúncia A delegada que se divide entre firmeza e tato com essas moças todas E uma moça dentro de mim que engoliu o choro pra conversar com cada uma e dizer pra elas que elas não estão sozinhas Hoje eu vou dormir chorando mas amanhã eu pretendo acordar com o sangue nos olhos que nos faz resistir Belo Horizonte precisa da Tina Elas eu e nós todas precisamos da Tina É pela vida de todas nós Ana Carolina Machado Amoni Girundi em 21 de abril de 2016 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1037 Com população significativa e altos níveis de violência contra a mulher foi feita uma simulação do percurso percorrido por uma mulher que sofresse violência na região caso desejasse fazer uma de núncia A simulação demonstra o percurso e o tempo gastos por uma mulher violentada do Conjunto Floramar e que busca assistência mé dica e legal Existem cerca de 6 linhas de ônibus que fazem a rota do Conjunto até a delegacia porém são escassos os ônibus em feriados e madrugadas podendo aumentar em 100 o tempo gasto no trajeto Em 2016 no dia 21 de abril às 16 horas o trajeto foi realizado pela pesquisadora Ana Carolina Machado Amoni Girundi que levou 14 horas e 10 minutos para passar pelo atendimento na delegacia com duração de 5 horas e posteriormente completando o tempo no des locamento e permanência no Instituto Médico Legal424 tendo ainda gasto R 1820 para o acesso aos dois locais básicos de atendimento primário 4 DA OCUPAÇÃO TINA MARTINS À CASA DE REFERÊNCIA DA MULHER TINA MARTINS Espertirina Martins foi uma jovem operária de 15 anos anarquista e feminista que lutou na Batalha da Várzea A greve ocorrida em 1917 se iniciou quando a brigada de Porto Alegre matou um operário Em ato de revolta os grevistas da cidade promoveram um protesto que incluía o enterro do trabalhador e foram fortemente reprimidos pela cavalaria da Brigada Militar Espertina carregava um buquê de flores que foi lançado por ela na cavalaria O bouquet era porém uma bom ba disfarçada que explodiu matou metade da tropa e fez com que os militares perdessem a batalha Sabese que mulheres ocupam ainda hoje um papel de desvanta gem na sociedade uma vez que são submetidas a cargos inferiores re cebem salários menores são responsabilizadas por cuidar de crianças e idosos cumprem jornada dupla trabalhando fora e dentro de casa 424 Cabe ressaltar que teoricamente haveria disponível na delegacia de mulheres uma médica legista para evitar o deslocamento e o gasto das vítimas Ocorre que na maioria das vezes o que se constata é a ausência da profissional que ora não se apresenta e ora termina seu expediente antes do horário previsto 1038 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça sofrem com julgamentos e estigmatização constantes além do risco eminente de abuso físico psicológico e mental Considerando ainda que Belo Horizonte possui serviços insuficientes para acolher orien tar empoderar e proteger todas as mulheres em situação de violência se mostrou essencial o estabelecimento de um novo local que fizesse parte da rede já existente Assim a Ocupação Tina Martins surgiu no dia 8 de março de 2016 a partir de uma parceria do Movimentos de Mulheres Olga Benário de Minas Gerais e o Movimento de Luta nos Bairros Vilas e Favelas E por ser a primeira ocupação feminista da América Latina desde seu início ganhou visibilidade e virou uma re ferência Pretendiase desde o surgimento se tornar a Casa de Referência da Mulher Tina Martins um espaço que proporcionasse à mulheres acesso à informação e às políticas públicas de combate a violência além de abrigar temporariamente mulheres em situação de risco eou mais vulneráveis à algum tipo de violência Para cumprir seu objetivo desde o primeiro dia de Ocupação fo ram promovidas atividades de cunho político e cultural no intuito de colocar em pauta a discussão da situação das mulheres na socieda de além de acolhimento atendimento humanizado e orientação para mulheres que passavam por alguma situação de violência Diversas mulheres incluindo mulheres trans em situações dis tintas passaram pela Casa tendo sido fortalecidas e reinseridas na sociedade Desde o início contouse com a ajuda de centenas de co laboradores que organizaram atividades doaram alimentos roupas conhecimento e tempo em nome da causa contribuindo para que a mesma cumprisse sua função social Ao longo do processo que possibilitou que a Ocupação Tina Mar tins se tornasse a Casa de Referência da Mulher Tina Martins foram realizadas algumas dinâmicas de projeto A intenção era fazer surgir o sentimento de pertencimento nas moradoras da Casa além de or ganizar o espaço de maneira efetiva e permitir o diálogo com o poder público facilitando as negociações políticas Em um primeiro momento foi feita uma dinâmica projetual com moradoras da Ocupação para que estas entendessem o espaço existente pontuassem tudo que imaginavam para ele e testassem suas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1039 possibilidades Em seguida foi feita uma reunião com a representante do Olga Tathiane Mátia uma representante do MLB Poliana Silva e a arquiteta Marcela Brandão quando a utilização do espaço foi discuti da de maneira mais técnica Daí surgiu o primeiro projeto para a casa que incluía os três pavimentos da edificação e possuía cerca de 1200 metros quadrados O projeto foi entregue para a então ministra do Ministério das Mulheres Nilma Gomes Por fim em meio às negociações com os governos municipal e estadual surgiu a possibilidade de construção de uma nova casa em terreno cedido pelo governo no bairro União O documento elabora do um projeto de atuação administração e arquitetônico foi concebi do em 72h por mulheres de Movimento Olga Benário e colaboradoras e foi entregue ao governo permitindo a continuidade das mesas de negociação que garantiram o estabelecimento da Casa A apropriação do espaço é um dos mais fortes instrumentos para construir um sentimento de pertencimento acerca do espaço ocupa do bem como propicia a adaptação do mesmo às necessidades vigen tes recupera áreas degradadas e cria um vínculo dos ocupantes com a área ocupada Na Ocupação Tina Martins a apropriação se deu devi do às necessidades de utilização do espaço e também como forma de resistência e empoderamento O espaço antes abandonado ganhou vida e foi restaurado ao longo do tempo Além de artistas grafiteiras poetas e militantes que deixaram suas marcas no edifício surgiu tal movimentação entre as moradoras que utilizaram da arte como forma de expressão e afirmação ajudan do na sua recuperação 41 O funcionamento da Casa de Referência da Mulher Tina Martins A casa localizada na rua Paraíba é finalmente cedida para uso por dois anos A Ocupação Tina Martins tornase a Casa de Referên cia da Mulher Tina Martins e firma parceria com o CERNAS Iniciase aqui uma nova etapa do movimento A partir das dinâmicas de projeto experiências na Casa depoi mentos de moradoras negociações e todas as vivências no decorrer 1040 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça dos 87 dias de ocupação chegouse a um programa de necessidades e atuação que atende as demandas e proposições da Casa de Referência da Mulher Tina Martins A Casa de Referência atua como assistencial emergencial e infor mativa permanente e possibilitar acompanhamento periódico além de abrigar mulheres até que estas sejam orientadas e encaminhadas para casas abrigos ou serviços de saúde Todas as atividades realizadas são em parceria com coletivos instituições universidades e colabora dores que constroem o espaço coletiva contínua e colaborativamente A Casa tal como se apresenta hoje está fora de todos os parâ metros jurídicos possíveis de parceria entre o Estado e os sujeitos pri vados se firmando apenas no princípio da supremacia do interesse público e fazendo com que os órgãos estatais e pesquisadores da área jurídica reinventem possibilidades para concretizar algumas das de mandas sociais feministas no tocante à violência de gênero Os acon tecimentos que levaram a consolidação da Casa Tina Martins servem de exemplo de que a luta feminista não pode depender do Direito para conseguir avanços pois o Direito por vezes engessa ações e impede a concretização de medidas que de fato atendem aos sujeitos femi ninos Por estarem na zona de exclusão os sujeitos femininos já não conseguem ser abarcados pelo Direito que se encontra no centro no falologocentro Atualmente a Casa Tina Martins que inspirou outras ocupa ções em Porto AlegreRS e em MauáSP conta com a colaboração dos sujeitos de direito privado uma vez que há muito pouco apoio dos entes públicos Em 2017 o Movimento aprovou junto ao Programa Popular de Planejamento Orçamentário promovido pela Assembleia de Minas Gerais PPAG uma verba que deveria ser destinada à Casa de Referência Tina Martins MINAS GERAIS 2017 Essa destinação não foi fácil como previsto Mais uma vez o MMOB precisou ocu par as salas da Secretaria de Planejamento do Estado de Minas Gerais para reivindicar o que já haviam conquistado o que demonstra que as conquistas são paulatinas e diárias feitas a base de muita dedica ção e luta Até o fechamento deste trabalho em abril de 2018 o valor autorizado não havia sido destinado à Casa de Referência da Mulher Tina Martins Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1041 Por fim cumpre ressaltar o trabalho interno promovido pelos Núcleos profissionais que atuam voluntariamente na Casa Com pro fissionais do Direito da Psicologia e do Serviço Social a Casa promove às mulheres orientações interdisciplinares para que além de abriga das as mulheres em situação de violência possam se reerguer ainda que toda a estrutura estatal e social movimente no sentido contrário 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A cidade de Belo Horizonte não possui infraestrutura suficiente para dar suporte a todas as ocorrências de violência contra a mulher Além disso notase uma carência de programas e espaços de forma ção e educação que tratem o problema da violência em sua raiz além destes raramente atingirem diretamente o público mais suscetível à agressão A Casa de Referência da Mulher Tina Martins cumpre papel es sencial em seu estabelecimento Por sua localização pelas atividades realizadas e pelo sucesso relativamente rápido nas negociações com o Governo ganhou enorme visibilidade e tornouse referência de es paço para a mulher Tida como modelo a localização escolhida foi primordial para o sucesso da mesma Além disso a vinculação com os serviços já existentes proporciona uma maior conexão entre eles fortalecendo a rede e constituindo uma parte fundamental dela arti culando o que já existe e suprindo as falhas Concluise por fim que o serviço oferecido pela Casa Tina Mar tins deve ser pulverizado pela cidade preferencialmente replicado pelos órgãos públicos a partir de políticas públicas que realizem os direitos das mulheres especialmente em áreas com maiores índices de violência e défice de serviços 1042 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE Popu lação no último censo 2010 Disponível em httpscidadesibgegov brbrasilmgbelohorizontepanorama Acesso em maio de 2018 MINAS GERAIS Centro Integrado de Informações de Defesa Social CINDS Estatísticas Criminais 26 de Maio de 2015 1441 Atua lizado em 20 de Março de 2018 1308 2018 Disponível em http wwwsegurancamggovbrintegracaoestatisticasestatisticascrimi nais Acesso em maio de 2018 MINAS GERAIS Assembleia Legislativa de Minas Gerais Boletim de Monitoramento PLE Nº 1202016 Programa 151 Apoio às Po líticas de Desenvolvimento Social 2017 Disponível em httpswww almggovbrexportsitesdefaultacompanheplanejamento orcamentopublicoppag201620192017emendasdocumentos saudeprotecaosocialPLE1202016SaudeeProtecaoSocialpdf Acesso em maio de 2018 MONTEIRO Yélena A idosa e a Lei Maria da Penha 2015 In Mi nistério Público de São Paulo DoutrinaTextos sobre a Pessoa Ido sa 2015 Disponível em httpwwwmpspmpbrportalpagepor talCAOIdosoTextosA20Idosa20e20a20Lei20Maria20 da20Penha2020150206pdf Acesso em maio de 2018 NOSSA BH Sistema de indicadores Nossa BH Disponivel em http wwwnossabhorgbrindicadores Acesso em maio de 2018 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS OEA Caso 12051 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos Relatório 5401 Maria da Penha Maia Fernandes v Brasil 2001 Disponível em httpswwwcidhoasorgannualrep2000port12051htm 1043 DESAFIOS PARA A CONVIVÊNCIA ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS AMBIENTAL COM O CULTURAL DOS POVOS TRADICIONAIS EM UNIDADES DE CONSERVAÇÃO Renata Vieira Meda 425 Resumo O sistema constitucional brasileiro impõe o dever de pre servação do meio ambiente instituindo unidades de conservação em função de sua relevância ambiental Algumas delas não permitem a permanência de comunidades que ali residem as chamadas popula ções tradicionais Estes assentamentos caracterizamse por já estarem ali situados há várias gerações e manterem práticas culturais e econô micas com a Natureza Considerando que as regras de conservação na criação da unidade se sobrepõem às práticas cotidianas de uso daquele espaço evidenciase o conflito socioambiental o que exige caminhos sistemáticos para harmonizar os direitos envolvidos meio ambiente versus cultura Palavraschave Meio ambiente Populações tradicionais Conflitos socioambientais 425 Doutoranda em Justiça Administrativa pela Universidade Federal Fluminense UFF Mestra em Direito Negocial pela Universidade Estadual de Londrina UEL 2014 Especialista em Direito Público pela Universidade Anhanguera Uniderp Rede de Ensino LFG 2011 Graduada em Direito pela Universidade Norte do Paraná UNOPAR 2006 Advogada Vicesecretária da Comissão do Meio Ambiente da OAB PR Professora universitária pela Universidade Veiga de Almeida UVA campus Tijuca Endereço eletrônico renatameda hotmailcom CV httplattescnpqbr7324411527308764 1044 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça INTRODUÇÃO Com o processo da redemocratização do país o sistema jurídico bra sileiro reconheceu o conceito de socioambientalismo passando então a influenciar a edição de normas legais Nesse contexto foi promulga da a lei que instituiu o SNUC relacionadas às comunidades tradicio nais que residem em áreas nas quais sobreveio a iniciativa de criação de unidade de conservação de proteção integral ganhando destaque conflitos socioambientais inerentes à disputas espaciais Pautadas em políticas de conservação que desconsideram o pa pel das comunidades tradicionais na conservação de seus habitats naturais e simplesmente promovem a remoção destes grupos estas questões vêm problematizando a efetividade dos direitos fundamen tais ambiental com o cultural tendo em vista aparente colisão de dois bens tutelados por conseguinte identificados em ações possessórias A partir desta perspectiva põese a reflexão em torno de saber se condicionantes socioambientais implicam uma forma determina da do Estado Democrático de Direito para implementar de maneira concreta os direitos previstos às populações tradicionais que preser vam o meio ambiente O debate atual atinente à remoção de populações tradicionais em UC de Proteção Integral nos remete à necessidade de incluir às políti cas de conservação caminhos pautados em condicionantes socioam bientais que pressupõem uma interpretação sistemática dos direitos ambientais com os culturais tendo em vista que no âmbito do Estado Democrático de Direito é incabível compreender a orientação literal que privilegia a conservação das espécies e do ecossistema isolada mente em detrimento de vertente socioambiental O objetivo do trabalho se perfaz em identificar possíveis cami nhos para a convivência do meio ambiente com a cultura particu larmente em áreas a que foram instituídas unidades de conservação cujas regras de conservação se sobrepõem às práticas cotidianas de uso daquele espaço A metodologia da pesquisa orientase por um método histórico dedutivo investigação teóricocientífica aliada ao método de análise de casos através de decisões judiciais A pesquisa limitarseá a fa Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1045 zer uma análise teórica e empírica sobre as populações consideradas como tradicionais que ocupam unidades de conservação de proteção integral com identificação de conflito inerente às disputas espaciais apontandose para solução caminhos socioambientais REVISÃO DE LITERATURA A construção jurídica do conceito de direitos fundamentais historicamente reside na dissociação do indivíduo do grupo social a que estava vinculado Sua definição sofreu lenta a e gradual trans formação na medida em que o próprio conceito de Estado de Direito evoluiu até chegar atualmente ao chamado Estado Democrático de Direito culminando em um novo conceito tendente a concretizar um Estado de justiça social Os direitos fundamentais para Hesse 1998 p 225 seriam os di reitos que visam a criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana sendo essencial todavia que tenham sido reconhecidos positivamente por ordenamentos ju rídicos em nível nacional e internacional constituindo direitos hu manos positivados Por outro lado Miranda 1998 p 810 aponta que os direitos fundamentais vão muito além daqueles que estão pro priamente positivados pois o âmbito dos direitos fundamentais vai muito além dessa fundamentação tendo em vista que sobretudo no século XX os direitos tidos como fundamentais são tão vastos que não poderiam entroncar todos na natureza da dignidade Nos termos do art 5º 2º da Constituição Federal de 1988 CF88 os direitos e garantias expressos não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte o que significa conforme Piovesan 2002 p 75 que aqueles enunciados em tratados dos quais o Brasil seja parte estão incluídos no catálogo de direitos constitucio nalmente protegidos A atual CF88 contém uma ampla previsão dos direitos humanos em todas as suas dimensões com nítida influência dos Pactos Interna cionais de 1966426 A Carta traçou um vasto rol de direitos fundamen 426 Dentre os direitos fundamentais classificados como culturais enunciados em 1046 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça tais individuais e coletivos em seu art 5º além de outros econômicos sociais culturais e difusos cuja previsão encontrase em diferentes dispositivos não se restringindo àqueles enunciados nos artigos con tidos no Título II que trata dos Direitos e Garantias Fundamentais Atinente à proteção ambiental a positivação do direito ao meio ambiente equilibrado operouse no Brasil com a edição da Lei n 69381981 que instituiu a Política Nacional do Meio Ambiente PNMA cujo art 2º tem por objetivo a preservação melhoria e recu peração da qualidade ambiental propícia à vida visando assegurar no país condições ao desenvolvimento socioeconômico aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana E quando a norma em questão vincula a qualidade do meio ambiente à dignidade da vida humana está declarando ainda que implicita mente existir um direito ao meio ambiente equilibrado direito este que por estar relacionado à qualidade de vida é necessariamente um direito fundamental conforme já havia sido anteriormente afirmado pela Declaração de Estocolmo em 1972 Com a inserção pela CF88 de um capítulo destinado especificamente ao meio ambiente alcançou este direito finalmente a categoria de direito constitucional Portanto o direito ao meio ambiente equilibrado é considerado um direito fundamental em função de sua essencialidade a uma boa qualidade de vida conforme expressamente previsto no art 225 da CF88 que determina a todos terem direito ao meio ambiente ecolo gicamente equilibrado bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida Também classificado como direito fundamental temse os di reitos culturais que incluem o direito de participar da vida cultural o respeito à cultura de cada povo ou região o direito das minorias étnicas religiosas ou linguísticas de terem sua própria vida cultural e de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua enunciados nos Pactos Internacionais de Direitos Humanos de 1966 e incorporados por CF88 artigos 215 216 231 art 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias 1966 no Pacto Internacional de Direitos Econômicos Sociais e Culturais en contrase em seu art 1º o direito ao respeito à cultura de cada povo ou região Interessante destacar todavia que o Pacto Internacional de Direitos Humanos Civis e Políticos adotado juntamente com o anterior também enuncia em seu art 27 a proteção dos direitos das minorias à identidade cultural religiosa e linguística que configura igualmente um direito cultural Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1047 Silva 2001 p 4748 diferencia os direitos à cultura dos direi tos da cultura O primeiro é aquele que exige uma ação positiva do Estado a ser realizada por meio de uma política cultural oficial que garanta o acesso a cultura de forma igualitária ou seja normas já os direitos da cultura compreendem um conjunto de normas que fazem referência à cultura formando um sistema normativo da cultura um ramo do Direito tais direitos decorrem dos artigos constitucionais A classificação dos direitos culturais como direito humano devese assim como ocorre com o direito ao meio ambiente equilibrado à sua essencialidade à construção de uma vida com dignidade No período de advento do socioambientalismo o Projeto de Lei n 289292 foi aprovado pelo Congresso Nacional e originou a Lei n 99852000 que regulamenta o artigo 225 1º incisos I II III e VII da CF88 e institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza SNUC regulamentado no Decreto n 43402002 Inseridas que estão no SNUC as chamadas unidades de conser vação UCs são entendidas como espaços territoriais públicos ou privados que por ato do Poder Público são destinadas ao estudo e à preservação tendo em vista que são áreas protegidas definidas geo graficamente para alcançarem objetivos específicos de conservação conforme art 2 inciso I da Lei em comento As áreas protegidas assim denominadas tecnicamente pela Lei n 99852000 dividemse em dois grupos previstos pelos artigos 8º e 14 a saber Unidades de Proteção Integral composta por Estação Ecoló gica Reserva Biológica Parque Nacional Monumento Natural e Re fúgio de Vida Silvestre e por outro lado as Unidades de Uso Susten tável composta por Áreas de Proteção Ambiental Área de Relevante Interesse Ecológico Floresta Nacional Reserva Extrativista Reserva de Fauna Reserva de Desenvolvimento Sustentável e Reserva Particu lar do Patrimônio Natural compilando assim 12 categorias de UCs Com efeito Antunes 2005 p 533540 incorpora as disposições já preditas pela referida Lei e aponta que as UCs de Proteção Inte gral têm por objetivo básico a preservação da natureza admitindo o uso indireto de seus recursos naturais salvo casos previstos em lei ao passo que as UCs de Uso Sustentável destinamse à compatibilização entre a conservação da natureza com o uso sustentável de parcela de seus recursos naturais 1048 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Em paralelo à dimensão da proteção ambiental prevista pela lei ambiental vislumbrouse na mesma a definição em um primeiro momento de populações tradicionais427 entretanto o conceito esta belecido pela Lei foi vetado em razão de seu conteúdo ser tão abran gente que caberia toda a população do Brasil Em referência ao termo populações tradicionais Lobão aponta que não se oporiam à ideia de modernidade mas corresponderia à representação de saberes e rela ções com os espaços de reprodução cultural simbólica ou material de forma particular e autônoma 2014 p 66 Um marco no reconhecimento dos povos tradicionais e no re conhecimento do direito ao território tradicionalmente ocupado foi a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho OIT sobre Povos Indígenas e Tribais adotada em Genebra em data de 27 de junho de 1989 que reconhece juntamente com os povos indígenas outros grupos cujas condições sociais econômicas e culturais os dis tinguem de outros setores da coletividade nacional arrolando para todos um rol de direitos específicos A Convenção 169 ratificada pelo Brasil em 19 de abril de 2004 em substituição à Convenção 107 sobre Proteção e Integração de Populações Indígenas e outras Populações Tribais e Semitribais nos Países Independentes aplicase aos povos que são considerados indígenas pelo fato de seus habitantes descenderem de povos da mesma região geográfica que viviam na época da conquista ou no período da colonização e de conservarem suas próprias instituições sociais econômicas culturais e políticas Ademais aplicase aos povos tribais cujas condições sociais culturais e econômicas os distinguem de outros segmentos da população nacional Para a definição dos povos sujeitos na Convenção estabeleceu se o critério subjetivo da auto identidade indígena ou tribal o que pressupõe que nenhum Estado ou grupo social tem o direito de negar a identidade a um povo indígena ou tribal que como tal ele próprio se reconheça Contudo para nortear a definição devese considerar a participação dos povos interessados e o direito desses povos em defi nir suas próprias prioridades de desenvolvimento na medida em que 427 Art 2º inc XV grupos humanos culturalmente diferenciados vivendo há no mínimo três gerações em determinado ecossistema historicamente reprodu zindo seu modo de vida em estreita dependência do meio natural para sua subsistência e utilizando os recursos de forma sustentável Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1049 afetem suas vidas crenças instituições valores espirituais e a própria terra que ocupam ou utilizam É pacífico o entendimento jurisprudencial junto às cortes superiores brasileiras e também em outros países que ratificaram a Convenção 169 da OIT que a própria Convenção aplicase tanto aos povos indígenas quanto aos quilombolas ambos reconhecidos como minorias étnicas pela CF88 O atual texto constitucional brasileiro foi produzido em meio a imensos debates entre múltiplos atores sociais que participaram da Assembleia Nacional Constituinte 19871988 presentes de um lado os setores que historicamente usufruíram a propriedade privada da terra no país e de outro lado os trabalhadores rurais lideranças in dígenas representantes de comunidades negras rurais e urbanas em todo o país movimentos sociais partidos políticos dentre outros que lutaram pelo reconhecimento de direitos étnicos e culturais no novo texto constitucional e pela democratização do acesso à terra no Brasil Esses debates levaram ao reconhecimento pela CF88 dos povos indígenas art 231 e quilombolas art 68 ADCT bem como seus di reitos ao território originário por outro lado diversos outros grupos tradicionais também participantes do processo civilizatório nacional não participaram da construção das regras que os têm por destinatá rios continuandose sem acesso legal às suas terras Portanto o Brasil é um estado federativo que reconhece os direitos das populações tra dicionais entretanto em nível constitucional não há nenhum espaço jurídico para que essas comunidades possam participar da construção das regras que os têm por destinatários ou seja esses povos não con seguiram interferir no Estado de modo participativo Na esfera constitucional o artigo 216 descreve os espaços onde diversos formadores da sociedade nacional têm modos próprios de expressão e de criar fazer e viver projetadas em forma diferente em cada cultura conforme aponta Duprat428 2007 de forma que a compreensão do mundo depende da linguagem do grupo Portanto 428 DUPRAT Deborah Procuradora Regional da República Membro da 6ª Câ mara de Coordenação e Revisão 1999 O Estado Pluriétnico Disponível em httpwwwmpfmpbratuacaotematicaccr6documentosepublica coesartigosdocsartigosdocsartigosestadoplurietnicopdf Acesso em 22012018 1050 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça a CF88 reconhece expressamente direitos específicos a índios e qui lombolas em especial seus territórios bem como a outros grupos que tenham formas próprias de expressão e de viver criar e fazer Inspirado nessa compreensão em 07072007 foi publicado o Decreto federal nº 6040 instituindo a Política Nacional de Desenvol vimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais estabele cendo a seguinte definição de populações tradicionais grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais que possuem formas próprias de organização social que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural social religiosa ancestral e eco nômica utilizando conhecimentos inovações e práticas gera dos e transmitidos pela tradição Duprat429 2007 aponta que a Comissão Nacional de Desenvolvi mento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais é composta emblematicamente por seringueiros caiçaras quebradeiras de coco babaçu índios pescadores ciganos dentre outros RESULTADOS E DISCUSSÕES Uma das questões mais controvertidas abrigadas pela Lei do SNUC referese às determinadas UCs que não permitem a permanên cia de comunidades que ali residem no entanto estes assentamentos humanos caracterizamse por já estarem ali situados há várias gera ções e manterem práticas culturais e econômicas diretamente relacio nadas com os elementos da Natureza albergando divergências no seio do próprio movimento ambiental O conflito socioambiental é evidenciado quando na criação da UC as regras de conservação se sobrepõem às práticas cotidianas do 429 DUPRAT Deborah Procuradora Regional da República Membro da 6ª Câ mara de Coordenação e Revisão 1999 O Estado Pluriétnico Disponível em httpwwwmpfmpbratuacaotematicaccr6documentosepublica coesartigosdocsartigosdocsartigosestadoplurietnicopdf Acesso em 22012018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1051 uso daquele espaço no qual residem o segmento populações tradicio nais É neste sentido que se destaca a dinâmica dos conflitos como inerentes à disputas espaciais uma vez que qualquer movimento nas forma de apropriação enseja novas tomadas de posição Os conflitos ambientais em UCs de Proteção Integral refletem as contradições entre situações presentes no cotidiano da área ocupada por populações tradicionais com uma dinâmica própria de uso em uma utilização do território discordante daquela apresentada como proposta do Poder Público pela perspectiva de conservação da biodi versidade conforme aponta Simon 2014 p 222 Como caso concreto temse a ocupação tradicional de família no Parque Nacional da Tijuca no município do Rio de Janeiro que motivou o Ministério Público Federal MPF a propor Ação Civil Pú blica sob autos n 00074787020124025101430 em trâmite perante a 1ª Vara Federal do Rio de Janeiro em face de Leonor Dias Gomes en tre outros Requeridos objetivando a desocupação de imóvel em área federal localizado no interior da UC de Proteção Integral conforme arts 8º III e 11 da Lei nº 99852000 eis ser incompatível com a tutela do meio ambiente ecologicamente equilibrado No que tange à leitura dos comandos resultantes da decisão vis lumbrase que a família tradicional apresentou aos autos Contesta ção pugnando pela improcedência do pedido de retirada ressaltando que vive há mais de 43 anos no local sendo população tradicional Sem designação de audiência para possibilitar um acordo de harmo nização dos objetivos os autos foram conclusos para sentença na qual o MM Juiz decidiu pela procedência do pedido de desocupação fun damentando que embora datar a ocupação de longo tempo ou na cir cunstância de terse na origem constituído regularmente e só depois se transformado em indevida não purifica sua ilegalidade nem afasta os mecanismos que o legislador instituiu para salvaguardar os bens públicos431 logo pugnando pela irregularidade da ocupação explora 430 RIO DE JANEIRO Ação Civil Pública n 00074787020124025101 1ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro Disponível em httpprocweb jfrjjusbrportalconsultaresconsprocasp TRF2 Disponível em http portaltrf2jusbrportalconsultaresconsprocasp Acesso em 27102016 431 Precedente jurisprudencial RESP 200600060728 Herman Benjamin STJ 2ª Turma DJE04052011 DTPB utilizado em rsentença referente à Ação Civil Pública referida 1052 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ção e o uso que um dia foram regulares mas que deixaram de sêlo impondo ao Município a obrigação de reassentar a família ocupante A família não recorreu em sede de Apelação somente o Município pela anulabilidade da obrigação de realizar o reassentamento A Ape lação foi provida em 27042016 os autos transitaram em julgado em 12072016 e foram remetidos à 1ª instância onde encontramse con clusos para despacho sem liminar desde 17102016 Outra decisão judicial432 no mesmo sentido de preservação do ambiente e determinação de remoção de uma família que residia em zona de amortecimento de uma UC da espécie Reserva Biológica O então ocupante do lugar recorreu de uma decisão inicial que determi nou a sua retirada do local No recurso foi confirmada a necessidade de sua retirada sendo importante ressaltar que da leitura das razões de decidir do órgão colegiado julgador não consta qualquer remissão às alegações do recorrente de que ele e sua família seriam considera dos como membros de uma população tradicional desde a década de 1990 Sem se adentrar se aquela família constituíase em população tradicional ou não e pelo pouco tempo de ocupação é possível que não seja enquadrado nesta hipótese o que se pretende ressaltar é não apreciação da alegação feita em matéria de defesa Portanto são muito comuns ações possessórias contra povos tra dicionais fundamentadas no artigo 42433 da Lei n 99852000 o que 432 BRASIL Tribunal Regional da 2º Região Apelação Cível nº 200251100101313 Disponível em httpwwwtrf2govbrcgibinpin gresallenproc200251100101313andam1tipoconsulta1mov3 Acesso em 25042016 433 Art 42 As populações tradicionais residentes em unidades de conservação nas quais sua permanência não seja permitida serão indenizadas ou compensadas pelas benfeitorias existentes e devidamente realocadas pelo Poder Público em local e condições acordados entre as partes 1º O Poder Público por meio do órgão competente priorizará o reassenta mento das populações tradicionais a serem realocadas 2ºAté que seja possível efetuar o reassentamento de que trata este artigo serão estabelecidas normas e ações específicas destinadas a compatibilizar a presen ça das populações tradicionais residentes com os objetivos da unidade sem prejuízo dos modos de vida das fontes de subsistência e dos locais de moradia destas populações assegurandose a sua participação na elaboração das referi das normas e ações 3ºNa hipótese prevista no 2º as normas regulando o prazo de permanência e suas condições serão estabelecidas em regulamento Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1053 pressupõe que determinadas UCs não permitem a permanência de comunidades que ali residem no entanto estes assentamentos huma nos caracterizamse por já estarem ali situados há várias gerações e manterem práticas culturais e econômicas diretamente relacionadas com os elementos da Natureza Nesse sentido as regras de conser vação se sobrepõem às práticas cotidianas do uso daquele espaço no qual residem povos tradicionais evidenciandose o conflito socioam biental inerente à disputa espacial uma vez que qualquer movimento na forma de apropriação enseja novas tomadas de posição As decisões judiciais nas ações possessórias vêm adotando um viés excessivamente preservacionista em detrimento da tutela integra da dos direitos socioambientais Isto porque fora dada maior relevân cia aos argumentos da necessidade de se preservar o meio ambiente cuja proteção se dera por meio da instituição de uma UC em detri mento do sentido de se reconhecer a possibilidade socioambiental de convivência dos povos tradicionais com os objetivos da UC não sen do desejável e nem necessário a expulsão de comunidade residente O debate das ações possessórias pressupõe o conflito entre dois bens juridicamente tutelado de igual envergadura direito ao meio am biente versus direito à cultura Neste sentido questionase como solu cionar o conflito entre direitos constitucionais fundamentais se não há hierarquia entre eles O direito ao meio ambiente equilibrado é considerado um direito fundamental em função de sua essencialidade a uma boa qualidade de vida conforme expressamente previsto no art 225 da CF88 que determina a todos terem direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida Também classificado como direito fundamental temse os direitos culturais que incluem o direito de participar da vida cultural o respeito à cultura de cada povo ou região o direito das minorias étnicas religiosas ou linguísticas de terem sua própria vida cultural e de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua enunciados nos Pactos Internacionais de Direitos Humanos de 1966 e incorporados por CF88 arts 215 216 231 art 68 do Ato das Dis posições Constitucionais Transitórias Castilho aponta que muito se tem aspirado para descobrir com maior adequação possível atender às exigências da proteção do meio 1054 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ambiente natural e das diversas maneiras de ver e viver a relação com este 2008 p 229 parecendo útil conjugar a efetiva aplicação de pre ceitos fundamentais por meio de uma visão pluralista onde se com preende As perspectivas de classe e de identidades culturais dentro da sociedade atual e tendo em conta as diversas modalidades cul turais de conveniência com a natureza capazes de conduzir o administrador e o intérprete no sentido de uma política justa e abrangente de defesa das suas riquezas em favor de todos inclusive populações tradicionais as quais por tradição costu me necessidade ou hábito retiram dela recursos bens ou valo res que outros segmentos sociais têm por intocáveis ou proibi dos 2008 p 229230 Partese da premissa a indagar a tolerabilidade das regras am bientais perante a diversidade cultural numa realidade em que afas tadas qualquer cultura de supremacia dominação se reconheçam ou tras maneiras de ver e explorar a natureza CONCLUSÃO Desse corolário partese a analisar as regras constitucionais con siderando que a competência para legislar sobre a proteção do meio ambiente cabe à União concorrentemente com os Estados e Distrito Federal artigo 24 VI e VII CF cabendo à União a expedição de nor mas gerais 1o onde não se exclui a competência suplementar dos Estados e Distrito Federal 2o e até mesmo a competência plena na falta desses últimos se não houver lei federal 3o Ademais a CF88 ainda estabelece que é comum a competência administrativa sobre a proteção do meio ambiente em qualquer uma de suas formas art 23 VI e VII Consideradas as disposições acima temse que Castilho 2008 p 230 assevera que se a competência administrativa é igualmente re partida entre os entes de direito público não é possível que o exercício da competência legislativa em estabelecer normas gerais sobre o meio Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1055 ambiente possa inviabilizar aquela atribuída aos Estados portanto não é possível fazer cumprir uma lei ambiental federal geral se a sua execução puder provocar em populações tradicionais a inviabilização de valores culturais tradicionalmente consolidados Sendo assim em virtude das diversidades proporcionadas pela extensão territorial é compreensível reconhecer que podese gerar condutas e valores de determinado grupos sociais a merecer proteção quanto as usualmente referidas na legislação É o caso na inaplicação de restrição de caça e pesca às sociedades indígenas cuja tradição não se rege pela legislação ostensiva não obstante que os índios possam caçar sem os embaraços da lei ambiental tendo em vista que é noto riamente de sua cultura Do mesmo modo outras comunidades pode rão ter características que autorizem a nãoaplicação ou ponderada da legislação hegemônica justamente porque os conceitos detêm signifi cados diferentes para cada grupo social Portanto primase que a norma ambiental pretenda um critério não absoluto de forma ser um equívoco transcender sua amplitude dogmática sobre todo o território nacional quando as pessoas cultu ras valores economias organização históricoeconômica são pecu liares Castilho conclui que ignorar a peculiaridade significa aplicar mal a lei tendo em vista que a Constituição ao conceber a Federação como forma de organização do Estado brasileiro privilegiou a auto nomia dos Estados aí compreendida com a mesma lógica sua cultura local seus costumes e tradições como base de seus próprios valores e maneira de ser 2008 p 231 Logo a Constituição só será bem interpretada e aplicada quando o julgador puder discernir nos significados as peculiaridades referen tes aos destinatários com maior adequação possível às necessidades do grupo analisado de forma a respeitar verdadeiramente o pluralis mo previsto na CF88 1056 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES Paulo de Bessa Direito Ambiental 8ª Ed Rio de Janeiro Lúmen Júris 2008 CASTILHO Ela Wiecko V De A Diversidade Cultural no Conceito Constitucional de Meio Ambiente In Grandes Temas de Direito Ad ministrativo Campinas Millennium 2008 v p 229250 Disponível em httpwwwmpfmpbratuacaotematicaccr6documentose publicacoesartigosdocsartigosdocsartigosadiversidadecultu ralnoconceitoconstitucionaldemeioambientePDF Acesso em 20012018 DUPRAT Deborah O Direito sob o marco da plurietnicidade mul ticulturalidade In Pareceres Jurídicos Direito dos Povos e das Co munidades Tradicionais Org Manaus AM UEA 2007 Disponível em fileUsersRenataDownloadsodireitoso bomarcodaplurietnicidademulticulturalidadepdf Acesso em 22012018 HESSE Konrad Elementos de direito constitucional da República Fede ral da Alemanha Tradução de Luiz Afonso Heck Porto Alegre Fabris 1998 LOBÃO Ronaldo Desafios à capacidade redistributiva do direito em contextos póscoloniais In Confluências Vol 16 nº 2 Niterói PPGS DUFF 2014 pp 6179 Disponível em httpwwwconfluenciasuff brindexphpconfluenciasarticledownload399291 PIOVESAN Flávia Direitos humanos e o direito constitucional inter nacional 5ª ed São Paulo Max Limonad 2002 SIMON Alba Termos de compromisso com comunidades tradicionais em parques e reservas biológicas oportunidades ou armadilhas frente aos conflitos ambientais In 4º Seminário Interdisciplinar em Sociolo gia e Direito e agora Brasil Niterói n4 v15 Niterói PPGSDUFF 2014 SILVA José Afonso da Ordenação Constitucional da Cultura São Paulo Malheiros 2001 1057 Parte VII RACISMO E SISTEMA DE JUSTIÇA INTERNATIONAL TELECOMUNICATION CONVENTION The American Telephone and Telegraph Company instructed by the National Government to send Mr James Gamble To attend a Session of the Committee on the Rare Difficult and Hidden Matter during the International Telecommunication Convention held in Paris FERO 12 JUL1958 Signature Official Stamp Reply No 29 The International Telecommunication Union In the premises of the International Bureau 12 avenue de la Paix Geneva 1059 SELETIVIDADE DE GÊNERO NA LETALIDADE POLICIAL POR QUE AS MULHERES NÃO SÃO VÍTIMAS NOS AUTOS DE RESISTÊNCIA Diogo José da Silva Flora335 Resumo As formas de controle social reservam diferenças estruturais entre homens e mulheres brasileiras que precisam ser observadas não só pelo prisma do capitalismo marginal da América Latina mas tam bém pelas opressões típicas de gênero que permeiam as relações so ciais O trabalho ora apresentado tem por base uma pesquisa quanti tativa da violência de estado usando como dados primários os índices de autos de resistência publicados pelo governo fluminense Os nú meros mostraram que os autos de resistência nomeados oficialmente como homicídios decorrentes de oposição à intervenção policial é um fenômeno masculino Em seguida preocupamonos em buscar res postas para o porquê das mulheres não serem vítimas de homicídio de agentes do estado embora sua participação no mercado ilegal de drogas tenha se intensificado nos últimos 20 anos com reflexos mar cantes no encarceramento feminino Nesse sentido identificamos as formas de integração das mulheres nesse mercado de trabalho para começar de desvendar como os mecanismos formais e informais de controle social feminino interagem e como possibilitam a aplicação de dor e sofrimento mas não de morte pelo Estado A pesquisa de campo realizada na favela de Acari revelou no entanto que a violência de estado atinge as mulheres de maneiras mais perversas pois seccio nase com outros tipos de opressões por elas vivenciadas concluindo 335 Advogado Mestre em Direito pela UFRJ Graduado em Direito pela UERJ 1060 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça se que a letalidade policial também as vitimiza embora o tratamento jurídico deste homicídio seja distinto Palavraschave Letalidade policial Feminização da pobreza Seleti vidade de gênero INTRODUÇÃO O estudo que apresentamos é fruto parcial de uma pesquisa de campo sobre a letalidade das polícias nas favelas cariocas realizado em 2015 com dados dos anos 2010 a 2014 e participação de 35 pessoas entre vítimas parentes de vítimas e líderes comunitários Primeiramente partimos da análise dos dados oficiais de criminalidade identificando quais territórios concentravam maior índice de violência letal provo cada por agentes da segurança pública Conforme os indícios apon tados pela criminologia crítica foi possível delimitar determinados territórios como lugares preferenciais de aplicação do sistema penal para o controle social Pela absoluta concentração das ocorrências de homicídios provocados pelo Estado em favelas optamos por aprofun dar aí as investigações sobre o tema Para isso escolhemos a circunscrição policial com maior nú mero de vítimas fatais provocadas por intervenções policiais no Rio de Janeiro a área de atuação do 41º Batalhão de Polícia Militar que abrange diversos bairros empobrecidos situados entre Irajá e Pavu na Esses bairros fazem fronteira com municípios vizinhos da baixada fluminense como Nilópolis e São João de Meriti que também apre sentam altíssimas taxas de letalidade policial Nossa opção portanto não recaiu sob ilhas isoladas de violência mas sim em lugares onde a violência pareceu extrapolar até mesmo as duras realidades vizinhas onde o poder sobre a vida é diariamente exercido como mecanismo estrutural da atuação estatal Dentro da circunscrição policial do 41º BPM operam três delega cias de polícia Para efeito de pesquisa de campo foi necessário selecio nar uma área ainda mais reduzida Assim foi feita a opção de pesqui sar os homicídios policiais registrados na 39ª Delegacia de Polícia que entre as delegacias da área é a que possui o maior número de registros desse tipo Havia ainda muitas favelas e áreas favelizadas abrangidas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1061 pela delegacia em questão Usando o mesmo critério de mais ocorrên cias do crime objeto deste estudo chegamos à favela de Acari um dos territórios com pior índice de desenvolvimento humano do estado Acari é um exemplo emblemático da violência institucional A comunidade extremamente pobre e desprovida de infraestrutura ur bana ou acesso aos serviços públicos é uma das comunidades com maior proporção de negros do Rio de Janeiro336 Seu nome é muito vezes lembrado pelo desaparecimento forçado de 11 jovens em julho de 1990 que desencadeou a luta dos movimentos sociais reunida em torno das chamadas Mães de Acari Uma vez definido o território focamos atenções nos autos de re sistência ocorridos no marco temporal já citado chegando a uma pri meira constatação intrigante virtualmente não há mulheres mortas em operações policiais Em Acari não havia nenhum registro desse tipo Preocupados com o reduzido espaço amostral verificamos docu mentalmente que 955 das vítimas de autos de resistência no Estado do Rio de Janeiro eram homens Essa realidade aparentemente con trastava com o fato de que a imensa maioria das fontes primárias de informação era mulheres Quase sempre que conseguimos entrevistar um parente ou informante este era do gênero feminino exceção feita aos líderes comunitários ouvidos quase sempre homens Eram mulheres que falavam sobre seus filhos e maridos mortos que sofriam diversas outras violações relacionadas com as operações policiais que vivenciavam no seu cotidiano diversos constrangimen tos e violências provocadas por agentes do Estado mas que de certa forma estavam imunizadas ao crime de homicídio decorrente de opo sição à intervenção policial Com as entrevistas conseguimos delimi tar toda uma gama de fatos típicos a que eram vulneráveis e que as vitimava preferencialmente Nossa primeira hipótese compatível com a experiência social e visualmente constatável no território estudado era que a vulnerabilidade se relacionava com a ocupação de posições armadas no varejo de drogas No entanto metade das vítimas de autos de resistência tinham ocupação formal não relacionada a esse comér cio nem haviam participado dele anteriormente informação apurada no trabalho de campo Isso significa que possuir uma posição arma 336 Informações apuradas durante as entrevistas com assistentes sociais que traba lham na comunidade 1062 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça da no tráfico não era a única causa da exclusividade dos assassinatos masculinos A explicação deveria ser mais profunda Uma vez finalizada aquela pesquisa restava por esclarecer esse fenômeno notadamente masculino da letalidade policial Quais os mecanismos que imunizavam as mulheres de determinados tipos de vitimização e tornavamnas vítimas preferenciais de outros ambos intrinsecamente relacionados à política militarizada de segurança pú blica e guerra às drogas Por que majoritariamente eram elas e não eles nossa principal fonte de informação Enfim como o Estado in terage com as mulheres faveladas de modo a causar sofrimento mas não morte O presente artigo é uma investigação complementar à pes quisa antes realizada onde consultamos a bibliografia especializada e revisitamos as narrativas das mulheres entrevistadas O QUE SÃO AUTOS DE RESISTÊNCIA A terminologia auto de resistência descreve sucintamente uma sé rie de atos típicos do trabalho policial Subentendese que agindo no estrito cumprimento do dever legal o agente estatal obrigado a ave riguar ou dar fim à prática de alguma conduta criminosa é recebido com forte oposição de violência Então para preservar a sua vida ou a vida de terceiros age de modo a neutralizar a violência oposta Na ação que exige proporcionalidade e uso progressivo da força dáse a morte do opositor Ocorrem então dois crimes um homicídio consu mado cometido pelo policial e uma resistência cometida pelo suposto opositor Entretanto o homicídio é embebido de antijuridicidade pois presente a legítima defesa Apesar de típico o fato não é punível De modo genérico essa é a narrativa da grande maioria das resistências seguidas de morte em favelas Quando os fatos chegam ao conhecimento da autoridade poli cial é aberto um inquérito para investigar o homicídio onde o autor do crime é ao mesmo tempo comunicante337 e vítima338 E na maio ria dos casos também é a única testemunha do que aconteceu Essa 337 Entendese por comunicante aquele que leva ao conhecimento da autoridade policial ou seja o delegado de polícia a ocorrência de algum fato tipificado como crime pelo ordenamento jurídico 338 Vítima do crime de resistência Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1063 aparência de legalidade da ação policial é alimentada pela mídia de massas que auxilia na construção do inimigo matável Segundo o delegado Orlando Zaccone DElia Filho 2015 p 184 O estigma da definição do morto como traficante de drogas pa rece transportar a investigação e as decisões de arquivamento para um sentido que vai além dos fatos objetos de apuração A legítima defesa passa a ser construída na própria definição da condição do morto como inimigo tudo o mais é esquecido Não são poucas as hipóteses em que mesmo acusando os po liciais de execução contra um parente a declaração feita pelos familiares de que a vítima poderia ser um traficante de drogas é suficiente para justificar a atuação letal dos policiais nas deci sões dos promotores de justiça Um fato marcante nestes crimes é a ausência de responsabilização criminal dos autores dos homicídios Em geral os inquéritos policiais transitam durante anos entre o Ministério Público titular da ação pe nal e as delegacias de polícia responsáveis pelas investigações até que eventualmente ocorre a prescrição da pretensão punitiva e o processo é arquivado Outro desfecho é o arquivamento a pedido do próprio Ministério Público por suposta ausência de autoria ou materialidade Em 2015 por exemplo houve 220 registro de autos de resistência na cidade do Rio de Janeiro apenas 1 caso foi denunciado pelo Ministé rio Público No imaginário punitivo os saberes penais tendem a repudiar o materialismo histórico em nome do universalismo abstrato de onde emanam desejos de justificar oficialmente a satisfação da violência pelo agir repressivo o que nas palavra de Nilo Batista inaugura uma política criminal com derramamento de sangue O agir científico se trata ao contrário de reconhecer a história como um jogo de inter pretações concorrentes uma disputa ininterrupta entre posições ins tituídas e forças instituintes E é nesse jogo que o delito e o local de sua reprodução aparecem como componentes intimamente relacionados com o processo de socialização dos indivíduos o que é essencialmente complexo conflituoso e contraditório 1064 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça O QUE SÃO FAVELAS Queremos aqui realizar menos uma busca pela origem e mais uma genealogia da favela no sentido de romper as significações ideais do desdobramento metahistórico estabelecido pelos discursos domi nantes Foucault 1996 Há muito ocorre uma acumulação social do imaginário coletivo sobre os tipos e estereótipos marginalizados no Rio de Janeiro atravessando ciclicamente períodos de maior violên cia alternandose com os fluxos e refluxos da repressão policial e das sucessivas pacificações e reestabelecimentos da ordem pública na ci dade Misse 2015 Um dos primeiros exemplos que se tem notícia do uso de estereótipos para criminalizar determinados segmentos da população data de 1830 com a precoce criminalização da maconha através da edição do Código de Posturas Municipais na cidade do Rio de Janeiro A medida proibia o pito do pango como era conhecido o uso de maconha pelos escravos proibição sustentada pelo senso co mum que o via como atividade propulsora da vadiagem e da desor dem Ainda durante o governo imperial as regiões mais densamente ocupadas da cidades eram divididas em territórios sob controle de de terminados grupos capoeiras conhecidos à época como maltas que ostentavam suas próprias roupas insígnias e identidade chegando a reunir no início do Segundo Império milhares de escravos negros libertos e imigrantes de diversas origens Com a abolição jurídica da escravatura em 1888 e a proclamação da República em 1889 a forma de controle social se desloca do privado para o público e a repressão policial aos capoeiras é acirrada tornandose crime a sua prática e resultando em inúmeros desterros e prisões Esses dois exemplos nos mostram como a criminalização de con dutas típicas das classes subalternas convergem para um processo de criminalização da cultura negra de seus valores e suas percepções de mundo Essa criminalização não se restringe às pessoas negras mas invade e povoa o seu território e o imaginário popular afeta intima mente o modo como o negro produz sua vida e sua identidade Isso ocorre em um momento em que o local do mal e do crime passa a ser associado com as nascentes favelas moradia das classes perigo sas Neder 1997 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1065 No final do século XIX o Rio de Janeiro passou a absorver gran de parte da força de trabalho das decadentes lavouras de café do Vale do Paraíba além do êxodo de negros das regiões rurais provocado pela recém abolição da escravatura De 1893 até 1905 a cidade do Rio de Janeiro passou por uma modernização conservadora com objetivo de urbanizar as áreas centrais da cidade Por alegadas questões de hi giene pública os sucessivos governos municipais forçaram a remoção de grande contingente de negros pobres dos cortiços e outras habi tações precárias que foram demolidos na área central para regiões mais afastadas ou geograficamente inapropriadas para a ocupação co mercial Não se pode desprezar também a forte influência da pressão capitalista que passa a se interessar pela especulação imobiliária na região e que se serviria de grandes terrenos desalojados recém valori zados pelas obras públicas A passagem do regime de trabalho escravo para o trabalho juri dicamente livre é uma mudança estrutural importante no Brasil que evidencia um raciocínio de separação e exclusão que orientou a atua ção pública em relação aos excluídos do poder político e econômico O que se fez no passado foi remover as populações de maioria negra para as favelas facilitando o controle social excludente e repressor O que antes era realizado pelos senhores de engenho no âmbito privado passa a ser operado pela polícia na órbita pública Substituíramse as senzalas do latifúndio pelos barracos da favela que passa a ser retrata da pela imprensa como aldeia do mal ou aldeia da morte conforme nos lembra Romulo Mattos 2007 Os mecanismos formais de controle punitivo e a emergência das instituições destinadas a operálo situamse nitidamente no cenário dessa transição de uma sociedade de bases agrárias e escravistas para uma sociedade de capitalismo tardio e incipiente industrialização Nesse contexto que no mundo se expressa pela consolidação da re volução industrial e da formação da sociedade disciplinar o sistema penal no Brasil passou a assumir a função de garante da força de tra balho e de impedimento de sua cessação Batista N 1990 p 35 Assim abolida a escravidão surgem a proibição de greve e a crimina lização da vadiagem abandonase os castigos corporais e passase a disciplinar os corpos ao trabalho fabril 1066 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça No entanto a República jamais conseguiu se distanciar do or denamento econômico e simbólico que lhe legou a escravidão Vera Malaguti analisa que a difusão do medo do caos e da desordem tem sempre servido para detonar estratégias de neutralização e disciplina das massas empobrecidas ou seja a massa negra escrava ou liberta se transforma num gigantesco Zumbi que assombra a civilização dos quilombos ao arrastão nas praias cariocas Batista V 2003 p 21 A escravidão imposta pela colonização portuguesa precisa ser sempre lembrada quando falamos em tratamento criminal dos subal ternos no Brasil pois durante sua existência formal o habitante da me trópole podia em terras coloniais livre dispor sobre o corpo e a vida do seu cativo Parecenos que esse tempo sombrio se repete substi tuindose uma distante Lisboa por um próximo Leblon Frantz Fanon 1968 p 29 nos esclarece muito sobre o processo de colonização que em tudo descrevem a realidade das favelas brasileiras A zona habitada pelos colonizados não é complementar da zona habitada pelos colonos Estas duas zonas se opõem mas não em função de uma unidade superior Regidas por uma ló gica puramente aristotélica obedecem ao princípio da exclusão recíproca não há conciliação possível um dos termos é demais A cidade do colono é uma cidade sólida tôda de pedra e ferro É uma cidade iluminada asfaltada onde os caixotes do lixo re gurgitam de sobras desconhecidas jamais vistas nem mesmo sondadas Os pés do colono nunca estão à mostra salvo talvez no mar mas nunca ninguém está bastante próximo dêles Pés protegidos por calçados fortes enquanto que as ruas de sua ci dade são limpas lisas sem buracos sem seixos A cidade do co lono é uma cidade saciada indolente cujo ventre está perma nentemente repleto de boas coisas A cidade do colono é uma cidade de brancos de estrangeiros A cidade do colonizado ou pelo menos a cidade indígena a cidade negra a médina a reserva é um lugar mal afamado po voado de homens mal afamados Aí se nasce não importa onde não importa como Morrese não importa onde não importa de quê É um mundo sem intervalos onde os homens estão uns sôbre os outros as casas umas sôbre as outras A cidade do co lonizado é uma cidade faminta faminta de pão de carne de sa patos de carvão de luz A cidade do colonizado é uma cidade acocorada uma cidade ajoelhada uma cidade acuada É uma cidade de negros uma cidade de árabes Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1067 Desse modo delineamos como a nação brasileira foi construída de modo peculiar e com contradições só possíveis pela tenebrosidade de uma colonização intensiva em força de trabalho escrava mantida pela violência do cativeiro Somos um Brasil governado por brancos mas construído com braços e sangue negros Como explica Sérgio Costa 2006 p 134 Na medida em que os processos iniciais de constituição da na ção brasileira são coetâneos à escravidão e à entrada maciça de imigrantes no país e mais tarde à abolição da escravatura e à difusão das teses do racismo científico os mecanismos de cons tituição do outro da nação brasileira apresenta peculiaridades diversas A mais evidente é que o outro ou os outros da nação não eram na maior parte dos casos grupos situados fora das fronteiras geográficas do país Esse lugar de outro da nação foi ocupado por grupos que compartilhavam do território nacio nal Em acordo com cânones do racismo científico atribuíase ora aos indígenas ora aos afrodescendentes ora àqueles iden tificados como mestiços uma inferioridade intelectual inata e portanto uma incapacidade imutável para fazer parte da nação progressista e moderna que se queria construir FEMINIZAÇÃO DA POBREZA Na América Latina a criminalidade feminina requer a análise das complexas condições sociopolíticas da região uma das mais desiguais do mundo no que tange a capacidade econômica das pessoas Tais desigualdades se intensificaram a partir do neoliberalismo dos anos 1990 que deixou de converter os excedentes da economia em direi tos e os transformou em lucros em um processo que desde então vem incrementando os níveis gerais de pobreza Chernicharo 2014 p 71 Apesar de uma diminuição da pobreza nos primeiros anos do século XXI os níveis de pobreza extrema não sofreram variações con sideráveis Em paralelo ao empobrecimento geral houve uma alteração das condições de produção material da vida das mulheres o que impli cou em novas dinâmicas familiares e sociais Segundo Rosa Del Olmo 1068 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1996 p 1516 o aumento do envolvimento feminino nos tipos pe nais que disciplinam o tráfico varejista de drogas foi contemporâneo à quebra da estrutura sócioocupacional isto é mudanças nas relações de trabalho grandes modificações nas estruturas familiares e o apro fundamento do processo conhecido como feminização da pobreza Diane Pearce 1978 p 31 sugere que o aumento do número de fa mílias onde a mulher é a principal mantenedora do lar sem contar com ajuda de adultos homens impactou diretamente o seu empobre cimento Em suas palavras a pobreza está rapidamente se tornando um problema feminino Não se alega com isso que somente as mulheres que chefiam la res são pobres mas que há uma maior intensidade nos níveis de po breza nos lares por elas chefiados Mais que isso que há um aumento relativo do empobrecimento feminino quando comparado ao mas culino de forma que o termo feminização da pobreza pode indicar o empobrecimento gerado pelas desigualdades de gênero porque di retamente relacionado com a divisão sexual do trabalho Segundo a ONU em 2008 os salários das mulheres eram 17 menor que os dos homens Chernicharo 2014 p 74 É em âmbito doméstico que se situam as principais inserções femininas no mundo laboral Um pro blema adicional é o trabalho não remunerado que desempenham em suas próprias casas muitas vezes em benefício dos homens e que constitui uma jornada de trabalho adicional Esses fatores gestaram uma economia informal que é controlada principalmente pelas mulheres e que também inclui mercados ilegais Em relação aos mercados movimentados pela venda de drogas ilícitas segundo Corina Giacomello 2013 p 2 a principal motivação para que elas sejam arrastadas para atividades previstas nos Códigos Penais são as condições socioeconômicas principalmente na América Lati na pois são atividades conciliáveis com os cuidados domésticos e o cuidados com os filhos e filhas Portanto a motivação econômica não é uma causa estanque e auto referenciada A capacidade de renda é importante para a decisão de praticar uma conduta proibida mormente quando outras opções não estão disponíveis mas sozinhas desconsideram motivos estrutu rais como as relações de gênero e suas consequências para os papeis femininos na sociedade É das mulheres o papel social de provisão dos Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1069 filhos e suas atividades laborais precisam se ajustar às restrições que o trabalho doméstico impõe É nesse sentido que as palavras de Soraia da Rosa Mendes 2012 p 202 podem ser compreendidas Segundo a autora a análise dos processos de criminalização feminina precisa englobar crenças con dutas atitudes modelos culturais informais assim como agências punitivas estatais formais Portanto é preciso lançar as atenções não apenas para as consequências econômicas do trabalho da mulher mas também para a família não só como núcleo primário de agregação e convivência mas das relações de poder Devem ser revisitadas de forma interconectada para um estudo sincero do problema as rela ções sociais as funções as atividades as formas de comportamento as crenças e as normas que regem a vida da mulher MULHERES E TRÁFICO DE DROGAS O sistema criminal como demonstra as letras da Criminologia Crítica é ineficaz para tutelar bens jurídicos como a segurança e a vida No entanto nos casos de mulheres gera um efeito contraditório e duplica a violência por elas sofrida pois ele é em si mesmo um sis tema de violência institucional que exerce seu poder também sobre as vítimas Seu exercício é a etapa final de um processo de controle que se inicia bem antes em mecanismos informais preponderantemente no ambiente doméstico Assim além da violência sofridas por condutas tipicamente mais masculinas que femininas as mulheres são vitima das também institucionalmente pelo sistema que reproduz tanto as violências estruturais das relações sociais capitalistas quanto as vio lências das relações patriarcais de poder Sobre a ineficácia para tutelar direitos podese apontar que o sis tema criminal no que se refere às mulheres não as protege contra a violência ou previne novas violências não escuta seus interesses e não contribui para a compreensão da gênese da própria violência Portan to não serve de ferramenta para a diminuição das desigualdades entre os gêneros e para a transformação das relações estabelecidas É correto afirmar que o sistema penal sofre de incapacidade preventiva e resolu tória sobre os conflitos que declara pacificar 1070 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A seletividade estrutural dos mecanismos punitivos estatais que são públicos condicionam processos de criminalização de homens e mulheres que estão fora ou mal inseridos no mercado produtivo for mal Nestas condições são imunizados aqueles que constituem as clas ses sociais mais altas úteis à acumulação capitalista Por outro lado na esfera dos mecanismos privados de controle todos os homens são imunizados independentemente de sua classe social em decorrência do poder patriarcal que detêm A bibliografia especializada vem apontando que os mecanismos de controle social das mulheres são diferentes dos mecanismos dos homens Enquanto eles se deparam mais frontalmente com o poder punitivo oficial a elas são reservados outros modelos de vigilância e controle e apenas na falha deles o poder punitivo assume essa função que tipicamente reserva ao mundo masculino Existe portanto uma seletividade de gênero que fortalece o papel destinado às mulheres no patriarcado capitalista O sistema penal fundado por crenças e valores classistas e pa triarcais age de modo a manter as relações desiguais de gênero pois discrimina as mulheres que saem do estereótipo fundado em precon cepções de quais são os papéis a elas permitidos Quando tocadas pelo sistema justiça criminal que deveria ser um espaço apenas masculino elas transgridem várias barreiras desrespeitam a lei desobedecem as normas sociais e invadem um espaço público que não as pertence Violam a docilidade que deveriam sustentar e a privacidade de seus lares onde deveriam se manter Assim o processo de feminização da pobreza e a seletividade de gênero estão umbilicalmente associados A elas restam papeis subal ternos na atividade produtiva inclusive no que tange as atividades ilí citas dos mercados de drogas para onde são empurradas devido à ca rência de meios de subsistência e dignidade Esses papeis subalternos não podem estar associados com condições inatas de inferioridade mas como estamos demonstrando são orientados por pressões exter nas que podem ser compreendidas de forma geral pela designação de seus papeis sociais Portanto não pode a delinquência feminina ser associada a um estado mental ou desordem psicológica Smart 1976 p 64 correndo o risco de se considerar o crime como um problema individual e não como um fenômeno produzido estruturalmente Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1071 É desse modo que a divisão social do trabalho possui suas re divisões sexuais fenômeno que se aprofunda no mercado de drogas ilícitas O mercado informal que viabiliza o tráfico de drogas é estru turado e complexo envolvendo diferentes graus de participação e im portância o que aponta para diferentes papéis em suas redes desde as atuações mais insignificantes até as ações absolutamente engajadas e com domínio do fato final Boiteux 2009 p 39 No Brasil o quadro apresentado é sintomático Aqui vivenciamos uma explosão nos níveis de encarceramento chegando a 287 presos por 100 mil habitantes em 2012 Ministério da Justiça 2012 Compa rado com os números de 20 anos antes isso significa um incremento de quase 5 vezes da população carcerária339 enquanto a população to tal cresceu cerca de 28 Entre os tipos penais que mais colaboraram para essa expansão o tráfico de drogas ocupa uma posição de desta que como principal encarcerador Quando analisamos os principais crimes pelos quais pessoas estão presas crimes contra a propriedade e contra a vida por exemplo é do tráfico de drogas o maior percentual de crescimento Boiteux 2013 p 12 Quando focamos especificamente nas mulheres presas a centra lidade dos crimes relacionados ao comércio ilegal de drogas assumem maior expressividade representando 56 de todos os encarceramen tos em 2000 Além dos índices já agigantados é preocupante como o crescimento não para Em 2014 os crimes de drogas passaram a responder por 64 do encarceramento feminino Isso ocorre porque as mulheres se inseriram em labores do mercado informal que permi tem conciliar o trabalho com os papéis sociais que já desempenham mas também é reflexo das posições que ocupam nesse mercado Ge ralmente são funções menos importantes não apenas pela baixa re muneração mas pelo status reduzido e elevado vulnerabilidade aos mecanismos punitivos Em países produtores de droga como a Bolí via por exemplo a mulher desempenha trabalhos como o de pisar na coca para a produção da pastabase de cocaína Del Olmo 1996 p 16 No Brasil uma pesquisa realizada em um presídio feminino no Ceará verificou que quando perguntadas sobre suas funções no mercado ilícito de drogas as presas declararam exercer funções sub 339 Em 1992 o país contava com 114337 pessoas presas Em 2012 eram 549577 1072 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça sidiárias e subalternas como mula retalhista peão assistente ou cúmplice Moura 2005 p 57 Esse fato parece confirmar que a participação das mulheres nas condutas criminosas geralmente apa recem como auxiliar dos homens mantendose uma divisão sexual do trabalho que as remunera relativamente pior e as coloca em maior vulnerabilidade de prisão Smart 1976 p 67 No Rio de Janeiro os resultados de outra pesquisa Soares 2002 p 87 com presas que atua vam no comércio ilegal de drogas corroboram essa afirmação 273 foram presas com função declarada de bucha 14 como consumi dora 13 como mula ou avião e entre outras funções menos rele vantes apenas 17 como traficante 17 como gerente e 07 como caixa As posições armadas nesse mercado geralmente ocupadas por homens são praticamente interditadas às mulheres São funções pú blicas ostensivas que invocam um poder tipicamente masculino e necessitam de disponibilidade para o seu exercício O perfil padrão do traficante armado é de um homem jovem e negro responsável pelo controle militar de subdivisões do território ou proteção de pessoas específicas Curioso notar que na favela investigada nesta pesquisa existia inclusive uma contribuição previdenciária para as famílias de traficantes armados mortos em serviço E mais curioso que a contri buição cessava com a assunção pela mulher de novo relacionamento CONCLUSÕES A inserção no mercado de trabalhadores oriundos do contingente po pulacional mais vulnerável é na América Latina precária e deve ser analisada frente ao incremento dos níveis de pobreza e do desenvol vimento acelerado da economia informal No mercado informal de drogas eles geralmente desempenham funções de alta periculosidade ocorrendo duas consequências mais evidentes o aumento brutal do risco de aprisionamento e a igualmente brutal redução da expectativa de vida Portanto a subtração de garantias e proteções do espectro que compõe os direitos humanos ou a incapacidade fática de sua plena realização demonstra um tratamento desigual conferido aos grupos vulneráveis Salo de Carvalho 2008 p 488489 nos adverte em re Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1073 lação à relativização de princípios da dignidade humana como a pre carização do próprio direito à vida em função da absolutização dos interesses das agências punitivas afirmando que os graus de reversi bilidade do discurso e de inversão ideológica do sentido histórico dos direitos humanos no campo das práticas punitivas são perceptíveis na maior ou menor apropriação dos direitos da coletividade ou uso dos direitos das instituições Muitas vezes observamos que o mercado ilícito é a única pers pectiva laboral para esse grupo de homens e mulheres pois sua su balternidade lhes priva inclusive do acesso ao mercado lícito de tra balho Na prática é um contingente de jovens que nunca ocuparam uma vaga no mercado formal e que constituem o grupo social mais vulnerável a ser utilizado pelo tráfico Boiteux 2009 p 39 Para as mulheres essa inserção no mercado de trabalho possui peculiaridades estruturadas a partir de subalternidades ampliadas pois presentes aqui as desigualdades de gênero e consequentemente a imposição de alguns papéis sociais prédeterminados Exemplo disso são as duplas ou triplas jornadas de trabalho das mulheres respon sáveis por atividades laborais atividades domésticas e de criação dos filhos A precariedade e o desemprego estrutural constituem dois dos aspectos fundamentais para a inserção da mulher nesta atividade pois ela é percebida como uma forma e oportunidade de trabalho e renda Moura 2005 p 51 Por isso a elas são reservadas tarefas de baixa disponibilidade remuneração e status Tarefas que podem ser conciliadas com a vida doméstica e os cuidados com parentes e filhos inclusive com as ativi dades reprodutivas de manutenção do homem quando o lar é com posto também por eles São funções não ostensivas que não pressupõe nenhum tipo de demonstração pública de poder Embora a experiência e os relatos ouvidos neste estudo reve lenos que nem sempre os mortos em incursões policiais são trafican tes de drogas a narrativa policial dos fatos sempre apresenta para os autos de resistência a figura do opositor potencialmente letal Mesmo quando homens não traficantes sofrem um homicídio decorrente de intervenção policial a narrativa construída nos registros de ocorrên cia é a de um traficante armado que recebeu os agentes da segurança com oposição de violência Quando analisamos o conjunto das falsas 1074 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça comunicações de resistência através das crenças de gênero verifica mos que um opositor do gênero feminino desacreditaria a versão po licial e portanto é evitada Um dos casos que averiguamos foi de uma mulher assassinada pela polícia na favela de Acari em 2014 A jovem inclusive estava grá vida Sua irmã mais velha também fora assassinada na mesma favela 20 anos antes quando também estava grávida As duas mortes trági cas foram registradas como decorrentes de bala perdida A versão policial para os fatos não se apoiou na resistência e na legítima defesa do agente mas sim em uma eventualidade ocorrida no território sob intervenção militar para o combate do tráfico de drogas A justificação da produção de morte portanto deslocase da intenção para o aciden te onde até o conhecimento da autoria do crime é vedado Assim podese traçar algumas considerações provisórias sobre a imunização feminina nos autos de resistência Em primeiro lugar os mercados informais se tornaram o lugar privilegiado de obtenção de renda para amplos seguimentos sociais depois do empobrecimento geral da população que percebemos de maneira acentuada na Améri ca Latina As mulheres mais afetadas que os homens nesse processo precisam buscar formas de subsistência que se conciliem com os pa péis que desempenham na casa e na família que aqui operam como mecanismos de controle informal Por isso são mais fortemente com pelidas para os mercados informais inclusive os ilegais Nesse contexto o mercado das drogas se apresenta como uma oportunidade de renda a ser considerado pelas mulheres que devido às opressões de gênero são incluídas em desequilíbrio com os homens ocupando posições mais vulneráveis e precárias Fato demonstrado pelo aumento significativo de aprisionamento de mulheres por crimes de drogas mas sempre em condutas percebidas como menos impor tantes São condutas que não necessitam de demonstração pública de poder e por isso são desarmadas Isso explica parte do problema mas não a sua integralidade Temos que considerar que os autos de resistência não vitimam ape nas traficantes Em 2015 dos 10 mortos em Acari metade foram de não traficantes embora os registros policiais afirmem o contrário No entanto quando ocorre a morte de uma mulher que apesar de menos frequentes não são tão raras como se sugere as crenças estabilizadas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1075 no imaginários social impedem que essa morte seja comunicada como auto de resistência Comunicar a morte de uma mulher presumindo que ela recebeu os agentes estatais com oposição de violência é uma versão frágil e deslocada das metaprovas que acompanham o registro policial Como a manipulação dos registros policiais de resistências se guidas de morte tem por princípio preconcepções a respeito do crime e do criminoso uma manipulação que abdicasse desses elementos seria incompatível com a verdade que se precisa alcançar com a comunica ção do fato em sede policial Por isso mudamse os fatos Assim e concluindo limitadas reflexões é preciso dizer que as mulheres também estão morrendo na efetivação de uma política de segurança pública com derramamento de sangue a que Nilo Batista se refere com tanta precisão No entanto a análise dessa letalidade deve superar a verdade oficial e reivindicar os conhecimentos sobre as de sigualdades de gênero que são aqui indissociáveis do fenômeno Até quando assassinadas as mulheres não se libertam das pressões que o patriarcado lhes impõe REFERÊNCIAS BATISTA N Punidos e Mal Pagos violência justiça segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje Rio de Janeiro Ed Revan 1990 BATISTA V O medo na cidade do Rio de Janeiro dois tempos de uma história Rio de Janeiro Ed Revan 2003 BOITEUX Luciana WIECKO Ela coord Tráfico de Drogas e Constituição um estudo jurídicosocial do art 33 da lei de drogas diante dos princípios constitucionaispenais In Série Pensando o Direito Brasília SAL Ministério da Justiça 2009 BOITEUX L PÁDUA J A Desproporcionalidade da Lei de Dro gas os custos humanos e econômicos da atual política do Brasil Rio de Janeiro CEDD 2013 Disponível em httpdrogasydere choorgassetsproporcionalidadbrasilpdf Acesso em 5 jul 2016 1076 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça CHERNICHARO Luciana Sobre Mulheres e Prisões seletivida de de gênero e crime de tráfico de drogas no Brasil 2014 160 f Dissertação Mestrado em Direito Faculdade Nacional de Direito Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2014 COSTA S Dois atlânticos teoria social antiracismo cosmopoli tismo Belo Horizonte Ed UFMG 2006 DE CARVALHO Salo Criminologia Garantismo e Teoria Crítica dos Direitos Humanos Ensaio sobre o exercício dos poderes pu nitivos In Teoria Crítica dos Direitos Humanos no Século XXI ps 476522 Porto Alegre EdiPUCRS 2008 DEL OLMO Rosa Reclusion de mujeres por delitos de drogas refle xiones iniciales Reunión del Grupo de Consulta sobre el Impacto del Abuso de Drogas en la Mujer y la Familia Organização dos Estados Americanos s l Fundação José Félix Ribas 1996 FANON F Os condenados da terra Trad José Laurêncio de Melo Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1968 GIACOMELLO Corina Género drogas y prisióne experiencias de mujeres privadas de su libertad en México México Tirant lo Blanch 2013 MENDES Soraia da Rosa RePensando a Criminologia Reflexões sobre um Novo Paradigma desde a Epistemologia Feminista 2012 284 f Tese Doutorado em Direito Faculdade de Direito Universi dade de Brasília 2012 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA Departamento Penitenciário Nacional Sistema Integrado de Informações Penitenciárias Relatórios Estatís ticos Analíticos do sistema prisional de cada Estado da Federação Brasília 2012 Disponível em httpwwwjusticagovbrseusdirei tospoliticapenaltransparenciainstitucionalestatisticasprisional relatoriosestatisticosanaliticosdosistemaprisional Acesso em 12 nov 2016 MISSE M Tradições do Banditismo Urbano no Rio invenção ou acumulação social Revista Semear nº 6 2015 Disponível em http wwwletraspucriobrunidadesnucleos catedrarevista6Sem15 html Acesso em 21 jun 2016 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1077 MOURA M Porta fechada vida dilacera mulher tráfico de dro gas e prisão estudo realizado no presídio feminino do Ceará 2005 145 f Dissertação Mestrado em Políticas Públicas e Sociedade Universidade Estadual do Ceará Fortaleza 2005 PEARCE Diane The Feminization of Poverty Women Work and Welfare In Urban and Social Change Review vol 11 p 2836 1978 Disponível em httpwwwnaswdcorgfeminization ofpoverty presentationspearcePearceThe20Feminization20of20Pover ty197820original20articlepdf Acesso em 25 out 2016 SMART Carol Women Crime and Criminology a feminist critique Londres Routledge and Kegan Paul 1976 SOARES Bárbara Musumeci ILGENFRITZ Iara Prisioneiras vida e violência atrás das grades Rio de Janeiro Garamond 2002 1078 O ESTADO BURGUÊS COMO CONSTRUÇÃO ESTRUTURANTE DO ENCARCERAMENTO E GENOCÍDIO DO POVO PRETO NO BRASIL Caio Luís Prata340 Taylisi de Souza Corrêa Leite341 Resumo O presente trabalho tem por escopo realizar uma análise da evolução do poder punitivo estatal considerandoo como meio dis ciplinante dos corpos marginalizados criados por um sistema cuja essência manifestase na verificação de desigualdades sociais Assim sendo orientase a encontrar elementos suficientes para que o refe rido estudo seja feito com vistas à dinâmica racial brasileira respon sável por reificar e violentar o povo preto atribuindolhe como local devido os calabouços do cárcere Tendo por referencial a criminolo gia crítica e o método científico do materialismo históricodialético o trabalho valese de pesquisa históricodocumental para proporcionar uma leitura jurídicosociológica das dinâmicas de poder a fim de que se possa conceber como a estruturação dos preceitos fundantes da es trutura jurídica e consequentemente responsáveis por possibilitar a ereção do próprio ente estatal servem coadunados às ações omissivas e comissivas por parte do corpo social à edificação da conjuntura que atualmente implantase no Brasil a do encarceramento em massa e o genocídio do povo da diáspora Palavraschave Direito Penal Criminologia Crítica Racismo Insti tucional 340 Bacharelando do 7º período de Direito pela Faculdade de Educação São Luís de JaboticabalSP 341 Doutoranda em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteria na MackenzieSP Mestre e Graduada em Direito pela Universidade Estadual Paulista Unesp FrancaSP Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Escola Paulista de Direito Professora Substituta da Faculdade Nacional de Di reito FND da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1079 INTRODUÇÃO Verificase no Brasil um fenômeno curioso que pode ser descrito como a junção de dois aspectos que se desenvolvem concomitante mente como faces da mesma moeda quais sejam um silencioso apar theid que delega ao povo preto as imundas celas do sistema carcerário Brasileiro mas nega seu acesso aos espaços de poder e um genocídio que se avigora à medida que corpos pretos preenchem as frias mesas de ferro dos Institutos médicos legais do país Por uma breve análise dos números oficiais é inegável a atuação seletiva e racista dos órgãos de aplicação da lei penal e portanto do próprio Direito Penal tendo em vista que sua existência não se dá em abstração mas sim em concreto sendo na atuação fática que se revelam suas premissas Sabendo ser 64 do contingente aprisionado composto por pessoas negras DEPEN 2016 p 32 ou ainda que um jovem negro é morto a cada 23 minutos BRASIL 2016 p 32 revelase necessária uma investigação que busque compreender como se relacionam o surgimento do ramo jurídico que regula a aplicação do castigo e as excludentes dinâmicas raciais brasileiras Na construção do presente trabalho lançando mão do materialis mo históricodialético buscase compreender a relação entre a ativi dade penal cuja dinâmica opressiva se informa pela raça e as estru turas do Estado burguês valendose do conceito forma política de Alysson Leandro Mascaro 2016 p 45 Mascaro permite visualizar que o Estado não é burguês meramente por sua eventual contingência pela classe burguesa mas sim por se relacionar com o fenômeno da formamercadoria em níveis estruturais possibilitando as condições da exploração no sentido que a conhecemos Compreender como se relaciona o surgimento do Estado contem porâneo concebendoo criticamente com a opressão de raça é essen cial para se ter real dimensão acerca da forma como a última opera estruturandose pelas linhas da classe e de como as próprias classes se desenham no Brasil Não há nessa direção meio de se visualizar satisfatoriamente os conceitos basilares do Estado sem que se tenha como lente os estudos raciais 1080 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça É evidente que a violência tem convivido cotidianamente com as pessoas da diáspora342 desde que seus ancestrais foram raptados e trazidos ao Brasil Conforme ensina o referenciado Alysson L Mas caro em sua obra Estado e forma política tais violências se cons tituem como narrativas políticas distribuidoras e organizadoras do poder consubstanciandose em formas sociais específicas que são reconfiguradas ganhando contornos muito próprios da contempora neidade para que então encontrem seus reflexos no Estado e conse quentemente no direito A sorte das minorias nas sociedades capitalistas deve ser tida não apenas como replique no mundo atual das velhas opera ções de preconceito e identidade mas como política estatal de liberada de instituição de relações estruturais e funcionais na dinâmica do capital MASCARO 2016 p 67 As reflexões acerca dos limites da institucionalização das vio lências são portanto fundamentais para que se delineie uma com preensão do porquê aqueles que atuam em nome do Estado agem cor roborandoas e reproduzindoas Esta reflexão constróise aqui no sentido de que se possam criar estratégias de resistência por meio da compreensão de um sistema que nos fagocita enquanto sujeitos Para tanto este trabalho começa pela explanação crítica acerca do surgi mento do Estado e da estruturação do direito passa pela evolução dos mecanismos punitivos a formação da dinâmica de estigmatização e a construção do cárcere contemporâneo para então discutir a proleta rização e desumanização do corpo preto e a perseguição histórica do povo negro na legislação e na persecução penal no Brasil 342 O conceito de diáspora é utilizado aqui a fim de fazer referência aos des cendentes da população negra africana apartada violentamente de sua cultura matriz e precariamente inserida nos contextos econômicopolíticos ocidentais em razão do tráfico escravagista Fazse portanto utilização do termo a fim de designar o conjunto populacional que sendo identificado socialmente en quanto descendente de negros africanos escravizados é reinserido no contin gente marginalizado de modo a ensejar sua captura pelos aparelhos sociais conformadores da sociabilidade capitalista à fim de dar cabo à reconstrução sua miséria por meio da ressignificação da distorção social gerada pela violên cia primária perpetrada em face de seus ancestrais Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1081 1 A ESTRUTURAÇÃO DO DIREITO E O SURGIMENTO DO ESTADO A compreensão dos meios de criminalização da negritude clama an tes pela compreensão da natureza do principal instrumento de sua perpetuação e legitimação o próprio direito Para tanto é necessário avançar para além de sua romantização e dos delírios que tentam lhe furtar o real caráter contextualizandoo historicamente Transpassa este esforço ressaltar que o Direito Penal carateriza se justamente por sua natureza instrumentalizável Tal natureza a qual denominamos funcional reflete as premissas políticas que lhe dão causa e lhe outorga como missão realizálas no plano concreto Por meio de tal compreensão é possível vislumbrar o que motivam as ditas premissas ZAFFARONI ALAGIA SLOKAR 2002 p 386 Logo é preciso antes de proceder a uma investigação crítica ao Direito Penal proceder a uma análise das bases teóricas que legitima ram e fundamentaram a formação do Estado contemporâneo em sua gênese Adequado meio para tanto é a retomada das teorias que cedem base de legitimidade ao poder para que depois seja pensado o modo como este se exerce As teorias fundamentadoras do exercício do poder político verifi cam sensível mudança com o desenvolvimento econômico até atingi rem a atual configuração com o advento do capitalismo MASCARO 2016 p 14 Na idade média com o modo de produção feudal a con formação de uma visão teológica da realidade bastava para responder os anseios sociais e talhar a perspectiva de mundo Com a gradativa generalização da troca mercantil e com a fixação do trabalho abstrato como formasocial predominante a visão de um Estado impessoal e terceiro às relações econômicas se impõe por meio da teoria contra tualista que se desenvolve sobre as bases já apresentadas por Hob bes Com isso transferese ao plano político a premissa pela qual cada sujeito se torna possuidor de mercadorias pela vontade do outro e todos eles pela vontade comum PACHUKANIS 2017 p 147 Quando tanto há de se apontar que as pessoas negras já sofriam a violência reificadora que embasaria sua exploração FERREIRA 1993 p 127 Disto avulta a característica fundante da formapolítica 1082 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça contemporânea que surge quando já havia grupos não dotados de hu manidade aos olhos europeus Formase o Estado então desde logo com base na exclusão de determinadas classes consciências e vonta des estruturandose marcado pelo ferro em brasa do racismo Logo de entrada é possível compreender o profundo nível de imbricação entre capital e Estado Ultrapassando a mera e eventual contingência sua constituição estrutural deriva diretamente da for ma como se organiza a dinâmica de troca e demais relações sociais indispensáveis às bases produtivas do capitalismo Tratase portanto da única natureza e vocação que o Estado conhece da qual não pode se despir sob pena de dar fim a si mesmo MASCARO 2016 p 46 Relacionandose intimamente com o fenômeno jurídico tal qual o político a forma mercantil faz com que a forma jurídica só encontre suas condições de realização no sistema capitalista PACHU KANIS 2017 p 45 Seus conceitos mais básicos tal qual o de sujeito de direito e de igualdade nascem da forma mercantil e buscam garan tila A ligação íntima entre a formajurídica e a formapolítica esta tal se dá não porque a primeira é moldada pela última mas porque ambas advêm da mesma fonte a forma mercadoria Dessa maneira a formapolítica estatal só pode se estabelecer plenamente quando se generalizam as condições de subjetividade jurídica de modo a conse quentemente realizarse uma junção técnica dos preceitos jurídicos ao aparato estatal O Estado então responsabilizase por definir os conceitos mais finos e acabados que erigem as relações concretas ain da que não lapidados Tal movimento de conformação faz com que ambos os fenômenos Estado e Direito se moldem um ao outro mas nunca avancem por sobre o núcleo que os construiu o que levaria à sua mútua destruição MASCARO 2016 p 48 Exsurge portanto o Estado contemporâneo como um reflexo direto do sistema econômico e garantidor imediato das bases produ tivas da miséria Em seu bojo tornarseá mais fácil a percepção da verdadeira natureza do Direito enquanto núcleo duro da ideologia burguesa ENGELS KAUTSKY 2015 p 10 incumbindolhe atuar como mecanismo garantidor e perpetuador do sistema opressivo ten do o Direito Penal papel central para tanto Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1083 2 A EVOLUÇÃO DOS MECANISMOS PUNITIVOS A FORMAÇÃO DA DINÂMICA DE ESTIGMATIZAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DO CÁRCERE CONTEMPORÂNEO Estabelecese assim que o Direito se traduz por meio da intervenção do Estado na vida dos particulares e por isso é a forma de sociabi lidade do capital Em recorte mais específico o Direito Penal repre senta a mais incisiva forma de atuação estatal na sociedade possuin do justamente por tanto caráter subsidiário Sua história inclusive é capaz de nos apresentar suas verdadeiras motivações uma vez que todo sistema punitivo traz impresso em si os interesses de classe da quela classe que o realizou PACHUKANIS 2017 p 172 Por isso é interessante que seja feito um breve resgate histórico e crítico que demonstre em seu conteúdo a evolução do sentido que anima a pena até os dias atuais Embora sejam verificadas novidades expressivas em sua causa de existir e no modo como atuam hodiernamente as prisões possuem uma longa história Ocorre que com o passar dos anos mudanças de paradigma reestabeleceram as concepções de castigo e prisão De início a forma punitiva pôdese ligar à vingança privada e depois transformouse relacionandose com a possibilidade de utilização da pena como meio de renda para o poder soberano incrementada de pois como forma de controle social naturalizando sua atuação por preceitos divinos sob a influência clerical o que fez por fim com que se verificassem os suplícios PACUKANIS 2016 p 170 Neste contexto a pena privativa de liberdade em seu caráter meramente incidental buscava apenas ser meio de custódia muitas vezes tendo lugar para assegurar diligências probatórias A derrocada de tais mé todos punitivos pode ser atribuída à reformulação dos interesses de produção e manutenção de todo um aparato econômico que findou por determinar a morte do espetáculo de violência tardiamente no século XIX fazendo com que a punição passasse a ter aspecto menos teatral e mais obducto na forma de gerir a retribuição ao ato delitivo Com a generalização do trabalho abstrato aquele que se mede pelo dispêndio de tempo fazse ainda mais necessária a constituição de uma relação geral de equivalência condição primária à realização da trocamercantil Só a partir de então fixase como pena a privação 1084 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça de liberdade enquanto meio de abstração do tempo No capitalismo a prisão é a mais adequada forma de se gerir a retribuição penal devido a outro nível de relação de equivalência que irá ser a régua pela qual se medirá a sanção em dias meses e anos evidenciando correspondência entre troca e direito se manifesta também no direito penal NAVES 2008 p 60 Toda essa reestruturação da lógica penal altera o objeto de sua gestão A punição passa a não mais almejar envoltório físico mas sim os desdobramentos sociais deste Destarte a dor física cede à supressão de tempo de direitos e de prerrogativas constituintes da humanidade do indivíduo dentro do sistema burguês tal qual a li berdade ou a propriedade Passa a sanção de mecanismo utilizado para institucionalizar um desejo latente de vingança individual ou coletivo a um meio de estigmatização que de forma invisível sem causar a morte do corpo físico provoca a morte civil de sua vítima A pena de prisão é postulada como menos cruel mas ainda assim desumaniza o apenado DAVIS 2009 p 44 Para além disso ocorrerá a transformação do sistema produtivo atrelado ao fortalecimento da indústria o que fará com que os corpos se tornem altamente aproveitáveis convertendoos em meios de lucro e instrumentos de produção A pena de morte ou mutilação se tornam contraproducentes pois maculam os corpos dos trabalhadores em sua capacidade performática e consequentemente lucrativa As institui ções carcerárias vão erigirse num primeiro momento como meca nismos de docilização e disciplina dos corpos assumindo a função de alinhamento comportamental da massa proletária o que se torna ainda mais palpável com a inserção do trabalho e do controle do tem po nas rotinas dos apenados fazendo com que as prisões assumam um modelo de fábrica NAVES 2008 p 60 No Brasil tal fenômeno pôde também ser verificado conforme se depreende da leitura do Có digo Penal de 1890 que criminalizava por exemplo a vadiagem em seu art 399 BRASIL 1890 Embora o Estado seja o núcleo material do capitalismo é evi dente que ao seu derredor gravitam outras instituições políticas que se engendram e se espraiam para todo o corpo social acoplandose enquanto aparelhos secundários neste aparato primário MASCARO Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1085 2016 p 38 É por meio de tal aglutinação que se realiza a generali zação da sociabilidade capitalista Aí se encontram as instituições pe nitenciárias que valendose de seu caráter repressivo são utilizadas pela perspectiva organizacional e distributiva capitalista realizando o papel repressor do Direito Penal na luta de classes MASCARO 2016 p 65 Ainda que dotado de natureza iminentemente ideológico o di reito penal não deve ser encarado unicamente de modo abstrato Sendo arma imediata na luta de classes PACHUKANIS 2017 p 174 gera efeitos concretos e se integra à superestrutura jurídica do capitalismo acompanhando seu desenvolvimento Assim quando há o advento do capitalismo financeiro o incremento populacional e o fortalecimento das práticas especulativas as prisões estabelecemse finalmente como containers daqueles que não podem consumir e que padecem nas massas encarceradas Com a ascensão e eventual desmonte do Estado de bemestar social a prisão passa a ser vista como uma solução punitiva para uma gama completa de problemas sociais DAVIS 2009 p 4748 resultantes das contradições geradas no seio da própria vida política e às quais esta não consegue solucionar Reforçase contudo que as pe nas não abandonam apesar de tantas mudanças sua essencial função pois além de promover a precarização de corpos para sustentar a de sigualdade constituem outro tipo de mãodeobra que irá se submeter às mais vis condições de trabalho maximizando a maisvalia Por fim as instituições penitenciárias passam a ser legitima das pelo discurso que as coloca como se fossem mecanismos de trans formação semeando no inconsciente social uma sede punitivista que clama pela solução de mazelas sociais por meio da aplicação da pena Em verdade a sanção na formapolítica só enseja as mesmas maze las O Estado neoliberal inclinado à fetichizar o Estado policial au menta seu poder enquanto repudia a pobreza e busca reprimir outras proposições de modelos políticos ou estatais WACQUANT 2001 p 04 1086 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 3 A PROLETARIZAÇÃO E DESUMANIZAÇÃO DO CORPO PRETO É evidente que pessoas negras passaram no Brasil e no mundo por um intenso processo de reificação buscandose estabelecer por diversas frentes científica filosófica e também econômica as razões de sua submissão atribuindo à sua identidade as mais diversas e negativas características forjandoas em seu desfavor Por uma perspectiva teórica e filosófica a desumanização da pes soa negra pode ser vista a partir do processo de exaltação da racio nalidade no contexto europeu iniciado com a reação ao teocentrismo de outrora quando floresceu o pensamento antropocêntrico com o advento do cientificismo e a valorização dos dotes racionais em geral A verificação a posteriori do positivismo aliado ao Humanismo iluminista fez com que se percebesse uma clara hierarquização dos saberes com a consequente supervalorização dos conhecimentos téc nicocientíficos Tudo isso aliado ao maniqueísmo típico da tradição ocidental criou a noção de que o progresso é fato resultante dos sabe res da ciência e dos conhecimentos do método Não por coincidência fezse atribuir tais características positivas à branquitude fixada des de então como padrão universal de humanidade e expressão física da razão Já as facetas inimigas da evolução inversas a isso tudo foram delegadas ao povo preto a emoção a irracionalidade a hipersse xualidade e tantos outros atributos construíram sociologicamente a identidade preta FAUSTINO 2015 p 68 Tal observação já feita por Frantz Fanon incumbiuse de de monstrar que os marcos epistemológicos da identidade negra derivam da necessidade de sua dominação oriunda do contexto colonizador Sendo criada pela branquitude a identidade negra reflete sua posição enquanto outro que se diferencia do locutor para que possa por ele ser dominado FANON 2008 p 147 A partir de então em razão das dinâmicas globais de exploração contidas em práticas imperialis tas esses conceitos foram trazidos a todo o Ocidente exportando tais princípios da valorização do homem europeu e de suas expressões fenotípicas bem como a associação já descrita Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1087 O discurso nacionalista Inglês e Francês é um discurso universalista ou seja nosso modo de ser nosso modo de vida nossa organização nossa cultura é uma cultura que tem caráter universal Portanto passo a medir o mundo com a régua do que eles chamam de universalismo Nós temos inclusive que chegar em outros lugares do mundo para civilizálos Essa ideia da difusão dos padrões nacionais são o começo de uma ideologia da branquitude pela qual o ser branco o ser homem passa a ser um padrão universal ALMEIDA 2016 Contudo além das implicações de caráter filosófico devem ser memorados os esforços das ciências biológicas que buscaram com provar a relação entre a população preta a involução e a criminalidade A escola positivista do direito penal partidária de uma criminologia clínica que buscava por meio de um paradigma etiológico individual explicar a delinquência muito se valeu deste racismo pseudocientí fico revelandose meio valiosíssimo à manutenção da subserviência negra Um de seus principais representantes Cesare Lombroso par tindo da proposta evolutiva de Darwin acabou por atribuir aos povos negros e populações tradicionais o lugar mais atrasado na evolução das raças como fossem mais propensos à violência à medida que os considerava como mais próximos dentre todos os povos dos ances tres primitivos da humanidade GOÉS 2015 No Brasil Raimundo Nina Rodrigues responsável pela publica ção em 1894 da obra Raças Humanas e responsabilidade penal no Brasil pode ser indicado como o mais proeminente colaborador de tais proposições Todos estes pontos serviram por substrato à práticas eugenistas que seja por meio da busca pelo apagamento da cultu ra preta criminalizandoa seja valendose do incentivo à vinda de imigrantes europeus ao território nacional buscaram embranquecer o país Exemplo de tanto pode ser Decretolei n 7967 BRASIL 1945 que apregoava a imperativa necessidade de que fossem prezadas as características europeias da população na admissão de imigrantes É como compreende novamente Luciano Goés que replica o que propôs Thomas E Skidmore 1088 Não há perigo de que o problema negro venha a surgir no Bra sil Antes que pudesse surgir seria logo resolvido pelo amor A miscigenação roubou o elemento negro de sua importância numérica diluindoo na população branca Como nos asseguram os etnógrafos e como pode ser confirmado à pri meira vista a mistura de raças é facilitada pela prevalência do elemento superior Por isso mesmo mais cedo ou mais tarde ela vai eliminar a raça negra daqui É óbvio que isso já começa a ocorrer Quando a imigração que julgo ser a primeira neces sidade do Brasil aumentar irá pela inevitável mistura acelerar o processo de seleção GOÉS 2015 Esta elaborada desconstrução da humanidade negra encontra sua concretude principalmente nas perspectivas econômicas da divisão social do trabalho o que acarretará uma série de implicações As pes soas negras quando da edificação das bases do capitalismo brasileiro estavam relegadas à condição de propriedade e não de proletariado já que o status de trabalhador requeria antes o reconhecimento da humanidade de um sujeito de direito forjado no jusnaturalismo O que havia antes em toda a América moderna era a remanescência de si como mercadoria MOURA 1994 p 25 não se diferenciando em essência o negro dos grãos que colheu sendo regulados ambos ne gro e grão pelos mesmos institutos civis Contudo o reconhecimento da subjetividade negra conservavase como necessária à plenificação do capitalismo uma vez que seu não reconhecimento impediria que os produtos do trabalho humano se relacionassem entre si como valor criando contradições insolúveis PACHUKANIS 2017 p 153 Com a abolição do escravagismo e a precaríssima inserção da pessoa negra no mercado de trabalho conforme será explorado com mais detalhes a seguir a massa negra passa a compor as mais margi nalizadas camadas da classe pobre já marginal economicamente in cidindo sobre ela com maior violência os mecanismos de controle e manutenção do sistema capitalista Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1089 4 PERSEGUIÇÃO HISTÓRICA DO POVO PRETO NA LEGISLAÇÃO E NA PERSECUÇÃO PENAL O processo de verificação da lei penal pode ser compreendido como abarcando duas distintas fases a de criminalização primária e a se cundária ZAFFARONI BATISTA ALAGIA SLOKAR 2003 p 43 A primeira por um juízo políticoaxiológico seleciona os bens e rela ções sociais que pretende se ver preservadas A segunda em seu turno se dá na aplicação concreta do previsto em lei penal As instituições responsáveis pelo exercício da repressão se valem para dar cabo à cri minalização de critérios de classe e raça Nas mãos do Estado burguês a criminalização e a pena possuem papeis nitidamente estruturais de modo que a seletividade condi cionada às identidades condiciona todo o funcionamento das agên cias do sistema penal de tal modo que o mesmo se torna inoperante para qualquer outra clientela ZAFFARONI BATISTA ALAGIA SLOKAR 2003 p 4647 A criminalização da negritude está atrelada ao modo peculiar como se constrói o aparato repressor do Estado Sendo o proletaria do majoritariamente preto devido a questões sociais e históricas que ganham uma especificidade no capitalismo há por consequência a modulação de seus processos de captura em sua direção razão pela qual se observa que 64 da população carcerária é negra DEPEN 2016 p 32 Com a extinção formal do sistema escravagista sob a lei Imperial nº 3353 BRASIL 1888 a ausência de políticas públicas que buscas se inserir a população recémliberta no contexto social deu vazão à formação de guetos e a solidificação da miséria entre estes Gilcerlân dia Pinheiro de Almeida Nunes 2008 p 247254 acertadamente expõe estavam sozinhos abandonados à própria sorte O Estado por sua vez não propôs nenhum plano de assistência que visas se à inclusão dos excativos na nascente sociedade de classes Eles precisavam competir com a quantidade de libertos exis tente com o inimigo imigrante mais bem estruturado contra o preconceito que decaía sobre seus ombros pela sua recente 1090 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça história de escravidão e principalmente pelo seu habitus no sentido bourdieusiano mediante a socialização a que foram submetidos Assim integrouse o elemento negro ao chão da fábrica ou re correu a práticas delitivas fortuitas necessárias para salvaguardar sua vida As formas de violência da escravidão não haviam sido portanto abolidas mas apenas redesenhadas A divisão social do trabalho consolidada pela primeira reestru turação produtiva coloca negros e negras não só como operá rios oprimidos pelo sistema capitalista mas sobretudo como deserdados da terra à margem do processo produtivo da parti cipação política na esfera do Estado e da sociedade civil encur ralandoos numa vida que em boa parte manteve os valores desumanos do antigo regime de escravidão SILVA SANTOS 2005 p 40 O processo de perseguição ao povo preto construído historica mente como se demonstrou no Brasil dáse por via dupla ou seja tanto pela criminalização primária quanto pela secundária As práti cas eugenistas não se davam apenas na omissão estatal ou nas atua ções policiais O Estado brasileiro assumiu posição ativa visando ao extermínio da população negra para que com isso se pudesse alcan çar o que compreendeu ser por influência de tudo o que foi explorado acima a civilização REIS 1993 p 221235 Não por acaso as mais proeminentes expressões culturais ne gras foram criminalizadas logo no primeiro Código Penal da Repúbli ca de 1890 a Capoeira e a Religião Muitos e conhecidos são os relatos de perseguição e invasão de terreiros e casas de cultos afrobrasileiros em geral sob o pretexto de haver nestes locais a prática dos crimes então classificados nos artigos 157 e 158 do diploma supracitado Com o fortalecimento das noções liberais como a de liberdade necessária à composição das relações de troca e acúmulo assim como do necessário exercício da propriedade passouse a se fazer necessária a expansão da categoria sujeito de direitos Portanto a subjetivida de jurídica precisou ao menos formalmente ser estendida a todas as Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1091 pessoas para que fosse legitimada a dinâmica exploratória Com isso inviabilizouse a explícita criminalização mas não se eliminou a per versa seleção sancionadora quando não o projeto genocida apenas sendo visualmente dissociado o elemento racial de uma dinâmica que sem o racismo jamais poderia existir DAVIS 2009 p 47 CONSIDERAÇÕES FINAIS O Estado contemporâneo não deve ser compreendido como se fosse um receptáculo oco no qual se inserem os interesses de uma ou outra classe a depender da organização destas A apuração científica permi tida pelos anos de pesquisa proporcionados pela teoria marxista faz nos elevar a análise a um grau superior de profundidade Com isso é possível conceber que há uma relação derivacional direta entre forma mercantil e Estado formandose este último de modo a reproduzir as vicissitudes e violências daquela primeira Atuando concomitantemente como garante e pressuposto da generalização das relações sociais úteis ao capitalismo à medida que se realizam os pressupostos da subjetividade jurídica o Estado em bora busque se apresentar como dotado de caráter impessoal e geral não é indiferente às relações sociais postas À medida que incentiva a atomização das relações intermedeia a exploração do trabalhador e encontra nas microdinâmicas sociais importantes aspectos que ali menta Assentandose nas distorções do tecido político o Estado bur guês conferelhes novo entalhe convertendoas em substrato pelo qual se desenhará a divisão social do trabalho e se construirá a própria classe proletária O direito penal constituído pelas instituições que lhe dão concretude nada mais é que um aparelho que gravita no entorno do Estado para por meio de sua ação criar a malha ideológicosocial que lhe dá causa de existência corroborando tal reconfiguração Isso se verifica empiricamente tanto na edição de leis quanto na forma de atuação das instituições policiais elevando a violência racial a outro nível inserindo e reinserindo corpos marginais numa lógica de estigmas reprodutora de precariedades e criadora de mão de obra Daqui se pode concluir que Estado é racista por dois viéses numa pri 1092 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça meira análise porque se funda e tem sua base teórica num alicerce de constituição formal branca de outro lado é necessariamente racista porque é a forma política do capitalismo Logo à primeira vista o Estado revelouse como um maquinário desenhado a partir da segregação que em seu âmago leva a mácula do racismo necessária à aniquilação da subjetividade do povo negro colonizado e escravizado Foi através do poder estatal que se viabilizou a escravização de pessoas assim como foi por meio do direito estatal que a compra e venda de pessoas negras e seu registro como proprie dade privada foi possível Num segundo aspecto o Estado é racista porque é estruturalmente capitalista e a formamercadoria a gera ção da formavalor e os preceitos de acumulação do capital valem se da opressão racial conformandoa em seus próprios quadrantes A mãodeobra escrava foi fundamental para a cumulação primitiva para a instauração do capitalismo no Novo Mundo Ademais o Estado reproduz o racismo por meio de suas instituições onde se encaixam os órgãos do poder judiciário responsáveis pela realização da perse cução penal como causa de sua existência uma vez que este é traço importante da constituição econômica que lhe cede causa de ser Por todas essas razões é contraproducente que sejam pautadas reformas nos termos jurídicoestatais como meio de solucionar a se letividade penal uma vez que esta não lhe é defeito incidental mas sim sua razão de ser Promover medidas que apenas reconfiguram o aparato punitivo mas não o extinguem mantendose dentro da perspectiva jurídica posta é se movimentar dentro de uma realidade virtual embora a sensação seja de que se caminha a posição real não se altera Nesse sentido portanto a efetividade da luta contra o genocídio e encarceramento massivo da negritude só pode se dar com uma crítica e profunda compreensão da realidade que incorra à su peração completa das formas política e jurídica que per si sustentam tal barbárie Isso implica dizer sem dourar a pílula que a luta negra deve vislumbrar a superação da formapolítica hodierna assim como do próprio capitalismo para que se possa promover uma nova forma de existência afastada dos quadrantes postos pelo limitado horizonte burguês e consequentemente do racismo Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1093 REFERÊNCIAS ALMEIDA Silvio Luiz de Conferência Estado Direito e análise materialista do racismo Santa Catarina Instituto de Estudos Lati noAmericanos 30 de junho de 2016 Marxismo e a questão racial Blog da Boitempo São Paulo 14 dez 2016 Disponível em httpsblogdaboitempocom br20161214marxismoeaquestaoracial Acesso em 28 jun 2017 BRASIL Código Penal Decreto n 847 de 11 de outubro de 1890 Disponível em httplegissenadogovbrlegislacaoListaPublicacoes actionid66049 Arquivo consultado em abr 2017 Decretolei nº 7967 de 18 de setembro de 1945 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03decreto lei19371946Del7967htm Arquivo consultado em 20 abr 2017 Lei imperial nº 3353 de 13 de maio de 1888 Dispo nível em httpwwwplanaltogovbrccivil03leislimLIM3353htm Acesso em 20 abr 2017 Senado Federal Comissão de inquérito parlamentar sobre assassinado de jovens Brasília 2016 Disponível em https www12senadolegbrnoticiasarquivos20160608vejaaintegra dorelatoriodacpidoassassinatodejovens Acesso em 20 abr 2017 DAVIS Angela Y A democracia da abolição para além do império das prisões e da tortura Rio de Janeiro DIFEL 2009 DEPEN Departamento Penitenciário Nacional INFOPEN Levan tamento Nacional de Informações Penitenciárias 2016 online Dis ponível em httpwwwjusticagovbrseusdireitospoliticapenal documentosinfopendez14pdf Acesso em 18 abr 2018 ENGELS Friedrich KAUTSKY Karl O socialismo jurídico São Paulo Boitempo 2012 FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDU FBA 2008 p 147 1094 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça FAUSTINO Deivison Mendes Por que Fanon Por que agora Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil São Carlos UFSCar 2015 p 68 FERREIRA Maria Literatura dos descobrimentos e da expansão portuguesa Lisboa Ulisseia 1993 GOÉS Luciano Racismo genocídio e cifra negra Raízes de uma criminologia Antropofágica Empório do Direito 16 out 2015 Dis ponível em httpemporiododireitocombrracismogenocidioe cifranegraraizesdeumacriminologiaantropofagicaporluciano goes Acesso em 15 jun 2017 MASCARO Alysson Leandro Estado e forma política São Paulo Boitempo 2013 p 45 MOURA Clóvis Dialética radical do Brasil negro São Paulo Edi tora Anita 1994 p 25 NASCIMENTO Abdias do O genocídio do negro Brasileiro pro cesso de um racismo mascarado São Paulo Perspectivas 2016 NAVES Márcio Bilharinho Marxismo e direito um estudo sobre PachukanisSão Paulo Boitempo 2008 p 60 NUNES Gilcerlândia Pinheiro de Almeida A Integração do Negro na Sociedade de Classes uma difícil via crucis ainda a caminho da redenção Cronos NatalRN v 9 n 1 p 247254 janjun 2008 PACHUKANIS Evguiéni B Teoria geral do Direito e Marxismo 1 ed São Paulo Boitempo 2017 RAMOS Artur O negro brasileiro etnografia religiosa São Paulo Nacional 1940 p 3839 SILVA SANTOS Luiz Alberto et al O negro e o Socialismo São Paulo Editora Fundação Perseu Abramo 2005 SKIDMORE Thomas E Preto no branco raça e nacionalidade no pensamento brasileiro Rio de Janeiro Paz e Terra 1976 Apud GOÉS Luciano Racismo genocídio e cifra negra Raízes de uma criminologia Antropofágica Empório do Direito 16 out 2015 Dis ponível em httpemporiododireitocombrracismogenocidioe cifranegraraizesdeumacriminologiaantropofagicaporluciano goes Acesso em 15 jun 2017 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1095 SOUZA REIS Letícia Vidor de A Capoeira de Doença moral à Gymnástica Nacional Resvista USP São Paulo n 129131 p 221235 agodez93 a agodez94 WACQANT Löic As Prisões da Miséria Rio de Janeiro Jorge Zah ar Editor 2001 ZAFFARONI E Raul ALAGIA Alejandro SLOKAR Alejandro Derecho penal parte general 2 ed Buenos Aires Argentina Socie dad anónima 2002 ZAFFARONI E Raúl BATISTA Nilo ALAGIA Alejandro SLOKAR Alejandro Direito penal brasileiro teoria geral do direito penal Rio de Janeiro Ed Revan v 1 2003 1096 ACOLHIMENTO INSTITUCIONAL E POLÍTICAS PÚBLICAS DIRECIONADAS A CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM DUQUE DE CAXIAS Vanessa Cristina dos Santos Saraiva343 Resumo Este trabalho é resultado dos estudos realizados a partir de uma pesquisa bibliográfica e documental344 no decorrer do Curso de Especialização em Políticas Sociais e Intersetorialidade realizado no IFF FIOCRUZ UNIRIO no ano de 2017 e de pesquisas realizadas enquanto pesquisadora do NUDISS Além disso realizamos a análise dos Censos da População infantojuvenil acolhida no Estado do Rio de Janeiro produzido anualmente pelo MPE dos dados produzidos pelo Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas CNCA e pelo Ca dastro Nacional de Adoção CNA Constatamos que o acolhimento institucional reduz o tipo de política pública direcionada à infância no Brasil e no município de Duque de Caxias sobretudo no que diz respeito aos negros pardos e pobres integrantes de famílias lideradas 343 Doutoranda do PPGSS UERJ Mestre em Serviço Social UFRJ Especialista em Políticas Sociais e Intersetorialidade do Instituto Fernandes Figueira FIO CRUZ Pesquisadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Direitos Huma nos Infância Juventude e Serviço Social NUDISS UFF Assistente Social de Abrigos e Conselho Tutelar de Duque de Caxias entre 2015 e 2017 344 A pesquisa foi desenvolvida por meio de material já elaborado em especial livros e artigos de autores críticos consagrados no meio acadêmico Para cons truir este estudo utilizamos o método dialético pois é este que se propõe a compreender dialeticamente os fenômenos sociais em seu contraditório pro cesso de re produção o qual é mediado por múltiplas determinações e rela ções que integram a totalidadedesenvolvida por meio de material já elaborado em especial livros e artigos de autores críticos consagrados no meio acadêmi co Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1097 por mãessolo e residentes em territórios segregados cuja realidade é perpassada pela violência impetrada por confrontos armados entre a polícia e o tráfico local Palavraschave Criança e Adolescente Acolhimento Racismo insti tucional Duque de Caxias INTRODUÇÃO Nosso interesse em abordar tal temática diz respeito aos dados apre sentados referentes à população negra no Brasil No caso de crianças e adolescentes segundo o IPEA existem 20 mil abrigadas no Brasil sen do que na maioria são meninos 585 afrodescendentes 636 têm entre 7e 15 anos 613 Atualmente existem 88 oitenta e oito crianças acolhidas em Duque de Caxias MCA2017345 Apesar do PIB do município permanecer no 6º lugar no ranking nacional e 2º no estadual IBGE2010 e a cidade possuir arrecadação de R 1406 bilhões verificamos sob a justificativa de uma falaciosa crise econô mica e a atual crise fiscal do Estado do Rio de Janeiro um colapso nas redes e serviços de saúde unidades escolares conselhos tutelares pro gramas de empregabilidade de lazer habitacionais e demais progra mas que podem possibilitar suporte às famílias para reintegrarem346 seus filhos BHERING 1993 SARAIVA 2017 Pesquisas demostraram que apesar do acolhimento se caracte rizar enquanto medida protetiva a permanência em abrigos347 pro duz efeitos nocivos irreparáveis psicológicos de desempenho escolar construir afetos Além disso percebemos que acolhidos são majori tariamente integrantes da população negra Esses dados expressam o Racismo Institucional fenômeno que se apresenta na dimensão das relações interpessoais estabelecidas entre gestores trabalhadores e 345 Esses dados podem apresentar números diferentes 346 Reconduzir a criança ao convívio familiar 347 São as unidades que executam os serviços especializados que oferecem aco lhimento e proteção a indivíduos e famílias afastados temporariamente do seu núcleo familiar eou comunitários e se encontram em situação de abandono ameaça ou violação de direitos Esses serviços funcionam como moradia pro visória até que a pessoa possa retornar à família seja encaminhado para família substituta quando for o caso ou alcance a sua autonomia MDS 2015 1098 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça usuários das políticas ou na ausência de formulação de políticas pú blicas que levem em consideração ou excluam do processo decisório as particularidades étnicoraciais da população negra Configurase enquanto mecanismo de subalternização do direito fazendo com que inexistam ou existam de maneira precarizada e limitada servi ços ofertados em modalidade básica e de difícil acesso à população localização do serviço horário número de profissionais acolhida e preparo para realizar atendimento Tais aspectos conduzem à população negra a outra modalidade de acesso a serviços ofertada pelo Estado Para as crianças e ado lescentes em situação de acolhimento que muitas vezes perdura por anos por não conseguirem ser reintegrados às famílias ou por não corresponderem ao perfil desejado dos candidatos a adoção sem acesso aos direitos sociais de forma plena apesar de ser segmento que deve ser atendido nos diferentes espaços com prioridade absoluta de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente a realidade dura é de mudança de sistema de proteção para o sistema penal A popula ção carcerária do Brasil em 2012 era composta por 67 292242 de jovens negros e pardos com baixa escolaridade MAPA DO ENCAR CERAMENTO 20052012 além disso o Mapa da Violência de 2016 nos informa que a grande maioria das pessoas assassinadas no Brasil é negra 71 De acordo com o IBGE2014 no Brasil a maioria da população brasileira é negra 54 negros e pardos Contudo isso não faz da po pulação negra um grupo social menos segregado subalternizado dis criminado e criminalizado No caso de crianças e adolescentes negros sobretudo pobres objeto de atuação histórica de um Estado violador constatamos que mesmo com avanços legais como o ECA precisamos trabalhar muito para melhorar a situação de vida das crianças e jo vens negros principalmente os que tiveram as suas vidas atravessadas pelo o afastamento do convívio familiar e comunitário348 Tratase não 348 Com o abandono da Doutrina da Situação Irregular Era do Menorismo onde crianças e adolescentes eram abrigados por anos em instituições totais a Dou trina da Proteção Integral foi inaugurada Todavia as dificuldades permanece ram mediando a materialização das normativas como o ECA Nesse sentido é que PNCFC passa a ser problematizado e discutido no sentido de tentar su perar essas limitações É somente no ano de 2006 que o plano é regulamen tado após intenso processo de lutas aprofundamento teórico até que pudesse atingir um consenso No entanto apresentou algumas lacunas precisando que fossem preenchidas Por esse motivo no ano de 2009novo texto foi elaborado Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1099 somente de violação de direitos mas mecanismo de acirramento de sua condição ou nas palavras de Moura 1994 de dominação e de barragens e sanções religiosas e ideológicas que imobilizam a as censão da população negra Situação que se reproduz desde o período do escravismo e que precisa ser enfrentada cotidianamente 1 BREVE HISTORICO DO ACOLHIMENTO INSITUCIONAL NO BRASIL Até a regulamentação do primeiro Código de Menores349 em 1927350 a situação da infância no Brasil era abordada por meio da ação filan trópica e caritativa da igreja católica a qual atuava inicialmente com a catequese dos índios e posteriormente ao implementar o sistema de rodas no século XVIII Esse protagonismo passa a ser dividido com a difusão da Medicina Higienista e a constituição do trabalho livre no século XX A lógica contida nas novas ações realizadas era a necessi dade de educar desde a infância para que os cidadãos estivessem aptos a se comportarem socialmente e para que internalizassem a ética do trabalho BARISON 1997 p 108 Essa situação que expressa uma omissão do Estado face as de mandas da classe trabalhadora e consequentemente da infância se modifica com a expansão industrial e a urbanização vivida no país entre as décadas de 20 e 30 O Estado redefine seu papel A partir desse processo de institucionalização de demandas do segmento de traba lhadores e da regulamentação do Código de Menores de 1927 a polí tica direcionada para a infância naquela época passa a se constituir tendo como pressupostos inserção da criança no espaço de trabalho a visão da infância pobre como incapaz e perversa o poder absoluto do apostando em outros elementos importantes para problematizar esse debate a fim de assegurar que esse direito fosse assegurado o grande de número de acolhimentos fosse reduzido no país bem como os índices de pessoas institu cionalizadas PNCFC 2006 349 Apesar deste termo aparecer em vários momentos no decorrer deste estudo é fundamental apresentar minha postura contrária a esse termo menor por compreender que se trata de nomenclatura estigmatizante discriminatória e utilizada somente aos segmentos mais pauperizados do país até os dias de hoje 350 Decreto 17943 que consolida as leis de assistência e proteção a menores De acordo com o Art 1º do código o menor era o indivíduo de ambos os sexos abandonado ou delinqüente que tivesse menos de 18 anos de idade 1100 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça juiz sobre a família e a criança o abrigamento e internamento como forma corretiva e positiva a visão higienista e repressora a necessida de de se zelar pela nacionalidade e pelos futuros cidadãos Tudo isso passou a caracterizar e compor a denominada Era do Menorismo RIZZINI 2004 Com a instauração do Estado Novo351 em 1937 a necessidade de controle contra a ameaça comunista352 se intensifica e isso rebate sobre a política pública que estava sendo oferecida ao públicoalvo in titulado menor Era fundamental diante disso redefinir as ações A assistência passa a ser centralizada em 1941 com a criação do Serviço de Assistência aos menores SAM DONZELOT 1986 RIZZINI 2004 Esse modelo de intervenção materializado no SAM começa apre sentar sinais de esgotamento segundo Rizzini 2004 em meados da década de 1950 O órgão passou a sofrer duras críticas advindas de autoridades públicas políticos e dos próprios diretores das unida des do SAM A atuação do SAM no imaginário popular representava mais uma ameaça do que proteção às crianças Segundo Rizzini et tal 2009 Escola do Crime Fábrica de Criminosos Sucursal do In ferno Fábrica de Monstros Morais e SAM sem amor ao menor eram alguns das nomenclaturas adotadas no decorrer dos anos de funcionamento da instituição Assim no ano de 1964 o SAM é extinto passando a ser substituído pela Fundação Nacional de Bem Estar do 351 O Estado Novo foi a terceira e última fase da Era Vargas Durou de 1937 a 1945 e sucedeu portanto as fases do Governo Provisório 1930 a 1934 e do Governo Constitucional 1934 a 1937 A característica principal do Esta do Novo era o fato de ter sido propriamente um regime ditatorial inspirado no modelo nazifascista europeu então em voga à época SANTOS2014 352 Alguns autores como Florestan Fernandes 1975 afirmam que no Brasil alguns governantes disseminaram a ideia falaciosa da necessidade de se enfrentar e combater uma ameaça comunista sobretudo no decorrer do período dita torial na década de 1960 com o intuito de preservar os espaços territoriais matériasprimas e a economia Contudo o que estava em curso era naquele período uma necessidade de controle capitalista e temor de perda de espa ço para o mundo socialista Todavia é importante ressaltar que esse tipo de estratégia difusão da existência de uma ameaça não ocorreu somente nos anos de 1960 mas também no decorrer dos anos de 1937 período do governo Varguista através da publicização da existência do Plano Cohen que segun do Getúlio objetivava derrubar o seu governo pelas ações de comunistas Essa estratégia serviu como justificativa para legitimação e permanência de Vargas na presidência bem como do tipo de serviços que estriam sendo ofertados a população Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1101 menor FUNABEM que deveria materializar as diretrizes contidas na Política Nacional de Bem Estar do menor PNBEM E isso ocor re ao mesmo tempo em que a Ditadura Militar é instaurada através de um golpe Isso é significativo para nosso estudo pois as diretrizes desse governo passam a influenciar e determinar como deveriam se materializar no cotidiano das instituições as políticas sociais do cam po da infância Mas toda essa dinâmica passou a ser fortemente problematizada por amplos segmentos da sociedade tendo o protagonismo de pes quisadores e estudiosos do campo da infância um papel importante A centralização das ações sob a responsabilidade dos magistrados e a política de segurança nacional expressa no recolhimento institu cional reclusão de crianças pobres como medida repressiva a todo e qualquer sujeito que ameaçasse a ordem e as instituições federais passa a ser questionada pela ausência de eficácia dessas ações A his tória da institucionalização de crianças e adolescentes toma outros ru mos em meados de 1980 assim como a conjuntura política no Brasil Ocorre ao mesmo tempo o esgotamento do modelo ditatorial tendo o fim do falacioso porém festejado Milagre Econômico como expres são desse momento e iniciase o período de transição política demo crática do país RIZZINI 2004 Mas de acordo com Silva e Aquino 2005 e Altoé 2008 nos estudos que elaboraram nos apresentaram algumas das consequên cias palpáveisvisíveis desse processo de acolhimento Dificuldades de adaptação em convívio com novas famílias ou com a própria fa mília biológica o baixo desempenho escolar fragilidade psicológica dificuldades em se relacionar com companheiro e estabelecer víncu los em alguns casos uso de álcool e outras drogas automutilação são alguns exemplos do que estamos tratando O acolhimento se coloca como medida destrutiva II REDEMOCRATIÇÃO LUTAS SOCIAIS E OS DIREITOS DA INFÂNCIA De acordo com Lima 2013 a convocação para realização da Assembleia Nacional Constituinte significou o ápice do processo de transição democrática do Brasil que ultrapassou a construção e ela 1102 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça boração da Carta Magna de 1988 Isso porque foi um processo que resultou na anistia de 1979 assim como resultou na campanha eleito ral presidencial Diretas Já Embora transpareça que essa dinâmica fosse extremamente progressista Lima 2013 nos atenta ao fato do caráter continuísta e de não rompimento efetivo com práticas arcai cas nesse processo as quais puderam ser verificadas na elaboração do regime interno das comissões constituintes a soberania no processo decisório da Assembleia as formas de participação popular e os meca nismos de votação e tramitação naquele espaço LIMA 2013 Para Bhering e Boschetti 2011 a Assembleia Nacional Consti tuinte serviu como mecanismo de redefinição das regras políticas do jogo no sentido de retomada do Estado democrático de direito p 141 ficou sob a responsabilidade do Congresso Constituinte Isso se colocava já na contramão dos anseios dos movimentos sociais e da população em geral pois o desejo era de que esse processo ocorresse com a realização de uma Assembléia Nacional a fim de garantir a li berdade de expressão e a soberania popular E a partir dessa realidade que o Estatuto da Criança e do Adolescente ECA é regulamentado no Brasil e sua promulgação se consolida como uma grande conquis ta em meio a conjuntura política do Neoliberalismo O Estatuto foi aprovado no Senado no dia 25 de abril e sancionado em 13 de Julho de 1990 consolidando uma grande conquista mesmo que tardia da sociedade brasileira da sociedade civil e sendo resultado das intensas lutas sociais Apesar do teor da normativa ser extremamente avança do ela permanecesse engessada pois é uma conquista no campo jurí dicoformal tendo em vista que a realidade brasileira não possui as condições reais para que tal normativa se concretizasse efetivamente SILVA 2005 Todavia é fundamental que apesar dos limites essa é a normativa inovadora frente ao Código de menores de 1979 garantista quan do introduziu mecanismos como o SGD353 constitucionais incluindo 353 O Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente SGDCA consolidouse a partir da Resolução 113 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente CONANDA de 2006 O início do processo de formação do SGD porém é fruto de uma mobilização anterior marcada pela Constituição de 1988 e pela promulgação do Estatuto da Criança e do Adoles cente ECA como parâmetro para políticas públicas voltadas para crianças e jovens em 1990 O SGDCA é formado pela integração e a articulação entre o Estado as famílias e a sociedade civil como um todo para garantir que a lei Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1103 o devido processo legal ampla defesa e o contraditório e participativa quando permitiu e expressou a participação popular e infantojuve nil O ECA foi a primeira lei brasileira e Latinoamericana que pro piciou que mudanças jurídicas importantes ocorressem Tudo isso no sentido de eliminar a perversidade do sistema antigarantista contido no paradigma da situação irregular SILVA 2005 p 42 Com o passar dos anos ocorrem modificações importantes des de a regulamentação do ECA em 1990 Em 2009 no ano de 2014 e por fim em 2017 É importantíssimo nos atentarmos para o fato de que entre os anos de 2009 a 2014 o país estava sendo comandado por presidentes vinculados ao Partido dos Trabalhadores PT e no ano de 2017 sob o comando de presidente vinculado ao Partido do Movi mento Democrático Brasileiro PMDB Realizar essa análise é fun damental pois conseguiremos verificar posteriormente quais foram os aspectos abordados nessas alterações e em que medida atendem ou não aos interesses da população De antemão adiantaremos que essas alterações representam novamente uma disputa de interesses entre projetos sociais distintos De tudo isso podemos afirmar que existem dois momentos dis tintos nessas modificações Em um primeiro momento mudanças que buscaram atender as necessidades de crianças e adolescentes em si tuação de vulnerabilidade ou seja oriundas de famílias pobres sendo que almeja atender ainda as necessidades de crianças em acolhimento institucional É interessante perceber que essas são uma resposta para as necessidades de um segmento que mesmo com a implementação seja cumprida que as conquistas do ECA e da Constituição de 1988 no seu Artigo 227 não sejam letra morta De forma articulada e sincrônica o SGDCA estruturase em três grandes eixos estratégicos de atuação Defesa Promoção e Controle Essa divisão nos ajuda a entender em quais campos age cada ator envolvido e assim podemos cobrar de nossos representantes suas responsabi lidades assim como entender as nossas como cidadãos dentro do Sistema Os atores que compõem o Sistema de Garantia dos Direitos são os Conselheiros tutelares promotores e juízes das Varas da Infância e Juventude defensores públicos conselheiros de direitos da criança e adolescente educadores sociais profissionais que trabalham em entidades sociais e nos Centros de Referência da Assistência Social Cras policiais das delegacias especializadas da criança e adolescente integrantes de equipes técnicas das Varas da Infância e Juventude membros de entidades de defesa dos direitos humanos de criança e adolescen tes entre outros ECA 1990 1104 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça do Estatuto não conseguiram ter sua condição resolvida Em outros termos apesar do ECA as velhas práticas de recolhimento não conseguiram ser abandonas ao contrário foram reatualizadas renovadas e têm se apresentando como um grande desafio a ser enfrentado pelos defensores dos direitos de criança e adolescentes Em um segundo momento as alterações embora algumas aten dam as novas necessidades surgidas com o advento da tecnologia informacional transmitem uma ideia de sobreposiçãorepetição de normas apesar de estarem sendo apresentadas em texto de forma di ferenciada O que podemos dizer na realidade é um movimento de reatualização de normativas que já existentes Por fim se em momento anterior da história da infância no Brasil a lógica era de recolher para proteger a ideia agora e reintegrar e manter essas crianças em convívio familiar ou comunitário tendo em vista que o recolhimento causou e ainda causa danos irreversíveis na trajetória de vida das pessoas Mas garantir essa convivência se coloca como grande desafio cotidiano 1 RACISMO ESTRUTURAL E INSTITUCIONAL A realidade social nos mostra que somente a existência de leis de nor mativas e de diretrizes não necessariamente resultam em mudanças imediatas na realidade O campo da infância e adolescência é exemplo disso pois tem avançado de forma significativa tendo a regulamenta ção do Estatuto da Criança e do Adolescente ECA 1990 como exem plo importante na luta pelos direitos de crianças e adolescentes mas que ainda enfrenta entraves sociais culturais políticos e econômicos para se materializar de forma plena A discussão sobre a redução da maioridade penal a disseminação de que a punição ainda é a melhor forma de doutrinar crianças e adolescentes a ausência de recursos or çamentários são alguns exemplos sobre entraves enfrentados contudo não são os únicos limites para a materialização e acesso dos direitos de crianças e adolescentes no Brasil Diante disso nos deparamos com a importância de se problema tizar outros determinantes para além da questão econômica políti ca e social os quais possam estar atravancando o acesso aos direitos dessas crianças e adolescentes Nesse sentido compreender a questão Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1105 étnicoracial como um elemento estruturante das relações sociais bra sileiras pode nos auxiliar a perceber quais as relações que estão sendo estabelecidas entre os sujeitos e nas instituições e que podem sim re fletir nas relações sociais e rebater negativamente sobre determinados grupos sociais nesse caso crianças e adolescentes negros pretos e pardos ALMEIDA 2017 EURICO 2014 Contudo em sociedades racistas como é o caso do Brasil coe xistem expressões e posturas preconceituosas e discursos que propa gam uma igualdade por mediação da ideia falaciosa de democracia racial harmonia entre os povos negros indígenas e o colonizador no processo de construção da Nação brasileira e que acabam escon dendo o racismo o preconceito e a discriminação Nesse sentido podemos compreender como o racismo o qual diz respeito à crença na existência de raças inferiores ou superiores a outras são veladas e invisibilizadas porém são reproduzidas cotidianamente de forma sutil e sofisticada Consta no Guia de Enfrentamento que o termo Racismo Institu cional foi elaborado por militantes do grupo Panteras Negras na dé cada de 1960 Esses militantes utilizariam esse termo para especificar como se manifestava o racismo nas estruturas de organização da so ciedade e nas instituições Para os autores tratase da falha coletiva de uma organização em prover um serviço apropriado e profissional às pessoas por causa de sua cor cultura ou origem étnica GUIA DE ENFRENTAMENTO p 11 Para Eurico 2013 o racismo institucional corresponde a ações e operações discriminatórias que podem ser realizadas por profissionais de diferentes categorias em distintas instituições e que ocorrem de for ma velada É um fenômeno que perpassa diversas relações sociais não podendo ser de responsabilidade de um único sujeito Ele se expressa no acesso à escola ao mercado de trabalho à saúde aos direitos de crianças e adolescentes e na criação de políticas públicas que desconsi deram as particularidades étnicoraciais e na reprodução de ações que reforçam o racismo O racismo institucional possui duas dimensões a políticaprogramática e a das relações interpessoais A primeira se ex pressa por meio das ações que inviabilizam a formulação de políticas públicas que atenderiam as particularidades étnicoraciais enquanto no segundo caso se expressa no decorrer das relações estabelecidas 1106 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça entre gestores trabalhadores e usuários das políticas Uma relação discriminatória mas que é sofistica pois demanda análise cuidadosa para compreender o que está sendo estabelecido EURICO 2013 CONSIDERAÇÕES FINAIS A trajetória construída neste estudo nos permite tecer algumas considerações importantes mas tendo a certeza de que essas não estão totalmente finalizadas Em primeiro lugar conseguimos afirmar que a política direcionada a infância no Brasil gênese trajetória de consti tuição amadurecimento até sua cristalização tal como verificamos nos dias atuais também faz parte das estratégias do capital de manuten ção das taxas de lucratividade em ascensão ampliação de domínios territoriais luta contra a ameaça comunista e controle dos pobres RIZZINI 2004 No Brasil essa dinâmica ocorreu de forma sofisticada A existên cia de segmentos desassistidos os quais eram objeto de abordagem da filantropia e da caridade passam a ser integrados pelo Estado sob a justificativa de proteção e são tratados ainda com mais violência E isso ocorre ao mesmo tempo em que as refrações da questão so cial passam a ser institucionalizadas pelo Estado brasileiro a partir de um tensionamento por parte da classe trabalhadora que lutou para que anseios e necessidades pudessem ser atendidos Essas necessida des passaram a ser introjetadas pelo Estado e devolvidas à população por meio da conformação de políticas sociais CERQUEIRA FILHO 1982 A atuação desse Estado sob os filhos da classe trabalhadora segue a mesma lógica mecanismo para atingir o consenso o controle e a pacificação O caráter de sofisticação se evidencia quando verificamos que esse Estado buscar atuar de forma antecipada sobre esse segmen to ao ofertar serviços aos filhos da classe trabalhadora Era necessá rio formatar enquadrar preparar e modelar os futuros trabalhadores para atender as necessidades da acumulação No Brasil isso era algo extremamente importante tendo em vista que era um país em proces so de construção de identidade enquanto Nação com uma proposta políticoeconômica de desenvolvimento em curso e que precisava de Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1107 alguma maneira obter visibilidade para se manter aliado ao capital es trangeiro NETTO 1990 FERNANDES 1981 Mostrar que era uma Nação que detia o controle e que estava construindo um determinado tipo de cidadão foi uma das estraté gias adotadas pelo Estado brasileiro sobretudo com a disseminação de discursos falaciosos e segregacionistas de que as famílias pobres não eram aptas para cuidar de seus filhos promovendo a desestruturação das famílias através do isolamento social das crianças e adolescentes em instituições da abordagem truculenta do Estado e do estabeleci mento de todas as formas de violências nesses locais Danos irrepa ráveis na vida das crianças e suas famílias os quais não conseguiram mais se aglutinar para reconstruir os laços de afetividade e amor Esse aspecto é muito importante de problematizarmos pois é o calcanhar de Aquiles da política direcionada à infância no Brasil atualmente Vivemos um momento de romper a convivência com as famílias e agora verificando que essa não é a solução para findar as questões que aparecem nesse campo tentamos retomar esse convívio porém com grandes dificuldades e limitações ALTOÉ 2008 Como podemos verificar com nosso estudo o saldo dessa conta foi a violação de direitos e a conformação de um Estado com uma pro le numerosa controlada e pacificada mas que passou a ser enjeitada quando os objetivos não estavam sendo alcançados Nosso estudo no entanto demonstrou ainda que a regulação de normativa é insuficiente e que caminhou ao lado da ideia de proteção cuidado e do entendimento de que a criança é um sujeito de direitos O processo de construção do Estatuto também foi perpassado por lu tas e entraves os quais resultaram na conformação de uma norma de caráter ambíguo E isso demandou que alterações fossem introjetadas no ECA na tentativa de readequálo buscando atender anseios que não haviam sido incorporados na normativa bem como as mudan ças socioculturais que a sociedade brasileira estava enfrentando ECA 1990 Por isso conseguimos mostrar nesse estudo quais foram essas mudanças sendo consideradas as mais importantes aquelas que ocor reram no ano de 2009 pois nela estavam contidas aspectos referentes ao respeito da condição econômica a orientação sexual e religiosa 1108 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça assim como a condição civil das famílias das crianças em situação de acolhimento e dos sujeitos que estivessem dispostos a adotar Outro aspecto fundamental foi a não criminalização da mãe que deseja doar seu filho Com isso podemos inferir que se coloca um esforço real para enfrentar a perspectiva do acolhimento como única alternativa para crianças e adolescentes bem como representa uma tentativa de que bra de paradigma de cunho conservador e violador de direitos Essas mudanças não acontecem de forma linear e rápida E a construção do perfil de crianças e adolescentes neste trabalho nos permitiu verificar que a adoção de medida de acolhimento tem resul tado em um número grande de crianças e adolescentes em abrigos no Brasil Nosso estudo demonstrou ainda que essas crianças pertencem a um grupo determinado segundo variáveis sexo raçaetnia e condi ção socioeconômica bem como observamos que as famílias não estão conseguindo retomar o convívio com seus filhos que continuam sob a falsa tutela do Estado É nesse contexto que o PNCFC é implementado como alternati va aos acolhimentos Verificamos que só a construção e regulação de normativas apesar de medida crucial para a materialização dos direi tos não se coloca como suficiente para que tais direitos se realizem Isso é tão latente que nosso olhar sobre DC demonstrou o quanto as violações de direitos permanecem ocorrendo Mas compreender esses aspectos não foi uma tarefa fácil O ama durecimento intelectual obtido nesse estudo foi mediado também por dificuldades Dentre eles podemos salientar o pouco ou quase nenhum registro em forma de documentação arquivos estudos e sistematiza ção desse processo os quais reflitam a realidade da política social dire cionada à infância no Brasil e principalmente do município de Duque de Caxias Abordando especificamente este município os desafios fo ram maiores pois além de inexistir material que aborde essa temática nos deparamos com sites oficias que não apresentavam informações confiáveis documentos oficiais incompletos além de notar a ausência de muitas informações Depararnos com esse desafio nos remeteu a problematizar que isso é reflexo também do lugar ocupado pelas crianças e adolescentes no processo de construção da política social que os contempla Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1109 Este estudo nos permitiu inferir que o lugar da política da in fância e do adolescente no Brasil é de subalternidade e é constituída com a finalidade de isolar controlar e contribuir para manutenção do status quo vigente Colocase ainda como um dos mecanismos de pulverização da classe trabalhadora impedindo sua articulação para o enfrentamento da realidade luta pela ampliação de direitos já con quistados e por novos direitos O Estado passa a viabilizar na forma de serviços aqueles direitos em sua modalidade básica Nos termos de Motta 2010 política pobre direcionada aos pobres A ausência de tensionamento por parte da classe trabalhadora face ao Estado pode resultar na falta total de serviços dessa modalidade Se acirra no Brasil a conjuntura atual de avanço da ofensiva do capital consubstanciada como uma onda neoliberal BHERING 1993 Toda essa dinâmica que ocorre em âmbito nacional repercute de forma paulatina nos estados e municípios do país Esses apresentam suas particularidades regionais bem como disputas políticas que po dem influenciar positiva ou negativamente a configuração das políti cas direcionadas à infância nesses locais Em outros termos podemos afirmar que as disputas pelo orçamento público que deve ser direcio nado as políticas para à infância e adolescência ocorrem de forma dis tinta de como ocorre em âmbito nacional mesmo sendo um reflexo daquela realidade Da mesma maneira o cumprimento das normativas incorporação nos estados e municípios ocorre em consonância com as relações sociais que se estabelecem naquele local É por isso que conseguimos compreender por que em determi nados estados e municípios a política pública direcionada à infância a exemplo dos abrigos atende às normativas e oferece serviços de acordo com os princípios e diretrizes do Estatuto enquanto em ou tros municípios não ocorre da mesma maneira Tratase de política pública mediada por disputas políticas e econômicas e que atendem um projeto social conservador Nosso estudo consegue nos mostrar que é por esse motivo que o PNCFC é elaborado a fim de reafirmar as normativas existentes mas ampliado alguns conceitos e modificando diretrizes com vistas a ampliação de direitos sociais tal como já foi problematizado anterior mente Todavia não podemos cair na armadilha onde as normativas permanecem somente no campo formal jurídico mas devemos sim lutar para que elas se concretizem em nossa realidade cotidiana E essa 1110 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça não é uma expressão fácil de resolver PNCFC 2006 O Plano sobre nossa análise deve ser considerado como uma estratégia importante de enfrentamento do processo de institucionali zação de crianças e adolescentes que é estrutural no Brasil Este aliado às adoções legais e as reintegrações se coloca como estratégia viável de mudança cultural no campo dos direitos da criança e dos adoles centes sobretudo quando problematizamos o direito de convivência familiar Contudo é necessário adotar algumas medidas importantes para que o sonho se realize dentre elas lutar pelo fortalecimento e materia lização do Projeto Ético Político do Serviço Social PEP consubstan ciado na Lei de Regulamentação Profissional nas diretrizes curricula res e no Código de Ética bem como lutar por outro projeto societário a fim de enfrentar essa realidade bárbara e violenta sobretudo para as crianças e os adolescentes Outra ferramenta importante nesse processo é a capacitação continuada de todos os profissionais que atuam nos abrigos inclusive os assistentes sociais tendo em vista que é um mecanismo que nos permite compreender essa realidade e saltar de uma atuação pauta da no senso comum para aquela vinculada a uma perspectiva teórica crítica baseada nas normativas e que almeja ofertar serviço pautado na qualidade universalidade e sob a lógica do direito CFESS 1993 É necessário ainda sistematizar essa realidade perpassada por tantas complexidades com o intuito de oferecer subsídios para reflexão problematização e busca de alternativas em face da violação dos direitos sociais Ter ainda a compreensão de que a perspectiva intersetorial se coloca também como alternativa de enfrentamento dessa realidade assim como a análise crítica de que as relações de gênero e a questão étnicoracial perpassam e tensionam o campo dos direitos da criança e do adolescente e sua vida cotidiana nos abrigos é algo crucial tanto que em outro momento serão devidamente aprofundados O PNCFC é um norte importante na caminhada de devolver as crianças e ado lescentes tuteladas pelo Estado a suas famílias mas precisa de esforço capacitação dedicação articulação política com nossos pares nessa caminhada para que efetivamente esse direito seja concretizado Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1111 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARANTES E M M Rostos de crianças In RIZINI I e PILOTTI F A arte de governar as crianças a história das politicas sociais da legislação e da assistência e da infância no Brasil 2º Ed São Paulo Cortez 2009 BRASIL Constituição da República Federativa de 1988 Estatuto da criança e do adolescente 1990 Política Nacional de Assistência Social 2004 Plano Nacional de Promoção Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária Brasília Secretaria Especial dos Direitos Humanos Ministério do De senvolvimento Social e Combate à Fome 2006 EURICO M C A percepção do assistente social acerca do racismo institucional In Serviço Social e Sociedade São Paulo Editora Cor tez n114 p 290308abril junho 2013 RIZZINI I PILOTTI F A arte de governar as crianças a histó ria das políticas sociais da legislação e da assistência à infância no Brasil São Paulo Cortez 2009 SARAIVA V C S Reflexões sobre a medida de acolhimento insti tucional e o direito de convivência familiar em Duque de Caxias Fl 121 2017 TCC Especialização em Políticas Sociais e Intersetoriali dade Instituto Nacional de Saúde da Mulher da Criança e do Adoles cente Fernandes Figueira Fundação Oswaldo Cruz FIOCRUZ 2017 WACQUANT L Punir os pobres a nova forma de gestão da misé ria nos Estados Unidos Rio de Janeiro Revan 2001 HEMEROGRAFIA Orientações técnicas serviços de acolhimento para crianças e ado lescentes CONANDA CNAS Brasília 2009 Cadastro Nacional de Adoção CNA Disponível em httpwwwadocaobrasilcombrca dastronacionaladocao Acesso em 06 de abril de 2017 ALMEIDA M S Diversidade humana e racismo notas para um debate radical no serviço social Argum Vitória v 9 n 1 p 3245 janabr 2017 httpwwwperiodicosufesbrargumentumarticle view15764 Acesso em 26 de novembro de 2017 1112 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Cadastro Nacional de Crianças Acolhidas Disponível em http wwwcnjjusbrsistemasinfanciaejuventude20545cadastronacio naldecriancasacolhidascnca Acesso em 06 de abril de 2017 Convenção sobre os direitos da criança Decreto no 99710 de 21 de novembro de 1990 Acesso em httpwwwplanaltogovbrccivil03 decreto19901994d99710htm Acesso em 16 de abril de 2017 Estatuto da Igualdade Racial Disponível em httpwwwplanalto govbrccivil03Ato200720102010LeiL12288htm Acesso em 18 de novembro de 2017 Guia de enfrentamento do Racismo Institucional Disponível em httpwwwonumulheresorgbrwpcontentuploads201312 Guiadeenfrentamentoaoracismoinstitucionalpdf Acesso em 18 de novembro de 2017 Lei nº 12010 de 3 de agosto de 2009 Disponível em http wwwplanaltogovbrccivil03ato200720102009lei l12010htm Acesso em 05 de outubro de 2017 ROCHA R Assistente Social no combate ao preconceito Disponí vel em httpwwwcfessorgbrarquivosCFESSCaderno03Racis moSitepdf Acesso em 24 de outubro de 2017 1113 BLACK PORN UM BREVE ENSAIO SOBRE A REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES NEGRAS NA PORNOGRAFIA HETEROSSEXUAL E INTERRACIAL Raisa Duarte da Silva Ribeiro354 Lara Campos de Paulo355 Resumo O presente trabalho consiste em uma análise da represen tação estigmatizada da mulher negra na indústria pornográfica inter racial onde é possível observar uma dupla violência de gênero e de raça Para tal observação lançaremos um olhar sobre o conceito de pornografia e também sobre algumas definições e modalidades de vio lência de gênero Palavraschave Violência de Gênero Racismo Pornografia Mulher negra INTRODUÇÃO A pornografia tem sido frequentemente utilizada nas sociedades oci dentais como objeto de prazer Não obstante ela traz consigo um dis 354 Mestre em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense Pós Graduada em Direitos Humanos pela Universidade de Coimbra Professora de Direito Constitucional da Universidade Veiga de Almeida Email raisaribei rohotmailcom 355 Estudante de Graduação de Direito da Universidade Veiga de Almeida Moni tora da disciplina Teorias da Constituição Integrante de projeto de iniciação científica na mesma Instituição Email camposlaraoutlookcom 1114 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça curso político que gera e constrói ideais e ideias no corpo social Esse discurso constitutivo é embasado no primado da dominação mascu lina e da subalternidade feminina provocando e naturalizando a vio lência de gênero A evolução dos meios cinematográficos trouxe à pornografia não só a necessidade de atores reais para a sua produção mas a intensifica ção da configuração da violência de gênero em sua produção execu ção reprodução comercialização e consumo O presente artigo possui por objetivo analisar um segmento espe cífico da pornografia a pornografia interracial e de forma mais espe cífica os atos de agressão sofridos pela mulher negra nessa categoria pornográfica tornando assim evidente o assédio e os atos de agressão face a estas Para tanto o presente trabalho se estrutura em dois pilares Em um primeiro momento a observação do conceito de pornografia con vencional heterossexual e como a sua realização e consumo produzem e naturalizam a violência de gênero seja física psicológica sexual pa trimonial eou moral Em um segundo momento investigase a pornografia interra cial e suas ocorrências abordando então de maneira mais direcio nada a análise da pornografia interracial que possui a mulher ne gra como um de seus atores Dessa forma pretendese expor a dupla violência de gênero e racial a qual a mulher negra é submetida na indústria pornográfica 1 PORNOGRAFIA E VIOLÊNCIA DE GÊNERO A pornografia consiste na gráfica representação das mulheres como prostitutas vis Dworkin 1989 p 200 que pode ser exibida não apenas por escritas gravuras ou desenhos como o termo graphien sugere mas também e principalmente com a evolução tecnoló gica através da utilização de câmeras e mulheres reais para a sua confecção De forma geral a pornografia tradicional pode ser definida como a exibição gráfica de materiais sexuais nos quais a sexualidade femi Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1115 nina seja mostrada de forma subalterna e haja a degradação de mu lheres deflagrada através de comportamentos agressivos abusivos e degradantes em um contexto de dominação masculina de maneira que se pareça endossar encorajar ou normalizar a violência de gênero Ribeiro 2017 p 4849 A pornografia tanto em razão da sua produção quanto em razão de seu consumo gera violência de gênero face às mulheres Ribeiro 2017 p 136183 A violência de gênero pode ser verificada através de diversas condutas e formar de agir diferenciadas podendo ser clas sificada como violência física psicológica sexual patrimonial eou moral356 A violência física pode ser entendida como qualquer conduta ou ato corporal que ofenda a integridade ou a saúde física da vítima Este tipo de violência costuma ser identificada de forma mais notória em razão de deixar marcas nos corpos das mulheres357 A violência psicológica pode ser entendida como qualquer con duta que cause dano emocional que diminua a autoestima que preju dique ou perturbe o pleno desenvolvimento de sua vítima ou que vise degradar ou controlar suas ações comportamentos decisões e cren ças A violência psicológica pode ocorrer mediante ameaça constran gimento humilhação manipulação isolamento vigilância constante perseguição ridicularização e limitação do direito de locomoção ou qualquer outro meio que cause prejuízo a saúde psicológica e a auto determinação de suas vítimas358 Na pornografia a violência psicológica é visualizada com a esco lha do perfil das vítimas com a exibição das mulheres como objetos sexuais desumanizados coisas ou bens de consumo fragmentadas de seu corpo com a padronização dos comportamentos sexuais359 356 Esta classificação de violência de gênero foi retirada da lei nº 1134006 co nhecida como Lei Maria da Penha que visa coibir atos de violência doméstica e familiar contra a mulher Apesar de ter um âmbito de aplicação restrito as formas de violência ali definidas podem ser expandidas para todas as formas de violência de gênero 357 Conceito extraído do artigo 7º I da Lei nº 1134006 358 Conceito extraído do artigo 7º II da Lei nº 1134006 359 Acercados scripts sexuais vide DWORKIN 1989 p xv MACKINNON 1996 p 05 DINES Gail 2010 p xviv 1116 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Outra forma de violência de gênero consiste na violência sexual que pode ser facilmente identificada na pornografia também com a padronização dos comportamentos sexuais e com a utilização do di nheiro como forma de consensualidade Esta forma de violência referese à utilização de forma que limi tem ou anulem a sexualidade das vítimas Pode ser entendida como qualquer conduta que venha a constranger a vítima a presenciar man ter ou participar de relação sexual não desejada ou que a induza a comercializar ou utilizar de qualquer forma a sua sexualidade ou que a impeça de utilizar método contraceptivo ou que force ao matrimô nio à gravidez ou ao aborto ou ainda que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais ou reprodutivos A violência sexual pode ser realizada através da utilização de intimação ameaça coação ou uso da força Ou ainda mediante chantagem suborno ou manipulação360 A violência patrimonial se refere às condutas que configurem retenção subtração destruição total ou parcial dos objetos instru mentos de trabalho documentos pessoais bens valores direitos ou recursos econômicos de suas vítimas incluindo aqueles que sejam ne cessários para satisfazerem as suas necessidades361 Na confecção da pornografia a violência patrimonial também pode ser observada em alguns momentos quando ocorre a retenção do dinheiro das mulheres ou de seus documentos por seus agencia dores a escolha da destinação de seus rendimentos para a compra específica de produtos e alterações de seus corpos entre outros com portamentos E a violência moral referese a qualquer conduta no sentido de imputar falsamente fato definido como crime362 ou imputar fato ofen sivo à reputação da vítima363 ou ainda ofender a sua dignidade ou decoro364 Na realização da pornografia a exibição da sexualidade femini na é majoritariamente feita de forma subalterna o que ofende a sua 360 Conceito extraído do artigo 7º III da Lei nº 1134006 361 Conceito extraído do artigo 7º IV da Lei nº 1134006 362 Conduta tipificada como calúnia nos termos do artigo 138 do Código Penal Brasileiro 363 Conduta tipificada como difamação nos termos do artigo 139 do Código Pe nal Brasileiro 364 Conceito extraído do artigo 7º V da Lei nº 1134006 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1117 dignidade sendo configurada também a violência moral Nessa in dústria o prazer masculino é a única coisa que está em jogo assim que o homem ejacula a relação sexual é findada o orgasmo feminino exuberante e de proporções grotescas apenas existe para corroborar a ideia da virilidade masculina Dines 2010 p xviv Observamos que na pornografia essas modalidades de violência de gênero podem ocorrer de forma cumulativa ou separadamente Frequentemente observamos nos materiais pornográficos uma ou mais condutas de violência Catherine MacKinnon afirma que a pornografia também gera efeitos negativos na vida das mulheres em razão do seu consumo e que a pornografia gera intrusão mental inconsciente e manipulação fí sica em seus consumidores365 Por ser uma fonte de excitação e por ser utilizada pela maioria dos seus consumidores como materiais de mas turbação a naturalização da violência pode ser visualizada na prática tornandose os consumidores mais propensos a quererem reproduzir na vida real aquilo que eles aprenderam com a indústria pornográfi ca366 A pornografia é uma prática discursiva constitutiva ou seja o discurso externalizado pelos materiais pornográficos constroem reali dades sociais Mackinnon 1996 p 15 Todo discurso de forma cons ciente ou não possui objetivos específicos Austin 1990 p 21 e ss 367 O discurso pornográfico por sua vez transmite uma ideia sobre os gêneros e a sexualidade tendo como consequência a perpetuação da lógica da dominação masculina368 369 365 366 367 No ambito da filosofia da linguagem J L Austin trouxe a noção de atos de fala como atos perfomativos rompendo com a superação tradicional entre atos perfomartivos e atos constatativos Segundo o autor a linguagem é um feno meno capaz de interferer e modificar a realidade nao podendo ser vista apenas como um instituto meramente descritivo Nesse sentido AUSTIN 1990 p 21 e ss 368 De acordo com Andrea Dworkin a pornografia é o DNA da dominação mas culine que funciona através do fortalecimento de dogmas estruturantes como a autoafirmação metafísica a força física a capacidade de aterrorizar o po der de nomear o poder de possuir o poder do dinheiro e o poder do sexo DWORKIN 1989 pp 1347 369 Mais sobre a dominação masculina vide BOURDIEU 2002 1118 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 2 PORNOGRAFIA INTERRACIAL MULHER NEGRA E A DUPLA CONFIGURAÇÃO DA VIOLÊNCIA A categorização do material pornográfico é produzida para que o con sumidor encontre de forma direta o conteúdo que lhe agrada Dentro dessa divisão múltipla e variada encontrase em ascensão a categoria pornografia interracial370 de modo que o relacionamento inter racial também é tema popularmente explorado pelos produtores de pornografia O pornô interracial é construído a partir da contraposição de et nias Tratase de um conteúdo protagonizado por indivíduos de dife rentes etnias específicas se relacionando sexualmente em cena Dessa forma a utilização dos estereótipos sociais é central na formulação e desenvolvimento da trama exposta No pornô interracial o indivíduo é incumbido de sustentar o rótulo seja ele discriminatório ou não imposto às suas características étnicas sua cor Inicialmente cabe ressaltar que o mercado pornográfico é o úni co no qual a contratação do indivíduo por sua cor não é compreendida como ato discriminatório371 No entanto esse atributo se trata de um elemento utilizado parte do processo de racialização da sexualidade sendo um ato claramente discriminatório e ilegal É também observável nesta categoria que apesar de se com preender o pornô interracial como variedade de etnias na prática observamos a presença recorrente do homem negro e de uma mulher branca Dines 2010 p 122 e NETFLIX 2017 O destaque no pornô interracial é massivamente dado a combinação de homens negros e mulheres brancas frequentemente loiras Dines 2010 p122 É o homem negro então o personagem mais comumente reduzi do ao tamanho de seu pênis sempre hiperdimensionado372 e de seu 370 É válido ressaltar que o presente trabalho tem por objetivo analisar o pornô interracial heterossexual 371 Nesse sentido salienta o documentário exibido na Netflix sobre a pornografia amadora Vide Hot Girls Wanted Turned OnJill Bauer Ronna Gradus Rashi da Jones Netflix 2017 372 É comum material pornográfico com homens negros intitulados ou que se utilizam de falas trocadilhos que hiperdimensionem o órgão masculino ou que desmonstrem uma postura incontrolável do homem negro tais como O enor me pau negro Blackzilla Anaconda Negra Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1119 apetite sexual biologicamente incontrolável São os homens negros os personagens retratados como monstros em seu incontrolável de sejo por mulheres brancas Dines 2010 p122 Nesse sentido Gail Dines salienta que todos no pornô são retratados como nada mais que uma genitália ambulante procurando por penetração e orgasmo Mas até mesmo nesse mundo homens negros são mais redu zidos ao tamanho do de seus pênis que qualquer outro grupo de homens porque a ação gira em torno do o grande pinto negro que não pode ter buceta branca o suficiente Descrito como imenso enorme monstruoso gigante e inacredi tável com uma entediante monotonia o pênis negro é filmado de todos os ângulos para dar ao usuário do pornô uma imagem clara de seu tamanho e cor A performance pornô mascu lina é como a maioria dos homens no gonzo retratados com falta de empatia e completamente desinteressado na dor e no desconforto causado para mulher Enquanto esse tipo de com portamento reduz os homens no gonzo para robores para o homem negro isso é descrito como parte de sua característica biologia e consequentemente carrega o peso de autenticidade DINES 2010 p136 O estereótipo do indivíduo é também utilizado na retratação da comunidade asiática por exemplo Nesse contexto a mulher é retra tada de forma subserviente e tem aspectos físicos e comportamentais infantilizados enquanto o homem asiático é retratado como sendo se xualmente ausente Dines 2010 p124 ideia reforçada pela prefe rência das mulheres asiáticas por homens brancos373 Observamos que a pornografia pode ser fonte de perpetuação a desigualdade de gênero e incitando a desigualdade racial Nesse senti do cabe salientar os dizeres de Diana Russell As mulheres na pornografia são as primeiras vítimas da pornografia Os pornografistas não as mulheres que eles ferem 373 Gail Dines observa que os homens asiáticos também são representados de maneira similar a mulher asiática como inocentes pequenos DINES Gail Obj Cit 2010 p131 1120 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça são responsáveis pela pornografia Os homens que compram e utilizam a pornografia são responsáveis pela pornografia não as mulheres que são violadas para fazer o produto que eles gostam E a sociedade que protege a pornografia é responsável pela pornografia as cortes que valorizam o então chamado direitos dos pornografistas sobre a humanidade a dignidade o direito civil de igualdade das mulheres as editoras e os escritores que continuam protegendo o tráfico de mulheres como se a violação comercial das mulheres fossem uma direito básico da publicação os juízes os políticos a mídia que congregam para entoar ladainhas de autojustiça em adoração a Constituição enquanto mulheres são estupradas por diversão e lucro sob proteção da Constituição RUSSEL 1993 p82 No entanto assim como ocorre nas demais esferas sociais é a mulher negra que ocupa a posição mais afetada pela indústria porno gráfica A mulher a negra é o extrato culminante dos danos causados pela pornografia Ora a cor negra é vista como sendo fonte de uma hipersexuali dade uma combinação explosiva mais excitante que os conteúdos co muns ou o sexo branco Dines 2010 p128 e sempre destacada seja por títulos ou falas quando presentes no conteúdo apresentado NET FLIX 2017 A característica animalesca não é então uma exclusivi dade masculina Na indústria pornográfica mais especificamente no pornô interracial a mulher negra é uma personagem hiperssexualiza também coberta pela bestialidade mas que ao contrário do que acon tece com o homem negro não domina mas deve ser dominada A ela a mulher negra falta a tradicional qualidade feminina de submissão Dines 2010 p126 Sendo assim além das diferentes formas de violência de gêne ro verificadas também face a mulheres brancas como tapas puxões de cabelo entre outros observase com relação às mulheres negras a utilização de termos pejorativos que a reduzem e ridicularizam374 374 É comum no pornô interracial a caracterização da mulher negra como ne graneguinhanegona safada vadia preta preta gulosa negrapreta peitu dabunduda Termos pejorativos que se utilizam de características do fenótipo da mulher negra para ridicularizála O fato foi observado em sites de material pornográfico tais como XVideos que na categoria Mulher negra apresenta inúmeros conteúdos que se utilizam dos termos pejorativos citados como títu Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1121 Também observamos a submissão de mulheres negras em atos sexuais contra a sua vontade375 uma nova característica é notada na violência sofrida pela mulher negra há ali nas entrelinhas o dever do homem de controlar civilizar domar a mulher negra A violência passa a ocorrer não somente devido a sua condição de mulher mas também em razão de ser negra Um novo protagonista então entra em cena a violência racial Nesse contexto observase que a situação da mulher negra na pornografia é ainda mais violenta do que a situação das mulheres de outras etnias Conforme salientado por Alice Walker onde mulheres brancas são retratadas na pornografia como objetos mulheres ne gras são retratadas como animais Onde mulheres brancas são retrata das como pelo menos corpos humanos se não seres mulheres negras são retratadas como merda Walker 1984 p103 apud Russel 1993 p100 Observase então que além da sexualização do desconforto femi nino há no pornô interracial a sexualização da discriminação contra a mulher negra É a mulher negra quem paga o preço mais alto pela es tigmatização característica do cenário pornográfico É inequívoco que na indústria pornográfica a mulher é submetida a um processo com pulsório de objetificação contudo é também visível quem quando se trata de mulher negra esse processo é acrescido de um enquadramen to que a animaliza Diana Russell Russel 1993 p 101 observa que a raça se torna um fator que vai ditar o tipo de objetificação à qual será submetida esta mulher Em cena tornase possível então reduzir a mulher negra a um comportamento similar aos dos animais um entendimento carac terístico do século XIX na Europa e Estados Unidos Nesse período comparavase a mulher negra aos primatas como se observa em um texto antropológico publicado em 1878 los ou como uma fala repetida durante a cena 375 Observase que a mulher negra em cena geralmente encontrase em posições nas quais é controlada de joelhos apoiada sobre os braços de costas sendo agredida por puxões de cabelo empurrões na cabeça gestos que objetivam manter essa servido sob domínio de quem a controla 1122 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Ela tinha uma forma de colocar os lábios exatamente igual a que eu havia observado no orangotango Os movimentos dela tinham algo abrupto e fantástico lembrando alguns daqueles macacos Sua orelha era como a de muitos macacos Essas são características animais Eu nunca vi uma cabeça humana como a de um macaco como a dessa mulher HALPIN 1989 apud MACKINNON 1996 p102 No pornô iniciase um novo processo civilizatório da mulher negra A mulher negra é apresentada como tendo uma sexualidade particularmente excessiva e incontrolável que leva o um homem de verdade seja ele negro ou branco a controlálo Dines 2010 p127 O darwinismo social também está presente nas representações dis cursivas do mercado pornográfico interracial É no comportamento agressivo perigoso animalesco da mulher negra na falta da tradi cional característica feminina de submissão Dines 2010 p126 que os produtores pornográficos fazem repousar o teor realístico do con teúdo pornô Ali se faz crer não haver a interpretação de algo mas a réplica da mulher negra Essa análise lança luz sobre uma estranha realidade a violência racial é certamente contextual O ambiente pornográfico funciona como uma lente anulatória da violência de gênero e racial sofrida pela mulher negra tornando comum a linguagem gestos e injúrias a ela atribuídas A não assunção da violência a qual a mulher negra é submetida na indústria pornô age como uma forma admissível de se praticar e promover convicções ideológicas sociopolíticas discriminatórias A sexualização do racis mo o torna aceitável Nesse contexto salienta Gail Dines Essa é uma forma poderosa de se entregar ideologia racista não faz só visível a suporta devassidão sexual de um determinado grupo mas também sexualiza o racismo em modos que fazem o racismo atual invisível na mente da maioria dos consumido res e não consumidores Esse é o porquê Dom Imus376 foi demi tido e porque pornógrafos enriquecem DINES 2010 p140 376 Radialista estado unidense demitido em 2007 depois de ter ofendido jogadoras negras de basquete chamandoas de putas de cabelo sujo e espesso Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1123 O cenário pornográfico interracial perpetua a história da mulher negra escravizada acorrentada sem modos primitiva e objeto para satisfação do homem branco tendo em vista que a maioria das ce nas protagonizadas por mulheres negras contém um ou mais homens brancos a penetrando Russel1993 p99 Se na violência de gênero a violência psicológica reduz a condição de indivíduo na violência racial contra a mulher negra essa condição é usurpada de forma de finitiva Como observa Gail Dines 2010 p128 a imagem hipersexuali zada da mulher negra faz com que essa seja desejada de uma maneira específica numa sociedade na qual o padrão de beleza é racista Há então como o enquadramento das mulheres negras como bestas sexuais a perpetuação da ideia de um indivíduo em posição de desi gualdade com relação aos demais377 destruindo sua posição social e reputação Mackinnon 1996 p56 A inferiorização financeira378 psicológica social física a qual a mulher negra é submetida no mercado da pornografia interracial en sina que mulheres negras não são parceiras sexuais mas objetos que num movimento semelhante ao do período escravocrata são usados para o prazer do homem geralmente branco CONCLUSÃO A pornografia enquanto a exibição de mulheres como prostitu tas vis é uma prática antiga Com o passar do tempo a remodelação da produção pornográfica na sociedade ocidental tem colocado em prática ferramentas de aperfeiçoamento para exprimir a ideia de com prometimento com a realidade do sexo Apesar da evolução técnica na produção da pornografia observouse contudo a permanência de um conteúdo majoritário baseado na ideia retrógrada de submissão feminina diante a figura do homem e é nessa contraposição de papéis que a violência de gênero passa a protagonizar a cena 377 Fato destacados por Luisa Teish em 1980 ao observar que a indústria por nográfica retrata a mulher negra como feia sádica e animalesca indigna de afeição humana apud RUSSEL 1993 p 167 378 Como na sociedade em geral mulheres negras geralmente ganham menos que mulheres brancas pelos mesmo atos e cenas observa Gail Dines DINES 2010 p126 1124 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Na indústria pornográfica há a normalização da violência de gê nero e suas especificidades tais como a violência psicológica moral e ou patrimonial física entre outras espécies configuradas em face da mulher No entanto observase que o processo de sexualização da vio lência não ocorre somente sobre a violência de gênero mas também sobre a violência racial Nesse contexto no pornô interracial verificase a hipersexuali zação da cor negra Desse modo é visível na indústria pornográfica de forma ainda mais especifica no pornô interracial o processo de animalização sofrida pela etnia negra Enquanto ao homem negro é atribuído uma característica selvagem de uma libido interminável e um desejo sexual incontrolável insaciável à mulher é caracterizada com uma postura bestial de mulher indomável agressiva perigosa animalesca É a mulher negra portanto sendo o indivíduo mais pre judicado dentro da comunidade negra pelo processo de estigmatiza ção imposta pela indústria pornográfica heterossexual e interracial Fundamentandose em ideologias discriminatórias o pornô heterossexual interracial exprime como realidade uma imagem es tigmatizada da mulher negra reproduzindo e perpetuando uma in terpretação discriminatória O mercado pornográfico reproduz uma ideia colonialista perpetuando na sociedade contemporânea os ideais de uma sociedade provinciana escravocrata Fundamentandose e re produzindo uma ideia execrável e primitiva a indústria pornográfica continua a promovendo a manutenção da representação de um tipo de feminilidade de cor negra e animalesca a qual chamam de mulher negra REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AUSTIN J L Quando Dizer é Fazer Palavras e Ação Porto Alegre Editora Artes Médicas 1990 BOURDIEU Pierre A dominação masculina Tradução de Maria Helena Kuhner Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2002 BOZON Michel Sociologia da Sexualidade Tradução de Maria de Lourdes Menezes Rio de Janeiro Editora FGV 2004 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1125 BRASIL Lei nº 11340 07 de Agosto de 2006 Disponível em http wwwplanaltogovbrccivil03ato200420062006leil11340htm Último Acesso em 01 mai 2017 BRETON David Le A Sociologia do Corpo 2ª edição Tradução de Sonia M S Fuhrmann Petrópolis RJ Vozes 2007 CULTURE REFRAMED Available in httpwwwculturereframed orgthecrisis Acesso em 01 jun 2016 DINES Gail Pornland How Porn Has Hijacked Our Sexuality Boston Beacon Press 2010 DWORKIN Andrea Pornography Men Possessing Women Pen guin Group 1989 DWORKIN Andrea R MACKINNON Catharine A 1989 Porno graphy and Civil Rights a New Day for Womens Equality Min neapolis Organizing Against Pornography MACKINNON Catharine Toward a feminist theory of the state Cambridge Massachusetts London England Harvard University Press 1989 Pornography Civil Rights and Speech In ITZIN Ca therine Org Pornography Women Violence and Civil Libertities Ozford University Press 1992 Only Words Cambridge Massachusetts Harvard University Press 1996 RIBEIRO Raisa Duarte da Silva Discurso de ódio violência de gê nero e pornografia entre a liberdade de expressão e a igualdade Rio de Janeiro Editora Multifoco 2017 RUSSEL Diana Against pornography the evidence of Harm Ber keley California Russell Publications 1994 Making Violence Sexy Feminist Views On Pornogra phy New York NY Teacher College Press 1993 Hot Girls Wanted Turned On Jill Bauer Ronna Gra dus Rashida Jones Publicado por NETFLIX 2017 No text content extracted from this image Parte VIII DEMOCRATIZAÇÃO DO SISTEMA DE JUSTIÇA GÊNERO E FEMINISMOS CIRCULAR 2023 NOTICE N 022023 IHU IAS IPB PORTARIA RS N 0452023 The Symposia of the IHU International Humanities Institute in 2023 will be Global Geographies of Justice 3rd Virtual FIJ Meeting and Fourth ICCE International Congress Organizing Institutions CAAE 45279121000005565 INTERNATIONAL HUMANITIES INSTITUTE HUMANITIES INSTITUTE IPB INSTITUTE PORTARIA RS No 0452023 1129 PERFIL DAS MULHERES PROCESSADAS POR ABORTO NO RIO DE JANEIRO Carolina Dzimidas Haber379 Maria Gabrielle Albuquerque Presler Cravo380 ResumoA partir da consulta aos processos em trâmite no estado do Rio de Janeiro foi possível traçar o perfil das mulheres criminalizadas pela prática de aborto Os dados coletados dizem respeito ao gênero idade ocupação cor escolaridade residência e estado civil método abortivo valor pago pelo aborto e período de gestação atuação de advogado particular ou da Defensoria Pública e outras informações sobre o processo Palavraschave perfil mulheres criminalização do aborto consulta processual 1 INTRODUÇÃO Atendendo à solicitação da Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro as autoras diretora e estagiária da Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública realizaram um levantamento de dados a partir da consulta aos processos de aborto em trâmite no estado do Rio de Janeiro com o objetivo de traçar o perfil das mulheres que são criminalizadas por esse tipo de conduta Para dar início à pesquisa solicitamos os números dos proces 379 Graduada mestra e doutora em Direito pela Universidade de São Paulo 380 Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 1130 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça sos no acervo geral do Tribunal de Justiça com os seguintes assuntos aborto provocado por terceiro art 125 e 126 CP aborto qualificado art 127 CP e aborto provocado pela gestante ou com seu consen timento art 124 CP Enquanto os dois primeiros artigos tipificam a conduta de provocar aborto com ou sem o consentimento da gestan te o último voltase à tipificação da conduta da gestante que provoca aborto em si mesma ou consente que outrem o provoque A forma qualificada prevê o aumento das penas previstas nos arts 125 e 126 em um terço se em consequência do aborto a gestante sofrer lesão corporal de natureza grave ou em dobro se ela vier a morrer A pena prevista para a conduta de provocar o aborto sem o con sentimento da gestante é de três a dez anos enquanto que com o seu consentimento é de um a quatro anos A pena prevista no art 124 voltado para a gestante é de um a três anos Todas essas modalidades são dolosas Não há previsão de prática culposa desses crimes É importante lembrar que o art 89 da Lei 909995 dispõe que nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano poderá ser proposta a suspensão condicional do processo por dois a quatro anos desde que presentes uma série de requisitos tais como ter bons antecedentes Durante o período de prova o acusado deve observar uma série de condições tais como proibição de frequentar determinados lugares proibição de se ausentar da comarca sem autorização do juiz comparecimento pessoal em juízo e não ser processado por outro crime Se ao final as condições forem cumpridas o juiz extingue a punibilidade Tanto a conduta prevista no art 126 aborto com o consentimen to da gestante quanto a prevista no art 124 dão ensejo à concessão da suspensão condicional do processo A partir do filtro do assunto o Departamento de Informações Gerenciais da Prestação Jurisdicional do Tribunal de Justiça do RJ en tregou uma planilha extraída do seu sistema em 29082017 com 136 processos O acervo geral do TJRJ é composto por todos os processos que não foram arquivados definitivamente Na lista recebida estão processos distribuídos entre 2005 e 2017 Além do número do processo há indicação da sua situação ati vo ou baixado se há segredo de justiça decretado qual é a classe do processo o assunto a competência a comarca a serventia a data da Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1131 distribuição um resumo com os personagens se tem réu preso se o processo é eletrônico e por fim se o processo foi sentenciado Um novo filtro foi aplicado à planilha pois dentre as classes indi cadas várias não diziam respeito a processos criminais para verifica ção da autoria e materialidade de crimes de aborto tais como habeas corpus alvará judicial carta precatória medidas protetivas de urgên cia processo de apuração de ato infracional etc Foram mantidas as seguintes classes ação penal de competência do júri ação penal pro cedimento ordinário e ação penal procedimento sumário Além disso foram selecionados apenas os processos com situa ção ativa excluindose os baixados já que não seria possível encon trálos em cartório para consulta Com a aplicação desses dois filtros restaram 78 processos Foi realizada uma consulta inicial ao andamento desses processos na pá gina da internet do TJRJ verificandose que quatro deles apesar de terem sido enquadrados nas classes indicadas acima diziam respeito a outro tipo de procedimento tais como pedido de autorização para interrupção de gravidez concessão de medidas protetivas ou inquéri to policial Além dos processos indicados na planilha do TJRJ a defensora pública de Belford Roxo enviou um novo que não constou no acervo geral por estar classificado com o assunto lesão corporal gravíssima e associação criminosa apesar dos réus terem sido denunciados pelo crime de aborto O universo da pesquisa portanto ficou restrito a 75 processos divididos entre as seguintes comarcas Capital 37 Barra Mansa 1 Belford Roxo 2 Cabo Frio 3 Carmo 2 Cordeiro 1 Duque de Caxias 2 Itaboraí 1 Japeri 1 Magé 1 Niterói 2 Nova Iguaçu 2 Petrópolis 1 Rio Bonito 1 São Gonçalo 3 São João do Meriti 5 São Pedro da Aldeia 1 Sapucaia 1 Teresópolis 2 Três Rios 4 Valença 1 Volta Redonda 1 Como a proposta era identificar o perfil das mulheres processa das por aborto apenas o andamento disponível na página do TJRJ não se mostrou suficiente para selecionar informações pessoais como cor escolaridade ocupação e estado civil dessas mulheres Portanto foi preciso ter acesso aos processos especialmente às peças do inquérito 1132 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça policial como as declarações prestadas na delegacia a folha de ante cedentes e o registro de vida pregressa o que foi possível com a cola boração dos defensores públicos atuantes em cada uma das comarcas mencionadas sendo que os processos da capital foram solicitados nas respectivas varas pelas pesquisadoras Foi preciso estabelecer uma data limite para recebimento dos processos e posterior elaboração do relatório sendo que até o dia 27102017 não tinham sido enviados os processos das comarcas de Magé Nova Iguaçu São Gonçalo e São Pedro da Aldeia Alguns pro cessos da capital também não foram acessados porque estavam com vista pro Ministério Público ou não foram encontrados nos dias de comparecimento aos cartórios 27 a 29092017 Ao final 20 processos não foram acessados Sendo assim 55 pro cessos 733 do total foram consultados com o intuito de preencher uma planilha com os seguintes campos a número do processo comarca serventia e data de distribui ção b quantidade de réus c gênero ocupação cor escolaridade residência estado ci vil d idade da gestante na data do fato se ela possui filhos e quan tos se já fez outros abortos o método abortivo o valor pago pelo aborto e o período de gestação e data do fato e como se deu seu conhecimento f se o réu possui antecedentes criminais e teve a prisão provi sória decretada g se houve atuação da Defensoria Pública h a fase em que se encontra o processo e se há alguma decisão judicial relevante i o relato do caso Os processos acessados foram os das seguintes comarcas Capital 33 Barra Mansa 1 Belford Roxo 2 Cabo Frio 3 Carmo 1 Cordeiro 1 Itaboraí 1 Japeri 2 Niterói 2 Petrópolis 1 Rio Bonito 1 São João do Meriti 2 Sapucaia 1 Teresópolis 2 Va lença 1 Volta Redonda 1 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1133 O presente artigo trata do perfil das mulheres que foram proces sadas pela prática do art 124 do Código Penal381 Esse universo com preende tanto aquelas que praticaram aborto sozinhas ou contaram com a ajuda de uma terceira pessoa para realizar um aborto quase sempre alguém do seu círculo familiar ou alguém com quem ela teve um relacionamento sexual Grupo 1 quanto algumas mulheres que estavam realizando ou tinham acabado de realizar um procedimento para encerrar a gravidez em clínicas clandestinas Grupo 2 2 Perfil das mulheres processadas pelo art 124 CP Do total de 42 mulheres processadas pelo crime consumado ou tentado previsto no art 124 CP 15 eram as únicas rés no processo cinco foram processadas em conjunto com a pessoa com quem tinham um relacionamento sexual ou com algum familiar que lhe auxiliou e as demais 22 foram processadas em conjunto com as pessoas que trabalhavam nas clínicas onde estavam fazendo o aborto quando os policiais chegaram Os três casos de aborto tentado praticado pelas gestantes estão in seridos nesse grupo de mulheres que estavam na clínica no momento em que o procedimento para realização do aborto estava começando e em razão da chegada dos policiais não foi concluído 21 Figura 1 Perfil das mulheres processadas pelo art 124 CP Tipo penal Total de réus Única ré processada 15 Mulher processada em conjunto com 1 familiar ou parceiro 5 Mulher processada com 3 em clínicas clandes tinas 22 Total 42 Fonte Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro 381 A pesquisa analisou ainda o perfil das pessoas que obrigaram a mulher com quem mantiveram relacionamento a praticar o aborto de médicos que foram negligentes no atendimento de mulheres grávidas e das pessoas que traba lhavam nas clínicas clandestinas Para conhecer a pesquisa completa com o perfil das demais pessoas processadas acessar httpwwwdefensoriarjdefbr uploadsarquivosa144fd918d944afebc6fd61401e2e0e9pdf 1134 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 2 2 Grupo 1 O Grupo 1 portanto é composto por 20 mulheres Na maioria dos casos o método abortivo utilizado por elas foi a ingestão de Ci totec382 ou de chás abortivos Em um caso além de chás abortivos a mulher ingeriu comprimidos de permanganato de potássio Há ainda um caso sem informação que diz respeito a uma mulher que abortou no banheiro da sua casa e não informou o que provocou o aborto Apenas em um caso a mulher realizou um procedimento cirúrgico em uma clínica passou mal três dias depois e foi até um posto médico 221 Figura 2 Procedimento abortivo Grupo 1 Total de casos Citotec 14 Chás abortivos 3 Chás abortivos e permanganato de potássio 1 Cesariana em clínica 1 Sem informação 1 Total 20 Fonte Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro Em geral o que deu início à investigação foi a denúncia do pró prio hospital ou de familiares que ou não sabiam como proceder em relação ao feto ou pediram ajuda para socorrer a mulher que abortava em casa Há também dois casos de denúncia de terceiros um referente a uma mulher que abortou no banheiro do shopping onde trabalhava e funcionários relataram o que ocorreu e outro que diz respeito a uma mulher que abortou em uma cidade pequena e seu irmão jo gou o feto no lixo da rua o lixeiro encontrou e os vizinhos indicaram quem estava grávida no bairro O caso de denúncia da vítima diz respeito à mulher que alegou ter sido obrigada pela pessoa com quem tinha um relacionamento amoroso a tomar o remédio abortivo mas foi processada pelo art 124 382 O Citotec é um medicamento composto pela substância misoprostol indicado para o tratamento de úlceras mas por provocar fortes contrações uterinas é utilizado por mulheres que desejam abortar Com as contrações ocorre a ex pulsão do feto que morre asfixiado já que não tem o pulmão formado para respirar fora do corpo da mulher A comercialização desse medicamento é proibida no Brasil Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1135 CP e ao final impronunciada 222 Figura 3 Conhecimento do fato Grupo 1 Total de casos Denúncia hospitalposto médico 13 Informação prestada por familiares 4 Denúncia terceiros 2 Denúncia vítima 1 Total 20 Fonte Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro Em algumas situações a denúncia do hospital ocorre relacionada a um pedido de remoção do feto mas em dois casos ocorridos na capital o policial de plantão no hospital foi chamado enquanto as mu lheres estavam sendo atendidas tendo inclusive um deles falado que era assistente social para obter a confissão da ré Em regra o hospital que faz a denúncia é público ou recebe re passes de algum ente estatal para atender pacientes pelo SUS Há tam bém casos de denúncia pelo posto de saúdeUPA Apenas em um caso o hospital que atendeu a gestante faz parte da rede privada Observase que a situação dessas mulheres é de extrema vulnera bilidade pois como regra elas recorrem ao atendimento médico por que se sentiram muito mal em casa vindo a abortar muitas vezes no local onde foram atendidas Constatouse que é comum que a mulher se demore a decidir pelo aborto por medo de ser descoberta realizan do o procedimento com a gravidez já em estágio avançado sofrendo de forma mais drástica os efeitos do procedimento de interrupção da gestação Notouse também que muitas abortam no banheiro do hos pital e são hostilizadas pelos médicos e enfermeiros que deveriam au xiliálas a entender o que ocorreu com elas Há também dois casos de mulheres que tomaram chás abortivos começaram a sentir dores e sofreram todo o processo de expulsão do feto sozinhas dentro do banheiro de suas casas sem nenhum apoio ao menos de um familiar Ambas já estavam na segunda metade da gra videz e relatam que a sensação que tiveram é de praticamente terem parido sozinhas 1136 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 223 Figura 4 Local onde o aborto foi finalizado Grupo 1 Total de casos Banheiro de casa 5 Em casa 4 Banheiro do hospitalposto de saúde 3 Hospital 6 Clínica clandestina 1 Banheiro do trabalho shopping 1 Total 20 Fonte Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro No caso das cinco mulheres que foram processadas com mais uma pessoa três tomaram Citotec uma tomou chás abortivos e a ou tra realizou uma cesariana numa clínica alegando que foi pressionada pelo outro réu processado pelo art 126 CP Os outros réus são a mãe da gestante que teria dado o dinheiro para a compra do remédio abortivo processada pelo art 124 nf art 29 CP o marido da gestan te que não sabia do aborto praticado por ela mas enterrou o feto e foi processado pelo art 211 CP ocultação de cadáver a pessoa com quem a ré teve um relacionamento amoroso e não aceitou a gravidez obrigandoa a tomar o remédio abortivo processado pelo art 124 nf art 29 CP e o exmarido da gestante que teria comprado o remédio abortivo para ela também processado pelo art 124 nf art 29 CP Quanto aos aspectos sociais extraise dos dados da pesquisa que 60 das mulheres são negras e 40 são brancas No campo da escola ridade cinco têm o 1º grau completo ou incompleto duas o 2º grau completo ou incompleto uma é analfabeta uma tem o 3º grau e em 11 casos não foi possível obter essa informação 224 Figura 5 Cor Grupo 1 Total de casos Branca 8 Parda 6 Preta 6 Total 20 Fonte Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1137 225 Figura 6 Escolaridade Grupo 1 Total de casos Analfabeta 1 1º grau 5 2º grau 2 3º grau 1 Sem informação 11 Total 20 Fonte Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro Quanto ao estado civil 15 são solteiras duas casadas e três viviam em união estável na data dos fatos 13 mulheres 65 disseram pos suir filhos 226 Figura 7 Estado civil Grupo 1 Total de casos Solteira 15 Casada 2 União estável 3 Total 20 Fonte Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro A idade dessas mulheres na data dos fatos varia entre 18 e 36 anos 227 Figura 8 Idade Grupo 1 Total de casos Entre 18 e 21 anos 3 Entre 22 e 25 anos 7 Entre 26 e 29 anos 4 Entre 30 e 36 anos 6 Total 20 Fonte Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro 1138 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça O tempo de gestação varia muito mas apenas três mulheres in dicaram gestação abaixo de 12 semanas ou 3 meses 166 dos casos com informação Já 12 mulheres indicaram gestação entre 16 e 25 semanas duas entre 26 e 28 semanas e uma mulher estaria em estado avançado de gravidez com 38 semanas 833 dos casos com infor mação Do total de 20 casos 13 mulheres relataram ter outros filhos quatro indicaram ter um filho cinco indicaram ter dois filhos e quatro indicaram ter três filhos Segue tabela com a situação processual das mulheres processadas pelo art 124 CP É possível perceber que 11 mulheres aceitaram a suspensão condicional do processo 228 Figura 9 Fase processual Grupo 1 Total de casos Recebimento da denúncia 2 Ré citada por edital ou por precatória 2 Audiência de instrução e julgamento designada 1 Alegações finais 1 Sentença de impronúncia 1 Sentença de pronúncia 1 Citação para se manifestar sobre proposta de sus pensão 1 Homologada a suspensão condicional do processo 9 Extinção da punibilidade pelo cumprimento das condições 2 Total 20 Fonte Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro Por fim 15 mulheres 75 foram assistidas pela Defensoria Pública durante alguma fase ou em todo o processo Em três casos foi possível identificar a atuação de um advogado e em dois o processo ainda está na fase de citação Não há nenhum caso de prisão provisória decretada e em dois casos foi possível identificar o pagamento de fiança uma no valor de R40000 e outra no valor de R831000 Nenhuma mulher possuía antecedentes criminais na data dos fatos Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1139 2 3 Grupo 2 O Grupo 2 é formado pelos processos em que ocorreu investi gação policial de clínicas clandestinas de aborto Nesses casos além dos funcionários envolvidos algumas mulheres que estavam realizan do ou tinham acabado de realizar um procedimento para encerrar a gravidez foram processadas pela prática do art 124 CP em conjunto com os demais réus processados pelo art 126 CP e com as pessoas que lhe acompanhavam processadas pelo art 124 nf art 29 CP São 14 processos sendo que em 12 deles há mulheres processadas pelo art 124 CP e nos outros dois apenas os funcionários e médicos foram acusados do crime previsto no art 126 CP Esses processos resultaram em seis desmembramentos que se rão analisados em conjunto pois dizem respeito aos mesmos casos Em geral o desmembramento ocorre porque as mulheres processa das aceitam as condições propostas para suspensão condicional do processo e um outro volume é aberto para coletar as assinaturas de comparecimento periódico em cartório mas há um caso em que o desmembramento ocorre em relação ao réu que trabalhava na clínica e outro caso porque os réus estavam foragidos São 22 mulheres processadas porque estavam na clínica no mo mento em que os policiais chegaram Em três casos seu maridocom panheironamorado as acompanhavam na clínica e foram processa dos pelo art 124 nf art 29 CP e em um caso quem a acompanhava na clínica era uma amiga também processada nesses termos O perfil da mulher que vai até uma clínica particular realizar o procedimento de interrupção da gravidez é diferente do perfil da mu lher que se vale de outros métodos como a ingestão de medicamen tos e chás abortivos especialmente no que diz respeito ao tempo de gravidez Em todos os casos que se tem informação a gestação estava abaixo de 12 semanas o que indica que a mulher que pode pagar pelo procedimento consegue tomar a decisão com mais rapidez Oito mulheres são brancas quatro negras e três pardas Conside rando os casos em que há informação sobre a cor a proporção de mu lheres brancas no Grupo 2 53 é maior do que no Grupo 1 40 Seis mulheres relataram ter de um a dois filhos 1140 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 231 Figura 10 Cor Grupo 2 Total de casos Branca 8 Parda 3 Preta 4 Sem informação 7 Total 22 Fonte Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro Considerando os casos com informação há uma prevalência de mulheres com melhor escolaridade dos que as do Grupo 1 já que aqui 75 das mulheres cursaram até o 2º grau enquanto no Grupo 1 esta porcentagem é de apenas 22 232 Figura 11 Escolaridade Grupo 2 Total de casos 1º grau 1 2º grau 6 3º grau 1 Sem informação 14 Total 22 Fonte Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro Em 19 casos analisados foi possível saber qual o valor pago pelo procedimento que oscila entre R 60000 e R 450000 Nenhuma dessas mulheres possuía antecedentes criminais na data do fato e há registro de três casos em que ocorreu o pagamento de fiança no ato da prisão em flagrante nos valores de R 31500 R 60000 e R 67800 Três mulheres foram processadas pelo art 124 nf art 14 CP e o restante pelo art 124 CP Em 13 casos a mulher aceitou a proposta de suspensão condicional do processo 59 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1141 233 Figura 12 Fase processual por ré Grupo 2 Total de casos Recebimento da denúncia 2 Trancamento da ação penal por falta de justa cau sa via HC 1 Audiência de instrução e julgamento designada 2 Alegações finais 2 MP aguarda FAC para avaliar preenchimento das condições para suspensão condicional do proces so 2 Homologada proposta de suspensão condicional do processo 8 Extinção da punibilidade pelo cumprimento das condições 5 Total 22 Fonte Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro A atuação da Defensoria Pública foi identificada em nove ca sos e de advogados particulares em oito casos Em cinco casos não foi possível identificar quem estava atuando em defesa da mulher A proporção de mulheres assistidas pela Defensoria Pública no Grupo 2 40 é bem menor do que no Grupo 1 75 A maioria das mulheres do Grupo 2 foi processada na capital em situações em que ocorreu uma investigação policial mais aprofunda da O que se percebe da leitura dos processos é que a maioria das clí nicas envolve os mesmos médicos inclusive em um deles a denúncia busca relacionar as clínicas como uma rede criminosa Praticamente todas as clínicas investigadas realizam outros pro cedimentos ginecológicos apenas uma tinha como faixada uma clíni ca de estética e contavam com médicos para realizar os procedimen tos de interrupção da gravidez Apenas uma delas descoberta porque a vítima faleceu era realmente o que se pode chamar de clínica clan destina pois as duas mulheres processadas mãe e filha não tinham formação médica e realizaram o aborto de forma muito rudimentar sem nenhum cuidado com a vítima 1142 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Esse caso é importante para ilustrar o que pode acontecer com uma mulher que não encontra uma rede de assistência adequada para realizar o procedimento de interrupção da gravidez Segundo a de núncia as rés realizaram três procedimentos abortivos na vítima com 19 semanas de gestação mediante o pagamento de R 350000 No primeiro introduziram um tubo de borracha flexível no útero da vítima e injetaram uma substância indeterminada Diante do fra casso desse procedimento foi tentado outra em que introduziram uma agulha de tricô e acabaram perfurando o útero e a parede do intestino reto além de ter quebrado a agulha no corpo da vítima Isso ocor reu num sábado e as rés fizeram com que a vítima dormisse no local sem providenciar nenhum socorro médico adequado No domingo de manhã a vítima expeliu o feto e apresentou intenso sangramento e hipertermia As rés acabaram realizando um terceiro procedimento a aspiração provavelmente para retirar qualquer resíduo existente no útero o que fez com que parte das vísceras da vítima fossem expelidas pelo canal vaginal Ao invés de prestarem socorro adequado à vítima ao verifica rem que ela estava morrendo as rés ligaram para uma terceira pessoa também denunciada que só chegou duas horas depois e a deixou no hospital afirmando que teria sido abordado por traficantes que o obri garam a levála até o local 2 4 Perfil conjunto das mulheres processadas pelo art 124 CP No total 42 mulheres foram processadas pela prática do crime previsto no art 124 na forma consumada 39 ou tentada 3 Além dos dados já mencionados no início do relatório seguem outras infor mações de forma agrupada incluindo as mulheres dos Grupos 1 e 2 mencionados acima Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1143 241 Figura 13 Comarca Mulheres processadas pelo art 124 CP Comarca da Capital 24 Comarca de Belford Roxo 2 Comarca de Cabo Frio 3 Comarca de Carmo 1 Comarca de Duque de Caxias 2 Comarca de Itaboraí 1 Comarca de Japeri 1 Comarca de Niterói 1 Comarca de Petrópolis 1 Comarca de Rio Bonito 1 Comarca de São João de Meriti 1 Comarca de Sapucaia 1 Comarca de Teresópolis 2 Comarca de Valença 1 Total Geral 42 Fonte Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro Depois da investigação policial 523 a denúncia do hospital posto médico 309 é a que mais dá ensejo ao conhecimento de ca sos de aborto Com relação ao local onde foi finalizado o aborto a maioria foi realizado em clínicas clandestinas 547 seguido dos casos em que ocorreu em casa 214 e no hospital 214 Se foram contabilizados os casos com informação os procedi mentos abortivos mais utilizados são os realizados por clínicas 56 e o Citotec 34 Considerando os casos em que a ré foi citada para se manifestar sobre a proposta de suspensão do processo e o MP aguarda a folha de antecedentes da ré para avaliar se pode propor a suspensão a maioria dos processos 64 dá ensejo à aceitação desse tipo de condição 1144 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Do total de casos com informação a maioria das mulheres pro cessadas é negra 542 352 das mulheres têm o 1º Grau comple to ou incompleto e 47 o 2º Grau completo ou incompleto Considerando as informações recebidas 725 das mulheres são solteiras e 225 são casadas ou vivem em união estável Importante mencionar que esse dado é retirado de informações prestadas duran te o inquérito policial seja da sua folha de antecedentes seja de sua qualificação durante o depoimento e não é possível saber se reflete o real estado civil dessa mulher ou o que consta do seu registro civil consultado pelo delegado e que pode estar defasado A maioria das mulheres processadas pelo art 124 CP tem entre 22 e 25 anos 29 dos casos com informação Quanto ao fato de ter outros filhos 19 mulheres relataram em seus depoimentos que desejaram interromper a gravidez porque en tre outros motivos já possuíam filhos 242 Figura 14 Filhos Mulheres processadas pelo art 124 CP Sem filhos 1 1 filho 8 2 filhos 7 3 filhos 4 Sem informação 22 Total 42 Fonte Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro Por fim 547 das mulheres foram assistidas pela Defensoria Pú blica em algum momento do processo Se forem considerados apenas os casos com informação esse número sobe para 647 Nenhuma das mulheres possuía antecedentes criminais nem foi mantida presa durante o processo Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1145 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente relatório foi elaborado para apresentar o perfil das mulhe res processadas pelo crime previsto no art 124 CP Da leitura de 55 processos que envolveram os tipos penais previstos nos arts 124 125 e 126 CP relacionados no acervo geral do TJRJ foi possível identificar 42 mulheres processadas pela prática desse crime e separálas em dois perfis diferentes Grupos 1 e 2 conforme a situação em que se encon travam se de prática individual do procedimento ou em clínicas Da análise desses dois grupos foi possível perceber a situação de vulnerabilidade dessas mulheres que não encontram no sistema de saúde a estrutura adequada para atendêlas no caso de um aborto mal sucedido Pelo contrário sabendo que sua conduta é ilícita essas mu lheres adiam ao máximo a decisão apesar de não demonstrarem em seus depoimentos que iriam desistir por esse motivo agravando o ris co ao realizarem um aborto num estágio avançado da gravidez como ficou demonstrado no Grupo 1 As mulheres que tomam remédios e chás abortivos não sabem qual vai ser o efeito dessas substâncias no seu corpo arriscando a pró pria vida com doses erradas e efeitos colaterais além de demorarem a buscar ajuda quando o aborto está acontecendo sofrendo sozinhas com o processo de expulsão do feto Conforme observado as mulheres que têm condições de procu rar clínicas de aborto são mais instruídas e o fazem logo no começo da gravidez Apesar da situação arriscada em que realizam o proce dimento pois quase nunca podem perguntar como vai ser realizado e muitas vezes devem comparecer desacompanhadas e sem celular e sofrem o risco de serem flagradas por policiais que investigam a clí nica essas mulheres estão em melhor situação pois é mais comum contarem com a participação de um médico e tomam a decisão bem mais cedo com a gravidez ainda em fase inicial 1146 ACESSO À JUSTIÇA E A TRANSFOR MAÇÃO DO STATUS DE SUBMISSÃO DAS MULHERES Carolina Soares Castelliano Lucena de Castro383 Gisela Baer de Albuquerque384 Resumo Diante da perpetuação do status de submissão da mulher na sociedade o qual pode ser potencializado a partir do entrecruza mento de outros eixos de injustiça além do gênero como raça e clas se o acesso à justiça pode ser encarado como uma ferramenta que possibilita a concretização de remédios afirmativos rompendo com cenários de sistemática e permanente violação de direitos O mode lo de assistência jurídica formulado pelos constituintes de 1988 faz com que a Defensoria Pública tenha o dever de colocar a prestação dos seus serviços a favor de grupos historicamente marginalizados da nossa sociedade de forma a romper com os processos de subalterni zação sociais A partir de uma perspectiva interseccional de gênero o artigo verifica duas ações coletivas propostas pela Defensoria Pública que tiveram como objetivo visibilizar demandas de mulheres situadas abaixo de diversas estruturas de opressão sociais e que tiveram direitos violados pelo próprio Estado O que se verifica é que a atuação jurídica por meio de ações coletivas potencializa as possibilidades de grupos subalternizados acessarem discursivamente estruturas de poder plei teando mudanças de maior abrangência com impacto sobre a vida de inúmeras pessoas Palvraschave acesso à justiça mulheres defensoria pública contra públicos subalternos 383 Mestra em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela UFRJ e Defensora Pública Federal 384 Mestra em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela UFRJ e Advogada Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1147 INTRODUÇÃO O status jurídico da mulher na sociedade brasileira passou por inten sas mudanças nas últimas décadas tendo evoluído da condição de re lativamente incapaz como era o caso da mulher casada no Código de 1916385 que sofria limitações para a prática autônoma de diversos atos da vida civil inclusive uma profissão para a condição de igualdade em relação ao homem nos termos do que passou a estabelecer expres samente a Constituição Federal de 1988 Essa significativa mudança do status jurídico não impediu a per petuação de uma realidade de profunda opressão e subjugação em re lação às mulheres em todos os níveis e aspectos na sociedade brasileira atual atravessando questões de violência sexual disparidade salarial e de oportunidades profissionais bem como atribuições de papéis e divisões desiguais de obrigações domésticas e responsabilidades com os filhos386 Essas opressões operadas pelo fator gênero ainda podem 385 O artigo 2º inciso II e artigo 242 do Código de 1916 previam em sua redação original que Art 6 São incapazes relativamente a certos atos art 147 n 1 ou à maneira de os exercer II As mulheres casadas enquanto subsistir a sociedade conjugal Art 242 A mulher não pode sem autorização do marido art 251 I Praticar os atos que este não poderia sem o consentimento da mulher art 235 II Alienar ou gravar de ônus real os imóveis de seu domínio particular qual quer que seja o regime dos bens arts 263 nº II III VIII 269 275 e 310 III Alienar os seus direitos reais sobre imóveis de outra IV Aceitar ou repudiar herança ou legado V Aceitar tutela curatela ou outro munus público VI Litigiar em juízo civil ou comercial anão ser nos casos indicados nos arts 248 e 251 VII Exercer profissão art 233 nº IV VIII Contrair obrigações que possam importar em alheação de bens do casal Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03leisL3071htm Acesso em 16012018 386 Em relação à violência contra mulheres foram verificadas 4762 mortes em 2013 que representam 13 homicídios femininos diários Disponível em http wwwmapadaviolenciaorgbrpdf2015mapa2015 1148 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça se somar a outros tipos de opressão que atuam em razão da raça classe e religião situação que estrutura a formação de classes multidesfavo recidas em nossa sociedade Num cenário de descompasso entre o status constitucional da mulher e seu status de subjugação na realidade o acesso à justiça tor nase um importante mecanismo com potencial de mudança e trans formação social pois que o Poder Judiciário por meio de decisões coercitivas é um agente capaz de agir sobre as demais instituições e sobre agentes da sociedade reparando discriminações negativas de gênero ou impondo discriminações positivas em relação às mulheres desde que devidamente provocado para tanto O presente trabalho analisa de que forma o acesso à justiça pode contribuir para o rompimento de processos de subalternização produ zidos pelo fator gênero e os outros eixos de injustiça que podem atuar de forma entrecruzada Assim na primeira parte do artigo é analisada a teoria de Nancy Fraser autora norteamericana que trabalha a no mulheresimprensapdf Acesso em 18062017 Pesquisa realizada com 2500 mulheres acima de 16 anos nas principais cidades do Brasil aponta que 86 dessas mulheres já sofreram assédio em públicos em suas cidades Dispo nível em httpwwwactionaidorgbrbrasillideraassediodemulheresem espacopublico Acesso em 18062017 A Organização Mundial do Trabalho divulgou relatório em janeiro de 2015 apontando que o índice de ocupação das mulheres nos cargos de chefia no Brasil varia entre 5 a 10 Disponível em httpwwwiloorgwcmsp5groupspublicdgreportsdcommpubl documentspublicationwcms334882pdf Acesso em 17012018 Quan to à diferença salarial entre os gêneros em 2009 comparando a média anual dos rendimentos dos homens e das mulheres verificouse que em média as mulheres ganham em torno de 723 do rendimento recebido pelos homens Em 2003 esse percentual era 708 Disponível em httpwwwibgegovbr homeestatisticaindicadorestrabalhoerendimentopmenovaMulherMer cadoTrabalhoPergResppdf Acesso em 18062017 No tocante à questão da dupla jornada os resultados da PNAD de 2016 mostram que os padrões de gênero na sociedade brasileira permaneceram praticamente inalterados na última década Em 2015 a jornada masculina com afazeres domésticos per manece em 10 horas semanais mesmo valor encontrado em 2005 A jorna da feminina em tais atividades é o dobro da masculina e somada à jornada delas no mercado de trabalho a jornada total feminina excede a masculina em média em 5 horas semanais Disponível em httpsbibliotecaibgegovbr visualizacaolivrosliv98965pdf Acesso em 17012018 Dados do Conselho Nacional de Justiça CNJ publicados em 2013 com base no Censo Escolar de 2011 apontam que há 55 milhões de crianças brasileiras sem o nome do pai na certidão de nascimento Disponível em httpwwwcnjjusbrfilesconteu dodestaquesarquivo201504b550153d316d6948b61dfbf7c07f13eapdf Acesso em 17012018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1149 ção de justiça norteada pelo princípio da paridade de participação e os obstáculos que o paradigma gênero representa para o atingimento dessa paridade Além disso a primeira parte também foca as ideias desenvolvidas por Kimberle Crenshaw outra autora feminista norte americana que utilizou pela primeira vez a expressão intersecciona lidade para descrever as formas entrecruzadas que fatores de opressão contra a mulher negra operam Na segunda parte o trabalho examina duas ações coletivas pro postas pela Defensoria Pública que tiveram como objetivo o cessa mento de um quadro de sistemática e contumaz violação dos direitos de determinadas mulheres situadas socialmente abaixo de estruturas de opressão sobrepostas violações essas praticadas pelo próprio Esta do Assim é feita a descrição do cenário de injustiça vivenciado por essas mulheres e os objetivos buscados pelas ações No final o artigo pretende refletir sobre a necessidade de a De fensoria Pública enquanto modelo institucional de assistência jurí dica estabelecido pela assembleia constituinte de 1988 se colocar à disposição dos grupos marginalizados da sociedade como forma de rompimento com os processos históricos de subalternização Preten de ainda apontar para o fato de que atuações pensadas numa pers pectiva interseccional de gênero por via de ações coletivas tendem a ampliar o acesso discursivo de grupos subalternos à esfera de Poder do Judiciário 2 O GÊNERO COMO PARADIGMA DE COLETIVIDADE BIVALENTE E AS FORMAS ENTRECRUZADAS DE OPRESSÃO A autora Nancy Fraser defende que o gênero é um paradigma bivalen te de coletividade o qual abarcaria injustiças tanto de ordem econô mica quanto culturalvalorativa Assim essa teórica propõe a visua lização dessa categoria gênero bifocalmente através de duas lentes diferentes Assim 1150 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça visto através de uma lente o gênero tem afinidades com a clas se visto através do outro é mais parecido com o status Cada lente em foco traz um importante aspecto da subordinação das mulheres mas tampouco é suficiente em si próprio Uma compreensão completa fica disponível somente quando as duas lentes são sobrepostas Nesse ponto o gênero aparece como um eixo categórico que abrange duas dimensões do ordenamento social a dimensão de distribuição e dimensão de reconheci mento387 Com essa perspectiva Nancy Fraser refutando qualquer relato es sencialista sobre a diferenciação sexual388 desmonta as falsas antíteses que marcam a ideia de gênero estabelecendo uma categoria que é com posta tanto por status quanto por classe Dessa forma a mulher não seria ou uma classe ou um status mas ambos De acordo com sua visão a diferença de gênero não é construída somente por diferenças econô micas e culturais porém ambos são fundamentais para o sexismo389 Importante frisar que o reconhecimento para Nancy Fraser pos sui acepção de status social Portanto a ausência de reconhecimento estaria relacionada a problemas de justiça e portanto de acesso igua litário às oportunidades na sociedade390 pois de acordo a perspectiva 387 FRASER Nancy Fortunes of Feminism London Verso 2013 p162 Tradução livre No original The approach I propose requires viewing gender bifocally simultaneously through two different lenses Viewed through one lens gender has affinities with class viewed through the other it is more akin to status Each lens brings into focus an important aspect of womens subordination but nei ther is sufficient on its own A full understanding becomes available only when the two lenses are superimposed At that point gender appears as a categorical axis that spans two dimensions of social ordering the dimension of distribu tion and the dimension of recognition 388 Ibid p 167 Tradução livre No original I reject the essentialist accounts o f sexual difference p 167 389 Ibid p 163 Tradução livre No original Not only is gender difference cons tructed simultaneously from both economic differentials and institutionalized patterns of cultural value but both maldistribution and misrecognition are fundamental to sexism 390 Nesse ponto a perspectiva de Nancy Fraser se diferencia de autores que tomam o reconhecimento como identidade como Charles Taylor e Axel Honneth os dois mais proeminentes teóricos contemporâneos do reconhecimento para quem ser reconhecido por outro sujeito é uma condição necessária para alcan çar uma subjetividade plena e não distorcida FRASER Nancy Redistribution or RecognitionA PoliticalPhilosophical Exchange Londres Verso 2003 p 28Tradução livre No original Usually recognition is taken to be a matter of selfrealization This is the view of both Charles Taylor and Axel Honneth the Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1151 proposta pela autora o que o reconhecimento exige não é uma identidade feminina mas um status para as mulheres como parceiros plenos na in teração social A falta de reconhecimento portanto não signi fica depreciação e deformação da feminilidade Em vez disso significa subordinação social e a sensação de impedimento de participar como um par na vida social391 Também negando qualquer relato essencialista sobre as catego rias gênero e raça Kimberle Crenshaw identifica que os processos de subordinação e as diferentes formas que esses podem ser expe rimentados pelas pessoas decorre não da existência em si de catego rias construídas socialmente mas dos particulares valores atrelados a elas e da forma como tais valores promovem e criam hierarquias sociais392 Ao desenvolver a noção de interseccionalidade393 Kimberle sub linha o fato de que mulheres negras podem vivenciar experiências de discriminação de formas tanto similares quanto diferentes daquelas experiências discriminatórias vivenciadas por mulheres brancas e ho mens negros394 Em decorrência dessa diferenciação de experiências two most prominent contemporary theorists of recognition For both Taylor being recognized by another subject is a necessary condition for attaining full undistorted subjectivicty 391 Ibid p 178 Tradução livre No original What requires recognition is not fe minine identity but the status of women as full partners in social interaction Misrecognition accordingly does not mean the depreciation and deformation of femininity Rather it means social subordination in the sense of being pre vented from participating as a peer in social life 392 CRENSHAW Kimberle Mapping the Margins Intersectionality Identity Po litics and Violence Against Women of Color Stanford Law Review Número 6 volume 43 pp 12411260 1991 p 1254 Tradução livre No original This projects most pressing problem in many if not most cases is not the existence of the categories but rather the particular values attached to them and the way those values foster and crate social hierarchies 393 De acordo com Kimberle Crenshaw interseccionalidade é um conceito que denota as várias maneiras pelas quais raça e gênero interagem para moldar as múltiplas dimensões das experiências das mulheres negras Tradução livre No original I used the concept of intersectionality to denote the various ways in which race and gender interact to shape the multiple dimensions of Black1 womens employment experiences Ibid p 1242 394 CRENSHAW Kimberle Demarginalizing the Intersection of Race and Sex A 1152 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça contextos e formas de opressão as políticas de identidade não falha riam por transcender as diferenças mas sim o contrário pois elas fre quentemente confundem ou ignoram as diferenças intragrupos395 Assim Kimberle Crenshaw enxerga diferentes formas de entre cruzamento de opressões que afetam as mulheres negras sendo que a primeira delas é a discriminação contra grupos específicos e quando falamos da discriminação contra grupos específicos estamos falando sobre um tipo de discriminação que procura mulheres específicas que são intersecionais O segundo tipo de discriminação é o da discriminação mista ou composta Tratase do efeito combinado da discriminação racial e da dis criminação de gênero E o último tipo é a estrutural quando não há qualquer discriminação ativa O que ocorre em últi ma instância é que o peso combinado das estruturas de raça e das estruturas de gênero marginaliza as mulheres que estão na base396 Portanto ao reunir a teoria de Nancy Fraser com Kimberle Crenschaw possível concluir que formas de opressão atreladas à falta de reconhecimento e má distribuição operam de maneiras distintas e com mais força a depender de outros fatores que estejam interrela cionados com o gênero como a raça e a classe Assim as lutas de gênero de acordo com Fraser devem ser situa das como uma vertente dentre outras em um projeto político mais Black Feminist Critique of Antidriscrimination Doctrine Feminist Theory and Antiracist PoliticsUniversity of Chicago Legal Forum Vol 1989 Iss 1 Article 8 p 149 Tradução livre No original black women can experience discrimi nation in ways that are both similar to and diferente from those experienced by White women and black men 395 CRENSHAW Kimberle Mapping the Margins Intersectionality Identity Po litics and Violence Against Women of Color Stanford Law Review Número 6 volume 43 pp 12411260 1991 p 1241 Tradução livre No original The problem with identity politics is not that it fails to transcend difference as some critics charge but rather the oppositethat it frequently conflates or ignores intragroup difference 396 CRENSHAW Kimberle A Interseccionalidade na Discriminação de Raça e Gênero Disponível em http wwwacaoeducativaorgbrfdhwpcontentuploads201209Kimberle Crenshawpdf Acesso em 10012018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1153 amplo que visa institucionalizar a justiça democrática através de múl tiplos eixos de diferenciação social397 Nesse aspecto as demandas coletivas ajuizadas pela Defensoria Pública que consigam captar as demandas de gênero situada dentro de espectro maior de reinvindica ções por justiça social possuem o potencial de operar transformações sociais mais estruturais e amplas conforme será visto a seguir 3 ACESSO À JUSTIÇA E OS CONTRA PÚBLICOS SUBALTERNOS Considerando a importância que o acesso à justiça assume em agen das e pautas do movimento de mulheres o Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres das Nações Unidas CEDAW lançou em agosto de 2015 a Recomendação Geral nº 33 dispondo sobre o acesso das mulheres à justiça composto por seis elementos interrelacionados e essenciais justiciabilidade dis ponibilidade acessibilidade boa qualidade provisão de remédios e prestação de contas dos sistemas de justiça com o objetivo de que os Estadospartes adotem medidas necessárias para superar as barreiras encontradas pelas mulheres nesse campo Uma das recomendações propostas pelo Comitê é no sentido de que os Estadospartes institucionalizem sistemas de assistência jurí dica e defensoria pública que sejam acessíveis sustentáveis e respon dam às necessidades das mulheres garantam que esses serviços sejam prestados de maneira oportuna contínua e efetiva em todas as etapas dos procedimentos judiciais ou quase judiciais 398 Nesse aspecto de acordo com modelo de assistência jurídica adotado pelo Brasil à Defensoria Pública incumbe a orientação jurí dica a promoção dos direitos humanos e a defesa em todos os graus 397 FRASER Nancy Fortunes of Feminism London Verso 2013 p161 Tradução livre No original I situate gender struggles as one strand among others in a broader political project aimed at institutionalizing democratic justice across multiple axes o f social differentiation 398 Disponível em httpwwwcompromissoeatitudeorgbrwpcontent uploads201602RecomendacaoGeraln33ComiteCEDAWpdf Acesso em 10012018 1154 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça judicial e extrajudicial dos direitos individuais e coletivos de forma integral e gratuita aos necessitados399 Portanto a atuação da Defensoria Pública na garantia de acesso à justiça possui o potencial de romper com situações históricas de opressão vivenciadas pelas mulheres muitas das quais se perpetuam em decorrência da invisibilidade de suas demandas A possibilidade de manejo de ações coletivas potencializa essa atuação da Defensoria Pública permitindo que um grande número de mulheres que compar tilham do mesmo quadro de injustiça acessem o Poder Judiciário ou sejam beneficiadas por suas decisões O primeiro caso analisado no presente trabalho trata do quadro de injustiça compartilhado por inúmeras mulheres que foram demi tidas de seus empregos durante a gravidez e que pleitearam o paga mento de saláriomaternidade ao INSS Tais mulheres desempregadas tiveram seu pleito negado sob a justificativa de que a Constituição Federal veda a dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada gestante desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto cabendo a responsabilidade pelo pagamento do saláriomater nidade à empresa caso ocorra esse tipo de dispensa Observase portanto que a autarquia previdenciária utilizava se de uma garantia constitucional em tese benéfica às mulheres para justamente prejudicar essa classe sob o argumento de que caberia ao empregador arcar com o pagamento do saláriomaternidade Porém a postura do INSS revelase totalmente ilegal considerando que há uma compensação tributária quando as empresas pagam salárioma ternidade às seguradas de licença que recai sobre a folha de pagamen to de salários Portanto o custo do saláriomaternidade é universalizado para toda a sociedade por via do INSS sendo que relação previdenciária é estabelecida entre a segurada e o INSS e não entre a segurada e a empresa Após ajuizamento de demanda coletiva pela Defensoria Públi ca da União processo nº 50413152720174047000PR em 2017 399 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03constituicaoconstitui caohtm Acesso em 10012018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1155 foi concedida liminar pela Justiça Federal do Paraná determinando o pagamento do saláriomaternidade pelo INSS para trabalhadoras daquela região despedidas do emprego durante a gravidez sob o en tendimento de que a natureza do benefício é de fato previdenciária e de que eventuais pendências de ordem trabalhista ou eventual neces sidade de acerto entre a empresa e o INSS não constituem óbice ao reconhecimento do direito da trabalhadora se ela optou por acionar diretamente a autarquia Em outubro de 2017 a eficácia de tal decisão foi estendida a todo o território nacional após requerimento da Defensoria Pública da União junto ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região400 o que significa que mulheres de todos os estados da federação poderão exi gir o pagamento do saláriomaternidade diretamente ao INSS caso venham a sofrer dispensa arbitrária ou sem justa causa no período de estabilidade Outro quadro grave de injustiça vivenciado por um grupo espe cífico de mulheres subalternizadas pelo entrecruzamento de diversos eixos de injustiça levou à atuação da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro Através do ajuizamento de um processo coletivo por essa instituição em 2014 foi requerido que o Estado do Rio de Janeiro garanta o tratamento ginecológico e obstetrício adequado para as mulheres do sistema prisional que vinham tendo o acesso especia lizado à saúde desrespeitado sistematicamente Após inspeções realizadas no sistema prisional estadual a De fensoria Pública constatou que o atendimento ginecológico e obste trício de duas mil presas era realizado por apenas um médico Assim foi requerido que o serviço fosse prestado por dois profissionais em tempo integral em cada uma das seis unidades prisionais femininas do estado A ação chegou a ser julgada improcedente em primeira instância sob o argumento de que a população de mulheres que não está presa também não tem acesso a tratamento médico ginecológico e obste trício Após recurso de apelação o Tribunal de Justiça determinou 400 Informação disponível em httpwwwdpudefbrnoticiasdefensoriapubli cadauniao233slideshow39708dpugarantesalariomaternidadepara mulheresdemitidasgravidasemtodoopais Acesso em 10052018 1156 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça em julgamento proferido em março de 2017 que o governo estadual garanta o atendimento médico pleiteado401 Quanto ao entrecruzamento de opressões que operam contra a mulher presa cabe lembrar que a proporção de mulheres negras presas é de 67 o que significa que duas em cada três presas são negras402 Além disso quanto ao nível de escolaridade enquanto na população brasileira cerca de 32 das pessoas completou o ensino médio ape nas 8 da população prisional feminina total o concluiu Portanto a negativa de tratamento ginecológico e obstetrício a esse grupo conju ga três tipos de discriminação de gênero raça e classe As duas ações coletivas se assemelham no fato de que ambas pretendem assegurar direitos já previstos em leis implementando re médios afirmativos que visam corrigir as injustiças de gênero rela cionadas à mádistribuição e ausência de reconhecimento De acordo Nancy Fraser por remédios afirmativos para a injustiça devem ser entendidos aqueles voltados para corrigir efeitos desiguais de arran jos sociais sem abalar a estrutura subjacente que os engendra403 Já os remédios transformativos em contraste seriam os remédios voltados para corrigir efeitos desiguais precisa mente por meio da remodelação da estrutura gerativa subja cente O ponto crucial do contraste é efeitos terminais vs pro cessos que os produzem e não mudança gradual vs mudança apocalíptica404 Portanto ainda que ambas as ações não possuam o potencial de transformar os padrões culturais introjetados na sociedade que im plicam em ausência de reconhecimento das mulheres contribuem para que a reprodução de específicos processos de subordinação não se perpetue Esses dois exemplos ilustram ainda quadros de injustiça que 401 Informação disponível em httpsiteproderjrjgovbrnoticiadetalhes 3917Estadoteraqueforneceratendimentomedicoespecializadoapresas Acesso em 10052018 402 Informação disponível em httpwwwjusticagovbrnewsestudotracaper fildapopulacaopenitenciariafemininanobrasilrelatorioinfopenmulhe respdf Acesso em 10052018 403 FRASER Nancy Da redistribuição ao reconhecimento Dilemas da justiça numa era póssocialista São Paulo Cadernos de Campo n 1415 p 231239 2006 p237 404 Ibid p 237 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1157 conjugam diversos tipos de opressão atuando de forma entrecruzada pois operam contra a mulher grávida ou recémparturiente desempre gada isto é exassalariadas da classe trabalhadora e contra a mulher presa em sua maioria negra pobre e de baixa escolaridade com estig ma social de condenada Da mesma forma os exemplos tratados no trabalho ilustram o potencial transformador da tutela coletiva e a importância de a De fensoria Pública colocar essa ferramenta a serviço das diferentes agen das afetas aos direitos das mulheres com olhar sensível às singulari dades de uma perspectiva interseccional pois que o acesso à justiça é em última instância acesso à possibilidade de transformação social e rompimento do status de submissão que ainda define a mulher na sociedade brasileira CONCLUSÃO Pensar o acesso à justiça numa perspectiva interseccional de gê nero é proceder a uma análise sensível às vidas daquelas que se en contram no fundo de múltiplas hierarquias para determinar como a dinâmica de cada hierarquia exacerba e agrava as consequências de outra405 Num país marcado por processos históricos de subordina ção e marginalização de parcelas significativas da população essa pers pectiva é mais do necessária é fundamental A Defensoria Pública enquanto instituição eleita pelo constituin te de 1988 para servir à população carente e subalternizada de um país escravagistas patriarcal e classista possui o dever de colocar o instru mento da tutela coletiva a serviço das pautas que possibilitem o rom pimento ou a não reprodução desses processos sociais de opressão O presente trabalho analisou duas ações coletivas propostas por essa instituição que promoveram o acesso à justiça a partir de uma perspectiva interseccional de gênero Assim mulheres gestante 405 CRESHAW Kimberle Beyond Racism and Misogyny In Feminist Social Thought Londres Routlegde 1997 p 249 Tradução livre No original an analysis sensitive to structural intersectionality explores the lives of those at the botton of multiple hierarquies to determine how the dynamics of each hierar chy exacerbates and compounds the consequences of another 1158 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça desempregadas e presas custodiadas no sistema prisional viram suas demandas atreladas a injustiças de gênero e classe chegarem ao Po der Judiciário possibilitando que as opressões sentidas pelas mesmas acessassem discursivamente essa esfera de poder A visibilização das demandas de tais mulheres promove aquilo que Nancy Fraser denomina de historiografia revisionista da esfera pública isto é cenários discursivos paralelos em que os membros dos grupos sociais subordinados criam e circulam contradiscursos para formular interpretações concorrentes de suas identidades inte resses e necessidades406 Assim o acesso à justiça pode ser pensado e concretizado como ferramenta de fortalecimento dos contra públicos subalternos isto é fortalecimento de grupos sociais subordinados localizados abaixo de diversas estruturas de opressão cabendo à Defensoria Pública uma atuação sensível e comprometida com essa sua missão REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CRENSHAW Kimberle Demarginalizing the Intersection of Race and Sex A Black Feminist Critique of Antidriscrimination Doctri ne Feminist Theory and Antiracist PoliticsUniversity of Chicago Legal Forum Vol 1989 Iss 1 Article 8 Mapping the Margins Intersectionality Identity Politics and Violence Against Women of Color Stanford Law Review Vol 43 No 6 Jul 1991 pp 12411260 406 FRASER Nancy Rethinking the Public Sphere A Contribu tion to the Critique of Actually Existing Democracy Social Text n 2526 1990 pp5680 p 67 Tradução livre No original that members of subordinated social groupswomen workers peoples of color and gays and lesbianshave repeatedly found it advantageous to constitute alternative publics I propose to call these subaltern counterpublics in order to signal that they are parallel discursive arenas where members of subordinated social groups invent and circulate counterdiscourses which in turn permit them to formulate oppositional interpretations of their identities interests and needs Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1159 Beyond Racism and Misogyny In Feminist Social Thought Londres Routlegde 1997 A Interseccionalidade na Discriminação de Raça e Gênero Disponível em http wwwacaoeducativaorgbr fdhwpcontentuploads201209KimberleCrenshawpdf FRASER Nancy Escalas de Justicia Barcelona Herder 2008 Mapeando a imaginação feminista da redis tribuição ao reconhecimento e à representação Revista Estudos Feministas 2007 Publicado em Constellations Oxford Blackwell Publishing Ltd v 12 n 3 2005 p 295307 HONNETH Axel Redistribution or Recog nition A PoliticalPhilosophical Exchage LondonNew York Ver so 2003 Fortunes of Feminism London Verso 2013 Rethinking the Public Sphere A Contribu tion to the Critique of Actually Existing Democracy Social Text n 2526 1990 pp5680 Da redistribuição ao reconhecimento Dilemas da justiça numa era póssocialista São Paulo cadernos de campo n 1415 p 231239 2006 1160 MEDICALIZAÇÃO DO CORPO FEMININO DEBATES ACERCA DO USO HABITUAL DE CONTRACEPTIVOS ORAIS E SEUS IMPACTOS NA SAÚDE DA MULHER Janaína de Araújo Morais407 Priscilla Cotti Paredes Dias408 RESUMO O presente trabalho tem como proposta discutir a condi ção do acesso à saúde da mulher refletindo sobre o uso habitual de contraceptivos hormonais pensando a saúde reprodutiva fora do as pecto maternoinfantil abordando outras perspectivas sobre o tema como por exemplo a qualidade dos atendimentos e o tipo de infor mação obtido por estas mulheres assim como a qualidade dos medi camentos distribuídos Atentase para o papel do Poder Judiciário no tocante à efetivação dos direitos fundamentais sociais através da for mação discursiva de algumas decisões de órgãos superiores que ver sam sobre a saúde reprodutiva da mulher com foco nas lides relativas aos danos causados pelo uso habitual de contraceptivos hormonais orais O problema da pesquisa apresentado no presente artigo é Existe algum amparo judicial que assegure as mulheres quando são lesadas pelo uso habitual de hormônios contraceptivos Nossa hipótese Se a argumentação jurídica favorável a lides de grupos minoritários fun dadas em questão de gênero desconstruir o discurso de subordinação 407 Doutoranda do programa de pósgraduação em Ciências Sociais da Universi dade Federal de Juiz de Fora UFJF 408 Pósgraduanda em Direito Público pela Pontifícia Universidade Católica de Minas PUCMinas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1161 dos mesmos então emergem vestígios literais observados através da decisão judicial de um discurso que desestrutura o sexismo institucio nalizado À vista disso o objetivo geral é investigar a medicalização do corpo feminino e seus reflexos em argumentações de decisão judicial que indiquem a existência de um discurso em favor das mulheres A metodologia de estudo será dialética mediante uma pesquisa qualita tiva por meio do levantamento bibliográfico de estudos pesquisas e dados que envolvam o assunto procurando apresentar uma multipli cidade de perspectivas sobre o tema além da análise jurisprudencial que envolva o uso da pílula contraceptiva e seus efeitos colaterais in vestigando a argumentação de ambos os lados PALAVRASCHAVE Medicalização Contraceptivos Argumentação Jurídica Acesso à Saúde INTRODUÇÃO Os mecanismos de poder que atuam na regulação dos corpos e das sexualidades foram amplamente discutidos por Foucault 1999 mos trando como a sexualidade está ligada a dispositivos recentes de po der que tiveram sua expansão a partir do século XVII O autor aponta que o poder sobre a vida se desenvolveu em duas formas principais que se interligam por um feixe intermediário de relações Um dos pólos centrouse no corpo como máquina no seu adestramento na ampliação de suas aptidões O segundo pólo centrouse no corpo es pécie o corpo como suporte dos processos biológicos a natalidade mortalidade longevidade Esses processos são assumidos mediante uma série de intervenções e controles reguladores uma biopolítica da população FOUCAULT 1999 p 131 Portanto a partir destes dois pólos há uma explosão de técnicas diversas que visam à sujeição dos corpos e o controle das populações dando início a uma era do biopoder De acordo com Foucault o biopoder foi elemento indis pensável para o desenvolvimento do capitalismo que só foi garantido pela inserção controlada dos corpos no aparelho de produção e por meio de um ajustamento dos fenômenos de população aos processos econômicos FOUCAULT 1999 p 132 1162 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A conduta da população passa a ser alvo de análise e interven ção Segundo o autor o Estado quer saber tudo o que se passa com o sexo dos cidadãos e o uso que dele fazem e também que cada um seja capaz de controlar sua prática Entre o Estado e o indivíduo o sexo tornouse objeto de disputa e disputa pública toda uma teia de discursos de saberes de análise e de injunções o investiram FOU CAULT 1999 p 29 O sexo é então assumido como foco de disputa política por se encontrar na articulação entre os dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda a tecnologia política da vida O sexo se insere nos dois registros dando lugar a vigilâncias mínimas controles constantes e meticulosos exames médicos e psicológicos infinitos a todos um micropoder sobre o corpo FOUCAULT 1999 p 137 Como a produção do conhecimento médicocientífico durante a consolidação da medicina enquanto ciência foi essencialmente mas culina os discursos sobre o corpo da mulher estão carregados de uma moral que coloca a mulher como ser primordialmente natural e or gânico em oposição ao homem um ser cultural e histórico AU RELIANO 2009 p 55 A institucionalização da medicina forjada a partir do século XVIII irá possibilitar o projeto de higienização da sociedade e o papel o qual os médicos vão desempenhar no projeto disciplinador dos corpos VIEIRA 2002 É dentro deste contexto que a medicalização do corpo feminino se estabelece no século XIX em meio aos discursos de exaltação da maternidade Até então o conhecimento sobre o corpo feminino era exclusividade das mulheres parteiras herboristas benzedeiras VIEI RA 2002 Segundo Elizabeth Vieira 2002 a caça às bruxas fez par te de uma estratégia do Estado e da Igreja para monopolizar o saber acerca da cura de doenças e legitimálo como saber médico através das universidades criadas no Renascimento VIEIRA 2002 p 48 O novo conhecimento medicalizado tomou a forma de guias de saúde e higiene E o que foi central para este roteiro segundo Bobel 2010 foram as particularidades de proteção sanitária que rapidamente se materializaram como marcas da modernidade privilégio de classe e respeitabilidade Assim através da etiqueta menstrual cada vez mais foi possível engajar autonomamente adolescentes como consumido ras Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1163 Atualmente pouco se conhece sobre os diversos métodos de pre venção da gravidez disponibilizados no mercado ou pelo Estado Com efeito no Brasil mesmo que o consumo periódico de pílulas anticon cepcionais orais produza diagnósticos clínicos graves tais como AVC trombose e embolia pulmonar além dos efeitos mais brandos como perda de libido enxaqueca náuseas PADOVAN E FREITAS 2014 MORAIS 2015 é o contraceptivo mais usado pelas mulheres e de mais fácil acesso FARIAS et al 2016 De acordo com matéria pu blicada na revista Época para as mulheres que usam o Sistema Único de Saúde SUS e elas são a maioria das brasileiras 73 escapar da prescrição da pílula e escolher outro método contraceptivo é mais difícil Na maioria das vezes o problema não é encontrar nas unidades de saúde outros métodos não hormonais tais como DIU e diafragma mas sim convencer o médico a prescrevêlos A reportagem entrevis tou o ginecologista Luis Bahamondes da Universidade Estadual de Campinas Unicamp que estuda o acesso a diferentes anticoncepcio nais e segundo o médico falta tempo na rotina do ginecologista para colocar o DIU No período de tempo em que o médico atende uma mulher e coloca DIU nela ele poderia ter prescrito pílulas facilmente para outras três O médico ainda aponta outra questão subjacente como muitos médicos não saem preparados das faculdades para fa zer o procedimento é comum que eles evitem a prática no consultó rio pois se sentem inseguros A dificuldade de acesso a esses outros métodos no SUS é um dos motivos de a pílula anticoncepcional oral continuar à frente de outros métodos no mercado de contraceptivos Diante das considerações ventiladas acima acerca da saúde re produtiva da mulher a pesquisa aqui proposta inquietouse em ana lisar a formação discursiva dos tribunais superiores sobre o tema por entender o Judiciário como uma instituição pública a qual as mulheres podem recorrer caso sejam lesadas em alguma das etapas do processo preventivo gravídico É dizer não há dúvida quanto ao fato de que a legislação regula constitucionalmente a responsabilidade do Estado quanto à saúde da mulher incluindo os direitos reprodutivos e sexuais Todavia não é essa a questão a ser enfrentada A questão é como o Poder Judiciário em sua atribuição pela responsabilidade dos atos e omissões dos demais poderes deve decidir em demandas que versam sobre questões de gênero como por exemplo um pedido de indeni zação por danos causados pelo uso de contraceptivos hormonais Por 1164 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça isto como veremos à frente este texto busca refletir sobre qual é o pa pel do Estado para garantir o acesso à saúde da mulher entendendo o direito à saúde em seu aspecto formal e material Para tanto consulta mos tanto a literatura quanto a jurisprudência a respeito do tema in vestigando decisões que versam sobre a saúde reprodutiva da mulher com ênfase nas demandas indenizatórias pleiteadas por danos pelo uso contínuo de pílulas contraceptivas hormonais realizando ainda um estudo de caso Tratandose de lides representativas de grupos mi noritários fundadas em questão de desníveis ligados ao gênero cabe portanto investigar comose a fundamentação da decisão judicial fa vorável a lides de grupos minoritários incorpora e reproduz o discurso sexista seja reforçandoo ou desestruturandoo Estas e outras ques tões tangenciais serão o foco de discussão desse trabalho A SAÚDE REPRODUTIVA DA MULHER E A RE PRODUÇÃO JURÍDICA A interpretação constitucional em matéria de direitos fundamentais e o pluralismo social já são trabalhados pelas teorias ligadas ao discur so ALEXY 2005 HABERMAS 2012 sustentado que a efetiva cons trução do Estado Democrático de Direito depende de condições ma teriais básicas que viabilizem os cidadãos exercerem sua autonomia política isto é exige a participação em igualdade de oportunidades nos processos de formação da opinião e vontade comuns que afetam a coletividade TEIXEIRA 2010 Vale salientar a crítica de Young 2002 quanto às construções teóricas de Habermas 2004 acerca da teoria democráticodeliberativa por adicionar diferentes categorias de opressão409 além do aspecto econômico já ponderado pelo pensa dor alemão De acordo com Young 1999 os grupos marginalizados da sociedade como as mulheres não possuem recursos materiais e também não dispõem de tempo livre para o processo de deliberação na esfera pública Ainda a autora considera que esses indivíduos têm dificuldade de expressar ou sequer podem formular seus interesses em arranjos institucionais que privilegia o discurso dos grupos dominan tes da sociedade Neste contexto é imprescindível realizar um estudo 409 Young 1990 p 4864 apresenta outras quatro categorias sendo marginaliza tion powerlessness cultural imperialism e violence Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1165 crítico do acesso à saúde com recortes específicos refletindo além do desequilíbrio das relações econômicas a desigualdade de gênero O próprio texto constitucional de 1988 reconhece os desníveis sociais ligados ao sexo quando regulamenta formalmente no art 5º inciso I a igualdade em direitos e obrigações entre homens e mulheres Novos paradoxos teóricos e práticos são revelados quando pes quisamos o acesso à saúde a partir de contextos históricos sociais e políticos compreendendo o espaço do direito como um campo de luta e conflito BOURDIEU 1989 onde as relações de poder estruturam conjuntos de estratégias que legitimam discursos jurídicos hegemôni cos FOUCAUT 1998 HABERMAS 2004 NETO 2010 No entendi mento de Vargas e Garcia 2017 p138 temos como premissa a des proporcional questão dos poderes no campo jurídico uma vez que a história mostra a clara misoginia no acesso ao conhecimento e forma ção acadêmica nesse e em outros campos isto é ainda há profun das desigualdades estruturadas socialmente que alcançam o discurso jurídico Entre os paradigmas contemporâneos surge a medicalização do corpo feminino por meio dos contraceptivos hormonais que a principio apresentavase como uma conquista dos direitos sexuais e reprodutivos da mulher Contudo atualmente há de se considerar que o método é inserido numa lógica de mercado questionando a pos sibilidade de ser prejudicial à saúde da mulher como um todo Tais arranjos convocam o Estado a pensar em outras formas de regular conhecer e jurisdicionar sobre as diversidades sexuais e de gênero Entre os direitos sociais fundamentais alocase o direito à saúde inteligência do art 6º da Constituição Federal 1988 compreendendo saúde em um sentido amplo sendo um bemestar que diz respeito ao estado físico e mental e não apenas a mera ausência de doenças VENTURA et al 2010 ÁVILA 2003 O mesmo diploma no art 196 incumbe ao Estado a garantia de acesso à saúde de forma uni versal e igualitária mediante políticas públicas que promovam a redu ção de doenças Em meados dos anos 80 um avanço das nomeações nas políticas públicas foi a utilização da expressão saúde da mulher BRIGAGÃO e ROGRIGUES 2011 No mesmo sentido por sua vez Simone Diniz 2013 p 58 reitera a importância das ações afirmativas estatais destinadas à saúde das mulheres apontando que a saúde da mulher era vista e pensada em termos da saúde maternoinfantil sem 1166 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça pensar os outros aspectos da saúde reprodutiva da mulher como um todo como é o caso do uso habitual de contraceptivos hormonais que ainda carece de espaço para o debate no âmbito jurídico De acordo com Foucault 1998 através dos atos discursivos as práticas discriminatórias se materializam por isso a fim de efetivar direitos constitucionalmente garantidos há a necessidade de questionar o papel do Estado nos processos normalizadores que se dão no sistema de justiça identificando comose a argumentação jurídica ainda reproduz um discurso misógino VARGAS e GARCIA 2017 No mesmo sentido Almeida discorre sobre a problemática Nesses espaços e práticas que vão se produzindo reatualizan do e naturalizando hierarquias mecanismos de subordinação o acesso desigual às fontes de poder e aos bens materiais e sim bólicos Vai se consolidando para a mulher a jornada extensi va de trabalho a maior superposição de tempos e espaços nas dimensões pública e privada da vida as menores possibilidades de investimento em qualificação as maiores cobranças quan to à sua responsabilidade na reprodução familiar Tratase de processo macro e micropolítico que se desenvolve em escala societal e interpessoal ALMEIDA 2007 p28 Apesar dos esforços constitucionais para garantir o acesso à saúde de forma equânime a todos os administrados como veremos à frente há um descompasso entre a lei e o que realmente ocorre à medida que como afirma Piovesan 2008 p17 os dados da realidade brasileira invocam a distancia entre os avanços normativos e as práticas sociais que refletem um padrão discriminatório em relação às mulheres Ao buscar um diálogo entre a teoria e a realidade social esta pesquisa incorpora a categoria de gênero na análise do direito à saúde preocu pandose em eliminar as discriminações sociais econômicas políticas e culturais de que a mulher é vítima GREGORI 1993 Fundamen tandose nos dispositivos acima passamos a analisar através da ar gumentação de decisões de tribunais superiores comose o discurso jurídico reproduz práticas discriminatórias relacionadas a questão de gênero Para tanto iniciouse a investigação das decisões através de uma pesquisa textual das palavras anticoncepcional contracep tivos simultaneamente com o termo efeitos colaterais nos campos de busca da jurisprudência disponíveis no portal online do Supremo Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1167 Tribunal Federal STF Superior Tribunal de Justiça STJ e do site Jus Brasil Dentre a jurisprudência encontrada destacamos quatro decisões dos órgãos superiores relacionadas ao tema em síntese ob servadas à frente Na jurisprudência do STJ apontamos o recurso especial n 1280732410 em que a autora pleiteia verbas indenizatórias contra um hospital por ter engravidado após ter feito uma laqueadura Na de cisão monocrática reconhecese que a cirurgia de laqueadura bem como os anticoncepcionais possuem margem de ineficácia como mostra o trecho destacado a seguir RECURSO ESPECIAL RESPONSABILIDADE CIVIL MÉ DICO DANOS MATERIAIS E MORAIS REALIZAÇÃO DE PROCEDIMENTO CIRÚRGICO ESTERILIZADOR ALEGA ÇÃO DE INSUFICIENTE PRESTAÇÃO DE INFORMAÇÕES PELO MÉDICO A PACIENTE ACERCA DA FALIBILIDADE DA TÉCNICA SUPERVENIÊNCIA DA GRAVIDEZ ACÓR DÃO QUE MANTÉM A IMPROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS QUESTÕES QUE PERPASSAM PELA REANÁLISE DAS PROVAS INCIDÊNCIA DO ENUNCIADO 7STJ RECURSO ESPECIAL A QUE SE NEGA SEGUIMENTO Registrou que a cirurgia não surtiu os efeitos esperados pela autora mas o serviço de modo algum mostrarase defeituoso dele não decorrendo mais riscos do que razoavelmente dele se esperava Analisando as particularidades que circundam a pa ciente e o procedimento realizado concluiu é fato notório e de conhecimento geral que cirurgias de laqueadura e vasectomia bem como os remédios anticoncepcionais possuem margem de ineficácia Reconheceu pois que as consequências da ci rurgia e a sua falibilidade diante das concretas circunstâncias dos autos eram deciência da paciente conclusões cuja revisão encontra direto óbice no enunciado 7STJ STJ 2013 410 BRASIL Superior Tribunal de Justiça Recurso Especial nº 1280732 SP São Paulo Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino Pesquisa de Jurisprudência 2011 Disponível em Disponível em httpsww2stjjusbrprocessorevista documentomediadocomponenteMONsequencial30134008numre gistro201101855556data20131217 Acesso em 20012018 1168 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A decisão monocrática é proferida pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino que mantém a improcedência dos pedidos por entender que diante das concretas circunstâncias dos autos as conseqüências da cirurgia e a sua falibilidade eram de ciência da paciente Diante dis so constatamos que a argumentação jurídica utilizada não traz pistas de rompimento com o discurso sexista já explorado por esta pesquisa à medida que reforça a responsabilidade da mulher pelos prejuízos obtidos no processo de prevenção da gravidez Para a investigação argumentativa da maior instância superior de jurisdição do nosso país o STF foi escolhido um acórdão da Primeira Turma411 referente ao julgamento do Habeas Corpus n 124306412 que afasta prisão preventiva de acusados pela suposta prática do crime de aborto com o consentimento da gestante Em seu voto o ministro Luis Roberto Barroso aufere que no caso em questão além de não estarem presentes os requisitos que autorizam a prisão cautelar a criminaliza ção da prática do aborto se mostra incompatível com os direitos fun damentais ente estes os direitos sexuais e reprodutivos a autonomia da mulher e o princípio da igualdade Aponta ainda a discriminação e o impacto desproporcional da criminalização sobre as mulheres de baixa renda Nas palavras do ministro DIREITO PROCESSUAL PENAL HABEAS CORPUS PRI SÃO PREVENTIVA AUSÊNCIA DOS REQUISITOS PARA SUA DECRETAÇÃO INCONSTITUCIONALIDADE DA IN CIDÊNCIA DO TIPO PENAL DO ABORTO NO CASO DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO NO PRI MEIRO TRIMESTRE ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO 411 Compõem a primeira turma ministro Alexandre de Moraes Presidente ministro Marco Aurélio ministro Luiz Fux ministra Rosa Weber ministro Luis Roberto Barroso Disponível em httpwwwstfjusbrportalcmsver TextoaspservicosobreStfComposicaoTurmapaginaprincipal Acesso em 25052018 412 BRASIL Supremo Tribunal Federal Habeas Corpus n 124306 Relator Min MARCO AURÉLIO Relator p Acórdão Min ROBERTO BARROSO Pri meira Turma julgado em 09082016 PROCESSO ELETRÔNICO DJe052 DIVULG 16032017 PUBLIC 17032017 Disponível em httpstfjusbr portaljurisprudencialistarJurisprudenciaasps128CONTRACEPTI VOS29basebaseAcordaosurlhttptinyurlcomyct8scrf Acesso em 20052018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1169 4 A criminalização é incompatível com os seguintes direitos fundamentais os direitos sexuais e reprodutivos da mulher que não pode ser obrigada pelo Estado a manter uma gesta ção indesejada a autonomia da mulher que deve conservar o direito de fazer suas escolhas existenciais a integridade física e psíquica da gestante que é quem sofre no seu corpo e no seu psiquismo os efeitos da gravidez e a igualdade da mulher já que homens não engravidam e portanto a equiparação plena de gênero depende de se respeitar a vontade da mulher nessa matéria 5 A tudo isto se acrescenta o impacto da criminalização sobre as mulheres pobres É que o tratamento como crime dado pela lei penal brasileira impede que estas mulheres que não têm acesso a médicos e clínicas privadas recorram ao sistema pú blico de saúde para se submeterem aos procedimentos cabíveis Como consequência multiplicamse os casos de automutila ção lesões graves e óbitos STF 2016 online Tal decisão em contrapartida com as outras analisadas no pre sente estudo mostrase favorável às mulheres à medida que versa so bre a autonomia da mulher no que tange aos direitos reprodutivos e sexuais Na fundamentação de seu voto o ministro Marco Aurélio reconhece a violação da igualdade de gênero além de também ponde rar que a criminalização do aborto infringe os direitos sexuais e repro dutivos da mulher como mostra o outro trecho do mesmo acórdão citado acima 27 A criminalização viola também os direitos sexuais e repro dutivos da mulher que incluem o direito de toda mulher de de cidir sobre se e quando deseja ter filhos sem discriminação coerção e violência bem como de obter o maior grau possível de saúde sexual e reprodutiva A sexualidade feminina ao lado dos direitos reprodutivos atravessou milênios de opressão O direito das mulheres a uma vida sexual ativa e prazerosa como se reconhece à condição masculina ainda é objeto de tabus discriminações e preconceitos Parte dessas disfunções é fun damentada historicamente no papel que a natureza reservou às mulheres no processo reprodutivo Mas justamente porque à mulher cabe o ônus da gravidez sua vontade e seus direitos de vem ser protegidos com maior intensidade STF 2016 online 1170 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Vale lembrar que ao julgarem Habeas Corpus o STF exerce o controle concreto de constitucionalidade cujo efeito é inter partes Contudo devemos considerar o alcance de diferentes estágios da in fluência do discurso jurídico proferido na instancia superior de juris dição do nosso país que decidindo favoravelmente à liberdade da mu lher mostrase disposto a romper com antigos paradigmas sexistas Feitas essas considerações o tópico seguinte será dedicado ao es tudo de caso e demandas jurídicas que versam sobre temas análogos ESTUDO DE CASO AC 424352 SC A argumentação jurídica escolhida para uma análise de estudo de caso foi da Apelação Cível n 424352 referente a uma ação de indenização por danos morais relatada pelo Desembargador Victor Ferreira413 Nos autos configuramse como apelante uma mulher entendida para este trabalho como E F e como apelada uma farmacêutica que chamaremos de S B Ltda414 Em síntese a apelante afirma que iniciou o uso do contraceptivo hormonal em 1999 e anos após a utilização habitual sentiu fortes dores de cabeça e turvamento da visão sendo orientada pelo setor médico de seu trabalho a procurar um especialista No relatório da decisão consta que E F realizou exames contudo acabou sofrendo perda total da visão no olho es querdo que por própria suposição médica decorreu de trombose da artéria central da retina atestando que a causa provável da lesão seria o uso do anticoncepcional Em sede de contestação a ré sustentou que a requerente não comprovou sua condição de usuária regular do medicamento e nem sua aquisição configurando a ausência do nexo causal entre a con duta e o dano afastando a incidência do Código do Consumidor415 413 SANTA CATARINA Tribunal de Justiça Ação Civil Processo n 2008042435 2 Relator Desembargador Victor Ferreira Data de julgamento 08122011 Disponível em httpstjscjusbrasilcombrjurisprudencia20924690apela caocivelac424352sc20080424352tjscinteiroteor21108410 Acesso em 10112017 414 Utilizaremos para o presente texto o nome das partes de todas as decisões in vestigadas através de siglas a fim de preservar o direito à intimidade das partes 415 Vale salientar outras decisões que igualmente afastam a inci dência do CDC como por exemplo TJSP Disponível em ht Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1171 A empresa ressaltou que o medicamento só poderia ser utilizado quando prescrito por profissional habilitado que deverá prestar os esclarecimentos necessários para a utilização do contraceptivo O re latório menciona que a autora indicou ter observado rigorosamente as indicações de ingestão descritas na bula do medicamento tendo dificuldade de compreendêla além do fato de ter confiado na segu rança da utilização por não estar inserida no grupo de risco descrito nas contraindicações Por sua vez a ré defende que a bula é clara em seu texto quanto à possibilidade de ocorrência de acidentes vas culares A argumentação utilizada na defesa dos autos demonstra a ciên cia do laboratório acerca dos possíveis acidentes vasculares decor rentes do uso da pílula ainda que a usuária não esteja listada no gru po de risco descrito nas indicações da bula do medicamento Outra observação a ser feita é que a decisão não cita os elementos neces sários para a convicção do nexo de causalidade entre a utilização do medicamento e o dano experimentado nem como a autora poderia provar que tomou o medicamento corretamente A autora apresentou impugnação à contestação e realizou perí cia médica porém o tribunal entendeu que houve adequada presta ção de informações acerca dos possíveis efeitos colaterais a preten são indenizatória foi julgada improcedente Em sede de apelação o voto do ministro relator reconhece que o risco de ocorrência de trombose é mais elevado em usuárias de contraceptivos hormonais afirmando ainda que todos os anticon cepcionais ou métodos que liberam hormônio tem como um dos efeitos colaterais o desenvolvimento de trombose venosa profunda Fato que indica que além do laboratório o tribunal também reco nhece os possíveis efeitos colaterais decorrentes da ingestão habitual do medicamento tpstjspjusbrasilcombrjurisprudencia339669935apela caoapl30009597420138260062sp30009597420138260062 inteiroteor339669964refjuristabs Acesso em 20052018 TJMG Disponível em httpstjspjusbrasilcombrjurisprudencia339669935 apelacaoapl30009597420138260062sp30009597420138260062intei roteor339669964refjuristabs Acesso em 20052018 1172 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça O relator ainda descarta a tese relativa ao defeito do produto em vista do art 9º do CDC que não proibiu ou sancionou a cir culação de produto perigoso admitindoo desde que o risco seja inerente e adequadamente informado ao consumidor Ainda analisa a relação consumerista à luz do art 220 4º da CF que agrupa ta baco bebidas alcoólicas agrotóxicos medicamentos e terapia como produtos e serviços de categorias assemelhadas de periculosidade inerentes afirmando portanto que os riscos decorrem do seu uso Sobre o tema ainda investigando o voto em análise destacase o tre cho APELAÇÃO CÍVEL AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DA NOS MORAIS TROMBOSE CEGUEIRA NO OLHO ES QUERDO CONTRACEPTIVO ORAL POSSÍVEL EFEITO COLATERAL RISCO INERENTE AO PRODUTO DEVER DE INFORMAR CUMPRIDO SENTENÇA MANTIDA RE CURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO 2 Dessa maneira os possíveis efeitos colaterais narrados na bula do contraceptivo Microvlar tratamse de riscos inerentes ao produto não se afigurando razoável transferir os resultados indesejados ao fabricante que teria de arcar com um encargo insustentável a ponto de inviabilizar e até mesmo engessar a pesquisa e fornecimento de medicamentos ao consumo TJSC 2011 online Como visto com fundamento no risco inerente do produto a culpabilidade recai sobre a mulher ignorando a lógica lucrativa das indústrias farmacêuticas e a falta de informação sobre os efeitos do medicamento obtidos durante a administração do anticoncepcional pela autora De acordo com o trecho da decisão investigada o fa bricante arcaria com um encargo insustentável que inviabilizaria o fornecimento do medicamento Contudo o voto não considera os prejuízos sofridos mulher usuária seja esta vista como consumidora ou como representante de grupo minoritário e vulnerabilizado Ávi la 2003 p466 desenvolve algumas considerações sobre os direitos sexuais e reprodutivos demonstra que na lógica do mercado as re lações da vida social são reduzidas a relações mercantilistas onde os agentes dessa ideologia de mercado produzem um discurso que per verte o sentido da cidadania ao colocar o consumo como a nova forma Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1173 de acesso a liberdade reduzindo o sentido da vida à possibilidade de consumir É notório que os contraceptivos são uma conquista para liberdade sexual da mulher contudo não devemos ignorar a lógica mercantilista à qual ele esta inserido que como já apontado neste tex to engaja autonomamente mulheres como consumidoras privilegian do o lucro ao invés da saúde Na decisão em tela a Quarta Câmara de Direito Civil por unanimidade decidiu conhecer do recurso e negarlhe provimento ficando as custas pelo dano à encargo da parte autora isto é da mulher usuária Neste diapasão destacase outra decisão no mesmo sentido que admite o risco inerente da utilização do contraceptivo de acordo com o voto dado pelo desembargador Jorge Alberto na apelação civil n 70054821475416 a seguir RESPONSABILIDADE CIVIL AÇÃO INDENIZATÓRIA MÉTODO CONTRACEPTIVO FALHA POSSIBILIDADE DEVER DE INFORMAÇÃO PELO FORNECEDOR ATENDI DO 3 O fato de a ré inserir o produto no mercado não traduz por si só sua responsabilidade integral haja vista que a falha no método contraceptivo é um risco inerente à própria utiliza ção do material a ser suportado pelo usuário Até porque aos consumidores é facultado fazer uso ou não dos mais variados métodos contraceptivos Ao meu sentir a falha no produto em tela é um risco que embora indesejável possível de acon tecer sendo que a empresa requerida se desincumbiu de even tuais ônus quando informou seus consumidores a este respeito TJRS 2014 online Na citação acima fica evidente que a argumentação jurídica ten de decidir pela responsabilidade da mulher no que tange a informa ções sobre os efeitos colaterais dos contraceptivos eximindo os outros atores da relação do cuidado entre a conduta e o dano Isto posto o presente trabalho não descarta a hipótese de que a escolha do uso con tínuo de pílula anticoncepcional pelas mulheres se dá devido à falta de informações sobre essas substâncias além dos insuficientes recursos 416 RIO GRANDE DO SUL Tribunal de Justiça Apelação Cível Processo n 70054821475 Relator Desembargador Jorge Alberto Schreiner Pestana Jul gado em 24042014 Disponível em httpstjrsjusbrasilcombrjurispru dencia118743492apelacaocivelac70054821475rsinteiroteor118743493 Acesso em 10112017 1174 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça materiais das mulheres para selecionar outra opção de contraceptivo e considera ainda que nos casos de efeitos colaterais ou indesejados causados pelo uso do medicamento levados ao âmbito jurídico as de cisões tendem a atribuir a responsabilidade pelo dano à mulher igno rando a lógica mercantilista da indústria farmacêutica e as estruturas excludentes A relação diretamente desproporcional entre diretrizes dadas pe los instrumentos processuais e o funcionamento do corpo social nos faz refletir sobre o papel das ciências humanas diante da vinculação entre a estrutura social e os organismos estatais além as questões pro blemáticas que dela derivam Por fim como afirma Pautassi 2007 p90 não se trata de incluir e incorporar mais direitos e sim de revi sar os direitos já estabelecidos e reconhecidos nos instrumentos inter nacionais e na legislação interna e verificar se atendem os padrões mí nimos em matéria de direitos sociais Portanto para um rompimento com antigos paradigmas sexistas há necessidade de adotar estratégias discursivas que reconheçam os grupos minoritários visando contri buir para a equidade das classes prejudicadas historicamente CONCLUSÃO Como visto acima o processo de prevenção da gravidez é desde o princípio construído através de estruturas sexistas ocasionando a desinformação das mulheres usuárias tanto acerca de outros tipos de métodos contraceptivos disponíveis quanto aos possíveis riscos da ingestão dos anticoncepcionais hormonais Os reflexos do determi nismo biológico sobre os sexos geram a medicalização do corpo fe minino e o afastamento das mulheres na produção do conhecimento médico científico sobre o próprio corpo podendo ser sentidos hoje por meio dos incontáveis casos de violência ginecológica e obstétrica existente nos consultórios médicos e hospitais Com efeito a falta de informação tanto dos médicos quanto das mulheres se refletem em demandas jurídicas motivadas por efeitos colaterais ou indesejados ocasionados pelo uso contínuo de hormônios contraceptivos A análise da argumentação jurídica investigada neste texto cons tatou que ao julgar os casos de efeitos colaterais ou inesperados oca Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1175 sionados pelo uso contínuo de contraceptivos hormonais o Judiciário discute a responsabilidade pelo dano entre a bula o médico o labora tório e a mulher usuária Em decisões sobre o tema com fundamento no risco inerente do produto a culpabilidade recai sobre a mulher eximindo os outros atores da relação de cuidado entre a conduta e o dano além de desconsiderar a lógica lucrativa das indústrias far macêuticas e a falta de informação sobre os efeitos do medicamento Diante disto fazse necessário que o Judiciário pense outros aspectos da saúde reprodutiva da mulher como a medicalização do corpo fe minino e seus efeitos Isto é múltiplos rearranjos dos elementos que remetem ao gênero e à sexualidade convocam o Estado a pensar em outras formas de regular conhecer e jurisdicionar sobre as diversi dades sexuais e de gênero sendo necessário produzir e sistematizar conhecimentos que avancem na superação das desigualdades REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXY Robert Teoria da argumentação jurídica a teoria do dis curso racional como teoria da justificação jurídica 2 ed Trad Zil da Hutchinson Schild Silva São Paulo Landy 2005 ALMEIDA Suely Souza de Violência de gênero e políticas públicas In Série Didáticos UFRJ 2007 AURELIANO Waleska de Araújo e Deus criou a mulher re construindo o corpo feminino na experiência do câncer de mama Revista de Estudos Feministas Florianópolis v17 janabr 2009 ÁVILA Maria Betânia Direitos sexuais e reprodutivos desafios para as políticas de saúde Cad saúde pública v 19 n Sup 2 p S465S469 2003 BOBEL Chris New blood thirdwave feminism and the politics of menstruation 1963 BOURDIEU Pierre O poder simbólico Rio de Janeiro Ed Bertrand Brasil1989 A dominação masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999 1176 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça BRASIL Superior Tribunal de Justiça Recurso Especial n 1280732 SP São Paulo Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino Pesqui sa de Jurisprudência 2011 Disponível em Disponível em https ww2stjjusbrprocessorevistadocumentomediadocomponen teMONsequencial30134008numregistro201101855556da ta20131217 Acesso em 20012018 BRASIL Supremo Tribunal Federal Habeas Corpus n 124306 Relator Min MARCO AURÉLIO Relator p Acórdão Min RO BERTO BARROSO Primeira Turma julgado em 09082016 PRO CESSO ELETRÔNICO DJe052 DIVULG 16032017 PUBLIC 17032017 Disponível em httpstfjusbrportaljurisprudencialis tarJurisprudenciaasps128CONTRACEPTIVOS29baseba seAcordaosurlhttptinyurlcomyct8scrf Acesso em 20052018 BRIGAGÃO Jacqueline RODRIGUES Marlene Teixeira A mulher como sujeito direitos sexuais reprodutivos e políticas na área da saúde In Redistribuição reconhecimento e representação diálogos sobre igualdade de gênero Organizadora Maria Aparecida Abreu Brasília Ipea 2011 DINIZ Simone Grilo Direitos sexuais e direitos reprodutivos In Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado uma dé cada d mudanças na opinião pública Organizadores Gustavo Venturi e Tatau Godinho São Paulo Editora Fundação Perseu Abramo Edi ções Sesc SP 2013 ÉPOCA Reportagem Disponível em httpepocaglobocomsaude checkupnoticia201707elasnaoqueremtomarpilulahtml Aces so em 10012017 FARIAS Mareni Rocha et al Utilização e acesso a contraceptivos orais e injetáveis no Brasil Revista de Saúde Pública v 50 n 2 2016 FOUCAULT Michel História da Sexualidade a vontade do saber 10 ed Rio de Janeiro Graal 1998 GREGORI Maria Filomena Cenas e queixas Um estudo sobre mu lheres relações violentas e a prática feminista São Paulo ANPOCS 1993 HABERMAS Jürgen A inclusão do outro estudos de teoria políti ca 2 ed Trad George Sperber Paulo Astor Soethe e Milton Camargo Mota São Paulo Loyola 2004 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1177 Teoria do agir comunicativo Sobre a crítica da ra zão funcionalista Tradução Flávio Beno Siebeneichler WMF Mar tins Fontes 2012 JUSBRASIL Disponível em httpswwwjusbrasilcombr Acesso em 20052018 MORAIS Janaina de Araujo Política e produção do conhecimento uma análise sobre a medicalização da menstruação e as expressões de resistência e reexistência In Anais VI Jornada de Ciências So ciais da UFJF Juiz de Fora Minas Gerais 2015 NETO Leon Farhi Biopolíticas as formulações de Foucault Floria nópolis Cidade Futura 2010 PADOVAN Fabiana Tavares FREITAS Geyse Anticoncepcional oral associado ao risco de trombose venosa profunda Braz J Surg Clin Res v 9 n 1 p 7377 2015 PAUTASSI Laura C Há igualdade na desigualdade Abrangência e limites das ações afirmativas Revista internacional de direitos hu manos SUR 2007 PIOVESAN Flávia Igualdade de gênero na Constituição Federal os direitos civis e políticos das mulheres no Brasil Os alicerces da redemocratização Brasília DF Senado Federal Instituto Legislativo Brasileiro v 1 p 349377 2008 RIO GRANDE DO SUL Tribunal de Justiça Apelação Cível Pro cesso n 70054821475 Relator Desembargador Jorge Alberto Schreiner Pestana Julgado em 24042014 Disponível em https tjrsjusbrasilcombrjurisprudencia118743492apelacaocivelac 70054821475rsinteiroteor118743493 Acesso em 10112017 SANTA CATARINA Tribunal de Justiça Ação Civil Processo n 20080424352 Relator Desembargador Victor Ferreira Data de julgamento 08122011 Disponível em httpstjscjusbrasil combrjurisprudencia20924690apelacaocivelac424352sc 20080424352tjscinteiroteor21108410 Acesso em 10112017 TEIXEIRA Daniel Viana Desigualdade de gênero sobre garantias e responsabilidades sociais de homens e mulheres Revista Direito GV v 6 n 1 p 253274 2010 1178 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça VARGAS Isadora Dias GARCIA Tamires de Olivera Estruturas ex cludentes a lógica patriarcal e a resistência das mulheres pelos Ddireitos In A violência de gênero nos espaços do direito narra tivas sobre ensino e aplicação do direito em uma sociedade machista Organização Vanessa Dornelas Schinke 2 ed Rio de Janeiro Lúmen Júris 2017 VIEIRA Elisabeth Meloni A Medicalização do corpo feminino Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2002 84pp VENTURA Mirian SCHRAMM Fermin Roland at al Judicializa ção da saúde acesso à justiça e a efetividade do direito à saúde Phy sis Revista de Saúde Coletiva v 20 n 1 2010 YOUNG Iris Marion Inclusion and democracy Oxford University Press on Demand 2002 Justice and the Politics of Difference Princeton University Press 1990 1179 DOS LIMITES E POSSIBILIDADES DA LEI MARIA DA PENHA NO ENFRENTAMENTO ÀS VIOLÊNCIAS CONTRA AS MULHERES NEGRAS ANÁLISES CRIMINOLÓGICAS E INTERSECCIONAIS DA MÚSICA 100 FEMINISTA DE MC CAROL Elizabeth Tavares Viana417 Luanna Tomaz de Souza418 RESUMO Este estudo investiga as possibilidades e os limites da Lei 1134006 Lei Maria da Penha no enfrentamento às violências contra as mulheres negras partindo de uma análise da música 100 feminista composta por MC Carol em parceria com Karol Conka Esta pesquisa se baseia na proposta metodológica do feminismo decolonial se va lendo de estudos das teorias feministas da interseccionalidade dos estudos das criminologias feministas e da criminologia feminista ne gra Será traçado um breve quadro dos dados de violências contra as mulheres no Brasil Será analisada também a questão das mulheres negras a construção histórica das violências contra estas a sua auto representação Será realizada uma análise das contradições trazidas pela implementação da Lei Maria da Penha e as críticas da criminolo gia feminista negra às criminologias feministas e à Lei Maria da Penha Palavraschave 100 feminista criminologias feminismos intersec cionalidade Lei Maria da Penha 417 Bacharel em direito pela Universidade Federal do Pará 418 Professora doutora vinculada à Universidade Federal do Pará 1180 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1 INTRODUÇÃO O funk 100 feminista presente no álbum Bandida de MC Ca rol419 de 2016 é uma obra musical idealizada pela cantora compos ta e interpretada por esta em parceria com Karol Conka420 A música apresenta as violências contra as mulheres específico a violência do méstica em suas diferentes manifestações Essa não se limita somen te à denúncia da opressão sofrida pelas mulheres negras periféricas como também as coloca em um lugar de deslocamento do discurso de vítima tomando para si o conflito perdido através das mãos do estadocriando um espaço de empoderamento Para Gayatri Spivak 2010 há uma necessidade de se possibili tar a oferta de espaços e posições aos que não são beneficiados pelas culturas hegemônicas onde eles possam falar e além possam ser ou vidos MC Carol idealizadora desse projeto musical é capaz através da arte expor uma realidade cotidiana da vivência na periferia do Rio de Janeiro e impor seu discurso sendo ouvida em âmbitos diversos e em um espaço ainda predominantemente androcêntrico que é o funk Assim María Lugones 2014 entende que a continuação das re lações coloniais de poder se traduzem nas categorias de gênero raça e classe criando um projeto decolonial onde se busca desaprender para reaprender questionando desta forma os conceitos hegemônicos para descolonizálos Nesse projeto a autora afirma que devese traduzir culturas e questionar como será possível nos conectarmos parcial mente com mundos pluriversais sem assumirmos uma comensurabi lidade entre eles MC Carol e Karol Conka ao expor suas experiências cotidianas nos trechos compostos por elas na música apresentam seu 419 Carolina de Oliveira Lourenço MC Carol ou Carol Bandida nascida na ci dade de Niterói no estado do Rio de Janeiro criada no morro do Preventório região periférica da cidade Se tornou a mais recente referência do funk carioca com músicas que falam sobre sexualidade drogas e letra políticas criticando a violência policial e a história dos negros no Brasil em músicas como Não foi Cabral e Delação Premiada Fonte Wikipédia 420 Karolina dos Santos Oliveira Karol Conka nascida e criada na periferia de Curitiba é cantora negra conhecida no mundo pop e no hip hop brasileiro por suas músicas que tratam de temas como sexualidade e raça Fonte Wikipédia Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1181 saber reflexo das suas experiências de vida se tornando parte desse universo tratado por Lugones 2014 através dessa tradução cultural tentase estabelecer um diálogo entre os estudos acadêmicos e o saber fruto dessas experiências vividas na pele Com o advento dos mecanismos de coibição contra a violência doméstica criados pela Lei Maria da Penha Lei 1124006 o Brasil continua apresentando um quadro alarmante de violências contra as mulheres De acordo com o Mapa da Violência 2015 434 dos fe minicídios ocorridos no Brasil foram cometidos por companheiros ou excônjuges Segundo a pesquisa do DataSenado 2013 uma em cada cinco mulheres no país admite ter sofrido violência doméstica ou intrafamiliar e não somente violência física muitas das vezes esta ocorre após inúmeras investidas psicológicas Percebese a dimensão da violência sofrida sistematicamente pe las mulheres principalmente as negras já que estas são submetidas a interseccionalidade conceito formulado por Kimberlé Crenshaw 2016 o qual entende que há uma interseção entre gênero e raça na qual a mulher negra sofre uma dupla injustiça social O direito penal e o sistema de justiça criminal mais uma vez se mostram ineficientes na tutela da mulher vítima de violência por ser segundo Vera de An drade 1999 um sistema classista e sexista situação denunciada por outras teóricas das criminologias feministas O presente estudo pretende em uma tentativa epistemológica de colonial feminista criar um espaço de diálogo com a obra focando principalmente na composição da funkeira MC Carol sua idealiza dora e autora do álbum Bandida partindo dos relatos pessoais apre sentados pela cantora na música A finalidade é compreender de que forma a música 100 feminista expõe os limites e possibilidades da Lei Maria da Penha no enfrentamento às violências contra as mulhe res negras Por este motivo ao longo do estudo a letra da música será analisada com o uso de metodologias horizontais como análise de conteúdo e de discurso em diferentes contextos teóricos 1182 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 2 EU TINHA UNS CINCO ANOS MAS JÁ ENTENDIA QUE MULHER APANHA SE NÃO FIZER COMIDA Em 100 feminista MC Carol nos trechos de composição sua de nuncia a violência sofrida no âmbito doméstico expondo uma rea lidade comum na vida de milhares de mulheres no Brasil violadas dentro do seu próprio lar por seus companheiros e cônjuges Esse tom denunciante fica claro quando canta Presenciei tudo isso dentro da minha família Mulher com olho roxo espancada todo dia Eu tinha uns cinco anos mas já entendia Que mulher apanha se não fizer comida O Brasil apresenta um quadro alarmante em relação às violên cias contra mulheres resultado de uma série de práticas discriminató rias reproduzidas nos espaços públicos e principalmente no âmbito privado e nas suas relações afetivas domésticas e intrafamiliares De acordo com o Mapa da Violência 2015 4762 assassinatos de mu lheres foram registrados em 2013 no Brasil 503 foram cometidos por familiares sendo destes casos 332 cometidos por parceiro ou excompanheiro Esta estimativa à época resultava em 13 feminicí dios diários Ainda com a implementação de políticas públicas para o combate deste tipo de violência como a criação das Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher DEMs o número de casos onde mulhe res são violadas em seus direitos e liberdades agredidas ou mesmo mortas se manteve preocupante Em matéria investigativa a Agência Pública DIP 2017 pesquisou registros do Ministério da Saúde no período de 2005 a 2015 os dados analisados revelam que 47 mil mu lheres foram assassinadas no país nos últimos dez anos por diversos meios como sufocamento e armas de fogo contudo não há uma uni formidade nos números pesquisados em relação às regiões do país é o caso de Ananindeua município da área metropolitana de Belém que registrou o maior número de mortes em 2015 com 219 feminicídios para cada 100 mil habitantesOutra informação relevante trazida é a Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1183 evolução na escala de mortes nessa cidade pois em 2005 registrouse 3 mortes de mulheres por agressão para cada 100 mil habitantes Um aumento de 730 em 10 anos As violências contra as mulheres podem se manifestar de diver sas formas à exemplo da agressão verbal física e ameaça Conforme pesquisa realizada pelo Fórum de Segurança Pública 2017 66 dos brasileiros presenciaram uma mulher sendo agredida verbalmente ou fisicamente em 2016 Dos dados coletados acerca da vitimização de mulheres brasileiras acima de 16 anos entre janeiro e dezembro de 2016 obtevese o resultado de 44 milhões no ano ou seja 503 mulhe res foram agredidas fisicamente por hora no país Dessa forma a pesquisa com base no piso do intervalo de con fiança projetou que 22 12 milhões sofreram ofensa verbal 10 5 milhões ameaça de violência física 8 39 milhões ofensa sexual 4 19 milhões ameaça com faca ou arma de fogo 3 14 milhões espancamento ou tentativa de estrangulamento e 1 257 mil leva ram tiro Sendo assim milhares de mulheres no ano de 2016 sofreram algum tipo de agressão ameaça ou mesmo tentativa de feminicídio É importante ressaltar que as violências contra as mulheres no Brasil tem sua manifestação principalmente no âmbito privado das suas relações sociais muitos dos agressores são próximos à vítima como companheiros e cônjuges A pesquisa do Fórum de Segurança Pública 2017 levantou dados acerca de quem eram os agressores revelando assim 61 conhecidos 19 companheiros 16 excompanheiros A agressão acaba ocorrendo na maioria dos casos dentro da própria casa como expõe a pesquisa 43 em casa e 39 na rua Os dados não mudaram muito ao longo dos anos a pesquisa do 11ª Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017 afirma que foram registrados em 2016 4657 homicídios de mulheres e feminicídios contabilizando uma morte a cada duas horas porém somente 533 foram classificados como feminicídio para o Fórum de Segurança Pú blica 2017 isto denota as dificuldades da Lei 131042015421 Lei do Feminicídio em seu primeiro ano de implementação 421 Brasil Lei 13104 de 09 de mar de 2015 Lei que Altera o art 121 do Decre toLei no 2848 de 7 de dezembro de 1940 Código Penal para prever o fe minicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio e o art 1o da Lei no 8072 de 25 de julho de 1990 para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos BrasíliaDFmar 2015 Disponível em httpwww planaltogovbrccivil03ato201520182015leiL13104htm Acesso em 24 dez 2017 1184 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Traçase então um quadro complexo das manifestações das for mas de violências contra as mulheres no país e seu resultado mais extremo que é o feminicídio Os dados com toda a sua objetividade não podem se desvincular da realidade brasileira a qual prevalece uma cultura discriminatória em relação às mulheres e imperativa nas prá ticas e costumes sociais a qual tenta retirar da mulher sua autonomia e subjugála 3 SOU MULHER SOU NEGRA MEU CABELO É DURO Diante de todos os dados acerca das violências contra as mulheres apresentados é possível compreender que o machismo não é apenas uma manifestação natural e inofensiva contida nas mais diversas prá ticas sociais e culturais ele também se manifesta sobre os corpos das milhares de mulheres agredidas e mortas nas últimas décadas no Bra sil Não se podecontudo negar que a violência contra a mulher no país tem cor e esta é negra fruto também do racismo que corre nas veias abertas brasileiras Em um recorte interseccional observase al guns outros dados apresentados nas pesquisas mais recentes acerca da vitimização das mulheres no Brasil Destes destacase o Mapa da Violência 2015 o qual mostra que entre 2003 e 2013 o homicídio de mulheres brancas teve uma redução de 36 para 32 por 100 mil uma redução de 119 porém as taxas de mulheres e meninas negras tiveram um aumento de 45 para 54 por 100 mil crescendo em 195 Logo a porcentagem de mulheres negras que antes era de 229 cres ceu para 667 em 2013 O Fórum de Segurança Pública e Datafolha 2017 relatou que 29 das mulheres no Brasil afirmaram terem sofrido algum tipo de violência destas 25 eram brancas 31 pardas e 32 negras Os re sultados não param por aí de acordo com a Agência Pública 2017 analisando o perfil racial das mulheres assassinadas em Ananindeua como já informado é o município que apresenta maior taxa de femini cídios no país em dez anos das 343 mulheres mortas 306 eram pardas ou negras em contrapartida somente 35 eram brancas ou seja 89 dos feminicídios na cidade que mais mata mulheres foram contra Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1185 mulheres negras Este é apenas um breve retrato da violência que não é só de gênero mas também racial logo a primeira pergunta que salta à reflexão acerca da vitimização das mulheres negras no Brasil é o por quê destas serem o segmento mais violado em seus direitos liberdades e em seu próprios corpos Segundo Aníbal Quijano 2005 na América o conceito de raça foi utilizado como forma de legitimar as relações de dominação im postas no período de conquistas coloniais partindo da perspectiva eurocêntrica onde estes sujeitos são considerados inferiores por não serem racionais se aproximando mais de um estado de natureza que os brancos europeus convertendoos em domináveis Para o au tor Esse novo e radical dualismo não afetou somente as relações raciais de dominação mas também a mais antiga as relações sexuais de dominação Daí em diante o lugar das mulheres muito em especial o das mulheres das raças inferiores ficou estereotipado junto com o resto dos corpos e quanto mais in feriores fossem suas raças mais perto da natureza ou direta mente como no caso das escravas negras dentro da natureza QUIJANO 2005 p118 Kimberlé Crenshaw 2016 por sua vez formula a intersecciona lidade como uma teoria a qual explica o fato da mulher negra sofrer duplamente os impactos das injustiças sociais pois está submetida a duas condições gênero e raça Entende a autora que esta mulher en contrase em um ponto de intersecção contudo por não estar sub metida a apenas um dos padrões gênero ou raça mas em ambos ela é empurrada a espaços de invisibilidade pois não se criou padrões que interseccionam estas condições assim este grupo como tantos outros é deixado para sofrer no isolamento Lélia Gonzalez 1984 diz que o racismo se constitui como a sintomática que caracteriza a neurose cultural brasileira Nesse sentido veremos que sua arti culação com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular GONZALEZ 1984 p224 1186 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Não é possível então dissociar a situação de desigualdade das mulheres específico as negras das reflexões acerca da sociedade colo nial e os paradigmas da modernidade na qual ela permanece pois de acordo com Spivak 1988 1996 apud Harris 2017 p02 e Stuart Hall 1997 apud Harris 2017 p02 o corpo feminino e o corpo negro são os corpos mais regulados na diáspora Para Jéssica Raul 2016 este processo histórico de construção da subordinação das mulheres negras é alicerce da base da sociedade brasileira que parte seja da perspectiva desta mulher como escra va ou como objeto de dominação masculina Sidney Chalhoub 2001 apud Raul 2016 p294 ao analisar a sociedade carioca no início do período capitalista começo do século XX e os vários aspectos relati vos à vida do trabalhador afirma que mesmo muitas mulheres pobres trabalhando nas casas de comércio ou nas fábricas a grande maioria se ocupava dos serviços domésticos Segundo o autor a facilidade com que estas mulheres conseguiam emprego as tornava independentes de seus cônjuges contudo isto não era sinônimo de ascensão social ou econômica pois se para a mulher branca e de classe média havia uma imposição da vida doméstica às mulheres negras e pobres era imposto que trabalhassem desde muito cedo e em condições extremamente precárias Em um breve paralelo com a história das mulheres negras na América do Norte Angela Davis 2016 afirma que o sistema escravo crata frustra a ideia universal de que as mulheres eram propensas a vida doméstica pois as negras sempre ocuparam os espaços públicos como é demonstradoacima por Chalhoub De acordo com a autora a escrava era vista como propriedade neste ponto acabava sofrendo a mesma opressão que o homem negro contudo quando convinha ao seu senhor era explorada de formas que somente cabia a mulher eassim reduzida a sua condição de fêmea Como é possível observar as construções histórica das vivências e experiências das mulheres negras reproduzem em diferentes âm bitos essas desigualdades incluindo dentro do próprio movimento feminista considerando que este movimento muitas vezes partiu de uma visão da condição das mulheres brancas e de classe média se dis sociando das demandas específicas de outras minorias como dessas mulheres Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1187 Ocorre que as negras acabam sendo discriminadasinvisibiliza das dentro do próprio movimento o qual deveria acolhêla em suas demandas e isso acaba se reproduzindo nas suas pautas e nas suas conquistas que não enxergam às necessidades específicas deste grupo As mulheres negras não vêm suas demandas transformadas em polí ticas públicas é o caso das políticas de enfrentamento às violências de gênero e doméstica gerando a desigualdade denunciada em números de vidas perdidas e mulheres agredidas 31 Represento Aqualtune represento Carolina represento Dandara e Chica da Silva Carolina de Oliveira Lourenço MC Carol é descrita por Helô DAngelo422 como uma Mulher negra forte gorda nascida na peri feria e com uma vontade de aprender sempre mais ela não se encaixa em quase nenhum dos padrões da mulher funkeira impostos pela sociedade E não pretende se encaixar tão cedo A professora Leila Harris 2017 em seu texto O discurso opo sicional e os paradoxos da representação apresenta um estudo acerca da obra da funkeira Para a autora existe uma relação de troca entre ela professorapesquisadora da produção de autoria feminina seus alunos jovens estudantes que acreditam em direitos iguais e a MC Carol jovem negra pobre criada na favela pois Carolina de Lourenço também fala de gênero raça classe e sexualidade contudo por meio de uma outra perspectiva Para Harris 2017 MC Carol possui um saber ligado às suas experiências de vida teorizando na carne em referência a Cherríe Moraga sobre a opressão machista A cantora apresenta segundo a autora testemunho memórias e determinação em romper com o ciclo de submissão e violência Como é possível observar no trecho de sua autoria da música 100 feminista 422 DAGELO Helô MC Carol Eu nasci feminista Fórum São Paulo 2016 Disponível em httpwwwrevistaforumcombrsemanalmccaroleunas cifeminista1 Acesso em 25 set 2017 1188 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Presenciei tudo isso dentro da minha família Mulher com olho roxo espancada todo dia Eu tinha uns cinco anos mas já entendia Que mulher apanha se não fizer comida Mulher oprimida sem voz obediente Quando eu crescer eu vou ser diferente Eu cresci Prazer Carol bandida Represento as mulheres 100 feminista Desta forma MC Carol através do funk trata sobre suas expe riências de vida de opressão e violência criando um espaço de autore presentação e representação da mulher negra e periférica María Lugones 2015 aponta que a colonialidade de gênero per meia a intersecção gênero classe e raça sendo estas os alicerces cen trais do sistema de poder capitalista Propõe assim uma prática de colonial do feminismo como forma de resistência e praxi permanente Para a pesquisadora esta construção se daria no próprio arcabouço do povo colonizado fortalecendo e desenvolvendo um discurso opo sicional nas práticas feministas contudo não qualquer prática mas devese levar em conta os locais sociais e geográficos diversos Para Spivak 1990 p63 apud Harris 2017 p02 a questão da representação autorepresentação e representação do Outro é proble mática pois requer sempre um autoquestionamento acerca dos obje tivos buscados como meio de evitar que haja uma homogeneização com a construção deste Outro como simples objeto de conhecimento e por sua vez a exclusão dos verdadeiros Outros os quais não são beneficiados com as ondas de benevolência e não tem acesso aos espaços públicos Sandra Almeida 2010 ao construir o PrefácioApresentan do Spivak diz que a indagações que a autora faz é se o subalterno423 como tal pode falar De acordo com Almeida 2010 Spivak aponta 423 De acordo com Almeida 2010 p12 para Spivak o termo subalterno deve ter seu significado retomado ao sentido dado por Gramsci quando fala do prole tariado como aquele cujo a voz não pode ser ouvida Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1189 que nenhum ato de resistência pode ocorrer em nome do su balterno sem que esse ato seja imbricado no hegemônico Almeida 2010 p12 Para a autora não é possível se falar pelo Outro sem repro duzir os mesmos mecanismos de opressão e sem silenciálo É preciso então oferecer ao subalterno um lugar de fala e de escuta De acordo com Lima e Faria 2016 A construção das iden tidades positivas de mulheres negras é prejudicada pelas constantes violências pelas quais é submetida como a ausência de discussão em espaços escolares ou não escolares Lima Faria 2016 p 310 Car neiro 2003 apresenta outras formas de violência contra as mulheres negras como o processo de embranquecimento Os efeitos da hegemonia da branquitude no imaginário social e nas relações sociais concretas É uma violência invisível que contrai saldos negativos para a subjetividade das mulheres ne gras resvalando na afetividade e sexualidade destas Tal dimen são da violência racial e as particularidades que ela assume em relação às mulheres dos grupos raciais não hegemônicos CARNEIRO 2003 p123 Estas mulheres se vêm assimilando a cultura branca considera da hegemônica forçadas a se embranquecer para se igualar à um re ferencial ideal que seria a mulher branca Esta autorepresentação embranquecida não se reflete apenas no aspecto estético e cultural mas também nas políticas públicas de enfrentamento às violências de gênero tendo a mulher branca como figura central dessas MC Carol em parceria com a rapper Karol Conka ao idealizar a obra 100 feminista e traduzir suas experiências na carne como mulher negra nos trechos da música é a ruptura deste embranqueci mento como autorepresentação ela toma para si o espaço de fala e de escuta tanto defendido por Spivak em sua teoria ela se torna as sim como outras artistas negras incluindo sua parceira Karol Conka no Brasil a voz da sua subalternidade e cria a possibilidade de uma verdadeira autorepresentação Isto é evidenciado quando em sua com posição canta 1190 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Represento Aqualtune represento Carolina represento Danda ra e Chica da Silva Sou mulher sou negra meu cabelo é duro Forte autoritária E às vezes frágil eu assumo Minha fragilidade não diminui minha força Eu que mando nessa porra Eu não vou lavar a louça Sou mulher independente não aceito opressão Ela de fato rompe com o ideal de representação da mulher negra como uma vítima sofredora e submissa diante dos ciclos de violência e mostra que dentro da história brasileira existiram figuras icônicas algumas míticas de negras que resistiram à sua condição Angela Davis 2016 ao tratar das diversas formas de resistência das escravas no Estados Unidos entre elas estava organização de mo tins e envenenamento dos seus senhores subverte o termo subjugar pois ainda que oprimidas estas mulheres jamais foram subjugadas MC Carol é esta subversão A música 100 feminista é a resposta da pergunta feita por Spi vak o subalterno pode falar sim como tal as mulheres negras podem falar a funkeira negra e gorda e a rapper negra podem falar e a fala delas ecoa pelos mais diferentes espaços como o acadêmico MC Ca rol ao idealizála é a construção do que Harris fala sobre as diferentes formas de saber sobre a teorização na carne de Cherríe Moraga A cantora junto à Karol Conka conseguiu em 100 feminista trazer a memória de diversas mulheres desdes das figuras míticas como Dan dara negras que fizeram resistência à sua condição criando a possibi lidade de um novo referencial de autorepresentação É a partir desta discussão que devem surgir os questionamentos acerca do porquê as mulheres negras mesmo após a criação da Lei Maria da Penha continuam sendo o segmento que mais sofre com a violência doméstica Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1191 4 DESDE PEQUENAS APRENDEMOS QUE SILÊNCIO NÃO FUNCIONA QUE A REVOLTA VEM À TONA POIS A JUSTIÇA NÃO FUNCIONA MC Carol em parceria com a cantora Karol Conka na composi ção da obra 100 feminista é capaz de apresentar as contradições partindo das suas experiências de vida e sua relação com a violência doméstica no dia a dia da Lei Maria da Penha A Lei 113402006 em seu conteúdo normativo traz uma série de estruturas para o enfrentamento a violência doméstica e intrafamiliar desde do estabelecer diretrizes para um rede de atendimento funda da em políticas de prevenção e erradicação deste tipo de violência passando por capacitação dos profissionais das DEAMs Delegacias Especializadas no Atendimento a Mulher até a promoção de progra mas educacionais para conscientização das questões de gênero e raça contudo ainda se critica bastante a lei e o enfoque nas sanções penais em detrimento a exemplo da fomentação das diretrizes previstas no art8º Para Carmen Hein de Campos 2011 a Lei Maria da Penha pos sibilita deslocamentos discursivos os quais reforçam os direitos das mulheres e sua relação com uma vida livre de violência rompen do com a ordem de gênero do direito penal Campos 2011 p09 Apesar da autora se posicionar a favor ela expõeainda algumas críti cas não apenas a aplicabilidade da mesma mas as respostas penais e não penais por ela oferecidas Campos 2011 p10 afirmando que a lei não oferece alternativas às respostas penais tradicionais pelo con trário quando impossibilita a transação penal a conciliação ou mes mo a suspensão condicional do processo ela subtrai a possibilidade destas Ana Flauzina 2015 ao analisar por meio das perspectivas de mu lheres negras as potencialidades e limitações da Lei Maria da Penha afirma que significa tocar no ponto central dos dilemas de um marco jurídico inovador operado a partir de um sistema conformado por padrões históricos discriminatórios Flauzina 2015 p123 Partindo desse contexto Flauzina 2015 aponta uma tendência predominante das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar 1192 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça em rejeitar o viés punitivista da Lei Maria da Penha há um an seio claro pela suspensão das agressões e pela responsabilização dos agressores sem o emprego do cárcere como mediador dos conflitos Flauzina 2015 p136 De acordo com a autora esta demanda que visa uma resposta a qual não banalize a violência sofrida por essas mulheres mas também que não invista no aprisionamento dos autores dos delitos parece desarticular as aspirações predominantes de setores expressivos da militância feminista Ainda de acordo com Flauzina 2015 a Lei Maria da Penha e seus ideais estão associados a uma resposta mais contundente às brutalizações que sempre foram descartadas como menores tolerá veis naturais Flauzina 2015 p136 A autora entende que esses di ferentes posicionamentos entre resistência e militância decorrem do fato de ambas apresentarem conceitos diferentes de justiça nos casos de violência doméstica e familiar A justiça da resistência quotidiana das mulheres vitimadas se associa à suspensão das agressões à escuta de suas demandas a responsabilização nos termos em que seus laços de afeto lhes permiti rem postular Flauzina 2015p137 Enquanto o sentido de justiça propagado por grande parte dos segmentos da militância feminista tenta descolar a figura do agressor como sujeito que evoca sen timentos complexos de afeto e repulsa ternura e medo Flauzina 2015 p137 Dessa forma essas visões se incompatibilizam pois uma apresenta sentido eminente criminal e outra apresenta uma vontade de resoluções alternativas à esses conflitos Flauzina 2015 ainda aponta que em relação às mulheres ne gras as discussões acerca da Lei Maria da Penha não levaram em con sideração as peculiaridades que as envolvem à exemplo o fato dessas no âmbito doméstico sofrerem uma potencialização das agressões as quais são submetidas devido à significante influência do racismo As sim acabam silenciando dimensões importantes dos abusos físi cos e psicológicos que atingem as mulheres negras a partir da conjun ção da lógica sexista e racista reverberada pelos agressores Flauzina 2015 p144 Flauzina 2015 entende que esse abafar das vozes das mulheres nos caminhos os quais conduzem a Lei Maria da Penha é em parte reflexo da hegemonia dos feminismos brancos nas articulações acerca das demandas feministas o qual se traduz pelos Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1193 privilégios da branquitude da classe social dos padrões cisgênero e heteronormativos que acaba por considerar mulheres não social mente empoderadas em sua grande maioria negras e empobrecidas como um obstáculo uma inconveniência para a concretização dos nobres ideias feministas FLAUZINA 2015 p146 Os questionamentos trazidos na letra são diversos como quando Karol Conka em composição sua afirma que Desde pequenas aprendemos que silêncio não soluciona Que a revolta vem à tona pois a justiça não funciona Me ensinaram que éramos insuficientes Discordei pra ser ouvida o grito Tem que ser potente Tentam nos confundir Distorcem tudo que eu sei Século XXI e ainda querem nos limitar Com novas leis Demonstrase a descrença das mulheres negras em especial nas leis e na justiça por acreditarem que estas não são eficazes e limitam ainda mais as suas liberdades e dificultam sua emancipação A letra traz consigo as críticas levantadas acima por diversos autores como Carmen Hein 2011 na aplicação da Lei Maria da Penha e na falta de alternativas à tradicional política jurídicopunitiva em um enfoque maior nas políticas de educação e informação acerca das questões de gênero e da violência doméstica das outras formas de resolução do conflito em detrimento da política de encarceramento e de sanção penal 1194 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante dos aportes teóricos traçados ao longo deste estudo e das análises da música 100 feminista de MC Carol em parceria com Karol Conka é possível concluir que as mulheres negras em face das possibilidades e limitações da Lei Maria da Penha no enfrentamento à violência doméstica não são verdadeiramente contempladas em suas demandas pois a lei não compreende as especificidades deste grupo o qual apresenta a interseccionalidade de gênero e raça como principal característica logo estas mulheres acabam se mantendo como seg mento mais vulnerável à violência doméstica e intrafamiliar Ainda é possível concluir a importância de se oferecer espaços de fala e escuta à essas mulheres negras para que possam apresentar suas demandas e suas denúncias A Lei Maria da Penha necessita por sua vez se tornar capaz de realizar uma verdadeira imersão cultural para chegar aos espaços que estas mulheres transitam onde elas constroem suas relações afetivas e suas experiências de vida bem como suas vi vências cotidianas de violência Através dessas conclusões percebese a relevância do estudo da música obra idealizada pela funkeira MC Carol e composta em par ceria com a rapper Karol Conka duas mulheres negras feministas vindas de espaços considerados subalternos e cada uma com sua perspectiva acerca das violências contra as mulheres negras REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA Sandra Regina Goulart Prefácio apresentando Spivak In SPIVAK Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Belo Ho rizonte Editora UFMG 2010 ANDRADE Vera Regina Pereira de Criminologia e feminismo Da mulher como vítima à mulher como sujeito In CAMPOS Carmen Hein de Org Criminologia e Feminismo 1ª ed Porto Alegre Edi tora Sulina 1999 p105117 BANDIDA Carol CONKA Karol 100 feminista Composição Bandida Carol Conka Karol Bandida Heavy Baile 2016 Dispo Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1195 nível em httpswwwyoutubecomwatchvW05v0B59K5s Acesso em 26 ago 2017 BRASIL Lei n11340 de 7 ago de 2006 Lei que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos do 8o do art 226 da Constituição Federal da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher altera o Código de Processo Penal o Código Penal e a Lei de Execução Penal e dá outras providências Brasília DF ago 2006 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato200420062006lei l11340htm Acesso em 15 set 2017 CAMPOS Carmen Hein de Razão e Sensibilidade Teoria Feminis ta do Direito e Lei Maria da Penha In CAMPOS Carmen Hein de org Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico feminista Rio de 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Lélia Racismo e sexismo na cultura brasileira In SIL VA L A et al Movimentos sociais urbanos minorias e outros estu dos Ciências Sociais Hoje Brasília ANPOCS n 2 1984 p 223244 HARRIS Leila Assumpção O discurso oposicional e os paradoxos da representação In 13º MUNDO DE MULHERES FAZENDO GÊNERO 11 Transformações conexões deslocamentos 31 de julho a 04 de agosto de 2017 Florianópolis Universidade Federal de Santa Catarina LIMA Andrêsa Helena FARIA Daniele Ribeiro Mulheres negras e feminicídio no Brasil a violência em sua face dupla In V Congres so Internacional em Estudos Culturais Género Direitos Humanos e Ativismos 07 de setembro de 2016 a 09 de setembro de 2016 Aveiro Universidade de Aveiro 2016 Disponível em httpestudoscultu raiscomcongressosvcongressowpcontentuploads201609mu lheresnegrasefeminicC3ADdionobrasilaviolC3AAn ciaemsuafaceduplapdf Acesso em 18 abr 2018 LIMA Renato Sérgio de BUENO Samira CoordGer 11ª Anuário Brasileiro de Seguranças Pública 2017 São Paulo Fórum Nacional de 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WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da Violência 2015 homicídio de mulheres no Brasil Brasília ONU Mulheres 2015 Disponível em httpwwwmapadaviolenciaorgbrpdf2015MapaViolen cia2015mulherespdf Acessado em 22 de Jul de 2017 1198 NARRATIVAS SOBRE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA UMA ANÁLISE DAS HISTÓRIAS DE VIDA DAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA CONJUGAL Flávia Hardt Schreiner424 RESUMO Neste trabalho almejouse identificar quais são as causas atribuídas pelas mulheres à violência de gênero e explorouse como essa relação violenta se constrói e se reproduz A proposta desta pes quisa está relacionada à necessidade de analisar a fala das mulheres em situação de violência e a forma como elas contam as suas histórias de vida a fim de através de seus discursos tentar compreender ao menos uma parte do fenômeno da violência conjugal contribuindo assim na busca de formas mais eficientes de entender no plano da socio logia jurídica o fenômeno da violência doméstica Para tal utilizou se o método indutivo de abordagem e os métodos de procedimento monográfico e comparativo Os resultados indicam que na narrativa das próprias vítimas há opiniões de senso comum de que o uso de psicotrópicos entre outros sustentam a prática da violência contra a mulher Porém concluise que não se trata de estabelecer uma relação direta entre esses e outros fatores semelhantes encontrados como cau sas da violência mas reconhecer que estes são elementos que apenas favorecem o desencadeamento dos conflitos e das agressões sendo o contexto da violência conjugal muito mais complexo PALAVRASCHAVE Gênero Violência Doméstica Violência Con jugal Causas 424 Graduada em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria UFSM e mestranda no Programa de PósGraduação em Estudos Inter disciplinares sobre Mulheres Gênero e Feminismo na Universidade Federal da Bahia UFBA Email flaviahardtgmailcom Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1199 1 INTRODUÇÃO De acordo com Saffioti e Almeida 1995 p 48 a violência contra a mulher é um fenômeno inscrito nas normas sociais que desconhece quaisquer tipos de fronteiras sejam estas étnicas de classe social de tipos de culturas ou de lugar A violência ocorre tanto no espaço públi co quanto no espaço privado em qualquer etapa da vida das mulheres de forma institucionalizada ou no seu oposto por familiares e pelo próprio companheiro especialmente por parte deste último Constatase que um dos mais antigos elementos de debate a vio lência de gênero neste trabalho analisada sob o aspecto da violência doméstica contra a mulher apesar de possuir tratamento jurídico es pecífico desde o advento da Lei Maria da Penha em 2006 ainda carece de estudos sociais aprofundados que visem análises detalhadas sobre este tipo de violência Conforme o referencial teórico demonstrará a tarefa de punir o agente agressor da mulher nos casos que chegam ao poder judiciário como única medida de coibição não é suficiente para uma efetiva contenção à violência contra a mulher no plano social O estudo da temática centrase na violência conjugal heterosse xual fenômeno central para a análise das relações de gênero tanto dentro da família como no âmbito da sociedade Observar a violência conjugal sob a ótica das mulheres em situação de violência é uma tare fa desafiadora Acreditase na importância de analisar o discurso das mulheres em situação de violência e a forma como elas contam as suas histórias a fim de através de seus discursos tentar compreender o fe nômeno da violência conjugal muitas vezes visto como fato cotidiano sendo naturalizado Desta forma este trabalho inserese no campo dos estudos de gê nero dentro da temática da violência doméstica e conjugal contra a mulher Através da análise das entrevistas realizadas com mulheres em situação de violência doméstica na cidade de Santa MariaRS as quais sofreram dentre outras agressões a agressão corporal investigouse quais são as causas atribuídas pelas mulheres à violência de gênero e explorouse como essa relação violenta se constrói e se reproduz Isto posto o estudo que busca investigar o relato aprofundado e natural das vítimas sobre as supostas motivações do agente perante a sua ação de agressão pode contribuir na busca de formas mais efi 1200 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça cientes de entender o fenômeno da violência doméstica contribuin do na busca de soluções mais efetivas por parte da sociedade e do Estado Democrático de Direito Neste trabalho não se adotou uma teoria que apresente as mulheres como vítimas estanques da violência sendo mais adequado falar em mulheres em situações de violência Assim como não se apresenta o homem autor da violência como simples agressor e único responsável ignorando as relações de gênero que constroem as relações violentas Nesse contexto tornase necessá rio atentar para as relações entre os papéis masculino e feminino que constroem a desigualdade entre homens e mulheres Inicialmente apresentamse conceituações e distinções entre os termos que norteiam a pesquisa da temática de violência de gênero doméstica e conjugal no âmbito jurídico Em seguida apresentase o campo de pesquisa descrito em sua metodologia e nas entrevistas se miestruturadas425 realizadas bem como fazse uma análise das ideolo gias justificativas da violência doméstica explorandose a construção e a manutenção dessas relações conjugais 2 O GÊNERO E A VIOLÊNCIA CONJUGAL Segundo Louro 1997 p 1416 o conceito de gênero surgiu a partir de estudos provenientes do movimento feminista O feminismo como marco de um movimento históricosocial organizado iniciouse no Ocidente na virada do século XIX mas o conceito de gênero surgiu após a denominada segunda onda a partir da década de setenta No Brasil Joan Scott através de seu artigo intitulado Gênero Uma Ca tegoria Útil para Análise Histórica publicado em 1986 e traduzido no país em 1990 sistematizou uma definição do conceito levando em conta suas três principais características dimensão relacional cons trução social das diferenças percebidas entre os sexos e campo pri mordial no qual o poder se articula 425 As entrevistas foram realizadas no ano de 2013 com três mulheres vitimas de lesão corporal praticada pelo companheiro e assistidas pela Defensoria Pú blica na cidade de Santa Maria RS Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1201 Minha definição de gênero tem duas partes e vários itens Eles estão interrelacionados mas devem ser analiticamente distin tos O coração da definição reside numa ligação integral entre duas proposições gênero é um elemento constitutivo das rela ções sociais baseado em diferenças percebidas entre os sexos Entretanto minha teorização de gênero está na segunda parte gênero como uma forma primária de significação das relações de poder Talvez fosse melhor dizer que gênero é um campo primário no qual ou através do qual o poder é articula do SCOTT 1988 p 4244 Essa característica social e relacional do conceito gênero dialo ga como categoria constituinte da identidade dos sujeitos Compreen dese que as diferentes instituições e práticas sociais são constituídas pelos gêneros e também constituintes dos mesmos produzindose a partir das relações de gênero mas não apenas a partir dessas rela ções e sim também de relações de classes étnicas entre outras Lou ro1997 p 2325 Saffioti 2001 p 129 acrescenta que o único consenso existente sobre o conceito de gênero reside no fato de que se trata de uma mo delagem social mas não necessariamente referida ao sexo em que o gênero pode ser construído independentemente do sexo Porém em relação às divergências há feministas que ainda trabalham com o conceito de sexogênero outras que se apegam às diferenças sexuais e outras que afirmam de tal modo o primado do social que acabam por ignorarnegar o corpo A autora conclui seu pensamento e afirma que ignorar as diferentes vertentes do feminismo é algo grave pois homo geneíza uma realidade bastante diferenciada e se esta diferenciação não é captada a aproximação do real é infinitamente mais pobre que ele Dessa maneira os substantivos feminismo e mulher presumem se neste trabalho em seus plurais feminismos e mulheres Uma das formas específicas de manifestação de violência rela cionase com o gênero Essa temática foi uma das principais áreas de investimento do movimento feminista a qual tem sua literatura de senvolvida no Brasil a partir da década de oitenta Esses estudos foram impulsionados pelas mudanças sociais e políticas no país acompa nhando o desenvolvimento do movimento de mulheres e do processo de redemocratização Os primeiros estudos sobre o tema buscaram 1202 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça mapear e compreender o fenômeno social da violência contra a mu lher e a relação desta com a violência Uma das conquistas mais im portantes dessa época foi a criação das delegacias da mulher sendo que a primeira delegacia do Brasil e do mundo foi inaugurada em 1985 na cidade de São Paulo Santos Izumino 2005 p 12 De acordo Santos e Izumino 2005 p9 as primeiras autoras bra sileiras que utilizaram a expressão violência de gênero foram He leieth Saffioti e Sueli Souza de Almeida em livro publicado no ano de 1995 intitulado Violência de Gênero Poder e Impotência Dentre as diferentes formas de violência de gênero ou violência contra a mulher encontrase a violência doméstica ou familiar e nesta mais especifica mente a conjugal A dinâmica da violência conjugal geralmente revela um processo cíclico relacional e progressivo Em 1979 a psicóloga norteamericana Lenore Walker entrevistou 1500 mulheres vítimas de violência e constatou neste trabalho que to das elas apresentavam um padrão semelhante de abuso constituído de três fases Na primeira fase ocorrem incidentes de violência verbal e por vias de fato como chutes e empurrões A segunda fase é carac terizada por uma incontrolável descarga de tensão sendo a mulher geralmente agredida fisicamente de forma mais violenta Culminase na terceira fase com uma temporária reconciliação que é marcada por um comportamento gentil do agressor que aparentemente arrepen dido pede perdão e faz promessas De acordo com Walker esse ciclo faz com que muitos homens e mulheres permaneçam durante vários anos em relações violentas 2002 apud Lima 2009 p 3133 Neste trabalho reconhecese a violência conjugal enquanto uma relação complexa Utilizandose uma perspectiva relacional de poder nos estudos de gênero permitindo a reflexão sobre ser a violência fí sica e psicológica um mecanismo perverso de poder e de regulação dos conflitos existentes nas relações conjugais e na sociedade sendo a força dominante física e psicológica dentro dessa relação mais do que um meio de obtenção de interesses e sim um dos próprios princí pios de regulação das relações sociais estabelecidas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1203 3 CORRENTES TEÓRICAS E ASPECTOS LEGAIS RELACIONADOS À VIOLÊNCIA DE GÊNERO Após a assinatura da Convenção sobre a Eliminação de Todas as For mas de Discriminação contra a Mulher em 1984 pelo Brasil nos anos noventa os estudos sobre violência contra as mulheres também refle tiram mudanças no cenário jurídicopolítico nacional e internacional O processo de redemocratização no Brasil possibilitou a promulgação de novas leis Constituição de 1988 e novas instituições delegacias da mulher as quais ampliaram formalmente os direitos das mulheres Santos Izumino 2005 p 13 A Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher ratificada em 1995 também foi um marco histórico na luta das mulheres por uma vida sem violência pois o Es tado brasileiro passou a contar com dispositivo legal internacional que define e diz como se manifesta esta forma específica de violência que atinge as mulheres De acordo com a Convenção deve ser interpre tada como violência contra as mulheres qualquer ação ou conduta baseada no gênero que cause morte dano ou sofrimento físico sexual ou psicológico à mulher tanto no âmbito público como no privado AGENDE 2004 p 9 Houve neste momento uma aparente superação da dicotomia entre o público e o privado sendo uma grande contribuição dessa de finição uma vez que denunciase institucionalmente a violência exis tente dentro do ambiente doméstico Em 2002 foi criada a Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher SEDIM que em 2003 foi trans formada em Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres SPM que dentre as principais conquistas está a Central de Atendimento à Mulher Ligue 180 Toda essa mobilização em torno dos direitos da mulher culminou no Projeto de Lei 45592004 transformado na Lei 113402006 Lei Maria da Penha sendo hoje o principal ins trumento de combate à violência doméstica contra a mulher no país Lopes Silva 2013 p 62 No que tange às denominações legais a respeito da violência do méstica e da violência familiar a Lei Maria da Penha no seu Art 5º considera a violência no âmbito doméstico como aquela compreen dida como espaço de convívio permanente de pessoas com ou sem 1204 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça vínculo familiar inclusive as esporadicamente agregadas e no âmbito da família como aquela compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados unidos por laços naturais por afinidade ou por vontade expressa A Lei 113402006 ainda faz referência à violência conjugal como aquela que se dá em qualquer relação íntima de afeto na qual o agres sor conviva ou tenha convivido com a ofendida independente de coa bitação Brasil 2006 s p O que distingue a violência doméstica da violência que não acontece no âmbito doméstico é em termos gerais a relação de afeto entre a vítima e o agressor Santos e Izumino 2005 p 2 realizaram uma revisão crítica das principais referências teóricas das Ciências Sociais na área de violên cia contra as mulheres no Brasil Essas autoras identificaram três cor rentes teóricas sobre a temática violência de gênero quais sejam a primeira que denominamos de dominação masculina define violência contra as mulheres como expressão de do minação da mulher pelo homem resultando na anulação da autonomia da mulher concebida tanto como vítima quanto cúmplice da dominação masculina a segunda corrente que chamamos de dominação patriarcal é influenciada pela pers pectiva feminista e marxista compreendendo violência como expressão do patriarcado em que a mulher é vista como sujeito social autônomo porém historicamente vitimada pelo controle social masculino a terceira corrente que nomeamos de relacio nal relativiza as noções de dominação masculina e vitimização feminina concebendo violência como uma forma de comuni cação e um jogo do qual a mulher não é vítima senãocúm plice A segunda corrente teórica que embasa os estudos sobre a vio lência contra a mulher foi introduzida no Brasil pela socióloga He leieth Saffioti Nessa perspectiva a dominação masculina patriarcal está relacionada aos sistemas capitalista racista e a uma socialização opressora sobre a mulher Enquanto a dominação poderia ser situada essencialmente nos campos político e ideológico a exploração diria respeito diretamente ao terreno econômico De acordo com esta cor rente a mulher não seria cúmplice apenas se submeteria à violência Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1205 não porque consinta mas por ser forçada a ceder Saffioti 2004 p 7980 Deste modo a mulher passa a ser concebida como sujeito so cial autônomo porém historicamente vitimizada pelo controle social masculino Na terceira perspectiva sobre os estudos relacionados à violência contra a mulher Gregori relativizou o binômio dominaçãovitimiza ção pois a violência de gênero seria entendida como o resultado das relações de poder e força entre o masculino e o feminino sendo tanto os homens quanto as mulheres responsáveis pela manutenção dessas relações e que essas relações violentas também podem ser uma forma de comunicação ainda que atroz e intolerável Gregori 1993 4 O CONTEXTO DA PESQUISA E AS MULHERES O campo de pesquisa foi constituído por três mulheres que figura vam como vítimas em processo de violência doméstica com medida protetiva da 4ª Vara Criminal da cidade de Santa MariaRS assistidas pela Defensoria Pública do Estado da cidade Considerouse que uma amostra ideal de base qualitativa é aquela capaz de refletir a totalidade do problema de investigação em suas múltiplas dimensões portanto não está atrelada a critérios numéricos para sua delimitação Minayo 1993 p 102 Optouse pela entrevista semiestruturada pois de acordo com Manzini 19901991 p 154 há neste modelo o potencial de fazer brotar informações de forma mais livre tendo a vantagem de não con dicionar as respostas a uma padronização de alternativas preestabe lecidas O método de abordagem escolhido foi o indutivo em que o conhecimento seria também fundamentado na experiência e os méto dos de procedimento adotados foram o monográfico e o comparativo Gil 2008 p 9 18 É significativo evidenciar que no transcorrer das entrevistas em alguns casos percebeuse a necessidade de flexibilizar o roteiro pre viamente elaborado da entrevista semiestruturada uma vez que as participantes julgavamse mais livres em contar suas histórias de vida por meio de uma entrevista aberta em profundidade Desta maneira essas mulheres relataram os modos como transcorreram suas relações 1206 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça de violência que antecederam a realização da ocorrência policial e a instauração de processo criminal em que figuravam seus excônjuges eou excompanheiros como réus Na busca pela compreensão das ideologias justificativas da vio lência doméstica relatadas pelas próprias vítimas e centrandose a atenção nas lógicas de conduta do agressor que essas mulheres atri buem aos seus parceiros íntimos tentouse analisar qualis os prin cipalis fatos que em tese motivaram a agressão atribuídos pelas vítimas Ademais como tarefa desafiadora buscouse pistas sobre como a violência de gênero se constrói e se reproduz percebendo se precocemente que não se chegaria a uma resposta terminativa As mulheres vítimas de violência doméstica pesquisadas foram carac terizadas pela idade todas entre 4453 anos raça todas brancas endereço ocupação número de filhos e pessoas com quem residiam sendo que nomes fictícios foram atribuídos às mesmas 5 AS NARRATIVAS DAS TRÊS MULHERES ONDE AS HISTÓRIAS SE ENCONTRAM Após dois anos de relacionamento o companheiro de Hera passou a ser estúpido arrogante não sabendo dialogar Na primeira vez que seu companheiro a teria apagado Hera relatou que uma hora pen sei que ia morrerele não falava nada ele ficou cego ele fica cego sabe ele fica cego quando ele pega uma pessoa assim Segundo Hera quando ele me apagou me bateu eu não queria que ele comprasse o carro do irmão dele através de um empréstimo Que depois do carro era só o carro e que final de semana tinha jun ção e beberagem com os amigos Na primeira vez que a entrevistada registrou a ocorrência comentou que não deu em nada pois eu fui no fórum e retirei daí né eu retirei daí né coisa e tal aí ele continuo e me prometeu que ia mudar e que não sei o que lá e tudo e coisa e tal eu dei uma chance né eu achei que ele ia muda que o troço ia muda ia funciona tinha a guria pe quena né eu dei a chance né aí levou um tempão de novo ele começou de novo né sempre é as mal companhia no trabalho Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1207 sabe que daí sai de noite vão bebe vãos pros bar bebê chega bêbado chega cos amigo bota o som bem alto na frente de casa não deixa eu durmi não respeitava a guria Ressaltou que tem medo de voltar para casa que quer uma pro teção e que acreditava que a justiça fosse mais correta mais rápida Amigos e familiares encorajaram Hera a registrar ocorrência também por que ela nunca teria dependido financeiramente de seu compa nheiro mas que se sentia sobrecarregada com a acumulação de tare fas Hera ao relatar o comportamento de seu companheiro diz que antes ele bebia fazia junção que na frente dos outros queria ser né ô né e que pedia para ele baixar a bola Também relatou que seu companheiro fala que eu tenho homi que eu tenho outro homi e que é agressivo fora da casinha toda a família dele é assim A segunda entrevistada aqui referenciada como Ilítia relacio nouse com seu excônjuge por cerca de 20 anos Relatou que durante o relacionamento afetivo seu cônjuge fazia uso de maconha normal mente e que Ilítia aceitava pois ele ficava calmo não se alterava Po rém após os primeiros cinco anos de casamento a cocaína passou a ser utilizada ocasião em que o cônjuge ficava louco por vezes ausentavase durante um final de semana de casa e voltava muito agressivo Acredita que ele começou a cheirar devido às amizades Confessa que a relação desde o início sempre foi bem movimentada que o casal brigava bastante Ilítia declarou que sempre foi birrenta referindose às suas críticas e cobranças constantes em relação ao companheiro Segundo a entrevistada seu companheiro não gostava de tra balhar não participava das festas de família pois ele tinha as festas dele as amigas Em relação ao comportamento Ilítia descreve que ele era muito agressivo e ciumento durante o relacionamento ocorreram muitos puxões empurrões puxadas de cabelo A entrevistada relatou que o marido tinha ciúme do fato de ela trabalhar tendo seguido Ilí tia por inúmeras vezes Em uma ocasião o companheiro utilizou uma panela de pressão para machucála e em outra ele quebrou a mão de Ilítia 1208 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça A entrevistada demonstrou esperança na mudança do comporta mento de seu marido o qual mudava por algum tempo mas retornava ao seu comportamento violento O casal então se separou sendo que foi seu parceiro que saiu de casa Hoje Ilítia relata que tem pena dele Em relação à medida protetiva a entrevistada relata que ele não tem medo da medida protetiva se ele for pra cadeia não faz diferença pra ele ameaça que irá tirar o seio riscar o rosto mas tu não fica com ninguém A terceira mulher Maia morou com seu excompanheiro por aproximadamente um ano Contou que em seu namoro apenas ela se doava e não recebia nada em troca Relatou que seu excompanheiro teria muito ciúme inclusive ciúme de amiga e que optou pela dis solução da relação pois não lhe acrescentava nada A entrevistada declarouse independente e que não era ciumenta até pelo fato de o excompanheiro ser viajante Acreditava que uma das coisas que mais incomodava o ex seria que ela vivia muito bem só Maia comentou que a violência surgiu quando o excompanheiro não aceitou que a relação havia acabado porém em toda relação sempre teve muito machismo homem grita homem pode isso aí sempre teve só que eu nunca revidei não acei ta uma mulher moderna que pode ir numa festinha de amigas sozinha mas a mulher moderna pode pagar todas as contas Em relação ao episódio de violência a relação já estava terminada e restava somente a amizade aí fomos numa boate e ele diz que eu olhei pra alguém acho até que olhei e olhar não é proibido eu já não tinha mais nada com ele e aí ele fez cena queria brigar Neste momento ambos teriam deixado a boate e iniciaram uma discussão na frente da casa de Maia local em que o episódio de vio lência ocorreu Ele não me pegou eu pra agredir eu entrei e fechei o portão quando eu fechei o portão ele não queria que eu fosse me segurou através do portão que torceu o meu dedo e puxou a minha blusa não chegou a ser vou te pegar e vô te agredir Maia admitiu que na ocasião da torção do dedo ele estava um pouco alcoolizado que ela tinha medo que algum dia em público ele poderia fazer alguma coisa um bateboca por isso teria decidido Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1209 pedir uma protetiva Em relação ao comportamento dele Maia re latou eu acho que o problema dele é o álcool ele fica perdido um pouco de machismo preconceito aquele homem da moda antiga e um pou co que quando bebe não mede as consequências mas não quer dizer que fique violento a ponto de matar fica ciumento fica tipo um guri puxando briga discutindo fazendo escândalo sabe Apesar de as histórias serem bem diferentes umas das outras as três mulheres tem fatores em comum as agressãoões sofridas as ideologias justificativas da violência pelo ciúme e por fatores externos como o uso de psicotrópicos e sensação de insatisfação em relação ao parceiro A despeito da ocorrência dos variados tipos de violência relatados atentouse que as mulheres sentiramse confiantes a denun ciar os agressores e a buscarem reconstruir a sua vida longe de seus excompanheiros Os fatores desencadeadores da violência apontados pelas mu lheres entrevistadas foram variados Na narrativa de Hera a mesma relatou que quando seu companheiro a apagou pela primeira vez Hera teria sido contrária a vontade de seu companheiro de comprar um carro Observase o fator econômico envolvido na narrativa da violência Em outros trechos da entrevista viuse fatores justificati vos como as pessoas que em tese influenciariam seu companheiro os psicotrópicos álcool o ciúme e a naturalização da violência presente em seu companheiro Ilítia na mesma linha apontou a cocaína como fator que enlou quecia seu excompanheiro e que ele começou a cheirar devido às amizades Também des creve que ele era muito agressivo e ciumento Maia comentou que na ocasião da torção do dedo única ocorrência relatada de violência cor poral ela teria olhado para outra pessoa o que desencadeou o ciúme por parte de seu parceiro e também o mesmo não aceitava que a rela ção havia acabado Ademais disse que o problema dele era o álcool e um pouco de machismo 1210 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Entre os estudos brasileiros a respeito da violência contra a mu lher há várias referências sobre os mesmos fatores em tese desen cadeadores da violência segundo o entendimento das mulheres em situação de vítima Por exemplo Soares et al 1996 p 119 também constataram que certos temas são recorrentemente associados à ori gem dos conflitos como a bebida problemas de cabeça ciúmes sexo e dinheiro isoladamente ou de forma combinada compondo assim o repertório básico dos fatores disruptivos capazes de detonar as cenas de violência Importante frisar nos relatos apresentados pelas mulheres que os motivos alegados revelam muitas vezes mais sobre as razões que le varam a mulher a pedir ajuda do que sobre a agressão sofrida Gregori 1993 identificou nos relatos uma referência comum ao projeto de casamento e família e um esforço em apontar os elementos que atra palhavam a sua concretização Quando identificados esses elementos quase sempre são externos ao casamento como por exemplo bebida drogas e mulheres Conforme o exposto verificase que os fatores aparentemente causadores do conflito como o ciúmes e o uso de psicotrópicos por parte dos companheiros dessas mulheres tratamse apenas de poten cializadores dessa violência e que conectálos às causas da violência significa desviar o foco do problema pois suas raízes são bem mais profundas e residem no modo como as relações entre os sexos são pensadas e se organizam na sociedade Izumino 2003 p 211 6 O GÊNERO E A RELAÇÃO CONJUGAL CONSTRUÇÃO E REPRODUÇÃO As entrevistadas afirmaram que as brigas do casal quase sempre esta vam relacionadas ao sentimento de ciúmes à bebida às drogas aos amigos e amigas Por exemplo Ilítia relatou episódios de ciúme e des confiança de seu companheiro e Maia declarou que seu companheiro incomodavase com a sua independência Todas essas relações vio lentas e de dominação da mulher pelo homem não ocorrem num mo mento específico mas são construídas e cultivadas por essas relações durante anos conforme pode ser analisado nas entrevistas realizadas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1211 Através dos conceitos de campo e habitus propostos por Pierre Bourdieu fazse um paralelo que a relação conjugal dentro da esfera doméstica seria um campo no qual os membros da família interagem cada qual exercendo poder conforme o capital social que possuem Bourdieu 1994 p 56 destaca que as lutas pelo poder são travadas em campos nos quais se produzem as relações de poder de forma clara e às vezes até mesmo impositiva Cada campo é capaz de impor sua própria lógica aos agentes que nele se inserem Para que um campo funcione entende Bourdieu 1983 p 89 é preciso que haja objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo dotadas de habitus que impliquem no conhecimento e reco nhecimento das leis imanentes do jogo A existência do habitus é ao mesmo tempo condição de existência de um determinado campo e produto de seu funcionamento dentro de uma estrutura específica A estrutura do campo é um estado da relação de força entre os agentes ou as instituições engajadas na luta ou se preferirmos da distribuição do capital específico que acumulado no curso das lutas anteriores orienta as estratégias ulteriores Esta estrutura que está na origem das estratégias destinadas a transformála também está sempre em jogo as lutas cujo espaço é o campo têm por objeto o monopólio da vio lência legítima autoridade específica que é característica do campo considerado isto é em definitivo a conservação ou a subversão da estrutura da distribuição do capital específico BOURDIEU 1983 p 90 Segundo Bourdieu 1983 p 9091 dentro dessa relação de força os agentes que quase que de forma completa monopolizam o capital específico como fundamento de dominação ou autoridade específica de um campo tendem a estratégias que visem a manutenção da or dem estabelecida Já os agentes que possuem menos capital específico do campo inversamente tendem a estratégias de subversão de rom pimento dentro de certos limites Bourdieu 2003 p 8 nos mostra que há esquemas de percepções interpretações e ações no mundo que constroem de forma naturalizada noções de sexo que acabam servin do de legitimação para os próprios esquemas de percepção sendo um processo que se retroalimenta e se perpetua 1212 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Dado o fato de que é o princípio de visão social que constrói a diferença anatômica e que é esta diferença socialmente cons truída que se torna o fundamento e a caução aparentemente natural da visão social que a alicerça caímos em uma relação circular que encerra o pensamento na evidência de relações de dominação inscritas ao mesmo tempo na objetividade sob forma de divisões objetivas e na subjetividade sob forma de esquemas cognitivos que organizados segundo essas divisões organizam a percepção das divisões objetivas A violência conjugal é um problema para o poder judiciário não somente na questão da violência doméstica mas também no direito civil que trata do âmbito familiar dentre outras esferas reprodutor dos já citados esquemas de pensamento Quando os dominados apli cam àquilo que os domina esquemas que são produto da dominação ou em outros termos quando seus pensamentos e suas percepções es tão estruturados em conformidade com as estruturas mesmas da rela ção da dominação que lhes é imposta seus atos de conhecimento são inevitavelmente atos de reconhecimento de submissão Bourdieu 2003 p 10 Muitas vezes esses esquemas de pensamento podem colocar a mulher em posição inferior ao homem traduzidos no habi tus uma disposição do ser humano para aceitar determinadas práticas Bourdieu 1983 p 94 Ressaltase que o poder do sistema simbólico proposto por Bour dieu pode ser exercido por pessoas de qualquer sexo e que a domina ção de homens sobre mulheres não é única nem universal Essa crítica a um aparente universalismo na obra Bourdieu é necessária visto que há outras opressões de naturezas diversas classe raça geração orien tação sexual entre outros que se entrelaçam Carvalho 2011 p 109 Somase à reflexão acima o pensamento de Gregori que apon ta a ausência de neutralidade em muitas pesquisas sobre a violência doméstica quando aceitam uma posição simplista e vitimizadora das mulheres que vivem relações violentas A autora esclarece que en quanto a política feminista estiver adstrita a generalizar a condição das mulheres a sua situação e as dualidades em que os termos se re lacionam mediante um engate ideológico não terá condições de lidar com a diferença e com a pluralidade dos casos e dos seres envolvidos 1993 p 35 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1213 Em relação às mulheres entrevistadas observouse em suas nar rativas algumas tentativas de romper com o campo estabelecido por vezes efetivas por vezes não subvertendo na medida do possível a ordem de forças estabelecidas Discorrendose sobre a capacidade fi nanceira todas as entrevistadas declararam que sempre trabalharam e portanto notouse que neste aspecto elas não dependiam necessa riamente da condição financeira do companheiro Maia destacouse em sua narrativa visto que se declarou independente sendo uma mu lher moderna segundo suas próprias palavras e ao longo da narrati va descreve atitudes que seu companheiro não teria gostado fatos que também somaramse ao término do relacionamento Hera e Ilítia apesar de terem permanecido por mais tempo na relação também questionaram certas bases tradicionalmente aceitas como definidoras de papéis femininos e masculinos em suas narrati vas e embora tenham permanecido por um longo período dentro da relação violenta até o momento final da entrevista tinham consegui do romper com essa condição Ilítia de forma efetiva Hera estava ini ciando o processo de separação fática Justamente alguns momentos de violência surgiram exatamente como resposta às atitudes em que Hera e Ilítia subvertiam suas posições passivas como por exemplo a vez em que Hera opôsse a compra do carro ou a vez em que Ilítia não estaria mais dando bola para seu companheiro não estava mais nem aí 7 APONTAMENTOS FINAIS De uma perspectiva teórica a origem da violência contra a mulher tem sido de modo geral explicada de várias formas No debate públi co e muitas vezes na narrativa das próprias vítimas como demons trado há as opiniões de censo comum de que a ignorância e o uso de psicotrópicos por exemplo sustentam a prática da violência contra a mulher No entanto concluise que não se trata de estabelecer uma relação consequencial entre esses e outros fatores semelhantes encon trados como causas da violência mas reconhecer que estes são ele mentos que apenas podem contribuir para desencadear os conflitos e as agressões 1214 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Não se tratou aqui de abordar todas as formas de violência que são praticadas contra as mulheres mas especificamente selecionouse casos de agressão corporal e psicológica pois essa é uma das for mas de violência que aparece em maior número no poder judiciário e muitas vezes configura como o momento propício em que a mulher decide denunciar a violência ocorrida Analisando o comportamento das entrevistadas neste trabalho sugerese que esta matriz binária de dominaçãosubmissão precisa ser revisitada considerando a própria palavra das entrevistadas como ponto de partida para a revisão uma vez que essas mulheres têm questionado em suas práticas cotidianas as bases tradicionalmente aceitas como definidoras das relações de gê nero Outrossim diagnosticouse que a família contemporânea têm se transformado e essa mistura de papéis tradicionais masculinos e femi ninos tem causado algumas frustrações ao homem e sobrecarregado de tarefas diversas a mulher gerando conforme observado muitas re clamações entre as mulheres em relação aos seus múltiplos papéis e a exaustão que eles causam Constatouse os aspectos positivos da Lei Maria da Penha que desde sua criação vem encorajando as mulheres em situação de vítima a se manifestarem servindo como uma ponte entre o âmbito privado e o público em uma espécie de ampliação do espaço de negociação dessas mulheres Saindo de um papel de sub missão historicamente constituído as mulheres estão em processo de constituíremse como sujeitos ativos e reativos nessas relações violen tas possibilitando uma circulação de poderes O perfil dessas três entrevistadas que recorreram ao poder judi ciário expressa vários anseios do movimento feminista como a busca da liberdade de circulação a autodeterminação o desejo de uma vida sem violência e de independência física e psicológica dos relaciona mentos abusivos Portanto este aspecto positivo da lei é doravante ambíguo pois embora a proteção judicial tenha resgatado esses an seios para fora do ambiente doméstico também restou demonstrado que as respostas do poder judiciário são muitas vezes insuficientes pois este não é o espaço mais adequado para a conquista efetiva da dignidade dessas mulheres e o exercício real de seus direitos Apesar de suas grandes contribuições a Lei Maria da Penha so zinha não é capaz de satisfazer os anseios de quem a necessita e não Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1215 dá conta da complexidade que consiste os sistemas de violência do méstica Há que se refletir sobre o uso adequado e efetivo da Lei Maria da Penha a fim de que esta não sirva para de forma vazia apenas judicializar e criminalizar condutas O objetivo deste trabalho foi con tribuir com essa discussão esclarecendo alguns tópicos que podem auxiliar na construção de novas reflexões sobre a temática da violência doméstica e o fortalecimento das Instituições Públicas no desenvolvi mento dos direitos das mulheres REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGENDE AÇÕES EM GÊNERO CIDADANIA E DESENVOLVI MENTO 10 anos da adoção da Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher Conven ção de Belém do Pará Brasília 2004 Disponível em httpwww agendeorgbr Acesso em 20 jan de 2018 BEAUVOIR S O segundo sexo a experiência vivida Rio de Janeiro Nova Fronteira 1990 BOURDIEU P A Dominação Masculina São Paulo Ed Bertrand 2003 Esboço de uma Teoria da Prática In ORTIZ R Org A sociologia de Pierre Bourdieu São Paulo Editora Ática 1994 n 39 p 4686 Coleção Grandes Cientistas Sociais Questões de Sociologia Rio de Janeiro Marco Zero 1983 BRASIL Lei 11340 Maria da Penha de 7 de agosto de 2006 Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mu lher nos termos do 8º do art 226 da Constituição Federal Diário Oficial da União Brasília DF 8 ago 2006 Disponível em http wwwplanaltogovbrccivil03ato200420062006leil11340htm Acesso em 07 fev 2018 CARVALHO M P de O conceito de gênero uma leitura com base nos trabalhos do GT Sociologia da Educação da ANPEd 19992009 Rev Bras Educ Rio de Janeiro v 16 n 46 p 99117 Abril 2011 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttex 1216 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça tpidS141324782011000100006lngennrmiso Acesso em 27 fev 2018 GIL A C Métodos e técnicas da pesquisa social São Paulo Atlas 2008 216 p LIMA V L de A Violência contra mulheres PAROARAS con tribuições para a enfermagem 2009 252 f Tese Doutorado em En fermagem Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 2009 LOPES M C SILVA S V da Da paixão ao crime uma espaciali zação da violência contra as mulheres em Rio Grande RS Revista Latinoamericana de Geografia e Gênero v 4 n 1 p 5874 2013 Disponível em httpwwwrevistas2uepgbrindexphprlaggarti cleview3510pdf50 Acesso em 31 fev 2018 LOUROG L Gênero sexualidade e Educação uma perspectiva pósestruturalista São Paulo Vozes 1997 179 p GREGORI M F Cenas e Queixas Um Estudo sobre Mulheres Rela ções Violentas e a Prática Feminista Rio de Janeiro Paz e Terra 1993 IZUMINO W P Justiça para Todos Os Juizados Especiais Criminais e a Violência de Gênero 2003 337 f Tese Doutorado em Sociologia Universidade de São Paulo São Paulo 2003 MANZINI E J A entrevista na pesquisa social Didática São Paulo v 2627 19901991 MINAYO M C S O desafio do conhecimento pesquisa qualitativa em saúde 2ª ed São PauloRio de Janeiro HUCITEC 1993 SAFFIOTI H I B ALMEIDA S de S Violência de Gênero Poder e Impotência Rio de Janeiro Revinter 1995 SAFFIOTI H I B Contribuições feministas para o estudo de violên cia de gênero Cadernos Pagu16 p115136 2001 Disponível em httpwwwscielobrpdfcpan16n16a07pdf Acesso em 30 jan 2018 Gênero Patriarcado Violência São Paulo Editora Funda ção Perseu Abramo 2004 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1217 SANTOS C M IZUMINO 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de gênero perpassam a socie dade seus fenômenos e instituições a pesquisa ora proposta pretende fazer uma análise a partir de uma perspectiva de gênero sobre o crime de ato obsceno Tal análise abordará desde sua tipificação no Código Penal até os critérios subjetivos que levam as instituições formais e informais do Sistema Penal a classificarem um ato como obsceno O objetivo é fazer a partir dos marcos teóricos utilizados Criminolo gia Crítica Criminologia Feminista Teorias Feministas com enfoque especial à teoria da consubstancialidade e as ideias de Saber e Poder a partir do pensamento de Michel Foucault uma reflexão que per mita identificar se há tratamento diferenciado destinado às mulheres pelo Direito Penal especialmente pelas instituições policiais a fim de entender o que configura nudez e em que situações lhes é atribuída a característica de obscenidade ofensiva ao pudor público para assim compreender se a tipificação do ato obsceno deve ou não ser mantida no ordenamento jurídico brasileiro 426 O presente artigo é fruto da minha dissertação de mestrado intitulada TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA UMA ANÁLISE DO CRIME DE ATO OBSCE NO A PARTIR DE UMA PERSPECTIVA DE GÊNERO 427 Graduada em Direito pela UNIT Mestra em Direito UFRJ pesquisadora do Laboratório de Direitos Humanos LADIH da UFRJ vinculada ao Grupo de Pesquisas Drogas e Direitos Humanos CNPQ Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1219 Palavraschave Ato Obsceno Controle Social Nudez Criminologia Feminista Teoria dos Papeis Sociais INTRODUÇÃO A partir de noções iniciais sobre o corpo e sobre o gênero desenvol verei um estudo sobre diversas teorias feministas para compreender como o sistema penal reconhece o gênero feminino e quais as conse quências deste reconhecimento Ou seja buscarei visualizar se o siste ma penal oferece tratamento diferenciado a indivíduos reconhecidos enquanto pertencentes ao gênero feminino quem são esses indivíduos e qual o tratamento que lhes é destinado pela sociedade patriarcalista O presente artigo terá um enfoque sobre os corpos desviantes do que seria admitido como natural A ideia de natureza será abordada através de uma perspectiva política social econômica psicológica Não me debruçarei aqui sobre a ideia tradicional de natureza que parte de um ponto de vista biológico Abordarei um contraponto à ideia do natural enquanto normal para entender por que alguns cor pos são considerados desviantes Entendo ser fundamental a compreensão sobre os processos de construção social do gênero a qual optei por fazer mediante revisão bibliográfica de algumas teorias feministas especialmente a de Judith Butler pois somente a partir de tais reflexões é possível visualizar perceber e compreender o contexto no qual ocorrem as violências de gênero Não é de hoje que o feminino carrega consigo um estigma de submissão e de coadjuvância muito significativo para o desenvol vimento das relações de poder A teoria dos papeis sociais deixa isso bem claro Eis a razão pela qual opto por pensar as questões de gênero a partir da teoria da consubstancialidade proposta por Daniele Ker goat segundo a qual todas as relações sociais devem ser levadas em conta nos estudos sobre o gênero englobando a interseccionalidade gêneroraçaclasse O gênero feminino é visto como o outro em relação ao gênero masculino dominante Não é novidade que o Sistema Penal reserva um tratamento diferenciado com relação ao outro ao estranho 1220 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ao desviante Não seria diferente com o gênero feminino Busco inicialmente compreender como todas essas relações influenciam nas questões e nas violências de gênero Busco fazer uma abordagem so bre o corpo a partir de sua desnaturalização ou seja uma abordagem que não seja centrada nos elementos biológicos anatômicos e fisio lógicos do corpo humano Faço isto para possibilitar a visualização de outros elementos que são tão importantes quanto para a constru ção do corpo em termos sociais estéticos políticos e econômicos a atuação do saber e do poder em função do controle social Entendo que os corpos assim como o gênero são culturalmentesocialmente construídos Parto então de uma perspectiva foucaultiana relacionada ao corpo feminino e de uma perspectiva de fluidezperformatividade do gênero baseada em Judith Butler por meio de revisão bibliográ fica uma vez que o presente trabalho busca verificar como se dá o controle social punitivo sobre as mulheres especificamente quan to às mulheres criminalizadas pela exposição de seus seios Parto da hipótese de que o tipo penal que define o ato obsceno no art 233 do Código Penal o qual entendo ser inconstitucional no caso das exposição dos seios não criminaliza a conduta em si mas sim corpos específicos os entendidos femininos a depender do contexto no qual ocorre tal exposição Para compreender quais são esses contextos trago ao debate ini cialmente a teoria dos papeis sociais ou teoria dos papeis de gênero situada no campo da criminologia e da sociologia a qual nasce com o objetivo de entender e explicar o porquê de as mulheres terem menor incidência enquanto autoras de crimes buscando a resposta num cará ter passivo arbitrariamente atribuído às mulheres como fenômeno na turalístico ignorando todas as questões socioculturais que envolvem a construção do gênero Eis a razão pela qual me proponho a fazer uma abordagem consubstancial de todas as questões presentes neste trabalho especialmente a criminologia e as teorias feministas Eis que surge uma contradição mesmo com tantas alterações ao Código Penal envolvendo a moral sexual uma conduta específica continua sendo considerada criminosa a exposição de seios Ainda que não apresente um significado social relevante a nudez feminina ainda é criminalizada Entendo que tal criminalização se deve não Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1221 ao significado social da conduta de expor os seios em público mas a um setor da sociedade que se pretende controlar e tal controle se dá por meio do dispositivo da sexualidade Da nudez relacionada à se xualidade Da obscenidade atribuída à nudez que eu sequer entendo tratarse de nudez como explico em seguida Para compreender como a nudez feminina é objetificada em fun ção do controle social sobre o corpo da mulher sigo para o último tópico no qual abordarei a temática da nudez e da obscenidade a fim de entender se a exposição dos seios configura nudez já adiantando aqui que eu entendo que não configura e caso configure a que se deve a atribuição do caráter obsceno a tal nudez pois é a obscenidade o ponto central para a compreensão do porquê da criminalização da nudez feminina tendo em vista tratar o artigo 233 do Código Penal do crime de ato obsceno Passo ao último capítulo do meu trabalho no qual farei dois estudos de caso a fim de entender como se dá na prática a aplicação do dispositivo mencionado 1 DISPOSITIVOS A SERVIÇO DA DOMINAÇÃO DO HOMEM SOBRE A MULHER Por entender o Sistema Penal como androcêntrico ou seja centrado no homem a Criminologia Feminista conseguiu identificar como du pla a violência sofrida pela mulher Além de invisibilizar as violências de gênero quando a mulher é vítima de crimes o Sistema Penal es tigmatiza a ainda mais a mulher quando esta é sujeito ativo de cri mes punindo duplamente a mulher criminosa por ser duplamente insubmissa violando além de normas penais regras de cunho moral CAMPOS CARVALHO 2011 p144 Pavarini 2012 p 204 205 também alerta sobre a natureza simbólica e a consequente eficácia estigmatizante da censura penal Para ele tais funções juntamente à função de prevenção geral são atributos exclusivos do Direito Penal clássico isto é do Direito Penal que criminaliza condutas socialmen te sentidas como merecedoras de pena e que pune osas autoresas re conhecendoos e portanto estigmatizandoosas como pertencentes ao que o autor convencionou chamar de classes perigosas 1222 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Considero importante chamar atenção ao fato de que a manipula ção do estigma diz respeito fundamentalmente à vida pública situa da num continuum cujo extremo oposto é a intimidade GOFFMAN 2004 p 47 Digo isto porque vou tratar aqui especificamente do controle social sobre condutas publicamente praticadas por mulheres e de como a sua estigmatização age como um dos dispositivos utiliza dos pelo patriarcalismo no sentido de inibir tais condutas Parto da premissa de que o controle social sobre o corpo e a se xualidade da mulher sempre se fez presente não sendo mais do que uma forma de dominação repressão e domesticação da mulher pelo homem utilizando como instrumentos os discursos ora da Igreja ora do Estado ora dos médicos e juristas sendo muitas vezes usados con juntamente Entendo que tal controle se dá em algumas circunstân cias pela associação da mulher à função de reprodutora à figura da maternidade e aos afazeres domésticos vivendo com e para o homem e em outras a partir da associação da mulher a um ser sexualmente desregrado e compulsivo que precisa ser disciplinado e controlado Então ao considerarmos se existe ou não um sujeito feminino deve mos observar as relações de poder que fomentam eou restringem as possibilidades de diálogo O sujeito é produzido a partir de práticas discursivas e de obje tivação inseridas em relações complexas de poder Segundo Foucault 1988 p 242 o poder só existe em ato Ato não só no sentido de ação com efeito material mas ato também no como discurso pois as relações se dão por meio da produção e da troca de signos FOU CAULT 1988 p 201 Neste sentido considerandose que o poder se configura por meio de um ato e considerando o discurso como um ato resulta que aquele que produz e dissemina significados sobre o outro é o detentor do poder O discurso é arriscome a dizer o mais impor tante dispositivo de dominação social pois assim como o silêncio não e submetido ao poder nem se opõe a ele muito pelo contrário O discurso veicula e produz poder O discurso pode ser ao mesmo tempo instrumento e efeito de poder Da mesma maneira que reforça o poder o discurso também pode minálo FOUCAULT 2003 p 96 A família as escolas os meios de comunicação assumem o papel de emitir discursos É a partir do discurso que o sujeito vai ser cons truído É ouvindo o que pais professores e jornais dizem que o sujeito Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1223 vai construir ou simplesmente aceitar ou rejeitar o que se diz e assim adotar posicionamentos na sociedade O poder é alguma coisa que se opera através do discurso já que o próprio discurso é um elemento em um dispositivo estratégico de relações de poder FOUCAULT 1977 O sujeito é possivelmente o tema de maior interesse em Mi chel Foucault e protagoniza também boa parte dos estudos de Judith Butler ao menos em suas primeiras publicações Butler acompanha Foucault na compreensão do sujeito como efeito de discurso A auto ra compreende a mulher como um contínuo processo um devir Ela defende que a mulher é uma prática discursiva BUTLER 2003 p 59 em eterno processo de ressignificação Um dos problemas de gênero apontados por Butler é justa mente o da naturalização de feminino e masculino não mais como noções decorrentes da biologia mas da cultura Ou seja transferimos da biologia para a cultura a função de normatizar os comportamentos de acordo com o gênero Assim não mais a biologia mas a cultura pa triarcalista se utiliza de um aparato simbólico para submeter o gênero aos valores por ela criados Seria o que Foucault chamou de verdade do sexo e o que Butler chamou de gêneros inteligíveis Admitese a construção social do gênero mas esta é pautada pela teoria dos pa peis de gênero segundo a qual existem papeis reservados ao gênero feminino e papeis reservados ao gênero masculino Ignorase a flui dez do gênero para a qual tanto Butler chama a atenção limitandoo ao resultado de um processo de construção cultural lógico segundo o qual gênero decorreria do sexo e haveria normas socioculturais que estabeleceriam modos de comportamento de acordo com o gênero Ao propor uma análise sobre o crime de ato obsceno entendendo este como uma forma de controle social sobre a mulher não posso fazer uma análise centrada unicamente no estudo da legislação penal pois entendo que o controle social se exerce por vários meios desde a família passando pela medicina pela educação pela religião pela atividade artística etc ZAFFARONI 1997 p 61 Por isso me propus a fazer uma análise consubstancial e a partir de uma perspectiva de gênero sobre o crime de ato obsceno sob pena de cair no que Zaffaro ni chama de simplismo ilusório A categoria de gênero possibilitou aos estudos criminológicos sobre a mulher o afastamento da ideia de que a autoria de crimes tinha 1224 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ligação com uma predisposição espiritual ou a fatores biopsicológi cos A Teoria dos Papeis Sociais se apoiou na ideia da socialização diferenciada de acordo com o gênero aqui o gênero decorrente do sexo ainda que construído culturalmente428 na tentativa de expli car os diferentes processos de criminalização feminina e masculina LEMGRUBER 1999 p7 2 A TEORIA DOS PAPEIS SOCIAIS Inserida no âmbito da Criminologia Sociológica a Teoria dos Papeis Sociais aborda os processos de formação social da mulher a fim de explicar a sua menor propensão ao cometimento de crimes Para tanto a questão do controle social foi trazida para o centro da questão figurando como fator determinante para a construção da fi gura feminina Tal controle seria exercido por diversos mecanismos que vão desde a família à Igreja CHERNICHARO 2014 pp 49 50 Em concordância a tal afirmativa trago um caso prático a título exemplificativo Proponho essa abordagem crítica da Teoria dos Papeis Sociais por entender que a sexualidade doa autora nos casos específicos estu dados no presente trabalho tipificados como ato obsceno429 parece ter maior relevância do que o próprio ato praticado pois a sexualidade feminina traz consigo padrões de comportamento a serem seguidos Aparentemente estamos diante de um caso específico de julgamento moral positivado no Código Penal vigente baseado não na prática de um fato típico mas no comportamento feminino tido como desviante daquele esperado pela sociedade patriarcalista Recentemente no ano de 2016 uma matéria da Revista Veja to mou grandes proporções ao referirse a Marcela Temer esposa do Pre sidente em exercício Michel Temer logo primeiradama do Estado Brasileiro Antes de mais nada quero deixar claro que repudio tal títu 428 Concepção segundo a qual mulheres cis pertenceriam ao gênero feminino e homens cis pertenceriam ao gênero masculino Digo isto porque não vi refe rência às pessoas trans nos meus lidos Teoria dos Papeis Sociais 429 Art 233 do Código Penal Praticar ato obsceno em lugar público ou aberto ou exposto ao público Pena detenção de três meses a um ano ou multa Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1225 lo e afins por colocarem mulheres sempre às sombras de seus com panheiros assim como repudio completamente a referida matéria por motivos óbvios de incoerência daquela com as minhas ideologias especialmente enquanto mulher feminista Esclarecimentos à parte vamos ao que interessa à presente pesquisa aquela matéria trazia em letras garrafais a seguinte manchete Marcela Temer bela recatada e do lar a quase primeiradama 43 anos mais jovem que o marido apa rece pouco gosta de vestidos na altura dos joelhos e sonha em ter mais um filho com o vice A matéria se referia a Marcela Temer como modelo de mulher a ser seguido pela sociedade brasileira Bela segun do quais padrões de beleza O que significa ser uma mulher recatada numa sociedade patriarcalista Do lar deixa bem clara a ideia de que lugar de mulher é em casa cuidando dos filhos da casa do lar Mas este lar levandose em conta a literalidade do termo seria o lar de quem Da mulher ou do maridoprovedor Bem resolvi trazer à tona o caso da matéria da Revista Veja por entender que ela ilustra didaticamente a maneira como se dá na prá tica a teoria dos papeis de gênero e como as instituições formais e informais funcionam no sentido de localizar a mulher no polo pas sivo das relações430 o que as torna menos propensas ao cometimento de crimes regulando comportamentos desejados e reprimindo com portamentos desviantes sendo a mídia uma das mais eficazes agen ciadoras do Estado nesse processo pois tem a capacidade de penetrar o subconsciente das pessoas sem que elas sequer se deem conta ma nipulando seus ideais a fim de regular seus comportamentos Abordar o gênero enquanto construção cultural é admitir que embora existam fatores biológicos que distingam os corpos a fisio logia dos homens e das mulheres o ser homem e o ser mulher são produtos da realidade sociocultural Para viver em sociedade a espécie humana é transformada pela necessidade de capacitação cul tural essencial à sobrevivência HEILBORN 2006 Não podemos negar a existência de características femininas e masculinas hegemônicas disfarçadas de produtos da natureza mas que na verdade são construções culturais Maria Luiza Heilborn 430 Julita Lemgruber 1999 p 7 esclarece que de maneira geral a formação social feminina interfere na sua posição passiva o que explicaria a menor propensão ao cometimento de crimes de autoria feminina 1226 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 2006 utiliza o exemplo da iniciação sexual com uma mulher como o acesso à masculinidade plena pelos jovens no Brasil para que ele seja reconhecido como um homem heterossexual atendendo aos re quisitos impostos pela heteronormatividade e portanto garantindo seu reconhecimento enquanto pertencente a essa masculinidade he gemônica Os que não atendem a essa expectativa heterossexual são feminilizados e consequentemente diminuídos e excluídos HEIL BORN 2006 O Estado se utiliza de alguns meios para fomentar o imaginário dos indivíduos e assim difundir a chamada opinião pública O papel da mídia na formação da opinião pública é de grande relevância espe cialmente no Brasil onde os meios de comunicação em massa perten cem a um pequeno número famílias e de grandes grupos empresariais Por atingir uma enorme parcela da população a mídia assume um importante papel no processo de construção e manutenção cultural Assim rádio jornais internet e ainda nos dias de hoje princi palmente a televisão assumem um importante papel na formação de subjetividades individuais e do sentimento coletivo da sociedade SILVEIRA 2013 Warat 1979 p 24 trabalha com o conceito de senso comum teórico dos juristas que aqui nos interessa na medida em que cumpre certos papeis dentre eles o prescritivo o político o decisório e inclusive o retórico que influenciam os operadores do direito O autor admite que o senso comum teórico dos juristas exerce funções a função normativa de resignificar textos legais a função ideológica de homogeneizar valores sociais e jurídicos a função retó rica de criar um complexo de argumentos que constituem um lugar comum para o raciocínio esta função efetiva a função ideológica e a função política que deriva das demais funções e se traduz em uma tendência em reassegurar as relações de poder como um conjunto unívoco e bem ordenado aos fins propostos NEIVA 2012 Esse conceito de waratiano reforça a ideia do processo de cons trução de um sentimento coletivo tendo em vista ser a atuação jurídi ca um dos mecanismos estatais de construção e disseminação de uma opinião pública talvez o mais poderoso tendo em vista o respaldo moral que recai sobre o Poder Judiciário As legislações e as decisões judiciais possuem uma carga moralista bastante pesada Uma socie dade que vê condutas tipificadas como crime as admite como imorais Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1227 sem sequer se propor a questionar criticamente o motivo pelo qual aquela conduta é considerada crime O mesmo se dá com as decisões judiciais ora se um juiz considerado por muitos uma figura equi parada a Deus na Terra decide criminalizar uma mulher cis pela prática de um ato obsceno e absolver uma mulher trans da prática do mesmo ato em circunstâncias quase idênticas quem vai dizer o con trário Mas qual a real intenção por trás de tais julgamentos431 É nesse contexto de normatização de comportamentos a partir do gênero que abordo a criminalização da exposição dos seios femininos Utilizase uma característica biológica mais especificamente anatômica da mulher relacionandoa à sexualidade a fim de controlar comportamentos Isto é utilizase o discurso para atribuir conotação sexual a uma parte do corpo humano feminino impedindo a sua exposição por meio de controle social institucionalizado 3 TODA NUDEZ SERÁ CASTIGADA Responderei ao questionamento que intitula o presente tópico so mente na conclusão Aqui proporei algumas reflexões que indicarão a sua resposta Segundo Zaffaroni 1997 p 448 em qualquer sistema jurídico civilizado do mundo contemporâneo os tipos são legais o que significa dizer que somente o legislador pode criar suprimir ou modificar os tipos penais Os chamados sistemas judiciais pratica mente não mais existem no mundo mas seriam aqueles que admitem a analogia facultando ao juiz a função de criar tipos penais O autor chama atenção para o fato de tratarse esta de uma definição ideal pois nenhum sistema é completamente legal ou judicial o que exis tem são sistemas que perseguem o ideal dos tipos legais na busca de maior grau de certeza do proibido que as técnicas legais permitam e sistemas que se distanciam deste ideal 1997 p 448 Neste sentido os tipos penais abertos figuram como uma das li mitações ao sistema jurídico penal Isto porque os tipos abertos di ferentemente dos tipos fechados em que a conduta proibida é indi vidualizada a partir de elementos fornecidos no tipo pela própria lei necessitam recorrer a uma norma de caráter geral para proceder à 431 Responderei tais questionamentos no tópico seguinte 1228 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça individualização da conduta proibida Zaffaroni 1997 p 449 Zaf faroni entende que nos sistemas de tipos legais admitindo o sistema puro como um ideal a ser perseguido os juízes devem sempre buscar a máxima aproximação deste ideal logo um tipo penal completa mente aberto seria inconstitucional segundo entendimento do autor do qual eu particularmente compartilho Isto porque num tipo aberto puro não há o mínimo cuidado de se tentar precisar quais são as con dutas que se pretende proibir Analisemos então o tipo penal que descreve o crime de ato obsceno Art 233 Praticar ato obsceno em lugar público ou aberto ou exposto ao público Pena detenção de três meses a um ano ou multa Código Penal Brasileiro 1940 Tratase de um tipo penal puramente aberto pois não individua liza a conduta proibida nem oferece elementos para tal O tipo penal em questão não descreve a conduta que se pretende proibir nem tam pouco a individualiza numa nítida violação ao nulum crimen sine lege sendo portanto inconstitucional uma vez que a violação a princípio constitucional configura a inconstitucionalidade da norma Entendo que a exposição de seios não configura crime de ato obsceno Primei ro por entender ser este inconstitucional pelos motivos já expostos segundo por entender não ser obsceno o ato de mera exposição dos seios pois entendese por obsceno o ato que possua conotação sexual Compreender como se dá o controle social sobre o corpo e especial mente sobre o corpo feminino é primordial para começar a entender que o termo obsceno é um obstáculo epistemológico para se pensar a nudez Isto porque a condição de nudez por si só não é suficiente para atribuir conteúdo sexual ao corpo nu a nudez não é em si mes ma obscena BATAILLE 1987 p 141 Eu concordo que a obscenidade é uma relação e vejo nos seios femininos talvez o exemplo mais ilustrativo dessa afirmação Paula Si bilia 2014 p 39 ao escrever sobre obscenidade na nudez traz con clusões importantes de duas pesquisadoras Uma é historiadora Mar gareth Miles que realizou um estudo sobre a secularização do peito Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1229 na cultura ocidental Miles constatou que na Idade Média os seios eram vistos como algo divino um milagre da nutrição enquanto que a partir do séc XVIII o seio deixou de ser visto como um símbolo religioso e foi medicalizado e erotizado Outra constatação importante abordada por Sibilia foi a observada pela pesquisadora brasileira Gilza SandrePereira que no artigo intitulado Amamentação e sexualidade cita um livro clássico da antropologia comparativa Patterns of Sexual Beha vior publicado em 1951 pelo antropólogo Clellan Ford e pelo psicólogo Frank Beach Segundo esses autores que estudaram as práticas sexuais em cerca de duzentas culturas diferentes somente treze entre elas conferiam um valor erótico aos seios tendo seu aspecto físico um importante papel para a atração sexual masculina e sendo sua estimulação uma parte do ato se xual SIBILIA 2014 p 39 A partir de tais apontamentos podemos concluir e afirmar que os seios femininos não são naturalmente eróticos nem tampouco obs cenos No mesmo sentido Afonso Medeiros 2008 p 29 ao afir mar que em termos etimológicos não há confusão entre as definições de erótico e obsceno embora a distinção entre elas seja sutil sendo a palavra erótico derivada de Eros do latim eroticus derivação do grego erotikós cujo significado se traduz em relativo ao amor sensual lascivo enquanto que a palavra obsceno deriva do latim obscenus e quer dizer aquilo que fere o pudor impuro desonesto Medeiros chama a atenção para a existência de uma nada sutil dife rença que relaciona o erótico ao amor e a sensualidade e o obsceno à sexualidade impura desonesta A distinção entre erótico e obs ceno seria a mesma distinção entre nude e naked SIBILIA 2015 p 174 termos em inglês utilizados para designar o nu divino e o nu impuro respectivamente O que acontece aqui não é a criminalização de uma ação mas a criminalização de um ser o ser mulher Os seios como já dito an teriormente são órgãos responsáveis pela nutrição não são órgãos sexuais O que acontece é uma conotação sexual que é atribuída aos seios E tal conotação sexual que lhes é atribuída tem caráter comple tamente moralista A mera exposição dos seios não ofende bem jurídi 1230 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça co de terceiros logo não há razão para a sua criminalização O crime de ato obsceno figura no rol dos crimes contra a dignidade sexual contudo não há que se falar em violação à dignidade sexual quando se trata de exposição dos seios A criminalização da exposição dos seios por meio da tipificação como ato obsceno é portanto nada mais que uma tentativa de impo sição de uma moral por parte do Estado Concordo mais uma vez com Zaffaroni 1997 p 90 ao afirmar que o Estado que impõe uma moral é um estado imoral tendo em vista que o mérito moral surge da liberdade de escolha não havendo portanto mérito moral quando não se pode realizar conduta diversa Logo o Estado totalitário é imoral e a criminalização da exposição dos seios é prática característica de Estados totalitários Assim considerando ser o Estado brasileiro um Estado moral e não o totalitário imoral tal criminalização não pode ser admitida pois não existe delito se uma ação não causa prejuízos a bens jurídicos alheios tendo em vista que o papel principal do Estado é a proteção a direitos não à moral ZAFFARONI 1997 p 91 CONCLUSÃO Inicio a conclusão do meu trabalho com esses apontamentos para dizer que esta pesquisa não se limitou aos dogmas acadêmicos não há neutralidade na minha escrita Ela foi escrita com a ousadia de al guém que sabe de onde fala para onde fala e por que fala Falo de um corpo biologicamente entendido como feminino desde o nascimento Sou uma mulher branca cisgênero e heterossexual Falo de um cor po sobre o qual o controle social incide diretamente no contexto do presente trabalho Tenho fotos censuradas nas minhas páginas online por conterem pele demais Vejo amigas que são mães receberem olhares de julgamento sempre vindos de homens quando amamen tam seus bebês em público Sei o que é morrer de calor ou me sentir incomodada com um sutiã que aperta demais e não poder tirar minha blusa enquanto ao redor há vários homens despidos Na rua onde moro tem um senhor que todos os dias faça chuva ou faça sol desfila só de sunga se reúne com amigos num bar que fica ao lado de uma escola e nunca foi reprimido por isso Enquanto eu e minhas amigas Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1231 quando passamos por eles mesmo vestidas quase que da cabeça aos pés recebemos sempre piadinhas olhares maldosos e ofensas e viola ções disfarçadas de elogios Meu corpo não é público Nossos corpos não são públicos Tam pouco é público o tal pudor que se finge proteger Não há sequer que se falar em pudor a palavra certa é interesse Neste sentido estigma tizar a mulher a partir da manipulação da sua sexualidade se apresenta como um dos dispositivos apontados por Foucault para a promoção do controle social sobre o corpo da mulher E tal manipulação do estigma incide diretamente sobre a vida pública em contraposição à intimidade Em síntese não existe liberdade na construção do gênero esta ainda é pautada no binarismo femininomasculino e decorrente do sexo As dificuldades enfrentadas pelas pessoas transgênero não me deixam mentir A essa população ainda são negados empregos reco nhecimento de identidade de gênero pelo nome ou razão social di reito de frequentar certos ambientes como as escolas e universidades etc Ainda que não haja normas proibitivas expressas existem normas discursivas pautadas e disseminadas pelas diversas Agências Estatais que relegam as pessoas trans às esquinas às margens tendo a prosti tuição como única forma de emancipação financeira possível pois a todos os demais espaços ainda hoje lhes é negado acesso Com o meu trabalho ficou bem claro que o que se pretende pro teger com a criminalização da exposição dos seios femininos é o interesse do Sistema Patriarcalista que busca objetificar o corpo da mulher a fim de controlálo e lucrar em cima dele As chamadas re vistas masculinas lotam as bancas de revistas e têm estampadas em suas capas mulheres nuas e são vistas com naturalidade mulheres desfilam sem blusa no carnaval e a exposição de seus seios nesse contexto não é vista como ofensa ao pudor público Porque a verdade é que o patriarcalismo não tem pudor Reafirmo minha concordância com Zaffaroni no sentido de que um Estado que impõe uma moral é um Estado imoral pois nega com pletamente a liberdade de escolha Logo entendendo a criminaliza ção da exposição dos seios por meio da tipificação do ato obsceno como uma tentativa de imposição de uma moral por parte do Esta do entendo ser esta uma manobra de um Estado totalitário Portanto 1232 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça se o Estado brasileiro se pretende moral e não o totalitário imoral é absurdo que tal criminalização seja admitida em nosso ordenamento jurídico uma vez que a exposição dos seios não causa prejuízos a bens jurídicos alheios O Estado tem o dever de proteger e garantir direitos não a moral Por fim respondo à pergunta central deste tra balho não nem toda nudez será castigada Somente será castigada a nudez que não esteja a serviço do patriarcalismo REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE Vera Regina Pereira de 1996 Criminologia e feminis mo da mulher como vítima à mulher como sujeito de construção da cidadania Palestra proferida no Seminário Internacional Crimi nologia e Feminismo promovido pela Themis Assessoria Jurídicae Estudos de Gênero em 21 de outubro de 1996 na cidade de Porto AlegreRS BARATTA Alessandro 2011 Criminologia crítica e crítica do Di reito Penal introdução à sociologia do direito penal Rio de Janeiro Efitora Revan Instituto Carioca de Criminologia 6 Ed BATAILLE Georges O erotismo Tradução de Antonio Carlos Viana Porto Alegre LPM 1987 BRASIL Código Penal DecretoLei nº 2848 de 7 de dezembro de 1940 Vade mecum São Paulo Saraiva 2008 BUTLER Judith P Problemas de gênero feminismo e subversão da identidade Tradução de Renato Aguiar Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2003 CAMPOS Carmen Hein de CARVALHO Salo de Tensões atuais entre a criminologia feminista e a criminologia crítica a experiência brasileira In CAMPOS Carmen Hein de Org Lei Maria da Penha Comentada em uma perspectiva jurídicofeminista Rio de Janeiro Lumen Juris 2011 p143172 CAMPOS Carmen Hein de 2017 Teoria feminista e crítica às cri minologias 1 Ed Rio de Janeiro Lumen Juris Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1233 CHERNICHARO Luciana Peluzio Sobre mulheres e prisões seleti vidade de gênero e crime de tráfico de drogas no Brasil Dissertação mestrado em Direito Universidade Federal do Rio de Janeiro Cen tro de Ciências Jurídicas e Econômicas Faculdade de Direito 160f 2014 FOUCAULT Michel 1988 A história da Sexualidade I a vontade de saber Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque Rio de Janeiro Edições Graal 2003 Poder e Saber entrevista com S Hasu mi gravada em Paris dia 13 de outubro de 1977 In Ditos e Escritos IV Estratégia PoderSaber 2 Ed Organizador Manoel Barros da Motta Rio de Janeiro Editora Forense Universitária GOFFMAN Ervin 1975 Estigma notas sobre a manipulação da identidade deteriorada Rio de Janeiro Zahar HEILBORN Maria Luiza et al O aprendizado da sexualidade repro dução e trajetórias sociais de jovens brasileiros In Resenhas Book Reviews Rio de Janeiro Editora Garamond Editora Fiocruz 2006 536p ISBN 8576170981 HIRATA H 2014 Gênero classe e raça Interseccionali dade e consubstancialidade das relações sociais Disponí vel em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpi dS010320702014000100005 Acesso em 20 de junho de 2017 KERGOAT Danièle Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais Tradução de Antonia Malta Campos Disponível em http wwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS010133002010000 100005link21 Acesso em 20 de junho de 2017 LEMGRUBER Julita Cemitério dos Vivos Análise Sociológica de uma Prisão de Mulheres 2ª Edição Rio de Janeiro Forense LIMA Larissa L F Toda nudez será castigada Uma análise do crime de ato obsceno a partir de uma perspectiva de gênero Dissertação mestrado em Direito Universidade Federal do Rio de Janeiro Cen tro de Ciências Jurídicas e Econômicas Faculdade de Direito 96f 2018 MEDEREIROS Afonso O imaginário do corpo entre o erótico e o obsceno fronteiras líquidas da pornografia In Coleção Desenre dos V 1 Goiânia FUNAPE 2008 1234 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça NEIVA Gerivaldo Warat e o senso comum teórico dos juristas Disponível em httpwwwgerivaldoneivacom201210warateo sensocomumteoricodoshtml Publicação em 24 de outubro de 2012 Acesso em 18 de agosto de 2016 PAVARINI Massimo 2012 Punir os inimigos criminalidade ex clusão e insegurança Tradução de Juarez Cirino dos Santos e Aliana Cirino Simon Curitiba LedZe SIBILIA Paula O que é obsceno na nudez Entre a virgem medieval e as silhuetas contemporâneas In Revista Famecos Mídia Cultura e Tecnologia Porto Alegre v 21 n 1 pp 2455 janeiroabril 2014 A nudez autoexposta na rede deslocamentos da obscenidade e da beleza In Dossiê Percursos Digitais Corpos De sejos Visibilidades Cadernos de Pagu v 44 pp 171198 janeiroju nho 2015 SILVEIRA Felipe Lazzari da A cultura do medo e sua contribui ção para a proliferação da criminalidade Disponível em http coralufsmbrcongressodireitoanais201331pdf Acesso em 14082016 WARAT Luiz Alberto Mitos e teorias na interpretação da lei Porto Alegre Editora Síntese Ltda 1979 159 p ZAFFARONI Eugenio Raúl PIERANGELI José Henrique Manual de Direito Penal Brasileiro Parte Geral São Paulo Editora Revista dos Tribunais 1997 1235 VIOLÊNCIA EM REGIMES DE EXCEÇÃO E INSEGURANÇA EM TEMPOS DE PAZ O papel do Gênero e da Justiça de Transição na Democratização do Sistema de Justiça Ana Carolina Costa Lacerda432 Elídio Alexandre Borges Marques433 RESUMO Justiça de Transição corresponde ao conjunto de políti cas públicas materiais ou simbólicas exercidas pelo Estado duran te os processos de redemocratização nos campos jurídico político e social que jogam luz num legado de autoritarismo e visam à ga rantia de uma paz sustentável a partir da superação melhor possível do passado de violações de direitos É sabido que durante a Ditadura Civil Militar brasileira bem como no conflito armado colombiano a violência se estruturava de forma hierárquica diferenciando homens e mulheres Contudo ao contrário do que vem sendo observado no caso Colombiano no Brasil esse aspecto não fora contemplado nos processos da Justiça de Transição favorecendo a perpetuação do machismo na sociedade brasileira Assim a partir da concepção de que há uma relação indissociável entre o desenvolvimento de uma política pública de memória verdade e justiça que aborde as questões de gênero e de uma real democratização do Sistema de Justiça o presente trabalho pretende investigar em que medida a ausência de uma justiça de transição atenta ao recorte de gênero contribuiu para a situação de insegurança vivida pelas mulheres atualmente dentro do 432 Mestranda em Relações Internacionais PUC Rio 433 Graduado em Direito pela PUC Rio Mestre em Ciências Jurídicas pela PUC Rio Doutor em Serviço Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro 1236 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Estado Brasileiro Além disso cabese questionar se os mecanismos internacionais acerca da defesa dos direitos humanos levam em conta tal especificidade que garanta a efetividade e desenvolvimento de políticas públicas que contemplem as mulheres Palavraschave Justiça de Transição Violência contra as Mulheres Ditadura CivilMilitar Conflito Armado Colombiano INTRODUÇÃO É sabido que no período da ditadura civilmilitar entre 1964 e 1985 o Estado Brasileiro foi perpetrador de grandes violações aos Direitos Humanos Há evidências de que a violência se estruturava de forma hierárquica diferenciando homens e mulheres através do uso de vio lência sexual psicológica física e verbal contra as mulheres Contudo tais evidências demoraram mais tempo para serem reconhecidas em comparação às demais de modo que se cabe indagar se tais evidên cias e especificidades no que tange ao gênero foram contempladas nos processos de Justiça de Transição e de que forma sua ausência contri bui para a perpetuação do machismo e do patriarcado características institucionalizadas na sociedade brasileira De outro lado o Estado Colombiano vem desenvolvendo o pro cesso de paz do Conflito Armado que o país viveu por 50 anos no qual a violência sexual foi empregada por todos os grupos envolvidos militares paramilitares e guerrilheiros de forma sistemática e gene ralizada como arma de guerra Tal forma de violência como tantas outras é utilizada como ferramenta de tortura e castigo Contudo em contextos de conflitos a violência sexual passa a ser utilizada não só como forma de reproduzir a hierarquia entre os gêneros mas também para manter o controle da população e como um instrumento de vin gança e humilhação apresentando assim características e motivações específicas Portanto a violência sexual só existe porque acima dela há uma desigualdade de gênero que torna a violência sexual parte inte grante do conflito armado O silêncio em torno dessa questão impossibilita dados precisos sobre o número de mulheres vítimas de violência sexual ao longo do conflito Contudo os testemunhos e relatos das mulheres que habi Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1237 tavam zonas ocupadas nos permitem crer que a violência sexual foi muito mais frequente do que os veículos de comunicação e dados ofi ciais sugerem Entretanto ao contrário do caso Brasileiro a especi ficidade dessa violência vem sendo levada em conta no processo de transição democrática integrando as políticas públicas desenvolvidas pela Justiça de Transição Colombiana como podese observar na Lei nº 1719 de 2014 que institui a adoção de medidas que garantam o acesso à justiça para as vítimas de violência sexual em especial as por ocasião do conflito armado Assim a partir da concepção de que há uma relação indissociável entre o desenvolvimento de uma política pública de Memória Verda de e Justiça que aborde as questões de gênero e de uma real democra tização do Sistema de Justiça o presente trabalho pretende a partir da análise de fontes documentais como relatórios e levantamentos de bibliografia especializada sobre o período e processos de Justiça de Transição Brasileiro bem como a partir de paralelos com processos da Justiça de Transição Colombiano investigar em que medida a ausên cia de uma justiça de transição atenta ao recorte de gênero contribuiu para a situação de insegurança vivida pelas mulheres atualmente den tro do Estado Brasileiro 1 JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO E VIOLÊNCIA DE CONTRA AS MULHERES Justiça de Transição corresponde ao conjunto de políticas públicas materiais ou simbólicas exercidas pelo Estado durante os processos de redemocratização nos campos jurídico político e social que jogam luz num legado de autoritarismo e visam à garantia de uma paz sustentá vel a partir da superação melhor possível do passado de violações de direitos De maneira geral deve compreender na adoção de medidas que garantam o direito à Memória incorporação de elementos que permitam lembrar e evitar a repetição de tais violações à Verdade afastamento das versões negacionistas que ocultam a existência de tais situações ou de sua relevância e à Justiça como reparação o que colaboram para a retomada da confiança pública na capacidade e disposição do Estado de garantir a lei Assim podese notar o caráter 1238 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ético e legal mas também estratégico da execução da política de tran sição Desse modo a Justiça de Transição pode ser considerada muito além das ações no campo judicial mas sim a um conjunto de políticas públicas de Verdade Memória e Justiça que visam enfrentar um pas sado especialmente marcado por graves violações de Direitos Huma nos Insta salientar que os processos de redemocratização foram em grande medida marcados por exigências no âmbito interno e externo por parte de movimentos sociais e de organismos internacionais res pectivamente Dessa forma Verdade Memória e Justiça desdobramse assim em verdadeiros Direitos Humanos decorrentes dos consagrados em tratados e declarações e amparados por sistemas internacionais de proteção aos Direitos Humanos 11 A MEMÓRIA A memória cumpre a função de construir um sistema de prote ção simbólica que evite a repetição de violações Ela consiste na ma terialização da Verdade sob a forma de símbolos e discursos como a construção de museus de feriados renomeação de pontes bairros ruas e cidades retirando o nome dos violadores e nomeando com os nomes das sobreviventes bem como a realização de campanhas mi diáticas e inclusão dessas temáticas nas discussões escolares do Ensino Básico enfim um conjunto de políticas que dignifiquem as e os que tiveram seus direitos violados e que permitam o partilhamento social da compreensão dos fatos passados impedindo que esses caiam no es quecimento 12 A VERDADE A busca pela verdade é primordial pois evita o negacionismo e a invisibilizacão dos fatos e violações ocorridas no passado O não es tabelecimento da verdade significa a impossibilidade da existência de políticas públicas de memória e justiça e permite a manutenção não só de um governo violador como também de suas práticas ilegítimas À medida em que não se reconhece uma violação do passado como existente quaisquer outros projetos de construção de uma Justiça de Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1239 Transição realmente democrática e plena tornamse inviáveis É só a partir do estabelecimento e da busca pela Verdade que se pode aferir a dimensão do dano e identificar foram suas vítimas e perpetradores Seu estabelecimento nos permite reconhecer a dimensão o método o perfil das vítimas bem como o grau de recorrência dos crimes sejam eles tortura desaparecimento forçado violência sexual ou homicídios Outro aspecto da verdade mais ligado ao âmbito jurídico e que sele estabelecimento permite a revisão de crimes novos julgamentos de pessoas condenadas sob falsas acusações bem como evidenciar se a pessoa está morta ou desaparecida Por essa razão as comissões da verdade são estabelecidas com o objetivo de evidenciála normalmente não possuem caráter punitivo e são estabelecidas em países que saem de perigosos marcados por grandes violações de direitos humanos Nela são entrevistadas as ví timas e agressores bem como é realizada uma série de levantamentos documentais Diante disso percebese o fundamental papel da Histó ria Oral para que as pessoas diretamente envolvidas nas situações pos sam dar seus depoimentos Assim é fundamental que as Comissões da Verdade sejam implementadas logo após o início do processo de transição democrática o que não ocorreu no caso brasileiro no qual ela foi implementada mais 20 anos depois do fim da ditadura civilmi litar 1985 apenas no ano de 2011 pela então presidenta Dilma Rou sseff sobrevivente da ditadura enquanto observamos que a criação de uma Comissão da Verdade sobre o conflito armado colombiano estava já prevista no acordo de paz assinado em 2016 foi criada em Maio de 2018 pelo Presidente Juan Manuel Santos e entrará em vigor em novembro de 2018 tendo duração de três anos 13 A JUSTIÇA À medida em que a verdade é revelada e a memória é construída a demanda por justiça se intensifica Essa justiça deve ir além de um caráter meramente punitivo que condene a prisões os perpetradores das violências ela deve representar a desestruturação do Sistema Ins titucional que permitiu que as violações acontecessem Nesse sentido é preciso construir um novo paradigma de justiça e democracia O direito à Justiça corresponde não apenas à responsabilização 1240 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça dos agentes diretos mas também à restituição de cargos dignidades prédios de entidades do movimento etc dirimindo ao máximo os pre juízos produzidos De forma geral tais políticas precisam passar pela reestruturação do estado No caso Brasileiro observouse que essa reestruturação não aconteceu Analisando a Lei de Anistia Brasilei ra Lei nº 668379 ela mostrase como um entrave para estabeleci mento da justiça uma vez que prevê a anistia a todos que cometeram crimes políticos e eleitorais incluindo os Militares e outros atores Es tatais que até hoje ocupam postos de alto escalão no executivo e no exército brasileiro de modo que as instituições e os violadores ainda se mantém nos cargos de poder 2 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER O CASO BRASILEIRO 21 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO BRASIL CONTEMPORANEO A materialização da Violência contra a Mulher por parte do Estado Brasileiro pode ser observada na contemporaneidade de forma direta através da incidência do militarismo que afeta a vida das mulheres bem como dos indicadores que colocam o Brasil como o 5º país com maior índice mundial de feminicídio onde 13 mulheres são mortas por dia ONU MULHERES 2016 ou seja pelos dados registrados de estupro no país que indicam que um estupro ocorre a cada 11 mi nutos no país434 mas também podem ser observados de forma in direta principalmente através do desenvolvimento de leis e projetos de leis que representam ameaças ou retrocessos a uma série de direi tos já conquistados como no caso do PL 4782007 que dispõe sobre o Estatuto do Nascituro que ameaça o direito ao aborto legal do PL 1932016 que inclui entre as diretrizes e bases da educação o Pro grama Escola sem Partido que veta o ensino de teoriaideologia de gênero e a retirada da obrigatoriedade do Ensino de Gênero no Plano Nacional de Educação 434 Segundo o 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública em 2014 foram regis trados 47643 casos de estupro em todo o país O dado representa um estupro a cada 11 minutos Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1241 22 a violência contra a mulher como forma de tortura na ditadura civil militar brasileira É importante ressaltar que o presente trabalho não ignora as violações sexuais sofridas por homens contudo leva em consideração a relação intrínseca entre a violação sexual e a violência contra a mulher que pode ser observada na retórica de que mulheres não deveriam ocupar o espaço da resistência por parte dos torturadores bem como as violações sexuais regulares contra diferentes perfis de mulheres em diferentes contextos que devem ser entendidas como uma questão estrutural ao Estado Nacional Brasileiro No que tange a violência sexual além das lesões e amputações existem danos específicos que marcam as sobreviventes por toda a sua vida Entre os danos biológicos mulheres tornaramse estéreis perde ram seus filhos por aborto sequestro ou afastamento durante os anos em que foram torturadas e ressecamento do leite materno Entre os psicológicos mulheres desenvolveram doenças psicossomáticas pro vocadas pelo medo como ansiedade e síndrome do pânico Cristina Moraes Almeida que sofreu mutilações na região do tórax e nos seios além de ter tido a perna estraçalhada por uma furadeira presa pela primeira vez aos 19 anos em 1969 em depoimento a Comissão Nacio nal da Verdade relatou Eu quero esquecer Mas eu te pergunto qual é o profissional na psicologia que vai apagar essas marcas Não tem Não tem E hoje em dia eles torturadores dizem eu não sei eu não vi não me comprometa eu quero sair deste capítulo Porque eu estou vivendo como se fosse ontem BRASIL 2014b p 1207 Segundo o apontado pelo Relatório Final da Comissão da Verda de BRASIL 2014b os danos provocados pelas violações sexuais afe tam permanentemente a vida das sobreviventes impedindo com que essas possam desfrutar da vida de forma plena em virtude do processo de trauma que em alguns casos determinaram a vida afetiva e sexual das sobreviventes A partir da constatação do recorrente emprego da violência se xual como arma em inúmeras sessões de tortura dirigidas especial mente contra as mulheres verificouse a necessidade de desvelar 1242 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça possíveis especificidades das violações perpetradas contra o sexo fe minino Cabe esclarecer que ao longo do trabalho violência contra a mulher será entendida em seu caráter múltiplo o que compreende estupros e quaisquer outros atos ou tentativas de obter ato sexual in vestidas bem como comentários sexuais indesejados Destarte cabe indagar se para além das deficiências já conhecidas de nossa Justiça de Transição não haveria uma tendência à homogeneização de certo reconhecimento e da promoção de políticas de memória desconside rando as singularidades do regime na repressão contra as mulheres Para isso abaixo serão apresentados diversos depoimentos dados às Comissões da Verdade de mulheres de diferentes perfis que foram so breviventes de torturas a partir dos quais pode ser observada de que forma a violência empregada na ditadura contra as mulheres apresen tava particularidades que demonstram que o Estado Brasileiro utili zou da Violência Contra a Mulher como instrumento específico da tortura de mulheres Inês Etienne Romeu foi a única testemunha pública da existência e das violações cometidas na Casa da Morte em Petrópolis um dos centros clandestinos de tortura e desaparecimento de militantes Em 1971 encaminhou as denúncias à OAB e estas se tornaram públicas em 1979 quando terminou de cumprir a pena ao qual foi condena da Foi militante da POLOP e da Vanguarda Popular Revolucioná ria VPR Foi presa em São Paulo em 1971 pela equipe do delegado Fleury acusada de participação no sequestro do embaixador suíço Giovanni Enrico Bucher Em seu relato fala sobre as atrocidades que sofreu durante o tempo que ficou presa A qualquer hora do dia ou da noite sofria agressões físicas e morais Márcio invadia minha cela para examinar meu ânus e verificar se Camarão havia praticado sodomia comigo Este mesmo Márcio obrigoume a segurar seu pênis enquanto se contorcia obscenamente Durante este período fui estupra da duas vezes por Camarão e era obrigada a limpar a cozinha completamente nua ouvindo gracejos e obscenidades os mais grosseiros Durante o tempo de meu cativeiro tentei o suicídio quatro ve zes Apesar de todas essas tentativas quero esclarecer que não sou e nunca fui uma suicida em potencial e que somente me virtude do que me fizeram do tratamento desumano e cruel Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1243 a que fui submetida é que por quatro vezes tentei me matar MERLINO ODEJA 2010 p 105 Em 2003 Inês foi encontrada caída e ensanguentada em seu apartamento com traumatismo cranioencefálico devido a vários gol pes depois de receber a visita de um suposto marceneiro contratado para um serviço doméstico episódio que culminou na necessidade de ajuda médica permanente e em limitações neurológicas Última presa política a ser libertada no Brasil recebeu o Prêmio de Direitos Huma nos na categoria Direito à Memória e à Verdade outorgado pelo go verno brasileiro em 2009 Inês faleceu em 2015 dormindo em sua casa Lúcia Murat era estudante e iniciou sua militância na universida de fazendo parte do Dissidência Estudantil da Guanabara Posterior mente militou no Movimento Revolucionário 8 de Outubro MR8 Foi presa duas vezes e torturada Em seu depoimento à CEVRio rela ta a especificidade da tortura sexual Puseram baratas passeando pelo meu corpo Colocaram uma barata na minha vagina Hoje parece loucura Mas um dos torturadores de nome de guerra Gugu tinha uma caixa onde ele guardava as baratas amarradas por barbantes E através do barbante ele conseguia manipular as baratas no 7 Acervo CE VRio Testemunho prestado por Dulce Pandolfi em audiência pública da Comissão da Verdade do Rio em 28052013 meu corpo Acho isso muito importante porque demonstra tam bém que essa equipe de torturadores estudava os métodos que eles eufemisticamente chamavam de técnica de interrogatório Não era simplesmente uma explosão de um sádico de plantão Foi nesse quadro na volta que o próprio Nagib Risacala Corbage fez o que ele chamava de tortura sexual científica Eu ficava nua com um capuz na cabeça uma corda enrolada do pescoço passando pelas costas até as mãos que estavam amar radas atrás da cintura Enquanto o torturador ficava mexendo nos meus seios na minha vagina penetrando com o dedo na vagina eu ficava impossibilitada de me defender pois se eu mo vimentasse meus braços para me proteger eu me enforcava e instintivamente voltava atrás Ou seja eles inventaram um mé todo tão perverso em que aparentemente nós não reagíamos como se fôssemos cúmplices de nossa dor Isso durava horas ou noites não sei bem MERLINO ODEJA 2010 p140 1244 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Áurea Moretti era militante da Frente de Libertação Nacional FLN quando foi presa e torturada pela Ditadura CivilMilitar bra sileira foi colega de cela da Madre Maurina relatou à CEVSP sobre episódios de tortura específicos de gênero Durante uma sessão de tor tura pediu um absorvente pois estava menstruada foi então arrastada pelos cabelos espancada e jogada no chão como se o pedido criasse uma fúria especial nos agentes de tortura Áurea também relata outro episódio que demonstra ódio específico por parte dos torturadores pelo fato dela ser mulher e militante política deixando de cumprir seu suposto papel de mulher na sociedade Sem nenhum respeito e pelo contrário tripudiando em cima da nossa condição de mulher Muitos abusando muitos agredindo assim e falava o seguinte para a gente Mulher pres ta bem atenção vocês viu Mulher é para transar com o marido dar cria nos filhos e ser dona de casa O que vocês estão fazendo na política e aí é que eles batiam em nós mesmo para valer COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO RUBENS PAIVA 2015 p 1098 Os agentes repressores também se aproveitaram de condições específicas da mulher como a gravidez e a maternidade Durante as sessões de tortura a violência era dirigida aos órgão genitais e repro dutores a exemplo de choques elétricos na vagina para esterilizálas e mutilações nos seios Em alguns casos os torturadores golpeavam as mulheres grávidas no abdômen para provocar abortos impedindo as sim o nascimento de mais um comunista ou aplicavam injeções que empedravam o leite materno BRASIL 2014b Maria Helena Guimarães Pinheiro na época militava no Ação Popular e estava grávida Após 44 anos de silêncio relatou à CEV Rio sobre as torturas que sofreu durante sua prisão tendo como consequência o aborto forçado após ter sido bastante golpeada em seu abdômen Isso eu acho que foi motivo para eles me baterem mais porque eu estava grávida E eu dizia Por que você me bate tan to na barriga e ele falou Porque e menos um comunista E continuava a bater bater bater e bater E eu comecei a sangrar muito MERLINO ODEJA 2010 p 144 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1245 As consequências da tortura acompanharam Maria Helena após ter sido libertada Teve complicações na gravidez seguinte e seu filho nasceu morto Após os traumas decidiu não ter mais filhos e retirou suas trompas aos 32 anos Gilse Cosenza era militante da Ação Popular recém formada em Serviço Social e mãe de uma menina de 4 meses quando foi presa em 1969 em Belo Horizonte Ela relata as atrocidades que fizeram com ela e as ameaças de tortura a sua filha Eles passavam noites inteiras me descrevendo o que iam fazer com a minha menina de quatro meses Você é muito mar ruda mas vamos ver se vai continuar assim quando ela chegar Estamos cansados de trabalhar com adulto já estudamos todas as reações mas nunca trabalhamos com uma criança de quatro meses Vamos colocála numa banheirinha de gelo e você vai ficar algemada marcando num relógio quanto tempo ela leva para virar um picolé Mas não pense que vamos matála assim fácil não Vocês vão contribuir para o progresso da ciência va mos estudar as reações ver qual vai ser a reação dela no pau de arara com quatro meses E quanto ao choque elétrico va mos experimentar colocando os eletrodos no ouvido será que os miolos dela vão derreter ou vão torrar Não vamos matála vamos quebrar todos os ossinhos acabar com o cérebro dela transformála num monstrinho Não vamos matar você tam bém não Vamos entregar o monstrinho para você para saber que foi você a culpada por ela ter se transformado nisso Depois disso me jogavam na solitária Eu quase enlouqueci Um dia eles me levaram para uma sala me algemaram numa cadeira e na mesa que estava na minha frente tinha uma banheirinha de plástico de dar banho em criança cheia de pedras de gelo Havia o cavalete de pau de arara a máquina do choque e ti nha uma mamadeira com leite em cima da mesa e um relógio na frente Eles disseram Pegamos sua meninaela já vai chegar e vamos ver se você é comunista marruda mesmo Me deixa ram lá olhando para os instrumentos de tortura e de vez em quando passava um torturador falando Ela já está chegando E repetia algumas das coisas que iam fazer com ela O tempo foi passando e eles repetindo que a menina estava chegando Isso durou horas e horas Depois de um tempo eu percebi que ti nham passado muitas horas e que era blefe MERLINO ODE JA 2010 p 192 1246 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Maria Amélia de Almeida Teles militou no Partido Comunista do Brasil PCdoB Era mãe e professora de educação artística quando foi presa em 1972 em São Paulo SP Maria Amélia relatou sobre as torturas que sofreu na condição de mulher e mãe A primeira forma de torturar foi me arrancar a roupa Lembro me que ainda tentava impedir que tirassem a minha calcinha que acabou sendo rasgada Começaram com choque elétrico e dando socos na minha cara Com tanto choque e soco teve uma hora que eu apaguei Quando recobrei a consciência es tava deitada nua numa cama de lona com um cara em cima de mim esfregando o meu seio Era o Mangabeira codinome do escrivão de polícia de nome Gaeta um torturador de lá A impressão que eu tinha é de que estava sendo estuprada Aí co meçaram novas torturas Me amarraram na cadeira do dragão nua e me deram choque no ânus na vagina no umbigo no seio na boca no ouvido Fiquei nessa cadeira nua e os caras se esfregavam em mim se masturbavam em cima de mim Mas com certeza a pior tortura foi ver meus filhos entrando na sala quando eu estava na cadeira do dragão Eu estava nua toda urinada por conta dos choques Quando me viu a Janaína perguntou Mãe por que você está azul e o pai verde O Edson disse Ah mãe aqui a gente fica azul né Eles também me di ziam que iam matar as crianças Chegaram a falar que a Janaína já estava morta dentro de um caixão o MERLINO ODEJA 2010 p 162 É preciso ressaltar que a tortura não foi um ato de violência irracional ela foi utilizada como meio de poder e dominação sendo meticulosamente pensado estudado e administrado por homens agentes de Estado Portanto violação sexual e de gênero também utilizadas como instrumentos de tortura por parte de agentes repressores pode ser atribuída ao Estado brasileiro Durante o período da Ditadura CivilMilitar o Estado brasileiro cometeu diversas e gravíssimas violações de direitos humanos e da dignidade humana de homens e mulheres Dentre as violações estão à tortura assassinato sequestro desaparecimento prisões arbitrárias etc Por meio deste estudo podese concluir que houve violação sexual e tortura específica de gênero para mulheres Consequentemente cabe afirmar que dentre os legados da Dita dura CivilMilitar está o reforço de aspectos já existentes na sociedade brasileira como a desigualdade entre homens e mulheres o patriar cado a cultura do estupro e a violência contra mulheres Conforme Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1247 destacado pela Comissão da Verdade do Estado de São Paulo Rubens Paiva As desigualdades históricas entre homens e mulheres foram re elaboradas e aprofundadas pela ditadura que não admitia que mulheres desenvolvessem ações não condizentes com os este reótipos femininos de submissão dependência e falta de inicia tiva Neste sentido o Estado autoritário direcionou uma violên cia específica a elas gerando distintas consequências e sequelas entre mulheres e homens COMISSÃO DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO RUBENS PAIVA 2015 p 1086 3 O EXEMPLO COLOMBIANO No conflito Armado Colombiano violência sexual foi empregada por todos os grupos militares paramilitares e guerrilheiros de forma sistemática e generalizada como arma de guerra ao longo dos 50 anos de conflito Essa forma de violência como tantas outras é utilizada como ferramenta de tortura e castigo contudo apresenta caracterís ticas e motivações específicas visto que a violência sexual só existe porque acima dela há uma violência e desigualdade de gênero Tal desigualdade coloca o gênero feminino em uma posição de inferioridade perante o masculino dessa forma o homem teria por razões naturais o direito sobre o corpo e a vida das mulheres Em con textos de conflitos tal situação se agrava e a violência sexual passa a ser utilizada não só como forma de reproduzir essa hierarquia mas também para manter o controle da população e como instrumento de vingança e humilhação Assim a violência sexual tornouse parte in tegrada do conflito armado Por essa razão sua especificidade tornou se invisibilizada culminando na impunidade e na insegurança para as mulheres sobreviventes O permanente silêncio em torno da questão faz com que seja im possível contabilizar o número de mulheres vítimas de violência sexual ao longo dos 50 anos de conflito Mesmo assim os testemunhos e rela tos das mulheres que habitavam zonas ocupadas pelo conflito armado nos permitem crer que a violência sexual foi muito mais frequente do que os dados oficiais sugerem Além disso pouquíssimas mulheres 1248 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça realizavam denúncias por medo vergonha e falta de confiança em um Estado que até então sequer as reconhecia como vítimas ou seja não possuíam o acesso a justiça Diversas organizações Governamentais e Não governamentais Nacionais e Internacionais realizara desde 2003 uma série de relató rios todos alegavam que a violência sexual fora utilizada como arma de guerra durante o conflito armado e que tal questão não estaria sen do contemplada pelo Estado Colombiano que condenava as vítimas ao esquecimento e chamavam a atenção para não só para o uso siste mático da violência sexual como arma de guerra mas também para as dificuldades que essas encontravam no acesso à justiça e à assistência psicossocial Durante décadas o Estado Colombiano se omitiu perante essa questão mesmo diante da pressão de diversas organizações de direitos humanos nacionais internacionais movimentos de mulheres e ONGS Assim em resposta essa série de demandas e pressões de so breviventes Movimentos sociais e Organizações em 2014 a Lei 1719 A Lei 17192014 é a lei por la cual se adoptan medidas para ga rantizar el acceso a la justicia de las víctimas de violencia sexual en es pecial la violencia sexual con ocasión del conflicto armado SENADO 2014 Dessa forma ela representa a adoção de uma política pública que contribui com a igualdade de gênero através da garantia de aces so à justiça às vítimas de violência sexual principalmente mulheres crianças e adolescentes vítimas de violência sexual durante o conflito armado Colombiano Além de garantir o acesso à justiça a lei também prevê medidas de proteção às vítimas visto que essas encontramse em uma situação de vulnerabilidade acentuada em decorrência do conflito armado assim garantindo que novas violações não ocorram Além das medidas de proteção também serão fornecidas as vítimas e familiares assistência psicossocial permanente até sua completa recu peração emocional A lei nº17192014 SENADO 2014complementa outras leis já existentes para proteger os direitos das mulheres representando um avanço de diferentes marcos normativos existentes acerca da violência sexual Também modifica alguns artículos das leis 906 de 2004 prin cípios e garantias processuais e Lei 599 de 2000 instituição do có digo penal incluindo novos tipos penais próprios da violência sexual no marco do conflito armado e responde o Auto 092 de 2008 da Corte Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1249 Constitucional Colombiana sobre a proteção dos diretos fundamen tais das mulheres vítimas de desaparecimento forçado em função do conflito armado como o acesso carnal abusivo em menor de 14 anos escravidão sexual prostituição forçada tráfico de pessoas com fins de exploração sexual esterilização forçada gravidez forçada desnudez e aborto forçado No que tange ao ambiente internacional a Lei reto ma as diretrizes do Estatuto de Roma da Corte Penal Internacional 1998 que estabelece a violência sexual como crime contra a huma nidade sendo que tais crimes não são prescritos podendo ser julga dos em qualquer tempo A instituição da lei 1719 de 2014 atende aos apelos de diversos setores da sociedade civil em especial às vítimas que passaram a ter assegurados seu direito ao acesso a justiça Contudo há ressalvas so bre a mesma visto que a lei essa não aborda temas importantíssimos relacionados a violência sexual pois teve que ceder nos pontos que foram debatidos no congresso abordando por exemplo de forma ge nérica as questões da gravidez e do aborto induzido A despeito das críticas que podem ser realizadas a lei 17192014 é fundamental que tanto os responsáveis pelas instituições do Estado Colombiano quan to as mulheres sobreviventes conheçam e se apropriem dessa Lei de forma que unam forças para reivindicar e exigir esse direito já norma tivo contudo o processo de sensibilização e difusão ainda é um dos grandes desafios da lei 1719 A instituição da Lei 1719 por si só já representa um avanço na justiça para as mulheres à medida que essa reconhece e evidencia que a Violência Sexual foi utilizada como arma de guerra durante o confli to armado Tal fato por si só já representa um enorme avanço no di reito a Memória Verdade e Justiça dessas mulheres que até então en contravamse relegadas ao esquecimento Ademais segundo a Mesa de Mujer y Conflicto Armado a lei 1719 representa avanços em três aspectos fundamentais na justiça para as mulheres El primero es que permite armonizar la legislación interna con el derecho internacional de los derechos humanos y el derecho penal internacional a partir de la inclusión de delitos nuevos como la este rilización forzada el embarazo forzado y la desnudez forzada y el au mento de penas para algunos delitos que ya estaban tipificados como la prostitución forzada Segundo incluye un catálogo importante de 1250 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça derechos para las víctimas de violencia sexual y tercero contiene normas destacables en cuanto a medidas de protección reparación y atención Mesa de Trabajo Mujer y Conflicto Armado febrero de 2015 4344 Por fim percebese que a lei 17192014 consiste no mais recente esforço Latino Americano de criação de uma política pública capaz de conciliar de memória verdade e justiça a igualdade de gênero e combate à violência contra a mulher de modo que possa tornarse um exemplo para outros Estados como o Brasileiro que ainda têm muito o que avançar em sua política de memória verdade e justiça que valo rize e contemple as mulheres 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS O debate sobre as questões de gênero durante o período Militar sem pre foi marcado por uma característica instituída por esse poder a in visibilidade Falase muito em torturados guerrilheiros ignorando o papel central da participação feminina nos movimentos de resistência Esse fato não é mero acaso é reflexo de uma estrutura social que retira das mulheres o papel de protagonistas da história Ao analisarmos o processo de justiça de transição notase que esse apagamento ocorre não só na falta de atenção dada a temática de gênero As especificidades relacionadas às questões de gênero são fatores extremamente negligenciados no que tange às políticas de reparação da ditadura CivilMilitar Brasileira O processo de justiça de transição por si só foi extremamente tardio no Brasil o que aliado a não aber tura dos arquivos do período dificulta a existência de uma política de reparação plena que valorize e baseiese no resgate da memória da verdade e no cumprimento da justiça Assim dentro das poucas políticas de reparação existentes é possível observar a ausência de po líticas específicas para gênero Indo no sentido contrário a lei Colombiana nº 1719 de 2014 constitui um marco importantíssimo pois institui uma política públi ca que contempla não só os aspectos ligados a violência de gênero como a contextualiza nas características específicas desse Estado Ofe recendo às mulheres vítimas de violações sexuais não só o acesso à Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1251 justiça mas também o direito a Verdade e a Memória Contudo ainda há muitos avanços que precisam ser feitos no que tange a essa políti ca especialmente acerca de sua divulgação e disseminação tanto nas instituições competentes quanto para a sociedade civil em especial as vítimas de violência sexual Sendo a Colômbia um país que vivenciou um conflito armado por 5 décadas seria impossível conceber uma política pública genérica de combate a violência contra a mulher ie Lei Maria da Penha Brasil a medida em que o conflito afetou coti dianamente os aspectos políticos administrativos e sociais do país Nesse sentido a lei representa uma grande conquista para as mulheres na América Latina e pode indicar um dos possíveis caminhos para o Estado Brasileiro Desde o fim do Regime Militar não houve nenhum tipo de inser ção do debate de gênero nos ambientes públicos e de formação como em escolas para promover a igualdade entre os gênero Tampouco Políticas de resgate a Memória e a Verdade que trouxessem à tona o debate sobre gênero e as violações que ocorreram na ditadura Ao con trário pôdese notar uma constante tentativa de omitir que a tortura violência contra a mulher foi utilizada como uma ferramenta de poder do Estado maculando assim o caráter machista e patriarcal do Estado brasileiro O único avanço nessa área foi a criação da Comissão Nacio nal da Verdade no ano de 2012 finalizada no ano de 2014 contando com um capítulo específico sobre as Questões de gênero bem como em diversas comissões Estaduais como a do Rio de Janeiro e a de São Paulo mas não sem antes muita luta por parte das mulheres para con seguir inserilo no relatório Até hoje temos como aspectos basilares de nossa sociedade o Ma chismo e o patriarcado que ainda podem ser observados no milita rismo brasileiro O Plano Nacional de Educação 2014 2024 teve que por pressão das bancadas conservadoras retirar a obrigatoriedade do Ensino de Gênero nas Escolas e a partir alguns municípios como Juiz de Fora MG e Volta Redonda RJ proíbem expressamente as discussões de gênero nas escolas No ano de 2018 quando decretada a intervenção militar no Rio de Janeiro e reunião com Michel Temer o atual presidente da república o Comandante do Exército General Eduardo Vilas Boas disse que seria necessário dar aos militares ga rantia para agir sem o risco de uma surgir uma nova Comissão da Verdade LOBO 2018 1252 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça No ano de 2016 o deputado Jair Bolsonaro dedicou seu voto durante a votação do Impeachment da presidenta Dilma Rousseff ao Coronel Brilhante Ustra um dos principais nomes dos torturadores durante o período ditatorial e um dos torturadores de Amelinha Te les cujo depoimento encontrase no presente trabalho com as pa lavras Ao Coronel Brilhante Ustra o carrasco de Dilma Rousseff na votação do impeachment da presidenta Dilma Rousseff que por sua vez é uma sobrevivente da ditadura militar Evidenciam a urgente ne cessidade da criação de políticas públicas que promovam a igualdade de Gênero por parte do Estado brasileiro Nas palavras de Amelinha Teles que também fora torturada pelo mesmo O que significa essa declaração do deputado é que ele quer que o Estado brasileiro continue a torturar e exterminar pessoas que pensem diferente dele Que democracia é essa que quer a tortura a repressão às pessoas que não concordam com suas ideiasBRANDÃO 2016 Tais fatos foram ignorados e acobertados por muito tempo Não podemos afirmar uma relação de causa e efeito entre ditadura militar e o atual cenário Político Brasileiro Contudo é inegável que vivencia mos um contexto de retrocessos dos poucos direitos já conquistados especialmente no que tange ao gênero aumentando a situação de Inse gurança em que as mulheres vivem a exemplo da falência dos serviços de atendimento às mulheres vítimas de violência No presente cenário a falta de Políticas de Memória Verdade e Justiça tornase escancara da diante da semelhança entre do atual contexto com o contexto do período militar Hoje no Brasil consideramos que existe um terreno fértil para novas violações diante disso não mais ignorar as violações do pas sado a partir da construção de uma Justiça de Transição verdadeira mente Democrática colabora para a o surgimento de um terreno pro pício para o enfrentamento do patriarcado que tanto foi perpetuado e intensificado nas Instituições Nacionais durante a ditadura militar de diversas formas entre elas do uso da violência contra as mulheres como política de Estado Assim para possibilitar uma vida realmente segura para as mulheres em supostos tempos de paz é urgente o reco Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1253 nhecimento e valorização da Memória reconhecendo a existência e relevância das mulheres no processo de resistência a Verdade que houve violência de gênero implementada pelo Estado como técnica de tortura e da Justiça Através das políticas de reparação garantir que tais acontecimentos nunca mais se repitam REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICOS BORGES Nadine Memória Verdade e Justiça em perspectiva de gênero a violência sexual na ditadura civilmilitar brasileira de poimento 27 de setembro 2016Rio de Janeiro Entrevista concedi da a Ana Carolina Lacerda Letícia Do Valle Lívia Azevedo e Elidio Alexandre Borges Marques BRANDÃO Marcelo Presa Política lembra como conheceu coronel Ustra homenageado por Bolsonaro EBC Agencia Brasil 2016 Dis ponível em httpagenciabrasilebccombrgeralnoticia201604 presapoliticacontaseuencontrocomcoronelustrahomenagea doporbolsonaro BRASIL Comissão Nacional da Verdade Relatório da Comissão Na cional da Verdade v 3 20112014 Brasília Governo Federal 2014b CARNEIRO P R LACERDA A C C MERLIM Livia de A PAULA L V P Memória Verdade e Justiça em perspectiva de gênero a violên cia sexual na ditadura civilmilitar brasileira Revista do CFCH 2017 RAZON PUBLICA La ley 1719 avance contra la violencia sexual Disponível em httpwwwrazonpublicacomindexphppoliticay gobiernotemas277850laley1719avancecontralaviolenciase xualhtml Acesso em 10 ago 2017 COMISSÃO ESTADUAL DA VERDADE DO ESTADO DE SÃO PAULO RUBENS PAIVA São Paulo Relatório São Paulo 2015 p 11912 LOBO Cristina Militares precisam ter garantia para agir sem o risco de surgir uma nova comissão da Verdade diz comandante do Exér cito G1 2018 DIsponível em httpsg1globocompoliticablogcris tianalobopostgeneralvilasboasmilitaresprecisamtergarantia 1254 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça paraagirsemoriscodesurgirumanovacomissaodaverdade ghtml MARQUES Silvia Violência contra a mulher UNB Notícias 2016 Disponível em httpswwwnoticiasunbbrartigosmain987violen ciacontraamulher MERLINO Tatiana OJEDA Igor Memória e verdade luta substan tivo feminino mulheres torturadas desaparecidas e mortas na re sistência à ditadura São Paulo Caros Amigos 2010 OXFAM INTERNAICONAL Informe de OXFAM INTERNACIO NAL UN ARMA DE GUERRA La violencia sexual en colombia Disponível em httpswwwoxfamorgsiteswwwoxfamorgfiles bpsexualviolencecolombiasppdf PEREIRA Fernanda PAULO Luísa S As violências sexuais e de gênero e a justiça de transição no Brasil e na Argentina uma análi se comparativa dos movimentos de mulheres em cada país LOrdi naire des Amériques 222 2017 Disponível em httpordarevues org3478 RIO DE JANEIRO Comissão da Verdade do Rio Relatório Co missão da Verdade do Rio Rio de Janeiro CEVRio 2015 SENADO COLOMBIA Ley 1719 de 2014 Acesso em 08 de Agos to de 2017 httpwwwsecretariasenadogovcosenadobasedoc ley17192014html 1255 A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA AS MENINAS E MULHERES COM DEFICIÊNCIA Deborah Prates435 RESUMO A violência contra meninas e mulheres com deficiência não possui bibliografia especializada o que configura a total invisibi lidade contra esse contingente populacional Vale assim despertar o interesse no assunto que levará ao seu conhecimento permitindo o desenvolvimento humano dessas pessoas Portanto tem o presente trabalho o objetivo de oferecer mais elementos para o estudo sobre a violência sexual contra mulheres com deficiência Como pessoa com deficiência cegueira em ambos os olhos sintome qualificada para tecer os comentários abaixo na perspectiva das minhas vivências Palavras chave meninas e mulheres com deficiência invisibilidade feminismo interseccionalidade preconceito acessibilidade atitudinal e dignidade da pessoa humana 1 APRESENTAÇÃO A signatária passou a se interessar pelo feminismo movimento de transformação social faz cerca de 11 anos a partir das opressões in justiças que passou a viver após a cegueira Percebeu que além da opressão que experimentava decorrente de gênero existia outra aque 435 Advogada inscrita na OABRJ e feminista Membra efetivo do IAB Instituto dos Advogados Brasileiros É a primeira e única pessoa com deficiência a integrar os quados do Instituto em 174 anos de existência Presidente da Comissão da Mu lher do IAB Membra da Comissão de Direitos Humanos do IAB Membra Con sultora da Comissão Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência CFOAB Autora do livro Acessibilidade Atitudinal Editora Gramma RJ 2015 1256 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça la decorrente da deficiência Percebeuse invisível diante dos olhos preconceituosos de uma sociedade capitalista machista e racista Diante desses fatos tornouse feminista no ponto de vista da interseccionalidade Esta nos remete a um conceito em construção pelo que como mulher com deficiência encontrou abrigo apoio para prosseguir na existência Entendeu que a mulher exercendo preponderantemente o papel de cuidadora dos filhosfamília teria o poder de educar pessoas me lhores no que diz respeito ao quesito igualdade vez que esta se inicia no seio familiar As crianças à vista disso quando encontrassem na escola coleguinhas com deficiência não enxergariam neles diferenças por conta tãosó do estereótipo tal qual acontece em 2018 Dessa forma não há a menor dúvida do quanto o feminismo agrega com a causa da pessoa com deficiência Essa afirmação pode ser conferida no belíssimo texto intitulado Deficiência direitos hu manos e justiça de Débora Diniz Lívia Barbosa e Wederson Rufino dos Santos interessando para o momento o trecho a seguir transcrito O tema da igualdade de gênero é um plano de fundo na Con venção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência desde o preâmbulo até as seções específicas sobre a proteção às meninas e mulheres com deficiência e o papel das famílias das pessoas com deficiência ONU 2006a DINIZ BARBOSA SANTOS 2009 p 72 Na sua vivência certificouse que o ser que habita um corpo que foge aos padrões de normalidade imposto pela indústria da moda está fora do ângulo de visão da coletividade Está fora do mundo Ao longo desta colaboração vem apresentar sugestões de inter venções que respeitem os direitos humanos e fundamentais dessas mulheres Para tanto será analisado o conjunto de circunstâncias da realidade desse grupo populacional Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1257 2 QUEM NÃO É VISTO NÃO É LEMBRADO Antes de enfrentar o tema A violência sexual contra mulheres com deficiência fazse necessário fazer algumas abordagens acerca da vio lência opressão que agasalha o contexto das pessoas com deficiência em geral Isto porque as opressões se somam até chegar a sexual Sem dúvida é a invisibilidade social o primeiro sintoma do preconceito de corrente da deficiência Após a cegueira a autora viuse invisível pela sociedade e quis saber o porquê Releu a obra O Corcunda de NotreDame de Victor Hugo e a tomou como ponto de partida até os dias atuais A história dá conta da discussão do tema da deficiência na Idade Média A vida de Qua símodo personagem externamente disforme e grotesco mas também terno ingênuo e apaixonado passada em Paris no Século XV mos trou ao homem cristão que nem tudo na criação é humanamente belo que o feio e o disforme convivem com o gracioso que o grotesco é o reverso do sublime Quasímodo é o exemplo de como a pessoa com deficiência era concebida e tratada na Idade Média O próprio autor ao descrevêlo o fez com os seguintes atributos Batizou seu filho adotivo e o chamou Quasímodo fosse por querer assinalar assim o dia em que o encontrara fosse por querer caracterizar por meio daquele nome até que ponto a po bre criaturinha era incompleta e mal desabrochada Com efeito Quasímodo zarolho corcunda torto não deixava de ser um quase alguém HUGO 1973 p 120 grifo meu No dia 3 de dezembro de 2017 Dia Internacional da Luta das Pessoas com Deficiência 14 da população brasileira último censo demográfico do IBGE ainda é tratado como quase alguém A so ciedade é absurdamente insensível em relação aos interesses desse grupo de humanos Prefere darlhes assistência auxílio benefícios olhares caritativos ao invés de promover a conscientização de sorte a mudar a ordem social e política que as oprime 1258 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Face a essas breves considerações que esse olhar de piedade pa triarcal configura a basilar violência vez impedir o desenvolvimento humano destas pessoas Tudo mudou na vida da signatária a partir do marco da cegueira De pronto mudou a forma com que era recepcio nada Antes era tratada por Dra Deborah Prates após a deficiência passou a ser nomeada de advogada cega Perdeu o nome Passou a ser não vista O uso da bengala fora o suficiente para que a vizinhança a julgasse quase alguém Depois por questão pessoal conquistou um cãoguia Por isto passou a ser chamada a mulher do cachorro A sociedade enxerga apenas a deficiência e não o ser Vêse pois tãosó a bengala o cãoguia a cadeira de rodas a muleta etc Quan do nos dirige a palavra o faz em tom de piedade e diminuição Um cadeirante adulto é cumprimentado com um afago na cabeça Se for perto do horário de refeição por ilustração lhe é perguntado Vai papá ou já papou Desta maneira a pessoa com deficiência é infanti lizada para todos os efeitos sociais e legais É que para elas a legislação pertinente não lhes é aplicada por ainda não serem alguém Pesquisando a história verificou que a segregação social das pes soas em classes grupos é mais antiga que o capitalismo No entanto este a perpetua de modo natural É essa naturalização da violência opressão que precisa ser desfeita desconstruída com urgência Esse é o intuito do presente trabalho Nessa premente desconstrução é que tem lugar os exercícios de acessibilidade atitudinal Mudar hábitos e comportamentos relativa mente as pessoas com deficiência é a saída para um Brasil mais igual Viver é ter a oportunidade de experimentar a condição humana A sociedade com a opressão imposta às pessoas com deficiência está subtraindo o tempo de vida dessa parcela da população 3 DO VALOR SIMBÓLICO DA MULHER COM DEFICIÊNCIA Vale registrar que o valor simbólico da mulher com deficiência é ex tremamente baixo na bolsa de valores humanos No citado texto aci ma Deficiência direitos humanos e justiça destacase outro trecho Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1259 Mas esse silêncio foi desafiado com a entrada de outras pers pectivas analíticas ao modelo social em especial com o femi nismo Não por coincidência o modelo social da deficiência teve início com homens adultos brancos e portadores de lesão medular DINIZ 2007 p 60 um grupo de pessoas para quem as barreiras sociais seriam essencialmente físicas e mensurá veis A inclusão social dessas pessoas não subverteria a ordem social pois no caso deles o simulacro da normalidade era efi ciente para demonstrar o sucesso da inclusão Ainda hoje os sinais de trânsito ou as representações públicas da deficiência indicam um cadeirante como ícone DINIZ BARBOSA SAN TOS 2009 pp 71 e 72 Vêse portanto que a figura do homem representa a deficiên cia Hodiernamente as placas indicativas já estão mudando Porém o conceito do homem como representante da espécie humana ainda é patente na nossa sociedade Face ao exposto fica nítido simbolicamente que o homem sem deficiência vale mais que a mulher sem deficiência e que ambos con juntamente têm peso maior que o homem com deficiência Compu tando se as três figuras nesse contexto simbólico concluise que são mais valiosas que a mulher com deficiência Estas não são visíveis nem mesmo por suas iguais sem deficiência Tanto que não são cha madas para as rodas de conversa feministas Com essa análise simbólica fica lógico afirmar que as mulheres com deficiência estão bem mais vulneráveis à prática dos crimes se xuais que as suas iguais sem deficiência tanto nos espaços privados lar quanto nos públicos ruas 4 DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA MULHERES O Brasil é Estado Parte do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Inter nacional aprovado por meio do decreto 4388 de 25 de setembro de 2002 no qual são considerados crimes da Competência desse Tribu nal 1260 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Artigo 7 o Crimes contra a Humanidade 1 Para os efeitos do presente Estatuto entendese por crime contra a humanidade qualquer um dos atos seguintes quando cometido no quadro de um ataque generalizado ou sistemá tico contra qualquer população civil havendo conhecimento desse ataque g Agressão sexual escravatura sexual prostituição forçada gravidez forçada esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável436 De acordo com a OMS Organização Mundial da Saúde a vio lência sexual é um problema de saúde pública de caráter planetário Pela cultura patriarcal afirmase com segurança que o homem simbolicamente tem peso maior do que a mulher É por isso o dominador Então a questão de violência sexual está diretamente relacionada com o gênero Esse é um problema geral global e que a cada dia vem tomando corpo face as pautas feministas A mulher sem deficiência vem resistindo às opressões e se empoderando rumo a igualdade de gênero Salta aos olhos que as mulheres com deficiência ainda estão em fase gestacional no que se refere a igualdade de condições Querem e precisam nascer para os olhos da sociedade Certo é que a pior ce gueira é a voluntária opcional Para que esse fenômeno bom aconteça é essencial que esse seguimento seja enxergado Somente visto é que será conhecido e estudado O Relatório Mundial sobre a Prevenção da Violência 2014 da Or ganização Mundial da Saúde traduzido para o português pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo em 2015 revela as formas de violência contra mulheres e meninas no planeta bem como os necessários procedimentos para a prevenção e redução dessa violência até 2030 O documento acima ignorou o grupo de mulheres com deficiên cia Tal constatação é muito grave já que prova a invisibilidade desse 436 BRASIL Decreto Nº 4388 de 25 de set de 2002 Promulga o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional Brasília DF set 2002 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03decreto2002d4388htm Acesso em maio 2018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1261 grupo de mulheres deixandoo muito mais vulneráveis até 2030 Eis um exemplo significativo que ratifica o fenômeno da invisibilidade social imposto pela sociedade contra as mulheres com deficiência As suas vozes são sempre silenciadas anuladas pelo peso das múltiplas opressões que sofrem Esse quadro tem que mudar A signatária frequenta de insistente que é alguns coletivos femi nistas já que o melhor método para se fazer lembrar é se fazer presente nesses encontros Inicialmente costuma ser muito bem recepcionada Todavia esse bom acolhimento termina no momento em que discursa sobre a questão das acessibilidades necessárias para o acolhimento desse grupo de mulheres Então passa a causar transtorno incômodo Parece que as suas iguais sem deficiência conforme vão ouvindo a manifestação vão ficando entorpecidas anestesiadas e ao retorna rem do coma não se lembram de nada A partida é sempre do zero 5 DA COISIFICAÇÃO DO CORPO DA MULHER No decorrer do processo civilizatório a mulher sempre fora desvalo rizada e em consequência tida como um objeto para a satisfação dos interesses dos homens No século XXI apesar da consciência da ob jetificação do corpo da mulher esse olhar permanece A prova disso está nas machistas propagandas de cervejas cosméticos automóveis perfumes etc Os profissionais desse setor insistem no ultrapassado raciocínio de que erotizando o produto os homens os consumam mais e mais Nessas divulgações apresentam o corpo da mulher como se fosse um objeto sexual Verdadeiramente a ideia é levar os homens a acreditar que se consumirem tais produtos atrairão mais mulheres Então todos os caminhos levam a rotina naturalizada da prática de crimes sexuais A signatária no último novembro compareceu a um evento pro duzido pela ABRH Associação Brasileira de Recursos Humanos no RJ cuja chamada era a discussão do assédio em todas as suas verten tes Vários profissionais renomados fizeram uso do microfone sendo que nas falas não identificou qualquer referência as mulheres com de ficiência Os representantes do marketing estavam presentes e comba teram essa forma desumana de propaganda Apresentaram várias boas 1262 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ideias Porém em nenhuma encontravase a mulher com deficiência A signatária era a única mulher com deficiência presente No uso democrático do microfone fez essa observação Apenas uma palestrante pediu desculpas pela falha e agradeceu a observação O anfitrião sustentou que haveria em futuro próximo um evento ex clusivo para o seguimento das pessoas com deficiência pelo que não fora pertinenteadequado a manifestação da signatária naquele mo mento Evidenciada com essa observação a ideia errada do gaveteiro para guardar os seres humanos em grupos valendo elucidar em ga vetas Clara ficou a intenção da sociedade em manter as pessoas com deficiência apartadas excluídas Na réplica a signatária disse que o evento somente seria inclusivo se todos os grupos de mulheres estivessem ali representados razão pela qual era inconcebível não ter sido incluída a mulher com defi ciência na exibição de sugestões salutares Diante do auditório lotado aduziu que os publicitários deveriam combater o padrão de normali dade dos corpos femininos e criticou a fôrma da indústria da moda imposta pelo capitalismo machista Com mais esta ilustração ficou incontroversa a invisibilidade da mulher com deficiência pela razão simbólica de que o seu valor social é menor do que aquele atribuído à mulher sem deficiência 6 DA VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA A MULHER COM DEFICIÊNCIA A violência sexual assola a mulher com deficiência muito mais que a mulher sem deficiência pela própria deficiência Isso decorre da sua maior vulnerabilidade peculiaridade essa que deixa o agressor mais a vontade ante a certeza de que é menos capaz de revelar a violência praticada O atacante crê ainda que a mulher com deficiência tem menor possibilidade de ser acreditada na hipótese de conseguir oficializar a notícia criminosa Julgam que por ilustração a mulher surda não conseguirá se expressar que a cega não poderá apontar descrever o agressor que as que têm deficiência física não conseguirão escapar correr etc Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1263 Comum é o companheiromarido estuprar a mulher com defi ciência na hipótese desta se recusar a fazer sexo com ele A signatá ria conversando com uma cadeirante ouviu que o marido tinha por hábito jogála na cama e estuprála Depois a ameaçava dizendo que se contasse a alguém o ocorrido a castigaria Certa vez prosseguiu a cadeirante ele a deixou um dia inteiro trancada no quarto sem água nem comida bem como sem poder ir ao banheiro Há também o mito de que as que têm deficiência intelectual ou desenvolvimental não teriam capacidade para contar coisa alguma vez que não compreendem o que é abuso eou violência sexual Por essa lógica equivocada o violentador não seria punido Muitas mulheres com deficiência nas situações acima ingerem medicamentos no dia a dia que as deixam mais fragilizadas dificul tandolhes a detecção de sofrimentos maustratos São absurdamen te abusadas e desacreditadas pelas famílias autoridades e sociedade A violência é potencialmente elevada se consideradas as questões seguintes de gênero de deficiência de práticas de poder social de hierarquia simbólica de valores humanos de debilidades socioeconô micas de ausência de educação e saúde etc A mulher com deficiên cia comumente acumula quase todas essas agravantes Por tudo isso é que a vertente interseccional do feminismo agrada a signatária A mulher com deficiência sofre imensurável violência sexual no âmbito doméstico Diante da invisibilidade que sofre os gestores de todas as esferas não têm interesse tampouco simpatia com a causa Não veem relevância em inserir esse grupo de mulheres em estudos e estatísticas Sob esse prisma a violência decorrente de gênero fica esmaecida frente a deficiência A signatária em conversa com uma defensora pública do RJ perguntoulhe Qual o tratamento encaminhamento dado pela de fensoria à uma mulher com deficiência que sofra violência sexual A resposta foi Será encaminhada ao setor de pessoas com deficiência Evidente portanto a falta de sensibilidade por parte das autoridades no trato da violência decorrente de gênero quando a mulher é pessoa com deficiência 1264 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Mesmo com o advento da Lei Maria da Penha Lei 113402006 são poucos os casos de condenação do agressor frequentemente fami liares ou cuidadores externos os quais prestam seus serviços dentro da casa Essas situações em muito dificultam a tomada das medidas adequadas para a punição dos crimes de violência Ausentes são por conseguinte as políticas públicas de cuidado e proteção para esse nicho da população É preciso estimular o interesse para posterior conhecimento da realidade das mulheres com deficiên cia de modo a convergir para o seu enfrentamento Na esfera intrafamiliar a situação fica extremamente delicada para ser combatida já que as próprias mulheres com deficiência têm medo de represálias se relatarem às autoridades as violências sexuais sofridas Pais padrastos maridoscompanheiros irmãos e vizinhos que frequentam a casa sentemse confortáveis com esse fundado re ceio pelo que continuam praticando os crimes sexuais na certeza de que jamais serão descobertos e punidos Nos raros casos em que as mulheres conseguiram chegar até as autoridades estas por seu turno deram maior confiabilidade à fala da família ante o descrédito decorrente da deficiência Flagrante é a falta de preparo dos mais diversos profissionais para tratar o tema da violência sexual contra mulheres com deficiência As equipes técnicas rendemse ao medo e ao mesmo tempo à impotên cia quando o caso investigado está localizado em zona de grande ris co Assim para enfrentar esses casos os gestores têm que investir no preparo desses profissionais no sentido de que consigam vencer as suas próprias questões Vira e mexe a mídia noticia que por exemplo a polícia não prestou socorro à vítima porque a viatura quebrou ou estava sem gasolina Fato é que os problemas são de toda ordem quan to a ausência das estruturas necessárias para atender as pessoas que passam por sofrimentos Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1265 7 DA BOA LEGISLAÇÃO E DAS ACESSIBILIDADES A ausência das acessibilidades em todas as suas nuances caracteriza flagrante violação aos direitos fundamentais das mulheres com defi ciência Vale frisar que esses direitos não aceitam relativização As cidades não foram pensadas para elas no que concerne as acessibilidades Após sofrer violência sexual as mulheres sem defi ciência têm que fazer verdadeira Via Crúcis se quiserem fazer justiça Mas e as mulheres com deficiência como peregrinar pela cidade sem as acessibilidades Eis a questão O simples deslocamento para buscar ajuda para a mulher com deficiência é na maioria dos casos impossível Vale a título de ilus tração elencar algumas passagens dessa Via Crúcis As mulheres em tese têm o direito a registro de ocorrência policial inquérito policial e à realização de exames periciais junto ao Departamento Médico Legal recebimento gratuito de assistência médica com indicação de contra cepção de emergência para evitar a gravidez indesejada recebimento de profilaxia para HIV e para Infecções Sexualmente Transmissíveis IST aborto legal em caso de gravidez decorrente de estupro promo ção da Ação Penal para responsabilização do agressor etc Lamentavelmente percorrer essas tantas etapas sem que existam as legais acessibilidades é para as mulheres com deficiência quiméri co inconcebível A signatária toma como referência a cidade do Rio de Janeiro A Via Crúcis tem início ao sair de casa As calçadas são esbu racadas com raízes de árvores afloradas sem rampas ou piso tátil atravancadas com sacos de lixo e ambulantes espalhados cheias de mobiliários urbanos colocados inadequadamente etc Rompida essa primeira etapa a mulher com deficiência encontra a segunda A inexistência de transportes adaptados No caso dos ôni bus por exemplo se há plataforma elevatória o motorista em regra não foi preparadotreinado pelos empresários para manobrála As estações de trem também não são adequadas A signatária fez um tour por elas e constatou várias em que a distância entre o trem e a platafor ma eram enormes expondo as pessoas com deficiência a humilhação já que em muitos casos precisavam ser carregadas Os taxistas em 1266 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça regra recusamse a transportar cadeiras de rodas ou cãesguia Para este segundo alegam ter alergia com o nítido intuito de burlar a legis lação específica As vencedoras desses iniciais obstáculos sofrem um impacto ao entrar nas delegacias especializadas Nas que existem rampas pisos táteis e elevadores de acesso os técnicos não estão preparados para o trato com a mulher com deficiência A surda nunca encontra profis sionais para LIBRAS pelo que saem dos estabelecimentos sem ao me nos consolidar a notícia criminosa Quanto às cegas os investigado res as ignoram completamente já que dirigemse aos acompanhantes Então como fazer justiça às mulheres com deficiência se os seus direitos fundamentais às acessibilidades são ignorados por toda a sociedade A Emenda Constitucional traduzida na Convenção de Nova Iorque e seu Protocolo Facultativo assinados em Nova Iorque em 30 de março de 2007 tendo o Governo brasileiro depositado o ins trumento de ratificação dos referidos atos junto ao SecretárioGeral das Nações Unidas em 1º de agosto de 2008 e tendo entrado em vigor para o Brasil no plano jurídico externo em 31 de agosto de 2008 sen do promulgada através do Decreto Nº 6949 de 25 de agosto de 2009 NÃO é cumprida Esse flagrante descumprimento é chancelado por todas e todos O Brasil se obrigou perante as Nações Unidas ao cumprimento da Declaração Universal dos Direitos Humanos bem como aos Pactos Internacionais sobre Direitos Humanos de sorte que é de causar es panto o não cumprimento destes A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência é o único Tratado Internacional de Direitos Humanos com status de Emenda Constitucional e ainda assim é ab surdamente desprezado Desde o Preâmbulo da Convenção fica nítida a obrigatoriedade do Brasil na promoção das acessibilidades como se verifica abaixo e Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolu ção e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na socie dade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas v Reconhecendo a importância da acessibilidade aos meios Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1267 físico social econômico e cultural à saúde à educação e à in formação e comunicação para possibilitar às pessoas com defi ciência o pleno gozo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais437 A proteção de mulheres e meninas com deficiência também está cristalina desde o Preâmbulo como se vê abaixo q Reconhecendo que mulheres e meninas com deficiência estão freqüentemente expostas a maiores riscos tanto no lar como fora dele de sofrer violência lesões ou abuso descaso ou tratamento negligente maustratos ou exploração438 Desta maneira não resta a menor dúvida de que as pessoas com deficiência no Brasil possuem uma belíssima legislação a qual é dia riamente descumprida Logo não é por falta de leis que a mulher com deficiência é maltratada espezinhada Diante de tamanha desumanidade a signatária foi buscar na histó ria a razão para o descumprimento das leis Encontrou Jules Michelet historiador francês do século XIX que nos deixou uma boa reflexão sobre o não cumprimento das leis Um sistema de legislação é sempre impotente se paralelamente não se criar um sistema de educação O mesmo historiador disse que não eram as grandes personalidades mas sim as massas os principais agentes das mudanças sociais Por isso é que nenhuma serventia teria se ficasse a signatária enumerando e transcrevendo textos comandos legais ante a comprovação de que ninguém os cumpre 437 Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência decreto legislativo nº 186 de 09 de julho de 2008 decreto nº 6949 de 25 de agosto de 2009 4 ed rev e atual Brasília Secretaria de Direitos Humanos Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência 2011 p 3334 Disponí vel em httpwwwpessoacomdeficienciagovbrappsitesdefaultfilespubli cacoesconvencaopessoascomdeficienciapdf Acesso em maio 2018 438 Ibid 1268 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 8 DOS EXERCÍCIOS DE ACESSIBILIDADE ATITUDINAL De plano para mudar o patético quadro de invisibilidade que a mulher com deficiência padece urge começar o processo de conscientização social Tornar a causa pública e notória é essencial Contar para a cole tividade sobre a violência sexual que sofrem caladas as mulheres com deficiência já sensibilizará os corações Em seguida trazer à tona a maravilhosa legislação que garante os direitos desse contingente dará à coletividade o panorama legal Desconstruir as relações de poder estabelecidas possibilitará a visibilidade da mulher com deficiência O Artigo 8 da Convenção de Nova Iorque trata da conscientiza ção sendo para o presente trabalho adequada a sua transcrição 1 Os Estados Partes se comprometem a adotar medidas ime diatas efetivas e apropriadas para a Conscientizar toda a sociedade inclusive as famílias sobre as condições das pessoas com deficiência e fomentar o respeito pelos direitos e pela dignidade das pessoas com deficiência b Combater estereótipos preconceitos e práticas nocivas em relação a pessoas com deficiência inclusive aqueles relaciona dos a sexo e idade em todas as áreas da vida c Promover a conscientização sobre as capacidades e contri buições das pessoas com deficiência 2 As medidas para esse fim incluem a Lançar e dar continuidade a efetivas campanhas de conscien tização públicas destinadas a i Favorecer atitude receptiva em relação aos direitos das pes soas com deficiência ii Promover percepção positiva e maior consciência social em relação às pessoas com deficiência iii Promover o reconhecimento das habilidades dos méritos e das capacidades das pessoas com deficiência e de sua contribui ção ao local de trabalho e ao mercado laboral b Fomentar em todos os níveis do sistema educacional in cluindo neles todas as crianças desde tenra idade uma atitude de respeito para com os direitos das pessoas com deficiência Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1269 c Incentivar todos os órgãos da mídia a retratar as pessoas com deficiência de maneira compatível com o propósito da presente Convenção d Promover programas de formação sobre sensibilização a res peito das pessoas com deficiência e sobre os direitos das pes soas com deficiência439 O comando legal acima é claro e mostra à sociedade o que é a acessibilidade atitudinal Essa é a porta de saída para um Brasil mais igual em oportunidades para todas e todos A coletividade há que compreender que as diversidades existem na natureza como são e não como esta as idealizou Por isso é que esse ideal precisa ser enterrado para que a sociedade passe pelo período de luto Esse vínculo tem que ser rompido já que o ser idealizado nunca existiu O processo do luto é imprescindível para que a sociedade possa se reconstruir relativa mente ao PREconceito que tem sobre as pessoas com deficiência Só então esse mau conceito será ressignificado Vale destacar o Preâmbulo da Convenção de Nova Iorque em sua alínea q na qual está expresso serem as meninas e mulheres com de ficiência mais expostas as violências q Reconhecendo que mulheres e meninas com deficiência estão freqüentemente expostas a maiores riscos tanto no lar como fora dele de sofrer violência lesões ou abu so descaso ou tratamento negligente maustratos ou exploração440 Destacase outrossim o Artigo 16 da Convenção de Nova Ior que 439 Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência Protocolo Faculta tivo à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência decreto legis lativo nº 186 de 09 de julho de 2008 decreto nº 6949 de 25 de agosto de 2009 4 ed rev e atual Brasília Secretaria de Direitos Humanos Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência 2011 p 3334 Disponível em httpwwwpessoacomdeficienciagovbrappsitesdefaultfi lespublicacoesconvencaopessoascomdeficienciapdf Acesso em maio 2018 440 Ibid 1270 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça ARTIGO 16 PREVENÇÃO CONTRA A EXPLORAÇÃO VIOLÊNCIA E ABUSO 1 Os Estados Partes deverão tomar todas as medidas apropria das de natureza legislativa administrativa social educacional e outras para proteger as pessoas com deficiência tanto dentro como fora do lar contra todas as formas de exploração violên cia e abuso incluindo aspectos de gênero 2 Os Estados Partes deverão também tomar todas as medidas apropriadas para prevenir todas as formas de exploração vio lência e abuso assegurando entre outras coisas formas apro priadas de atendimento e apoio que levem em conta o gêne ro e a idade das pessoas com deficiência e de seus familiares e atendentes inclusive mediante a provisão de informação e educação sobre a maneira de evitar reconhecer e denunciar ca sos de exploração violência e abuso Os Estados Partes deverão assegurar que os serviços de proteção levem em conta a idade o gênero e a deficiência das pessoas 3 A fim de prevenir a ocorrência de quaisquer formas de ex ploração violência e abuso os Estados Partes deverão assegu rar que todos os programas e instalações destinados a atender pessoas com deficiência sejam efetivamente monitorados por autoridades independentes 4 Os Estados Partes deverão tomar todas as medidas apropria das para promover a recuperação física cognitiva e psicológica inclusive mediante a provisão de serviços de proteção a rea bilitação e a reinserção social de pessoas com deficiência que forem vítimas de qualquer forma de exploração violência ou abuso Tal recuperação e reinserção deverão ocorrer em am bientes que promovam a saúde o bemestar o autorrespeito a dignidade e a autonomia da pessoa e levem em consideração as necessidades de gênero e idade 5 Os Estados Partes deverão adotar efetivas leis e políticas in clusive legislação e políticas voltadas para mulheres e crianças a fim de assegurar que os casos de exploração violência e abuso contra pessoas com deficiência sejam identificados investiga dos e se couber processados441 441 Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência Protocolo Faculta tivo à Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência decreto legis lativo nº 186 de 09 de julho de 2008 decreto nº 6949 de 25 de agosto de 2009 4 ed rev e atual Brasília Secretaria de Direitos Humanos Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência 2011 p 3334 Disponível em httpwwwpessoacomdeficienciagovbrappsitesdefaultfi lespublicacoesconvencaopessoascomdeficienciapdf Acesso em maio 2018 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1271 Evidenciado pois que a obrigação de zelar pelo bemestar das mulheres com deficiência compete tanto ao Estado quanto a socieda de em geral obviamente conjugandose os comandos da Convenção com os da Constituição da República sendo certo que formam um todo Todas as considerações supra ratificam ser o feminismo movi mento de transformação social forte aliado na luta da desconstrução do PREconceito que a sociedade alimenta contra as mulheres e pes soas com deficiência Logo a união do feminismo com a causa das pessoas com defi ciência terá força para desnaturalizar as ideias de inferioridade inca pacidades e limitações acorrentadas as pessoas com deficiência com base exclusivamente nas distinções biológicas bem como no entrela ce entre deficiência sofrimento e tragédia pessoal CONCLUSÃO Face ao panorama acima narrado fica fácil afirmar que a mulher com deficiência está absurdamente mais exposta a sofrer violência se xual que as suas iguais sem deficiência Essa extrema vulnerabilidade decorre principalmente pela invi sibilidade que lhes retira a voz esta decorrente da simbologia de serem tidas como quase alguém As violências que sofrem são múltiplas e se somam o que agrava ainda mais a situação A violência sexual praticada dentro do seio familiar é impactante sendo que por conta da deficiência as autoridades não lhes dão credibilidade Tal situação deixa de punir os agressores A legislação que protege as pessoas com deficiência é mara vilhosa contudo ninguém a cumpre A saída portanto é através da efetivação da acessibilidade atitudinal muito bem elucidada no Arti go 8 da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência Certo é que a sociedade precisa ser educada preparada pelos gestores para recepcionar as pessoas com deficiência já que as diversidades existem no planeta como são e não como as idealizou 1272 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça REFERÊNCIAS DINIZ Debora BARBOSA Lívia SANTOS Wederson Rufino dos 2009 Deficiência direitos humanos e justiça Sur Revista Inter nacional de Direitos Humanos 611 6477 HUGO Victor O Corcunda de NotreDame São Paulo Editora Três 1973 1273 CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO EFEITO DO PATRIARCALISMO Paula Land Curi442 Luciana da Silva Oliveira443 Resumo O propósito deste artigo é iniciar uma discussão sobre a pro blemática da descriminalização do aborto em nosso país a partir de uma perspectiva de gênero Ou seja intenta evidenciar como a crimi nalização do aborto e das mulheres pela sua prática podem ser lidos como efeito do patriarcado sobre os corpos femininos Para este fim tomaremos como objeto disparador da análise a aprovação da Pro posta de Emenda Constitucional 1812011 no ano de 2017 tendo em vista o seu resultado Dezoito votos em oposição a um único contrário a PEC o da única mulher a compor tal Comissão O debate sobre a descriminalização do aborto e sua legalização se faz necessário e urgente pois a negação a seu acesso faz das mulheres especialmente pobres e negras suas maiores vítimas A negação ao direito ao aborto coloca em xeque o Estado democrático uma vez que restringe que as mulheres tenham acesso pleno à cidadania Palavraschave criminalização do aborto gênero patriarcado cida dania 442 Professora Adjunta do Departamento de Psicologia da UFF Niterói 443 Doutoranda do Programa de PósGraduação em Psicologia da UFF Niterói 1274 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça INTRODUÇÃO Dois mil e dezessete ano de muitos retrocessos Dentre eles a aprova ção por uma Comissão Especial da Câmara dos Deputados da Pro posta de Emenda Constitucional 1812011 Esta PEC ficou conhecida como Cavalo de Tróia por alusão aos malwares que se ocultam em nossos computadores e que são aparentemente inofensivos De fato aquilo que a princípio parecia ser interessante ampliação do tem po da licença maternidade para mães de bebês prematuros por uma manobra política passou a incidir nos permissivos legais para a in terrupção da gravidez Recaiu diretamente sobre o corpo e a vida das mulheres A PEC em questão criou comoção social e manifestações por todo o país pois atingia em cheio aquilo que outrora fora uma con cessão dos legisladores as exceções ao abortamento a saber a sua permissão em casos em que a gravidez coloca a mulher em risco de morte ou que essa seja decorrente de um estupro Neste momento marcado por grandes recuos lutar pela amplia ção de direitos tornouse um ideal daqueles bem longínquos Deve ríamos apenas nos restringirmos estrategicamente a fim de garantir o pouco que nos foi concedido Nenhum direito a menos Este foi o lema de diversas manifestações quando se avaliou que tornarseia difícil avançar em uma pauta tão relevante para nossas mulheres Todavia ao darmos evidência às exceções à interrupção da gesta ção como concessões retomamos Simone de Beauvoir 2016 1949 quem nos mostrou que a ação das mulheres nunca passou de uma agitação simbólica só ganharam o que os homens concordaram em lhes conceder elas não tomaram nada elas receberam Beauvoir 2016 p16 Ou seja compreender as exceções como concessões evi denciam como elas funcionam como alternativas a direitos que lhes são negados Isto porque a Ordem é masculina e a mulher não é defi nida em si mas relativamente ao homem A humanidade é masculina e o homem define a mulher não em si mesmo mas relativamente a ele a mulher não é conside rada um ser autônomo A mulher determinase e diferen ciase em relação ao homem e não este em relação a ela mesma a fêmea é o inessencial perante o essencial BEAUVIOR 2016 p 1223 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1275 A PEC 1812011 deu evidências claras não só que a mulher na sociedade brasileira é ainda pensada a partir do homem desconsi derada enquanto ser autônomo capaz de responder por si mesma mas também possibilitou tornar visível o quão pouco se caminhou no sentido de garantir às mulheres direitos e autonomia sobre os pró prios corpos Isto porque esta proposta protege a vida em potencial do feto desde a concepção em detrimento da vida das mulheres que cotidianamente morrem em consequência de abortos clandestinos e inseguros realizados Para além do projeto trazer à cena pública a discussão sobre a descriminalização do aborto também revelou a pouca participação de mulheres na esfera política e em espaços de decisão e poder o que ficou patente no execrável desfecho da votação compreendido por muitos como apenas uma possível vitória da bancada religiosa Con tudo discutir a descriminalização do aborto implica em pensála à luz de nossa sociedade que além de cristã é também escravagista e patriarcal Em um contexto onde a dominação masculina impera mulhe res maioria populacional compõem as chamadas minorias sociais o que quer dizer que fazem parte de uma coletividade mesmo que di versa e plural que sofre processos de estigmatização e discriminação Consequentemente a própria condição de ser mulher as coloca como vulneráveis especialmente quando podemos ver claramente que o patriarcado enquanto estrutura hierárquica caminha conferindo aos homens o direito de dominar as mulheres independente do indivíduo singular investido de poder O processo androcêntrico circunscrito pelo patriarcado no caso da PEC 181 também fortalecido pelo Estado por suas instâncias con tinua legitimando atitudes e posturas sexistas que preservam o seu sta tus quo Estas incidem nas mulheres na liberdade na autonomia em seus corpos transmutandoas de vítimas de um processo hierarqui zante a agentes de transgressões Criminosas será Afinal precisamos nos indagar a quem e a que serve a restrição ao aborto em nosso país A problemática do aborto no Brasil é de extrema relevância Há de se discutila seriamente e não de forma apaixonada movida por 1276 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça nossas crenças individuais Este é um problema concernente ao cam po dos Direitos Humanos dos Direitos Sexuais e Reprodutivos Diz respeito não só aos indivíduos mas às coletividades além de se ins crever como um grande problema de saúde pública No entanto uma de nossas dificuldades em retratar o aborto se encontra na exata medida em que o patriarcado sempre nos acena di zendo que ele se faz presente Então resta a questão como fazer uma discussão consistente acerca da descriminalização do aborto de modo a operar mudanças estruturais quando estamos inseridos numa so ciedade onde homens brancos de estratos sociais mais elevados heteronormativos estão à frente das decisões políticas e jurídicas de nosso país O que temos de fato é que a criminalização do aborto faz das mu lheres as suas vítimas visto que este realizado em condições clandes tinas e por sua vez inseguras é elencado dentre uma das maiores cau sas de morte de mulheres brasileiras em especial as pobres e negras Seus números mesmo que estimados e pouco fidedignos tam bém revelam que a despeito de qualquer lei que criminalize a sua prá tica e dos riscos que se impõem quando realizados de forma clandes tina mulheres continuarão fazendo aborto A sua criminalização não coíbe a prática apenas coloca mulheres à margem da lei Como nos lembra Biroli 2006 p 12 retomando Boltanski 2004 É importante ter em mente que a prática do aborto não é reduzida pela criminaliza ção mas brutalizada e tanto mais perigoso para as mulheres quanto maiores os esforços para se fazer cumprir a lei É pelas nossas mulheres pelas suas vidas e com elas que temos o dever éticopolítico de nos colocarmos neste debate sobre a des criminalização do aborto nos mantendo acima de tudo vigilantes Sabemos que em tempos de crises política e econômica os direitos das mulheres serão sempre os questionados visto que estes não são per manentes Foi isto que Beauvoir nos alertou e a PEC 1812011 anos depois veio a ratificar Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1277 PATRIARCADO E SEUS EFEITOS SOBRE O CORPO DA MULHER Quem possui o poder de controle sobre o corpo feminino O Estado as autoridades religiosas as corporações médicas o chefe da família marido ou pai ou as próprias interessadas É um ponto decisivo pois se trata de autonomia das mulheres DEL RE 2009 p 21 Sabemos que a sociedade estruturada pelo patriarcado sistema so cial de dominação sobre a mulher legitima o direito do homem so bre a mulher e sobre o seu corpo Esta hierarquia social difusa nas sociedades revela o que se fundamenta na base assimetria de poder O fato de se ser homem ou mulher ou melhor do sexo feminino ou masculino não significa apenas uma conformação biológica cen trada nos caráteres sexuais Revela também e especialmente lugares de status social cujos limites direitos e obrigações são devidamente convencionados e em relação aos quais à comunidade mostra deter minadas expectativas Rodrigues 2006 p 69 Deste modo podemos tomar como exemplo o que se deu a par tir do século XVIII especialmente quando as descrições anatômicas ganharam evidência Verificamos o surgimento de uma suposta com plementariedade entre homens e mulheres baseada não somente em diferenças físicas em seus corpos mas e principalmente nas dife renças sociais Estas circunscreveram e fixaram ainda mais a mulher no âmbito da natureza tendo como função maior a maternidade ter filhos444 e criálos As diferenças naturais entre os corpos descritas pela anatomia serviriam então para assegurar a ordem patriarcal visto que um dos instrumentos de dominação da mulher é a expropriação de seu corpo que se dá através do controle da sexualidade da imposição da ma ternidade obrigatória e a consequente negação do direito ao aborto dentre outros 444 Scavone 2008 nos lembra que a realização da maternidade é tradicionalmen te considerada como marca relevante da identidade histórica e cultural femini na brasileira 1278 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça O corpo da mulher nesta estrutura nos conta Camurça445 sd se torna um lugar de homens quer para seu prazer quer para lhes fazer filhos de modo a legitimar a norma heterossexual sob controle e usufruto dos homens RosadoNunes 2010 prefaciando o livro de Maurílio Matos ratifica ainda que através de um analisador civiliza cional a proibição do aborto podemos verificar o quanto a socie dade patriarcal é heterofundamentada e como o sistema se perpetua através do controle dos corpos femininos Além disto precisamos demarcar que este sistema que estabele ce formas de relações entre homes e mulheres baseiase na opressão destas mantendo privilégios aos primeiros Consequentemente estes se objetivam em dispositivos de poder nas e através das instituições que além de restringirem as mulheres ao âmbito privado restringem também a autonomia sobre seus próprios corpos A reivindicação pela autonomia reprodutiva luta do movimento feminista brasileiro já há algumas décadas e refletido no slogan nós teremos os filhos que quisermos se quisermos e quando quisermos revela o quanto essa é historicamente negada à mulher Evidencia a persistência da ordem patriarcal e se torna absolu tamente relevante quando discutimos a descriminalização do aborto pois ela não reconhece as mulheres como seres autônomos e legíti mos para deliberaram sobre suas vidas e sobre seus corpos Autonomia pressupõe razão pressupõe vontade diante de uma situação que se lhe é posta Pressupõe acima de tudo liberdade de escolha Sá Oliveira 2007 Escolher as regras que regem determi nada conduta meu corpo minhas regras é um governarse a si mesmo vetado às mulheres autonomia que assim se define corresponde ao controle das mu lheres obre o seu corpo e a sua capacidade reprodutiva Seu ter reno é delimitado em oposição e por contraste a à regulação e intervenção por porte do Estado e de seus agentes b ao con trole por parte das famílias na forma da autoridade dos pais dos maridos mas também das mulheres446 c às formas de regula ção baseadas em crenças religiosas BIROLI 2016 p21 445 446 Biroli 2016 p21 coloca em nota que neste momento ela se refere ao papel das mulheres sobretudo das mulheres mais velhas na reprodução dos cons trangimentos e controle sobre as outras mulheres Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1279 Contudo apostamos com Sá e Oliveira 2007 que em uma so ciedade justa e democrática devese estimular o desenvolvimento das autonomias individuais nosso corpo nos pertence permitindose escolher entre as diversas morais existentes Deste modo entendemos o direito ao aborto passa a ser um dos fundamentos do exercício da cidadania DIREITO AO ABORTO ACESSO A CIDADANIA EM UM ESTADO DEMOCRÁTICO O direito ao aborto é condição necessária para o acesso pleno das mulheres à cidadania Sua recusa é a expressão da perma nência de um estatuto diferenciado para mulheres e homens quando muitas outras conquistas sobretudo a partir das déca das iniciais do século XX resultam na igualdade formal entre os dois sexos Mas as restrições no direito ao aborto corres pondem a um déficit de cidadania para as mulheres BIROLI MIGUEL 2016 p 9 Biroli 2018 em seu livro Gênero e desigualdades limites da democra cia no Brasil dedica um capítulo a discutir aborto sexualidade e auto nomia Neste a autora nos lembra que quando tratamos das políticas de aborto e da sexualidade lidamos com dinâmicas nas quais os cor pos estão em disputa Biroli 2018 p134 Chama também atenção para fatos sociais como a reprodução e a sexualidade sinalizando que eles produzem sujeitos sexuados ao longo do tempo através de seu controle intervenção e valorização diferenciada Recorrendo a afirmação de Gayle Rubin em 1980 que susten ta que sexo é sempre político e que há períodos históricos em que a sexualidade é mais nitidamente contestada e mais excessivamente politizada e o domínio da vida erótica é assim renegociado Rubin 1980 apud Biroli 2018 p134 a autora retoma a discussão do aborto relacionandoo ao cotidiano da vida das pessoas de seus corpos cen trais em disputas políticas e sociais 1280 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Aborto e sexualidade têm a ver também como o cotidiano da vida das pessoas com o modo como elas organizam suas trajetórias em ambientes sociais legais e morais que impõem e orientam abrem alternativas tanto quanto tornam factíveis jul gamentos e violências Estão assim diretamente relacionados a autonomia e ao modo como a vida das pessoas ganham sentido Os corpos estão no centro das disputas evidenciando o cará ter político e social do que neles se passa do que representa em uma economia simbólica e material mais ampla BIROLI 2018 p 134 Tomamos o direito ao aborto como uma das condições para o exercício livre e autônomo da capacidade reprodutiva das mulheres Sem ela sua vida fica comprometida pois a sua negação revela com clareza que em nossa sociedade há várias concepções de indivíduos e corpos que integridade e dignidade são aspectos da vida apenas para alguns Negar o direito ao aborto de escolher fazêlo ou não é negar igualdade de gênero classe e de raça fazendo de algumas negras e pobres cidadãs de menor relevância Ou seja a legislação que res tringe a interrupção da gravidez acabam por incidir em corpos mar ginalizados exterminandoos Isto porque historicamente gênero classe e raça nunca foram de fato conjuntamente problematizados O fato do texto constitucional tomar como fundamento à cons trução de uma sociedade livre justa e igualitária visando a promoção do bem de todos sem preconceito de origem raça sexo cor idade e quaisquer outras formas de discriminação isto não necessariamente significa que avançamos na superação das discriminações das opres sões e violências dirigidas aos chamados grupos minoritários Por isto discutir aborto é falar de Estado democrático No Brasil como em outros países o direito ao aborto ainda não foi concedido às mulheres Neles quando existe alguma política para mulher no campo reprodutivo é o planejamento familiar que repousa sobretudo na coerção ao invés de uma escolha livre Del Re 2009 p 21 A isto somase também o fato da difusão da contracepção Real mente ela restringiu o controle dos homens sobre o corpo feminino Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1281 mas este fato não faz do aborto uma questão obsoleta Pelo contrário a expande pois não se trata mais apenas em buscar meios de preve nilo mas sobretudo lêlo a luz por exemplo de um contexto domi nado pela heterossexualidade masculina pouco responsável Del Re 2009 p21 Entendemos que praticar um aborto não faz da mulher uma cri minosa se sua prática se dá de forma livre e consciente Criminosa talvez seja mesmo a sociedade ao colocar a mulher que não deseja ser mãe sob riscos de morte visto que esta precisará recorrer ao aborto em condições precárias Fazse necessário no caso brasileiro colocar em cena uma in tensa discussão sobre o que é lei e o que é prática como salienta Del Re 2009 Primeiro porque sabemos que não há lei que possa coibir a prática do aborto e segundo porque corroborando a autora não podemos restringir a discussão apenas a uma legislação Precisamos ampliar o debate visto que mesmo na prática podem surgir obstá culos diversos a exemplo do uso do dispositivo jurídico da objeção de consciência447 como meio de exercício de práticas discriminatórias opressoras e violentas contra as mulheres Afinal a experiência de opressão sexista é dada pela posição que as mulheres ocupam numa matriz de dominação em que raça gênero e classe social interceptam em diversos pontos pois se configuram mutuamente Bairros 1995 apud Góes 2016 p 108 as mulheres com abortamento sofrem diversos problemas no acesso aos serviços de saúde Falha coletiva de uma organização em prover serviço apropriado acesso desigual mas que revela subliminarmente as relações os cruzamentos de opressões que existem entre gênero raça e classe GOES 2016 p107 447 Objeção de consciência em linhas gerais diz respeito a seguinte premissa nin guém pode ser legalmente obrigado a fazer algo contra a sua consciência ferin do seus valores O Código de Ética Médica define como direito do profissional da medicina se recusar a realização de atos médicos que embora permitidos por lei sejam contrários aos ditames de sua consciência Por outro lado a Nor ma Técnica para Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual Contra Mulheres e Adolescentes 2012 explicita que no atendimento imediato após a violência sexual não cabe a alegação doa profissional de saú de de objeção de consciência na medida em que a mulher pode sofrer danos ou agravos à saúde em razão da omissão doa profissional BRASIL 2012 p26 1282 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Caminhando para onde estamos O reconhecimento do direito de dispor de seu corpo foi um grande acontecimento para as mulheres do século XX Desde a greve dos ventres no século XIX essa reivindicação foi objeto de diversas lutas perdidas ou parcialmente ganhas DEL RE 2009 p 21 Discutir a questão do aborto no Brasil é tarefa difícil Ela está presente há décadas nas pautas feministas e políticas sendo alvo de muitos embates mas também de muitas importantes negociações Ao observarmos a história dos debates e das ações políticas feministas em prol da liberação do aborto no País constata mos que ele foi marcada por avanços recuos e sobretudo por inúmeras negociações políticas Da omissão da palavra aborto em meados dos anos 70 à opção política pela descrimina lização e pela efetivação dos casos previstos em lei o percurso das políticas feministas para tratar do problema indica não só o poder das forças conservadoras em jogo como a vocação do fe minismo brasileiro para muitas negociações SCAVONE 2008 p 676 Presente também na vida das mulheres brasileiras enquanto prá tica cotidiana além da força simbólica que tem a sua interdição pela adjetivação que recebe o aborto mata nossas mulheres Aqui em nos so país quem sofre as consequências mais diretas de sua prática tem raça e classe social Enquanto fenômeno ele revela não só uma sociedade hipócrita que tem total conhecimento de toda a rede paralegal porém não tão clandestina que existe ao seu entorno mas também uma sociedade na qual as mulheres têm muito pouco ou nenhum valor Ele comporta em seu interior grandes paradoxos pois se por um lado sua prática não resulta propriamente em sanção ele condena as mulheres à mor te de modo que podemos corroborar com pesquisadores que eviden ciam nosso país como sendo de agudas contradições e de leis que não tem qualquer função prática Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1283 O pretexto da defesa à vida do nascituro se impõe numa tentati va de reduzir ainda mais as leis que já são bastante restritivas Se os fetos são tomados enquanto cidadãos com direito à proteção da vida por que as mulheres cidadãs não podem ter garantido o seu direito à vida e ao seu corpo Será que as mulheres merecem a pena de morte por não terem querido ser mães apenas Afinal não podemos jamais esquecer que o aborto realizado em condições inseguras é a quarta causa de morte de mulheres em idade fértil no Brasil mesmo sendo seus números pouco fidedignos No âmbito político lutas são travadas por interesses diversos especialmente eleitoreiros É fato que pouco se trata da vida das mu lheres Na mesma direção a sociedade discute a temática referida aos seus achismos e crenças pessoais dividindose a grosso modo em dois grandes grupos os prolifers e os prochoicers Enquanto o primeiro entende que seja relevante salvaguardar a vida em poten cial tornando o feto em uma pessoa independente com vida própria próvida o segundo coloca no âmago do debate as liberdades indi viduais e a autonomia reprodutiva próescolha se colocando a favor da descriminalização do aborto e de sua legalização O primeiro grupo se recusa a ver as mulheres como sujeitos au tônomos legitimando as formas de dominação e opressão vigentes numa sociedade patriarcal que faz da mulher aquela que encerra suas funções no produzir filhos As manifestações contra a PEC 181 denunciavam a lógica pa triarcal existente e como ela se exerce através das instituições O slo gan que outrora foi largamente utilizado pautado em conferências in ternacionais nas quais o Brasil foi país signatário como nós teremos os filhos que quisermos se quisermos e quando quisermos retorna em versões como nem Igreja nem Estado o meu corpo é meu numa tentativa de marcar que autonomia reprodutiva é uma questão de mulheres e não pode ser expressa através de nosso legisladores homens cis Manifestantes deixaram isso muito claro afinal diziam sem útero sem opinião Não poderiam ser eles a decidirem o destino dos corpos e vidas das mulheres maioria populacional de nosso país Sem dúvida temos um longo caminho a percorrer no que tange ao aborto em nosso país Temos que tentar afrouxar as amarras do patriarcalismo que nos legislam e regem nossas vidas 1284 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Com certeza por vezes tendemos a nos questionar se não tería mos que ser mais radicais e propor sem reservas ampla discussão pela legalização do aborto no interior do sistema público e universal de saúde Por outro lado entendemos que essa luta é árdua e talvez precisemos mesmo caminhar a passos mais lentos com idas e vindas com avanços e recuos No entanto precisamos lembrar que ao falarmos do aborto não estamos falando dele enquanto ato em si apenas mas também e prin cipalmente enquanto um analisador civilizacional um indicador que permite avaliar padrões culturais sociais e éticos de uma socie dade de um país Rosado Nunes 2010 prefácio Um indicador que desvela a fragilidade do estado democrático brasileiro e sua falta de compromisso com as pactuações internacionais Em momentos como este que vivemos em que forças conser vadoras insurgem com muita fúria rasgando o texto constitucional colocando em risco a democracia arduamente conquistada devemos nos comprometer ética e politicamente em discussões como essas Devemos inclusive buscar meios criativos de intervir que possam abarcar não somente as discussões de cunho político mas que tam bém sejam passíveis de transbordar para a sociedade de forma clara e objetiva Para isso precisamos incluir materialmente as mulheres neste processo assim como a sociedade em geral buscando também extrapolar as fronteiras delimitadas pelo patriarcado que não só se exerce através do controle sobre os corpos femininos mas também dá mostras que se mantém inabalável Nenhum direito a menos Sigamos em frente lutando É pela vida das mulheres Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1285 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEAUVOIR S O Segundo Sexo Rio de Janeiro Nova Fronteira 2016 3ª Ed BIROLI F Gênero e Desigualdades limites da democracia no Brasil São Paulo Boitempo 2018 BIROLI F MIGUEL LF orgs Aborto e Democracia São Paulo Alameda 2016 BRASIL Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde Depar tamento de Ações Programáticas Estratégicas Prevenção e tratamen to dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes Norma técnica Brasília Ministério da Saúde 2012 3ª ed Disponível em httpbvsmssaudegovbrbvspublicacoesprevencaoagravovio lenciasexualmulheres3edpdf CAMURÇA S Patriarcado e a Situação das Mulheres Disponível em wwwarticulacaodemulheresorgbrTextobase5Patriarcado easituacaodasmulh DEL RE A Aborto e contracepção In HIRATA H et al orgs Dicio nário Crítico do Feminismo São Paulo Editora Unesp 2009 GOES E Enquanto houver racismo para as mulheres negras o abor to sempre será inseguro desumano e criminalizado Cadernos Sis tehood Bahia UFRB p106110 março 2016 RODRIGUES JC Tabu do Corpo Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2006 ROSADO NUNES MJ Prefácio In MATOS MC A Criminaliza ção do Aborto em Questão São Paulo Almedina 2010 SÁ LV OLIVEIRA RA de Autonomia uma abordagem inter disciplinar Saúde Ética Justiça São Paulo v 12 n 12 p 514 nov 2007 Disponível em httpswwwrevistasuspbrsejarticle view4428047901 SCAVONE L Políticas Feministas do Aborto Estudos Feministas Florianópolis 16 2 440 Maioagosto 2008 p 675680 1286 CAVALO DE TROIA UMA ANÁLISE DA PEC 1812015 ENQUANTO ELEMENTO DO DISPOSITIVO DE CERCEAMENTO DA LIBERDADE FEMININA Sabrina Cristina dos Santos448 Tamara Octaviano Fernandes449 A construção da subjetividade feminina na sociedade ocidental deu se de modo que o sujeito feminino estivesse em relação ao masculi no em uma constante ausência Durante a Antiguidade por exemplo o paradigma do sexo único colocava a mulher em uma posição de inferioridade em relação ao homem uma vez que ela era concebida como um ser incompleto Em uma aparente revolução das concepções de sexo e gênero na virada do século XVIII para o século XIX as contradições sociais ex plicitadas pelos ideais de igualdade da Revolução Francesa em 1789 produziram um esforço direcionado à construção de um imaginário social que valorizasse a diferença sexual Todavia a lógica da diferença social construiu a partir do sexo biológico papéis de gênero que colo cavam a mulher em uma posição submissa reforçavam sua condição de fragilidade e reservavam a ela o espaço privado Em oposição sobre o homem eram ressaltadas qualidades forjadas de dominação força e aptidão para o espaço público 448 Mestranda no Programa de Pósgraduação em Estudos Literários da UFJF 449 Graduada em Direito pela UFJF Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1287 Passar a conceber os sexos como essencialmente diferenciados não era apenas um exercício brilhante de argúcia teórica e acu mulação de novas informações biológicas mas principal mente outra forma de percepção e representação da diversida de sexual que teve então efeitos bastante salientes nas práticas sociais BIRMAN 2016 p 34 No século XIX o médico neurologista Sigmund Freud fundador da psicanálise dedicou parte significativa de seus estudos à análise da psique feminina que segundo o psicanalista tem como traço funda mental a inveja Dessa forma a psique feminina seria marcada pela ausência do falo metáfora do poder e por esse motivo a mulher esta ria em uma constante busca por completude Há entre o paradigma do sexo único o paradigma da diferen ça sexual e a teoria freudiana uma interessante relação que encontra fortes ecos na sociedade contemporânea as três perspectivas ainda que em contextos diversos estabelecem uma relação hierárquica entre homens e mulheres Assim ao construir uma subjetivação em que o homem se torna sinônimo de completude ação e poder a mulher se torna por equivalência incompletude passividade e submissão Dentre os ecos criados por essa visão que de alguma maneira inferioriza a mulher está o aprisionamento da sexualidade feminina Vítima de interditos e proibições o corpo feminino foi posto em uma encruzilhada que leva à construção de um imaginário social no qual a mulher é vista a partir de uma perspectiva maniqueísta que ora a santifica ora a demoniza Essa santificação ocorre quando o indivíduo se submete às prer rogativas sociais destinadas à mulher Tais prerrogativas dizem respei to a um ideal de feminilidade forjado social e culturalmente que para citar um slogan contemporâneo espera que ela seja bela recatada e do lar Sempre que a mulher se distancia por vontade ou por necessi dade desse padrão esposamãedonadecasa ela se afasta também da idealização que lhe foi destinada e assim passa a sofrer uma série de sanções sociais Nesse sentido a mulher que dispõe de sua sexualidade e lança mão de seu corpo como fonte de obtenção do prazer representa uma monstruosidade posto que não é essa sua função na sociedade Sob 1288 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça essa ótica o paradigma da diferença sexual se dedicou a ressaltar uma característica que para ele era intrínseca ao indivíduo feminino a maternidade Assim buscar o sexo como fonte de prazer e não como mecanismo de reprodução representava uma ameaça ao processo ci vilizatório Assim delineada ao mesmo tempo como agente civilizatório e anticivilizatório isto é entre catalizador da ordem e opera dor da desordem a figura da mulher estará polarizada todo o tempo entre a maternidade e o erotismo o erotismo seria sempre socialmente problemático no ser da mulher na repre sentação forjada pela modernidade BIRMAN 2016 p 59 Sob essa perspectiva surge no Brasil uma série de dispositivos responsáveis por forjar um ideal de feminino destacando principal mente o papel da mulher enquanto esposa mãe e dona de casa Tal representação servia aos ideias burgueses de produção uma vez que toda forma de prazer álcool e sexo por exemplo poderia desviar o trabalhador de suas obrigações na fábrica Acerca disso em seu livro Do cabaré ao lar a utopia da cidade disciplinar a historiadora Magareth Rago demonstra de que modo as necessidades capitalistas contribuíram de maneira determinante para o cerceamento da liberdade individual feminina Para a historiadora o ideal burguês de família imprescindível para a manutenção das exi gências do capital exigia da mulher bem como dos homens uma postura social que limitava quando não ausentava o exercício da se xualidade Por caminhos sofisticados e sinuosos se forja uma representa ção simbólica da mulher a esposamãedonadecasa afetiva mas assexuada no momento mesmo em que as novas exigên cias da crescente urbanização e do desenvolvimento comercial e industrial RAGO 1987 p 62 Assim no Brasil o trabalho passou a configurar um elemento fundamental do dispositivo responsável por cercear a liberdade sexual feminina Entretanto tais elementos são múltiplos e integram uma Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1289 rede articulada capaz de forjar uma verdade e mantêla em funciona mento Para o filósofo francês Michel Foucault Através deste termo tento demarcar em primeiro lugar um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos instituições organizações arquitetônicas decisões regulamen tares leis medidas administrativas enunciados científicos proposições filosóficas morais filantrópicas Em suma o dito e o não dito são elementos do dispositivo O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos FOUCAULT 2009 p 244 Sob esse viés pretendese no presente artigo analisar de que ma neira da PEC 1812015 se configura enquanto mais um dos elementos do dispositivo que cerceiam a liberdade sexual feminina Na esfera jurídica a questão do aborto se desarticula em vários tipos com intuito de justificar a sua criminalização ou não de acordo com as circunstâncias que o norteiam Hoje o que se depreende da legislação brasileira é que existe o aborto legal e o aborto criminoso além do aborto não tipificado o aborto natural em que a gestante tem sua gravidez interrompida devido a aspectos alheios à sua vontade O aborto legal está previsto no artigo 128 do Código Penal de 1940 e permite que a mulher realize o aborto em duas situações quan do a gravidez envolve risco de vida para a gestante aborto necessário em que o médico irá assinar um laudo comprovando que a mulher corre risco atual e nos casos em que a gravidez é decorrente de estu pro também chamado de aborto humanitário bastando apenas que a gestante comprove ao médico que a gravidez é decorrente de violência sexual Além dos casos de aborto necessário e humanitário em 2012 o STF decidiu por oito votos a dois que não tipifica o crime de aborto elencado no Código Penal a interrupção de gravidez nos casos de fe tos anencéfalos ao julgar a ação de arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 54 Nessas linhas gerais podese visualizar como se dá o tratamento ao aborto no ordenamento jurídico brasileiro podendose observar a regressão do sistema diante da tramitação de normas que pretendem 1290 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça cercear o direito da mulher sobre o próprio corpo tornando mais rígi da a criminalização da prática abortiva A Proposta de Emenda à Constituição nº 181 de 2015 ilustra perfeitamente a manobra política que incide negativamente sobre a liberdade feminina Inicialmente foi proposta na Câmara dos Depu tados visando alterar a redação do artigo 7º da Constituição Federal incluindo no dispositivo o direito à licençamaternidade nas situações de parto prematuro pelo prazo de dias em que o recémnascido esti ver internado sem prejuízo do emprego e do salário No entanto durante sua tramitação a proposta teve seu texto base alterado significativamente O deputado Jorge Tadeu Mudalen DEMSP relator da proposta e representante da bancada religiosa inseriu pontos em que altera dois artigos da Constituição Federal A primeira alteração diz que a vida deve ser respeitada desde a concepção e não só após o nascimento Essa mudança incide prin cipalmente sobre o entendimento jurídico brasileiro acerca do início da personalidade humana No Brasil de acordo com o artigo 2º do Código Civil de 2002 é adotada a teoria natalista do início da per sonalidade a partir da qual se afirma que a personalidade se inicia com o nascimento com vida colocando a salvo desde a concepção os direitos do nascituro Nesse caso portanto passarseia a aplicar a teoria concepcionista conferindo personalidade plena ao embrião independentemente deste nascer com vida ou não A segunda alteração proposta pelo deputado incide sobre o artigo 5º que afirma a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção Nesse sentido percebese que qualquer forma de aborto se torna cri me pois o embrião foi colocado na posição de sujeito de direitos de vendo ter seu direito à vida assegurado pelo Estado A PEC 1812015 apelidada de Cavalo de Troia regride ao passo que extingue direitos individuais da mulher e direitos de autonomia sobre o próprio corpo constituindose assim enquanto um elemento do dispositivo que normatiza a sexualidade feminina destacandose atualmente no sentido de criminalização do aborto Além dessa PEC há ainda outros projetos de lei em trâmite que impõe claramente a regressão do direito da mulher à sua liberdade sexual Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1291 O Projeto de Lei do Senado nº 46 de 2017 defendido pelo sena dor Pastor Valadares PDTRO considera a prática do aborto crime em qualquer fase que a gestação se encontrar Esse Projeto vai contra a interpretação do Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC 124306 que admitiu a interrupção da gestação pela própria gestante ou com seu consentimento até o primeiro trimestre da gravidez HC 124306RJ rel orig Min Marco Aurélio red p o ac Min Roberto Barroso julgado em 29112016 Em seu voto o Ministro Luís Ro berto Barroso declarou que a criminalização do aborto contradiz a aplicação de alguns direitos fundamentais tais como os direitos re produtivos e sexuais da mulher Diante desse caso o senador defende seu projeto na medida em que o direito de vida do feto se sobressai à liberdade sobre o próprio corpo da mulher Nesse sentido esse projeto de lei se configura em mais um dispositivo de controle sobre a auto nomia feminina Discorrendo sobre essa interpretação dada pelo STF em relação à discriminação do aborto até o terceiro mês de gestação levamse em consideração aspectos biológicos em que não se pode afirmar que há vida em um feto que ainda não desenvolveu seu sistema nervoso cen tral e indícios iniciais de consciência Assim o argumento do senador em proteger a vida do feto ao se fazer um juízo de ponderação não se justifica pois não há potencialidade de vida antes dos três meses de gestação De autoria do Senador Magno Malta o PL nº 462017 que altera o Código Penal se encontra pronto para pauta na Comissão de Cida dania e Justiça CCJ Outro exemplo de elemento do dispositivo que ameaça a liberda de sexual da mulher é o Projeto de Lei nº 5069 de 2013 de autoria do exdeputado Eduardo Cunha PMDB RJ Esse projeto tem como objeto a inclusão do artigo 127A no Código Penal de 1940 que colo ca obstáculos à prática abortiva em casos de estupro ao exigir exame de corpo de delito para que se possa ser prestado o atendimento mé dico para o procedimento abortivo à vítima Além dessa exigência o projeto criminaliza qualquer tipo de propaganda que visa incentivar métodos abortivos e o fornecimento dos mesmos 1292 Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça Em defesa do seu projeto Eduardo Cunha deu uma declaração demonstrando desconhecimento sobre a realidade da saúde pública no Brasil ao dizer que as vítimas de estupro invadem os hospitais e in ventam histórias descabidas de estupro com o intuito de terem direito ao aborto legal O Projeto de Lei nº 50692013 já foi aprovado pelo CCJ e se encontra em pauta para ser votado no Plenário Isso demonstra como é tratada a questão do aborto no Brasil O perfil de quem propõe essas leis é composto por em sua maioria ho mens brancos e religiosos refletindo o autoritarismo político e reli gioso sobre uma classe social que foi marginalizada desde sempre as mulheres É evidente que a Proposta de Emenda Constitucional 181 2015 ao reivindicar a inviolabilidade da vida do nascituro ignora a inviolabilidade da vida da mulher No país em que 850 mil mulheres abortam clandestinamente todos os anos e uma mulher morre a cada dois dias vítima de complicações decorrentes do aborto450 tal propos ta se mostra incompatível com a realidade e fere a liberdade feminina em relação ao domínio sobre seu próprio corpo Assim a PEC tal qual o Cavalo de Troia abre caminho para uma série de invasões que neste caso ocupam o corpo feminino REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEZERRA Elton Leia acórdão sobre interrupção de gravidez de anencéfalo Disponível em httpswwwconjurcombrdlacordao interrupcaogravidezanencefalopdf Acesso em 22 jan 2018 BIRMAN Joel Gramáticas do erotismo a feminilidade e suas formas de subjetivação em psicanálise Rio de Janeiro Civilização brasileira 2016 BOLDRINI Angela Comissão da Câmara aprova regras mais duras para aborto no país Disponível em httpwww1folhauolcombr cotidiano2017111933899comissaodacamaraaprovaregras maisdurasparaabortonopaisshtml Acesso em 22 jan 2018 450 Os dados constam em httpscatracalivrecombrgeralcidadaniaindicacao 8dadoschocantessobreoabortonobrasilquevoceprecisasaber Gênero Feminismos e Sistemas de Justiça 1293 BRASIL Câmara dos Deputados Parecer do Relator Dep Jorge Tadeu Mudalen DEMSP pela aprovação desta e da PEC 582011 apen sada com substitutivo Disponível em wwwcamaragovbrpropo sicoesWebpropmostrarintegracodteor1586817filenamePare cerPEC1811516082017 Acesso em 22 jan 2018 Texto Original BRASIL Câmara dos Deputados Projeto de Lei PL 50692013 Acres centa o art 127A ao DecretoLei n 2848 de 7 de dezembro de 1940 Código Penal Disponível em httpwwwcamaragovbrproposi coesWebpropmostrarintegracodteor1061163filenameTrami tacaoPL50692013 Acesso em 22 jan 2018 Texto Original BRASIL Câmara dos Deputados Proposta de Emenda à Constitui ção PEC 1812015 Altera o inciso XVIII do art 7 da Constituição Federal para dispor sobre a licença maternidade em caso de parto pre maturo Disponível em httpwwwcamaragovbrproposicoesWeb propmostrarintegracodteor1425029filenamePEC1812015 Acesso em 22 jan 2018 Texto Original BRASIL Senado Federal Projeto de Lei do Senado n46 de 2017 Alte ra o DecretoLei no 2848 de 7 de dezembro de 1940 Código Penal para 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