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GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS POLIANA RIBEIRO DOS SANTOS SALETE SILVA SOMMARIVA MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGLL O R G A N I Z A D O R A S Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V O L U M E 3 I S B N o b r a 9 7 8 8 5 6 6 1 4 9 4 1 8 I S B N c o l e ç ã o 9 7 8 8 5 6 6 1 4 9 3 8 8 COLEÇÃO ORGANIZADORAS Grazielly Alessandra Baggenstoss Poliana Ribeiro dos Santos Salete Silva Sommariva Michelle de Souza Gomes Hugill Coleção NÃO HÁ LUGAR SEGURO Estudos e Práticas sobre Violências Contra as Mulheres com Ênfase no Gênero Volume 3 Edição Eletrônica Florianópolis 2019 Copyright 2019 by Editora Centro de Estudos Jurídicos CEJUR Diagramação Poliana Ribeiro dos Santos Capa Athena de Oliveira Nogueira Bastos Categoria Produção Editorial Editora Centro de Estudos Jurídicos CEJUR O conteúdo deste livro é de responsabilidade dos autores e não expressa posição técnica ou institucional do Poder Judiciário de Santa Catarina das Organizadoras e da Universidade Federal de Santa Catarina CONSELHO TÉCNICOCIENTÍFICO Desembargador Rodrigo Tolentino de Carvalho Collaço Desembargador Moacyr de Moraes Lima Filho Desembargador Henry Petry Junior Desembargador Luiz Cézar Medeiros Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Vânia Petermann Juiz de Direito Marcelo Pizolati Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta CONSELHO EDITORIAL Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta Juiz de Direito Fernando de Castro Faria Juiz de Direito João Batista da Cunha Ocampo Moré Juiz de Direito Antônio Zoldan da Veiga Os trabalhos que compõe esta coleção foram submetidos à dupla avaliação cega doubleblind review por pareceristas ad hoc pósgraduados CIPBRASIL CATALOGAÇÃONAFONTE B144c Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero Organizadoras Grazielly Alessandra Baggenstoss Poliana Ribeiro dos Santos Salete Silva Sommariva Michelle de Souza Gomes Hugill Florianópolis Editora Centro de Estudos Jurídicos CEJUR 2019 Volume 3 300 p fig gráfs tabs ISBN obra 9788566149418 ISBN coleção 9788566149388 1 Violências contra as mulheres 2 Feminismo 3 Direitos das mulheres 4 Mulheres Condições sociais I Baggenstoss Grazielly Alessandra II Santos Poliana Ribeiro dos III Sommariva Salete Silva IV Hugill Michelle de Souza Gomes V Título CDD 340 Ficha catalográfica elaborada por Deise Oliveira de Almeida CRB 113414ª Este livro está sob a licença Creative Commons que segue o princípio básico do acesso público à informação O livro pode ser compartilhado desde que atribuídos os devidos créditos de autoria Não é permitida nenhuma forma de alteração ou a sua utilização para fins comerciais brcreativecommonsorg CENTRO DE ESTUDOS JURÍDICOS CEJUR CONSELHO TÉCNICOCIENTÍFICO Desembargador Rodrigo Tolentino de Carvalho Collaço Desembargador Moacyr de Moraes Lima Filho Desembargador Henry Petry Junior Desembargador Luiz Cézar Medeiros Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Vânia Petermann Juiz de Direito Marcelo Pizolati Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta CONSELHO EDITORIAL Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta Juiz de Direito Fernando de Castro Faria Juiz de Direito João Batista da Cunha Ocampo Moré Juiz de Direito Antônio Zoldan da Veiga CEJUR Academia Judicial Rua Almirante Lamego 1386 Centro FlorianópolisSC 88015601 Fone 48 32872801 academiatjscjusbr wwwtjscjusbracademia PARECERISTAS DA COLEÇÃO Os trabalhos que compõe a coleção foram submetidos à dupla avaliação cega doubleblind review por pareceristas ad hoc pósgraduados Adaiana Fátima Almeida UFSC Adailson da Silva Moreira PUCSP Adriana Aparecida da Conceição Santos Sá UNIVALE Adriana De Toni UFSC Adriele Andreia Inacio UEL Alberth Alves Rodrigues UFSC Alessandra Knoll UFSC Alessandro Tonon Câmara Ávila UFSC Alexandre Botelho UFSC Aline Antunes Gomes UNIJUÍ Amanda Muniz Oliveira UFSC Amina Regina Silva UFSC Ana Cláudia Wendt dos Santos USP Ana Cristina Costa Lima UFSC Ana Lúcia Cintra UFSC Ana Maria Justo UFSC Ana Martina Baron Engerroff UFSC Ana Paula Araujo de Freitas UFSC Andréa Martini UFSC Andressa Kikuti Dancosky UEPG Angela Maria Moura Costa Prates UFSC Arisa Ribas Cardoso UFSC Athena de Oliveira Nogueira Bastos UFSC Bettieli Barboza da Silveira UFSC Bianca Bez Goulart UFSC Brune Camillo Bonassi UFSC Camila Damasceno de Andrade UFSC Carla Pires Vieira da Rocha UFSC Carolina Frescura Junges UFSC Charles Raimundo da Silva UFSC Chimelly Louise de Resenes Marcon UNIVALI Christiane Heloisa Kalb UFSC Cinthia Creatini da Rocha UFSC Clara Martins do Nascimento UFPE Clarindo Epaminondas de Sá Neto UFSC Claudia Regina Nichnig UFSC Cristiane Valéria da Silva UFSC Daniela Castamann UEL Daniela Lippstein UNISC Daniela Maysa de Souza UFSC Daniele Beatriz Manfrini UFSC Débora Diana da Rosa UFMG Deborah Cristina Amorim UFSC Diana Piroli UFSC Dnyelle Souza Silva UFSC Edivane de Jesus UFSC Eduardo de Carvalho Rêgo UFSC Elaine Cristina Novatzki Forte UFSC Elton Fogaça da Costa UFSC Emmanuelle Elise Campos de Moraes UFSC Eunice Maria Nazarethe Nonato UNISINOS Ezair José Meurer Junior UFSC Fabiani Cabral Lima UFSC Fernanda Ax Wilhelm UFSC Fernanda Cardozo UFSC Fernanda da Silva Lima UFSC Fernanda Martins UFSC Fernanda Nunes da Rosa Mangini UFSC Frederico Augusto Paschoal UFSC Frederico Ribeiro de Freitas Mendes UFSC Gabriel Silva Costa USP Gabriela Dal Forno Martins UFRGS Gerusa Morgana Bloss UFSC Giácomo Tenório Farias UNISC Giovana Dorneles Callegaro Higashi UFSC Giovana Ilka Jacinto Salvaro UFSC Gisele Garcia Lopes UFSC Henrique Franco Morita UFSC Iara Cristina Corrêa UFSC Idonézia Collodel Benetti UFSC Isabela Martins Nadal UEPG Isabele Bruna Barbieri PUCPR Isabele Soares Parente UFSC Isabella Cristina Lunelli UFSC Ivette Sonora Soto ISA Janaina de Fátima Zdebskyi UFSC Janaina Mayara Müller da Silva FURB Janine Gomes da Silva RENNES Jessica Gustafson Costa UFSC Jéssica Sbroglia da Silva UFSC Joana DArc Vaz UFSC Joanara Rozane da Fontoura Winters UFSC Josélia da Silveira Nogueira UFSC Josiele Bené Lahorgue UFSC Juliana Alice Fernandes Gonçalves UFSC Juliana Schumacker Lessa UFSC Karine Grassi UCS Karolyna Marin Herrera UFSC Katheri Maris Zamprogna UFSC Kathiuça Bertollo UFSC Kátia Maria Zgoda Parizotto UFSC Kênia Mara Gaedtke UFSC Lady Mara Lima de Brito UFAM Laila Priscila Graf Ornellas UFSC Larissa Antunes UFSC Leide Sayuri Ogasawara UFSC Lenna Eloisa Madureira Pereira UFPA Leticia Scartazzini UFSC Liamara Teresinha Fornari UFSC Libiana Carla Bez Machado UFSC Liendina Joaquim Chirindza UFSC Ligia Ribeiro Vieira UFSC Loren Marie Vituri Berbert UFSC Luana Loria UFSC Luana Michele da Silva Vilas Bôas UERJ Luceni Medeiros Hellebrandt UENF Lúcia Helena Fidelis Bahia UDESC Luciana de Fátima Leite Lourenço UFSC Luciana Martins Saraiva UFSC Luciana Ribeiro de Brito UFSC Luciano Jahnecka UFSC Luciany Alves Schlickmann UFSC Luis Irapuan Campelo Bessa Neto UFSC Luiz Eduardo Dias Cardoso UFSC Luiza Landerdahl Christmann UFSC Maiara Pereira Cunha UFSC Maíra Marchi Gomes UFSC Marcel Soares de Souza UFSC Marcia Regina Calderipe Farias Rufino UFSC Marcio Jose Rosa de Carvalho UFSC Mareli Eliane Graupe OSNABRUECK Margarete Maria de Lima UFSC Maria Aparecida Salci UFSC Maria Cecilia Olivio UFSC Maria de Jesus Hernnandez Rodriguez UFSC Maria Eduarda Ramos UFSC María Fernanda Vásquez Valencia UFSC Mariana Aquilante Policarpo UFSC Mariana Caroline Scholz UFSC Marilande Fátima Manfrin Leida UFSC Marília dos Santos Amaral UFSC Marília Nascimento de Sousa UFSC Marina da Silva Sanes FURG Maris Stela da Luz Stelmachuk UFSC Marluce Dias Fagundes UFRGS Maurício da Cunha Savino Filó UFSC Melina de la Barrera Ayres UFSC Mirian Carla Cruz UFSC Monica Ovinski de Camargo Cortina UFSC Morgani Guzzo UFSC Natalia Fonseca de Abreu Rangel UFSC Nayala Lirio Gomes Gazola UFSC Noa Cykman UFSC Odisséia Fátima Perão UFSC Paula Helena Lopes UFSC Paula Pinhal de Carlos UFSC Paulo Ricardo Maroso Pereira UFRGS Poliana Ribeiro dos Santos UFSC Priscila Schacht Cardozo UNESC Priscilla Stuart da Silva UFSC Rafael de Almeida Pujol UFSC Rafaela Luiza Trevisan UFSC Renata Andrade de Oliveira UEM Renata Guimarães Reynaldo UFSC Renata Nunes UFSC Rene Erick Sampar UEL Roberto Wöhlke UFSC Rosana Sousa de Moraes Sarmento UFSC Roselete Fagundes de Aviz UFSC Rudá Ryuiti Furukita Baptista UEL Sabrina Aparecida da Silva UFSC Sabrina Blasius Faust UFSC Samanta Rodrigues Michelin UFSC Samira de Moraes Maia Vigano UFSC Samuel Martins dos Santos UFSC Sandra Iris Sobrera Abella UFSC Sérgio Cabral dos Reis UFSC Sheila Cristina Silva Ferraz UFSC Silvana Marta Tumelero UFSC Silvia Araújo Dettmer PUCSP Silvia Cardoso Rocha UFSC Simone Lolatto UFSC Simone Vidal Santos UFSC Soraia Carolina de Mello UFSC Tânia Welter UFSC Tatiana Pires Escobar UFSC Thatiane Cristina Fontão Pires UFSC Valéria de Angelo Ghisi UFSC Valine Castaldelli Silva UNICESUMAR Vanessa Dorneles Schinke PUCRS Wellington Lima Amorim UFRJ Yasmim Pereira Yonekura UFSC Zuleica Pretto UFSC Autoresas da Coleção Adria de Lima Sousa UFSC Adriana Dutra Tholl UFSC Adriano Beiras UFSC Alessandra Guterres Deifeld UNIVALI Amanda Ferreira da Silva CESUSC Amanda Mauricio Alexandroni UFSC Amanda Muniz Oliveira UFSC Ana Beatriz Cruz Nunes UNESP Ana Beatriz Eufrauzino de Araújo UNIPE Ana Paula Bourscheid UFSC Ana Paula Machado UFFS André Demetrio Alexandre PUCPR Anna Quialheiro Abreu da Silva UDESC Antônio José Ledo Alves da Cunha ENSP Ariane Mattei Nunes UFSC Ariê Scherreier Ferneda PUCPR Athena de Oliveira Nogueira Bastos UFSC Athena de Oliveira Nogueira Bastos UFSC Beatriz Berg USP Beatriz de Almeida Coelho UFSC Beatriz Moreira Bezerra Vieira UEM Benhur Pinós da Costa UFRJ Betina Fontana Piovesan UNIVALI Bettieli Barboza da Silveira UFSC Bianca Louise Wagner UFSC Bruna Adames UNIFEBE Bruna Amato UGF Bruna Boldo Arruda UNIVALI Bruna Camila Schuhardt UNIASSELVI Bruna Carolina Bernhardt UFSC Bruna Luisa Macelai UNIVALI Bruna Luiza de Souza Pfiffer de Oliveira UFSC Bruna Marques da Silva UNISINOS Caio Henrique de Mendonça Chaves Incrocci UFSC Camila Maffioleti Cavaler UFSC Camila Trindade UFSC Carla Julia da Silva UFRN Carla Roberta Carnette UNOESC Carmen Leontina Ojeda Ocampo Moré ULISBOA Carolina Carvalho Bolsoni UFSC Carolina Carvalho Bolsoni UFSC Carolina Orquiza Cherfem UNICAMP Carolina Young Yanes UFSC Charlene Fernanda Thurow FURB Christiane Heloisa Kalb UFSC Clarete Trzcinski UFRGS Clarindo Epaminondas de Sá Neto UFSC Cláudio Macedo de Souza UFMG Cristiane Floriano Rieg UFSC Cristiane Tonezer UFRGS Dábine Caroene Capitanio UFSM Daiane dos Santos Possamai UNESC Daniela Queila dos Santos Bornin ITE Daniela Urtado PUCPR Danielle Alves da Cruz UFSC Deise Warmling UFSC Deisemara Turatti Langoski UFSC Denise Maria Nunes UFSC Edegar Fronza Junior UFSC Edna Wernke Niehues dos Reis UNISUL Eduardo Passold Reis AJTJSC Eliane Rodrigues UFSM Elizabeth Cristiane Mendonça Azevedo UNIPAMPA Elza Berger Salema Coelho UFSC Elza Berger Salema Coelho UFSC Emilly Marques Tenorio UFES Érika Costa da Silva UFBA Fábio Mattos FGV Fernanda Cornelius Lange UNIVALI Fernanda de Carvalho Rodrigues da Silva CEGSC Fernanda Marcela Torrentes Gomes UFSC Fernanda Miler Lima Pinto UFMA Fernanda Moreira Ballaris UFRJ Fernanda Moura Muniz PUC Fernanda Nunes da Rosa Mangini UFSC Flávia Rubiane Durgante UFSM Flavia Soares Ramos UFSC Franciele Volpato UFSC Francisco Pereira de Oliveira UFPA Gabriela Feldhaus de Souza UNIPLAC Gabriela Ferreira Dutra Birkbeck College Gabriele Aparecida de Souza e Souza UEA Gabriele Nigra Salgado UFSC Genilson Fernandes Monteiro UFPA Georgia Paula Martins Faust UNIASSELVI Giovana Ilka Jacinto Salvaro UFSC Grazielly Alessandra Baggenstoss UFSC Hellen Lopes Dutra Mazzola UNIVALI Heloisa Mondardo Cardoso UFSC Hildemar Meneguzzi de Carvalho UNIVALI Íris de Carvalho PUCRS Isabele Bruna Barbieri UEL Ísis de Jesus Garcia UFSC Ismê Catureba Santos UCAM Ivone Maria Mendes Silva USP Janice Merigo PUCRS Jeanine Dewes de Oliveira UNISUL Jéssica Janine Bernhardt Fuchs UFSC Jéssica Painkow Rosa Cavalcante UFG João Antonio da Cruz dos Santos UNIVALI João Fillipe Horr UFSC José Dias Santana UFPA José Elias Gabriel Neto FMPRS Josilaine Antunes Pereira UNISINOS Júlia Farah Scholz CATÓLICASC Júlia Sleifer Alonso UNIPAMPA Juliana Alice Fernandes Gonçalves UFSC Juliana Andrade da Silva PUCRS Karine Grassi UFSC Karine Kerkhoff UNOCHAPECÓ Karla Fernanda Pereira UFMA Karolyna Marin Herrera UFSC Karopy Ribeiro Noronha UFSM Kelly Cristina Schäfer Batistella UNISUL Kimberly Gianello Studer UFSC Laís Castro UEM Larissa Emília Guilherme Ribeiro IESP Larisse de Oliveira Rodrigues UERJ Lauriana Urquiza Nogueira UFSC Letícia de Cisne Branco CESUSC Lia Gabriela Pagoto UFFS Liandra Savanhago UFSC Lívia Dornelles Madrid URI Liziane da Silva Rodríguez PUCRS Luana Limberger Marques CESUSC Luana Marina dos Santos UNISINOS Lucas Francisco Neto DOCTUM Lucely Ginani Bordon UFRN Luciana Bittencourt Gomes Silva UNIDERP Luciele Mariel Franco UEM Lucienne Martins Borges UQÀM Luisa Chaves de la Rosa UNIPAMPA Luísa Neis Ribeiro UFSC Luiza Alano de Almeida UNESC Luiza Niehues Bonetti UNESC Maiara Leandro UFSC Mainara Gomes Cândida Coelho UFSC Maira Gabriela Anschau UNOCHAPECÓ Márcia Aline Pacheco de Medeiros CESUSC Márcia Cristiane NunesScardueli UNISUL Mareli Eliane Graupe UFSC Mareli Eliane Graupe UNIPLAC Mariana Silvino Paris CLACSO Mariane Pires Ventura UFSC Mariane Vanderlinde da Silva UFSC Mariella Kraus FURB Marília de Nardin Budó UFPR Marília dos Santos Amaral UFSC Marina Williamson Touro UFSC Marja Mangili Laurindo UFSC Mayara de Abreu Stuepp Cardoso FMP Mayara Zimmermann Gelsleichter UFSC Michelle de Souza Gomes Hugill UFSC Milena Barbi UFSC Miliane dos Santos Fantonelli UFSM Mirenchu Maitena dos Santos Rivas UNIPAMPA Miriam Olivia Knopik Ferraz PUCPR Monica Ovinski de Camargo Cortina UFSC Nádia Maria Gonçalves Krüger CEGSC Natália Aparecida Antunes UFSC Natielle Machado Santos UNIPLAC Nínive Degasperi Poffo UFSC Pamela de Gracia Paiva UNINTER Paola Dozoretz FURB Patrícia Backes UFSC Patrícia Borba Marchetto UB Paulo José Mueller UNIVALI Paulo Thiago Fernandes Dias PUCRS Paulo Thiago Fernandes Dias UNISINOS Poliana Ribeiro dos Santos UFSC Priscila Fernanda Santiago Ferreira UFMA Raul da Silveira Santos UFPA Regina Célia Costa Lima PUCGO Roberta Logobuco de Araujo Pereira PUC Sabrina Nerón Balthazar UFSC Sara Alacoque Guerra Zaghlout PUCRS Scheila Krenkel UFSC Sheila Rúbia Lindner UFSC Stella Scantamburlo de Mergár UCAM Sthefanie Aguiar da Silva UFSC Tainá Malinski UNISUL Thamyres Cristina da Silva Lima UFSC Thays Berger Conceição UFSC Vanessa Martinhago Borges Fernandes UFSC Vilma Pimentel Siqueira UFSM Wellington Lima Amorim UFRJ William Hamilton Leiria UFSC Vítimas sublimes projetos de sujeitos Não Sistema e sistemas Estrutura e estruturas Hierarquia e hierarquias Vários sub Subsistemas subestruturas Dentro disto sujeitOs Fora sujeitAs Há entrecruzamentos logo não há universalismo Num espaço como o Brasil seus contextos históricopolíticoeconômicocultural jurídico importam Invasão genocídio dos povos originários escravidão ditadura militar golpes políticos Poder descentralizado nas mãos dos que observados os períodos e cenários já o detinham e o detém Pequenos desvios dentro destes ciclos perpétuos Luta muita luta Contra o genocídio escravidão ditaduras golpes políticos retiradas de direitos Negação muita negação De todos estes eventos e características próprias No atravessamento as periferias Os territórios e corpos periféricos Ditos periféricos A marginalização do outrO Da outrA Sufocamento A construção de uma mentalidade social hierarquizada sob moldes coloniais na organização de mundo dividida entre Sul e Norte Global A trama do desenho do sujeito Do que é o sujeito Do sujeito de direito Quem tem direitos E do outrO Da outrA Que não o do direito Quem não tem direitos Nesta composição articulada secularmente sem descanso num território não recuperado de seus traumas a SujeitA boa é aquela que se mantém como a outrA sem direitos isto é a não sujeitO Ocorre que em vários pontos do globo dentre contextos sociais surgem reflexões e mobilizações destas sujeitAs mulheres Novamente luta muita luta e negação muita negação Se estrutura a sujeitA para que seja boa Uma boa vítima SujeitA vítimA A negação do gênero como arma feminicida Entrecruzamentos interseccionalidades descolonizações enfrentamentos Desconstruções morais e reconstruções de alianças políticas Desfazimento da desumanização dos projetos de sujeitos como vítimas sublimes Nem boa Nem vítima Sujeita de direito Sujeitas de direitos Em oposição às violências perpetradas contra as sujeitas mulheres as margens desde e para as margens ou seja desde os corpos periféricos para um país construído como periferia Brasil por teorias e práticas desde e para as periferias do mundo Disputas narrativas e materiais pelas e para as sujeitas mulheres Juliana Alice Fernandes Gonçalves APRESENTAÇÃO A violência contra as mulheres remonta dos tempos primitivos da humanidade cuja desigualdade entre os gêneros aqui no sentido das relações de poder entre homens e mulheres é observada em todo os campos da vida humana baseada nas diferenças biológicas e com isso na divisão do trabalho e funções em uma sociedade patriarcal Às mulheres era atribuído um papel secundário e de submissão ao domínio dos homens sob o argumento de serem seres frágeis física e intelectualmente como também da sociedade e da religião que lhes limitava as atribuições à esfera privada tais como a família reprodução e afazeres domésticos enquanto aos homens era permitida a atuação na esfera pública associada à liberdade à produção à política Tal situação foi sendo alterada por meio dos movimentos feministas e dos avanços normativos em especial a partir do século XX em que foram firmados Tratados e Convenções Internacionais assim como a promulgação da Constituição Cidadã de 1988 e das leis Maria da Penha e do Feminicídio os quais não só alçaram as mulheres à condição de sujeitos de direito e não mais de objeto como também reconheceram que as violações esses direitos são violações aos direitos humanos colocando as mulheres em patamar de igualdade com os homens Por outro lado temse que os avanços sociais não acompanharam a evolução formal uma vez que por conta da manutenção da desigualdade na divisão sexual do trabalho as mulheres passaram a assumir uma sobrecarga de responsabilidades Mesmo trabalhando fora de casa permanecem como as principais responsáveis pelos afazeres domésticos cuidados com os filhos e familiares Assim as limitações existentes para as mulheres no âmbito profissional contribuem para a manutenção das desigualdades e das violências sobre elas exercidas Como se vê o mundo atual ainda não é um lugar seguro para as mulheres pois as mulheres continuam a sofrer vários tipos de violências no âmbito doméstico e familiar no trabalho e na esfera pública Em pleno século XXI mulheres continuam sendo vitimadas subjugadas e morrendo pelas mãos de seus ex parceirosmaridosnamorados permanecem com medo de sair nas ruas à noite sendo julgadas pelo seu comportamento social ou pelas roupas que vestem Diante de tudo isso é que se denota da importância desta obra cujo título da Coleção Não há lugar seguro reflete a busca dosas pesquisadoresas de diversas áreas em trazer panoramas argumentos críticas e sugestões para possíveis caminhos e soluções para a problemática da violência de gênero Com toda a certeza as reflexões aqui apresentadas contribuirão para o desenvolvimento de ideias e ações sejam elas no âmbito público ou privado para o aprimoramento da Justiça e dos serviços públicos de proteção às mulheres E por que não dizer contribuirão para que se dê mais um passo rumo à efetivação dos direitos humanos das mulheres e para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária Boa leitura Salete Silva Sommariva Desembargadora do Tribunal de Justiça de Santa Catarina TJSC PREFÁCIO O presente livro integra a Coleção Não Há Lugar Seguro constituída por estudos científicos aprovados na I Mostra de Pesquisa Científica sobre Violências Contra as Mulheres Sendo uma parceria entre o Tribunal de Justiça de Santa Catarina e o Lilith Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos da Universidade Federal de Santa Catarina devidamente certificado pelo CNPq O presente volume contempla pesquisas sobre violências contra mulheres com ênfase no gênero e tratando de questões como patriarcado necropoder e feminismos A violência de forma genérica consubstanciase como desvios comportamentais a partir de uma referência de expectativa relacional positiva ao sujeito Assim compreendida é tida como um dilema humano sustentada por processos históricos relacionais e culturais que acometem a sociedade Por isso inclusive inserese com extrema relevância no contexto mundial da área inserida por se consubstanciar como um problema de saúde pública conforme posicionamento da Organização Mundial da Saúde OMS especialmente no que se refere à violência relacionada às mulheres Nesse volume então temse a proposta de tratar da temática a partir de potenciais núcleos de partida de sentidos que justificariam a violência contra as mulheres bem como de possíveis conexões sobre os resultados de tal violência que nos conferem uma determinada identificação sobre como a instituição estatal e a sociedade em si relacionamse com as mulheres Reivindicase assim um postura de estudos profundamente reflexiva sobre a estruturação estatal e social A violência contra as mulheres nesse sentido não pode ser observada de modo restrito aos sujeitos mas nas suas relações reconhecidamente em um determinado contexto cultura em um dado tempo e espaço O fenômeno da violência contra as mulhres não é considerado como o produto de um fator único mas como o reflexo de diversos fatores de risco e causas multiplas os quais interagem em diversos níveis interdependentes da vinculação social da pessoa dentre elas os âmbitos individual relação estreita família comunidade e sociedade Em tal seara reconhecese por pesquisas científicas1 que há um reconhecimento de que as crenças de hierarquização entre os gêneros em associação com a violência contra as 1 OPASOMS 2012 Organização Mundial da Saude Prevenção da violência sexual e da violência pelo parceiro íntimo contra a mulher ação e produção de evidência ISBN 9789275716359 mulheres que apontam para dois fatores principais de risco a posição desigual das mulheres em certas relaçoes e na sociedade que está regida por ideologias da superioridade entre as pessoas pelo crivo do gênero e o uso normativo da violência para a resolução de conflitos e durante as lutas políticas OPASOMS 2012 A proposta dos estudos apresentados aqui portanto é de promover uma reflexão a partir de evidências empíricas solidas de como sobre como as normas de gênero e a desigualdade e iniquidade de gênero operam como causas ou como fatores de risco na situação de violência contra as mulheres Grazielly Alessandra Baggenstoss SUMÁRIO O AGRAVAMENTO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO PELO DISCURSO JURÍDICO ASPECTOS CONTRADITÓRIOS DO USO PELA DEFENSORIA PÚBLICA DE TESES VIOLADORAS DE DIREITOS DAS VÍTIMAS 16 Érika Costa da Silva A INFLUÊNCIA DA IDEOLOGIA PATRIARCAL NO ELEVADO NÚMERO DE CASOS DE FEMINICÍDIO REGISTRADOS NA MESORREGIÃO OESTE DE SANTA CATARINA 36 Carla Roberta Carnette A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A CASA DA MULHER BRASILEIRA PROJETOS PENDENTES CONTRA A VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL 47 Juliana Alice Fernandes Gonçalves O MEDO NA SEGURANÇA UM ESTUDO DE CASO SOBRE VIOLÊNCIA DE GÊNERO 64 Gabriela Feldhaus de Souza Mareli Eliane Graupe O PARADOXO DA CRIMINALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA A MULHER A INADEQUAÇÃO DA LÓGICA PUNITIVISTA NA CRIMINOLOGIA FEMINISTA 75 Lucely Ginani Bordon AS IMPLICAÇÕES DA COLONIZAÇÃO PARA A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO NA AMÉRICA LATINA CONTRIBUTOS DO PENSAMENTO DECOLONIAL 94 Alessandra Guterres Deifeld Bruna Luísa Macelai ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO DISCURSO JORNALÍSTICO ANÁLISE DE UMA REPORTAGEM DO FANTÁSTICO 105 Flávia Rubiane Durgante Lia Gabriela Pagoto Benhur Pinós da Costa OS REFLEXOS DA SOCIABILIDADE PATRIARCAL NA VIDA DAS MULHERES 124 Carla Júlia da Silva Larisse de Oliveira Rodrigues A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES COMO EXPRESSÃO DO SISTEMA SEXOGÊNERO PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES 138 Beatriz Moreira Bezerra Vieira Laís Castro Camila Trindade BOCA CALADA O SILENCIAMENTO DAS MULHERES COMO FORMA DE VIOLÊNCIA NA ANULAÇÃO DO SUJEITO DE DIREITOS FEMININO 158 Athena de Oliveira Nogueira Bastos TÊMIS À SOMBRA DE ARES A LATENTE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA INVISIBILIZAÇÃO DO FEMININO PELA CRIMINOLOGIA 170 Fernanda Miler Lima Pinto Liziane da Silva Rodríguez Paulo Thiago Fernandes Dias Sara Alacoque Guerra Zaghlout O DISCURSO DE ÓDIO COMO FORMA DE EXPRESSÃO E INCITAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER 189 Bruna Luiza de Souza Pfiffer de Oliveira Heloisa Mondardo Cardoso CORAÇÕES SELVAGENS DA ASFIXIA DO DIREITO À POLIFONIA FEMINISTA 205 Miliane dos Santos Fantonelli William Hamilton Leiria A CAÇA ÀS BRUXAS NÃO TERMINOU APONTAMENTOS SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE CAPITALISMO E OPRESSÃO DAS MULHERES A PARTIR DAS OBRAS DE SILVIA FEDERICI E CAROLE PATEMAN 221 Edegar Fronza Junior CAPACITANDO COM GÊNERO EXPERIÊNCIAS DO CURSO FEMINICÍDIO E QUESTÕES DE GÊNERO DA ACADEMIA JUDICIAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA TJSC 238 André Demetrio Michelle de Souza Gomes Hugill SER VÍTIMA E SER MULHER REFLEXÕES SOBRE O TRATAMENTO DE GÊNERO NOS CRIMES CONTRA OS COSTUMES DO CÓDIGO PENAL DE 1940 255 Daniela Queila dos Santos Bornin Gabriele Aparecida de Souza e Souza Júlia Farah Scholz Mariella Kraus PATRIARCADO UM PROBLEMA SOCIAL PERSISTENTE NA CIDADE DE LAGES SC 274 Natielle Machado Santos Josilaine Antunes Pereira Mareli Eliane Graupe DO LUTO À LUTA LÉSBICAS NO FOCO E NO ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES 284 Jéssica Janine Bernhardt Fuchs Bruna Amato Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 16 O AGRAVAMENTO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO PELO DISCURSO JURÍDICO ASPECTOS CONTRADITÓRIOS DO USO PELA DEFENSORIA PÚBLICA DE TESES VIOLADORAS DE DIREITOS DAS VÍTIMAS Érika Costa da Silva1 RESUMO O presente artigo tem como objetivo descrever a contradição entre a Defensoria Pública que possui a incumbência constitucional de promoção e proteção dos direitos humanos e a utilização de teses de defesa violadoras desses direitos especificamente o uso da tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio no tribunal do júri Nessa ótica a análise é essencial para demonstrar que a Defensoria Pública ao fazer uso de teses violadoras de direitos que deveria por lei proteger acaba por legitimar condutas violentas e discriminatórias contribuindo para o agravamento do problema social da violência de gênero Para tanto será apresentado um panorama geral acerca do fenômeno da violência de gênero destacando as inovações legislativas que tratam do tema e as suas omissões Tratase de trabalho bibliográfico que em relação ao perfil da vítima do feminicídio é construído sob uma perspectiva de gênero e raça Por fim são trazidas algumas considerações sobre o papel institucional dos defensores públicos e a plenitude do direito de defesa bem como a possibilidade de substituição das teses que aprofundam o desrespeito aos direitos humanos por uma defesa que salvaguarde tais direitos Essa substituição mostrase em total consonância com os objetivos e com as funções institucionais da Defensoria Pública qual seja a promoção dos direitos humanos Palavras chave Lei Maria da Penha Feminicídio Legítima defesa da honra Defensoria Pública INTRODUÇÃO A violência contra a mulher é fenômeno social complexo e profundamente enraizado na sociedade brasileira que não raramente desemboca na sua forma mais extrema de manifestação o assassinato de mulheres como consequência de um ciclo de diversos atos violentos O feminicídio ao tratar da morte de mulheres levada a efeito pelo fato de pertencerem ao gênero feminino denota o contexto específico em que esses crimes ocorrem tendo em vista que em razão da discriminação e opressão ainda existentes as mulheres são postas em situação de vulnerabilidade Segundo dados do Atlas da Violência de 2018 o Brasil ocupa atualmente a 5º posição no número de homicídios praticados contra as mulheres Com uma taxa de 48 assassinatos por 100 mil mulheres a violência de gênero com resultado morte se mostra como problema dos mais complexos reclamando medidas de contenção por parte do poder público 1 Mestranda em Direito Público pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Bahia 20161 Advogada Email erikacostaagmailcom Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 17 A Lei Maria da Penha lei nº 11340 de 2006 constituiu um avanço importante no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher no entanto não teve reflexos significativos no número de mortes de mulheres Seguindo o caminho trilhado pela Lei 1134006 em 09 de março de 2015 foi sancionada a Lei 13104 que alterou o artigo 121 do Código Penal para prever em seu 2º inciso VI uma nova modalidade de homicídio qualificado o feminicídio Este último consistiria segundo o mencionado dispositivo em um homicídio praticado contra a mulher por razoes da condição de sexo feminino No entanto apesar dos avanços a inovação legislativa merece ponderações especialmente em relação a figura da mulher que se propõe a proteger Afinal ao optar pela utilização dos termos mulher por razoes da condição de sexo feminino a lei negou proteção a uma parcela das vítimas da violência de gênero especialmente as mulheres transgênero 2 Ainda muito embora todas as mulheres estejam sujeitas a esse tipo de violência os dados sociais apontam que as mulheres negras constituem o grupo mais atingido e vitimado pelo feminicídio O Atlas da Violência de 2018 denuncia que a taxa de homicídios é maior entre as mulheres negras do que entre as não negras sendo que essa diferença alcança o percentual de 71 Desse modo o presente trabalho se propõe a descrever a contradição entre a Defensoria Pública que possui a incumbência constitucional de promoção e proteção dos direitos humanos e a utilização de teses de defesa violadoras desses direitos especificamente o uso da tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio no tribunal do júri Para tanto será apresentado um panorama geral acerca do fenômeno da violência de gênero destacando as inovações legislativas que tratam do tema e as suas omissões São trazidas ainda algumas considerações sobre o papel institucional dos defensores públicos e a plenitude do direito de defesa Tratase pois de trabalho bibliográfico que em relação ao perfil da vítima é construído sob a ótica indissociável das questões que permeiam os números da violência e que traduzem não apenas um gênero mas uma estatística que possui cor Assim diante desse olhar lançado para as vítimas e para o funcionamento do sistema considerando as questões de gênero raça e sexualidade que lhe dão sustentação buscase demonstrar que a Defensoria Pública ao fazer uso de teses violadoras de direitos que deveria 2 Segundo JESUS 2012 p 25 é um conceito guardachuva que abrange o grupo diversificado de pessoas que não se identificam em graus diferentes com comportamentos eou papéis esperados do gênero que lhes foi determinado quando de seu nascimento Nesse sentido gênero referese às características construídas socialmente enquanto o sexo referese às diferenças biológicas desse modo quando o texto legal opta por utilizar o termo sexo ao invés de gênero acaba por excluir do seu âmbito de proteção todas as mulheres que supostamente não estariam enquadradas no conceito biologico de mulher Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 18 por lei proteger acaba por legitimar condutas violentas e discriminatórias contribuindo para o agravamento do problema social da violência de gênero 1 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E SUA PROTEÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO LÁ VEM ELA CHORANDO O QUE QUE ELA QUER PANCADA NÃO É JÁ SEI3 A mulher vítima de uma sociedade moldada sob as bases sólidas do patriarcado era posta em uma posição de inferioridade chegando a ser considerada relativamente incapaz para gerir a própria vida conforme normatizado no Código Civil brasileiro de 1916 artigo 6 inciso II situação que só fora alterada com o advento do chamado Estatuto da Mulher Casada Lei nº 4121 em 1962 Tal circunstância serve bem para ilustrar o quanto estanques eram os papeis sociais reservados para cada gênero RIBEIRO 2013 sendo que as mulheres deveriam submeterse ao que era tido como correto e aceitável na estrutura organizacional da sociedade imposta pela ordem patriarcal de gênero sob pena de serem condenadas e colocadas à margem da moral e dos bons costumes da época SAFFIOTI 2004 Segundo Gerda Lerner 1985 p 318 las mujeres han participado durante milenios en el proceso de su propria subordinación porque se las ha moldeado psicológicamente para que interioricen la idea de su propria inferioridad4 Nesse aspecto os estudos de gênero serviram para desmistificar o argumento de que a divisão social de papéis entre homens e mulheres seria imposta por caracteres biológicos de cada um deles o que naturalizava a opressão feminina CALDAS 2016 p 10 passouse a compreender que a divisão é produto de construções sociais que carregam características específicas da época e do lugar tal construção resulta no gênero dando significado à diferença sexual Dessa forma Milena Baker 2015 credita ao movimento feminista essa importante contribuição consistente na profunda reflexão a respeito da diferença entre sexo e gênero Assim para a autora o gênero referese às características construídas socialmente enquanto o sexo referese às diferenças biológicas O papel social construído para o gênero feminino foi ganhando ressignificação alcançou lugares e funções Retirando as mulheres do papel adstrito à maternidade e ao lar a sociedade civil passou a encarálas não apenas como protagonistas dos postos de trabalho no 3 Trecho da musica Lá vem ela chorando Interpretada por Beth Carvalho ano 1977 4 Tradução livre As mulheres participaram por milênios no processo de sua própria subordinação porque foram moldadas psicologicamente para internalizar a idéia de sua própria inferioridade Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 19 ambiente doméstico mas também naqueles que eram tidos como tipicamente reservados aos homens As mulheres começaram a avançar para os centros de poder Embora a situação da mulher tenha melhorado significativamente nos últimos anos diversos são os fatores que impedem o pleno gozo das melhorias nessa condição de vida e a violência de gênero exerce papel decisivo nesse aspecto Em outubro de 2001 o Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Ábramo realizou uma pesquisa em todo o território brasileiro que ouviu 2502 mulheres cuja ideia era apreender a percepção das mulheres no novo século sobre diversos temas ligados à sua condição como mercado de trabalho aborto e violência contra a mulher Segundo os dados apurados aproximadamente uma em cada cinco mulheres brasileiras declarou espontaneamente já ter sofrido algum tipo de violência por parte de algum homem Um terço das mulheres admitiu ter sido vítima de violência física em algum momento de sua vida 33 a violência psíquica e o assédio sexual alcançaram índices de 27 e 11 respectivamente VENTURI RECAMÁN e OLIVEIRA 2004 O Brasil pressionado no cenário internacional em um movimento impulsionado por grupos feministas e apoiado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos avançou no combate à violência de gênero e no melhoramento da produção de dados estatísticos sobre a violência contra a mulher no país Com a criação da Lei Maria da Penha o país passou a reconhecer que a violência contra a mulher é fenômeno diferenciado e grave que pode se manifestar de diversas formas inclusive a sexual dentro ou fora do ambiente familiar e doméstico A Lei nº 113402006 trata especificamente da violência doméstica e familiar contra a mulher cujo conceito para os efeitos da mencionada legislação vem expresso em seu art 5º inovando segundo Thais Caldas 2016 p 17 ao afirmar que este tipo de violência configurase também em qualquer relação íntima de afeto em que o agressor conviva ou tenha convivido com a vítima independentemente de coabitação Inciso III do art 5º Para Flávia Piovesan 2012 a Lei Maria da Penha criou de forma inédita instrumentos para combater a violência doméstica e familiar contra as mulheres através da previsão de medidas de prevenção assistência e proteção às mulheres em situação de violência No ano de 2011 foi criada a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito de Violência contra a Mulher CPMIVCM Requerimento nº 4 de 2011CN possuindo a finalidade de investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil e apurar denuncias de omissão por parte do poder público com relação à aplicação de instrumentos instituídos em lei para proteger as mulheres em situação de violência É de autoria da CPMI o Projeto de Lei 292 de 2013 que Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 20 originou a Lei 131042015 para alterar o Código Penal brasileiro inserindo o feminicídio no rol de circunstâncias qualificadoras do crime de homicídio Assim sancionada em 9 de março de 2015 a Lei 13104 alterou o art 121 do Código Penal brasileiro que passou a prever no 2º inciso VI a novel qualificadora para o crime de homicídio denominado feminicídio para aqueles casos em que o assassinato é cometido contra uma mulher por razoes da condição de sexo feminino Ademais incluiu o feminicídio no rol de crimes hediondos previsto no o art 1º da Lei 80721990 Nesta senda para que haja a incidência da nova qualificadora do homicídio é necessário que o assassinato ocorra no âmbito doméstico e familiar e que a violência envolva menosprezo eou discriminação à condição de mulher art 121 2ºA incisos I e II do CPB Portanto não basta que a vítima do homicídio seja mulher para que o crime figure sob a rubrica do feminicídio é preciso também que se observe a ocorrência de tais circunstâncias No entanto apesar dos avanços na legislação nacional o Atlas da Violência de 2018 indica que no ano de 2016 4645 mulheres foram assassinadas no Brasil o que representa uma taxa de 45 homicídios para cada 100 mil brasileiras O Atlas destaca ainda que a base de dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade não fornece informação sobre feminicídio portanto não é possível identificar a parcela que corresponde às vítimas desse tipo específico de crime A ausência desses dados só fortalece a subnotificação desses casos Dessa forma frente a esse cenário questionase quem é a mulher vítima do feminicídio 11 Violência contra mulher uma estatística que possui cor olha nega tu é feia que parece macaquinha dei um murro nela e joguei ela dentro da pia5 Realizar uma leitura sobre o feminicídio desassociado da questão racial é falho e perigoso Não se nega o fato que toda mulher pode ser vítima de violência doméstica independentemente de sua cor No entanto fazse necessário destacar a questão racial que envolve o tema Felipe Freitas 2017 afirma que é preciso que as categorias sejam incorporadas na leitura que se faz da realidade e ao mesmo tempo assumir as implicações dos atores da pesquisa na composição das realidades que se pretende analisar Nesse aspecto o recente e amargo legado da escravização associado ao desenvolvimento econômico da sociedade brasileira baseado na exploração do trabalho escravo e no genocídio da população negra geram condições de vida desiguais aumentando o 5 Trecho da música Minha Nega na Janela Intérprete Germano Mathias Ano 1979 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 21 risco de violência fatal Sobre o tema Lélia Gonzales 1984 p232 esclarece que as condições de vida da comunidade negra possuem sujeições psicológicas que têm que ser reveladas sendo que o lugar natural do grupo branco dominante são moradias saudáveis devidamente protegidas por diferentes formas de policiamento já o lugar natural do negro é o oposto evidentemente da senzala às favelas e o critério para tais condiçoes tem sido sempre o mesmo a divisão racial do espaço Nesse sentido a precarização da vida constroi o caminho da morte FLAUZINA 2016 A ausência de políticas e serviços públicos saúde educação habitação saneamento básico planejamento familiar e garantia de direitos no âmbito do mercado de trabalho somados ao racismo e a misoginia traçam o cotidiano perigoso da mulher notadamente a mulher negra todas tentando sobreviver a uma sociedade marcada por discriminações Especificamente sobre a condição da mulher negra Angela Davis 2016 p 2425 aponta as violações sofridas desde o processo de escravização cujos efeitos são sentidos até os dias atuais pontuando que a postura dos senhores em relação às escravas era conduzida pela conveniência quando era lucrativo explorálas como se fossem homens eram vistas como desprovidas de gênero mas quando podiam ser exploradas punidas e reprimidas de modos cabíveis apenas às mulheres elas eram reduzidas exclusivamente à sua condição de fêmeas Estudos recentes quando avaliados na perspectiva das mulheres negras revelam um contexto de desigualdades que potencializam a violência contra os corpos negros femininos O Mapa da Violência de 2015 afirma que a conclusão retirada dos diversos mapas já produzidos e que abordaram a incidência da raçacor em seus dados evidencia que a população negra é vítima prioritária da violência homicida no Brasil Dividindo a população feminina pela variável raçacor temse que a taxa de homicídios é maior entre as mulheres negras do que entre as não negras e a diferença alcança o percentual de 71 sendo que entre 2003 a 2013 o número de homicídios de mulheres não negras apresentou uma queda de 98 enquanto que no mesmo período os homicídios contra mulheres negras aumentaram 542 Se realizada a leitura pós vigência da Lei Maria da Penha se verifica que o número de vítimas cai 21 entre as mulheres não negras e aumenta 350 entre as mulheres negras O Atlas da Violência 2018 aponta que as categorias de gênero e raça são fundamentais para entender a violência letal contra a mulher que é em ultima instância resultado da produção e reprodução da iniquidade que permeia a sociedade brasileira O cenário desenhado pelos indicadores sociais do país denuncia o racismo como fator determinante para o número elevado de feminicídios no Brasil Segundo Jurema Werneck a sociedade brasileira é fincada no racismo patriarcal que divide as pessoas pela cor da pele e Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 22 então pelo gênero assim as mulheres negras estarão sempre na base da pirâmide das desigualdades sociais no Brasil o que acaba resultando nessas altas taxas de assassinato Nesse sentido Ana Flauzina 2015 destaca que são as mulheres negras as mais vitimadas pela violência de gênero sendo certo que ao analisar o fenômeno a partir das perspectivas de mulheres negras quanto às potencialidades e as limitaçoes dos desdobramentos da Lei Maria da Penha significa tocar no ponto central dos dilemas de um marco jurídico inovador operado a partir de um sistema conformado por padrões históricos discriminatorios Dessa maneira a mulher é sem dúvida o sujeito passivo do crime de feminicídio e como dito a mulher negra aparece como a principal vítima do crime No entanto questionase o termo sexo feminino adotado pela Lei131042015 abrange todas as mulheres vítimas do feminicídio 12 Feminicídio uma questão de gênero porque homem é homem menino é menino macaco é macaco e viado é viado6 Quando se trata da conceituação do sujeito passivo do crime de feminicídio a questão não é respondida de maneira simples Há um consenso em torno de que a vítima para que o crime seja definido como feminicídio seja uma mulher até mesmo por expressa dicção legal uma vez que há referência à condição de sexo feminino Segundo Marília Costa e Isadora Machado 2017 p 02 a substituição do termo gênero feminino apresentado no projeto original da lei de feminicídio pelo termo sexo feminino representa uma manobra legislativa para excluir da lei todas as mulheres que supostamente não estariam enquadradas no conceito biologico de mulher notadamente as mulheres trans Com efeito o conceito de mulher para fins de incidência da qualificadora reclama algumas reflexões especialmente nos casos em que figuram como vítima do crime de homicídio nas circunstâncias dispostas no 2ºA do art 121 do Código Penal as pessoas transexuais Para Jaqueline de Jesus 2012 p 10 é fulcral para o debate recordar que a maioria das vítimas desse genocídio trans no Brasil são as travestis e as mulheres transexuais Está em curso um feminicídio trans sinalizado por crimes sistemáticos motivados pelo gênero da pessoa que são executados na ausência ou com a conivência do Estado Com o objetivo de definir quem pode ser considerada mulher para efeitos da novel qualificadora parte da doutrina conservadora do país elenca três critérios quais sejam o critério psicológico o biológico e o jurídico 6 Trecho da musica Holiday Foi Muito Intérprete Falcão Ano 1995 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 23 Segundo Bitencourt 2016 o critério psicológico se refere aos casos em que o indivíduo mesmo sendo do sexo masculino acredita pertencer ao sexo feminino ou seja apesar de nascido biologicamente homem acredita psicologicamente ser mulher a exemplo do que acontece com as transexuais Victório Pureza 2015 defende a adoção do critério psicológico para fins de aplicação da novel qualificadora sustentando a possibilidade de a transexual figurar como sujeito passivo do feminicídio desde que tenha realizado a cirurgia de mudança de sexo e tenha obtido por meio de provimento jurisdicional o direito de ser identificada civilmente como do sexo feminino Por outro lado encontramse doutrinadores que utilizam o critério biológico afirmando que se identifica uma mulher pela sua concepção genética ou cromossômica BITENCOURT 2016 Esse critério é o defendido por Dirceu Barros 2015 que por isso sustenta a impossibilidade de aplicação da qualificadora do feminicídio nos casos em que a vítima se trate de uma transexual Há ainda o critério jurídico que identifica como mulher os indivíduos que forem oficialmente registrados como tal ou seja que apresentarem documentação civil que as identifiquem como mulher Essa é a posição adotado por Greco 2015 e Bitencourt 2016 que sustentam a adoção desse critério para que essas pessoas figurem como sujeitos passivos do crime de feminicídio com amparo na necessidade de segurança jurídica e em respeito ao princípio da legalidade Na contramão dessas perspectivas encontramse autoras críticas do Direito posto que defendem a aplicação ampla da lei do feminicídio às pessoas transexuais a exemplo de Marília Costa e Isadora Machado A Lei do Feminicídio surge em um contexto influenciado pela Lei Maria da Penha a qual expressa a vontade de não excluir nenhuma mulher de seu âmbito de aplicação buscando garantir o direito de que todas as mulheres vivam sem violência de gênero a partir de uma interpretação lógico sistemática é possível se concluir que a Lei do Feminicídio deve expressar uma vontade que esteja de acordo com o sistema de normas a qual ela integra Afinal é a Lei 1134006 Lei Maria da Penha quem oferece o conceito normativo de violência doméstica resgatado pela Lei 1334015 Lei do Feminicídio e que ao mesmo tempo institui uma interpretação normativa do conceito de mulher que se sobressai à lógica descritiva do Direito Penal COSTA e MACHADO 2017 p 02 Em resumo o que se extrai é que as mulheres trans não têm seus corpos resguardados pela inovação legislativa FLAUZINA 2015 estão a mercê da interpretação da lei no caso concreto das ilações doutrinárias e do entendimento jurisprudencial ainda em construção Nesse aspecto a Lei 131042015 Lei do Feminicídio se mostra como verdadeiro retrocesso Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 24 notadamente se comparada a Lei 1134006 Maria da Penha que adota um conceito amplo de mulher7 2 A TESE DA LEGÍTIMA DEFESA DA HONRA ESTA MULHER É TEIMOSA ELA XINGA ELA BEBE NÃO QUIS IR PARA A COZINHA NO PRIMEIRO DIA O NOSSO AMOR MORREU8 Os preconceitos históricos e culturais que recaem sobre as mulheres e que foram naturalizados pela sociedade civil alimentam a transferência de culpa para própria vítima nos casos de violência contra a mulher mesmo quando o resultado é morte A sociedade brasileira nesse aspecto tratou de maneira condescendente as questões da violência de gênero apoiada na chamada legítima defesa da honra A título de exemplo podese citar a produção musical brasileira onde é bastante comum encontrar composições que abordam o tema da violência contra a mulher na maioria das vezes legitimando a prática de tais atos Em 1977 o cantor Sidney Magal lançou a musica Se Te Agarro com Outro Te Mato a composição é construída por trechos que buscam justificar a prática do crime de gênero evidenciado nos versos se te agarro com outro te mato Te mando algumas flores e depois escapo dizem que eu estou errado mas quem fala isto é quem nunca amou posso até ser ciumento mas ninguém esquece tudo o que passou A canção foi um sucesso e à época ocupou o primeiro lugar nos programas de rádio do país MEDEIROS 2011 Nesse aspecto Andréa Borelli 1999 explica que perante a sociedade brasileira sobretudo até o século XX a morte de mulheres por seus maridos namorados e companheiros era justificada como a prática de um crime passional cometido por grande emoção sendo vista como uma maneira de regular o controle das mulheres sobre os seus corpos e comportamentos pois o crime acontecia quando se rompia com os padroes vigentes da época Assim a traição feminina o ciúme e o amor justificavam o ato de matar bem como a certeza da impunidade que em outros termos ratificava a tese da legítima defesa da honra esta por sua vez compreende em uma tese de conteúdos preconceituosos reinantes principalmente 7 Avançando ainda mais nessa discussão a Comissão de Constituição Justiça e Cidadania CCJ do Senado Nacional aprovou em 22 de maio de 2019 o Projeto de Lei do Senado PLS 1912017 que amplia o alcance de proteção da Lei 113402006 Lei Maria da Penha passando a incluir em seu rol de maneira expressa as mulheres transgênero e transexuais Disponível em httpswww12senadolegbrnoticiasmaterias20190522mulheres transgeneroetransexuaispoderaoterprotecaodaleimariadapenhaaprovaccj Acesso em 03 de jun de 2019 8 Trecho da musica Conselho de Vadio Interpretação Candeio Ano 1975 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 25 até a década de 1970 que em síntese transfere a culpa para a vítima com o intuito de garantir a absolvição do réu ou a diminuição de sua pena A tese da legítima defesa da honra é fruto de uma construção dos advogados de defesa que utilizandose das ambiguidades do texto jurídico e da inferiorização da mulher em uma sociedade onde predominava a mentalidade de que a honra do homem era garantida pelo corpo e pelo comportamento da mulher lançavam os argumentos nos embates travados nos tribunais do júri garantindo a possibilidade de absolviçãoatenuação da condenação dos réus acusados da prática do crime à época classificado como passional ELUF 2007 Conquanto nunca tenha existido no marco legal brasileiro ferindo inclusive leis nacionais e tratados internacionais que o Brasil é signatário a tese ainda é utilizada e colabora para a impunidade nos casos de feminicídio e seus argumentos realçam e estimulam a desigualdade entre os gêneros Nesse sentido Pimentel Pandjiarjian e Belloque 2006 afirmam que o Brasil pode ser apontado como um dos países da América Latina que possui a maior tradição no acolhimento da tese da legítima defesa da honra em sua jurisprudência mesmo com ausência de previsão expressa na legislação penal nacional a esse respeito Desse modo as autoras comprovam através de pesquisa documental que a tese da legítima defesa da honra continua a ser utilizada no sistema de justiça brasileiro ainda que disfarçada por meio de artifícios argumentativos que procuram transferir a culpa do crime para vítima com base na sua conduta desonrosa para ao menos diminuir a pena do agressor quando não conseguem até mesmo a absolvição CALDAS 2016 A pesquisa avalia o uso da tese da legítima defesa da honra nos casos de feminicídio no Brasil constatando que nos acórdãos coletados e publicados entre os anos de 1998 e 2003 Foram encontradas três decisões que acolheram explicitamente a tese da legítima defesa da honra duas dos Tribunais do Estado de São Paulo nos anos de 1995 e 1990 respectivamente e uma do Tribunal de Justiça do Acre datada do ano de 2002 mesmo nos casos em que a tese em comento é inadmitida por faltarlhe os requisitos formais do art 25 do Código Penal há uma relutância por parte dos Tribunais de Justiça de todas as regiões do Brasil em afastála por completo os quais não afirmam a sua ilegalidade em abstrato O uso da tese consolida a reprodução de preconceitos no sistema de justiça sustentando discursos violadores dos direitos da vítima invertendo a culpa reforçando em consequência a tolerância social ao assassinato de mulheres Nesse aspecto o texto da justificação do projeto de Lei do Senado 2922013 a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 26 Mulher sintetizou a importância da previsão legal do feminicídio e os efeitos que eram esperados A importância de tipificar o feminicídio é reconhecer na forma da lei que mulheres estão sendo mortas pela razão de serem mulheres expondo a fratura da desigualdade de gênero que persiste em nossa sociedade e é social por combater a impunidade evitando que feminicidas sejam beneficiados por interpretações jurídicas anacrônicas e moralmente inaceitáveis como o de terem cometido crime passional Envia outros sim mensagem positiva à sociedade de que o direito à vida é universal e de que não haverá impunidade Protege ainda a dignidade da vítima ao obstar de antemão as estratégias de se desqualificarem midiaticamente a condição de mulheres brutalmente assassinadas atribuindo a elas a responsabilidade pelo crime de que foram vítimas COMISSÃO PARLAMENTAR MISTA DE INQUÉRITO 2013 p 10021004 O Instituto Patrícia Galvão no Dossiê Violência contra as Mulheres 2015 aponta impactos importantes que eram esperados com a previsão do feminicídio no Código Penal entre eles estava o de ser um instrumento de combate à impunidade evitando que o feminicídio continuasse a ser minimizado no sistema de justiça ou ainda pela imprensa classificandoo como crime passional ou homicídio privilegiado refutando em última análise o uso de teses que culpabilizam a vítima do feminicídio à exemplo da tese da legítima defesa da honra No entanto apesar dos avanços legislativos de combate a violência de gênero até hoje se encontram registros do uso de teses de defesa que violam os direitos das vítimas notadamente no tribunal de júri em casos de feminicídio Em recente pesquisa realizada pelo Ministério da Justiça no ano de 2015 restou demonstrado que o uso da tese da legítima defesa da honra se mantém e a visão estereotipada é reforçada pela lógica adversarial do tribunal do júri refletindo diretamente no desfecho processual Segundo a pesquisa colaboram para a construção dessa imagem os advogados de defesa e defensores publicos que costumam evidenciar o perfil transgressor da mulher versus o do homem trabalhador violado em sua honra para justificar a ocorrência do crime destacando que os argumentos utilizados pela defesa evocam a outrora difundida e criticada tese da legítima defesa da honra que apesar de não ter sido utilizada de modo explícito nos processos analisados para justificar a atitude do agressor parece ter alguma repercussão na operação que procura afastar a culpabilidade do réu e legitimar a violência perpetrada a partir do comportamento da vítima MINISTÉRIO DA JUSTIÇA 2015 p 4748 Além da prática da defesa a pesquisa chama atenção para o comportamento dos juízes que segundo os pesquisadores possuem papel ativo durante a instrução processual buscando o acolhimento de versões que culpabilizam o comportamento da vítima citando que em um dos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 27 casos analisados por exemplo diante da suspeita de traição pela vítima o magistrado se voltou à investigação do comportamento da mulher assassinada inquirindo as testemunhas com os seguintes questionamentos Ela tinha horário para trabalhar horários rígidos de levar os meninos na escola Ela era uma mulher séria Tranquila MINISTÉRIO DA JUSTIÇA 2015 p 4849 Em resumo a tese de legítima defesa da honra é empregada como norma discriminadora de direitos e as constatações feitas por Pimentel Pandjiarijan Belloque 2006 e pelo Ministério da Justiça 2015 e aqui analisadas revelam a manutenção do seu uso sendo comumente utilizada pelos advogados de defesa e defensores públicos que acabam por legitimar discursos e condutas completamente contrárias aos direitos humanos das mulheres violando assim um plexo normativo nacional e internacional de proteção às mesmas evidenciando portanto o quanto as discriminações contra as mulheres estão enraizadas nos diversos âmbitos sociais inclusive nas instituições encarregadas de combatêlas 3 A DEFENSORIA PÚBLICA E O USO DE TESES VIOLADORAS DE DIREITOS AGORA JÁ ME VINGUEI É ESSE O FIM DE UM AMOR ESTA CABOCLA EU MATEI É A MINHA HISTÓRIA DOTOR9 De acordo com o artigo 134 caput da Constituição Federal a Defensoria Pública é considerada instrumento e expressão da democracia sendo responsável pela promoção dos direitos humanos Com base na referida previsão constitucional Caio Paiva 2015 questiona se o defensor público ao assistir um réu pronunciado e submetido a julgamento perante o tribunal do júri pela prática de feminicídio poderia alegar que o assistido praticou o crime para defender a propria honra pois teria encontrado a vítima lhe traindo com um vizinho então poderia um defensor sustentar a tese de legitima defesa da honra em favor do réu Neste trabalho sustentase que sendo a resposta positiva o defensor público se encontraria submerso em uma verdadeira contradição ética profissional afinal estaria sendo contrário aos objetivos da primazia da dignidade da pessoa humana e a garantia da efetividade dos direitos humanos pilares que compõe a essência do trabalho institucional da Defensoria Pública Ainda estaria o defensor a reproduzir condutas preconceituosas que violam os direitos humanos das vítimas consolidam a tolerância social à prática da violência de gênero e aprofundam as discriminações contra as mulheres 9 Trecho da musica Cabocla Tereza Intérpretes Tonico e Tinoco Ano 1994 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 28 Nesse sentido Ana Barreto 2007 afirma que a Defensoria Pública possui um relevante papel na sociedade que não se restringe a garantir o acesso à justiça daqueles menos afortunados mas sobretudo o defensor publico forma opinioes sendo um conscientizador do papel social das massas e dos excluídos O defensor público tem o poderdever de assumir uma postura de efetiva transformação e conscientização desse poder popular e o faz por meio de concreta participação na vida da comunidade No entanto as pesquisas realizadas e aqui analisadas cujo recorte foi o uso de teses defensivas que violam os direitos da vítima à exemplo da legítima defesa da honra em casos de feminicídio denunciam o distanciamento dos defensores públicos do seu papel institucional de promoção dos direitos humanos ao fazerem uso recorrente de teses que violam tais direitos É o que demonstra a pesquisa realizada pelo Ministério da Justiça 2015 p 52 Muitas vezes além de não situar o crime em um contexto de expressão de poder patriarcal o sistema de justiça por seus diversos atores chega a fazer o oposto reafirmando discursos de culpabilização da vítima e o reconhecimento de papeis sociais que tendem a justificar as agressões como visto acima São vários os exemplos que corroboram essa percepção Em alguns casos a estratégia aparece de forma bastante explícita a defesa alega que o réu tendo sido traído pela vítima teria sido mais vítima que ela Na tentativa de retirar uma qualificadora da imputação o defensor publico prossegue se o apelante viu a mulher beijando outro homem na boca o motivo não pode ser futil A culpabilização da vítima também é evidenciada diante de tentativas da defesa de excluir a qualificadora presente no inciso IV a vítima tinha fundadas razoes para esperar pela agressão Como mencionado não se encontrou menção expressa à legítima defesa da honra embora a lógica dessa argumentação tenha se feito presente Como visto o uso de teses violadoras de direitos das vítimas é comumente utilizado pelos defensores públicos ainda que disfarçadas por artifícios de argumentação A pesquisa produzida pelo Ministério da Justiça 2015 p 53 destaca ainda que dos atores que compõem o sistema de justiça criminal juízes promotores defensores públicos e advogados foram os membros do Ministério Público que apresentaram teses mais situadas ao contexto complexo do problema social que representa a violência de gênero Dessa forma temse que em relação ao combate para o banimento do uso da tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio no tribunal do júri não é a Defensoria Pública que está à frente a despeito de ser ela a instituição que possui a incumbência constitucional expressa de promoção e defesa dos direitos humanos Tal circunstância pode ser explicada em parte pelo argumento da plenitude da defesa do réu sobre esse ponto Caio Paiva 2015 esclarece que o posicionamento é no sentido de que ao se estabelecer uma proibição na adoção de determinadas teses pelo defensor se estaria Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 29 limitando a atuação deste se mostrando como uma verdadeira censura a liberdade de argumento sendo este último algo indissociável da defesa criminal efetiva Para Lucas Sá Souza 2013 p 67 a garantia da plenitude de defesa é dada em razão de ser o julgador do réu um cidadão comum livre do conhecimento técnicojurídico dessa forma a defesa do réu não poderá estar limitada a argumentos exclusivamente legais sob pena de as alegações defensivas não serem compreendidas pelos juízes naturais da causa impossibilitando assim o correto julgamento Amom Pires 2017 entretanto alerta que ao fazer uso no tribunal do júri de teses que reforçam estereótipos e reafirmam discursos de culpabilização da vítima a defesa acaba por colaborar para o agravamento do problema social da violência de gênero pois é exatamente por sustentar tais discursos perante um corpo de julgadores formado em tese por pessoas desprovidas de conhecimento em relação ao paradigma de gênero esses jurados acabam sendo movidos por essas argumentações carregadas de conteúdos preconceituosos bem como por íntima convicção tornando o espaço do tribunal do júri pouco crítico e propício à adesão de teses violadoras de direitos Renata Tavares 2015 aponta a conscientização como instrumento de combate ao uso de teses violadoras de direitos pela defensoria pública ressaltando que antes de impor um suposto limite ao direito de defesa é preciso reafirmar o papel do defensor público como instrumento e expressão do regime democrático bem como aclarar sua função na promoção dos direitos humanos pontuando que o defensor exerce dois importantes papeis na proteção e promoção dos direitos humanos uma obrigação positiva de assegurar o exercício e pleno gozo desses direitos e uma obrigação negativa absterse de adotar determinadas atitudes discriminatorias e especificamente em relação ao uso da tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio a autora sustenta a necessidade do reconhecimento de que a defesa do assistido pela Defensoria Pública deve ser guiada pela ética realizada de maneira coerente atendendo aos parâmetros institucionais previstos na Constituição Federal de 1988 de modo que o defensor não pode ter a esquizofrênica posição de promover os direitos humanos e ao mesmo tempo sustentar teses que sustentem tais violaçoes de direitos Nesse ponto importante salientar que o defensor possui autonomia em relação ao acusadoassistido podendo se negar a utilizar teses contrárias aos direitos humanos é a prerrogativa de deixar de patrocinar a ação prevista nos artigos 44 XII 89 XII e 128 XII da LC 8094 Sobre o tema Ana Barreto 2007 ensina que a independência funcional garante aos membros da defensoria a liberdade de exercer suas atividades e de escolher a melhor forma Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 30 de defender os interesses dos assistidos ou ainda recusarse a ingressar com ação ou pedido manifestamente infundado Com efeito a discussão proposta ao longo desse trabalho sustenta que a Defensoria Pública enquanto instituição que possui o dever constitucional de promoção dos direitos humanos deve assumir uma postura responsável e ativa no embate ao uso de teses violadoras de direito especialmente da tese de legítima defesa da honra nos casos de feminicídio Do mesmo modo Rodolpho Rodrigues 2016 afirma que a atuação do defensor deve ser orientada dentro dos limites institucionais seguindo a orientação do tripé jurídico composto pela ética a consciência e a lei Para o autor o defensor publico cuja prática profissional se afasta do referido tripé jurídico está sujeito a uma atuação que ao invés de combater a injustiça a consagra Sustentase pois a adoção pela Defensoria Pública de teses defensivas que possuam construções jurídicas contemporâneas que respeitem a memória da vítima do crime e proporcione ao réu uma defesa ampla e eficaz Nesse sentido Renata Tavares 2015 destaca que pode a Defensoria permanecer sendo mais uma instituição inerte passiva e assim contribuir para a manutenção do status quo mas pode também representar o novo abrir o armário das ideias eticamente comprometidas com os direitos humanos e colocar na gaveta tudo aquilo que produziu e que ainda produz discriminação dor e sofrimento Dessa forma defendese a criação de teses conscientes que se aproximem da realidade respeitando todas as questões que envolvem o feminicídio sendo certo que os crimes de ódio devem ser combatidos por toda sociedade sobretudo pelas autoridades estatais que possuem o dever institucional de proteção e promoção de direitos tal como a Defensoria Pública sendo descabida a legitimação de teses de defesa que difundam comportamentos de violência discriminação e violação de direitos CONSIDERAÇÕES FINAIS Como visto a discriminação de gênero persiste na cultura brasileira refletindo na prática constante de atos de violência contra a mulher evidenciada nos números dos mais diversos estudos sobre violência de gênero tratados neste trabalho Igualmente temse que as soluções adotadas quase sempre fazem uso do Direito como via primeira ou mesmo única no enfrentamento de tais questões dos quais decorrem outros problemas que só reforçam em detrimento de solucionar tal violência No entanto embora se reconheça a ineficácia da criminalização para a solução do problema da violência de gênero defendese que a positivação da categoria feminicídio Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 31 possui o efeito simbólico de trazer reconhecimento para a questão bem como possui o potencial de conseguir resultados concretos na medida que viabiliza ao menos a tomada de medidas de enfrentamento mais direcionadas assim como o melhoramento na construção de políticas públicas para o seu combate Desse modo a visibilidade dada a violência contra a mulher após o advento da Lei do Feminicídio reacendeu importantes discussões que permeiam o complexo problema social da violência de gênero à exemplo da utilização da tese da legítima defesa da honra pelos advogados e defensores públicos ambos ancorados em uma suposta função institucionaldireito de plenitude da defesa do réu no tribunal do júri O presente trabalho se propôs a demonstrar especificamente o uso da tese da legítima defesa da honra pela Defensoria Pública na condução dos casos de feminicídio e como visto restou demonstrado que os membros da instituição fazem uso dos argumentos discriminatórios contidos na tese em estudo concluindose que os defensores públicos ao utilizarem de teses violadoras de direitos que deveria por lei proteger acabam por legitimar condutas violentas e discriminatórias indo com isso de encontro a valores inerentes à noção de sistema de justiça democrático o qual nem a Defensoria Pública nem o Direito Penal poderiam se afastar Com efeito o uso de teses como a da legítima defesa da honra apenas fortalece a imagem antagônica que parte da sociedade civil possui da mulher legitimando uma prática discriminatória da qual a vítima tornase culpada da própria morte de modo que sustentase aqui a impossibilidade de manutenção do seu uso no sistema de justiça criminal brasileiro Acrescentase ainda que a promulgação da Lei do Feminicídio levantou discussões em torno das questões centrais do problema da violência contra a mulher o racismo e o machismo Nesse aspecto conforme restou demonstrado nesse estudo a violência de gênero é resultado de séculos de discriminação fruto de uma sociedade construída sobre as bases sólidas do patriarcalismo e organizada socialmente e economicamente a partir do recente e doloroso processo de escravização do povo negro Evidenciandose que os efeitos dessa organização social são sentidos até os dias atuais e seguem estampados nos dados estatísticos do país que denunciam ser a população negra a mais vitimada pela violência homicida sendo as mulheres negras as principais vítimas da violência de gênero Na outra face os indicadores sociais apontam o machismo como fator principal para a prática da violência de gênero alcançando inclusive a própria criação da Lei do Feminicídio quando da opção dos legisladores pela utilização do termo sexo feminino e não gênero feminino o que acabou por reforçar estereotipos e preconceitos negando proteção expressa as transexuais vítimas do crime Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 32 Desse modo posicionase pela necessidade de banimento do uso da tese da legítima defesa da honra em casos de feminicídio no tribunal do júri defendese ainda que a atuação dos atores que compõe o sistema de justiça criminal brasileiro aqui destacado em especial os defensores públicos no exercício de suas funções devem se pautar por padrões éticos de comportamento que contraponham a lógica da plenitude de defesa adotada na prática penal visto que estas tendem a perpetuar violações aos direitos humanos das vítimas reforçando em consequência a tolerância social a violência de gênero REFERÊNCIAS BARRETO Ana Cristina Teixeira A defensoria pública como instrumento constitucional de defesa dos direitos da mulher em situação de violência doméstica familiar e intrafamiliar 2007 Dissertação Mestrado em Direito Faculdade de Direito Universidade de Fortaleza Ceará Orientadora Profa Dra Ana Maria DÁvila Lopes Disponível em httpswwwanadeporgbrwtksitecmsconteudo5412ANACRISTINABARRETO dissertacao1pdf Acesso em 06 de jun de 2019 BARROS Francisco Dirceu Feminicídio polêmicas na identificação de gênero Revista Jus Navigandi Teresina ano 20 n 4282 23 mar 2015a Disponível em httpsjuscombrartigos37145 Acesso em 08 de maio de 2019 BAKER Milena Gordon A tutela da mulher no direito penal brasileiro a violência física contra o gênero feminino Rio de Janeiro Lumen Juris 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Erradicar a Violência contra a Mulher dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher altera o Código de Processo Penal o Código Penal e a Lei de Execução Penal e dá outras Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 33 providências Brasília 2006 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato2004 20062006lei l11340htm Acesso em 03 de maio de 2019 BRASIL Lei nº 13104 de 9 de março de 2015 Altera o art 121 do DecretoLei no 2848 de 7 de dezembro de 1940 Código Penal para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio e o art 1o da Lei no 8072 de 25 de julho de 1990 para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos Brasília 2015 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Ato201520182015lei L13104htm Acesso em 03 de maio de 2019 BRASIL Projeto de Lei do Senado PLS 1912017 aprovado pela Comissão de Constituição Justiça e Cidadania CCJ do Senado Nacional em 22 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acusados de feminicídio no Tribunal do Júri In XII Congresso Nacional de Defensores Públicos Livro de teses e práticas exitosas Curitiba 2015 p 203 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 34 DAVIS Angela Mulheres raça e classe tradução Heci Regina Candiani 1 Ed São Paulo Boitempo 2016 p 2425 ELUF Luiza Nagib A paixão no banco dos réus 3 ed São Paulo saraiva 2007 FLAUZINA Ana Luiza Pinheiro O feminicídio e os embates das trincheiras feministas DISCURSOS SEDICIOSOS RIO DE JANEIRO p 95106 2016 FLAUZINA Ana Luiza Pinheiro Lei Maria da Penha entre os anseios da resistência e as posturas da militância In Ana Luiza Pinheiro Flauzina Felipe da Silva Freitas Org Discursos negros legislação penal política criminal e racismo 1edBrasilia Brado Negro 2015 v 1 p 115144 FREITAS Felipe da Silva Desafios éticos da pesquisa empírica em direito racismo e sexismo em debate VII Encontro de Pesquisa Empírica em Direito Pesquisa empírica em direito porquê Para quê Para quem Feira de Santana Academiaedu 2017 Disponível em httpswwwacademiaedu35328331VIIEncontrodePesquisaEmpíricaemDireitoPes quisaempíricaemdireitoporquêParaquêParaquem Acesso em 08 de maio de 2019 FUNDAÇÃO PERSEU ÁBRAMO Mulheres brasileiras e gênero nos espaços público e privado Sl 2010 Disponível em httpnovofpabramoorgbrsitesdefault filespesquisaintegra0pdf Acesso em 04 de maio de 2019 GONZALES Lélia Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira In Revista Ciências Sociais Hoje Anpocs 1984 p 232 GRECO Rogério Feminicídio Comentários sobre a Lei nº 13104 de 9 de março de 2015 Sl 2015 Disponível em httpwwwrogeriogrecocombrp2906 Acesso em 07 de maio de 2019 INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO Dossiê Violência Contra as Mulheres Feminicídio São Paulo 2015 Disponível em httpwwwagenciapatriciagalvaoorgbrdossie violencias feminicidio Acesso em 07 de maio de 2019 JESUS Jaqueline Gomes de Orientações obre identidade de gênero conceitos e termos Disponível 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maio de 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 36 A INFLUÊNCIA DA IDEOLOGIA PATRIARCAL NO ELEVADO NÚMERO DE CASOS DE FEMINICÍDIO REGISTRADOS NA MESORREGIÃO OESTE DE SANTA CATARINA Carla Roberta Carnette1 RESUMO O presente artigo busca compreender os motivos que levam o Oeste catarinense a ser a Mesorregião que mais registra casos de feminicídio no estado tendo em vista ser a terceira mais populosa de Santa Catarina Sendo assim pretendese analisar o conceito de feminicídio suas espécies distintas e as mudanças advindas com a Lei n 131042015 bem como os aspectos históricos e conceituais do patriarcado com o intuito de demonstrar a sua correlação com a prática do crime de feminicídio Por fim serão analisados os dados referentes aos registros de casos de feminicídio ocorridos nas mesorregiões de Santa Catarina A pesquisa caracterizase como revisão bibliográfica procedida a partir dos conceitos de feminicídio e ideologia patriarcal A análise dos dados demonstrou que o índice de feminicídio é destoante entre as regiões de Santa Catarina sendo no Oeste catarinense a sua maior incidência Uma das possíveis razões se dá pelo fato de a mesorregião oeste ter maior predominância da ideologia patriarcal em seu meio social quando comparada com as demais regiões do estado bem como pela ausência de políticas públicas eficientes visando o combate da violência doméstica principalmente nos municípios do interior Palavraschave Feminicídio Ideologia patriarcal Oeste de Santa Catarina INTRODUÇÃO Nas últimas décadas foram significativas as conquistas alcançadas no enfrentamento à violência contra a mulher No campo jurídico e legislativo a promulgação da Lei Maria da Penha e da Lei do Feminicídio são consideradas um marco no combate à violência doméstica e familiar contra as mulheres no Brasil No entanto dados mostram que em âmbito mundial o Brasil é o quinto país com mais casos de feminicídio registrados evidenciando ser um dos países mais inseguros para se nascer mulher Nesse contexto Santa Catarina o único estado do país com nome de mulher ocupa o quinto lugar nacional no ranking de casos de feminicídio conforme dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018 Somente no primeiro semestre de 2019 Santa Catarina registrou 31 casos de feminicídio representando um aumento de 409 em relação ao mesmo período do ano 1 Advogada Especializanda em Direito Penal pelo Centro Universitário Leonardo da Vinci UNIASSELVI carlacarnettehotmailcom Lattes httplattescnpqbr6367534662803821 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 37 passado sendo que na maioria dos casos tem como principais suspeitos o companheiro ou ex companheiro da vítima SIMON 2019 De acordo com dados disponibilizados pela Secretaria de Segurança Pública o Oeste de Santa Catarina é a região do estado com o maior número de casos de feminicídio registrados nos últimos três anos Pensar a violência contra a mulher sobretudo o feminicídio exige um olhar sobre como se constituiu o ordenamento social suas relações de poder e o seu impacto na atualidade Uma possibilidade de origem da dominação e consequente violência contra a mulher é o patriarcado uma vez que legitima a superioridade masculina nas relações de gênero Por sua vez a violência de gênero produz e se reproduz nas relações de poder em que se entrelaçam homens e mulheres ARAÚJO MATIOTTI 2004 No intuito de contextualizar esta temática o objetivo geral deste estudo é analisar como a cultura patriarcal influencia para que o Oeste catarinense ocupe o primeiro lugar em casos de feminicídio registrados no estado de Santa Catarina Inicialmente serão abordados conceitos acerca do feminicídio e seus aspectos socio jurídicos bem como as mudanças trazidas no ordenamento jurídico a partir da promulgação da Lei 131042015 que passou a considerar o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio Em seguida serão discutidos aspectos históricos e conceituais do legado da cultura patriarcal e por fim serão analisados os dados referentes aos casos de feminicídio registrados nas mesorregiões de Santa Catarina e mais especificamente no Oeste catarinense Para a contextualização e análise do problema realizouse um levantamento bibliográfico a partir de livros reportagens e artigos veiculados em jornais revistas jurídicas e científicas dados oficiais assim como em legislações e outras fontes sites dentre outros publicadas 1 FEMINICÍDIO O feminicídio em seu sentindo amplo é o termo usado para denominar assassinatos de mulheres marcados pela desigualdade de gênero A partir do estudo das motivações e características deste tipo de crime a doutrina subdividiu o feminicídio em três tipos feminicídio íntimo feminicídio por conexão e feminicídio não íntimo O homicídio de mulheres por seus companheiros excompanheiros e familiares com quem a vítima convivia constitui o feminicídio íntimo precisamente porque tais crimes são executados por pessoas que mantinham ou tinham uma relação afetiva com a mulher que Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 38 matam o que diferencia do feminicídio não íntimo em que não havia essa relação A terceira categoria utilizada na investigação o feminicídio por conexão referese à quando há feminicídio contra uma mulher que não era a pretendida pelo feminicida morrendo a vítima na linha de fogo independentemente de vínculo MELLO 2016 Com a promulgação da Lei 131042015 houve a alteração do Código Penal Brasileiro que passou a considerar o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio e nos termos do art 121 2º do CP ocorre quando o assassinato de uma mulher é cometido por razoes da condição de sexo feminino isto é quando o crime envolve violência doméstica e familiar conforme define a Lei Maria da Penha eou situações de menosprezo ou discriminação à condição de mulher com pena prevista para o homicídio qualificado de reclusão de 12 a 30 anos BRASIL 2015 O 7º prevê como causas de aumento da pena de 13 até a metade se o crime for praticado durante a gestação ou nos três primeiros meses posteriores ao parto contra menor de 14 anos ou maior de 60 anos de idade de mulher com deficiência ou se praticado na presença de ascendentes ou descendentes da vítima ou ainda em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas na Lei nº 1134006 Ademais a Lei nº 1310415 também incluiu o feminicídio no rol dos crimes hediondos previsto na Lei nº 807290 O fenômeno feminicida é a catálise de um processo contínuo e histórico de submissão e de brutalidades perpetradas contra as mulheres em um contexto social patriarcal marcadas pela violência de gênero que torna vulnerável a mulher e a coloca em situação de violência permanente caracterizando assim a sua condição de vítima COSTA OLIVEIRA SOUSA 2015 O feminicídio é a instância última de controle da mulher pelo homem o controle da vida e da morte Ele se expressa como afirmação irrestrita de posse igualando a mulher a um objeto quando cometido por parceiro ou exparceiro como subjugação da intimidade e da sexualidade da mulher por meio da violência sexual associada ao assassinato como destruição da identidade da mulher pela mutilação ou desfiguração de seu corpo como aviltamento da dignidade da mulher submetendoa a tortura ou a tratamento cruel ou degradante BRASIL 2013 A judicialização do feminicídio é apenas uma das muitas modificações que o Estado deve empreender a fim de combater a sua ocorrência visto que a raiz do problema se encontra na ideia de domínio patriarcal e submissão do gênero feminino 2 PATRIARCADO Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 39 A ideologia patriarcal definida como a dominação masculina sobre as mulheres sempre se apresentou como uma característica presente nos modelos familiares europeus A família era considerada como um dos valores centrais da sociedade europeia mais especificamente a família com modelo patriarcal e conservador modelo trazido pelos colonizadores europeus e adaptado às condições socioculturais brasileiras da época sendo o ponto de partida da instituição familiar no Brasil SILVA 1992 Nesse tipo de modelo familiar o homem prevalece como centro da família e detentor do poder figurando como garantidor do sustento e da proteção dos membros da família cabendo à mulher o papel de cuidar dos afazeres domésticos dos filhos e do marido No Brasil colônia o homem branco era a figura central e a mulher branca tinha funções como supervisionar as tarefas de escravas e escravos além da maternidade A mulher era completamente submissa ao homem pois este era quem tinha o poder SILVA 1992 A partir do final do período colonial com a inserção da mulher no mercado de trabalho houve o enfraquecimento do patriarcalismo embora a autoridade tenha permanecido nas mãos da classe masculina O patriarcalismo é uma das estruturas sobre as quais se assentam todas as sociedades contemporâneas Caracterizase pela autoridade imposta institucionalmente do homem sobre a mulher e filhos no âmbito familiar Para que essa autoridade possa ser exercida é necessário que o patriarcalismo permeie toda a organização da sociedade da produção e do consumo à política à legislação e à cultura Os relacionamentos interpessoais e consequentemente a personalidade também são marcados pela dominação e violência que têm sua origem na cultura e instituições do patriarcalismo CASTELLS 2010 Durante muito tempo diante da ideologia patriarcal o ato da mulher se posicionar diante o cônjuge pedir o divórcio ou até mesmo cometer o adultério configurava uma verdadeira afronta aos direitos do marido pois ela era considerada sua propriedade O patriarcalismo foi fortemente contestado pelo movimento feminista seja lutando pelos direitos da mulher seja desmistificando o discurso patriarcal o que sem dúvida trouxe transformações da personalidade e da estrutura familiar CASTELLS 2008 Ainda que enfraquecida a ideologia patriarcal deixou suas marcas na atualidade sendo que valores contemporâneos e tradicionais coexistem na estrutura da família brasileira Os crimes de feminicídio são reflexos da sociedade atual em que os homens mantem o pensamento de poder e apropriação sobre as mulheres Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 40 A violência contra a mulher é uma infeliz realidade e o que vivemos hoje infelizmente são as consequências de um caráter cultural ultrapassado com raízes que remetem à violência de gênero a força masculina e a hierarquia patriarcal conservadora CURY 2018 A violência é a última expressão da dominação como os homens dos dias atuais contra a violência de gênero reconhecem Eles identificam os agressores masculinos como indivíduos que acreditam no estereótipo tradicional da superioridade masculina e desejam usar a violência física para manter seu poder em suas casas e sobre as mulheres BONINO 1999 apud STREY AZAMBUJA JAEGER 2004 Como a ideologia patriarcal está intrinsecamente ligada à autoafirmação da superioridade da força masculina e manutenção do poder do homem sobre uma mulher constatase a sua influência nos casos de feminicídio pois a característica central é o sentimento de posse que o agressor tem sobre a sua vítima 3 FEMINICÍDIO NA MESORREGIÃO OESTE DE SANTA CATARINA O Estado de Santa Catarina é dividido em seis Mesorregiões a saber Grande Florianópolis Norte Oeste Serra Sul e Vale do Itajaí Figura 1 Divisão de Santa Catarina em Mesorregiões Fonte Adaptado de IBGE 2017 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 41 A Mesorregião do Oeste de Santa Catarina compreende 118 municípios possuindo cerca de 1281691 habitantes sendo a terceira maior mesorregião em número de habitantes do estado IBGE 2019 Embora a região Oeste ocupe o terceiro lugar do estado em número de homicídios de mulheres entre 2016 e 2018 com 64 casos registrados a situação se reverte quando considerado o crime de feminicídio SANTA CATARINA 2019 De acordo com dados disponibilizados pela Secretaria de Segurança Pública o Oeste de Santa Catarina é a região do estado com o maior número de casos de feminicídio nos últimos três anos SANTA CATARINA 2019 Para melhor elucidar a gravidade apresentada por esses dados o gráfico apresenta um comparativo entre o total de casos de feminicídio e homicídios de mulheres registrados entre 2016 e 2018 por Mesorregião agrupados com a densidade populacional de cada região Gráfico 1 Total de crimes de feminicídio e homicídios de mulheres cometidos entre 2016 e 2018 por Mesorregião do estado de Santa Catarina agrupados com a densidade populacional de cada região Fonte Elaboração própria com dados da Gerência de Estatística e Análise CriminalDiretoria de informação e inteligênciaSSPSC e dados do IBGE Observase que a densidade populacional é bastante distinta nas diferentes mesorregiões constatandose haver maior concentração na região litorânea do estado e maior dispersão no interior Conforme se observa os dados apontam uma diferença de cerca de 30 nos registros de feminicídio nos últimos três anos entre o Oeste catarinense e a mesorregião do Vale do Itajaí que é a mais populosa do estado Além disso percebese uma diferença significativa entre os índices de homicídio de mulheres e feminicídio registrados nas demais mesorregiões do estado como no caso da 0 200000 400000 600000 800000 1000000 1200000 1400000 1600000 56 73 64 19 37 74 16 27 44 14 16 31 1100000 1300000 1300000 420000 950000 1500000 Homicídios Feminicídios População Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 42 mesorregião Norte que registrou 73 homicídios de mulheres e 27 feminicídios nos últimos três anos SANTA CATARINA 2019 Para melhor elucidar a influência da ideologia patriarcal no alto índice de casos de feminicídio no oeste catarinense é preciso analisar as características dessa região quando comparada com o restante do estado A mesorregião Oeste tem a maior população rural do estado e sua economia gira predominantemente em torno da agropecuária cuja principal base é justamente a agricultura familiar com produção diversificada As relações são muito familiares e mantemse as tradições e costumes com casamentos que não podem ser desfeitos por exemplo pois fere as morais e normas da sociedade Em razão disso há um maior sentimento de tradicionalismo na região em comparação com outras regiões do estado adotando papeis mais conservadores demonstrando a aparente predominância de traços patriarcais em seu meio social VITÓRIA FARIA MORENO 2016 O conservadorismo e o tradicionalismo comportamental aliado a ideologia patriarcal caminham juntos na direção de produzir uma violência que tem a mulher como alvo crescente e preferencial reforçando a posição de subordinação feminina à autoridade masculina VITÓRIA FARIA MORENO 2016 Santa Catarina tem uma característica de conservadorismo e machismo muito grande Esses dois andam juntos São resultado da cultura e quanto mais no interior a cidade maiores estas características de tratar a mulher como posse Não se aceita a tomada de decisão pela mulher HOFMANN 2019 Nesse sentido ao analisar os dados disponibilizados pela Secretaria de Segurança Pública constatouse que dentre os 44 casos de feminicídio registrados na mesorregião Oeste de Santa Catarina nos últimos três anos 29 foram praticados na zona rural SANTA CATARINA 2019 As mulheres que vivem em zonas rurais estão submetidas a uma cultura patriarcal acirrada que as coloca num lugar de extrema submissão diante de seus companheiros fazendo com que aceitem a situação de violência doméstica VITÓRIA FARIA MORENO 2016 Nesse mesmo sentido entendese que os contextos de violência contra as mulheres rurais encontram potencialização em adversidades como a exclusão e as dificuldades de oferta e acessibilidade a serviços de saúde e segurança Dessa forma acreditase que o distanciamento de recursos de atenção social saúde e proteção justifiquem a invisibilidade da grande maioria das situações e consequentemente o não enfrentamento delas e das situações constituintes de violência nesse âmbito COSTA LOPES 2012 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 43 É importante salientar que a dominação é masculina e a consequente violência contra a mulher tem sua origem no patriarcado uma vez que este sistema permite a superioridade masculina nas relações de gênero Por sua vez conforme acima apresentado a violência de gênero produz e se reproduz nas relações de poder em que se enlaçam homens e mulheres ARAÚJO MATIOTTI 2004 A dominação patriarcal explica a desigualdade de poder que inferioriza e subordina as mulheres aos homens estimulando o sentimento de posse e controle dos corpos femininos e o uso da violência como punição e mecanismo para mantêlas na situação de subordinação Assim os feminicídios são mortes femininas que se dão sob a ordem patriarcal uma forma de violência sexista que não se refere a fatos isolados atribuídos a patologias ou ciúmes mas expressam ódio misógino desprezo às mulheres e constituem mortes evitáveis e em grande maioria anunciadas já que grande parte representa o final de situações crescentes de violências PASINATO 2016 A ideologia patriarcal fazse mais ostensiva no espaço das zonas rurais marcadas pela estrutura e códigos de conduta com traços predominantemente conservadores e patriarcais o que de certa forma explica o alto índice de casos de feminicídio registrados no Oeste catarinense em sua maioria na zona rural CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo apresentado obteve como intuito debater a ideologia patriarcal no elevado número de feminicídios que ocorrem todos os anos no estado de Santa Catarina Após revisão de literatura sobre a temática em questão bem como análise de estatísticas e dados coletados sobre as mesorregiões considerandose habitantes por região casos de homicídios e casos de feminicídios o estudo nos traz algumas conclusões e alguns dados alarmantes que merecem ser debatidos e observados sob os olhos da lei e da justiça A análise dos dados demonstrou que o índice de feminicídio é destoante entre as regiões de Santa Catarina sendo no Oeste catarinense a sua maior incidência Uma das possíveis razões se dá pelo fato de a mesorregião oeste ter maior predominância da ideologia patriarcal em seu meio social quando comparada com as demais regiões do estado A violência imposta às mulheres é histórica e tem a sua gênese na ideologia patriarcal modelo que promove a dominação masculina e a submissão feminina a partir de representações e comportamentos que devem ser obedecidos alicerçado em um sistema que legitima a sujeição do outro Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 44 Essa ideologia de gênero construída culturalmente e historicamente legitima a superioridade masculina nas relações de gênero perpetuando a violência praticada contra as mulheres que em muitas vezes chega a seu extremo com a prática do feminicídio A Lei do Feminicídio na tentativa de minimizar a violência contra as mulheres veio para reafirmar a resposta do sistema jurídicopenal aos problemas históricos e culturais que há tempos estão presentes em nossa sociedade Ainda que a legislação tenha evoluído objetivando punir mais severamente quem prática o crime de feminicídio ainda pesa na sociedade brasileira uma bagagem cultural acumulada ao longo dos séculos predominantemente patriarcal pautada na superioridade masculina sendo que a violência ocorre justamente quando a mulher rompe com essas leis do patriarcado Além disso como observado na revisão de literatura em regiões mais retiradas no interior do nosso estado ainda permanece a cultura do machismo da ideologia patriarcal o sentimento de posse e domínio do homem sobre a mulher Sabese também que a distância das propriedades rurais para os centros urbanos onde a mulher pode pedir ajuda em uma delegacia é outro fator que diminui o número de denúncias de violências sofridas e que consequentemente resulta em feminicídio o que reforça o diagnóstico da necessidade de interiorizar os serviços públicos de combate à violência doméstica Distantes dos centros urbanos marcadas pela pobreza e pela ausência de educação formal as mulheres que vivem na zona rural não tem acesso a informações de políticas públicas de combate à violência contra mulher Uma ação essencial que deve partir do poder público é a promoção de campanhas de conscientização voltadas à proteção das mulheres na zona rural e de como agir frente a casos de violência doméstica juntamente com o fornecimento de acompanhamento psicológico e jurídico REFERÊNCIAS ARAÚJO Maria de Fátima MATTIOLI Olga Ceciliato Gênero e violência Arte Ciência 2004 BRASIL DecretoLei nº 2848 de 7 de dezembro de 1940 Dispõe sobre o Código Penal Brasileiro Diário Oficial da União Brasília DF 31121940 e retificado em 311941 BRASIL Lei nº 13104 de 9 de março de 2015 Altera o art 121 do DecretoLei nº 2848 de 7 de dezembro de 1940 Código Penal para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio e o art 1º da Lei nº 8072 de 25 de julho de 1990 para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos Brasília 2015 BRASIL Senado Federal Comissão Parlamentar Mista de Inquérito Relatório Final Brasília julho de 2013 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 45 CASTELLS Manuel O poder da identidade Trad Klauss Brandini Gerhardt 6 ed São Paulo Paz e Terra 2008 v 2 CASTELLS Manuel O poder da identidade São Paulo Paz e Terra 2010 COSTA M C LOPES M J M Elementos de integralidade nas práticas profissionais de saúde a mulheres rurais vítimas de violência Revista da Escola de Enfermagem da USP São Paulo v46 n5 p108895 2012 COSTA Mônica Josy Sousa OLIVEIRA Ana Carolina Gondim de A SOUSA Eduardo Sérgio Soares Feminicídio e violência de gênero aspectos sóciojurídicos Revista Tema n 2425 p 2143 jandez 2015 Disponível em httprevistatemafacisaedubrindexphprevistatemaarticleview236 Acesso 06 jun 2019 CURY Augusto Adriana Carla e Marília Casos de feminicídios disparam e chocam o DF Portal Metrópoles Distrito Federal 08 ago 2018 Disponível em httpswwwmetropolescomdistritofederaladrianacarlaemariliacasosdefeminicidios disparamechocamodf Acesso 22 ago 2019 HOFMANN Carla Feminicídios SC registra cinco casos em janeiro Perfil Multi Rio Negrinho 08 fev 2019 Disponível em httpswwwclicperfilcombrnoticia10638feminicidiosscregistracincocasosemjaneiro Acesso 22 ago 2019 IBGE Estatísticas e população Rio de Janeiro IBGE 2019 Disponível em httpsibgegovbr Acesso em 22 ago 2019 IBGE Santa Catarina Mesorregiões 2017 Rio de Janeiro IBGE 2017 Disponível em httpsportaldemapasibgegovbrportalphpmapa221127 Acesso em 05 set 2019 MATOS M PARADIS C G Desafios à despatriarcalização do Estado brasileiro Cadernos Pagu Dossiê O gênero da política feminismos estado e eleições Campinas n 43 p 57118 juldez 2014 Disponível em httpwwwscielobrpdfcpan4301048333 cpa430057pdf Acesso 24 jun 2019 MELLO Adriana Ramos de Feminicídio uma análise sociojurídica da violência contra a mulher no Brasil 1 ed Rio de Janeiro LMJ Mundo Jurídico 2016 PASINATO W coordenador Diretrizes nacionais Feminicídio Investigar processar e julgar com a perspectiva de gênero As mortes violentas de mulheres Brasília ONU Mulheres Secretaria de Política para as Mulheres Secretaria Nacional de Segurança Pública 2016 SANTA CATARINA Secretaria de Segurança Pública de Santa Catarina 2019 Disponível em httpwwwsspscgovbr Acesso em 25 jul 2019 SILVA Marlise Vinagre Violência contra a mulher quem mete a colher São Paulo Cortez 1992 SIMON Guilherme Casos de Feminicídios cometidos em Santa Catarina em 2019 Diário Catarinense Florianópolis 27 jul 2019 Disponível em Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 46 httpswwwnsctotalcombrnoticiascasosdefeminicidioscometidosemsantacatarinaem 2019 Acesso 09 set 2019 STREY Marlene AZAMBUJA Mariana JAEGER Fernanda Pires Org Violência gênero e políticas públicas Porto Alegre EDIPUCRS 2004 VITÓRIA Carla FARIA Nalu MORENO Tica Reação patriarcal contra a vida das mulheres debates feministas sobre conservadorismo corpo e trabalho 2016 Disponível em httpswwwufsjedubrportal2repositorioFilecentroculturalCartilhaSof1pdf Acesso em 22 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 47 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A CASA DA MULHER BRASILEIRA PROJETOS PENDENTES CONTRA A VIOLÊNCIA DE GÊNERO NO BRASIL Juliana Alice Fernandes Gonçalves1 RESUMO A Constituição Federal vigente no Brasil é datada de 1988 sua elaboração e promulgação se deu apos 21 anos de regime ditatorial militar no país A apelidada Constituição Cidadã estabelece no plano formal em seu Art 5º inciso I a igualdade entre homens e mulheres desencadeando mudanças nas legislações e políticas públicas brasileiras Observados os atos e acordos internacionais apos décadas e no desenrolar deste cenário surge o programa Mulher Viver sem Violência mediante o Decreto nº 8086 de 2013 assinado pela presidenta Dilma Rousseff Tal projeto resulta na iniciativa da Casa da Mulher Brasileira que tem como objetivo o enfrentamento da violência contra as mulheres no país O objeto do presente trabalho corresponde à análise conjunta da Constituição Federal de 1988 com o projeto da CMB a fim de delimitadamente verificar o alcance do que dispõe o texto constitucional e a força que ele proporciona à iniciativas como a citada haja vista as particularidades contextuais brasileiras A metodologia da pesquisa centrase no método de abordagem dedutivo pelo viés qualitativo pautado em técnicas de procedimento eminentemente bibliográfica e documental Tanto a Constituição Federal de 1988 quanto a Casa da Mulher Brasileira são projetos pendentes em termos de estabelecer igualdade material entre homens e mulheres bem como no embate contra a violência de gênero Para a supressão desta pendência a arma feminicida da negação do marcador social gênero na estrutura em que estamos inseridas do mesmo modo que a negação da violência de gênero devem ser combatidas por toda a sociedade Palavraschave Casa da Mulher Brasileira Constituição Federal de 1988 Gênero Violência contra mulheres Violência de gênero INTRODUÇÃO A Constituição Federal de 1988 ainda é objeto de complexos debates observado o contexto em que foi elaborada e a própria conjuntura peculiar brasileira Apelidada de Constituição Cidadã inovou em alguns pontos dentre eles a citação precípua do princípio da igualdade entre homens e mulheres que aparece no Art 5º inciso I de seu texto constitucional A previsão da igualdade é formal portanto não necessariamente representa a sua completa materialização Tratase de um longo processo como se verá por exemplo com a participação feminina na constituinte 1 Mestra em Teoria e História do Direito pelo Programa de PósGraduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC bolsista CAPES Graduada em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense UNESC Foi bolsista do Projeto de Extensão Amora capacitando mulheres em Direitos Humanos PROPEXUNACSAPEDIC UNESC Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Modelagem e Compreensão de Sistemas Sociais Direito Estado Sociedade e Política Pesquisadora no Programa de Extensão Lilith Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos Email julianaalicefghotmailcom Lattes httplattescnpqbr5551493221938223 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 48 Para um país historicamente construído sob o projeto colonial e seus reflexos não é de uma hora para outra que as mudanças sucedem ainda mais tendo em vista que o Brasil representa um contínuo ou seja sem a ocorrência de grandes rupturas Em decorrência de uma lógica machista e patriarcal a realidade das mulheres brasileiras é dramática sendo necessárias políticas públicas e reeducação social para enfrentamento a este cenário Para exemplificação e como objeto de análise desta pesquisa a iniciativa da Casa da Mulher Brasileira proposta e gestada durante o governo de Dilma Rousseff Assim são vários os entrelaçamentos possíveis diante de Constituição da República Federativa do Brasil política pública em questão situação das mulheres no país O problema que o trabalho busca responder é se a partir do projeto da Casa da Mulher Brasileira há pendência no cenário político brasileiro quando da questão da violência de gênero observado o corpo normativo constitucional O objeto do presente trabalho corresponde à análise conjunta da nossa Constituição Federal de 1988 com o projeto da Casa da Mulher Brasileira a fim de que delimitadamente verifiquese o alcance do que dispõe o texto constitucional e a força que ele proporciona à iniciativas como a CMB haja vista as particularidades contextuais brasileiras Muito já se debateu acerca da Constituição entretanto a discussão feminista vem ganhando mais espaço nos últimos tempos apesar de sempre presente mesmo que ignoradamente pelos escopos tradicionais A CMB por ser um projeto recente e inacabado urge por ser explorado teoricamente Sendo essa também a justificativa da pesquisa Para atender aos objetivos descritos convém elucidar a metodologia de trabalho ou seja o caminho percorrido no desenvolvimento da presente pesquisa Assim como método de abordagem centrase a pesquisa no método dedutivo pelo viés qualitativo pautado em técnicas de procedimento eminentemente bibliográfica no primeiro e terceiro momentos e documental no primeiro e terceiro momentos tendo em vista a coleta de dados em órgãos oficiais dos governos De forma a correlacionar as teorias feministas sobre gênero e violência contra mulheres com os dados obtidos principalmente sobre o projeto da Casa da Mulher Brasileira Deslindando deste modo que o trabalho se divide em três tópicos além da introdução e considerações finais A contribuição da pesquisa se dá em termos gerais pelo debate proposto a respeito do projeto da Casa da Mulher Brasileira marco para o cenário interno iniciado em 2015 carente de informações e inacabado Tal projeto analisado de forma aliançada ao texto constitucional pode servir de orientação para comensurar a questão da violência de gênero no país Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 49 1 A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988 A PROMESSA DO PRINCÍPIO DA IGUALDADE ENTRE HOMENS E MULHERES A Constituição Federal vigente no Brasil é datada de 1988 sua elaboração e promulgação se deu após 21 anos de regime ditatorial militar que se instalou e arquitetou o Estado através do autoritarismo A Constituição Cidadã como é chamada por alguns possui 250 artigos que normatizam e orientam sobre as seguintes temáticas dos princípios fundamentais dos direitos e garantias fundamentais da organização do estado da organização dos poderes da defesa do Estado e das Instituições Democráticas da tributação e do orçamento da ordem econômica e financeira e da ordem social Em cada dispositivo constitucional há um universo a ser explorado pelo contexto em que foi elaborado até a prática ou falta dela nos dias atuais Significativo mencionar que a conjuntura sob a qual a nossa Constituição Federal foi elaborada apresentavase caótica Após anos de uma Ditadura Militar que deixa até aos dias atuais marcas em nossa história representantes políticos movimentos sociais e civis se organizaram no sentido de pensar outras formas de governo e de Estado na lei e práxis Não houve de fato uma ruptura os trabalhos e alianças foram continuados sem proporcionar a pausa e o luto de que o país precisava O Brasil possui um cenário político econômico jurídico cultural e histórico próprio Suas especificidades vão desde os povos originários a chegada e invasão por parte dos colonizadores escravidão oligarquias golpes políticos Ditadura Militar de 1964 reconstrução de bases democráticas e mais golpes políticos Esse atravessamento de realidades resulta num país de colcha de retalhos isto é que ignora as oportunidades de construir ou desconstruir para reconstruir algo sólido que verdadeiramente condiga por exemplo com o Art 1º da Constituição Federal que diz ser a República Federativa do Brasil um Estado Democrático de Direito que tem como fundamentos a soberania a cidadania e a dignidade da pessoa humana por exemplo BRASIL 2019a Existe uma discussão doutrinária sobre qual o conceito de Constituição bem como qual seu objeto e seus elementos Tal debate não cabe neste momento entretanto em termos gerais podese dizer que a Constituição de uma país é a lei fundamental do Estado A lei máxima da qual derivam todas as outras sendo que quando alguma destas não a observa pode ser considerada inconstitucional e os atos decorrentes nulos Quanto a contextualização do período chamado de redemocratização de acordo com Rocha 2013 o regime instalado a partir de 1964 se equipou de características institucionais que definitivamente exigiram que a então redemocratização se desenvolvesse através de um processo constituinte pois a reiterada constitucionalização das normas antidemocráticas e das Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 50 medidas de exceção por parte dos militares e dos seus aliados civis associada à deficiência de legitimidade da ordem autoritária tornaram inevitável esse recurso a uma Assembleia Constituinte para a instauração de uma institucionalidade democrática no país Uma assembleia e duas constituintes Foram 583 dias de atividades o mais longo processo constituinte que se tem notícia O padrão decisório da ANC2 se constituiu naquele cenário num modelo conflitivoconsensual pelo qual os confrontos passaram para o texto final da Constituição de 1988 sob o modo de tratados agenciados pelas lideranças partidárias a representar os dois blocos dominantes Nove anteprojetos ou projetos gestados na longa jornada Constituinte Nacional ROCHA 2013 Pouco temse reportado entretanto grupos de mulheres movimentaram as estruturas no cenário constituinte com o objetivo de constar na norma máxima do país o requisito ou princípio da igualdade entre homens e mulheres Salete Maria da Silva 2011 em sua brilhante tese intitulada A carta que elas escreveram a participação das mulheres no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988 apresenta uma nova comprometida e inclusiva perspectiva sobre o processo constituinte nacional conforme segue A historiografia constitucional do Brasil assim como a literatura jurídica e política nacional embora tenha registrado e analisado importantes aspectos do último processo constituinte brasileiro ignorou por completo a contribuição feminina no âmbito das discussões que culminaram com a ampliação da cidadania e a consequente constitucionalização dos direitos das mulheres no país A ausência do mencionado conhecimento contribui para a chamada cegueira de gênero nos mundos jurídico e político da nação que por sua vez concorrem para a manutenção do status quo onde a visão hegemônica que se pretende neutra e universal promove a exclusão a opressão e a desigualdade de gênero em nossa sociedade SILVA 2011 p 9 Tendo em vista o que pontua Silva é possível estabelecer conexão com o que vem teorizando as feministas decoloniais como Maria Lugones 2014 e Yuderkys Espinosa 2016 sobre a pretensa neutralidade e universalidade que discursivamente através do tempo promovem a exclusão opressão e desigualdade entre determinados grupos sociais a observar por exemplo sua classe social raça gênero e sexualidade É estratégico o apagamento destes marcadores sociais e o que eles acarretam para determinados grupos pois como coloca Silva 2011 isto culmina numa cegueira para a manutenção do status quo Por mais que a historiografia tradicional tenham ignorado certas contribuições femininas ou feministas neste momento propõese um resgate De acordo com Silva 2011 2 Assembleia Nacional Constituinte Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 51 no dia 26 de agosto de 1986 ocorreu na capital do país o Encontro Nacional Mulher e Constituinte em que duas mil mulheres compareceram dividindose em doze grupos de trabalhos organizados por temas que discutidos e deliberados sobre as propostas estas seriam encaminhadas à Assembleia Constituinte Os grupos ou as comissoes eram formados por diversas participantes e organizados por uma coordenadora e uma relatora além de contar com advogadas Os temas do encontro giravam em torno de violência família e direito civil educação discriminação racial cultura terceira idade saúde trabalho no campo creche participação política trabalho nos centros urbanos e questoes nacionais e internacionais SILVA 2011 p 152 Apos décadas temas ainda atuais As contribuições partiram de diversos grupos entidades e conselhos de mulheres de todo o Brasil além de manifestaçoes individuais O resultado deste momento foi a elaboração da Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes SILVA 2011 p 154 Essa movimentação culminou no Art 5º do texto constitucional que em seu inciso I coloca que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigaçoes nos termos desta Constituição BRASIL 2019a PósConstituição Federal de 1988 diversas legislações foram elaboradas e promulgadas ou revistas como é o caso do Código Civil A nossa lei civil máxima vigente é datada de 2002 ou seja mais de uma década depois do texto constitucional O Código Civil em vigência realizou grande reforma em alguns aspectos como por exemplo no direito de família que culminou resultados positivos para as mulheres brasileiras tudo isto levando em conta justamente a nova ordem constitucional Nos últimos anos outras legislações seguindo a ordem constitucional e Atos e Acordos internacionais foram elaboradas como é o caso da Lei nº 11340 de 2016 a Lei Maria da Penha Estes são apenas alguns exemplos Ao passo que no plano das leis existe uma evolução na compreensão da realidade das mulheres brasileiras o plano fático resiste em acompanhar Neste sentido cabe pontuar o que a Plataforma do Mapa da Violência traz Somente em 2017 o Sinan Sistema de Informação de Agravos de Notificação recebeu 26835 registros de estupros em todo o país o que equivale a 73 estupros registrados a cada dia daquele ano Destes 89 tiveram mulheres como vítimas com o maior percentual no Acre 99 e o menor em São Paulo e Rio Grande do Sul 86 As mulheres também foram maioria entre as vítimas nos 209580 registros de violência física naquele ano Em todo o país elas foram 67 das pessoas agredidas fisicamente nos casos presentes no Sinan No Distrito Federal esse índice chegou a 75 e o mais baixo foi 54 no Amazonas Já o SIM Sistema de Informações sobre Mortalidade dá conta de que em 2016 58010 pessoas foram assassinadas no Brasil 92 delas eram homens Apenas em quatro Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 52 Estados a parcela de homens assassinados naquele ano fica abaixo de 90 88 em Mato Grosso do Sul e Roraima e 89 em Santa Catarina e São Paulo A maior parte das mulheres 30 foi morta em casa o que aconteceu para 11 dos homens Já a maior parte deles 46 foi morta em via pública caso de 29 das mulheres assassinadas naquele ano A perspectiva de gênero sobre os dados mostram que mulheres e homens são afetados de maneiras diferentes pela violência no país Assim como a perspectiva de raça dá conta de que negras foram maioria entre as mulheres assassinadas em 2016 64 e homens negros foram 68 do total de pessoas assassinadas no Brasil naquele ano O Paraná foi a unidade da federação onde mais mulheres foram assassinadas proporcionalmente à população em 2016 O Estado teve as maiores taxas de homicídios para mulheres negras 297 e não negras 448 a cada 100 mil habitantes do mesmo grupo demográfico A taxa nacional foi de 64 assassinatos de mulheres negras por 100 mil e 63 assassinatos de mulheres não negras O Piauí teve as menores taxas para os dois grupos mas as negras morreram cinco vezes mais do que as não negras no Estado com as taxas de 24 assassinatos por 100 mil para as primeiras e 45 para as últimas As taxas de homicídios para os homens são bem mais altas assim como a diferença entre negros e não negros A taxa nacional em 2016 foi de 735 assassinatos de homens negros por 100 mil e 254 de não negros O Distrito Federal teve as maiores taxas do país 1858 homens negros e 531 não negros mortos por 100 mil As menores taxas foram em São Paulo para o grupo de homens negros 239 e Alagoas 55 para não negros O Distrito Federal também teve as maiores taxas de estupro de mulheres e homens negros e não negros no país em 2017 Para as mulheres a taxa nacional foi de 247 estupros de negras a cada 100 mil e 175 de não negras MAPA DA VIOLÊNCIA 2019 sp grifos nossos As legislações de acordo com os dados levantados ainda não dão conta do plano fático Isto não quer dizer que elas são desnecessárias pelo contrário sem elas o quadro poderia ser pior Entretanto uma transformação racional social é imprescindível sendo isto possível inclusive por outros meios como por exemplo levantando debates coletivos a respeito das legislações brasileiras com a sociedade através de interação entre as universidades comunidades e representantes políticos Outra medida possível são as políticas públicas voltadas à estas questões a fiscalização por parte da sociedade para com o Poder Público exigindo seu cumprimento o que significa proceder de forma coerente com a própria Constituição Federal Tudo isto inevitavelmente está relacionado com um grande projeto de reeducação social Este projeto deve alcançar todas as instituições para que juntas trabalhem em prol da coletividade observando as especificidades e principais problemas apresentados pela realidade brasileira o que assemelha se ao Programa Mulher Viver sem Violência que resultou na Casa da Mulher Brasileira como se verá a seguir Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 53 2 A CASA DA MULHER BRASILEIRA UMA INICIATIVA DO GOVERNO DE DILMA ROUSSEFF PARA O ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES NO BRASIL A Casa da Mulher Brasileira éfoi uma das principais iniciativas do governo federal para o enfrentamento da violência contra as mulheres no Brasil Tal projeto foi articulado e realizado durante o mandato da presidenta Dilma Rousseff PT que o dispôs mediante o Decreto nº 80863 de 30 de agosto de 2013 instituindo o Programa Mulher Viver sem Violência Em termos gerais o objetivo éera expandir a rede de serviços voltados para as mulheres vítimas de violência e promover integração entre eles através de ações para além da implementação das casas como a ampliação da central telefônica Ligue 180 e campanhas de conscientização sobre o tema Seguem respectivamente os objetivos e diretrizes do programa Art 1º Fica instituído o Programa Mulher Viver sem Violência que objetiva integrar e ampliar os serviços públicos existentes voltados às mulheres em situação de violência mediante a articulação dos atendimentos especializados no âmbito da saúde da justiça da rede socioassistencial e da promoção da autonomia financeira 1º O Programa integra a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres e as ações de implementação do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres 2º A coordenação do Programa será de responsabilidade da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República 3º A ampliação e a integração dos serviços de que trata o caput deverá ser acompanhada da qualificação e da humanização do atendimento às mulheres em situação de violência Art 2º São diretrizes do Programa Mulher Viver sem Violência I integração dos serviços oferecidos às mulheres em situação de violência II transversalidade de gênero nas políticas públicas III corresponsabilidade entre os entes federados IV fomento à autonomia das mulheres e à garantia da igualdade de direitos entre mulheres e homens V atendimento humanizado e integral à mulher em situação de violência observado o respeito aos princípios da dignidade da pessoa humana da não discriminação e da não revitimização VI disponibilização de transporte à mulher em situação de violência para o acesso aos serviços quando não integrados da rede especializada de atendimento VII garantia e promoção de direitos das mulheres em situação de violência em especial do acesso à justiça VIII os eixos estruturantes do Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência contra as Mulheres e IX as diretrizes da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres BRASIL 2019b grifo nosso 3 Quem assina o decreto citado Dilma Rousseff Márcia Pelegrini Alexandre Rocha Santos Padilha Miriam Belchior Eleonora Menicucci de Oliveira Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 54 De acordo com o site da Biblioteca da Presidência a inauguração da primeira Casa da Mulher Brasileira ocorreu em Campo Grande no Estado de Mato Grosso do Sul no dia 3 de fevereiro de 2015 Na parte final do seu discurso de inauguração a então presidenta Dilma Rousseff declara Que essa Casa da Mulher que essa Casa da Mulher matogrossensedo sul seja uma casa onde nós vamos ter aqui um dos instrumentos maiores de liberdade Tolerância zero contra o agressor Tolerância zero contra a violência ROUSSEFF 2015a No dia 2 de junho de 2015 foi a vez da inauguração da Casa em Brasília no Distrito Federal No discurso desta data a presidenta afirma Meu governo tem uma dupla missão em relação às brasileiras prevenir e combater a violência cometida contra elas Mas tem também uma outra finalidade um outro objetivo que é criar as condições para que as mulheres conquistem cada vez mais autonomia econômica e poder de dirigir as suas vidas e de participar na sociedade As mulheres têm que ser sujeitos e protagonistas da sua própria vida ROUSSEFF 2015b No site oficial do governo do Distrito Federal a partir do espaço destinado à Secretaria de Estado da Mulher constam as informações necessárias sobre a Casa da Mulher naquela localidade descrevendoa como Um espaço de acolhimento e atendimento humanizado e tem por objetivo geral prestar assistência integral e humanizada às mulheres em situação de violência facilitando o acesso destas aos serviços especializados e garantindo condições para o enfrentamento da violência o empoderamento e a autonomia econômica das usuárias A Casa atua em parceria com os seguintes serviços especializados da rede de atendimento Delegacia Especializada de Atendimento à MulherDEAM Centros de Referência de Atendimento à MulherCEAM Casa Abrigo Defensoria Especializada Centro Judiciário da MulherTJDFT e Promotoria EspecializadaMPDFT SECRETARIA ESTUDUAL DA MULHER DO DISTRITO FEDERAL 2019 Informa ainda que as usuárias podem ser as mulheres a partir dos 18 anos em situação de violência de gênero e pessoas que assumam a identidade de gênero feminina Menciona os documentos necessários RG e CPF fazendo a observação de que o atendimento à mulher será realizado mesmo sem apresentação da documentação Todo o espaço e acolhimento é fornecido de forma gratuita Suas etapas consistem em 1 Recepção da usuária com esclarecimentos sobre os serviços e atendimentos oferecidos 2 Atendimento especializado por psicólogos eou assistentes sociais 3 Encaminhamento para atendimentos na própria casa ou na rede de serviços nos territorios SECRETARIA ESTUDUAL DA MULHER DO DISTRITO FEDERAL 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 55 As adolescentes de 12 a 18 anos incompletos após orientação na CMB serão encaminhadas à rede de proteção para crianças e adolescentes O funcionamento é das 8h às 19h de segunda à sextafeira sendo o prazo de execução do serviço variável conforme a necessidade da atendida e os tipos de atendimento individuais ou grupais de acordo com a especificidade de cada demanda Quanto a estrutura da Casa da Mulher Brasileira de acordo com o que consta no site oficial do governo do Distrito Federal se apresenta da seguinte forma A Casa da Mulher Brasileira possui uma estrutura que acompanha as diversas etapas pelas quais as mulheres passam a enfrentar de forma integral a violência Para tanto inclui em um mesmo espaço serviços das diferentes áreas envolvidas no atendimento tais como Recepção Acolhimento e Triagem Apoio Psicossocial Delegacia Especializada Centro Judiciário da Mulher Promotoria Especializada Defensoria Pública Serviço de Promoção de Autonomia Econômica e Brinquedoteca SECRETARIA ESTUDUAL DA MULHER DO DISTRITO FEDERAL 2019 Além das Casas citadas em Campo Grande e no Distrito Federal até o momento desta pesquisa outra que já este em funcionamento é a CMB de São Luís no Maranhão e em Curitiba no Paraná4 a Casa está aberta porém não tem a Delegacia da Mulher por falta de servidores A CMB do Distrito Federal tem encontrado dificuldades para seu exercício Em Roraima e São Paulo as Casas estão fechadas com planos de finalização5 Outras sequer tem estruturas previstas como é o caso de Santa Catarina6 Como citado anteriormente a construção da igualdade entre homens e mulheres num país como o Brasil não ocorre de forma súbita tratase de um processo Em termos políticos o país sofreu uma drástica modificação o que acarreta em consequências para projetos como este É sabido que no ano de 2016 Dilma Rousseff sofreu um processo de impedimento que a afastou de seu cargo assumindo interinamente o vicepresidente à época Michel Temer Este que terminou o mandato Em 2018 foi eleito presidente Jair Bolsonaro com promessas de campanha assumidamente machistas Em 2019 assumindo o cargo extingue alguns Ministérios e unifica outros Em resumo nomeia Damares Alves como ministra da Mulher da Família e dos Direitos Humanos Recentemente um levantamento divulgado pela Agência Pública mostrou que mesmo com R 136 milhões reservados no orçamento deste ano a ministra Damares Alves não gastou até hoje nenhum centavo com a construção da Casa da Mulher Brasileira uma das principais 4 Disponível em httpswwwcuritibaprgovbrlocaiscasadamulherbrasileiradecuritiba2117 5 Disponível em httpswwwmdhgovbrnoticiasspmnoticiasspmeprefeituradesaopauloacertam finalizacaodacasadamulherbrasileiracmbsp3jpgview 6 Disponível em httpsg1globocomscsantacatarinanoticia20190308projetodogovernofederalcasada mulherbrasileiranuncafoiinauguradaemscghtml Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 56 iniciativas do governo federal para o enfrentamento da violência contra a mulher no Brasil AGÊNCIA PÚBLICA 2019 A iniciativa da Casa da Mulher Brasileira representa um grande marco para o país haja vista seu próprio histórico Tudo isto entra na discussão do público versus privado Na modernidade em uma perspectiva liberal foram construídos estes dois espaços sendo o público destinado ao âmbito social e o privado para o âmbito doméstico Dentro disto a lógica construída de que o público pertence ao sujeito homem e o privado ao sujeito mulher o que vem sendo questionado pelas feministas em ampla escala temporal Apenas neste tópico cabem diversas ponderações que alargariam o debate É positivo ou não que existam estes dois espaços Há uma atravessamento atual entre publico e privado Se sim ou se não a serviço de quem Percebese atualmente uma utilização do público como se fosse privado ou seja como se fosse a extensão da própria casa dentro de uma representação teatral A sociedade como um todo desaprendeu a fazer o publico Diante de tais questionamentos partese para o momento final do trabalho de modo a refletir junto aos mecanismos e organizações internacionais o reflexo de suas contribuições no âmbito doméstico Nesta perspectiva Biroli 2018 p 49 argumenta que a disputa pelos limites do que é e do que não é político é um dos pontos principais de conflito do capitalismo tardio de acordo com a autora ela é marcada pela Ciência Política hegemônica e pensamento político mais geral de que a política é uma esfera distinta e antagônica relativamente à vida doméstica e ao mercado que constituiriam esferas privadas 3 OS MECANISMOS INTERNACIONAIS VERSUS A ARMA FEMINICIDA QUE É A NEGAÇÃO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO7 Para falar sobre desigualdade de gênero e violências perpetradas contra as mulheres é fundamental alocar que enquanto sujeitas mulheres estamos inseridas num contexto global que a depender da trajetória histórica daquela localidade esta conta com especificidades políticas econômicas jurídicas sociais e culturais próprias Dito isto existem múltiplas realidades que em algum ponto podem tocarse A partir deste sistema global pensamse políticas para a esfera doméstica muitas vezes atravessando as peculiaridades daquele local em específico De todo modo em termos de direitos humanos são elaborados e ratificados ou não pelos Estados Atos 7 Esta parte do trabalho em considerável parte foi retirada ou guiada pela Dissertação de Mestrado desta autora apresentada e aprovada no Programa de PósGraduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina cujo título é As legislaçoes referentes às mulheres posConstituição Federal de 1988 da crítica feminista decolonial diante da nova racionalidade neoliberal Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 57 e Acordos internacionais de forma que influenciam prática e por vezes apenas teoricamente o sistema interno O período entre 1975 e 1985 foi considerado como a Década da Mulher para a ONU Organização das Nações Unidas De acordo com Piovesan neste período feministas de todo o globo se movimentaram no sentido de formular propostas das mais diversas que tivessem relação com os direitos das mulheres A partir desta movimentação despontam convenções e protocolos Assim a ONU como entidade responsável por garantir a paz a nível internacional tendo em vista o período pós guerra propõe tais convenções atos acordos e protocolos a serem seguidos pelos países e nesta perspectiva erguese a questão dos direitos humanos da mulher na ordem internacional valor da igualdade baseado no respeito à diferença PIOVENSAN 2015 A Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher Nações Unidas 1979 foi ratificada pelo Brasil em 19848 Essa Convenção foi impulsionada pela proclamação de 1975 como Ano Internacional da Mulher e pela realização da primeira Conferência Mundial sobre a Mulher no México também em 1975 Em 2014 essa Convenção contava com 187 Estadospartes Seus fundamentos giram em torno da dupla obrigação de eliminar a discriminação e de assegurar a igualdade princípio vinculante e objetivo Segundo Piovensan um dos objetivos elencados por tal convenção é a da discriminação positiva que significa que os Estados adotem medidas especiais temporárias compensatórias para remediar situações históricas aliviando as condições resultantes de um passado discriminatório 2015 A Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher Convenção de Belém do Pará editada no âmbito da OEA Organização dos Estados Americanos em 19949 foi ratificada pelo Brasil em 1995 A Convenção de Belém do Pará é o primeiro tratado internacional de proteção dos direitos humanos a reconhecer de forma enfática a violência contra a mulher como um fenômeno generalizado que alcança sem distinção de raça classe religião idade ou qualquer outra condição um elevado número de mulheres PIOVENSAN 2015 Essas convenções propostas por órgãos internacionais e recepcionadas por determinados países aqui incluso o nosso podem ser questionadas se vistas pelas lentes de 8 Decreto n 89460 de 20011984 que foi revogado pelo Decreto n 4377 de 13092002 que Promulga a Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher de 1979 9 Decreto n 1973 de 01081996 que Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher concluída em Belém do Pará em 09061994 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 58 hoje olhando para trás mas é importante que se observem os contextos bem como cada ponto do globo Os cenários em que foram promulgadas essas convenções e cristalizadas para o nosso país eram distintos e precisam ser reconhecidos Em termos de Brasil quando se fala a respeito de violência contra mulheres o primeiro assunto a ser lembrado é o que se refere à Lei Maria da Penha que muitas e muitos não sabem mas a Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 que cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher10 foi uma sanção internacional sofrida por nosso país em decorrência da negligência e omissão em relação à violência doméstica tendo em vista o caso da Maria da Penha que chegou à jurisdição internacional devido a articulação de grupos feministas Em 1998 as organizações não governamentais CEJILBrasil Centro para a Justiça e o Direito Internacional e CLADEMBrasil Comitê Latino Americano do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher submeteram à Comissão Interamericana de Direitos Humanos OEA o caso de Maria da Penha Em 1983 ela sofreu uma tentativa de homicídio por seu então marido que atirou em suas costas deixandoa paraplégica Apesar de ter sido condenado pelos tribunais nacionais ele nunca foi preso e o processo ainda se encontra pendente devido aos sucessivos recursos de apelação contra as decisões do Tribunal do Júri Após 18 anos da prática do crime a Comissão Interamericana de Direitos Humanos condenou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica e recomendou dentre outras medidas o pagamento de uma indenização à vítima pelo Estado ver Informe da Comissão Interamericana de Direitos Humanos n 5401 de abril de 2001 wwwoasorg PIOVESAN 2015 p 373 É possível fazer uma entrelaçamento diante da discussão e conexão entre a Constituição Federal de 1988 mulheres mulheres feministas Casa da Mulher Brasileira e da presidenta diretamente envolvida Dilma Rousseff de acordo com o que apresenta Flávia Biroli O Brasil elegeu e reelegeu uma mulher Dilma Rousseff para a Presidência da República em 2010 e 2014 O golpe parlamentar que a afastou em 2016 foi marcado pela misoginia ativando estereótipos de gênero que pareciam ter sido empurrados para as franjas do debate político brasileiro nas últimas décadas Acumulamse no contexto atual investidas contra as mulheres na política contestações à sua competência como atores políticos e ações contrárias a direitos que foram estabelecidos como resultado de demandas e lutas políticas BIROLI 2018 p 17 De acordo com o Mapa da Violência de 2015 nosso país está no top 10 de 84 países analisados sobre a questão dos feminicídios Isto quer dizer que de oitenta e quatro países analisados o Brasil está entre aqueles mais inseguros para mulheres viverem Em nosso país 10 Nos termos do 8º do art 226 da Constituição Federal da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher altera o Código de Processo Penal o Código Penal e a Lei de Execução Penal e dá outras providências Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 59 falar sobre violência contra mulheres violência doméstica contra mulheres e violência de gênero não é exprimir opinião é lidar com fatos e dados É lidar com a realidade Existem discursos negando esta materialidade enquanto mulheres são abusadas violentadas e mortas por serem mulheres Por consequência da cultura do estupro pelo machismo enraizado na sociedade brasileira através dos séculos e pela história deste país que segue brutalmente ignorada muitas vezes rechaçada e com intentos de ser reescrita fantasiosamente Falar sobre mulheres não é perfumaria Em absolutamente área nenhuma Afinal metade da população é composta por estas sujeitas que sofrem com adversidades pelos corpos que ocupam Negar a forma como a sociedade está estruturada dentre tantas nuances pelo gênero é uma arma feminicida Negar que nosso país é extremamente violento para mulheres em razão do próprio gênero é uma arma feminicida Negar a violência de gênero que persiste em nosso país apesar dos mecanismos políticos e jurídicos é uma arma feminicida Negar políticas públicas que lidem e diminuam os nomes e não numeros de mulheres mortas em decorrência de serem quem são é uma arma feminicida Quando se nega um fato e a realidade negamse os instrumentos aplicáveis àquele fato e realidade o que acarreta no consequente e eterno ciclo da violência É irônico que a categoria gênero seja considerada o problema e não quem pratica a violência tendo em vista a própria questão do gênero Para Enrique Dussel 1997 todo sistema político possui um modelo prático e seja como for os sistemas contam com estabilidade pela funcionalidade institucional de suas partes Segundo o autor o sistema político é um sistema de sistemas que condiciona Neste caso analisando as esferas jurídica e política fazse possível a conexão com o que na América Latina configurase como a Teoria Crítica do Direito Os críticos do direito questionam a tradição teórica jurídica que enfatiza os aspectos formais do direito mas desconhece o fenômeno da historicidade da sua articulação com os níveis da ideologia e do poder que nega a relação de direito e política A teoria crítica latinoamericana recusa a ideia da construção do Direito como algo dissociado do resto quando ele na verdade perpassa por todos os campos sobretudo o da política Que é utilizado o Direito como mecanismo de hierarquias de poder a depender da ideologia e que contribui para a preservação desta relação entre direito e poder Os teóricos críticos questionam a pretensa neutralidade do jurista RUIZ 2013 Isto significa dizer que apesar de áreas distintas direito e política elas se atravessam assim como com as demais temáticas e materialidades Os recortes temporais e espaciais importam para análise pois cada contexto propicia uma realidade O direito interpretado como instrumento meramente formal resulta no descolamento da realidade quando da sua aplicação A Constituição Federal vigente foi elaborada num determinado contexto político o projeto da Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 60 Casa da Mulher Brasileira também Os objetivos de uma e de outro por vezes chocamse e por vezes não O cenário político tem interferido no direito e vice e versa e os reflexos disto pairam sobre a sociedade A materialidade não se dá por exemplo quando o próprio aspecto formal é negado A Constituição Federal de 1988 inaugurou em partes um novo caminho entretanto um pouco mais de três décadas depois encontra dificuldades de sair do plano formal para adentrar o material Projetos como a Casa da Mulher Brasileira são de extrema relevância para o cenário brasileiro porém é preciso que persistam no tempo e espaço para que de maneira eficaz atinjam seu propósito no caso da CMB que é o de proteger mulheres contra violência de gênero e por consequência coibila Verificase a pendência no combate à violência contra as mulheres no Brasil que por vezes se dá pela desatenção para com os direitos deste grupo social ou pelo ataque estratégico advindo por exemplo do próprio Estado CONSIDERAÇÕES FINAIS Observando a realidade brasileira para as mulheres foram pensadas maneiras de reparar tal desigualdade e violências vivenciadas Legislações foram elaboradas e promulgadas o que é importante mas não satisfatório A sociedade é complexa existem diversos sistemas e subsistemas As coisas não mudam de um dia para o outro de modo que é crucial trabalhar continuamente através da reeducação social reeducação crítica Em todas as esferas Obstáculos inclusive humanos sempre existiram A depender do momento histórico em maior ou menor proporção A Constituição Federal de 1988 já tem mais de três décadas e ainda assim existem obstáculos para sua efetivação A noção de igualdade entre homens e mulheres tem previsão constitucional Art 5º inciso I ainda assim do plano formal existem barreiras para transformarse em material A iniciativa da Casa da Mulher Brasileira surgida no governo de Dilma Rousseff hoje padece de continuação As CMBs precisam expandirse pelo país nos 27 Estados de acordo com o projeto inicial e então entrarem em funcionamento Como partiu do governo federal tais estabelecimentos cabe à ele prover de forma que agregue e para isso é fundamental o investimento de verba para estruturação para além do espaço físico também montar uma equipe em rede e transdisciplinar com profissionais capacitados de áreas de interesse para atender às demandas provenientes da violência de gênero para posteriormente transmitir às mulheres do país inteiro que essas Casas existem estão disponíveis e prontas para acolhêlas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 61 Tanto a Constituição Federal de 1988 quanto a Casa da Mulher Brasileira são projetos pendentes em termos de estabelecer igualdade material entre homens e mulheres bem como no embate contra a violência de gênero Estão pendentes mas são projetos surgidos elaborados e dispostos dentro do contexto brasileiro com o advento dos atos e acordos internacionais sobre o tema ratificados pelo Brasil Para a supressão desta pendência a arma feminicida da negação do marcador social gênero na estrutura em que estamos inseridas do mesmo modo que a negação da violência de gênero devem ser combatidas por toda a sociedade Retirar as mulheres da condição de violência movimenta todo o hierarquizado tecido social desmarginalizandoas realocandoas como sujeitas de direitos É secular a desigualdade entre homens e mulheres no Brasil mas há uma potente conjuntura feminista em desenvolvimento por isso há um forte embate de ideias e práticas É o que coloca Biroli Novas instabilidades e novos receios parecem fazer parte do cenário atual E há de fato razões para isso Estamos lidando com o aprofundamento de uma racionalidade política e econômica o neoliberalismo que dilui os laços de solidariedade e torna a vida mais precária Ao mesmo tempo os sentidos do feminino e do masculino estão sendo recodificados As relações de gênero sofreram transformações na vida efetiva no universo familiar nas relações de trabalho remunerado e na política Não existe igualdade nesses espaços o machismo e a homofobia não foram superados mas os movimentos feministas LGBT e antirracistas têm sido capazes de impor suas pautas ao debate público ampliando as controvérsias onde antes predominavam silêncio e naturalização Desse modo põe em xeque visões arraigadas e privilégios BIROLI 2018 p 205 Há uma disputa narrativa em jogo e como dito por Judith Butler em recente entrevista os movimentos conservadores e até fascistas que tem se alastrado em vários pontos do globo observado o sistema político e econômico vigente são uma reação não uma regressão Eles tentam conter os avanços feitos pelos movimentos sociais progressistas Para a autora há uma razão pela qual os homens se sentem livres para se desfazer da vida das mulheres é por estarem ligados uns aos outros através de um silencioso pacto de fraternidade BUTLER 2019 sp Nós por outro lado devemos quebrar este pacto e escancarálo REFERÊNCIAS AGÊNCIA PÚBLICA Após sete meses Damares não gastou um centavo com a Casa da Mulher Brasileira 16 ago 2019 Anna Beatriz Anjos e Bruno Fonseca Disponível em httpsapublicaorg201908apossetemesesdamaresnaogastouumcentavocomacasa damulherbrasileira Acesso em 17 de ago 2019 BRASIL Constituição 1988 Constituição da República Federativa do Brasil Brasília DF Presidência da República 2016 Disponível em Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 62 httpwwwplanaltogovbrccivil03ConstituicaoConstituicaoCompiladohtm Acesso em 08 de ago 2019a BRASIL Decreto nº 8086 de 30 de agosto de 2013 Institui o Programa Mulher Viver sem Violência e dá outras providências Brasília DF Presidência da República Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato201120142013decretoD8086htm Acesso em 20 de ago 2019b BRASIL Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos do 8º do art 226 da Constituição Federal da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher altera o Código de Processo Penal o Código Penal e a Lei de Execução Penal e dá outras providências Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato2004 20062006leil11340htm Acesso em 08 de ago 2019 BRASIL Presidenta 20112016 Dilma Vana Rousseff Discurso por ocasião de inauguração da primeira Casa da Mulher Brasileira Campo GrandeMS 03 fev 2015a Disponível em httpwwwbibliotecapresidenciagovbrpresidenciaexpresidentesdilma rousseffdiscursosdiscursosdapresidentadiscursodapresidentadarepublicadilma rousseffdurantecerimoniadeinauguracaodaprimeiracasadamulherbrasileiracampo grandems Acesso em 08 de ago 2019a BRASIL Presidenta 20112016 Dilma Vana Rousseff Discurso por ocasião de inauguração da Casa da Mulher Brasileira BrasíliaDF 02 jun 2015b Disponível em httpwwwbibliotecapresidenciagovbrdiscursosdiscursosdapresidentadiscursoda presidentadarepublicadilmarousseffduranteacerimoniadeinauguracaodacasada mulherbrasileirabrasiliadf Acesso em 08 de ago 2019b BIROLI Flávia Gênero e desigualdades os limites da democracia no Brasil 1 ed São Paulo Boitempo 2018 BUTLER Judith O neofascismo é uma reação não uma regressão Mídia Ninja 13 jul 2019 Entrevista concedida a Juan Manuel P Domínguez Mídia NINJA e George Yancy The New York Times Disponível em httpmidianinjaorgjuanmanuelpdominguezjudith butleroneofascismoeumareacaonaoumaregressao Acesso em 22 de ago 2019 DUSSEL Enrique D Filosofia da libertação São Paulo Loyola Piracicaba Ed UNIMEP 1977 284p DISTRITO FEDERAL Brasília Secretaria De Estado Da Mulher Casa da Mulher Brasileira CMB Disponível em httpwwwmulherdfgovbrcasadamulherbrasileira cmb Acesso em 08 de ago 2019 ESPINOSA Yuderkys De por qué es necesario un feminismo descolonial diferenciación dominación coconstitutiva de la modernidad occidental y el fin de la política de identidade Solar Año 12 Volumen 12 Número 1 Lima pp171 DOI 1020939solar2016120109 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 63 LUGONES María Rumo a um feminismo descolonial Estudos Feministas Florianópolis 223 935952 setembrodezembro2014 MAPA DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO Os gêneros e as raças da violência no Brasil Gênero e número Disponível em httpsmapadaviolenciadegenerocombr Acesso em 22 de ago 2019 PARANÁ Estado Prefeitura Municipal de Curitiba Unidade de Assistência Jurídica Casa da Mulher Brasileira de Curitiba Disponível em httpswwwcuritibaprgovbrlocaiscasadamulherbrasileiradecuritiba2117 Acesso em 22 de ago 2019 ROCHA Antônio Sérgio Genealogia da Constituinte do autoritarismo à democratização Lua Nova vol 88 2013 pp 2987 RUIZ Alicia Teoría crítica del Derecho y cuestiones de género Colección Equidad de género y democracia vol 6 2013 40 p SILVA Salete Maria da A carta que elas escreveram a participação das mulheres no processo de elaboração da Constituição Federal de 1988 2011 Tese doutorado Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal da Bahia Salvador 2011 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da Violência 2015 Homicídio de mulheres no Brasil 1ª Edição Brasília DF 2015 Disponível em httpswwwmapadaviolenciaorgbrpdf2015MapaViolencia2015mulherespdf Acesso em 24 abr 2018 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 64 O MEDO NA SEGURANÇA UM ESTUDO DE CASO SOBRE VIOLÊNCIA DE GÊNERO Gabriela Feldhaus de Souza1 Mareli Eliane Graupe2 RESUMO Este texto possui como objetivo refletir sobre a pesquisa etnográfica realizada em três instituições que oferecem serviços no campo da judicialização da violência de gênero contra as mulheres na cidade de Lages SC A pesquisa etnográfica faz parte da Etapa 2 do Projeto internacional e interinstitucional intitulado Judicialização da violência de gênero e difusão de práticas alternativas de justiça numa perspectiva comparada entre Brasil e Argentina Os principais referenciais teóricos utilizados são Miriam Pillar Grossi 1998 Theophilos Rifiotis 2012 Danielli Vieira 2012 e Maria Berenice Dias 2006 Neste artigo é abordada a história de uma mulher que foi atendida em três locais pesquisados e que fazem parte da Rede de Atendimento às Pessoas em Situação de Violências A pesquisa etnográfica ocorreu de outubro de 2018 a maio de 2019 Os dados apontam que neste caso específico mesmo após a separação física entre o casal a mulher ainda continuou sofrendo violências de gênero cometida pelo ex companheiro Este é um exemplo que representa a realidade de diversas mulheres brasileiras que vivem situações parecidas com essa e que continuam vinculadas em uma relação de violência mesmo após se desvencilhar dela Isso ocorre especialmente porque o homem não compreendeu que a excompanheira possui direito a uma vida digna Palavraschave Violência de gênero Judicialização Alienação parental INTRODUÇÃO A violência de gênero é um dos temas mais discutidos na contemporaneidade quando são discutidos os direitos das mulheres na sociedade Segundo Saffioti 2001 a violência de gênero é caracterizada como toda e qualquer violência dirigida a mulheres crianças e adolescentes de ambos os sexos cuja motivação envolve questões de gênero Este tipo de violência teve origem há muito tempo de acordo com Grossi 1998 surge a partir das relações de homens e mulheres na qual o masculino assume um papel privilegiado na sociedade ocidental enquanto que as mulheres são vistas como não participes na sociedade sendo a elas atribuídos papeis como cuidar dos filhos e do lar Tais atribuições resultam em papeis de submissão da mulher que perduram até os dias de hoje resultando ainda em tentativas de 1 Acadêmica de Psicologia pela Universidade do Planalto Catarinense UNIPLAC Bolsista do CNPq gabifeldhaushotmailcom Lattes httplattescnpqbr1176232910427595 2 PósDoutora pelo Programa Interdisciplinar em Ciências Humanas na Universidade Federal de Santa Catarina 2011 e pósdoutora pelo Programa de Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina 2012 Coordenadora do Grupo de Pesquisa Gênero Educação e Cidadania na América Latina GECAL mareligraupehotmailcom Lattes httplattescnpqbr8925934554152921 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 65 excluir mulheres de determinadas funções e papéis ou minimizando suas atribuições a fim de diminuilas socialmente O debate sobre as relações desiguais entre homens e mulheres começou a ganhar força no final dos anos 1970 por meio de mobilizações feministas GROSSI 1998 Assim surgiram diversos avanços para a luta contra a violência dirigida a mulheres como as delegacias da mulher DEAMs que permitiu a judicialização deste tipo de violência O presente artigo diz respeito a segunda etapa do projeto Judicialização da violência de gênero e difusão de práticas alternativas de justiça numa perspectiva comparada entre Brasil e Argentina que tem por objetivo pesquisar sobre a judicialização e práticas alternativas de atuação sob as violências de gênero O projeto contempla cinco municípios brasileiros Lages SC UruguaianaRS FlorianópolisSC Juiz de ForaMG e NatalRN e três municípios argentinos Buenos Aires Óran e Tartagal na Província de Salta Este projeto é coordenado pelo Professor Doutor Theophilos Rifiotis da Universidade Federal de Santa Catarina e cada município possui seu coordenador para melhor eficiência da pesquisa sendo que na cidade de LagesSC a coordenadora é a Professora Doutora Mareli Eliane Graupe da Universidade do Planalto Catarinense coordenadora do grupo de pesquisa em Gênero Educação e Cidadania na América Latina GECAL grupo do qual sou bolsista de extensão pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNPq O projeto possui como um de seus objetivos propor novas formas de resolução de conflitos para a temática da violência de gênero contra a mulher visto que a judicialização representa um grande avanço no combate à violência contra as mulheres porém de certa forma não soluciona todo o problema que segundo Rifiotis e Vieira 2012 é muitas vezes tratado de forma genérica por instituições de teor judicializante desconsiderando que as questões ali envolvidas são muito mais complexas A primeira etapa desse projeto consistiu no mapeamento de todos os serviços voltados ao atendimento de mulheres em situação de violência sendo cada grupo de pesquisa nos municípios acima citados responsável por realizar o mapeamento em sua cidade seja o serviço de teor judicializante ou não Neste primeiro momento nossa equipe em LagesSC mapeou 22 serviços voltados para este atendimento ocorrendo o contato inicial para o preenchimento de um formulário com o objetivo de conhecer os objetivos de cada instituição A partir deste primeiro contato foram selecionados oito destes serviços para acompanhar em campo sendo eles Delegacia de Proteção a Criança Mulher Adolescente e Idoso DPCAMI Centro de Estudo e Assistência a Saúde da Mulher CEASM Secretaria de Política para a Mulher e Assuntos Comunitários Secretaria da Mulher Rede Catarina da Polícia Militar 2ª Vara Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 66 Criminal da Comarca de LagesSC 10ª Promotoria de LagesSC Centro de Referência Especializado em Assistência Social III CREAS III e o Núcleo de Justiça Restaurativa de LagesSC Estes oito serviços foram selecionados a fim de contemplar não somente ações judicializantes do município mas também para conhecer outras formas de justiça não se abstendo daquelas já conhecidas como a Delegacia da Mulher A história que será relatada neste trabalho referese a uma mulher que foi atendida por diversos serviços voltados a situações de violência pois foi agredida por seu excompanheiro e pai de seus três filhos Durante a realização da etnografia podese perceber a relação desigual na qual o casal vivia caracterizando não só um tipo de violência mas várias delas Segundo Gregori 1993 a violência conjugal é vista como uma relação assimétrica onde o homem ocupa uma posição de poder usando de sua autoridade para punir mandar e agredir já a mulher assume o papel de lidar com as situações domésticas cuidar dos filhos e ser subordinada ao desejo do homem Após anos de violência a mulher consegue denunciar a situação e segue recebendo apoio de instituições para se desvencilhar da relação Neste trabalho abordaremos o caso de uma mulher que sofreu violência doméstica e familiar por vários anos consecutivos e que no ano de 2018 denunciou seu agressor Chamaremos esta mulher de Dandara que de acordo com Costa 2017 foi uma guerreira quilombola que liderou batalhas contra a coroa portuguesa sendo até hoje um símbolo de resistência O nome foi escolhido considerando a história de vida desta mulher e aqui serão explanadas suas vivências acompanhadas por três instituições que fazem parte da Rede de Apoio as Pessoas em Situação de Violências que contempla a DPCAMI CEASM Secretaria de Política para Mulher e Rede Catarina Essa rede formouse pela atuação em conjunto que estes serviços prestam para a comunidade visto que dificilmente uma mulher em situação de violência será atendida somente por uma instituição No caso que será relatado a seguir a mulher recebe atendimento dos quatro serviços mencionados 1 DESENVOLVIMENTO Meu primeiro contato com Dandara ocorreu na Delegacia de Proteção a Criança Adolescente Mulher e Idoso DPCAMI de LagesSC em meados de julho de 2018 Neste período eu coordenava um Grupo de Apoio a Mulheres em Situação de Violência juntamente à Psicóloga Policial Verônica Bem dos Santos Este projeto foi construído durante a minha graduação e acolhido para ser realizado na DPCAMI o qual não possui vínculo com o projeto de pesquisa Judicialização da violência de gênero e difusão de práticas alternativas de justiça numa perspectiva comparada entre Brasil e Argentina e ocorreu antes que as observaçoes do Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 67 projeto tivessem início No desempenho das ações do projeto Dandara foi uma das mulheres que recebemos e que na época já estava acolhida na Casa de Apoio a Mulher de LagesSC e foi encaminhada pela Secretaria de Política para a Mulher para participar do grupo A Casa de Apoio é um local escondido organizado para prezar a segurança de mulheres que vivem em situação de violência e são muitas vezes sustentadas financeiramente pelos agressores Deste modo a mulher pode com seus filhos ficar acolhida nesta casa onde receberão atendimento médico psicológico social e outros O deslocamento da Casa de Apoio até a escola local de trabalho ou outros compromissos é feito pelo carro e motorista da Secretaria de Política para a Mulher A Casa de Apoio é um serviço importante no município mas que não descarta outras formas de violência que ainda ficam presentes na vida da mulher mesmo após o rompimento com o agressor O fato de deixar a própria residência já é uma decisão difícil de tomar mesmo na situação em que vivem Além de ser necessário abrir mão de sua rotina para entrar em uma nova com horários atendimentos perdendo o livre arbítrio de ir e vir da casa a qualquer momento visto que se trata de um local escondido e as mulheres e crianças não podem sair da casa sozinhas Não ter mais a própria casa decidindo horários e tomando decisões é algo que as mulheres perdem por um período a fim de conseguirem viver em paz Dandara então chegou para o grupo anteriormente citado trazida pela Secretaria de Política para a Mulher já que estava acolhida na casa de Apoio e meu primeiro contato ocorreu através deste grupo que eu coordenava em parceria com a Psicóloga Verônica como mencionado acima Dandara então foi a única participante do grupo naquele dia eu não conhecia muito de sua história além do fato dela estar acolhida aguardei para que a mesma contasse sua história mas isso não ocorreu Acanhada e quase não verbalizando era difícil incentivála a expressarse e contar sobre o que estava sentindo Estava pálida usava vestes já desgastadas e não levantava o olhar para responder o que lhe era questionado e quando respondia demonstrava ficar envergonhada Fiquei meses sem ter notícias de Dandara pois ela não foi mais levada para o grupo que realizávamos na Delegacia devido a outros compromissos que ela tinha Até que iniciamos nossas observaçoes em campo para o Projeto Judicialização da Violência de Gênero e difusão de Práticas Alternativas de justiça numa perspectiva comparada entre Brasil e Argentina em outubro de 2018 e o primeiro local que fomos acompanhar foi a Secretaria de Política para a Mulher e Assuntos Comunitários No primeiro dia de observação acompanhei a Assistente Social da Secretaria a uma visita até a Casa de Apoio da Mulher Durante o caminho a Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 68 Assistente Social me explicou sobre o caso que eu iria conhecer e conforme as informações chegavam percebi que se tratava de Dandara A história de Dandara é complexa Ela é uma mulher que possui três filhos com idades de quatro a nove anos com seu exmarido e agressor que segundo relatos possui envolvimento com tráfico de drogas Dandara trabalhava por dia e sustentava sua casa pois seu exmarido era usuário de drogas e não ajudava financeiramente o lar Porém a casa em que viviam era dele Ela vivia sob constantes violências De acordo com a Lei nº 11340 de 2006 ou Lei Maria da Penha existem cinco tipos de violência Violência Moral Violência Psicológica Violência Sexual Violência Patrimonial e Violência Física BRASIL 2006 Tais tipificações existem para a compreensão de que não existe somente uma violência o que era comumente entendido por boa parte da população e também pelo fato de que raramente uma mulher sofre um único tipo de violência visto que as cinco geralmente estão interligadas Além de sofrer violência física Dandara não controlava o próprio dinheiro nem suas vestes pois sofria constantes humilhações e calúnias fazendo com que se fechasse sobre seus problemas Quando Dandara denunciou tais abusos que ocorreu por intermédio do Centro de Referência em Assistência Social CRAS de seu bairro ela e seu segundo filho com idade entre cinco e sete anos possuíam marcas de faca em seus corpos indicando um nível de tortura física sofrida por eles De acordo com o relato da Assistente Social Dandara foi acolhida pela viatura da Rede Catarina e pelo carro com profissionais da Secretaria de Política para mulher e neste momento ela não recebeu apoio de nenhum familiar Também foi relatado que no momento do acolhimento o agressor havia saído de casa e levado o segundo filho que tinha com Dandara exatamente aquele que continha às marcas pelo corpo e ninguém conseguia encontrálos Após muita busca descobriram que o menino estava na casa de uma irmã de Dandara que havia mentido sobre desconhecer o paradeiro da criança Não se sabe o porquê da mesma ter mentido mas tal fato revelou a fragilidade da estrutura familiar de Dandara A visita realizada neste dia à Casa de Apoio teve como objetivo notificar Dandara de que seu excompanheiro expressou o desejo de ver os filhos após quase um ano sem ter contato com eles Dandara recebeu a notícia ficou assustada mas disse que se os filhos desejassem ver o pai eles poderiam e assim ocorreu No dia 19 de outubro de 2018 juntamente com a Secretaria fomos com Dandara e os filhos até a casa em que vivia o seu exmarido de modo a entregarlhe a notificação sobre sua visita que seria assistida com data e local marcados A casa de madeira no final da rua era rodeada por uma passagem de esgoto aberto e um matagal alto dificultava o caminho até a residência A casa tinha muitas roupas jogadas e um odor Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 69 extremamente forte e pude observar um buraco no chão em um dos cômodos da casa que segundo a Assistente Social era usado como banheiro uma situação de higiene deplorável Foi no dia 22 de outubro de 2018 que conheci o agressor de Dandara Este foi até a Secretaria para conversar sobre a visita aos filhos muito tranquilo em suas respostas negou qualquer envolvimento com violência Assistente Social E as marcas que Dandara e seu filho tinham no corpo Agressor Eu não fiz nada Assistente Social Você está dizendo que não bateu nela Agressor A gente brigava por que ela tava de namoradinho ela gosta de dar umas namoradinhas Assistente Social Então você nunca bateu nela Agressor Ah a gente brigava e eu só dava umas pescoçadas nela Tal afirmação é uma tentativa de justificar a violência este é um resquício cultural dos antigos assassinatos em defesa da honra ainda presentes em nossa sociedade Segundo Grossi 1998 os assassinatos em defesa da honra foram questionados nos anos de 1970 com mobilizações feministas que criticavam mortes por amor ou em defesa da honra que ocorriam na época motivados pelo poder do homem sob a figura feminina e o sentimento de posse sob uma vida humana Essas mortes ainda ocorrem e surgem em nosso dia a dia com atitudes de tentativa de justificar uma violência utilizando a honra como argumento Na data em que esta conversa ocorreu o agressor foi acompanhado de sua atual esposa Esta foi chamada para conversar em particular com profissionais da Secretaria que a indagaram sobre o seu relacionamento que resultou na resposta afirmativa sobre estar bem Ela alegou estar morando com o então atual companheiro na residência visitada anteriormente pela equipe Há uma preocupação por parte da Secretaria da Mulher e também da Rede Catarina de que esta mulher também venha a viver uma situação de violência O próximo contato que tive com a trajetória de Dandara foi na data de oito de novembro de 2018 durante acompanhamento à Rede Catarina da Polícia Militar também pelo projeto de pesquisa internacional Os soldados da Rede Catarina foram chamados para acompanhar a visita assistida do agressor com seus filhos que aconteceria na Secretaria de Política para Mulher e Assuntos Comunitários Verificouse no sistema se havia a garantia do recebimento da Medida Protetiva De acordo com Souza 2008 a Medida Protetiva consiste em um método de proteção para a mulher vítima de violência e garante a não aproximação do agressor a essa vítima Quando descumprida a medida o agressor será preso caso seja pego em flagrante Dandara possui uma Medida Protetiva e ao conferirem no sistema confirmouse o recebimento da mesma pelo agressor Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 70 Neste dia o exmarido chegou antes dos filhos recebendo a explicação das condições da visita que foram aceitas sem questionamento Enquanto aguardávamos os dois soldados conversaram com o agressor PM Como você está Agressor Bem PM Então você está em um novo relacionamento Agressor Sim tô casado PM E como estão as coisas Agressor Tá tudo certo tudo tranquilo PM Espero que continue assim Agressor Ah cada caso é um caso Observase novamente uma tentativa de minimizar a agressão sofrida por Dandara por parte de seu exmarido A seguir ele é questionado sobre a Medida Protetiva PM Você sabe que ela tem uma Medida Protetiva né Agressor Eu não PM Ah você não sabe Você não recebeu a medida na sua casa Agressor Eu não recebi nada PM Mas tá aqui no sistema a tua assinatura no papel Agressor Ah Teve um dia que um cara foi na minha casa mas eu não recebi nada PM Então você não recebeu Mesmo com a sua assinatura aqui na minha frente Agressor Ah eu assinei e nem vi direito o que que era PM Você assinou uma folha sem ler o que estava nela e sem ouvir o Oficial e Justiça Agressor É é aham No momento em que Dandara e os filhos chegaram pude perceber a mudança em seu olhar Bem vestida e com um batom vermelho nos lábios possuía agora um olhar firme e sem medo Dirigiuse frente à frente com seu agressor que não falou sequer uma palavra para ela A visita foi extremamente rápida não durou mais de dez minutos e logo as crianças saíram da sala em que estavam com o pai e retornaram para a mãe que foi então encaminhada para a Casa de Apoio novamente Seu exmarido foi embora levando consigo a assinatura do divórcio entre ele e Dandara algo que o mesmo havia solicitado anteriormente visto que desejava casar se novamente Meu último contato com a história de Dandara ocorreu no último local que fomos a campo o Centro de Estudo e Assistência a Saúde da Mulher CEASM no dia dois de maio de 2019 O Assistente Social explanou sobre um caso que estavam acompanhando que logo identifiquei sendo a história de Dandara Nesta data fiquei sabendo que a mulher e os filhos já haviam saído da Casa de Apoio e com ajuda da Secretaria Dandara conseguiu juntar dinheiro Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 71 e alguns móveis residindo agora juntamente de outra mulher que conhecera na Casa de Apoio O fato é que Dandara perdeu a guarda dos filhos que foram levados para o acolhimento por uma denúncia que seu exmarido e agressor fez ao Conselho Tutelar por negligência Ao ler o relatório alguns fatos foram apresentados por exemplo que o pai das crianças frequentemente visitava a escola que estes estudavam sem o conhecimento de Dandara Quando questionados sobre a negligência da mãe as crianças alegaram ser uma boa mãe carinhosa e que ajudava nos deveres porém após alguns dias este discurso mudou O exmarido de Dandara presenteou os filhos com celulares com Whatsapp meio pelo qual ele conversava com frequência com as crianças principalmente sobre as atividades de Dandara A mãe saía de casa e começou um novo relacionamento o que em um primeiro momento não foi elencado como queixa para as crianças porém houve um dia em que as mesmas não voltaram para casa após o colégio e muito preocupada com os filhos Dandara veio a descobrir que estas estavam na casa do pai sem sua permissão ou aviso Quando voltaram da residência chegaram com um discurso diferente alegando que a mãe era ausente e que levava diversos homens para casa O fato das crianças mudarem seu discurso após o convívio com o pai pessoalmente e via celular apresenta indícios do que é denominado de Alienação Parental Segundo Dias 2006 a alienação parental envolve a criação de uma série de situações para dificultar ou impedir a visitação ou convivência de um dos pares com os filhos e isso pode ocorrer através de discursos histórias com a intenção de criar desavenças e sentimentos negativos na criança em relação a determinado genitor Ainda de acordo com Dias 2006 essas atitudes são moldadas pelo prazer de destruir o antigo parceiro a fim de tomar controle total daquilo que ele mais ama Este indício aponta que o agressor de Dandara pode ter manipulado o discurso das crianças visto que passaram a ser ríspidos e agressivos com a mãe após ganharem o celular e entrarem em constante contato com o pai Segundo Fonseca 2006 existem diversos motivos para que ocorra a alienação parental e quando esta é provocada pelo pai muitas vezes é motivada por vingança pela separação ou pela excônjuge ter seguido sua vida baseada no desejo em ainda manter o controle sob a família que antes lhe pertencia Neste ponto percebemos as coincidências dos fatos apresentados com os motivos que levam a alienação parental O fato de o agressor denunciar Dandara por negligência mesmo após ter fortes indícios de ele ter torturado fisicamente o segundo filho também aponta o forte desejo em punila por ter seguido sua vida e talvez não a real preocupação com o bemestar dos filhos Isso mostra também que mesmo após denunciá lo sair de casa viver quase um ano acolhida na Casa de Apoio e trabalhar para reconstruir sua Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 72 vida Dandara ainda vive uma situação de violência pelo mesmo agressor De acordo com Fonseca Ribeiro e Leal 2012 a violência moral uma das violências inclusas na Lei Maria da Penha constituise pela calúnia injúria e difamação da mulher já a violência psicológica trata se de uma forma muito silenciosa que resulta em danos emocionais como humilhações e diminuição do ser humano como sujeito Tais violências ainda estão sendo vividas por Dandara mesmo após o rompimento da relação Este fenômeno acontece porque a violência de gênero é um processo judicializado mas que ainda não supre todas as necessidades que uma situação de violência implica Segundo Rifiotis e Vieira 2012 a judiciaização é um movimento duplo que acaba desvalorizando outras formas de resolução de conflito pois a justiça penal é bastante genérica e a violência de gênero não pode ser tratada de forma tão simples É fato que a judicialização é um passo importante e que é resultado das lutas feministas que ocorreram no passado porém não basta somente judicializar uma violência sem ter o olhar amplo para o que está ocorrendo Dandara ainda vive uma situação violenta resultante de uma cultura de dominação e simplificação da violência visto que a judicialização não garante que a mulher não passe por novas situações de violência ou inclusive pela mesma violência sofrida anteriormente Isso apenas poderá ocorrer quando houver a compreensão de que a violência de gênero é resultado de uma cultura que possui resquícios históricos e que apesar da existência de uma lei que possui como objetivo proteger mulheres desta violência acaba nutrindo a compreensão de que não se pode perpetuar a violência de gênero porque existe uma punição para isso e não por que eu sujeito masculino não sinto que possuo poder ou permissão para tal Em meio a esse contexto de relações desiguais entre homens e mulheres existem crianças vivenciando diariamente este exemplo de relação Crianças que são participes de contextos de violência em uma perspectiva sistêmica sofrem consequências inevitavelmente e levam para seus relacionamentos futuros a tendência a repetir tais vivencias visto que era parte de sua realidade em sua família de origem FALCKE OLIVEIRA ROSA BENTANCUR 2009 Recebi a notícia de que a Rede de Apoio está ciente do caso todo de Dandara e que um trabalho em conjunto está sendo realizado para que esta recupere a guarda dos filhos porém este último contato com Dandara deixou aflição e inquietação sobre o sistema social em que vivemos onde fica cada vez mais clara a necessidade de alterar muito mais a cultura do que um serviço frisando os avanços que ainda necessitam acontecer no que diz respeito à judicialização e o combate à violência contra as mulheres Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 73 CONSIDERAÇÕES FINAIS A história de Dandara e possivelmente de muitas outras mulheres marcou significantemente minha vida tornandose um dos casos mais impactantes dentre todos que tive a oportunidade de acompanhar no projeto e até mesmo fora dele em meu estágio na DPCAMI Este caso representa a realidade de diversas mulheres brasileiras que vivem situações parecidas e que continuam vinculadas em uma relação de violência mesmo após desvencilharse dela Esta falha em nossa sociedade na qual a mulher ainda é mantida em uma situação de violência mesmo após recorrer aos serviços a ela disponibilizados incluindo a polícia que muitas vezes é o símbolo de segurança para elas é um grande fator que prejudica a busca por auxílio destas mulheres que podem sentir medo de conviver com essa situação não denunciando as violências sofridas e por vezes retornando para a relação violenta Essa situação ocorre porque no que diz respeito à judicialização ainda falta compreensão de que a violência de gênero deixa marcas na família e não somente na mulher e que trabalhando em conjunto com ambos é que poderão ocorrer melhorias no combate e prevenção das violências de gênero O exmarido de Dandara hoje vive com outra esposa na mesma casa que viveu com ela e talvez em uma relação que pode ser ou poderá ser igualmente violenta como a que teve com Dandara visto que ele ainda propaga a violência contra a ex mulher É importante lembrar também que existem crianças que observaram estes exemplos de masculinidade e feminilidade e de sua relação e que podem vir a perpetrar estes conceitos de violências em suas futuras relações visto que esta é a realidade que conhecem Nesta perspectiva é importante reconhecer as formas alternativas de justiça para a resolução destes conflitos não desvalorizando a Lei Maria da Penha nem as Medidas Protetivas que salvam diversas vidas mas considerando o trabalho de uma nova concepção de relação da vida conjugal sem violências É fato que hoje é extremamente necessário a existência de medidas judicializantes para a proteção de mulheres em situação de violência mas somente retirálas da relação não garante sua segurança e nem a segurança de outras mulheres mas cria a concepção de punição diante da violência Cabe o questionamento talvez em algum dia situações de violência não mais ocorrerão pelo medo da punição nele incumbido mas sim pela compreensão do respeito e equidade entre pessoas E não somente entre os envolvidos nesta relação mas sim em toda a sociedade Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 74 REFERÊNCIAS BRASIL Lei Maria da Penha Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato200420062006leil11340htm Acesso em 05 ago 2019 COSTA Cássia Fernanda de Oliveira Dandara dos Palmares e a Mulher Negra Contemporânea do discurso folclórico aos discursos de representatividade Anais do VIII Seminário de Estudos de Análise do Discurso Recife 2017 Disponível em httpanaisdoseadcombr8SEADPOSTERESPOSTER20E4CCostapdf Acesso em 07 ago 2019 DIAS Maria Berenice Síndrome da alienação parental O que é isso Jus Navigandi v 10 n 1119 2006 Disponível em httpsjuscombrartigos8690sindromedaalienacao parentaloqueeisso Acesso em 06 ago 2019 FALCKE Denise OLIVEIRA Denise Zagonel de ROSA Larissa Wolff da BENTANCUR Maria Violência conjugal um fenômeno interacional Rio Grande do Sul Contextos Clínicos São Leopoldo v 2 n 2 p 8190 dez 2009 Disponível em httppepsicbvsaludorgpdfcclinv2n2v2n2a02pdf Acesso em 02 ago 2019 FONSECA Denire Holanda da RIBEIRO Cristiane Galvão LEAL Noêmia Soares Barbosa Violência doméstica contra a mulher realidades e representações sociais Psicol Soc Belo Horizonte v 24 n 2 p 307314 ago 2012 Disponível em httpwwwscielobrpdfpsocv24n207 Acesso em 02 ago 2019 FONSECA Priscila Maria Pereira Corrêa da Síndrome de alienação parental Pediatria São Paulo 2006 v 28 n 3 p 162168 Disponível em httpwwwwilsoncamiloorgarquivos alienacaoparentalpdf Acesso em 07 ago 2019 GREGORI Maria Filomena Cenas e Queixas Um estudo sobre mulheres relações violentas e a prática feministas Rio de Janeiro Paz e Terra São Paulo ANPOCS 1993 GROSSI Miriam Pillar Rimando Amor e Dor reflexões sobre a violência no vínculo afetivoconjugal In GROSSI Miriam Pillar PEDRO Joana Maria orgs Masculino e feminino plural gênero na interdisciplinaridade Florianópolis Ed Mulheres 1998 Disponível em httpsrepositorioufscbrbitstreamhandle1234567891248grossiri mandoamorcomdorpdfsequence1 Acesso em 06 ago 2019 RIFIOTIS Theophilos VIEIRA Danielli Um Olhar Antropológico Sobre Violência e Justiça Etnografias Ensaios e Estudos de Narrativas Florianópolis Edufsc 2012 SAFFIOTI Heleieth Iara Bongiovani Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero Cad Pagu Campinas n 16 p 115136 2001 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS010483332001000100007 Acesso em 06 ago 2019 SOUZA Sérgio Ricardo Comentários à Lei de Combate à Violência Contra a Mulher Curitiba Juruá 2008 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 75 O PARADOXO DA CRIMINALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA A MULHER A INADEQUAÇÃO DA LÓGICA PUNITIVISTA NA CRIMINOLOGIA FEMINISTA Lucely Ginani Bordon1 RESUMO O objetivo deste trabalho é evidenciar por meio da construção de uma Criminologia Feminista que a criminalização da violência contra a mulher não é capaz de proteger as mulheres e transformar as estruturas sociais patriarcais Para tanto o método utilizado na pesquisa foi o dialético por contrapor ideias entre as Criminologias Críticas e o movimento feminista utilizando as técnicas da revisão bibliográfica e documental em uma abordagem qualitativa do fenômeno da violência de gênero contra a mulher com o objetivo inicialmente explicativo mas sobretudo exploratório dada a modernidade da discussão e a carência de base teórica sólida da Criminologia Feminista Assim a partir de uma análise criminológica crítica das origens do sistema penal demonstrase como o capitalismo age por meio da seletividade do punitivismo e do encarceramento para o controle das classes sociais com o fim de manter a estrutura hierarquizada de poder Isto posto ao estabelecer uma epistemologia com base no gênero buscase construir uma Criminologia Feminista elucidando como o patriarcado e o capitalismo relacionamse como sistemas de opressão Para então demonstrar o paradoxo da lógica punitivista de criminalização da violência de gênero contra a mulher e a sua falibilidade em promover mudanças estruturais na sociedade patriarcal e machista Palavraschave Violência de gênero contra a mulher Sistema penal Criminologia crítica Criminologia feminista INTRODUÇÃO A violência de gênero contra a mulher precisa ser compreendida como fenômeno estrutural e estruturante da sociedade isto é por mais que se manifeste de forma individualizada e interpessoal ela faz parte de um sistema de exploração opressão e exclusão do feminino A partir disso as manifestações de segmentos dos movimentos feministas que clamam pelo rigor penal por meio da criminalização da violência de gênero contra a mulher acabam aliandose ao discurso punitivista e expansionista do Direito Penal gerando um verdadeiro paradoxo entre seus ideais emancipadores Em uma tentativa conciliatória entre a Teoria Feminista e a Criminologia Crítica para construção da Criminologia Feminista o presente trabalho busca demonstrar que a 1 Advogada Mestranda pelo Programa de PósGraduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN Membra do Grupo de Pesquisa em Direitos Fundamentais e a Linguagem no Direito Criminal e do Projeto Criminalidade violenta e diretrizes para uma política de segurança publica no Estado do Rio Grande do Norte da Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN lucelyginanihotmailcom Lattes httplattescnpqbr9196999184755303 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 76 criminalização da violência de gênero contra a mulher não é um meio capaz de proteger as mulheres e de transformar as estruturas sociais patriarcais Para tanto o método utilizado na pesquisa foi o dialético justamente pela dinâmica de contraposição dos fundamentos teóricos da Criminologia Crítica e da Teoria Feminista e pela exploração das contradições do uso dos discursos criminalizantes pelos movimentos feministas para produção de um conjunto de processos nãoestáticos de conhecimento utilizando as técnicas da revisão bibliográfica e documental em uma abordagem qualitativa do fenômeno da violência de gênero contra a mulher com o objetivo inicialmente explicativo mas sobretudo exploratório dada a modernidade da discussão e a carência de base teórica sólida da Criminologia Feminista Assim dividida em três partes a pesquisa inicialmente propõese analisar a partir de uma Criminologia Crítica as origens do sistema penal O objetivo é demonstrar como o capitalismo age por meio da seletividade do punitivismo e do encarceramento para o controle das classes sociais e manutenção da estrutura hierarquizada de poder evidenciando por conseguinte a ilegitimidade e a ineficácia do Direito Penal como instrumento de garantia da paz social Isto posto em sua segunda parte ao estabelecer uma epistemologia com base no gênero o trabalho adota a visão da Criminologia Feminista elucidando como o patriarcado e o capitalismo relacionamse como sistemas de opressão E por último expõese as razões da falibilidade da criminalização da violência de gênero contra a mulher para promover mudanças estruturais na sociedade patriarcal e machista Para tanto buscase evidenciar o paradoxo na utilização do sistema penal punitivista através da demanda pela criminalização da violência contra a mulher já que é exatamente esse sistema o responsável pela opressão pela qual as mulheres buscam libertarse 1 O DIREITO PENAL COMO FORMA DE CONTROLE SOCIAL NO MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA A punição jurídica e o sistema penitenciário tornaramse a primeira resposta do senso comum à insegurança pública criando uma ideia de sua própria inevitabilidade e da retidão necessária do status quo GARLAND 2008 p 3 Assim ao discutir política penal acabase por presumir a atual configuração institucional ao invés de questionála Sem um questionamento da forma jurídica o Direito Penal tornouse mera estratégia de política pública um fenômeno ahistórico Tal visão acrítica do direito e do regime de punição naturaliza as relações de poder no capitalismo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 77 A globalização neoliberal caracterizase por radicalizar os potenciais bélicos do maniqueísmo isto é a ideia de que existe um mal a ser combatido pelos que são de bem e utilizase do Estado penal e do senso comum midiático que agiganta e banaliza a criminalização assumindoa como forma prioritária de controle social ANDRADE 2003 p 25 Esse controle penal na globalização orientase simbolicamente na direção de todos os problemas2 e instrumentalmente na direção dos excluídos dos benefícios da economia globalizada ANDRADE 2003 p 25 Então a globalização leva a exclusão pois já não há mais explorado o explorado virou excluído ZAFFARONI 2005 p 23 Dessa forma a população que se encontra excluída de um pacto social construído sob as bases da desigualdade e das relações hierárquicas de poder tornase alvo da promoção de políticas criminais genocidas pelo Estado Neste sentido Wacquant 2004 p 51 assevera que à atrofia deliberada do Estado social corresponde a hipertrofia distopica do Estado penal a miséria e a extinção de um têm como contrapartida direta e necessária a grandeza e a prosperidade insolente do outro Loic Wacquant 2003 p 21 denomina esse modelo de atuação do Estado de gestão penal da pobreza em que a penalização serve como uma técnica do Estado para invisibilizar os problemas sociais Assim o controle penal globalizado radicaliza a função simbólica do Direito Penal através de uma hiperinflação legislativa ou seja a promessa e a ilusão de resolução dos mais diversos problemas sociais por meio do Direito Penal ao tempo em que redescobre os novos inimigos o mal contra os quais deve guerrear terroristas traficantes semteto semterra etc ANDRADE 2003 p 25 Ademais a suposta proteção integral do sistema penal não passa de uma alegoria ideológica conforme Pachukanis 1988 p 185 posto que esconde seus objetivos reais de proteção da propriedade privada e da luta contra as classes exploradas tudo isso sob a aparência de correção pessoal Portanto segundo Baratta 2002 p 206207 o modelo de uma sociedade socialista poderia prescindir cada vez mais do Direito Penal e do cárcere já que este é um instrumento 2 Aqui cumpre expor o pensamento de Eugenio Raúl Zaffaroni sobre o expansionismo penal na era da globalização Mas o que está acontecendo no nosso âmbito ou nas nossas legislaçoes penais Esses políticos desnorteados preocupados fundamentalmente com a imagem esses políticos tem de simular que estão providenciando soluções para os grandes problemas sociais Tem de projetar essa imagem É uma necessidade para eles É uma necessidade da lógica teatral enviar essa mensagem E acharam que a maneira mais simples de enviar essa mensagem é a lei penal Todo problema social vira problema penal a droga a violência a psiquiatria tudo vira penal tudo Nada acontece sem que algum legislador algum deputado algum senador não faça um projeto de lei penal Não vão fazer projetos de leis administrativas É mais complicado Mas lei penal qualquer idiota faz um projeto e uma mensagem ainda mais idiota que o projeto Isso é muito barato A lei penal não custa E o sujeito tem cinco minutos na televisão ZAFFARONI 2005 p 24 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 78 precípuo de produção e de reprodução de relações de desigualdade de conservação da escala social vertical e das relaçoes de subordinação e de exploração do homem pelo homem 11 Capitalismo relações de poder e disciplina breve análise histórica e sociológica da origem do cárcere e da pena Conforme a tese de Georg Rusche e Otto Kirchheimer 2004 p 20 cada modo de produção descobre o sistema de punição que corresponde às suas relações produtivas Logo é preciso observar a pena como parte da construção social de uma política historicamente determinada pelo capital para um controle social coercitivo que busca manter as estruturas de poder e dominação Na sociedade feudal précapitalista o cárcere não se configurava como pena de direito uma vez que a equivalência medida pelo tempo um quantum de liberdade proporcional ao delito cometido surge apenas no modo de produção capitalista MELOSSI PAVARINI 2006 p 21 Com a dissolução do mundo feudal ao longo dos séculos XV e XVI e a concomitante fase de acumulação primitiva processo de separação do produtor dos meios de produção ocorreu uma intensa migração dos camponeses para as cidades atraídos pelo desenvolvimento econômico e o comércio As cidades passaram a abrigar uma massa de desempregados expropriados vagabundos e bandidos caracterizando a formação histórica do proletariado MELOSSI PAVARINI 2006 p 334 Como resposta do Estado a esse fenômeno espalharamse por toda Europa as casas de trabalho e casas de correção workhouses ou bridewells na Inglaterra rasphuises tuchthuises ou spinhuises na Holanda que buscavam resolver os problemas da exclusão social do início do capitalismo por meio do isolamento e da imposição de trabalhos forçados para disciplinar aqueles que possuíam comportamento de insubordinação social menos grave como a vagabundagem mendicância e recusa a trabalhar nos termos da legislação Essas instituições carcerárias tentavam constranger os recémchegados do campo a se adaptar à vida urbana e manufatureira com o objetivo de reformar os internos por intermédio do trabalho obrigatorio e da disciplina desencorajar a vagabundagem e o ócio e assegurar o autossustento dos internos mediante o trabalho MELOSSI PAVARINI 2006 p 22 e p 36 Dessa forma Melossi 2006 p 61 demonstra como foi necessário um longo período de tempo para que o modo de produção capitalista destruísse a capacidade residual de resistência do proletariado pautada no velho modo de produção e como a prisão desempenhou um papel fundamental nesse processo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 79 Para Foucault 1993 p 140 esse foi o momento de nascimento das disciplinas que visam não apenas aumentar a habilidade dos corpos tampouco promover unicamente sua sujeição mas sim produzir corpos que sejam simultaneamente dóceis e úteis3 O poder disciplinar por meio da prisão buscava transformar o corpo em força de trabalho e o tempo em tempo de trabalho isto é transformar a vida mesma do homem em força produtiva O poder disciplinar foi portanto instrumento fundamental para a implantação do capitalismo industrial FOUCAULT 2005 p 423 Destarte enquanto no século XIX diante da demanda do capitalismo industrial por mão de obra o sistema prisional exercia o controle inclusivo de pessoas em processos disciplinadores com o fim de transformálas em mão de obra assalariada durante o fim do século XX e início do XXI o sistema penal passa a exercer o controle da disciplina de forma excludente apenas sobre as populações perigosas suprindo a necessidade de mão de obra informal do capitalismo pós industrial Nesse sentido com as mudanças nas relações de produção capitalistas no século XX a instituição penitenciária tornase obsoleta e incapaz de se encaixar em suas funções primitivas Mas este não seria o seu fim Paradoxalmente a crise do sistema carcerário o relegitimou a ser sobreutilizado Para Foucault 1993 p 2089 apesar da instituição penitenciária ser considerada falida por inúmeros críticos desde o seu surgimento as reformas funcionam como um programa da própria prisão que fizeram parte de seu funcionamento em toda a sua história 12 Seletividade penal labelling approach e controle social uma análise criminológica crítica do sistema penal Para Juarez Cirino dos Santos 2006 p 5 a linha de pesquisa crítica da criminologia insere as questões do crime e do controle social na estrutura econômica e no sistema de poder político e jurídico das sociedades pensada através da categoria teórica do marxismo e fundada no conceito de modo de produção da vida social que exprime a integração das forças produtivas 3 Na sociedade de produção de mercadorias a reprodução ampliada do capital pela expropriação de maisvalia da força de trabalho a energia produtiva capaz de produzir valor superior ao seu valor de troca salário como ensina Marx pressupõe o controle da classe trabalhadora na fábrica instituição fundamental da estrutura social a coação das necessidades econômicas submete a força de trabalho à autoridade do capitalista fora da fábrica os trabalhadores marginalizados do mercado de trabalho e do processo de consumo a chamada superpopulação relativa sem utilidade direta na reprodução do capital mas necessária para manter os salários em níveis adequados para a valorização do capital são controlados pelo cárcere que realiza o papel de instituição auxiliar da fábrica Assim a disciplina como política de coerção para produzir sujeitos dóceis e úteis na formulação de Foucault descobre suas determinações materiais na relação capitaltrabalho assalariado porque existe como adestramento da força de trabalho para reproduzir o capital SANTOS 2006 p 6 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 80 materiais em determinadas relações de produção históricas nas quais se manifesta a luta de classes da formação social capitalista Nesse sentido a passagem à Criminologia Crítica ocorre com a busca pela construção de uma teoria materialista ou seja econômicopolítica do desvio dos comportamentos socialmente negativos e da criminalização um trabalho que leva em conta instrumentos conceituais e hipoteses elaboradas no âmbito do marxismo Mediante a oposição do enfoque biopsicologico ao enfoque macrossociologico a Criminologia Crítica historiciza a realidade comportamental do desvio e ilumina a relação funcional ou disfuncional com as estruturas sociais com o desenvolvimento das relaçoes de produção e distribuição BARATTA 2002 p 15960 A Criminologia Crítica parte da perspectiva de que a criminalidade não possui status ontológico ligado a certos comportamentos de indivíduos cujo estudo específico determinará as causas do desvio mas é todavia uma qualidade atribuída aos mesmos mediante uma dupla seleção a criminalização primária seleção dos bens protegidos penalmente e dos comportamentos ofensivos destes bens descritos nos tipos penais e a criminalização secundária seleção dos indivíduos estigmatizados entre todos os indivíduos que realizam infraçoes a normas penalmente sancionadas BARATTA 2002 p 161 Por conseguinte mais apropriado que falar da criminalidade e do criminoso é falar da criminalização e do criminalizado sendo esta uma das várias maneiras de construir a realidade social ANDRADE 2003 p 41 Compreendendo o desvio social como uma construção resultante das interações sociais o enfoque da teoria do etiquetamento rompe com a criminologia tradicional ao perceber que o desviocrime e o desviantecriminoso não são dados préconstituídos à experiência De tal modo um determinado comportamento ainda que desviante em relação às normas sociais somente será assim definido caso haja reação social ao ato BARATTA 2002 p 8687 Logo o desvio também não é uma qualidade presente na conduta por si só mas surge da interação entre a pessoa que comete o ato e aqueles que reagem perante o mesmo ANDRADE 2003 p 42 Neste sentido o labeling approach é uma revolução epistemológica surgida a partir de uma sociologia criminal e que tem se ocupado principalmente com as reações das instâncias oficiais de controle social consideradas na sua função constitutiva em face da criminalidade e o seu efeito estigmatizante BARATTA 2002 p 867 Dessa forma o papel constitutivo do controle social na construção seletiva da criminalidade a partir do labelling approach desloca o interesse cognoscitivo e a investigação Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 81 das causas do crime da pessoa do autor do seu meio e mesmo do fatocrime para a reação social da conduta desviada em especial para o sistema penal ANDRADE 2003 p 42 A partir disso a definição de crime precisa ser compreendida através da existência de uma ordem social hegemônica com seus interesses e privilégios de classe O olhar é para a busca de compreensão dos processos de incriminação indagando não so à maneira por que o delinquente chegou à conduta formalmente punível mas com ênfase peculiar a outra questão em geral obscurecida ou abandonada essa incriminação deve ser mantida LYRA FILHO 1972 p 24 Isso significa afirmar que uma das principais bases para os estudos criminológicos críticos é a análise da seletividade do sistema penal e as funções simbólicas e reais de suas formas e instituições de controle social 2 GÊNERO PATRIARCADO E FEMINISMOS A CONSTRUÇÃO DE UMA CRIMINOLOGIA FEMINISTA A ordem patriarcal da sociedade é responsável pela divisão estereotipada dos papéis de gênero construídos no masculino e feminino que resulta nas relações desiguais de poder a partir do paradigma de gênero Nesse sentido a cultura patriarcal naturaliza a desigualdade de gênero formando uma sociedade baseada na dominação masculina Para Bourdieu 2014 é mediante a denominada violência simbólica que a ordem androcêntrica se reproduz A absorção social dos estereótipos de gênero é construída a partir da neutralidade e da universalidade do masculino que ao se naturalizar como programa social aplicado a todas as coisas do mundo torna invisível a relação de dominação ao sempre caracterizado feminino Nessa perspectiva Bourdieu 2014 p11 continua explicando que a diferença biológica entre os sexos entre o corpo masculino e o corpo feminino através sobretudo da anatomia dos respectivos órgãos sexuais pode ser vista como justificativa natural de uma diferença que é socialmente construída entre os gêneros e especificamente na divisão social do trabalho Conforme a compreensão de Joan Scott 1999 p 424 gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e uma forma primária de significação das relações de poder Assim os estudos de gênero permitiram perceber a construção social dos papéis dos homens e das mulheres para então rejeitar as justificativas biológicas usadas para legitimar a subordinação da mulher Ademais a dominação masculina naturalizadora da inferioridade das mulheres a consequente divisão sexual do trabalho e a condição monolítica atemporal e excludente da ciência resultou na exclusão feminina tanto da produção da ciência como de sua história Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 82 BANDEIRA 2008 p 213 A produção científica moderna baseouse em argumentos naturalistas e de neutralidade da ciência por uma perspectiva e linguagem androcêntrica resultando em uma ethos totalizante masculinista e universalista BANDEIRA 2008 p 208 O conceito relacional de gênero ensejou uma nova produção científica ao questionar o sistema de pensamento predominante e sobretudo possibilitou transformações nas estruturas sociais ao reagir a ordem patriarcal BANDEIRA 2008 p 211 Portanto é preciso reformular o conhecimento científico a partir de uma epistemologia feminista que salvaguarda o paradigma de gênero consolidado como uma categoria analítica4 Em decorrência disso Mendes 2014 p 85 fala em giro epistemológico pois ao adotar paradigmas feministas rompese com o falso sujeito cognoscente universal masculino que deixou às mulheres o papel da marginalização de suas próprias vozes Destarte para Sandra Harding 1993 p 10 a visibilidade das experiências femininas fica obscurecida nas categorias e conceitos teóricos tradicionais porque certamente não foram as experiências das mulheres que fundamentaram qualquer dessas teorias e não foram essas experiências que geraram os problemas que essas teorias procuraram resolver nem serviram elas de base para testar a adequação dessas teorias Logo as relações de gênero não podem ser simplesmente acrescentadas aos discursos sob pena de distorcêlos e de deturpar os próprios temas feministas Por isso também para Harding a Teoria Feminista inaugura uma nova episteme científica Não obstante Baratta 1999 p 39 entende que o paradigma de gênero ao ser estudado dentro do Direito Penal e da Criminologia só pode ser compreendido a partir da Criminologia Crítica ou seja uma Criminologia Feminista só poderia desenvolverse cientificamente na perspectiva epistemológica da Criminologia Crítica Isso porque para o autor a Criminologia Crítica preocupouse em estudar a interação entre os processos de etiquetamento e de reação social sobre comportamentos desviantes baseados na distribuição desigual do poder Isto é o processo de criminalização e a percepção ou construção social da criminalidade vinculamse às variáveis de que dependem na sociedade as posições de vantagem e desvantagem de força e de vulnerabilidade de dominação e de exploração de centro e de periferia ou seja supostamente onde o paradigma de gênero estaria inserido BARATTA 1999 p 41 4 No entanto apesar da impossibilidade de maiores aprofundamentos teóricos em um curto artigo científico é importante não se olvidar da necessidade de incluir os novos atores sociais nas análises criminológicas pois estes sujeitos não são mais genéricos são multifacetados e estão sendo subjugados por diversas violências sejam elas decorrentes de criminalizações ou vitimizações Portanto os próprios movimentos feministas precisam repensar constantemente suas categorias uma vez que atualmente o marco do gênero não é mais capaz de explicar sem uma necessária interseccionalidade as violências sofridas pelas mulheres trans negras indígenas pobres mães etc CAMPOS 2017 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 83 A Criminologia Crítica apoiase em pressupostos androcêntricos pois ao focar na criminalização do sujeito da base da pirâmide econômica ignora que ele corresponde a uma caracterização da masculinidade Aliás a própria concepção de cárcere estudada anteriormente na perspectiva da Criminologia Crítica como uma novidade moderna resultante das necessidades burguesas do capitalismo industrial não leva em consideração o processo de reclusão imposto às mulheres ainda durante o medievo nos conventos que eram verdadeiras instituições de disciplinamento correções e muitas vezes com penas de caráter perpétuo aos quais as mulheres inadequadas eram enviadas MENDES 2014 p 1405 Conforme Salo de Carvalho 2012 p 160 a Criminologia Feminista foi capaz de superar a dicotomia entre as micro criminologia liberal e macrocriminologias Criminologia Crítica demonstrando um caminho para a renovação do pensamento crítico Isto porque através de elementos fornecidos a partir da investigação de situações de vitimização e de criminalização concretas dos grupos marginalizados que não ignoram violências institucionais a Criminologia Feminista permitiu ver como as vulnerabilidades extrapolam os âmbitos até então apontados pela Criminologia Crítica e são apropriadas e redimensionadas em novas formas de violência Para tanto as categorias de patriarcalismo ao lado de capitalismo e relaçoes de gênero ao lado da luta de classe e as formas de dominação masculinas sexistas sobre a mulher ao lado da dominação classista ANDRADE 2003 p 93 foram introduzidas no campo criminológico pela Criminologia Feminista Conforme Andrade 2003 p 93 a gênese da opressão das mulheres é anterior e distinta à opressão capitalista uma vez que é produto da estrutura patriarcal da sociedade Dessa forma é preciso destacar ambos aspectos porquanto a estrutura capitalista e a patriarcal não operam sempre de modo análogo Logo assim como a Criminologia Crítica foi capaz de evidenciar de que maneira o capitalismo e o racismo atuam na manutenção do controle social penal da mesma forma a Criminologia Feminista denunciou as violências produzidas pelo modelo androcêntrico de interpretação e aplicação do Direito Penal A Criminologia Feminista demonstra uma dupla violência contra a mulher seja mediante a invisibilização ou subvalorização da violência sofrida quando vítima seja pela hiper ou sobrepunição de suas condutas quando autora do crime CAMPOS CARVALHO 2011 p 152 No entanto apesar de no plano epistemológico os saberes críticos e feministas mostraremse complementares na desconstrução da racionalidade etiológica da criminologia ortodoxa e ampliarem tantos os objetos de investigação quantos os métodos de abordagem no plano políticocriminal estes dois modelos entram em conflito De um lado a Criminologia Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 84 Crítica pugna pela redução dos processos de criminalização e punitivismo enquanto de outro a Criminologia Feminista luta incessantemente pela redução dos altos índices da violência contra a mulher CAMPOS CARVALHO 2011 p 153 Nesse sentido Carvalho 2012 p 153 explica que os movimentos sociais operam em uma dupla perspectiva a política e a teórica Esses campos distintos de investigação demonstram que os movimentos de mulheres encontram sustentação na Teoria Feminista sendo movimentos acadêmicos com forte inserção política Diante disso é preciso defender a construção de uma criminologia ao mesmo tempo crítica e feminista conforme pugnou Andrade 2005 p 74 porquanto essa bipartição epistemológica na era da globalização só pode ser provisória O problema de recepção da Criminologia Crítica e da Criminologia Feminista no Brasil indica na verdade um profundo déficit de produção criminológica crítica e feminista Esse déficit de base teórica juntamente com a falta de diálogo entre a militância feminista e a academia repercute na falta de clareza de uma política criminal feminista no Brasil que tem se exteriorizado na prática de forma reativa através dos discursos jurídicos criminalizantes 3 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E O DISCURSO JURÍDICO CRIMINALIZANTE Em 2006 foi publicada a Lei nº 11340 Lei Maria da Penha com o fim de criar mecanismos para coibir e prevenir todas as formas de violência doméstica e familiar contra a mulher Apesar da lei prever medidas para além da repressão penal do agressor ela não conseguiu estabelecerse como um microssistema protetivo da mulher em situação de violência como era o objetivo em razão sobretudo da sua dependência de efetivação através de políticas públicas estatais Assim se por um lado as medidas integradas de prevenção assistenciais de atendimento e protetivas tem sido completamente subutilizadas e esquecidas por outro o aspecto penal foi colocado como solução principal para o problema da violência doméstica e essa lógica punitivista acabou colonizando todas as medidas nãopenais de proteção à mulher em situação de violência previstas na referida Lei Nesse contexto de aumento dos discursos punitivistas e repressivos em 2015 a Lei nº 13104 incluiu o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio e no rol dos crimes hediondos da Lei nº 80721990 além de prever três causas de aumento de pena do feminicídio De acordo com a redação do inciso VI do 2º e do 2ºA ambos acrescidos pela Lei nº 131042015 ao artigo 121 do Código Penal é considerado feminicídio o assassinato de mulheres que ocorra por razões de condição do sexo feminino em relações domésticas e em Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 85 situações de menosprezo e discriminação contra a condição de mulher Fica claro que ao não adotar o termo gênero e sim condição de sexo feminino essa legislação buscou excluir do rol de vítimas as mulheres transexuais e travestis Ademais tecnicamente ela não trouxe nenhuma novidade jurídica uma vez que homicídios praticados em razão do gênero enquadravamse nas circunstâncias qualificadoras já existentes no Código Penal e todo homicídio qualificado é crime hediondo Em 2018 novas leis voltadas à criminalização da violência contra a mulher foram publicadas A Lei nº 13772 introduziu ao Código Penal o crime de registro não autorizado de conteúdo de nudez ou ato sexual privado e alterou a Lei Maria da Penha para reconhecer que a violação da intimidade da mulher configura violência doméstica e familiar Enquanto que a Lei nº 13771 incluiu outra possibilidade de aumento de pena para o crime de feminicídio caso ele ocorra em situações de descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha Deste modo diante do decisivo apoio popular e do impulsionamento pelos movimentos feministas é necessário colocar em debate essa crescente escolha pela opção criminalizadora no Brasil supostamente como instrumento de proteção das mulheres e o paradoxal entusiasmo punitivo dos movimentos sociais progressistas KARAM 2006 p 6 31 Entre feminismos punitivismo e simbolismo o paradoxo da criminalização da violência de gênero contra a mulher Conforme já analisado o Direito Penal é uma forma de controle social na sociedade capitalista que atua baseado na coerção com o fim de se manter as estruturas de poder e dominação O Estado apropriouse dos discursos punitivistas de controle da criminalidade para manter a estrutura social e a normatividade da classe dominante utilizando como pretenso fim a garantia da ordem e da paz social Ou seja o Direito Penal não é neutro desde a criação da norma penal sua aplicação e interpretação criminalização primária secundária e terciária todo o sistema de justiça criminal cria e reproduz relações sociais de dominação e de desigualdade Já em 1996 Maria Lúcia Karam publicou um artigo criticando fortemente a aproximação dos movimentos sociais com a reivindicação da intervenção do sistema penal e da repressão da criminalidade Karam 1996 demonstrou como uma reação punitiva da esquerda é completamente paradoxal dentro dos seus ideais pois distanciase da sua visão crítica social para aliarse aos discursos de massa da imprensa burguesa reproduzindo a dominação e a exclusão inerentes à formação social capitalista A Esquerda Punitiva ao aderir a uma ideia de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 86 maior rigor repressivo ignora que o papel do sistema penal é ser instrumento de manutenção e reprodução da dominação e da exclusão da sociedade capitalista e que por isso nenhuma reação punitiva pode pôr fim à impunidade ou à criminalidade de qualquer natureza Assim apesar dos movimentos feministas buscarem justificar sua pauta criminalizadora com o discurso de proteção da mulher e dos seus direitos humanos fundamentais Maria Lúcia Karam 2015 afirma que essa é uma distorcida leitura das normas garantidoras dos direitos humanos fundamentais Isso porque essas normas destinamse a proteger o indivíduo ameaçado pelo exercício do poder punitivo não sendo possível extrair delas supostas obrigações criminalizadoras ao mesmo tempo em que não podem paradoxalmente funcionar como um instrumento voltado para a expansão desse mesmo poder Mais que se enveredar em uma contradição teórica a esquerda punitiva se perde em seus próprios ideais KARAM 2015 Não obstante alguns setores dos movimentos feministas argumentam que as leis penais criminalizadoras seriam benéficas pelo efeito comunicativo e a natureza simbólica decorrente do Direito Penal Contudo esse suposto simbolismo arraigado na crença de que o poder punitivo pode ser um aliado na luta feminista incorre no seu próprio fortalecimento e na sua legitimação Zaffaroni 2000 p 29 explica que ao receber apenas críticas pontuais com as quais a sociedade está acostumada o poder punitivo é recompensado com a legitimação resultante da soma da reafirmação de sua utilidade produzida por todos os setores discriminados Dando margem a partir disso para os discursos hipócritas de que sua ineficiência antidiscriminatória estaria no fato dele não ser suficientemente forte diante dos limites legais constitucionais e internacionais De toda forma além desse apelo ao simbolismo acabar legitimando o falido violento danoso e doloroso poder do estado de punir essas leis são ditas simbolicas porque como símbolos não tem efeito real ou seja não combatem as estruturas e origens do fenômeno KARAM 2015 Consequentemente o Direito Penal não lida com as causas estruturais do fenômeno da violência contra a mulher ou seja não intenta combater o patriarcalismo e o machismo Tratase de lutar contra o mesmo sistema punitivo penal que criminaliza as mulheres pelo aborto por isso além de ser contraditório recorrer a ele para sua proteção acaba reforçando uma legitimação das opressões classistas racistas e sexistas Portanto a oposição à pena de prisão e à diminuição da sua aplicação formam parte imprescindível de qualquer agenda progressista indispensável no compromisso com a superação das relações de desigualdade de dominação e de exclusão LARRAURI 2007 KARAM 2006 ANDRADE 2003 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 87 Desse modo é preciso buscar instrumentos mais eficazes e menos nocivos do que o fácil simplista e perversamente simbólico apelo à intervenção do sistema penal pois não é possível verdadeiramente nenhuma conquista nenhuma libertação nenhum caminho a partir dele KARAM 2015 ANDRADE 2003 32 Os papéis de gênero na vitimização feminina a inadequação do apelo à proteção da mulher pelo sistema penal punitivo O patriarcado é uma forma de dominação e controle que integra o sistema capitalista definindo de forma precisa os papéis do homem e da mulher de modo a fomentar o modelo de produção capitalista Dessa forma o sistema de justiça criminal ao expressar e reproduzir a estrutura e o simbolismo de gênero está expressando e contribuindo para reproduzir o patriarcado assim como o capitalismo ANDRADE 2005 p 87 Destarte o sistema penal exerce o controle formal das mulheres de forma integrada ao controle informal exercido pelas relações familiares trabalhistas profissionais e sociais reforçando tanto o controle patriarcal ao criminalizálas em situações específicas quanto os respectivos espaços papéis e estereótipos da construção social de gênero ANDRADE 2005 p 89 Por conseguinte a seletividade do sistema penal funciona em uma construção paralela do criminoso e da vítima na medida em que o status de vítima também é distribuído desigualmente Logo reconhecer a autoria implica tácita ou expressamente reconhecer a vitimação ANDRADE 2005 p 82 Diante disso não são todas as mulheres que podem encaixarse no papel de vítimas impõese à elas provar ao sistema penal machista e patriarcal em um processo doloroso que são merecedoras desse status Argumentos que culpabilizam a mulher revitimizandoa e que por outro lado patologizam o comportamento dos agressores são constantes Em vista disso Andrade 2005 p 93 descreve como hermenêutica da suspeita a intensa submissão das mulheres ao constrangimento e a humilhação ao longo do inquérito policial e do processo penal que vasculha a moralidade da vítima para ver se é ou não uma vítima apropriada sua resistência para ver se é ou não uma vítima inocente reticente a condenar somente pelo exclusivo testemunho da mulher duvidas acerca da sua credibilidade ANDRADE 2005 p 934 Como defender a proteção das mulheres por intermédio do sistema penal se nesta corrida do controle informal ao formal as mulheres são recebidas com a mesma resposta discriminatoria mas em outras linguagens De que adianta correr dos braços violentos do Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 88 homem seja marido chefe ou estranhos para cair nos braços do Estado institucionalizado no sistema penal ANDRADE 1999 p 116 As varas criminais que recebem os casos de feminicídio e os juizados de violência doméstica estão repletos de processos referentes às mais diversas e particulares narrativas mas não há nenhuma estrutura interesse e preparo profissional para tratar de cada um desses casos de forma séria e individualizada O sistema de justiça penal simplificou e reduziu o fenômeno ao maniqueísmo de mero conflito entre os papéis machistas de homem algoz versus mulher frágil Não há uma escuta ativa das mulheres seus relatos são moldados para caber em uma estrutura preconcebida para que possam merecer a tutela do Estado sujeitandose aos estigmas que as silenciam e tornam ainda mais doloroso para elas denunciarem5 O maniqueísmo da dualidade vítimaagressor é na verdade o reforço da visão patriarcal sobre a violência contra a mulher Por isso para Nilo Batista 2007 p 18 quando se convoca o auxílio do poder punitivo para o tratamento da violência doméstica contra a mulher está se fortalecendo o mesmo poder que promoveu sua discriminação Desse modo a construção de vítimas e agressores como categorias estáticas atribuindo e reforçando o estereotipo de vítima frágil e desprotegida à mulher como eternamente merecedora de proteção masculina seja do homem ou do Estado ANDRADE 1999 p 116 é a própria repatriarcalização da mulher com seu consequente silenciamento Vera Regina Pereira de Andrade 2003 p 86 elucida que não cabe ao Estado como sistema de violência institucional que reproduz a violência estrutural das relações sociais patriarcais substituir a opressão historicamente reputada ao homem uma vez que ao incidir sobre a vítima mulher a sua complexa fenomenologia de controle social o sistema penal duplica ao invés de proteger a vitimização feminina 33 A consolidação de uma criminologia feminista para superação da lógica punitivista de criminalização da violência de gênero contra a mulher A Criminologia Crítica rompeu com os paradigmas epistemológicos ao denunciar a opressão do sistema punitivo como forma de gestão penal das classes sociais no capitalismo No entanto falha ao não ser capaz de articular de forma desierarquizada as categorias analíticas referentes às opressões de classe com as de gênero e também de raça Em consequência a Teoria Feminista permite a adoção de um novo referencial teórico que não hierarquiza as 5 Além desses estereótipos e narrativas de submissão e fragilidade da vítima dificultarem a percepção pela mulher de que ela se encontra em uma situação de violência também prejudica uma efetiva denúncia por ela não querer ou não suportar assumir o estigma de vítima Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 89 categorias de opressão mas coloca no centro uma episteme produzidada porparasobre as mulheres como sujeitos prontos a reivindicar como ato político seu lugar de fala Nesse sentido a Criminologia Feminista dá visibilidade às especificidades da condição feminina em face da violência estrutural do sistema penal Por essa razão é inadequado e até incoerente utilizar a lógica penal punitivista para tentar proteger as mulheres e resolver a violência de gênero que as oprime Logo a Criminologia Feminista precisa incluir a mulher no conhecimento criminológico e ao mesmo tempo oporse à lógica punitivista que pretende expandir a criminalização da violência de gênero Para alguns setores do movimento feminista a lógica criminalizadora e punitivista por meio do rigor punitivo seria uma via política possível de enfrentamento e de diálogo sobre o fenômeno da violência de gênero Carmen Hein de Campos 2011 p 9 defende que a Lei Maria da Penha teria produzido deslocamentos discursivos importantes ao dar lugar à afirmação dos direitos das mulheres por meio das pautas trazidas pelos movimentos feministas Assim para a autora ao clamar por estratégias punitivas concomitantemente às demais esferas de atuação da Lei Maria da Penha não significa necessariamente que os movimentos feministas discordem dos argumentos das Criminologias Críticas e da Criminologia Feminista CAMPOS 2017 Contudo redimensionar um problema e reconstruir um problema privado como um problema público ou social não significa que o melhor meio de responder a ele seja convertê lo quase que automaticamente em um problema penal ou seja em um crime ANDRADE 2003 p 118 Isso porque essa via punitiva não é capaz de levar à desconstrução das masculinidades tóxicas e violentas fazendo com que o movimento feminista recaia invariavelmente na reprodução das opressões e violências do sistema capitalista patriarcal Para Zaffaroni 2000 p 29 é inconcebível a pretensão de que o poder punitivo poder hierárquico da sociedade que devido à sua estrutura só pode ser exercido de maneira seletiva e discriminatória poderia ser exercido antidiscriminatóriamente Outrossim quando a lei criminal aponta uma pessoa específica para ser considerada culpada ela coloca a violência doméstica de volta como um problema de casos isolados de pressupostos individualizados sem um fundo sociológico comum LARRAURI 2007 Para Karam 1996 é nesse ângulo que se encontra uma das principais funcionalidades do sistema penal tornar invisíveis as fontes geradoras da criminalidade de qualquer natureza a partir do incentivo a crença de que há apenas desvios pessoais a serem combatidos deixando encobertos e intocados os desvios estruturais que os alimentam Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 90 Portanto além de o sistema penal ser estruturalmente incapaz de oferecer alguma proteção à mulher a sua resposta punitiva é desigualmente distribuída e não cumpre as funções intimidatórias e nem mesmo a simbólica que se lhe atribui Utilizar a repressão nos casos de violência de gênero implica exercer sobre um controle masculino violento de condutas um controle estatal tão ou mais violento implica uma duplicação do controle da dor e da violência inutil ANDRADE 2003 p120 Assim ao invés de demandar por leis punitivistas que só concedem mais poder às autoridades direta ou indiretamente responsáveis pelo problema FEDERICI 2018 p 567 os movimentos feministas precisam ocupar um campo de luta positivo isto é de busca pela ampliação e efetivação de direitos das mulheres bem como de estratégias organizadas e controladas pelas próprias mulheres sem intervenção estatal Com efeito quando se opta pela lógica criminalizadora e pelo sistema penal simbólico contribuise com a manutenção do status quo ao mesmo tempo em que desviase o olhar de soluções verdadeiramente eficazes CONSIDERAÇÕES FINAIS A Criminologia Feminista como Teoria Feminista radicada no paradigma de gênero descolonizou o referencial teórico androcêntrico da Criminologia Crítica permitindo a construção de um conhecimento não hierarquizante entre as categorias analíticas das diversas formas de opressão e criando condições para romper com a invisibilidade e o silenciamento do feminino Entretanto é necessário que a Criminologia Feminista dialogue com a Criminologia Crítica e não recuse suas contribuições incorporando alguns dos conceitos trazidos por ela mediante a consciência da estrutura de poder e opressão do sistema punitivo penal Por isso a expansão dos discursos criminalizadores da violência de gênero contra a mulher por segmentos dos movimentos feministas resulta em um injustificável paradoxo A pauta punitivista obviamente aceita e apropriada pelo Estado penal reforça mais uma vez a politização da questão criminal em prejuízo da despolitização do problema social O Direito Penal passou a ser instrumento de atuação simbólica do Estado uma vez que não altera as estruturas capitalistas patriarcais nem as relações verticais de poder decorrentes do gênero invisibilizando a violência contra a mulher esvaziando o seu discurso político ideológico e desconsiderando a possibilidade de construção de outros instrumentos verdadeiramente capazes de gerar transformação social e alterar o status quo Assim a possibilidade de enfrentar a violência de gênero contra a mulher como fenômeno estrutural e Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 91 sistêmico da sociedade dissipase diante de uma simples resposta penal que silencia as mulheres ao mesmo tempo em que legitima o próprio poder punitivo Portanto como nenhuma justiça social é possível por meio do sistema penal é imperioso que os movimentos feministas renunciem a sua proteção simbólica e se oponham à sua lógica punitivista seletiva e reprodutora de desigualdades de forma a se alinhar o campo político e o teóricoacadêmico na construção de uma Criminologia Feminista REFERÊNCIAS ANDRADE Vera Regina Pereira A soberania patriarcal o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher Revista Seqüência n 50 p 71102 jul 2005 ANDRADE Vera Regina Pereira Criminologia e feminismo da mulher como vítima à mulher como sujeito de construção da cidadania In CAMPOS Carmen Hein de org Criminologia e feminismo Porto Alegre Sulina 1999 p 10517 ANDRADE Vera Regina Pereira de Sistema penal máximo x cidadania mínima códigos da violência na era da globalização Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 BANDEIRA Lourdes A contribuição da crítica feminista à ciência Rev Estudos Feministas Florianópolis v 16 n 1 p 20728 janabr 2008 BARATTA Alessandro Criminologia Crítica e crítica do Direito Penal introdução à sociologia do Direito Penal Rio de Janeiro Revan 2002 BARATTA Alessandro O paradigma do gênero da questão criminal à questão humana In CAMPOS Carmen Hein de org Criminologia e feminismo Porto Alegre Sulina 1999 p 1980 BATISTA Nilo Só Carolina não viu violência doméstica e políticas criminais no Brasil In Mello Adriana Ramos org Comentários à lei de violência doméstica e familiar contra a mulher Rio de Janeiro Lumen Juris 2007 BOURDIEU Pierre A dominação masculina a condição feminina e a violência simbólica Trad de Maria Helena Kühner Rio de Janeiro Bestbolso 2014 CAMPOS Carmen Hein de Criminologia Feminista Teoria Feminista e crítica às criminologias Rio de Janeiro Lumen Juris 2017 CAMPOS Carmen Hein de Razão e sensibilidade Teoria Feminista do direito e lei Maria da Penha In CAMPOS Carmen Hein de org Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídicofeminista Rio de Janeiro Lumen Juris 2011 p 112 CAMPOS Carmen Hein de CARVALHO Salo de Tensões atuais entre a Criminologia Feminista e a Criminologia Crítica a experiência brasileira In CAMPOS Carmen Hein de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 92 org Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídicofeminista Rio de Janeiro Lumen Juris 2011 p 143169 CARVALHO Salo de Sobre as possibilidades de uma criminologia queer Rev Sistema Penal Violência Porto Alegre v 4 n 2 p 15168 juldez 2012 FEDERICI Silvia Witches witchhunting and women Oakland PM Press 2018 FOUCAULT Michel A verdade e as formas jurídicas Trad de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais Rio de Janeiro Nau Editora 2005 FOUCAULT Michel Vigiar e punir nascimento da prisão Trad Lígia M Pondé Vassallo Petrópolis Vozes 1993 GARLAND David A cultura do controle crime e ordem social na sociedade contemporânea Trad André Nascimento Rio de Janeiro Revan 2008 HARDING Sandra A instabilidade das categorias analíticas na Teoria Feminista Revista Estudos Feministas Florianópolis v 1 n 1 p 731 janjun 1993 KARAM Maria Lúcia A esquerda punitiva In Revista Discursos sediciosos crime direito e sociedade Rio de Janeiro n1 ano 1 p 7992 janjun 1996 KARAM Maria Lúcia Os paradoxais desejos punitivos de ativistas e movimentos feministas Coluna Justificando mar2015 Disponível em httpwwwjustificandocom20150313osparadoxaisdesejospunitivosdeativistase movimentosfeministas Acesso em 01082019 KARAM Maria Lúcia Violência de gênero o paradoxal entusiasmo pelo rigor penal Boletim IBCCRIM São Paulo v 14 n 168 p 67 nov 2006 LARRAURI Elena Criminología crítica y violencia de gênero Madrid Editoral Trotta 2007 LYRA FILHO Roberto Criminologia dialética Rio de Janeiro Borsoi 1972 MELOSSI Dario PAVARINI Massimo Cárcere e fábrica as origens do sistema penitenciário séculos XVIXIX Trad de Sérgio Lamarão Rio de Janeiro Editora Revan 2006 MENDES Soraia da Rosa Criminologia Feminista novos paradigmas São Paulo Saraiva 2014 PACHUKANIS Evgeny Bronislavovitch Teoria geral do direito e marxismo São Paulo Acadêmica 1988 RUSCHE Georg 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forma conjunta e pincelando sobre a ressignificação do gênero feminino a partir do pensamento decolonial E por fim passouse para os principais efeitos da colonização que ancoram e estruturam a violência de gênero sofrida pelas mulheres latinoamericanas bem como quais as implicações jurídicosociais dessa violência sofrida O método utilizado foi o dedutivo Observouse que há a instituição de uma dupla violência de gênero no que tange às mulheres colonizadas que as atinge de maneira institucionalizada ou seja em todas as esferas constitutivas da sociedade PALAVRASCHAVE Violência de gênero Pensamento decolonial Implicações jurídico sociais INTRODUÇÃO O presente artigo constituise a partir da problemática que visa investigar quais foram as implicações da colonização para a violência de gênero na América Latina tendo por objetivo verificar como a colonização europeia influenciou na institucionalização da violência de gênero nesse continente e conectar dois pilares estruturais para a compreensão da institucionalização históricojurídicosocial da violência de gênero que assola o continente Latino Americano a dicotomia colonialismo e decolonialismo e gênero como categoria de análise decolonial para a partir disso verificar as implicações da colonização na perpetuação histórica dessa violência e seus efeitos políticojurídicosociais para este recorte 1 Advogada Pósgraduada em Direito Constitucional pela Universidade do Vale do Itajaí UNIVALI Bacharela em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí UNIVALI Endereço eletrônico para correspondências alessandradeifeldhotmailcom Lattes httplattescnpqbr4257447359653114 2 Estudante Bacharela em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí UNIVALI Graduanda em Letras Português pela Universidade Federal do Estado de Santa Catarina UFSC Endereço eletrônico para correspondências brunaluisamacelaihotmailcom Lattes httplattescnpqbr8414888622065059 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 95 Neste sentido foram abordados os efeitos da colonização na América Latina em especial no reconhecimento e ressignificação do que é ser mulher latinoamericana a partir da constatação da ausência de narrativa histórica das mulheres dos povos originários para então discorrer acerca do gênero como categoria de análise decolonial tratando do gênero e da raça como categorias de análise para em última instância abordar a violência de gênero sofrida pela mulher latinoamericana a fim de culminar nas implicações históricopolíticojurídicosociais dessa violência no atual contexto da América Latina Realizada a conexão metodológica dessa temática vislumbrase que as mulheres latino americanas acabam por protagonizar uma dupla violência a de gênero e a étnicoracial fruto de um processo colonial perpetuado ao longo da história que penetrou as principais ramificações sociais quais sejam os vieses político e jurídico que por conseguinte institucionalizaram a violência contra a mulher na América Latina O referido artigo se justifica por versar sobre uma problemática cuja relevância social provoca o Judiciário e o Legislativo de tal forma que estes criaram e aplicam cotidianamente uma conjuntura de dispositivos legais e planos políticos que visam a proteção das mulheres latinoamericanas Ademais tendo em vista que essa violência institucionalizada é fruto também de uma lacuna histórica do que é ser mulher latinoamericana esse artigo busca somar nesse atual momento de ressignificação e decolonização dos padrões eurocêntricos impostos às mulheres O método de abordagem utilizado neste artigo foi o dedutivo e como método de procedimento optouse pelo monográfico 1 COMPREENDENDO OS EFEITOS DA COLONIZAÇÃO NA AMÉRICA LATINA Antes de adentrarse no mérito do presente artigo é necessário compreender alguns aspectos históricosociais em termos de colonização do continente latinoamericano para que se compreenda a importância da temática de gênero como categoria de análise decolonial e a partir disso se possa averiguar as implicações históricas políticas jurídicas e sociais do processo colonizatório na institucionalização da violência de gênero sofrida pelas mulheres latinoamericanas afinal como preceitua GAZZALE 2009 p 3 é impossível a compreensão do Direito sem uma perspectiva historica A colonialidade é compreendida como um instrumento capitalista de segregação étnico racial utilizado a partir do início do processo de colonização da América Latina para hierarquizar e sub humanizar os colonizadosas sob o prisma do padrão eurocêntrico Nesse sentido QUIJANO 2009 p 73 explica que Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 96 A colonialidade é um dos elementos constitutivos e específicos do padrão mundial do poder capitalista Sustentase na imposição de uma classificação racialétnica da população do mundo como pedra angular do referido padrão de poder e opera em cada um dos planos meios e dimensões materiais e subjectivos da existência social quotidiana e da escala societal Originase e mundializase a partir da América Segundo o autor foi através da colonialidade que a ideia de classificação social da humanidade se propagou pautada em inferiores e superiores irracionais e racionais primitivos e civilizados tradicionais e modernos QUIJANO 2009 p 77 A autora LUGONES 2014 p 937 apresenta ainda uma outra perspectiva no que se refere aos primórdios da construção de gênero e sexualidade dos latinoamericanos sob a ótica eurocêntrica que nos possibilita uma concepção racionável sobre o impacto colonial na forma em que as figuras dos colonizadores e dos colonizadosas eram retratadas e significadas como se demonstra Os povos indígenas das Américas e osas africanosas escravizadosas eram classificadosas como espécies não humanas como animais incontrolavelmente sexuais e selvagens O homem europeu burguês colonial moderno tornouse um sujeito agente apto a decidir para a vida pública e o governo um ser de civilização heterossexual cristão um ser de mente e razão A mulher europeia burguesa não era entendida como seu complemento mas como alguém que reproduzia raça e capital por meio de sua pureza sexual sua passividade e por estar atada ao lar a serviço do homem branco europeu burguês Através de LUGONES 2014 p 938 compreendese que os colonizadosas sequer eram reconhecidos como seres humanos pelo contrário quanto menos humanizados fossem mais fácil seria o acesso aos seus corpos sua submissão e a tomada de suas terras A desumanização dos povos colonizados é uma das principais marcas da colonialidade que refletiu diretamente na institucionalização da violência de gênero enraizada nesse continente como se evidencia desde logo A missão civilizatoria colonial era a máscara eufemística do acesso brutal aos corpos das pessoas através de uma exploração inimaginável violação sexual controle da reprodução e terror sistemático por exemplo alimentando cachorros com pessoas vivas e fazendo algibeiras e chapéus das vaginas de mulheres indígenas brutalmente assassinadas A missão civilizatória usou a dicotomia hierárquica de gênero como avaliação mesmo que o objetivo do juízo normativo não fosse alcançar a generização dicotomizada dosas colonizadosas Tornar osas colonizadosas em seres humanos não era uma meta colonial Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 97 Essa conjectura segregacionista da colonialidade refletiu no território da América Latina em diversos quesitos tais como o desenvolvimento econômico organização política concepção do ordenamento jurídico e disposição social considerando que junto com a colonialidade e o capitalismo exportouse para a América Latina as bases do liberalismo e posteriormente neoliberalismo de forma irrestrita fazendo com que a sociedade aqui constituída se estruturasse envolta de um conjunto limitado de padrões historicamente invariáveis não condizentes com a realidade aqui vivenciada QUIJANO 2009 Em outras palavras e de modo geral a colonialidade foi um instrumento de importação de cultura e padrões eurocêntricos para a América Latina que colocavam o próprio colonizado seja ele o indígena herdeiro da terra ou o negro aqui escravizado em situação de inferioridade e desumanização ante ao homem branco europeu que aqui se estabeleceu No que se refere ao colonialismo europeu GARGALLO 2007 p 03 preceitua que El colonialismo europeo ha marcado América Latina con cicatrices profundas en su mayoría es un continente católico se rige por una economía de mercado determinada por un centro externo a la región y su estructura social es patriarcal racista y discriminadora3 A principal marca social degenerativa da colonialidade que nesse primeiro momento importa vai além da perpetuação da segregação entre o homem branco e o homem colonizado tratandose da segregação de gênero ocorrida entre os próprios colonizados que os colocava uns contra os outros mulheres inferiores aos homens e a segregação entre as mulheres brancas e as mulheres colonizadas mestiças negras e indígenas As mulheres latinoamericanas portanto sofreram ao longo dos séculos um duplo processo de inferiorização e preconceito tanto por pertencer ao gênero feminino quanto por sua origem étnicoracial afastada do eurocentrismo Insta salientar houve também uma demonização do gênero feminino pelo viés sexual tendo em vista que a sexualidade das colonizadas foi determinada pela religiosidade monoteísta importada da Europa e pilar da colonialidade que a estabelecia como pecaminosa e maligna propagando a ideia de que as mulheres colonizadas eram possuídas por satanás e indignas inclusive na perspectiva religiosa LUGONES 2014 Assim temse que a principal marca colonial para a construção e significação do gênero feminino na América Latina é extremamente degenerativa pois desde os primórdios da 3 Tradução O colonialismo europeu marcou a América Latina com profundas cicatrizes é principalmente um continente católico é governado por uma economia de mercado determinada por um centro fora da região e sua estrutura social é patriarcal racista e discriminadora Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 98 colonização europeia o gênero feminino é desumanizado e negligenciado em seus aspectos constitutivos e representativos o que acarreta no âmbito social uma naturalização de qualquer tipo de submissão à violência enfrentada pelas mulheres O efeito colonial na esfera jurídica é portanto a legitimação do âmbito social que resulta na subsequente neutralização da violência de gênero sofrida pelas mulheres latinoamericanas Essa legitimação jurídica da violência social resulta numa cultura politizada de desumanização da mulher latinoamericana e violação de direitos relacionados ao gênero na América Latina É a partir desse recorte sociocultural fruto da colonialidade e juridicamente legitimado que a sociedade latinoamericana se edifica Ou seja a violência sofrida pelas mulheres latino americanas não só evidentemente se faz presente de forma inconsciente e genuína como norteia o desenvolvimento e afloramento de todas as esferas desse continente influenciando diretamente na organização política e estruturação jurídicosocial da América Latina Esse enraizamento sociocultural fruto da colonialidade tem como efeito uma institucionalização da violência de gênero no continente latinoamericano como mais bem explorado no tópico 4 do presente artigo 2 DECOLONIALIDADE E GÊNERO COMO CATEGORIA DE ANÁLISE DECOLONIAL O texto cânone4 que trata sobre a utilização de gênero como categoria de análise decolonial escrito em 1986 por Joan Scott reverberou e reverbera na pesquisa quanto a função do gênero e o seu papel na análise da decolonialidade e colonialidade A depender do espectro adotado o gênero pode referendar formas de colonialidade que excluem vivências múltiplas e diversas Por outro lado a categoria gênero quando percebida em conjunto com a categoria raça tem o poder de abalar as estruturas do conceito de ser homem e mulher Observase que o feminismo pôde ser observado de um lado como um espectro que uniformiza o sujeito mulher de forma homogênea e que tem por base o patriarcado ou por outro lado que trata do gênero como categoria de análise que não exclui as realidades diversas de feminismos GOMES 2018 Ao tratarse do feminismo como categoria de gênero que ultrapassa a figura da mulher universal é possível segundo Badinter 2005 superar a utilização do termo mulher que liga 4 O Texto citado que foi o precursor da utilização de gênero como análise de categoria é Gênero uma categoria útil de análise histórica de Joan Scott Disponível em httpsseerufrgsbrindexphpeducacaoerealidadearticleview71721 Acesso em 25 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 99 realidades heterogêneas e completamente distintas ou que opera uma exclusão de realidades grupos conhecimentos e demandas distintas Como já apontado a categoria gênero tem o condão de desestabilizar os conceitos fechados de ser homem ser mulher corpo e sexo Desta forma trabalhar a partir desta categoria permitiria a constante discussão e problematização dos referidos conceitos bem como do determinismo da distinção física e biológica entre os sexos que se manteria ao utilizar o critério simplista do sexo Além do mais é necessário que se opere uma problematização extensiva no conceito ser mulher e da posição que este ser ocupa na sociedade Manter essa distinção entre os sexos não permite a superação dos paradigmas das formas masculino e feminino e da dissociação dos conceitos corpo sexo gênero desejo orientação sexual e sexualidade destas duas formas dispensando qualquer conteúdo histórico na formação destes corpos sexuados GOMES 2018 Entretanto tal desestabilização dos conceitos de homem e mulher só é passível quando supera a secundarização do conceito raça e se opera em conjunto a ele Na categoria decolonial é preciso compreender segundo Costa 2014 que o presente continua a ser colonial na relação entre os países entre países e sujeitos e entre os sujeitos LUGONES 2014 Sobre a perspectiva decolonial e seu olhar sobre a raça e criação da raça como produto da colonialidade europeia na América Latina É fundamental para compreender a binaridade hierarquizada do sistema então criado e que nos organizou dali até hoje A aposta de que a raça é a categoria que forma o sistemamundo da colonialidade é insuficiente e mesmo totalizante ao invisibilizar o gênero além de essencialista e naturalizadora pois toma o sexo como dado da natureza organizado e organizando sempre da mesma forma as relações entre os sujeitos É nesse contexto para resumir algumas das críticas feitas que passa a ser realizada uma análise feminista da colonialidade ou um feminismo decolonial para pensar como as normas de gênero fazem parte da colonialidade do poder do saber e do ser Passase a falar também da colonialidade do gênero passase a pensar que tanto o gênero é informado pela raça quanto a raça é informada pelo gênero GOMES 2018 p 69 A análise decolonial pressupõe que se pense como raça e gênero se reproduzem de forma recíproca na construção moderna binária E é a partir da colonialização europeia de povos originários da América Latina que as concepções diversas e múltiplas de gênero e de fazeres de gêneros se perdem e são substituídos por meio da violência pela imposição colonial da binaridade Nesse sentido a atuação colonizadora ocorreu da seguinte maneira Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 100 A normatividade rígida de gênero centrada na reprodução e na domesticidade e feita como ideal civilizatório contra os males de uma relacionalidade desviante em termos de gênero e sexualidade faz parte do arsenal racista da colonialidade e uma vez imposta como ideal e parâmetro de relações modifica as conformações de relacionalidade dos colonizados reforçando estruturas e hierarquias de gênero que tinham outras dinâmicas GOMES 2018 p 70 Por meio destas categorias que atuam em rede é possível analisar como são causa e efeito uma da outra e como formam esta hierarquização binária já citada Para além disto a atuação conjunta das categorias de gênero e raça na perspectiva decolonial categorizam os sujeitos em mais ou menos humanos A coloniedade desta forma opera uma binarização hierarquizada entre seres opostos que se relacionam esses pares podem ser recortados nos três pares principais que são naturezacultura corpomente e humanonãohumano A utilização do gênero como categoria surge então como uma maneira de mesclar essa linha divisória entre estes opostos binários enfraquecendo essa dicotomia e como uma maneira de descentralizar as hierarquizações entre os pares acima expostos GOMES 2018 Conforme LUGONES 2014 a grande dicotomia colonial da modernidade é entre humanos e nãohumanos e essa hierarquização da humanidade em que são relegados a condição de nãohumanos ou menoshumanos negros indígenas e colonizados a exemplo Gênero e raça devem ser analisados de forma conjunta para que permitam a superação desses paradigmas de humanos e nãohumanos de seres menos humanos e animalizados marginalizados inferiores e destituídos de subjetividade e dignidade 3 IMPLICAÇÕES DA COLONIZAÇÃO PARA A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO NA AMÉRICA LATINA Firmadas as estacas teóricas sustentadas pelo marco decolonial é chegado o momento de realizar um apanhado geral acerca das implicações motrizes que propiciaram a violência de gênero institucionalizada no continente latinoamericano O primeiro aspecto que merece ênfase por ser o propulsor ou ainda o primeiro passo no sentido da institucionalização da violência de gênero é justamente o olhar desumanizado sob a mulher latinoamericana fruto do processo eurocêntrico de colonização Como já mencionado a colonização retirou a condição de humanizada das mulheres colonizadas essas eram vistas como seres desalmados cujos corpos poderiam ser possuídos sem qualquer amarra política social jurídica ou cultural Quanto mais desumanizadas mais os Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 101 colonizadores poderiam dispor de seus corpos como bem entendessem A desumanização é uma das senão a mais dolorosa marca da colonização ao gênero feminino Ao retirarem da mulher a condição de ser humano negaramlhe acesso ao princípio da dignidade da pessoa humana deixandoa vulnerável na esfera cultural política social e jurídica A mulher latinoamericana não tinha significado não teve sua história contada a narrativa histórica lhe foi negada juntamente e em consequência do processo de desumanização A mulher colonizada não era humana portanto insignificante à história e indigna de narrativa própria No momento em que se verifica a construção do gênero feminino em parâmetros distantes da humanização bem como a ausência de narrativa histórica de sua perspectiva se constata a significação do gênero feminino pautada em inferioridade desprestígio e suscetível a qualquer tipo de violência que passa a ser juridicamente legitimada A desumanização deixou uma lacuna histórica sobre o que é ser mulher colonizada na América Latina lacuna que foi preenchida por uma violência generalizada em todos os âmbitos da sociedade ao longo dos séculos Ainda no que concerne à violência que se opera na perspectiva de gênero e decolonial há um duplo papel de vítima da mulher colonizada Para além do seu papel de sujeito mulher que sofre com as amarras do patriarcado única e exclusivamente por ser mulher há também uma violência quanto a sua raça Harris 1990 apresenta por exemplo análises feministas que não levam em conta o papel da mulher negra como vítima de crimes de estupro mas que são classificados como acontecimentos simplesmente da vida Nessa seara podese perceber que a mulher colonizada é um sujeito sem gênero que não ocupa o papel de vítima Operase sobre essas mulheres uma hipersexualização que as transforma somente em um corpo destituído de subjetividade e desumanizado Frisase a violência se institui duplamente na perspectiva colonial uma vez que as mulheres são agredidas por seu gênero mas também por sua raça e consequentemente por essa inferiorização como seres humanos O corpo humano idealizado e supervalorizado para além de um corpo masculino é também um corpo branco No aspecto do colonialismo ainda é um corpo europeu Em contrapartida o corpo feminino colonizado é um corpo destituído de gênero cultura e razão Só há a valorização e reconhecimento destes corpos femininos na medida em que se tornam corpos acessíveis ao homem branco europeu e portanto são corpos mutilados enquanto destituídos de humanidade Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 102 A consolidação da violência de gênero ao longo da história justamente pela ausência de narrativa histórica gerou uma naturalização da dupla violência de gênero e étnicoracial sofrida pelas mulheres latinoamericanas que foi subsequentemente jurídica e socialmente neutralizada A neutralização jurídica da desumanização histórica e da dupla violência sofrida pela mulher latinoamericana refletiu socialmente em inúmeros casos de feminicídio violência doméstica violência física e psíquica dentre outras formas de repressão pelas quais a mulher ainda hoje está cotidianamente exposta por conviver numa sociedade patriarcal cuja cultura normaliza e é conivente com ações violentas que destinamse à vítimas exclusivamente pelo gênero ou etniaraça Em contraponto a toda essa repressão histórica sofrida pela mulher latinoamericana surge o movimento feminista fundamentado no pensamento decolonial a fim de ressignificar o que é ser mulher recontar a história da mulher e romper com os paradigmas jurídicos e socioculturais que naturalizavam e neutralizavam até então a violência de gênero e étnico racial enfrentada pelas mulheres latinoamericanas cujas adversidades pouco se assemelham com as enfrentadas pelas mulheres eurocêntricas e portanto até então não eram amparadas pelo movimento feminista neoliberal Segundo Lugones 2014 p 941 a proposta do feminismo decolonial visa resgatar para a figura dos colonizadosas o cosmo com outros entes com a geração coma terra com os seres vivos com o inorgânico em produção entes cuja expressividade erótica estética e linguística cujos saberes noções de espaço expectativas práticas instituições e formas de governo não eram para ser simplesmente substituídas mas sim encontradas entendidas e adentradas em entrecruzamentos diálogos e negociações tensos violentos e arriscados que nunca aconteceram O feminismo decolonial então surge como um movimento que vai na contramão da hegemonia e voltase para as mulheres silenciadas historicamente Ademais o feminismo decolonial propõe um novo lugar de enunciação que considera raça classe sexualidade em síntese diversidades Retoma narrativas esquecidas de mulheres negras indígenas latinas que são invisibilizadas dentro do próprio movimento feminista Diante desse contexto a necessidade de renovar o cenário em que se encontra a mulher colonizada leva ao nascimento do feminismo decolonial que tem como objeto a desconstrução do racismo da heteronormatividade e da visão hegemônica do feminismo ocidental sobre o que é ser mulher bem como opera um resgate histórico da mulher colonizada Em suma o Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 103 feminismo decolonial propõe a reconstrução e a ressignificação do ser mulher latinoamericana por meio da revitalização de suas raízes históricas CONSIDERAÇÕES FINAIS Na presente pesquisa sistematizada neste trabalho verificouse que um dos principais efeitos do processo de colonização na América Latina foi a lacuna em termos de representação histórica da mulher ou ainda a contextualização distorcida na qual o processo de colonização inseriu a mulher latinoamericana Desta forma abordou a dicotomia colonialismo e decolonialismo e gênero como categoria de análise decolonial para a partir disso verificar as implicações da colonização na perpetuação histórica dessa violência e seus efeitos político jurídicosociais bem como a importância do pensamento decolonial no sentido de proporcionar uma ressignificação do que é ser mulher latinoamericana principalmente enquanto detentora de direitos protagonista de sua história e ser humano visível política jurídica e socialmente Verificouse que a violência de gênero atinge as mulheres colonizadas no cerne de suas subjetividades e que é somente a partir de um feminismo mais abrangente diverso e que ultrapasse a figura da mulher hegemônica nesta seara o feminismo decolonial que o resgate históricopolíticojurídicosociais das subjetividades das mulheres colonizadas é possível Por fim importa destacar que não se pretende esgotar a temática mas levantar subsídios para a continuidade de pesquisas que considerem os aspectos relevantes para a ressignificação da mulher latinoamericana bem como para a superação do paradigma de violência de gênero exposto no presente trabalho REFERÊNCIAS BADINTER Elisabeth Rumo equivocado o feminismo e alguns destinos Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2005 COSTA Cláudila de Lima Feminismos descoloniais para além do humano 2014 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0104 026X2014000300012lngennrmiso Acesso em 25 ago 2019 GARGALLO Francesca Feminismo Latinoamericano Revista Venezolana de Estudios de La Mujer Caracas v 12 n 28 jun 2007 Disponível em httpwwwscieloorgvescielophpscriptsciarttextpidS131637012007000100003 Acesso em 03 set 2018 GAZALLE Gustavo Kratz Posse e ações possessórias São Paulo Saraiva 2009 329 p Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 104 GOMES Camila de Magalhães Gênero como categoria de análise decolonial 2018 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1519 60892018000100065lngennrmiso Acesso em 25 ago 2019 HARRIS Angela Race and essentialism in feminist legal theory 1990 Disponível em httpswwwjstororgstable1228886readnow1seq8pagescantabcontents Acesso em 25 ago 2019 LUGONES María Rumo a um feminismo descolonial 2014 Disponível em httpsperiodicosufscbrindexphprefarticleview3675528577 Acesso em 25 ago 2019 QUIJANO Aníbal Colonialidade do Poder e Classificação Social In SANTOS Boaventura de Sousa MENESES Maria Paula Epistemologias do Sul Coimbra Almedina Sa 2009 573 p Disponível em httpwwwmelunirbruploads56565656noticiasquijano anibal20colonialidade20do20poder20e20classificacao20socialpdf Acesso em 10 set 2018 SCOTT Joan Gênero uma categoria útil de análise histórica 2017 Disponível em httpsseerufrgsbrindexphpeducacaoerealidadearticleview71721 Acesso em 25 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 105 ESTEREÓTIPOS DE GÊNERO E A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO DISCURSO JORNALÍSTICO ANÁLISE DE UMA REPORTAGEM DO FANTÁSTICO Flávia Rubiane Durgante1 Lia Gabriela Pagoto2 Benhur Pinós da Costa3 RESUMO O artigo procura analisar na narrativa discursivojornalística os estereotipos de gênero e a culpabilização da vítima em casos de violência contra a mulher Para isso analisa uma reportagem exibida pelo programa dominical Fantástico da Rede Globo no dia 09 de julho de 10 minutos e 15 segundos sobre a denuncia de estupro sofrida por um famoso jogador de futebol O atleta foi acusado por uma modelo brasileira Para a análise o artigo utiliza as teorias de análise do discurso sob a otica de Michel Foucault e Joan W Scott sobre gêneros e estereotipos com o objetivo de analisar as práticas que se constroem e são reforçadas a partir da narrativa conduzida pelo Fantástico Uma das conclusoes aponta que as marcas que emergem no discurso da reportagem são também um modo de discursivizar a mulher promovendo o reposicionamento das hierarquias de gênero Palavraschave Análise de discurso Gênero Mulher Discurso jornalístico INTRODUÇÃO No quinto país mais violento para mulheres do mundo ONU 2016 não é raridade nem surpresa nos depararmos com notícias sobre violência contra a mulher Não raro também as notícias envolvem pessoas famosas e de alta classe social Foi assim no dia primeiro de junho de 2019 quando noticiários e redes sociais divulgavam a acusação de estupro cometido por um famoso jogador de futebol da seleção brasileira contra uma modelo4 Conforme divulgado a modelo teria registrado um boletim de ocorrência no dia 31 de maio na cidade de São Paulo relatando ter sido estuprada pelo jogador durante uma visita a ele em Paris 1 Jornalista Doutoranda pelo Programa de PosGraduação em Geografia na Universidade Federal de Santa Maria UFSM flaviadurgmailcom 2 Jornalista Doutoranda pelo Programa de PosGraduação em Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina UFSC liagabrielapagotogmailcom 3 Professor doutor Departamento de PósGraduação em Geografia da Universidade Federal de Santa Maria UFSM 4 Os nomes reais dos personagens envolvidos neste caso foram preservados Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 106 Após o caso ganhar visibilidade diversos veículos de comunicação passaram não só a divulgar os fatos mas criar suas próprias narrativas sobre o caso Longas entrevistas reportagens e conteúdos opinativos foram desenvolvidas ao longo dos vários dias em que o caso se desenrolava nas esferas policiais e judiciais e ainda possuía efervescência nas redes sociais e com a opinião pública Para a análise desse trabalho foi escolhido o programa dominical Fantástico da Rede Globo que no dia 09 de julho exibiu uma reportagem de 10 minutos e 15 segundos sobre o caso Além do fato do programa ter uma audiência considerada grande fazer parte da maior rede de televisão do país a reportagem contém elementos importantes que queremos discutir nesse artigo a narrativa discursivojornalística elemento de enunciação que evidencia as condições de produção de sua época os estereótipos de gênero e a culpabilização da vítima em casos de violência contra a mulher Para a análise dialogamos com Joan W Scott no que tange a gênero estereótipos e hierarquia de gênero e nos debruçamos sobre as teorias de análise do discurso sob a ótica de Michel Foucault O objetivo é analisar as práticas que se constroem e são reforçadas a partir da narrativa conduzida pelo Fantástico compreendendo o discurso jornalístico como resultado de um jogo onde poder e saber se articulam e por meio do qual constituemse sujeitos lugares sociais e práticas são legitimadas e verdades são pacificadas 1 O GÊNERO E SEUS ESTEREÓTIPOS MULHERES LOUCAS O conceito de gênero que estamos nos referindo quando se fala em gênero e os estereótipos é trazido por Joan W Scott 1989 que afirma que as relações de gênero são as relações construídas entre homens e mulheres social e historicamente e que serve como categoria de análise para a investigação da construção social do masculino e do feminino Para Scott 1989 o gênero é o primeiro modo de significar as relações de poder pois constitui uma dimensão decisiva da organização da igualdade e da desigualdade O binarismo do masculino e feminino e o processo social das relações de gênero tornamse ambos partes do sentido do próprio poder E é nessa construção social e cultural feita a partir das diferenças sexuais responsável pela formação das masculinidades e feminilidades no processo histórico cultural que se fomenta a desigualdade entre homens e mulheres Nessa perspectiva construcionista de que o gênero é uma construção social a cultura cola no corpo e há uma linearidade entre sexo gênero e desejo assim como essas mesmas relações culturais vão determinar a apropriação dos espaços Como explicam Cabral e Diaz 1998 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 107 O papel do homem e da mulher é constituído culturalmente e muda conforme a sociedade e o tempo Esse papel começa a ser construído desde que oa bebê está na barriga da mãe quando a família de acordo à expectativa começa a preparar o enxoval de acordo ao sexo Dessa forma cor de rosa para as meninas e azul para os meninos Depois que nasce um bebê a primeira coisa que se identifica é o sexo menina ou menino e a partir desse momento começará a receber mensagens sobre o que a sociedade espera desta menina ou menino Ou seja por ter genitais femininos ou masculinos eles são ensinados pelo pai mãe família escola mídia sociedade em geral diferentes modos de pensar de sentir de atuar CABRAL e DIAZ 1998 p1 Louro 2004 afirma que a declaração É uma menina ou É um menino dá início a uma sequência de eventos que vão seguir um determinado rumo ou direção Mais do que uma afirmativa as duas declarações são compreendidas como uma definição ou decisão sobre o corpo Judith Butler 2003 argumenta que essa asserção desencadeia todo um processo de fazer desse um corpo masculino e feminino Um processo que é baseado em características físicas que são vistas como diferenças e às quais se atribuem significados culturais Tal logica implica que esse dado sexo vai determinar o gênero e induzir a uma única forma de desejo Supostamente não há outra possibilidade senão seguir a ordem prevista A afirmação é uma menina ou é um menino inaugura um processo de masculinização ou de feminização com o qual o sujeito se compromete Para se qualificar como um sujeito legítimo como um corpo que importa no dizer de Butler o sujeito se virá obrigado a obedecer às normas que regulam sua cultura LOURO 2004 p1516 Essas normas são as que criam desigualdades e abismos sociais difíceis de mudar e que são sustentadas o tempo todo por diversas instituições como famílias escolas igrejas leis mídia e outras Além disso a construção das desigualdades do que irá ser valorizado socialmente ou não não diz respeito apenas aos estereótipos do que é ser homem ou ser mulher mas também a tudo o que não se enquadra no padrão homem branco cristão burguês e heterossexual ou que foge da linearidade entre sexo gênero e desejo Tudo o que escapa que transgride dessas normações são facilmente desqualificados assim quanto menos dos atributos valorativos um sujeito deixa de possuir menos qualificado ele estará para a sociedade Lins et all 2016 afirmam que as diferenças que são percebidas entre corpos femininos e masculinos acabaram se transformando em desigualdades através do processo histórico cultural que resultou nos estereótipos de feminilidade e masculinidade que acabam sendo hierarquizados e construídos em polos de valorização e desvalorização Assim quando usamos frases como ele corre como uma menina é no sentido de desvalorizar aquele modo de correr Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 108 já quando usamos a expressão ela trabalha como um homem estamos afirmando de forma positiva como aquela mulher trabalha Para Bardin 1977 p51 os estereótipos estão relacionados a classificações segundo estruturas culturas e contextos sociais Ele define o conceito como a ideia que temos de ou a imagem que surge espontaneamente logo que se trate de É a representação de um objeto coisas pessoas ideias partilhada pelos membros de um grupo social Estrutura cognitiva e não inata submetida à influência do meio cultural da experiência pessoal de instâncias e de influências privilegiadas como as comunicações de massa o estereótipo no entanto mergulha suas raízes no afetivo e no emocional porque está ligado ao preconceito por ele racionalizado justificado ou engendrado BARDIN 1977 p 51 Na história das mulheres diversos estereótipos de gênero baseados nas diferenças sexuais foram criados para manter a mulher no lugar social que era lhe autorizado pelos homens O ideal feminino de docilidade era um dos estereótipos perseguidos à exaustão Mulheres que não se encaixavam nesse padrão de serem cuidadosas com as palavras e relevar o que as incomodava eram colocadas na condição de histéricas A histeria segundo Lara et all 2016 tem origem no termo grego para útero e esse era o órgão que a medicina acreditou por séculos que era a causa da origem da doença Se acreditava que se a mulher ficasse muito tempo sem ter filhos poderia ficar histérica Mas apesar dessa vinculação da doença com causas biológicas o que se viu ao longo do tempo foi que a histeria era uma justificativa para todos os comportamentos que não se encaixavam em padrões de feminilidade usavase a histeria muitas vezes como forma de tornar patológicos comportamentos femininos que fugissem às normas sociais da época posturas consideradas indevidas para uma mulher Embora hoje a medicina não mais reconheça a histeria feminina as expressões de raiva das mulheres continuam a ser associadas a seu ciclo reprodutivo e à sua sexualidade Não raro nossa revolta diante de atitudes machistas por exemplo é atribuída à tensão prémenstrual ou a uma suposta falta de sexo a fim de desvalidar nossas críticas Lara et all 2016 p56 Com as mulheres negras como lembra Lara et all 2016 o estereótipo de mulher raivosa e por consequência histérica é mais constante A ideia reproduzida é que as mulheres negras teriam uma tendência natural a serem mais agressivas e escandalosas que as mulheres brancas Ainda hoje as mulheres são taxadas de loucas o adjetivo que tomou o lugar do histérica sempre que possuem comportamentos que não estão dentro daquilo que se acredita Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 109 ser socialmente ideal para uma mulher E isso vai desde a agressividade demonstrada a não maternidade a sexualidade sem medo e tantas outras características Reproduzir a ideia de que mulheres são loucas implica dizer que existe uma incapacidade feminina de racionalizar as coisas Da mesma fora que dizer que as mulheres são emocionais é também dizer que não somos racionais pois emoção não é razão Assim produzimos e reproduzimos a ideia de que se as mulheres não são racionais não devem ser ouvidas e suas queixas colocadas em dúvida 11 A violência contra mulher as santas as putas e cultura do estupro Mesmo com alguns avanços nas conquistas referentes à sexualidade da mulher temos muito presente na nossa sociedade a insistência como afirma Lara et all 2016 em tratar a sexualidade da mulher como suja maldosa obscena indecente e irresponsável Assim a criação de meninos e meninas tende a construir a sexualidade das crianças de forma antagônica Há o reforço da representação do masculino enquanto ativo e do feminino como passivo levando a crer que a sexualidade é algo próprio do masculino e que as meninas devem negar seu corpo e sua sexualidade Começa dessa forma a construção dos arquétipos das santas e das putas O modelo de mulher santa já é perceptível desde a infância O estereótipo do gênero feminino leva por exemplo a oferta de brinquedos que reproduzem as tarefas domésticas e os cuidados com os filhos Mais tarde isso se transforma na percepção de que mulheres de verdade ou boas mulheres têm a sua sexualidade vinculada apenas para a reprodução Para as mulheres que querem viver sua sexualidade de forma livre e autônoma muitas vezes o que lhes resta é o rótulo de puta As putas são aquelas que não reprimem seu desejo sexual que se comporta se veste e age espontaneamente É aquela que também ganha o rótulo de vulgar e sem valor um objeto descartável que serve para a diversão dos homens mas não para um relacionamento E com toda essa construção fica fácil entender porque a violência contra essas mulheres é relevado ou justificado Nesse processo historicamente a sociedade prega que a sexualidade da mulher seja exercida apenas para a satisfação masculina ou para a reprodução Uma mulher que expresse sua sexualidade ou que por ventura tenha comportamentos sexuais mais explícitos ou use roupas consideradas provocantes é de imediato censurada O corpo dessa mulher é considerado público não dando a ela autonomia para exercer suas vontades e desejos A perpetuação desse sistema acaba também por contribuir com a violência contra a mulher pois ensinamos e exigimos um determinado comportamento feminino para que as Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 110 mulheres evitem serem vítimas de agressões e não ensinamos os homens a respeitar o corpo e a autonomia da mulher Enquanto mulheres somos ensinadas a nos comportar de forma a evitar um estupro não usar roupas curtas não andar sozinha em lugares escuros e desconhecidos não aceitar bebidas Ou seja a responsabilidade pelos crimes são direcionadas às vítimas deixando as viver num clima de insegurança constante SEIXAS 2013 E é essa frequente culpabilização ou desqualificação da vítima de violência que chamamos de cultura do estupro Cultura do estupro vem do termo Rape Culture que foi inicialmente utilizado pelas feministas dos Estados Unidos na década de 1970 O termo foi desenvolvido para mostrar como a sociedade culpava as próprias vítimas de abuso sexual e normalizava a violência contra a mulher O termo cultura do estupro tem sido usado com frequência para resumir todas as pequenas manifestações sociais cotidianas que banalizam a violência contra a mulher como por exemplo considerar que assédio na rua é um elogio ou que as imagens de homens apalpando mulheres contra a vontade delas são humorísticas e inofensivas Segundo Semíramis 2013 a criação do termo ocorreu nos grupos de sensibilização das décadas de 1960 e 1970 O que chamamos de cultura do estupro é exatamente essa postura de legitimar agressão de conteúdo sexual a mulheres que não se vestem ou se comportam de uma forma predeterminada Caso não sigam essas regras são julgadas e constrangidas por meio de assédio e estupro até se enquadrarem em uma das categorias É um modelo de conduta bastante moralista e inadequado para os dias atuais pois generaliza mulheres e as trata como subordinadas à vontade e julgamento dos homens É essa cultura que deve ser combatida e superada para que haja efetivamente igualdade entre homens e mulheres SEMÍRAMIS 2013 Nessa perspectiva Buchwald Fletcher e Roth 2005 afirmam que a cultura do estupro é um conjunto de crenças que incentiva a agressão sexual masculina e apoia a violência contra as mulheres Para os autores a tomada de consciência de que as mulheres em sua maioria sofrem violência por parte de pessoas conhecidas é que se começará a entender as questões de poder sexualidade e as relações de gênero que estão em torno da violência sexual Os autores pontuam que Em uma cultura de estupro tanto homens quanto mulheres assumem que a violência sexual é um fato da vida tão inevitável como a morte ou impostos Essa violência no entanto não é nem biologicamente nem divinamente ordenada Muito do que aceitamos como inevitável é de fato a expressão de valores e atitudes que podem mudar BUCHWALD FLETCHER ROTH 2005 p11 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 111 Mesmo a violência contra a mulher ser considerada um crime sério infelizmente as vítimas continuam a ser tratadas de forma incorreta e sem o respeito adequado O comportamento da sociedade na tolerância com a violência provém de discussões da temática de forma superficial alimentadas pela mídia e pela lei que permitem a circulação de mensagem ambígua retrógrada opiniões preconcebidas papéis estereotípicos e alegorias sexuais inadequadas Desta forma obtémse um resultado negativo o baixo índice de denúncias FIGUEIREDO 2000 Estudos realizados por Ferreira 2013 e Figueiredo 2014 na cultura do estupro a violência é relativizada e a culpabilização da vítima seja porque ela usava uma roupa provocante seja porque ela estava na hora errada no lugar errado que ela tenha a sexualidade ou o gênero considerado errado E a perpetuação dessa logica acaba também por contribuir com a violência pois em vez de estarmos ensinando o respeito pela diversidade ensinamos e exigimos um determinado comportamento para que a violência sofrida seja por mulheres homossexuais lésbicas travestis ou transexuais não seja justificada Cumpre salientar que o sistema policial e judicial compactua de forma nefasta no tratamento das vítimas quando da denuncia revelando sexismo discriminação e tratamento diferenciado por gênero COATES WADE 2004 Lara et al 2016 também lembra que na cultura do estupro a qualidade do agressor também é colocada à prova onde o status social dele interfere na sua punição Essa análise é feita por Vera Regina Pereira de Andrade Desta forma o julgamento de um crime sexual inclusive e especialmente o estupro não é uma arena onde se procede o reconhecimento de uma violência e violação contra a liberdade sexual feminina e tampouco onde se julga um homem pelo seu ato Tratase de uma arena onde se julgam simultaneamente confrontados numa fortíssima correlação de forças a pessoa do autor e da vítima o seu comportamento a sua vida pregressa E onde está em jogo para a mulher a sua inteira reputação sexual que é ao lado do status familiar uma variável tão decisiva para o reconhecimento da vitimação sexual feminina quanto a variável status social o é para a criminalização masculina ANDRADE apud Lara et al 2016 pg171 Assim se o caso de estupro envolve homens ricos as mulheres envolvidas passam facilmente de vítimas para a condição de julgadas E a mídia amplia de forma recorrente essa narrativa que reforço o estereotipo de uma mulher que quer se dar bem Com mulher envolvida no caso do presente estudo não foi diferente Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 112 2 ESTUDOS DO DISCURSO O presente trabalho parte dos estudos de Foucault sobre discurso para analisar as práticas sociais que são colocados em circulação a partir da narrativa construída para a apresentar o caso envolvendo um jogador famoso e uma modelo no principal programa jornalístico dominical do Brasil Assim é preciso elucidar as compreensões sobre discurso e discurso jornalístico que balizarão a análise A análise discursiva aqui empreendida põe em suspensão os conceitos sociais de certo ou errado trazendo para a cena a análise das condições que permitem o aparecimento de certos enunciados em lugar de outros Para Foucault o discurso obedece a um conjunto de regras históricas responsáveis pelo aparecimento ou suplantação de outros discursos O discurso para Foucault 1986 possui uma ordem uma normatividade com inserção histórica ou social O que interessa no problema do discurso é o fato de que alguém disse alguma coisa em um dado momento Não é o sentido que eu busco evidenciar mas a função que se pode atribuir uma vez que essa coisa foi dita naquele momento Isto é o que eu chamo de acontecimento Para mim tratase de considerar o discurso como uma série de acontecimentos de estabelecer e descrever as relações que esses acontecimentos que podemos chamar de acontecimentos discursivos mantêm com outros acontecimentos que pertencem ao sistema econômico ou ao campo político ou às instituições FOUCAULT 1986 p 255256 O jornalismo é compreendido enquanto prática social a partir da interrelação das práticas discursivas como constitutivas de saberes As práticas discursivas em Foucault são concebidas como um conjunto de regras anônimas historicas sempre determinadas no tempo e no espaço que definiram em uma dada época e para uma determinada área social econômica geográfica ou linguística as condiçoes de exercício da função enunciativa FOUCAULT 1986 p 136 Os discursos jornalísticos têm como fundamentação relatar acontecimentos que circulam em nosso cotidiano por meio dos diversos dispositivos midiáticos Esse relato é formatado a partir de um processo social de construção da realidade é resultado das condições de produção regras e arquivo Para Foucault 1986 p 149150 o arquivo define o nível de uma prática que faz surgir uma multiplicidade de enunciados como tantos acontecimentos regulares como tantas coisas oferecidas ao tratamento e à manipulação FOUCAULT 1986 p 149150 Os discursos jornalísticos estão inscritos no arquivo na prática jornalística que pressupõe uma relação recíproca entre enunciadores e enunciatários Essa aproximação é validada pelo contrato de comunicação responsável pela criação de vínculo e identidade entre Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 113 enunciador e receptor O contrato traz o conjunto de referências sobre as partes integrantes que compõem os limites da comunicação CHARAUDEAU 2006 p68 Como em qualquer prática discursiva o jornalismo enuncia a partir dos sujeitos e para outros sujeitos Foucault 2014 p9 elucida que sabese bem que não se tem o direito de dizer tudo que não se pode falar tudo em qualquer circunstância que qualquer um enfim não pode falar de qualquer coisa Considerando que o exercício da palavra por um veículo de comunicação pressupoe o contrato de comunicação é ele que dita as normas e convençoes aceitas e reconhecíveis pelos sujeitos do discurso Assim é possível afirmar que há certa regularidade na produção jornalística que o leitor espera interagir e que está posta no contrato É precípuo compreender que o discurso jornalístico não é livre autônomo axiomatizável Por mais que tente se inscrever no âmbito da neutralidade e que assim busque se legitimar socialmente através do contrato de comunicação o discurso jornalístico é também resultado de um jogo onde poder e saber se articulam e por meio do qual constituem se sujeitos lugares sociais e práticas são legitimadas e verdades são pacificadas c o discurso é um jogo estratégico e polêmico por meio do qual constituem se os saberes de um momento histórico d o discurso é o espaço em que saber e poder se articulam quem fala fala de algum lugar baseado em um direito reconhecido institucionalmente a produção do discurso é controlada selecionada organizada e redistribuída por procedimentos que visam a determinar aquilo que pode ser dito em um certo momento histórico GREGOLIN 2007 p 1415 Nesse sentido ainda que tenha como papel social informar o discurso jornalístico atua reforçando determinadas práticas e legitimandoconstruindo lugares sociais Mas Qual é o status dos indivíduos que têm o direito regulamentar ou tradicional juridicamente definido ou espontaneamente aceito de proferir semelhante discurso FOUCAULT 1986 p 57 Em Arqueologia do Saber Foucault aponta a necessidade de encontrar a lei que propicia o aparecimento dos diversos enunciados bem como o lugar de onde eles advêm Segundo o autor é preciso identificar o enunciador Esse sujeito deve estar submetido a uma dada ordem do discurso legitimada socialmente através de um status que em Foucault é a localização do indivíduo na hierarquia social Segundo Charaudeau 2012 p 63 esse lugar tem uma relação estreita com os imaginários do poder do saber Informar é possuir um saber que o outro ignora saber ter a aptidão que permite transmitilo a esse outro poder dizer ser legitimado nessa atividade de transmissão poder de dizer É na sua legitimidade historica de detentora de um saber que a mídia nesse caso o Fantástico se ampara para proporse como lugar de poder dizer Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 114 Quer dizer que uma organização legítima tem o poder da palavra e acreditase seja algo verídico o que ela afirma No caso do jornalismo produzido pelo Fantástico e nas mídias em geral tratase de uma situação em que jornalistas falam relatam divulgam discursivizam sobre a mulher a partir de um lugar historicamente construído para a mídia Face à posição socialmente ocupada pelo jornalismo o programa dominical intervém no que seu telespectador imagina compreende e pensa da e sobre a mulher É a partir dessa posição que ele é autorizado a falar para a sociedade sobre o caso que analisamos a seguir 3 ENSAIO DE ANÁLISE A análise empreendida neste artigo parte de um olhar específico determinado pelo quadro epistemológico proposto por Foucault no que se refere à análise de discurso e por Scott no que se refere às discussões de gênero O corpus que compõe a análise a seguir é formado por uma reportagem exibida pelo Programa Fantástico da Rede Globo de Televisão em 09 de julho de 2019 A reportagem de pouco mais de 10min construiu uma versão para o caso de acusação de estupro envolvendo um famoso jogador de futebol do Brasil e uma modelo O vídeo da reportagem na íntegra foi disponibilizado pela emissora na internet Dado seu alcance e centralidade a mídia parece ter um importante papel no processo de formação dos sujeitos No Brasil a televisão ao lado da internet e do rádio está entre os meios de comunicação de maior alcance junto à população O Fantástico está no ar no formato de uma revista semanal eletrônica há 44 anos firmandose como um dos programas mais antigos da TV brasileira ainda em exibição Dados do Ibope apontam que o programa em média 21 pontos de audiência atualmente Estimase que cada ponto equivale a 684202 mil telespectadores Por estes números projetase que o Fantástico atinja semanalmente um público estimado de 143 milhões de telespectadores em âmbito nacional NETO 2017 Considerando a atividade jornalística como um ordenador de verdades que contribui para a construção social da realidade o estudo dos discursos de seus produtos deve pressupor seu contexto ou formações discursivas circulação e consumo Em reportagens a vocação de apresentar a verdade ao público leitor é um valor estabelecido pelo contrato Charaudeuau 2006 p 49 lembra o conceito de efeito de verdade que é mais associado ao acreditar ser verdadeiro do que ser verdadeiro Baseia se na convicção e faz parte de um movimento de um saber de opinião da qual emerge a subjetividade do sujeito criando uma adesão ao que pode ser julgado verdadeiro pelo fato de que é compartilhável com outras pessoas e se inscreve nas normas de reconhecimento do Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 115 mundo Charaudeau 2006 p49 pondera que as mídias têm a sua maneira particular de provocar os efeitos de verdade Uma das estratégias empregadas na reportagem do Fantástico é o recurso palavra de especialista O Fantástico divulgou o laudo particular feito pela modelo que apontou hematomas em seu corpo além de evidências de transtorno ansioso e depressivo Para colocar em suspeição a prova apresentada pela autora da denúncia a reportagem apresenta um perito em tecnologia para explicar como funcionam os laudos médicos apresentados em denúncias O recorte da fala do especialista se engendra na narrativa com a função de desqualificar o dado anteriormente apresentado o perito independente pode fazer o exame contratado pela parte mas é claro que isso não tem o mesmo valor de um perito oficial Um perito da polícia ou de um perito que seja nomeado pelo juiz OFF 940 Esse tipo de discurso é colaborador desses efeitos de verdade funcionando como prova O autor pontua que os meios discursivos empregados devem tender a provar a autenticidade ou a verossimilhança dos fatos e o valor das explicaçoes dadas CHARAUDEAU 2006 p45 Por esse recorte também é possível demarcar a circulação do discurso da legitimidade do poder dizer Recorrer à fala do especialista gera um efeito de saber significativo sobre a imagem do enunciador colocandoo em um lugar de autoridade daquele que sabe ao passo que citar é fazer saber alguma coisa a outro Uma mulher mentirosa A reportagem utiliza desse recurso de prova de autenticidade sobre o dito nesse caso sobre o que é enunciado sobre a modelo em outra oportunidade quando entrevista o seu ex marido OFF foram casados por 7 anos Exmarido ela sempre teve um temperamento explosivo É uma pessoa difícil de se conter da forma como você que ela explode rapidamente naquele vídeo é ela Repórter ela tem problemas emocionais Exmarido eu sinto que ela tem essa mania de achar que tem sempre algo conspirando contra ela Repórter o filho deles já entende o que está acontecendo Exmarido o meu filho as pessoas falam como é que tá a vida dele né Ele não tem ido à escola quando eu ligo a televisão e ele escuta o nome da mãe dele ele chora Quer dizer a vida dele tá interrompida FANTÁSTICO 2019 Na reportagem o depoimento do coenunciador exmarido funciona como testemunha de uma relação conflituosa corroborando o discurso acusatório do enunciador e reforçando uma das imagens discursivas colocadas para a modelo Para dar mais força para a dimensão discursiva de sua loucura a fala em off realizada pela reporter a imprensa divulgou que ela Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 116 em 2014 tinha agredido com uma faca o então marido dela na época Uma mulher desiquilibrada Ainda sobre o discurso relatado a reportagem faz o uso dessa estratégia em dois outros momentos importantes A narrativa apresenta por duas vezes durante os 10min de exibição uma fala do coenunciador exmarido dizendo ter recebido ameaças de morte Um recorte aparece logo no início da reportagem e depois o enunciado é reprisado durante a entrevista com ele 024s fui ameaçado também através da rede social Ameaçado de morte dizendo que se o não jogar a copa américa eu ia ser morto 732 algumas ameaças bem patéticas dizendo que se o não jogar a copa américa eu ia ser morto FANTÁSTICO 2019 Observando a relação do verbal com o nãoverbal e considerando que essa imbricação produz sentidos específicos em diferentes linguagens podemos inferir traços de ironia na fala do coenunciador E para análise sobre a ironia apresentada no discurso do coenunciador ex marido há de se buscar ainda que tomando um certo distanciamento teórico de Foucault porém pertinente para essa análise o ponto de vista de Ducrot sobre os enunciados irônicos Distante mas pertinente na medida que se faz necessária a compreensão de alguma razão pela qual o enunciador principal da reportagem o Fantástico abriu a reportagem com esse enunciado aos 024s e o reforçou fazendoo aparecer mais uma vez aos 732 Segundo Ducrot para serem qualificados como irônicos tais enunciados precisam cumprir três condições a Entre os pontos de vista apresentados no enunciado há pelo menos um que é absurdo insustentável b O ponto de vista absurdo não é atribuído ao locutor c No enunciado não se expressa nenhum ponto de vista oposto ao ponto de vista absurdo ou seja não é retificado por nenhuma Pessoa O autor denomina irônico o enunciado cujo ponto de vista absurdo é atribuído a um personagem determinado que se busca ridicularizar DUCROT 1987 p 2021 Para o autor é fundamental que o ponto de vista absurdo apresentado pelo enunciador Ducrot vai chamar de locutor não possa ser por este assumido Parece que a estratégia de reafirmar o discurso absurdo do coenunciador exmarido é utilizado como estratégia discursiva que sustenta a mudança de um sentido literal do enunciado para um sentido derivado O que buscamos mostrar a partir do conceito de enunciado irônico de Ducrot é que o sentido derivado da ironia desse enunciado encontra sentido na oportunidade de ridicularização do caso em questão a denúncia de estupro Beira o absurdo condicionar o fato de o jogador jogar a Copa América à sobrevivência do coenunciador exmarido e numa Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 117 possível janela de interpretação analisar é interpretar seria tão absurdo quanto o herói nacional ser acusado de estupro por uma desconhecida Além disso essa ironia se enreda com a narrativa construída sobre a modelo ser desequilibrada e louca assim é fácil concluir que o jogador é que é inocente e essa mulher está causando Tirando ele da Copa América acabando com a vida do filho e do exmarido Tudo isso porque quer dinheiro e fama Uma mulher louca Charadeau 2012 também aponta que outra forma de criar os efeitos de verdade é trabalhar com a verossimilhança reconstituindo analogicamente o mundo dos acontecimentos que já ocorreram Para contextualizar o surgimento da modelo a reportagem volta ao local em que ela cresceu como na passagem descrita abaixo realizada pela repórter Foi nesse bairro na zona sul de São Paulo Jardim São Luiz que passou grande parte de sua infância e toda a sua adolescência Ela nasceu em Dario Meira no interior da Bahia e veio pra cá com cinco irmãos e mãe que criou os seis filhos trabalhando como empregada doméstica foi secretária mas ficou bastante tempo parada para cuidar do filho que nasceu quando ela tinha 19 anos FANTÁSTICO 2019 Para contar essa história a passagem apresenta a repórter atravessando a rua da comunidade Jardim São Luiz O Jardim São Luiz atualmente é um distrito da cidade de São Paulo e um dos mais densamente povoados da capital paulista Uma paisagem prototípica de um bairro de periferia ilustra a passagem da repórter Ao fundo morro muros pichados e casas sem acabamento e pintura erguidas na desordem urbana se juntam à rua sem calçadas estacionamento e sinalização por onde transitam carros populares e transportes coletivos característicos das comunidades como a Kombi branca Para Foucault imagem e linguagem são irredutíveis uma a outra por mais que se diga o que se vê o que se vê não aloja jamais no que se diz e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam mas aquele que as sucessões da sintaxe definem FOUCAULT 1986 p 25 A narrativa segue com contextualização da origem da modelo Além do retrato da comunidade onde passou a infância e adolescência com sua mãe enunciada como empregada doméstica e mãe de outros cinco filhos seis com ela a reportagem utiliza a origem nordestina da família Nesse ponto observamos uma contradição característica dos discursos A narrativa parece reafirmar o estereótipo do retirante nordestino humilde com muitos filhos que migra para o sudeste em busca de melhores condições e que de alguma forma vence na vida Geralmente esse discurso embasa uma formação discursiva inscrita na ordem da meritocracia Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 118 Mas da forma como essa discursividade sobre a origem da modelo se engendra na narrativa parece contradizer esse discurso eleito para os migrantes do Nordeste Aqui esse recorte da história parece apagar a história nordestina dela para corroborar a narrativa de que ela foi em algum momento trabalhadora mas que parou de trabalhar porque foi mãe jovem condição que é utilizada para reafirmar outras imagens eleita para ela menina de origem humilde da periferia mãe jovem e que quer emergir Uma mulher alpinista social Um dos principais elementos utilizados pela reportagem na construção da narrativa discursiva é o fragmento de um vídeo vazado o qual mostra os dois personagens da trama em uma situação de conflito Segundo as informações divulgadas pela mídia o vídeo foi gravado pela modelo no dia seguinte à agressão O trecho vazado tem cerca de 10 segundos e mostra a modelo e o jogador conversando em um quarto e na sequência uma briga A modelo começa a falar mais alto dá um tapa no atleta que coloca os pés em sua direção O trecho é mostrado pela reportagem por 8 vezes Por 8 vezes em apenas 10 minutos o vídeo é colado a algum texto como vemos na tabela a seguir Tabela 1 Recortes discursivos do vídeo vazado Recorte discursivo RD Tempo da reportagem Texto do off RD1 015 Promessa de um encontro amoroso vira caso de polícia RD2 329 Tentativa de acordo com o pai de tinha fracassado RD3 418 O jogador foi gravado num segundo encontro no dia seguinte ao suposto estupro RD4 503 Desentendimento naquele segundo encontro RD5 530 O atleta é agredido pela modelo e deixa o hotel RD6 654 A modelo tem um temperamento explosivo RD7 938 Advogado ameaça deixar o caso se o vídeo não reaparecerimagens RD8 1007 Fala de especialista sugere o que fazer para provar veracidade do vídeo Fonte Elaborado pelos autores Nas oito vezes em que o vídeo é mostrado a modelo veste lingerie salto alto e meia calça preta A imagem do vídeo mobiliza sentidos já estabilizados no seio social de que a mulher que usa lingerie sexy num encontro em um quarto de hotel tem a intenção de seduzir A primeira cena do vídeo reforça essa narrativa pois é a modelo deitando sobre o corpo do jogador Uma mulher obscena devassa Essa imagem também é reforçada pela exibição das mensagens trocadas pelos dois personagens Colada à narrativa da obscenidade a insistência na exibição do vídeo parece ter a Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 119 intenção de reverter papéis consolidados pelo imaginário social numa situação de violência sexual a mulher vira a agressora e o homem a vítima Uma mulher bandida O jogador herói nacional abatido O programa também coloca em suspeição o caso quando por duas vezes afirma que o vídeo foi gravado num segundo encontro dando a entender para o espectador que se houvesse de fato acontecido um estupro na noite anterior não haveria a possibilidade de a vítima querer encontrar seu agressor novamente O vídeo então seria uma armadilha para o famoso jogador Também no RD8 está imbricado nesse quesito de suspeição do caso pois recorre mais uma vez a fala de um especialista discurso relatado para deslegitimar a veracidade do vídeo mostrando formas de provar a real autenticidade Nesse ponto é possível assinalar mais uma vez a contradição própria do discurso Ao mesmo tempo que exibe o vídeo praticamente a cada minuto da reportagem funcionando como prova que materializa todos os estereótipos construídos para a modelo sua imagem discursiva e o testemunho do coenunciador ex marido a própria reportagem desqualifica o vídeo quando recorre a fala do especialista perito em tecnologia A reportagem toda a vez que mostra o homem envolvido no caso associa a imagem dele como jogador de futebol vestindo a camisa da seleção brasileira ou de um famoso time de futebol internacional uma pessoa que está a serviço do seu país Já a imagem da modelo é sempre associada ao vídeo vazado e aos relatos do exmarido pacificando um lugar social bem distinto aos dois a mulher como a golpista o homem como o herói que caiu numa emboscada CONSIDERAÇÕES FINAIS O campo jornalístico embora defenda ser um espaço de neutralidade baseado na sua função social de informar revela a partir de seus discursos os embates ideológicos as pressões sociais e os posicionamentos dos sujeitos A partir da análise sobre a reportagem do Fantástico podemos perceber que o ethos do enunciador da matéria é o de um narrador justiceiro que provoca indignação social ao construir o enunciado de que mulheres armam situações de agressão para conseguir alguma vantagem em cima de homens ricos e famosos É preciso ter presente que numa sociedade machista e patriarcal é perceptível que há construções firmadas do gênero feminino e que na maior parte das vezes essas construções estão nos polos de desvalorização Há um fundamento histórico que posiciona os gêneros socialmente e nele as mulheres estão em desvantagem Os estereótipos de gênero historicamente construídos e historicamente disseminados Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 120 através de discursos estabilizados no seio social encontram na matéria do Fantástico um espaço privilegiado para mais uma vez serem amplamente reforçados como verdades pacíficas A mulher discursivizada pela reportagem como toda mulher louca é alpinista social desequilibrada e claro puta Suas artimanhas colocaram o jogador numa cilada Logo se ele cometeu algum tipo de violência ela teve o que mereceu pois procurou por isso A imbricação de texto e imagem resultam na fórmula clássica da culpabilização feminina uma mulher má e devassa que procura usar um homem rico para satisfazer suas necessidades materiais quando não consegue o acusa de estupro E caso alguma violência tenha acontecido a culpa é da mulher por não ter um comportamento aceito de mulher direita Através de sua produção discursiva própria a mídia seleciona exclui realiza a colagem de texto e imagem imputando a aquisição de certa informação por parte do receptor em detrimento de outra Criando o que podemos tipificar para acompanhar Foucault 1986 a própria ordem discursiva do sistema midiático É dessa prática que também resulta um saber imbuído de efeitos de verdades Estas veiculaçoes consideradas verdades pacíficas conquistam a admiração e promovem a adesão por parte do telespectador aos fatos A constelação discursiva construída para mostrar quem é a mulher neste caso se deu por uma trama extensa construída por enunciados de terceiros Através da entrevista do ex marido falas de especialistas exploração de sua origem humilde e do vídeo que foi vazado Essas marcas imagéticas trabalham para reproduzir um contexto de intolerância à liberdade da mulher ser e agir no mundo reforça o discurso conservador machista configurando para a mulher que segue seus desejos uma condição discursiva que está correlacionada à figura da mulher golpista histérica bandida obscena alpinista social Essa condição é reforçada no momento em que é colocada em confronto a imagem discursiva dos dois personagens envolvidos no caso o sofrimento de um herói nacional vítima de um escândalo versus uma mulher livre Para o homem a reportagem guarda uma narrativa de que ele é uma vítima de uma mulher que busca fama e dinheiro Tanto é vítima que é tirado de um treino da Copa América para prestar esclarecimentos e depois acaba se machucando durante o jogo A reportagem parece estar a serviço da naturalização do comportamento machista de que os homens por definição estão autorizados a serem promíscuos e no caso dele por uma fatalidade caiu na armadilha de uma mulher golpista Esses rastros demonstram a colocação do gênero masculino num polo de valorização Mesmo estando na posiçãosujeito vítima o que poderia ser entendido como um fator desqualificante o jogador é tratado como o herói da seleção brasileira que só quis satisfazer Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 121 um desejo sexual o que lhe é permitido e é seu direito nada mais A acusação de estupro é apenas um infortúnio pelo qual o jogador está sofrendo O que parece estar evidenciado pelos rastros discursivos da reportagem é que mesmo que tivesse realmente estuprado a modelo o que a narrativa do programa não sugere o jogador teria sido absolvido pela opinião pública pois a vilã já estava desmascarada Uma dimensão também importante de salientar é a exploração das imagens reais dos dois personagens durante a reportagem Enquanto a imagem do homem é veiculada diversas vezes na posição de jogador da seleção brasileira de futebol defensor da pátria habilidoso goleador e jogador de um premiado time internacional a modelo aparece duas vezes uma através de fotografia e outra em um trecho de reportagem que ela concedeu a outra emissora E todas as outras imagens dela são oriundas do vídeo em que ela aparece com o jogador no quarto de hotel Além disso trabalhando como elemento de defesa do jogador aparecem imagens do seu pai com a repetição de uma fala proferida por ele afirmando que o jogador caiu em uma armadilha além de um vídeo no qual o próprio jogador dá a sua versão dos fatos veiculado em uma rede social ação pela qual o jogador é investigado por crimes de informática pela divulgação de fotos íntimas pela internet Por outro lado os testemunhos trazidos para corroborar o discurso da modelo como seu exmarido o advogado que abandonou o caso dela a sua origem etc só reforçam uma imagem que já parecia estar pré definida para a modelo O que apontamos é que as marcas que emergem no discurso da reportagem são também um modo de discursivisar a mulher Ao fazer isso no nível do discurso o enunciador despeja sobre este sujeito características de indivíduos que socialmente são tratados como escória social e que como tal devem ter excluídos do convívio por ter um comportamento não autorizado Esse caso da forma abordada pelo Fantástico promove com maestria o reposicionamento das hierarquias de gênero Ao fim dessa breve análise foi possível compreender como o funcionamento da ordem discursivomidiática coloca em circulação discursos que recebem valores e se cristalizam como verdades pacíficas no conjunto social ao passo que silencia outros E se os discursos são frutos de um tempo esse parece ser o tempo que reconfigura através de discursos como o veiculado pela reportagem verdades sociais historicamente construídas Narrativas como a proposta pela reportagem são contribuintes diretas pelo lugar social que os meios de comunicação ocupam para a legitimação de práticas que recortam um determinado espaço social para a mulher apagando sua busca pela liberdade dos seus desejos sexuais e autonomia sobre seu corpo além de todas as outras lutas que as mulheres encampam cotidianamente O Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 122 fechamento da reportagem que não ouviu a modelo nenhuma vez se insere nessa esteira pois afirma que somente a assessoria do jogador foi procurada para se manifestar sobre o caso A mulher mais uma vez foi silenciada REFERÊNCIAS BARDIN Laurence Análise de conteúdo Lisboa Ediçoes 70 1977 BUCHWALD Emilie FLETCHER Pamela ROTH Martha Transforming a rape culture Minneapolis Minnesota MilkweedEditions 2005 BUTLER J Problemas de gênero feminismo e subversão da identidade Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2003 CABRAL F DÍAZ M Relações de gênero In SECRETARIA MUNICIPAL DA EDUCAÇÃO DE BELO HORIZONTE FUNDAÇÃO ODEBRECHT Cadernos afetividade e sexualidade na educação um novo olhar Belo Horizonte Gráfica e Editora Rona Ltda 1998 p 14250 CHARAUDEAU Patrick Discurso das mídias 2 ed São Paulo Contexto 2012 COATES L WADE A Telling it like it isnt Obscuring perpetra to responsibility for violent crime DiscourseSociety v15 n5 p49926 2004 DUCROT Oswald Esboço de uma teoria polifônica da enunciação O dizer e o dito Campinas Pontes 1987 FERREIRA Gleidiane de Souza Violência tem gênero Crimes de estupro em inícios do século XX no Brasil Anais Eletrônicos Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 Florianópolis 2013 ISSN 2179510X FIGUEIREDO Débora de Carvalho Discurso gênero e violência Linguagem e Direito v 1 n1 p 14158 2014 FOUCAULT Michel A arqueologia do saber 2 ed Rio de Janeiro Forense Universitária 1986 FOUCAULT Michel A ordem do discurso aula inaugural no Collège de France pronunciada em 2 de dezembro de 1970 24 ed São Paulo Ediçoes Loyola 2014 FOUCAULT Michel Análise do discurso e mídia a reprodução de identidades In Comunicação mídia e consumo São Paulo vol 4 n 11 p 1125 25 nov 2007 Disponível emhttpwwwrevistasunivercienciaorgindexphpcomunicacaomidiaeconsumoarticleview File68656201 Acesso em jul 2019 LARA Bruna de RANGEL Bruna MOURA Gabriela BARIONI Paula MALAQUIAS Thaysa Meu Amigo Secreto feminismo além das redes Rio de Janeiro Edições de Janeiro 2016 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 123 LINS Beatriz Accioly MACHADO Bernardo Fonseca ESCOURA Michele Diferentes não desiguais a questão de gênero na escola 2016 1 Edição São Paulo Editora Reviravolta LOURO Guacira Lopes Um corpo estranho ensaios sobre sexualidade e teoria queer Belo Horizonte Autêntica 2004 NETO Silvio Pinto Anunciação No Show da vida há um impossível para a ciência s efeitos de sentidos sobre o discurso jornalístico do Fantástico Dissertação de mestrado Campinas Unicamp 2017 SEIXAS Bruna Transgressor é não ser machista Gerald Thomas e a cultura do estupro Abril 2013 Disponivel httpmarchadasvadiasdfwordpresscom20130416transgressore naosermachistageraldthomaseaculturadoestupro Acesso em 20 abr 2013 SEMÍRAMIS Cynthia Sobre a cultura do estupro Março 2013 Disponível httprevistaforumcombrblog201304culturadoestupro Acesso em 27 abr 2013 SCOTT J W Gender a useful category of historical analysis Gender and the politics history New York Columbia University Press 1989 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 124 OS REFLEXOS DA SOCIABILIDADE PATRIARCAL NA VIDA DAS MULHERES Carla Júlia da Silva1 Larisse de Oliveira Rodrigues2 RESUMO O presente artigo buscou analisar aspectos do patriarcado e seus rebatimentos na vida das mulheres Assim tornouse perceptível que o sistema patriarcal de sociabilidade ao longo da história e através de suas expressões têm violentado profundamente as mulheres nas múltiplas dimensões de suas vidas Diante de reflexões como esta o artigo objetivou mediante pesquisas bibliográficas apresentar elementos imbuídos em discussões sobre o patriarcado e apontar alguns dos impactos de tal sistema no cotidiano feminino Posteriormente a pesquisa abordou traços do machismo que tem se materializado em práticas de silenciamento e outros tipos de violência atentando para o fato de que as vítimas em questão têm sido habitualmente marcadas por condutas de exploração dominação e opressão Por fim é trazido ao debate o papel do feminismo visto enquanto um movimento social que desde sua gênese tem tido um caráter denunciador e de enfrentamento às situações de violência contra as mulheres além de ser um mecanismo que contribui massivamente com o processo de superação de uma sociedade imersa em desigualdades impostas por uma estrutura patriarcalracistacapitalista Palavraschave Patriarcado Mulheres Violência contra a mulher Relações Sociais INTRODUÇÃO Mediante compreensão de que a sociedade está sob o domínio de uma estrutura patriarcalracistacapitalista fazse necessário maturar um olhar crítico de como se dá a vivência das mulheres inseridas nesse sistema Tal movimento de reflexão pode ser realizado através da pesquisa social que tem como princípio basilar construir uma análise crítica da realidade enxergandoa como um espaço permeado por conflitos e contradições Considerando o fato de que embora haja inúmeras mudanças na inserção e participação ativa das mulheres nos núcleos familiares e em setores como o político educacional econômico e jurídico a sociedade ainda é marcada pela desigualdade de poder imposta pelas relações patriarcais baseadas no binômio exploraçãodominação tendo como um dos seus pilares o machismo Este por sua vez manifestase seja de maneira velada ou explícita nos mais diversos contextos sociais desenvolvendo contra a mulher as múltiplas violências 1Estudante Graduanda do curso de Serviço Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte Email carlajshotmailcom Lattes httplattescnpqbr3899458100145928 2Professora Doutora em Serviço Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro 2017 Professora Adjunta do Departamento de Serviço Social DESSO da Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN Email larisseufrngmailcom Lattes httplattescnpqbr5550946007100013 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 125 A análise aqui feita dedicouse a visualizar como se expressa o silenciamento feminino e outros tipos de violência a exemplo da física sexual psicológica e outras mais compreendendoas enquanto mecanismos passíveis de acontecerem simultaneamente de maneira entrecruzada e que dominam e exploram mulheres Uma vez inserido em um corpo social fundado em moldes patriarcais tornase imprescindível que haja uma fomentação de debates e produção de trabalhos acadêmicos acerca de questões dessa natureza As reproduções de esquemas desenhados por culturas machistas configuramse como uma problemática geradora de contradições estando imbricadas nas instituições sociais como por exemplo o Estado a família escolas igrejas assolando então o cotidiano das mulheres o que acarreta agravos para a existência destes sujeitos 1 METODOLOGIA A realização da pesquisa se deu através do caráter bibliográfico que expõe determinados estudos presentes em livros revistas e artigos baseandose em grandes teóricos as como Danièle Kergoat Friedrich Engels Heleieth Saffioti Rebecca Solnit dentre outros pensadores que trabalham as categorias que aqui se fazem pertinentes tais como divisão sexual do trabalho patriarcado e feminismo Assim o conteúdo tem por objetivo reunir e articular um máximo de conhecimentos na intenção de obter uma proximidade com a essência do objeto O propósito do artigo no entanto não é de cessar a discussão tendo em vista que por se tratar de um processo dialético os fenômenos presentes na realidade não estão passíveis de esgotamento teórico A intenção é portanto contribuir com o desenvolvimento dos debates acerca da estrutura que proporciona o desenvolvimento das desigualdades entre homens e mulheres Logo o encorajamento em desenvolver a investigação visa colaborar com as discussões analisadoras do sistema de relações patriarcais compreendido como um aparato que além de outras manifestações silencia invisibiliza e viola direitos Consequentemente há uma intencionalidade de fazer as mulheres refletirem sobre esses percursos de violência e assim lutar contra os mesmos Para tanto passa a ser relevante criar ambientes de debates e fortalecer os dispositivos existentes para que através de lutas coletivas elas possam ocupar de forma plena e digna tanto espaços as quais estão inseridas quanto àqueles que ainda não ocuparam 2 DESENVOLVIMENTO Ao passo que são construídas análises da categoria Patriarcado tornase necessário enxergála como um fundamento histórico arraigado na estrutura social Além de um forte significado concreto este componente possui também uma considerável história semântica De Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 126 acordo com a socióloga francesa Christine Delphy na tradução fiel constatase que o conceito mencionado significa a regra do pai tendo sua origem na linguagem grega Assim a palavra é a soma dos termos gregos pater pai e arkhe origem e comando Em uma perspectiva marxista de análise da realidade é possível conceber o patriarcado como uma ordenação socialmente construída um conjunto de relações de dominação e exploração do grupo dominante sobre o dominado Tal processo é considerado um dos mais antigos na formação sóciohistórica no entanto ele acaba ganhando outras dimensões com o surgimento do Modo de Produção Capitalista MPC uma vez que o capitalismo é um sistema econômico classista que baseiase na divisão social e sexual do trabalho na propriedade privada e na exploração das massas gerando um permanente acirramento entre as classes Considerando que por ser em potencial um adensador da desigualdade entre homens e mulheres o patriarcado alimenta a perspectiva de que um sujeito é naturalmente inferior ao outro Neste sentido têm fortalecido ideologias que inferiorizam mulheres em diversos níveis tanto em sua atuação na esfera pública onde exercem mesmo sob condições precárias funções produtivas quanto na esfera privada mais especificamente no ambiente familiar local onde ficam sobrecarregadas com todas as tarefas domésticas tarefas estas que na sociedade burguesa é tido como prioritariamente feminina Diante disso é possível enxergar que os valores patriarcais desenvolvemse como um dos instrumentos funcionais à manutenção do MPC Este por sua vez viabiliza os meios necessários para difundir ideais conservadores dentro das instituições que compõem a engrenagem social Tais posicionamentos portanto inclinamse sumariamente a favor dos interesses da classe dominante a qual possui a necessidade de difundir suas convicções burguesas A maneira como as instituições sociais bem como a igreja escolas e demais que frequentemente e em diferentes níveis estão contribuindo com a formação social dos sujeitos reproduzem o patriarcado desvelase nas mais diversas ações presentes no cotidiano Violência diferença salarial marginalização do trabalho feminino forte ausência em cargos de chefia sobrecarga de trabalho doméstico não remunerado legislação que exerce controle sobre seus corpos e sexualidade e os elevados índices de feminicídio são alguns traços que evidenciam o intenso mando dos homens sobre a vida das mulheres No intuito de compreender da forma mais acertada possível sobre as múltiplas desigualdades e violações de direitos que penetram a vida da mulher é de suma importância não tangenciar o patriarcado das discussões como tem sido sugerido por algumas correntes feministas que argumentam a superação dessa categoria haja vista que a dominação nas atuais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 127 relações sociais não provém apenas do pai ou do cônjuge Porém como bem afirma Saffioti 2011 p47 o patriarcado não abrange apenas a família mas atravessa a sociedade como um todo Posto isso abrir mão de nominar esse sistema secular cria espaço para que possivelmente ele tome um caráter natural e deixe de ser visto como algo que foi socialmente construído Refletir pesquisar e escrever sobre o patriarcado como uma estrutura que tem sido forjada pelos homens permite enxergálo como um sistema passível de ser superado via luta coletiva das mulheres e da sociedade como um todo Nas comunidades primitivas já havia uma separação do que seria atividade feminina e masculina no entanto foi a consolidação do modo de produção capitalista que permitiu à divisão sexual do trabalho novos contornos Assim em tais formas de sociabilidade enquanto o pai ficava encarregado de procurar os alimentos e os instrumentos de trabalho a companheira era incumbida de conservar os utensílios domésticos e de tutelar os filhos Portanto ao homem cabia a função de prover e a mulher a de cuidar No capitalismo que apresenta uma nova configuração de sociedade e de relações sociais a questão do sexo biológico dos sujeitos é usada de maneira ainda mais forte como justificativa para fazer a separação dos ofícios caracterizando portanto a divisão sexual do trabalho Em vista disso tal fenômeno vem dinamizandose conforme a estruturação dos modelos societários e segundo Kergoat 2009 p 1 configurase como A forma de divisão do trabalho social decorrente das relações sociais de sexo essa forma é historicamente adaptada a cada sociedade Tem por característica a destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e simultaneamente a ocupação pelos homens das funções de forte valor social agregado políticas religiosas militares etc KERGOAT 2009 p1 Bem como já mencionava Friedrich Engels durante os anos de 1860 em sua obra A origem da família da propriedade privada e do Estado o repartimento das funçoes entre os membros da família contribuiu para a elaboração de uma ordem em que a atribuição do homem seria a de ficar responsável pela manutenção da ordem no lar Em contrapartida a mulher convertida em escrava estaria responsável por satisfazer todos os desejos do homem além de ser rebaixada a um mero instrumento incumbido pela reprodução da prole Segundo o filósofo alemão a primeira divisão de tarefas entre homens e mulheres dentro da concepção de família monogâmica girou em torno da procriação de filhos devido à necessidade de deixar para os herdeiros as riquezas acumuladas pelo pai Em razão disso a paternidade era algo que sob nenhuma condição poderia ser contestada considerando que Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 128 envolvia a honra do homem e toda riqueza a qual tinha acumulado durante sua trajetória A mulher portanto deveria exercer com louvor dentre suas atribuições a fidelidade ao seu esposo Sendo assim só ao homem era reservada tanto a possibilidade de romper com a união quanto à de praticar a infidelidade conjugal O ideal de monogamia se efetivou apenas na realidade feminina Nitidamente o primeiro modelo monogâmico e heterossexual de família pautase no interesse de concentrar bens e fazer a propriedade privada sobressair diante da propriedade comum Nada tinha a ver com preferências individuais ou com desejos naturais entre os sujeitos Tratavase de relações baseadas puramente na conveniência A partir das ponderações feitas fica minimamente visível que as relações fundadas no sexo biológico não se tratam de um fato exclusivo do MPC mas que vem se desenhando desde os primeiros modelos de sociabilidade No entanto é só no capitalismo que esse fenômeno ganha traços mais agudos e violentos Assim a grande questão da divisão sexual baseiase em dois pontos o primeiro diz respeito à separação estabelecer que existam trabalhos de homens e trabalhos de mulheres O segundo ponto como consequência do primeiro está ligado à hierarquização das funções que significa estabelecer quais ocupações devem ser mais valorizadas socialmente Embora seja um processo antigo a socióloga francesa Danièle Kergoat em suas obras pontua assiduamente que esse fenômeno não é um sistema natural e por isso não advém propositalmente das características biológicas que possuem os sujeitos Tratase pois de uma relação construída socialmente que envolve poder dominação e hierarquização entre os sexos manifestandose de diferentes formas em cada período da história Com base nestes princípios dentre outros que conjuntamente compõem as relações patriarcais de gênero é possível observar que essa formação progressivamente tem no campo simbólico e material dominado as mulheres e enfatiza substancialmente a percepção da supremacia masculina O modo como essas relações assimétricas entre os sujeitos se materializam provocam inúmeros rebatimentos concretos na vida das mulheres Um dos primeiros efeitos dessas desigualdades se dá a partir da extensa jornada de trabalho colocada para mulher Embora conquiste espaço no mercado formal de trabalho continua a ser preponderantemente responsabilidade dela a execução das tarefas domésticas como manter a casa em ordem cuidar das crianças e dos demais indivíduos que com ela residem Por não gerar lucro ao capitalismo as tarefas domésticas executadas pelas mulheres estão longe de serem valorizadas e remuneradas pelo capitalismo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 129 Outra implicação que permeia a vida delas principalmente no que tange à conquista de sua autonomia financeira é a perpetuação da discrepância salarial São notórias as transformações e conquistas no entanto ainda é possível visualizar o estado de subordinação feminina na sociedade É importante destacar também a questão da hierarquia dentro das corporações enquanto um fator que intensifica a violência de gênero haja vista que os homens em sua maioria são os sujeitos que têm ocupado os cargos mais altos utilizandose dessas relações de poder para desenvolver práticas de intimidação assédio agressões sexuais verbais etc Mesmo tendo conquistado uma maior participação na vida pública na esfera produtiva é importante atentar para o fato de que o patriarcado tem há muito tempo reservado para as mulheres apenas o espaço privado doméstico enquanto os homens transitam livremente pelos espaços públicos e políticos ocupando massivamente as funções que são valorizadas pelo modo de produção vigente Para refletir sobre a condição das mulheres no mercado a precarização enfrentada desvalorização de funções desempenhada por elas é relevante atentar para algumas problemáticas de longa data Heleieth I B Saffioti em sua obra A mulher na sociedade de classes mitos e realidade faz alguns apontamentos acerca dos papéis sociais que foram designados esse grupo durante toda a história A autora indica que desde o período colonial durante os séculos XVI e XVII a mulher já se encontrava reclusa e ignorante em relação a qualquer tipo de instrução O ideal de educação feminina circunscreviase exclusivamente às prendas domésticas SAFFIOTI 1976 p197 Saffioti expõe também que no Brasil a primeira matrícula feminina em curso superior só foi registrada no ano de 1881 o que aponta para uma inserção tardia das mulheres nos espaços de ensino Os primeiros cursos nos quais as senhoras conseguiam se inserir mesmo mediante permissão dos cônjuges foram em áreas como a pedagogia serviço social enfermagem Em virtude da perpetuação da lógica patriarcal em que as mulheres são as principais responsáveis pelo processo de reprodução as profissões citadas acima continuam sendo ocupadas majoritariamente por mulheres o que reforça ainda mais o estigma de que são ocupações do cuidado que demandam delicadeza características pensadas socialmente como exclusivas das mulheres Se a entrada da mulher na esfera da educação formal se deu a passos lentos em termos de participação no espaço político não foi diferente No entanto é primordial memorar que a luta feminista teve um papel significativo para o alcance dessa e de outras conquistas No Rio Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 130 Grande do Norte o então Governador Juvenal Lamartine introduziu no Art 77º da constituição de 1926 a seguinte disposição No Rio Grande do Norte poderão votar e ser votados sem distinção de sexos todos os cidadãos que reunirem as condiçoes exigidas por esta lei A partir daí as mulheres norteriograndenses foram pioneiras no que tange ao exercício de direitos políticos Fazer o esforço analítico de descortinar determinados momentos históricos contribui para dar luz e desmistificar uma cultura que frequentemente naturaliza as desigualdades e culpabiliza a mulher por sua situação de submissão frente a outros sujeitos A questão da maternidade colocada de maneira compulsória a não consideração das atividades domésticas como trabalho passível de remuneração a entrada tardia da mulher no mercado de trabalho o desafio de conciliar as atividades laborais com as do lar a dificuldade em se preparar intelectualmente para ocupar melhores cargos são alguns dos aspectos que advém da divisão sexual do trabalho fazendo com que as mulheres sejam partícipes de relações desfavoráveis Dessa forma tais sujeitos entram no mercado de trabalho e nas relações sociais da vida cotidiana com uma desvantagem Portanto A desigualdade longe de ser natural é posta pela tradição cultural pelas estruturas de poder pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais Nas relações entre homens e entre mulheres a desigualdade de gênero não é dada mas pode ser construída e o é com frequência sic SAFFIOTI 2004 p71 Assim é possível enxergar que a base material do patriarcado tem se mantido firme na força política do Estado no âmbito da educação nas relações familiares e nos demais ambientes Pensar nos desafios que atravessam a convivência entre homens e mulheres é refletir primordialmente acerca das violações às quais as últimas estão sujeitas e que embora com roupagens novas continuam a se reproduzir Em Gênero Patriarcado e Violência Saffioti expõe o fato da ressignificação que o termo violência tem passado Este antes era conceituado como ruptura de qualquer forma de integridade da vítima integridade física integridade psíquica integridade sexual integridade moral não palpável Saffioti 2004 p 17 Atualmente com os direitos universais entendese por violência todo agenciamento capaz de violar os direitos humanos No que corresponde às disparidades os institutos de ensino locais de trabalho e órgãos políticos não são os únicos ambientes que as replicam O recinto familiar por sua vez tornase palco regulares de episódios que destacam a opressão vivenciada pelas mulheres em seus lares seja diante do pai irmão companheiro íntimo ou outra figura masculina No momento em que se fala dessas relações fazse relevante mencionar que a violência doméstica tem dado sumariamente a materialidade para essas desigualdades ocorridas nos recintos familiares Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 131 Em nível nacional a violência doméstica e familiar contra a mulher segundo a Lei Maria da Penha Lei 1134006 configurase como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte lesão sofrimento físico sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial A partir disso é importante destacar que segundo pesquisas elaboradas pela Organização Mundial da Saúde no ano de 2013 o Brasil dentre 83 países têm ocupado a 5ª posição de feminicídios Segundo dados também da OMS entre 1980 e 2010 92 mil mulheres foram assassinadas no país Tais resultados mostram portanto que a Lei Maria da Penha embora seja um marco legal imprescindível considerada a 3ª melhor lei de acordo com a Organização das Nações Unidas ONU em relação ao combate da violência doméstica não têm sido suficiente para decrescer a violência de gênero contra as mulheres Para além de dados estatísticos é preciso analisar a violência doméstica contra a mulher enquanto uma das faces da questão social3 como um problema de alta gravidade que tem sido construído socialmente e utilizada como um instrumento de poder e dominação de um grupo sobre o outro A personificação da violência é uma expressão do patriarcado que se encontra enraizado não só na cultura brasileira mas em vários países permeando as diversas relações sociais e acima de tudo comprometendo o desenvolvimento dos sujeitos e limitando o exercício da cidadania por parte das vítimas O enfrentamento para este tipo de violência deve ser visto como um processo contínuo pois fora as questões já mencionadas tal problema diz respeito também à saúde pública tendo em vista que é um mecanismo de submissão discriminação e controle que afeta as mulheres de diferentes formas seja a sua integridade física sexual moral psíquica ou patrimonial A perpetuação de condutas desta natureza tem acarretado nestes sujeitos danos à saúde bem como adoecimento mental que se apresenta em transtornos ou quadros depressivos Além disso os relacionamentos violentos facilitam a gravidez não desejada e a contaminação por infecções sexualmente transmissíveis O grau das violências pode variar e chegar a mais alta instância de controle do homem sobre a mulher que é justamente o assassinato dela É sabido que o fenômeno da violência contra a mulher bem como já dito anteriormente ultrapassa a esfera da vida privada ou seja vai para além de suas residências atravessando portanto os diversos espaços públicos E embora na maioria das vezes ela não se consume Segundo Iamamoto 1998 p27 A Questão Social é apreendida como um conjunto das expressoes das desigualdades da sociedade capitalista madura que tem uma raiz comum a produção social é cada vez mais coletiva o trabalho tornase mais amplamente social enquanto a apropriação dos seus frutos mantémse privada monopolizada por uma parte da sociedade Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 132 mediante agressões físicas insiste em aparecer de maneira velada de forma tão sutil que facilmente é naturalizada por quem assiste ou até mesmo por quem está sendo vítima dos ataques tendo em vista que alguns atos mantêm limites tênues com a chamada normalidade Nos espaços formais onde legalmente condutas violentas são repudiadas o modo mais comum das mulheres se tornarem vítimas de opressão e dominação e consequentemente terem sua existência rebaixada e silenciada é através de outra forma de violência a simbólica que consiste numa Violência suave insensível invisível as suas próprias vítimas que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento ou mais precisamente do desconhecimento do reconhecimento ou em última instância do sentimento BOURDIEU 1999 p7 A fim de prosseguir como o debate sobre violência contra a mulher em ambientes públicos é de suma importância expor o silenciamento feminino compreendido enquanto uma das faces da violência contra a mulher e que tanto ocorre dentro dessas áreas Numa realidade atravessada por cientificidade estar constantemente munido de credibilidade é imprescindível para que as ideias e a voz do indivíduo sejam consideradas relevantes No entanto quando há práticas deste caráter que é uma forma de impedir o diálogo há uma negação também da fala e da credibilidade do outro É possível vislumbrar que tais condutas seja nos domicílios ou em locais de ensino e trabalho são tentativas claras de impedir que as mulheres lutem para terem voz poder e direito a tomadas de decisões A cultura machista que pautase em comportamentos atrozes vem reforçar também a ideologia de que os homens estão em um padrão superior às mulheres desencorajandoas cotidianamente a falar escrever denunciar quando necessário e a reivindicar determinados postos na sociedade ficando assim à margem da vida pública Rebecca Solnit escritora feminista estadunidense traz em seu livro Os homens explicam tudo para mim algumas características e impactos concretos do silenciamento na vida das mulheres Solnit 2017 p138 descreve Primeiro vêm as inibiçoes internas as dúvidas as repressões as confusões e a vergonha que tornam difícil ou impossível falar juntamente com o medo de ser punida ou condenada ao ostracismo por falar A obra de escritora traz também determinadas reflexões que permitem desvelar um dos maiores rebatimentos do silenciamento no cotidiano das vítimas A leitura aponta para a dificuldade das mulheres compartilharem casos de abuso assédio e estupro que ocorrem nos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 133 locais de trabalho nas instituições de ensino tornandose mais difícil ainda de efetuarem as denúncias contra os agressores O silêncio por parte das mulheres agredidas acaba favorecendo grandemente aqueles que as agridem Esse não pronunciamento perante os acontecimentos continua a perdurar justamente por na maioria dos casos os homens estarem hierarquicamente acima das mulheres E em casos de denúncias feitas a credibilidade das mulheres vira alvo de ataques deixandoas mais vulnerável A hierarquia institucional é uma ferramenta utilizada pelos homens que violentam suas colegas Os exemplos disso são os casos de violência física sexuais assédio moral ou casos de desqualificação intelectual através de piadas ofensivas que atravessam algumas relações professor versus aluna ou aluno versus aluna e que ocorrem usualmente nas universidades Na maior parte das ocasiões as estudantes ou profissionais optam por não denunciar pelo receio de sofrerem retaliação e perseguição por parte dos agressores Fazendo menção ao ambiente universitário no contexto de violência contra a mulher uma pesquisa de caráter quantitativa e qualitativa realizada pelo Instituto AVON em parceria com a empresa de pesquisa Data Popular mostra justamente que as universidades também são espaços em que as mulheres sentemse ameaçadas por condutas machistas A violência pode vir de criminosos externos mas não só deles Colegas e professores parceiros do cotidiano podem ser protagonistas de violências que vão da desqualificação intelectual ao estupro Essa percepção muitas vezes já gera a intimidação INSTITUTO AVON 2015 p3 Incluso em tais problemáticas está exatamente a questão da subnotificação dos casos de violência Tratase do grupo de mulheres que por algum motivo não registram ocorrência contra seus parceiros íntimos colegas de ofício de sala de aula ou estranhos As razões pelas quais as vítimas não conseguem efetuar a denúncia são inúmeras e sobretudo compreensíveis Medo de retaliação perseguição dependência econômica afetiva a falta de confiança na efetividade dos aparatos legais e até mesmo o fato de não reconhecer que determinada situação configurase como violência são alguns dos motivos que geram as subnotificações Para a realização de um enfrentamento a essas práticas advindas das relações baseadas em dominação masculina é inegável a existência de processos articulados de fortalecimentos que aparecem na promoção de políticas públicas em medidas no campo jurídico pautas de movimentos sociais e redes de apoio como um todo Durante toda a história da humanidade tem tido movimentos que enfrentam questionam e lutam para superar o que está posto Dentro do modo de produção capitalista o feminismo tem se colocado como um dos maiores Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 134 dispositivos de luta contra o patriarcado e das relações desiguais de poder entre os gêneros que provém dele Em uma sociedade capitalista tão marcada pela desigualdade decorrente da concentração de riqueza pelo racismo estruturante e por um patriarcado violento a luta das mulheres por direitos emerge pela ampla necessidade de garantir uma existência digna em todas as circunstâncias pelo forte anseio de ocupar espaços antes reservados apenas para homens e de exercer a liberdade desde sempre negada a este grupo Como bem é colocado no livro Feminismo e Movimento de Mulheres das autoras Carmem Silva e Silvia Camurça Os movimentos não surgem por acaso eles nascem das lutas sociais As lutas sociais acontecem quando grupos de pessoas que enfrentam situações de injustiça dominação ou exploração atuam coletivamente com o propósito de mudar esta situação num determinado contexto CAMURÇA SILVA 2010 p8 O feminismo tratase portanto de um movimento plural que têm desde sua gênese analisados criticamente a condição das mulheres na sociedade É crucial evidenciar que o feminismo após a primeira onda abandonou a categoria da mulher enquanto universal e entendeas enquanto sujeitos dotados de especificidades que buscam por necessidades diferentes Diante disso vão surgindo correntes que colocam demandas distintas mas que em determinadas conjunturas se unificam por uma luta cotidiana na busca por igualdade emancipação e transformação da ordem vigente tendo em mente que a superação do modo de produção capitalista é essencial para buscar o alcance das relações igualitárias de gênero raça e supressão das classes Faz se relevante mencionar que o feminismo não se trata pois de um movimento retilíneo Os diferentes períodos da sociabilidade humana circunscritos por mudanças nas relações sociais fazem com que as mulheres se deparam sempre com novos desafios e assim construindo outras formas de reivindicar os direitos necessários a cada momento histórico Logo chamase de ondas os principais momentos em que as mulheres conseguiram se organizar estruturalmente obtendo conquistas imprescindíveis De início na primeira onda inúmeras questões a nível mundial estavam sendo pautadas pelas mulheres questões que exigiam delas muita luta e organização O caráter sumariamente combativo do movimento começaria a se efetivar portanto através de uma série de greves marchas e outras ações marcadas até hoje na trajetória das lutas históricas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 135 Os primeiros questionamentos e consequentemente requisições enquanto movimentos em ascensão ocorreram durante o final do século XIX sendo impulsionados principalmente mas não só por transformações advindas da Revolução Francesa As sufragistas protagonistas do processo pleiteavam o direito ao voto em eleições políticas igualdade jurídica em relação aos homens e a liberdade de maneira ampla A segunda onda em meados dos anos sessenta centralizase na proteção da mulher enquanto um indivíduo dotado de especificidades como já dito anteriormente pautando não só a melhoria nas condições da mulher nos espaços formais mas em todas as relações entre homens e mulheres A autonomia sobre seus corpos aborto controle de natalidade também faziam parte dos protestos das mulheres Outro ponto que passou a fazer parte da agenda feminista foi o debate da violência contra a mulher que passou a ser discutida não mais como uma problemática exclusiva dos casais mas sim enquanto uma questão à ser dada respostas concretas visando sua erradicação da sociedade A terceira onda com efervescência durante os anos noventa foi marcada por um cenário de forte consumismo ideários neoliberais e inovações tecnológicas Diante da conjuntura o feminismo buscou um aprofundamento da categoria mulher compreendendo a subjetividade enquanto um fator inerente a cada uma afastandose definitivamente de que toda a classe reivindica as mesmas coisas Deu início então ao debate interseccional visto como uma ferramenta que analisa concomitantemente os marcadores de gênero raça e classe facilitando a compreensão de que as opressões atingem as mulheres de maneiras distintas e não de forma padronizada A urgência pela conquista de direitos e as denúncias em relação ao estado de subalternidade das mulheres têm feito com que desde séculos passados esse grupo se organize e se una em coletivos partidos políticos redes de apoio almejando mudanças radicais e edificando lutas pela desconstrução de padrões violentos por uma sociedade livre de todas as faces da dominação exploração e opressão e o movimento feminista tem sido um dos caminhos para tal feito CONSIDERAÇÕES FINAIS Historicamente as condições da mulher na sociedade de classes têm sido marcadas pelas diversas expressões da estrutura patriarcal advinda de outros modelos de sociabilidade mas consolidada no modo de produção capitalista sendo extremamente favorável a este As injustiças manifestas nas relações de gênero se efetivam no cotidiano especialmente através das várias faces do machismo elemento inerente ao patriarcado Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 136 Em razão da funcionalidade ao MPC a classe dominante busca habitualmente naturalizar a situação de subalternidade das mulheres em relação aos homens reservando para elas apenas o espaço privado A diferença salarial o controle sobre o corpo feminino a sobrecarga do trabalho doméstico as notificações e subnotificações de violência contra a mulher os dados alarmantes de feminicídios são alguns retratos das disparidades vivenciadas entre os gêneros Diante de tal cenário é essencial refletir pesquisar escrever e de maneira crítica e contínua sobre essa temática além de compreender o movimento feminista enquanto uma ferramenta política que tem por objetivo contribuir com todas as mulheres que resistem à opressão e exploração e lutam por um novo modelo de sociabilidade livre de LGBTfobia anticapitalista antirracista e consequentemente liberta de todo e qualquer tipo de violência REFERÊNCIAS ANTUNES MC BIGLIARDI AM Violência contra mulheres A Vulnerabilidade Feminina e o Perfil dos Agressores 22 ed Curitiba Juruá Editora 2018 ARRUZZA Cinzia BHATTACHARYA Tithi FRASER Nacy Feminismo para os 99 um manifesto Tradução Heci Regina Candiani 1 ed São Paulo Boitempo 2019 128 p BOURDIEU Pierre A dominação masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2007 BRASIL Lei 113402006 de 07 de agosto de 2006 Dispõe acerca da Lei Maria da Penha Brasília 2006 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato2004 20062006leil11340htm Acesso em 22 jul 2019 DELPHY Christine Patriarcado teorias do In HIRATA H et al org Dicionário Crítico do Feminismo Editora UNESP São Paulo 2009 p 173178 ENGELS Friedrich A origem da família da propriedade privada e do Estado Tradução de Ruth M Klaus 3 ed São Paulo Centauro Editora 2006 IAMAMOTO Marilda O Serviço Social na Contemporaneidade trabalho e formação profissional São Paulo Cortez 1998 Instituto AVON Violência contra a mulher no ambiente universitário Disponível em httpwwwouvidoriaufscarbrarquivosPesquisaInstitutoAvonV9FINALBx20151pdf Acesso em 04 ago 2019 KERGOAT Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo In Hirata Helena et al Dicionário crítico do feminismo São Paulo Editora UNESP 2009 MINAYO M C S DESLANDES S F Pesquisa social teoria método e criatividade 25 ed rev atual Petrópolis Vozes 2007 108p Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 137 NETTO José Paulo Introdução ao estudo do método de Marx 1ed São Paulo Expressão Popular 2011 64 p RIBEIRO Djamila O que é lugar de fala Belo Horizonte Grupo Editorial Letramento Justificando 2017 SAFFIOTI Heleieth Iara Bongiovani A Mulher na Sociedade de Classe Mito e Realidade Petrópolis Vozes 1976 384 p SAFFIOTI Heleieth Iara Bongiovani Não há revolução sem teoria In SAFFIOTI Heleieth Iara Bongiovani Gênero patriarcado violência 1 ed São Paulo Fundação Perseu Abramo 2004 p 95140 SANTOS S M M CISNE M Feminismo Diversidade Sexual e Serviço Social 1ed São Paulo Editora Cortez 2018 208p SILVA Carmen CAMURÇA Silvia Feminismo e movimentos de mulheres Recife Edições SOS Corpo 2010 SOLNIT Rebecca Os homens explicam tudo para mim São Paulo Cultrix 2017 SOS CORPO Instituto Feminista para a Democracia Cadernos de Crítica Feminista ano 3 n 2 dez 2009 Disponível em httpssoscorpoorgpublicacoesrevista Acesso em 02 ago 2019 TIBURI Márcia Feminismo em comum para todas todes e todos 7 ed Rio de Janeiro Rosa dos Tempos 2019 126 p Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 138 A VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES COMO EXPRESSÃO DO SISTEMA SEXOGÊNERO PRIMEIRAS APROXIMAÇÕES Beatriz Moreira Bezerra Vieira1 Laís Castro2 Camila Trindade3 RESUMO A violência praticada pelos seres humanos se expressa de múltiplas formas na sociedade brasileira se caracterizando por um fenômeno cotidianamente sentido por homens e mulheres Tendo em vista este cenário este trabalho tem como objetivo geral discorrer sobre a violência contra as mulheres a partir do arcabouço teórico proposto pela pesquisadora María Jesús Izquierdo Metodologicamente tratase de um trabalho de cunho teóricoconceitual em que sistematizamos e apresentamos as publicações e conceitos da autora a fim de tecer uma análise a partir do sistema sexogênero e sua articulação com a construção social da violência mais especificamente a violência contra as mulheres A necessidade de compreender as categorias classe sistema sexogênero e violência a partir das contribuições da autora supracitada se dá em função de seus estudos ainda serem poucos difundidos na literatura e nas discussões sobre gênero no Brasil A partir da análise empreendida pudemos constatar a indissociabilidade entre a divisão sexual do trabalho a distribuição desigual das atividades relativas à produção e reprodução da vida e a sociabilidade capitalista que reproduz as desigualdades explorações e opressões de gênero Ao final ressaltamos a importância da recuperação da historicidade tendo como foco a superação de uma compreensão individualista imediatista organicista naturalizante e biologizante acerca do ser humano e dos processos de violência em todos os aspectos que perpassam a sociabilidade capitalista Palavraschave Violência Violência contra as mulheres Sistema sexogênero Materialismo histórico dialético Cuidado INTRODUÇÃO Os índices que quantificam as diversas formas de violência vêm aumentando cada vez mais em nossa sociedade em geral e especialmente no Brasil mesmo o país não estando em um conflito bélico reconhecido Entrelaçado a esse processo que é mundial os casos de violência contra as mulheres se fazem sentir de maneiras contundentes expressandose nos 1 Docente Mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá UEM beatriiizmbvgmailcom Lattes httplattescnpqbr8346651394528820 2 Estudante Doutoranda em Psicologia pelo Programa de PósGraduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá UEM Bolsista Fundação Araucária laiscastropsigmailcom Lattes httplattescnpqbr8238498414975835 3 Estudante Doutoranda em Psicologia pelo Programa de PósGraduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá UEM Bolsista Fundação Araucária trindadecamigmailcom Lattes httplattescnpqbr1588825693237799 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 139 casos de feminicídio e outros tipos de violência tipificados na lei 11340 de 7 de agosto de 2006 BRASIL 2006 ou como ficou reconhecida nacionalmente Lei Maria da Penha O Anuário de Segurança Pública Brasileira FBSP 2018 por exemplo aponta que no ano de 2017 foram registrados 60018 casos de estupros indicando um aumento de 84 em relação ao ano anterior Em relação à violência doméstica ocorreram 606 casos ao longo do respectivo ano Quanto aos dados relativos a outras formas de violência como as mortes violentas intencionais por exemplo houve aumento de 29 também em relação ao ano anterior BRASIL 2018 Com isso observamos que não se trata do crescimento nos números de apenas uma forma de violência mas sim que em maior ou menor medida tal fenômeno se expressa em múltiplos contextos sendo cotidianamente sentido por homens e mulheres e pela sociedade brasileira em geral Isso se coloca enquanto uma necessidade histórica do século XXI no caso investigar estes diferentes processos buscando compreender como a forma de organização social atual e a recente reestruturação produtiva do capital ANTUNES 2009 refletem na forma sob as quais os seres humanos do nosso tempo se relacionam e como isso se expressa também em diferentes formas de violência Nesse trabalho colocamos ao centro desses processos socialmente determinados a violência contra as mulheres Isso posto buscaremos discorrer sobre o fenômeno da violência contra as mulheres a partir das sistematizações teóricas da doutora em Economia María Jesús Izquierdo professora de teoria sociológica da Universitat Autónoma de Barcelona Metodologicamente tratase de um trabalho de cunho teóricoconceitual em que sistematizamos as publicações e conceitos da autora a fim de tecer uma análise a partir do sistema sexogênero e sua articulação com a construção social da violência mais especificamente a violência contra as mulheres Nossa discussão versa em dois tópicos primeiramente conceituar o sistema sexogênero segundo o materialismo histórico dialético localizando neste sistema as bases para entender a violência contra as mulheres em segundo lugar debater acerca da forma de organização social capitalista atual e como isso se expressa na constituição dos sujeitos e das relações derivadas dessa organização material que se concretiza dentre outros aspectos na violência e mais especificamente na violência contra as mulheres A necessidade de compreender as categorias classe gênero e violência a partir das contribuições da autora supracitada se dá em função de suas elaborações ainda serem pouco difundidas na literatura e estudos de gênero no Brasil Da mesma forma entendemos a necessidade de ampliar as contribuições da perspectiva marxista para as discussões em questão visto que se intensificam as investidas do sistema capitalista contra a vida da classe trabalhadora Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 140 em geral por meio da precarização e flexibilização do trabalho e particularmente no que tange à vida e à violência praticada contra as mulheres Ademais assim como propõe Izquierdo ressaltamos a importância da recuperação da historicidade e da compreensão do fenômeno da violência contra as mulheres na totalidade capitalista almejando superar interpretações individualizantes e naturalizantes Abordaremos primeiramente a determinação social da vida enquanto processo que está na base tanto da constituição social dos sujeitos quanto da construção das relações humanas Em seguida trazemos a discussão sobre o sistema sexogênero e seus desdobramentos na forma de violência contra as mulheres prática que entrelaça produção e reprodução da vida desigualdades de sexo e gênero e o cuidado dos indivíduos 1 DETERMINAÇÃO SOCIAL DA VIDA AS DIMENSÕES DA PRODUÇÃO E DA REPRODUÇÃO Para discutir a categoria social Izquierdo 2003a parte do pressuposto de que os seres humanos são seres sociais ou seja que necessitam estabelecer relações entre si para desenvolver tanto as suas capacidades quanto desenvolverse enquanto coletividade Esta tese é inicialmente apresentada e defendida por Karl Marx 18181883 pensador fundador do materialismo histórico dialético que fornece as bases epistemológicas para que a autora fundamente sua compreensão sobre relações de gênero e violência Defendese que não é a consciência dos homens que determina o seu ser ao contrário é o seu ser social que determina sua consciência MARX 2008 p 47 É o modo de produzir a vida que determina nos seres humanos sua existência física e psíquica O modo de produção portanto não deve ser considerado meramente sob o aspecto de ser a reprodução da existência física dos indivíduos Ele é muito mais uma forma determinada de sua atividade uma forma determinada de exteriorizar sua vida um determinado modo de vida desses indivíduos Tal como os indivíduos exteriorizam a sua vida assim são eles O que eles são coincide pois com sua produção tanto com o que produzem como também com o modo como produzem O que os indivíduos são portanto depende das condições materiais de sua produção MARX ENGELS 2007 p 87 grifos nossos De modo que é o grau de desenvolvimento das forças produtivas que determina em última instância quem os indivíduos são assim entendemos o ser humano enquanto síntese das relações sociais de produção Isso remete à concepção de que é a divisão de classe que vai permitir o desenvolvimento das capacidades e da personalidade dos indivíduos de acordo com o lugar que eles ou elas ocupam na sociedade Logo os seres humanos seu psiquismo e personalidade interesses angústias e sofrimentos são produtos desta forma de organização Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 141 social a sociedade capitalista VYGOTSKY 2004 A questão primordial é que sob a lógica do trabalho alienado na sociabilidade capitalista não há liberdade real para os trabalhadores e trabalhadoras transitarem em suas atividades de maneira mais plena Tal fato traz impactos na constituição de suas capacidades e habilidades determinando seu desenvolvimento e as relações interpessoais que estabelecem as quais assumem contornos de dicotomia e hierarquias de classe raça e gênero podendo se manifestar também nas diversas formas de violência Em linhas gerais com o surgimento da propriedade privada a história da humanidade passa a ser a história da luta de classes E com o advento do capitalismo a sociedade se divide entre aqueles e aquelas que possuem e aqueles e aquelas que não possuem a propriedade privada dos meios de produção Estes por sua vez são obrigados e obrigadas a venderem sua força de trabalho em troca de um salário que lhes garanta muitas vezes de forma precarizada os bens materiais e culturais necessários a existência MARX 2013 Estas alterações no modo de produzir a vida advindas da instauração da sociedade do capital também modificaram as relações patriarcais estrutura social que antecede o capitalismo mas que mantém uma relação simbiótica com ele SOUZA 2006 em que os trabalhos executados por homens e mulheres são absorvidos pela produção de maneira desigual ANTUNES 2009 Em um primeiro momento o trabalho reprodutivo devido à experiência acumulada historicamente ficou a cargo das mulheres ao passo que o trabalho assalariado é realizado primordialmente pelos homens Disso advém duas discussões que valem o destaque Em primeiro lugar a dicotomia das dimensões relacionadas à forma de produção e reprodução da vida como bases para a constituição e perpetuação do capitalismo E em segundo lugar fruto desta dicotomia deriva a compreensão ideológica de que o trabalho reprodutivo aquele realizado por mulheres na esfera doméstica é menos importante que o trabalho assalariado ainda que ambos sejam essenciais para a garantia da existência humana Ainda que em um segundo momento a força de trabalho feminina tenha sido absorvida na esfera produtiva por uma necessidade concreta de expansão capital temse que esta entrada foi em troca de baixos salários Isso significa que houve um parcial processo de emancipação das mulheres da opressão masculina uma vez que uma das bases dessa opressão é condicionada à dependência econômica ANTUNES 2009 SOUZA 2006 Contudo o que se presencia atualmente é mulheres com salários mais baixos que homens mesmo que estejam exercendo a mesma função na esfera produtiva o trabalho reprodutivo ainda fica a cargo da mulher e em alguns casos a dependência econômica feminina prevalece o que faz com que uma das vias de opressão masculina se mantenha Ao passo que as mulheres formam o maior contingente de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 142 pessoas com 25 anos com titulação superior 235 contra 207 dos homens recebem em média 75 do salário dos homens abismo que se intensifica na situação das mulheres negras que recebem 43 desse total IBGE 2018 Tal processo alude ao que Izquierdo 1994 denomina de desigualdades de sexo e gênero produzidas a partir da constituição do sistema sexogênero que divide e diferencia os indivíduos em dois grupos hierarquicamente dispostos os homens ocupando o polo superior e as mulheres o polo dominado As desigualdades de gênero vão remeter ao nível inferior de retribuição formação e poder concedidos a atividades socialmente tipificadas como femininas independente do sujeito que as realiza Nessa direção práticas relacionadas ao cuidado à proteção à educação à limpeza isto é tudo que remete à dimensão da reprodução da vida humana serão socialmente menos valorizadas As desigualdades de sexo por sua vez dizem respeito à consideração e poder inferiores concedidos às mulheres independente das atividades que realizam se são consideradas masculinas ou femininas Expressões dessa forma de desigualdade se materializam em salários díspares entre homens e mulheres conforme citado anteriormente mesmo desempenhando a mesma função ideias no senso comum relacionadas a capacidades da mulher para realizar determinadas tarefas etc SOUZA 2015 Aliado a isso observamos que o mundo do trabalho vem passando por diferentes e significativas transformações sobretudo a partir do início do século XXI Transformações estas que se expressam na vida dos trabalhadores e trabalhadoras principalmente nos modos de organização e manutenção do trabalho como por exemplo a flexibilização e a precarização do mesmo Entendemos que tais transformações observadas na sociedade atual decorrem mais de novos rearranjos do sistema capitalista do que alterações na estrutura desse modelo de sociedade A lógica do capital é pautada na exploração de um ser humano por outro e tem como centro a extração da maisvalia e a produção universal de mercadorias o que consequentemente produz a manutenção de uma sociedade cindida em diferentes classes sociais HARVEY 1992 ANTUNES 2009 As marcas do que se denomina no campo marxista de acumulação flexível são resultado de uma articulação entre a reestruturação produtiva do capital a financeirização e a ideologia neoliberal4 Atrelado a isso temse as terceirizações e a flexibilização do trabalho em que os impactos mais diretos na vida dos indivíduos perpassam pelas péssimas condições de vida moradia transporte aumento exorbitante do desemprego redução de salários e a retirada progressiva de direitos trabalhistas A massiva pauperização dos trabalhadores e das 4Ao leitor que queira aprofundar na temática da acumulação flexível isto é a recente ofensiva do capital ao trabalho indicamos a leitura de Netto e Braz 2006 Harvey 1992 e Antunes 2009 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 143 trabalhadoras em geral bem como o crescimento de pessoas em condição de indigência questões estruturais do capitalismo têm seu agravamento como oriundo desta nova reorganização social A respeito da hipertrofia do setor de serviços os trabalhadores e trabalhadoras continuam a ser geridos e geridas pela lógica do grande capital e da produção industrial com metas mecanização padronização fragmentação do trabalho e hiperespecialização Isso significa que aspectos que em um passado próximo conduziram a produção principalmente de mercadorias na atual sociabilidade capitalista perpassam todas as esferas da vida social NETTO BRAZ 2006 A contradição essencial permanece e reside no fato de que a produção de bens materiais e culturais necessários à existência é altamente coletivizada contudo a apropriação destes produtos do trabalho humano é monopolizada por uma minoria a classe detentora dos meios de produção MARX 2013 Como resultado temse uma enorme concentração econômica que se desdobra inclusive em uma concentração do poder político colocando a humanidade a mercê do movimento de valorização do capital em detrimento da valorização humana NETTO BRAZ 2006 Dessa forma assinalamos que essas novas reorganizações na sociedade capitalista passam a constituir as diferentes frentes da vida humana desde o trabalho até a constituição da individualidade e das relações entre os sujeitos e se expressam portanto em complexos processos que se manifestam como violência contra as mulheres Nesse sentido tornase necessário compreender como vem se constituindo tal processo a partir dos novos rearranjos postos na atualidade capitalista a partir da compreensão históricodialética e social que constitui e determina a materialidade da vida humana Izquierdo 2003a destaca que no conjunto das relações que se estabelecem na sociabilidade capitalista existe a dimensão da construção de vínculos a partir do elemento emocional Mesmo as relações se constituindo a partir de diferentes elementos trabalho política economia existe um componente emocional que constitui as mesmas uma unidade entre o que é material e psíquico no que refere à formação da personalidade VYGOTSKY 2004 É importante destacar que tal estado emocional não é inato à natureza humana ao contrário deriva de um intenso processo de constituição de relações humanas O social em última instância determina e constitui as relações humanas e se atrela às dimensões política e econômica que são as principais formas que constituem o mundo Isso implica que a nossa logica de atuação na possibilidade de amar e ser amado de conhecer o outro e suas necessidades e receber um reconhecimento e atenção recíproca fique ameaçada Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 144 IZQUIERDO 2003 p 04 nesta forma de sociabilidade fundada na exploração de muitos indivíduos pelas mãos de poucos Além disso a autora acrescenta que a predominância da logica econômica e política faz do outro o objeto para satisfazer a agressão explorar sua capacidade de trabalhar sem pagá la usála sexualmente sem consentir humilhar fazer sofrer IZQUIERDO 2003a p 04 Segundo Löwy 1990 tratase da quantificação da vida isto é a total dominação do valor de troca quantitativo do cálculo frio do preço e do lucro e das leis de mercado acima do conjunto do tecido social a dissolução de todos os vínculos humanos qualitativos a uniformização monótona da vida a relação puramente utilitária isto é quantitativamente calculável LÖWY 1990 p 37 grifos nossos A universalização deste modo de produzir a existência que perpassa todos os níveis da vida social compõem as múltiplas determinações da violência e mais especificamente da violência contra as mulheres Sendo o ser humano um ser social e histórico o estado emocional não é portanto inato biológico ou pode ser entendido de forma naturalizada mas ao contrário deve ser analisado pelo viés de sua constituição histórica e social Esta é de maneira geral a base epistemológica que fundamenta o pensamento e a teoria elaborada por María Jesús Izquierdo As contribuições específicas da autora acerca do sistema sexogênero e da violência contra a mulher serão desenvolvidas nos tópicos seguintes 11 O sistema sexogênero bases para entender a violência contra mulheres Ao se debruçar na problemática das desigualdades entre homens e mulheres e suas manifestações na forma de opressões específicas Izquierdo 2013 não nega que haja diferenças entre homens e mulheres em termos de constituição biológica Pelo contrário assume a unidade dialética entre corpo e psiquismo humano compreendendo que este se desenvolve na relação singular do indivíduo com seu meio Indivíduos constituemse portanto de formas singularmente diferentes e irrepetíveis O que a autora coloca ao centro é o fato de que a diversidade do ser humano nessa sociedade capitalista patriarcal já explicitada é traduzida como relação hierárquica entre os sexos Os construtos derivados dessa relação desigual como são conceitos de homem e mulher de feminino e masculino por exemplo servem à perpetuação de uma determinada lógica de exploração e opressão e se desenvolvem em condições sociais específicas nas quais um grupo as mulheres ocupa polo inferior em relação ao outro os homens Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 145 Izquierdo 2013 também concebe as relações de gênero não como ideias em si mas como relações sociais concretamente determinadas pelo modo como os indivíduos organizam a produção da vida Nessa perspectiva a violência contra as mulheres pode ser entendida como uma manifestação específica dessa relação hierárquica igualmente vivenciada de formas concretas pelos corpos biológicos que se desenvolvem nesse meio social A relação entre sexo e gênero é entendida por Izquierdo 2013 levando em conta a impossibilidade de dicotomizar as dimensoes biologica e social Pois as significaçoes que se fazem do corpo se materializam no mesmo IZQUIERDO 2013 p 04 Distinguir a esfera do sexo como base física e gênero como base psicossocial está fora de questão pois é impossível o corpo biológico se desenvolver senão imbricado ao contexto significado a experiência social se materializa nele e sem a base biológica não existe significação do gênero Tomemos como exemplo o reconhecimento do sexo da criança como uma das primeiras formas de delimitação da identidade do indivíduo Ao questionarmos é menino ou menina já estamos colocando aquele corpo em uma relação social sexuada materializando expectativas de comportamentos afetos qualidades desejáveis etc Assumese a partir do sexo o que é natural para aquele indivíduo em termos comportamentais e afetivos Podemos pensar a partir disso na naturalização da agressividade como justificativa para a violência praticada pelo homem não só contra a mulher mas contra outros homens como nos casos de mortes violentas que predominantemente vitimam homens BRASIL 2018 Logo pensar a relação sexogênero a partir da perspectiva materialista histórico dialético significa não os contrapor mas entender que o sexo é a significação física das relações de gênero IZQUIERDO 2013 historicamente determinadas As desigualdades portanto tem raiz social não são naturais ou eternas mas se manifestam concretamente nas relações entre os indivíduos Conceber características biológicas ou fisiológicas como determinantes para diferenciar homens e mulheres significa justificar a naturalização a exclusão a violência os papéis sociais desigualmente distribuídos Nossa constituição física enquanto base dos processos sociais não determina diretamente a ordem social mas dá as condições de possibilidade ou impossibilidade Izquierdo 2013 explica que ser a espécie humana sexuada permite que os seres humanos se organizem de determinada forma uma vez que precisam lidar com problemas derivados dessa condição natural por exemplo o tempo de gestação e o cuidado da prole Ou seja a nossa constituição corpórea em dois sexos e a reprodução sexuada viabiliza ideologicamente a sustentação de um sistema desigual entre homens e mulheres mas também admite outras formas de organização O patriarcado se estabelece historicamente como o poder que os homens exercem sobre as Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 146 mulheres por meio dos papéis sexuais SOUZA 2015 como uma das respostas que a sociedade deu frente a este problema de ordem material A organização patriarcal e sexista é portanto somente uma das possibilidades de se lidar com esta tarefa da espécie mas não necessária tampouco a única alternativa LEWONTIN ROSE KAMIN 1987 Em termos conceituais sexo e gênero apresentam diferenças cruciais Segundo Izquierdo 1992 o sexo diz respeito aos atributos anatômicos e fisiológicos individuais ou seja ao corpo categorizando duas possibilidades macho e fêmea O gênero por sua vez se refere aos aspectos psíquicos e sociais cujas possibilidades são masculino e feminino sendo que na sociedade patriarcal ambos ocupam posições desiguais na produção da existência IZQUIERDO 1992 A distinção entre sexo e gênero tem como objetivo diferenciar conceitualmente as características sexuais limitações e capacidades que as mesmas implicam e as características sociais psíquicas históricas das pessoas para aquelas sociedades ou aqueles momentos da história da sociedade dada em que os padrões de identidade os modelos as posições e os estereótipos do que se édeve ser uma pessoa respondem a uma bimodalidade em função do sexo ao qual se pertence IZQUIERDO 1994 p 3637 tradução nossa Isso posto os construtos tomados como naturais como o são homem e mulher são somente uma resposta que temos dado socialmente ao problema da procriação sexuada e à total dependência dos descendentes nos primeiros anos de vida No capitalismo patriarcal a solução dessa tarefa se sustenta pela subordinação daqueles indivíduos que cuidam dos filhos as fêmeas e aqueles socialmente responsáveis por produzir e transformar a realidade por administrar as relações sociais políticas e econômicas os machos As relações que se erguem a partir dessa cisão entre produção e reprodução da vida se fundamentam na subordinação de quem cuida dos dependentes física e psiquicamente tipificandoas como femininas às que produzem e transformam o meio e administram as relações sociais políticas e econômicas categorizandoas como masculinas IZQUIERDO 1992 Fica claro que a análise do sistema sexogênero embasada no materialismo histórico dialético compreende que os padrões de normalidade atribuídos aos indivíduos são construídos a partir da constatação das características sexuais uniformizando as formas de ser categorizando as pessoas dentro de determinados parâmetros de conduta e papéis sociais Em síntese limitando o que cada um pode e deve serfazer A visão dicotômica calcada nos caracteres sexuais reforça a ideia de que o indivíduo nasce assim negando o pressuposto de que se constrói ao passo que intervém na realidade Tal concepção contribui para a regulação das Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 147 relações sociais pautadas no sistema sexogênero reforçando as opressões que recaem sobre as mulheres como a violência praticada especificamente pelo viés do gênero Em síntese a dimensão primordial para se entender o sistema sexogênero a existência das desigualdades entre homens e mulheres é a da produção da existência IZQUIERDO 1994 SOUZA 2006 A forma fundamental de desigualdade é em relação aos meios de os seres humanos se relacionarem nos modos de produzir a vida Pois esta sociedade se encontra estruturada em dois gêneros não biologicamente determinados mas determinados pelos processos produtivos e sua posição nessa ordem social aqueles e aquelas que produzem e administram a riqueza por meio da utilização da força vital dos seres humanos e aqueles e aquelas responsáveis pela produção e reprodução da vida humana do cuidado com vistas de reposição da energia dos indivíduos para a continuidade do processo produtivo A desigualdade de gênero se compreende enquanto desigualdade na esfera produtiva da vida humana IZQUIERDO 1994 E disso decorrem os modelos e estereótipos sociais como remeter o cuidado e atividades que se concentram no atendimento da vida humana às mulheres e aos homens atividades que associam o masculino a qualidades como força e agressividade Da diferença sexual biologicamente constatada se erguem as desigualdades na direção de enquadrar características comportamentais afetos e condutas em acordo com o aspecto anatômico genital que diferencia humanos machos e fêmeas E assim são entendidas como naturais e imutáveis Formular o conceito de gênero com multidimensional nos remeteria à ideia de que nas sociedades modernas em que se separam e se especializam os espaços cada pessoa desenvolve múltiplas funções separadas umas das outras e enquanto em um espaço social podemos estar em uma posição subordinada em outras não ou também podemos nos beneficiar de uma posição de privilégio Colocar ênfase na existência de um espaço social heterogêneo onde as posições hipoteticamente possíveis para cada pessoa e segundo o gênero são múltiplas e a relação entre sexo e gênero ainda que exista não é rígida levanos a mostrar que toda pessoa manifesta simultaneamente aspectos da masculinidade e da feminilidade só que em cada ser humano se apresenta uma combinação específica IZQUIERDO 1994 p 47 tradução nossa Tomando os pressupostos elencados primeiramente sobre a determinação social da vida e sobre a determinação do sistema sexogênero Izquierdo 2011 destaca a necessidade de superação da dicotomia homemsujeito e mulherobjeto no entendimento da gênese da violência no sistema patriarcal e por consequência em nossa sociedade Isto é entendendo que os discursos críticos do patriarcado são efeito do poder patriarcal e que a crítica do patriarcado tem um efeito de reforçar aquilo que combate já que confirmam a mulher enquanto Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 148 qualidade de objeto e o homem com sujeito IZQUIERDO 2011 p 09 tradução nossa Isso significa que a crítica ao patriarcado não se torna radical quando mantém numa análise reduzida e superficial a noção da mulher como objeto da violência e o homem como sujeito que a pratica abstraindo da análise a totalidade social e os sujeitos homens e mulheres como produto desta forma de organização social Podemos assinalar conforme a autora que o fenômeno da violência nesse contexto de relaçoes pode ser compreendido a partir das relaçoes de gênero ou seja das relações que se estabelecem entre as pessoas aonde existe uma ordem de gênero IZQUIERDO 2011 p 09 tradução nossa sendo que o conteúdo mais profundo da fratura do gênero humano está na violência praticada por homens contra os próprios homens 12 Relações de gênero cuidado e violência na sociabilidade capitalista O cuidado conforme Alves 2018 tem se tornado uma temática recorrente nos estudos atuais na área da sociologia do trabalho para discutir os novos engendramentos que conformam o trabalho no contexto de reestruturação produtiva Apesar disso Guimarães Hirata e Sugita 2011 destacam que as pesquisas brasileiras que tratam sobre tal temática ainda são recentes e se mostram mais vinculadas às áreas da saúde como por exemplo a enfermagem e a geriatria No que diz respeito ao conceito de cuidado as autoras apontam que este pode também ser nomeado como care e que o mesmo não possui uma definição delimitada Tanto que nos países de língua espanhola e portuguesa como o caso do Brasil a palavra cuidado é usada para designar a atitude mas é o verbo cuidar designando a ação que parece traduzir melhor a palavra care Assim se é certo que cuidado ou atividade do cuidado ou mesmo ocupaçoes relacionadas ao cuidado como substantivos foram introduzidos mais recentemente na língua corrente as noçoes de cuidar ou de tomar conta têm vários significados sendo expressões de uso cotidiano GUIMARÃES HIRATA SUGITA 2011 p 154 Com isso a concepção de cuidado difundida no cotidiano se baseia numa relação de sentimentos bons e positivos em relação ao outro ou a um objeto Contudo entendemos que tal concepção implica na naturalização de um processo que envolve a constituição dos sujeitos que como vimos anteriormente não é descolada das formações sociais desiguais específicas Pois da mesma forma que a vida em sociedade não é uniforme sendo dividida em diferentes classes a formação dos tipos humanos também vai depender das particularidades dessas classes VYGOTSKY 2004 implicando além disso nas particularidades decorrentes das relações de gênero As contradições sociais são expressas também tanto no tipo da personalidade quanto na Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 149 estrutura psicológica em determinado período histórico Isso quer dizer que em termos de formas sociais capitalistas o cuidado também passa a ser engendrado pelas normas sociais dessa respectiva sociedade É também a partir desses elementos que Izquierdo 2003a 2003b passa a discutir a prática do cuidado dos indivíduos isto é tomando como base a determinação social que envolve tal concepção segundo a lógica da sociedade do capital A autora explicita que o cuidado se constitui na encruzilhada da razão e da emoção se tratando de uma atividade racional originária de um estado emocional IZQUIERDO 2003a p 05 Isto é o cuidado está relacionado sobretudo a partir de um sentimento de intranquilidade ou preocupação em relação a ocorrência de algo ruim ou mal e a partir disso desenvolvese práticas para tentar superar tais possibilidades IZQUIERDO 2003a p 05 Salientamos que a compreensão do cuidado se dá a partir da base material da vida Ou seja a forma como os indivíduos foram se organizando ao longo do processo histórico permitiram a superação do cuidado da prole e do grupo a partir de necessidades biológicas pela complexificação dessa atividade Por isso apresentase a necessidade de articular a discussão do cuidado com o trabalho na forma capitalista Izquierdo 2003b ao discorrer sobre a divisão sexual do trabalho afirma que essa materialidade além de ser uma forma de organizar o trabalho constitui as subjetividades feminina e masculina No caso a primeira é direcionada ao cuidado a estabelecer relaçoes com os demais com a disposição em satisfazer as necessidades alheias IZQUIERDO 2003b p 03 tradução nossa Dessa dinâmica a autora acrescenta que a disposição da mulher para com o outro se realiza nessa relação e ela se torna objeto de confirmação da sua validade enquanto sujeito a partir de sua capacidade de cuidar de prover as necessidades do outro É interessante observar o quanto a divisão sexual do trabalho base material da vida organiza e estrutura as condições de vida e das subjetividades dos seres humanos homens e mulheres Nesta seara Izquierdo 2003b p 06 tradução nossa revela que a constituição social de vínculos entre os sujeitos se dá na medida em que cabe ao homem ser provisor e protetor e uma mulher a cuidadora e aquela que nutre objeto de proteção E por isso a prática do cuidado se fundamenta na divisão sexual do trabalho e sua existência é condição que sustenta o cidadão concebido como indivíduo IZQUIERDO 2003b p 06 tradução nossa Isto é a partir de características físicas se estabelecem determinadas formas de relações entre homens e mulheres de forma que tal mecanismo de naturalização esconde a existência de relações de poder evitáveis IZQUIERDO 2003a p 17 tradução nossa relaçoes que não são necessárias ou imutáveis mas passíveis de serem superadas Pois as próprias contradições da estrutura social fazem emergir forças para a sua destruição e substituição para uma nova Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 150 ordem que não mais se assenta na exploração de muitos e muitas pelas mãos de poucos e poucas VYGOTSKY 2004 É a partir dessas diferenças de poder e de constituição da subjetividade as quais têm como base a divisão sexual do trabalho em sua forma capitalista que podem ser legitimadas diferentes práticas perversas de um gênero em relação ao outro Nesse sentido Izquierdo 2003b revela que o fenômeno da violência começa a ser questionado a partir do que chama de abuso doméstico Entretanto muitas vezes tais relações não são compreendidas a partir de seus aspectos estruturantes mas sim reduzidas a questões de saúde mental eou conduta criminosa Por exemplo ainda é comum a naturalização da conduta violenta do homem a partir do argumento do crime passional do ciume excessivo ou ainda a culpabilização da mulher pelo ato do qual foi vítima Tal como nos aponta Souza 2006 tratase de um processo materialmente determinado cujos significados são internalizados e constroem sentidos e práticas sexistas um dos pilares da opressão de gênero sentida pelas mulheres nas formas de dominaçãoviolência Como exemplo a violência conjugal que é analisada socialmente como quase que uma consequência natural do casamento expresso na máxima em briga de marido e mulher não se mete a colher Em situação de violência doméstica em que ocorre o uso da violência física contra a mulher além de o grupo familiar tentar desculpar a atuação masculina como natural atribuindo a a causas como excesso de hormônios a própria mulher vitimizada tem dificuldade em rejeitar esta violência como ilegítima desculpando o maridocompanheiro na medida em que lhe atribui qualidades como bom pai provedor carinhoso quando não está bêbado o que significa que esta violência não é vivida pelo sujeito como condenável mas como um desvio menor SOUZA 2006 p 126127 Izquierdo 2003b destaca a violência enquanto processo estrutural da forma capitalista ou seja ela é inerente às relações de produção desse sistema se expressando nas relações entre homens e mulheres mas tendo origem para além delas É importante destacar conforme discorre a autora que não se trata de rejeitar o fato de que homens exerçam violência contra mulheres IZQUIERDO 2003b p 26 tradução nossa mas sim de compreender a natureza de tais relações evidenciando que as contradições geradas pela divisão sexual do trabalho perpassam também a prática do cuidado por exemplo É diante dessas relações que a autora aponta a necessidade de se analisar a socialização do cuidado Conforme Izquierdo 2003b o entendimento da socialização do cuidado tem sido explorado de diversas maneiras sendo que o compreende como um processo de construção da subjetividade de um modo afim a certo sistema de relações sociais préexistentes com o fim de garantir sua continuidade No processo de socialização se formam os desejos e paralelamente Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 151 constituise o princípio de realidade que põe limites a sua realização IZQUIERDO 2003b p 06 tradução nossa Portanto a socialização do cuidado diz respeito ao processo de construção de subjetividades de um certo modo afim ao sistema de relações sociais capitalistas com objetivo de garantir sua continuidade Explicase sendo que o ser humano demanda determinados cuidados ou perece as pessoas precisam aprender a cuidar a prover a vida para além da sobrevivência e isso inclui a distribuição dessa atividade No caso do capitalismo patriarcal fundado na divisão dos papéis sexuais isso significa distribuir a tarefa do cuidado de forma desigual entre homens e mulheres concretas que constituem essa vida societal por exemplo dentro da família nuclear heteronormativa5 Tratase de um processo histórico que sofreu transformações ao passo que o modo de produzir a vida se modificou mas que em seu cerne mantém a divisão das tarefas de cuidado de forma a beneficiar os homens Desses apontamentos entendemos que a socialização do cuidado enquanto uma necessidade material para a continuidade da espécie humana vai ser desigualmente distribuída entre os sujeitos de forma a constituirse enquanto conteúdos afetos e práticas relacionadas às tarefas a serem realizadas por homens e mulheres A autora aponta para a necessidade de pensar de forma diferente a socialização do cuidado isto é para além da mulher enquanto indivíduo encarregado do cuidado Dessa forma seria possível abarcar tal prática enquanto uma condição de cidadania visto que o exercício da cidadania por parte dos homens depende de que as mulheres se ocupem das tarefas de cuidado dos dependentes situação que as converte em objeto de exploração IZQUIERDO 2003b p 19 tradução nossa Entretanto a autora alerta para a corrente dualidade quando nos referimos à violência entre homens e mulheres Por isso apresenta críticas em relação ao conceito violência de gênero que acaba se revertendo como um empecilho conceitual para a efetiva construção da socialização do cuidado Nesse sentido a alternativa posta para a superação desta condição perpassa necessariamente pela construção de novas formas de relações entre os seres humanos baseadas na vontade de melhorar a sociedade e uma cidadania política e economicamente participativa onde os direitos e deveres do grupo se encaixam como um contrapeso às aspiraçoes individuais IZQUIERDO 2003b p 27 tradução nossa 5 Ressaltamos que reconhecemos a existência de outros gêneros e sexualidades bem como de formas diversas de família que diferem da família nuclear heteronormativa formada por homens e mulheres cis mas que por conta do caráter introdutório não se configuram como foco deste trabalho Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 152 Notase que a crítica realizada por Izquierdo 2003a não parte de uma negação da necessidade do cuidado enquanto uma premissa para a reprodução da vida humana Pelo contrário a autora alerta para o quanto essa prática é relacionada e relegada ao feminino e naturalizada como um fenômeno individual e ainda focado no cuidado material e físico como algo oposto às agressões e maustratos Como temos discorrido ao longo deste trabalho a dicotomia que se constitui entre o que é proprio de uma suposta natureza masculina ou feminina não se encontra nas subjetividades individuais dos seres humanos mas fundase a partir da divisão sexual do trabalho impactando por consequência na formação das subjetividades duais a de cuidadora a mulher e a de provedor o homem que se realiza a partir da efetivação dos papéis sexuais Segundo Izquierdo 2003b na socialização para o cuidado a disposição da mulher para com o outro se realiza nessa relação e ela se torna objeto de confirmação da sua validade enquanto sujeito a partir de sua capacidade de cuidar de prover as necessidades do outro Por exemplo Izquierdo 2003b comenta ao se referir à instituição do casamento e sua relação com a perpetuação do modelo dicotômico do cuidado Homens e mulheres tomam decisões em suas vidas que beneficiam os homens sem consciência de que o fazem Os homens ao se casarem adquirem um seguro de cuidados que se estende até a terceira idade Casamse com mulheres que sobrevivem e portanto podem ficar a cargo desta responsabilidade Entretanto as mulheres adquirem a carga de cuidar sem garantia de serem cuidadas a menos que seja por outra mulher IZQUIERDO 2003b p 17 tradução nossa Dessa passagem evidenciase que as condições nas quais participamos enquanto sujeitos na divisão sexual do trabalho nas atividades produtivas constroemnos enquanto homens e mulheres E mais ideologicamente se constrói a tese de que estamos exercendo cada um o seu papel necessário ao andamento da sociedade LEWONTIN ROSE KAMIN 1987 no qual a mulher não constitui um indivíduo pleno mas uma extensão do homem IZQUIERDO 2003b em que as tarefas de cuidado e de provisão da vida são desigualmente distribuídas A ficção de uma sociedade constituída por indivíduos livres e iguais não é verossímil nem como fato nem como projeto IZQUIERDO 2003b p 21 Assim disso tudo resulta não só que o tipo humano originalmente único tornase diferenciado e fragmentado em vários tipos nas diversas classes sociais que por sua vez permanecem em agudo contraste umas às outras mas também na corrupção e distorção da personalidade humana e sua sujeição a um desenvolvimento inadequado unilateral em todas estas diferentes variantes do tipo humano VYGOTSKY 2004 sn Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 153 Do exposto Izquierdo 2003b considera que é preciso abordar o cuidado para além da esfera privada o que permite que adentremos a dimensão da liberdade sem perder de vista que precisamos uns dos outros para sobreviver de uma comunidade para nos humanizarmos Uma comunidade fundada na exploração na desigualdade de sexo e de gênero produz indivíduos desiguais que sofrem os impactos dessa exploraçãoopressão de diversas formas como nas manifestações de violência Dessas considerações acerca da determinação social da vida e do cuidado na sociedade de classes a partir do materialismo histórico dialético articulamos essas categorias com o fenômeno em questão à violência contra as mulheres Pensando a família que é local onde ocorre a maioria dos casos de violência contra a mulher instituição na qual se reproduzem as desigualdades de gênero Izquierdo 2003b nos esclarece como as relações familiares podem chegar a ser danosas sendo a violência uma das manifestações dessa lógica patriarcal capitalista E é necessário frisar que a violência física praticada pelo homem contra a mulher é apenas a ponta do iceberg ou a concretização mais aparente dessas desigualdades Porém a violência pode assumir inúmeras facetas tal como são tipificadas na Lei Maria da Penha BRASIL 2006 como demonstram os dados da pesquisa Visível e Invisível a vitimização de mulheres no Brasil 2ª edição realizada em fevereiro de 2019 Sobre a relação com o agressor 764 das mulheres afirmaram que conheciam o agressor sendo que 238 dos agressores era o cônjuge companheiro ou namorado e 152 o excônjuge ex companheiro ou exnamorado Outro dado significativo é sobre o local em que as mulheres mais sofrem a violência no caso o próprio domicílio totalizando 42 Além disso o fato de que 536 mulheres por hora no ano de 2018 sofreram agressão física totalizando portanto 47 milhões de mulheres brasileiras é alarmante Se contabilizarmos todos os tipos de violência temse o total de 16 milhões de mulheres brasileiras acima de 12 anos BRASIL 2019 Desses índices podemos apontar que a violência contra as mulheres comumente acontece em casa e ainda é praticada pelo homem com o qual existe um vínculo afetivo aludindo para a reprodução das relações desiguais de gênero da hierarquia de posições sociais colocando a família nuclear heteronormativa como um local privilegiado de perpetuação da sociabilidade capitalista patriarcal Nesse ponto destacamos que adotamos a terminologia violência contra a mulher e não violência de gênero a partir da orientação que Izquierdo 2003b aponta acerca deste último conceito Segundo a autora ainda que o termo violência de gênero lance luz aos fatores estruturais do fenômeno abarcando a necessidade de se pensar as relações entre homens e mulheres enquanto socialmente construídas contraditoriamente aborda de forma insuficiente Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 154 o problema em termos de relações entre os componentes da unidade familiar Dessa forma pode acabar por naturalizar condutas de homens como se estas fossem resultados de intenções ou fundamentalmente voluntárias Nesse sentido é comum a defesa de medidas estritamente policiais ou punitivas ou ainda intervenções psiquiátricas como via de solucionar o problema da conduta violenta Reduzse dessa forma a violência a um problema de delinquentes ou de doentes mentais IZQUIERDO 2003b p 25 tradução nossa O que queremos dizer é que pensar a violência contra as mulheres a partir de uma naturalização da conduta do homem ou psicologização do ato violento significa considerála como um fenômeno individual e não como determinado por mas não só relações específicas que estabelecem certos papéis sociais aos membros componentes da estrutura familiar Isso acaba corroborando medidas também individualizadas No estabelecimento de funções sociais dicotômicas tais como chefe da família ou provedor e donadecasa estamos falando de relações fundamentalmente autoritárias nas quais o poder é exercido sem limites pelo homem na família pois dentro da família nuclear aquele espaço reservado onde não se mete a colher Na direção oposta Izquierdo 2003b esclarece que Por uma parte ao rechaçar tão virulentamente os homens que levam o maltrato ao limite estão sendo tomando medidas não contra o patriarcado cujas bases estruturais estão intactas mas sim contra aqueles homens que o fazem evidente que são precisamente aqueles que perderam o poder patriarcal Não se nega que os homens que exercem violência contra as mulheres mas que se trata de evitar que suas formas mais extremas sejam visíveis e podem levar a fazer uma reflexão geral sobre o caráter das relações mulherhomem IZQUIERDO 2003b p 2526 tradução nossa Nessa direção entendemos que o fundamento das relações travadas entre homens e mulheres está estruturado pela divisão sexual do trabalho Apreender essa determinação a nosso ver é fundamental para que possamos enfrentar a violência enquanto uma das manifestações das desigualdades geradas por essa lógica para além do castigopunição de uma parcela ínfima de agressores cuja prática deixa de lado as condições que produzem e fazem possível que ocorram tais agressões e violações IZQUIERDO 2003b CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho consistiu num empreendimento inicial em articular a produção e reprodução da vida enquanto fundamento da sociabilidade capitalista que divide os indivíduos em classes e os homens e as mulheres a partir do sistema sexogênero tal como abordado por Izquierdo 1992 1994 Dessa dinâmica social pudemos compreender como se articula a violência contra as mulheres enquanto expressão de uma sociabilidade fundada na exploração Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 155 e opressão A partir da análise realizada pudemos constatar a indissociabilidade entre a divisão sexual do trabalho a distribuição desigual das atividades relativas à produção e reprodução da vida e a sociabilidade capitalista que produz e reproduz as desigualdades explorações e opressões de gênero Ressaltamos a importância de recuperar a historicidade e a totalidade na compreensão dos fenômenos sociais em geral e mais especificamente no que se refere às questões de gênero e à violência contra as mulheres Temos como foco teórico e prático a superação de uma compreensão individualista imediatista organicista naturalizante e biologizante acerca do ser humano e dos processos de violência em todos os aspectos que perpassam a sociabilidade capitalista Entendemos que o estudo desta temática conforme o materialismo histórico dialético se revela necessário quando se observa fortes tendências a explicações biológicas e psicologizantes presentes hegemonicamente no campo da psicologia ao mesmo tempo em que percebemos a historicidade e totalidade social como ferramentas fundamentais na crítica radical destas explicações ideologizadas acerca da realidade Entendemos que se trata da tarefa de evidenciar a expressão dos problemas que a divisão sexual do trabalho acarreta nas atividades humanas na provisão na proteção e no cuidado No entanto não significa negar que o sexismo traz impactos concretos na vida e na morte das mulheres Pois cuidado sexismo e violência andam de mãos dadas já que dizem respeito à socialização a partir da divisão sexual do trabalho que produz características específicas nos indivíduos ligadas à dualidade cuidadora e provedor Ou como nos esclarece Izquierdo 2003b p 26 tradução nossa o sexismo que origina a morte social das mulheres também gera sofrimentos colaterais à população em seu conjunto Portanto não se trata de um problema setorial que afeta as mulheres e sim que afeta as bases da sociedade Nesse sentido pensar medidas e soluçoes para a violência e mais especificamente a violência contra as mulheres envolve uma luta que implica na superação do caráter fundante das relações violentas de um modo geral a transformação radical da sociabilidade capitalista REFERÊNCIAS ALVES Andrea Moraes Pensar o gênero diálogos com o Serviço Social Serv Soc Soc São Paulo n 132 2018 p 268286 Disponível em httpwwwscielobrpdfsssocn13201016628sssoc1320268pdf Acesso em 20 jun 2019 ANTUNES Ricardo Os sentidos do trabalho ensaios sobre a afirmação e a negação do trabalho 2 ed São Paulo Boitempo Editorial 2009 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 156 BRASIL Lei 11340 de 7 de agosto de 2006 Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos do 8º do art 226 da Constituição Federal da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher altera o Código de Processo Penal o Código Penal e a Lei de Execução Penal e dá outras providências Disponível em 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MULHERES COMO FORMA DE VIOLÊNCIA NA ANULAÇÃO DO SUJEITO DE DIREITOS FEMININO Athena de Oliveira Nogueira Bastos1 RESUMO O presente artigo pretende analisar o silenciamento como uma forma de violência contra as mulheres a partir do questionamento das mulheres como sujeitos de direitos e de como este é concretizado a partir de outras formas de violência Para isso utilizase de método indutivo bibliográfico e documental com o objetivo de analisar como as relações de poder e desigualdades de gênero contribuem para a manutenção de uma estrutura de violência Analisa se no primeiro momento a constituição das mulheres como sujeitos de direitos em um diálogo com teorias de gênero e de construção do Estado Em um segundo momento analisamse as formas de violência contra as mulheres de modo a evidenciar o silenciamento como uma violência por si Em um terceiro e último momento analisase de que forma o silenciamento também é promovido por outras formas de violência de modo a reforçar a estrutura de violência e desigualdades vigente Palavraschave Violência contra as mulheres Relações de gênero Silenciamento das mulheres Sujeito de Direito INTRODUÇÃO A história das mulheres e da sociedade como Pateman 1993 e Beauvoir 2016 dissertam é marcada pelas relações desiguais de poder que se estabelecem em decorrência do gênero E não pode compreender adequadamente a posição das mulheres no âmbito jurídico ausente a análise de gênero Do contrário isto implicaria em um estudo que ignora as particularidades contextuais sob o discurso de universalismo o qual engloba na mesma categoria aqueles que pelas condições são excluídos delas No que concerne às violências contras as mulheres ainda se mantém em meio a sociedade a visão majoritária de que esta se limita a uma a agressão física em seus moldes mais exemplares o estupro a lesão física e o feminicídio Contudo como se pretende demonstrar a violência contra as mulheres não se restringe a esses exemplos A própria Lei Maria da Penha Lei 113402006 reconhecida como um marco na luta contra a violência doméstica aborda como violência também aquela que causa danos psicológicos às mulheres BRASIL 2006 O que se precisa compreender portanto é que os impactos da violência vão além do que é sentido 1 Mestra em Direito pelo Programa de PósGraduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina PPGDUFSC em 2019 athenabastoshotmailcom Lattes httplattescnpqbr6946288553792220 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 159 e visto fisicamente mas ganham contornos subjetivos E não partem de condutas isoladas mas de uma construção social Dessa maneira a violência também é estrutural O objetivo desta pesquisa então é analisar como o silenciamento das mulheres constitui por si uma violência contra elas e de que modo é materializado através de outros formatos de violência por meio de pesquisa indutiva bibliográfica e documental sem contudo esgotar a vasta mas também discordante bibliografia sobre o tema Visase através desta pesquisa observar que a participação das mulheres é essencial para a coibição da violência contra elas enquanto forma de posicionálas como sujeitos de direitos e do Direito e não apenas objetos de relações desiguais de poder No primeiro tópico portanto analisase a constituição das mulheres como sujeitos de direitos diante construção das estruturas de poder e de gênero para verificar se elas seriam dotadas teoricamente e factualmente de direitos iguais perante uma sociedade desigual e de que modo isto se relaciona com o seu silenciamento No segundo tópico abordase o próprio silenciamento como uma forma de violência de modo a demonstrar que a violência contra as mulheres engloba condutas diversas físicas e psicológicas No terceiro tópico por fim pretendese demonstrar com análise legislativa documental e bibliográfica de que maneira o silenciamento é promovido por outras formas de violência contra as mulheres 1 A VIOLAÇÃO DO SUJEITO DE DIREITOS FEMININO Na perspectiva jurídica o sujeito de direitos é o indivíduo que preenchidas as condições de ato ou natureza está apto ao pleito de uma proteção legal No entanto a conceituação objetiva de um sujeito de direitos dificilmente será encontrada na legislação ausente uma pretensão de universalização do Direito como bem destaca Salgado 2019 E quando se trata de uma definição ou conceituação do sujeito de direitos sob a ótica do gênero a situação se agrava porquanto a própria inserção do feminino enquanto sujeito e não apenas objeto é recente na história do Direito Nas palavras de Mary Beard 2018 p 20 entretanto se quisermos compreender o fato de que as mulheres mesmo quando não são silenciadas ainda pagam um preço muito alto para ser ouvidas precisamos reconhecer que as coisas são um pouco mais complicadas e que há uma longa historia por trás de tudo Em primeiro lugar seria antes necessário conceituar gênero ou estabelecer uma perspectiva das diferenças de gênero para que se compreendesse a diferença que este elemento exerce na configuração factual entre sujeito e objeto de direito Como questiona Beauvoir 2016 p 9 desse modo antes de mais nada o que é uma mulher Para aqueles que defendem uma conceituação puramente biológica do termo o conceito de mulher estaria Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 160 atrelado à configuração do sistema reprodutor feminino em seu modelo padronizado para estudos atribuído às fêmeas da espécie humana Tal perspectiva contudo ignora as particularidades da própria espécie e os elementos psicológicos históricos culturais políticos e sociais da construção do indivíduo Portanto um indivíduo não é apenas o corpo em movimento mas uma construção complexa em seu contexto Nesse sentido para a historiadora Rebecca Solnit 2017 p 35 A categoria mulheres é uma longa avenida que cruza com várias outras entre elas classe raça pobreza e riqueza Percorrer essa avenida significa cruzar outras e jamais significa que a cidade do silêncio tem apenas uma rua ou uma rota importante Agora cabe questionar as categorias do masculino e feminino mas também cabe lembrar que a misoginia se baseia numa inabalável crença na realidade dessas categorias ou tenta reforçálas demonstrando o papel apropriado de cada gênero Em se tratando de sujeito de direitos enfim o afunilamento de um viés jurídico não diminui em alto grau a complexidade porquanto subjetivamente pressupõe também a própria composição do indivíduo Acaso se tentasse observar sujeitos de direitos apenas pela objetividade seria certamente mais fácil encontrar tal definição Entretanto isto implicaria na negação das condições que se estabelecem em interferência ao Direito reproduzindo a violação de uma suposta universalização e objetividade que mascara desigualdades de condições e violações Como escreve então Simone de Beauvoir 2016 p 10 sobre a constituição do gênero e da definição do ser mulher Sem dúvida a mulher é como o homem um ser humano Mas tal afirmação é abstrata o fato é que todo ser humano concreto sempre se situa de um modo singular Recusar as noções do eterno feminino alma negro caráter judeu não é negar que haja judeus negros e mulheres a negação não represente para os interessados uma libertação e sim uma fuga inautêntica A universalização que por um lado é um medida de segurança jurídica ao negar que a individualidade se sobreponha a coletividade é contudo também elemento de reforço à manutenção das estruturas anteriores ao Direito e ao próprio indivíduo os quais estabelecem entre si uma relação recíproca de interferência entre indivíduos produtoresreprodutores do Direito e um Direito que os condiciona Como se observa no trecho extraído da obra de Beauvoir 2016 negar as particularidades não é libertar ao colocar a todos em um mesmo local que apenas se configura na forma mas não na substância É na verdade uma forma de silenciar ao fugir para a medida superficial Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 161 Carole Pateman 1993 2008 inclusive rebate teorias contratualistas e liberalistas em suas argumentações da disposição sobre os corpos porquanto a liberalidade e autonomia defendidas ignoram disposições anteriores que condicionam a própria liberalidade Isto significa portanto que o argumento de liberdade não alcança a realidade fática uma vez que antes dele há condições supressoras e determinantes No caso das mulheres há o que a autora defende como um contrato sexual Ou seja a constituição do Estado e consequentemente dos direitos baseiase no posicionamento das mulheres como subordinadas aos homens E dada tal constituição social falar das mulheres então como sujeitos de direitos sem romper com a formação do Estado como a decorrida seria atribuir às mulheres direitos limitados atribuir lhes uma autonomia que não passa do discurso Nas palavras de Beauvoir 2016 p 199 A história mostrounos que os homens sempre detiveram todos os poderes concretos desde os primeiros tempos do patriarcado julgaram útil manterá a mulher em estado de dependência seus códigos estabeleceramse com ela e assim foi que ela se constituiu concretamente como Outro Desde que o sujeito busque afirmarse o Outro que limita e nega élhe entretanto necessário ele só se atinge através dessa realidade que ele não é Pela perspectiva da autora podese extrair em primeiro lugar que a constituição da sociedade tal qual conhecida e tal qual abordada por Pateman 1993 ocorre por meio dessa diferenciação do poder dos homens sobre as mulheres Do contrário as relações de poder não justificariam o formato seguido Portanto é um pressuposto das sociedades moderna e pós moderna tal qual conhecidas hodiernamente a polarização dos gêneros em seu aspecto socialmente construído através da diferenciação entre o sujeito homem e o Outro mulher Sem essa diferenciação e o estabelecimento de um sujeito versus o Outro o próprio sujeito não se constituiria o que justifica a necessidade de reafirmação do poder dos homens e da sua luta pela manutenção da submissão das mulheres BEAUVOIR 2016 Disso decorre então uma segunda conclusão a de que a mulher não seria um sujeito A mulher pode ser considerada hoje um sujeito de direitos No entanto em nível teórico não seria o sujeito mas sim o Outro porque lhe é restrita a participação na construção do Estado Se Pateman 1993 trata da perspectiva mais política Beauvoir 2016 enfoca em uma perspectiva social e cultural Contudo ambas as autoras concordam em certo modo com a exclusão das mulheres dessa construção senão em seu papel subalterno e de reforço da estrutura de poder Afinal o poder somente se estabelece numa relação direcionada Não há poder enfim se não há objeto sobre o qual ele se exerça Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 162 Retomando a ideia de sujeitos de direitos outro elemento se torna ainda imprescindível a capacidade de exercer seus direitos Não ser quer por essa afirmação ignorar que a incapacidade como categoria estabelecida no Código Civil de 2002 em seus artigos 3º e 4º categoria esta à qual pertenciam as mulheres casadas no Código Civil de 1916 em seu art 6º inciso II BRASIL 1916 2002 E mesmo os indivíduos considerados civilmente incapazes podem exercer seus direitos mediante representação ou assistência O problema que se levanta é que a constituição de um direito morto ou seja impossível de ser exercido por si ou por outrem em seu nome implica em uma ineficiência do próprio sistema jurídico O que ocorre no caso das mulheres é que são consideradas formalmente capazes desse exercício mas pelas condições externas ao Direito não podem exercer os direitos que as configuram com tal Ou seja as mulheres são silenciadas seja no meio social ou dentro do próprio Direito perante a crença de que apenas um art 5º da Constituição Federal de 1988 segundo o qual homens e mulheres são iguais em direitos e obrigaçoes BRASIL 1988 seja suficiente ao pleno exercício dos direitos A voz logo é uma condição do sujeito de direitos E não apenas a voz no sentido físico produzida pelo atrito das cordas vocais mas a voz no sentido de expressão e manifestação indispensáveis à constituição de uma relação ou comunicação como no sentido hermenêutico de Habermas 1989 Na razão comunicativa de Habermas o diálogo entre os indivíduos exerce protagonismo A verdade consensual como o autor aborda é alcançada assim por meio de uma dialética discursiva em que os falantes estejam submetidos a algumas regras capazes de garantir certa isonomia sem pressões alheias numa esfera que se classifica como situação de discurso ideal Se a liberdade de manifestação feminina como se verá adiante é cerceada não apenas por uma estrutura de violência2 mas também pela violência no seio da sociedade3 isto significa que lhes é imposta uma barreira de participação ativa na comunicação jurídica Então como aponta Solnit 2017 p 35 Se ter voz poder falar ser ouvido e acreditado é essencial para ser um participante uma pessoa com poder um ser humano com pleno reconhecimento então é importante reconhecer que o silêncio é a condição universal da opressão e existem muitas espécies de silencio e de silenciados 2 Pateman 1993 desenvolve a teoria do contrato sexual evidenciando que a construção do Estado moderno do qual advém o Estado pósmoderno dáse com base em um contrato de supressão da mulher enquanto sujeito e da presunção da submissão feminina Disso decorre também uma crítica à presunção de universalidade porquanto esta se resumo ao discurso não se efetivando na prática em decorrência da forma de constituição social 3 A violência social nesse sentido engloba tanto a violência física como nos casos de agressão e feminicídio quanto a violência verbal Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 163 O silenciamento por si como se observa é uma forma de agressão à integridade das mulheres como indivíduos e sujeitos de direitos Como Salgado 2019 p 73 coloca a mulher como objeto do Direito dificilmente está presente na ciência o Direito e é ainda mais difícil encontrar a mulher como protagonista na luta por direitos Ou seja historicamente as mulheres são retiradas de suas posições na construção do Direito enquanto ciência e instituição4 A voz enfim é um diferencial no exercício dos direitos E como aborda Solnit 2017 p 35 os direitos humanos não se resumem a isso mas isso é essencial para eles e assim podemos considerar a história dos direitos e da falta dos direitos das mulheres como uma história do silêncio e do rompimento do silêncio 2 O SILENCIAMENTO COMO UMA VIOLÊNCIA DENTRO DO CONTEXTO DAS VIOLÊNCIAS CONTRA AS MULHERES Ainda acerca do silenciamento das mulheres enquanto forma de manifestação e de manutenção de uma estrutura de violência Solnit 2017 p 38 escreve que considerese silêncio como aquilo que é imposto e quietude como aquilo que se busca deliberadamente A tranquilidade de um lugar quieto da quietude do nosso espírito da recusa das palavras e da agitação é igual em termos acústicos ao silêncio da intimidação ou da repressão mas em termos psíquicos e políticos é algo totalmente diferente O silêncio desse modo não pode ser interpretado como a autonomia pelo não uso da palavra em situação de um conforto liberto embora tenha na prática a mesma forma A ausência de palavras vista como um espaço em branco do discurso deve ser tomada por sua natureza anterior analisada em suas razões O silêncio não é autônomo quando se impõe uma barreira à manifestação da voz é repressão e violência De acordo com Pontes 2019 p 123 Também se pratica silenciamento com estratégia dolosa que combina o intento de apagar a contribuição feminina incômoda com utilização deliberada de estruturas sociais para prejudicá0la ridicularizála ou desencorajála mediante consequências persecutórias Estas três situações não são estanques podem aparecer de forma combinada em tempos diferentes ou de forma mais ou menos intensa ao sabor de épocas lugares e sujeitos diversos Rebecca Solnit 2017 ao abordar o tema do silenciamento feminino dissera que a violência não se restringe ao seu aspecto visível da agressão física tampouco se dá apenas na forma de agressão verbal direta mas se configura na anulação das vozes e das histórias pessoais 4 Com o termo instituição querse referir sobremaneira à estrutura de aplicação do Direito enquanto construção material Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 164 e coletivas A violência contra as mulheres então é materializada no homem que agride uma mulher para silênciála na violação do corpo feminino e no impedimento de reação e denúncia em face ao estupro na invalidação do depoimento feminino no silenciamento final do assassinato Todas essas violências em suas diferentes formas são violências porque não apenas ofendem e desrespeitam o outro considerado como um sujeito mas também porque retiram do outro os direitos a ele inerentes Assim o silenciamento é uma recusa das nossas vozes e do que significa uma voz o direito de autodeterminação de participação de concordância ou divergência de viver e participar de interpretar e narrar SOLNIT 2017 p 35 O art 5º da Constituição Federal assim como iguala homens e mulheres em direitos protege a liberdade de expressão BRASIL 1988 No entanto a liberdade de expressão é majoritariamente analisada pelo viés da imprensa e exceto pelas análises feministas pouco se aborda acerca da liberdade de expressão em um contexto maior da instituição jurídica Como por exemplo pode ser protegida liberdade de expressão das mulheres quando o seu direito de expressão é limitado pela própria construção do Direito ou recebido com um discurso de repressão 3 DO VERBO AO ATO COMO A VIOLÊNCIA DO SILENCIAMENTO É CONCRETIZADA PELA VIOLÊNCIA VERBAL O silenciamento como analisado é também uma violência mas é promovido por outras formas de violência como a humilhação a desvalorização as ameaças entre outras Nas palavras de Solnit 2017 p 45 Existe uma separação tradicional entre estupro violência doméstica assassinato e misoginia institucional As distinções entre os tipos de violência não nos adiantam de nada quando nos impedem de falar sobre a chamada violência de gênero como um fenômeno amplo e profundo E mesmo chamar todos eles de violência de gênero encobre o fato de que a violência é apenas um meio para um fim e que existem também outros meios Se a questão é o silêncio então as formas de silenciamento que uns empregam contra outros ampliam o campo passando a incluir a vergonha a humilhação a exclusão a desvalorização as ameaças e a distribuição desigual do poder por meios sociais econômicos culturais e jurídicos A mulher sob o ponto de vista do patriarcado5 é quase sempre vista como a parte equivocada Em um julgamento de crime de estupro como estudado pela autora na realidade 5 A palavra patriarcado advém da concepção de uma sociedade liderada pelos homens à imagem do pater familiae romano No entanto como Pateman 1993 e outras autoras colocam o patriarcado adquire um novo sentido perante as teorias feministas ainda que haja críticas dentro dos movimentos à sua utilização O patriarcado já não Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 165 dos Estados Unidos a vítima é usualmente condenada pela sua denúncia antes mesmo da averiguação dos fatos Da presunção de inocência nos crimes de estupro vem a presunção de culpa da vítima E ainda que se prove a conduta as mulheres são referidas como a causa de sua própria violência o que não apenas intimida a vítima daquele único ato violando seu direito inclusive de acessar a justiça como instaura uma ameaça coletiva Dessa maneira embora não seja positivada criase uma subnorma ou uma norma paraestatal de que as mulheres que denunciarem as demais violências serão condenadas publicamente Do mesmo modo ocorre um julgamento em relação à defesa da liberação do aborto Como Solnit 2017 p 176 apresenta a narrativa contra o aborto gosta muito de falar de mulheres depravadas que fazem sexo só pela diversão e estão se lixando para as consequências A autora apresenta ainda a literatura e a comunicação visual como formas violentas de promover o silenciamento Em avisos sobre os efeitos do álcool ou do Zika vírus a linguagem é utilizada de modo a fazer a mulher pensar que a sua conduta deve ser modificada pelos riscos que isto pode gerar limitando a autonomia sobre seu próprio corpo No Brasil a situação não é muito diferente Segundo nota técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPEA 2014 apenas 10 dos casos de estupros no país chegavam ao conhecimento da polícia sendo 89 das vítimas do sexo feminino Amorim e Contasti 2019 p 446 analisam outras pesquisas e números da realidade brasileira e afirmam que o fenômeno da violência permeia o cotidiano das mulheres brasileiras seja em casa na rua ou nos espaços institucionais da política As autoras apontam por exemplo que na pesquisa A voz das redes o que elas podem fazer pelo enfrentamento das violências contra as mulheres realizada pelo Instituto Avon e Folks Netnográfica em 2018 86 das mulheres a denunciarem alguma espécie de assédio ou violência nas redes sociais tiveram que recorrer ao anonimato No campo da política brasileira uma capa da revista IstoÉ repercutiu de modo a exemplificar a forma vexatória com que o discurso feminino é retratado As Explosoes Nervosas da Presidente é a manchete que estampa a edição de abril de 2016 do veículo de comunicação acompanhada de uma foto da então presidenta Dilma Rousself pouco antes de seu impeachment A exaltação feminina ou o simples uso de sua voz acima do tom considerado feminino na construção de um padrão de feminilidade como Beauvoir 2016 e Beard 2018 analisam é considerada ato autorizador da represália ofensiva Ou seja a voz se refere unicamente ao modelo de centralização do homem no poder mas a um conjunto de práticas que diretamente ou indiretamente reforçam a estrutura de desigualdade do poder em decorrência do gênero Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 166 feminina exceto quando dentro dos limites do patriarcado é sancionada E a primeira sanção é o ataque à constituição da mulher A Lei Maria da Penha Lei 113402006 emblemática no campo dos direitos femininos refletiu a disposição da Convenção Interamericana Para Prevenir Punir E Erradicar A Violência Contra A Mulher realizada em Belém do Pará em 1994 E dispôs assim em seu art 5º que violência doméstica e familiar é qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte lesão sofrimento físico sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial BRASIL 2006 Ou seja incluiu na letra da lei que a violência poderia ser um ato diferente da agressão física que lesasse a mulher também psicologicamente Ocorre que a mesma espécie de lesão pode se dar de forma coletiva e direcionada às mulheres enquanto um grupo Acerca dos efeitos da mídia em uma violência contra as mulheres Muniz e Bastos 2018 destacam a construção do imaginário feminino e a sua utilização como forma de manutenção de uma estrutura de submissão A imagem da mulher é reforçada como um objeto em oposição à sua posição de sujeito sob o domínio dos homens E dessa maneira a mídia acaba por ferir direitos das mulheres através de uma violência moral consoante também o disposto na já mencionada Convenção de Belém do Pará BRASIL 1996 segundo a qual a violência contra a mulher constitui ofensa contra a dignidade humana e é manifestação das relaçoes de poder historicamente desiguais entre mulheres e homens A historiadora Mary Beard 2018 p 55 analisa a voz pública das mulheres e as reações ao discurso feminino Em sua análise traz então exemplos da literatura e da política em que as vozes femininas se não foram caladas no impedimento foram caladas em respostas que se atêm menos ao conteúdo do discurso que ao fato de terem sido proferidas por mulheres Dessa maneira ela escreve que O que se diz das mulheres quando abrem um processo público quando defendem sua posição quando se manifestam Estridentes elas se queixam e se lamentam Essas palavras importam Claro que sim porque sustentam um vocabulário que age para solapar a autoridade a força e até o humor do que uma mulher tem a dizer Portanto de diferentes formas o silenciamento se impõe de modo a causar impactos complexos não apenas na mentalidade e na forma de atuação das próprias mulheres individualmente consideradas mas também no pensamento coletivo CONSIDERAÇÕES FINAIS Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 167 Como observado portanto sobretudo através de Beauvoir 2016 o gênero é construído socialmente Não se trata de uma diferenciação puramente biológica baseada nas definições de sexualidade ou dos sistemas reprodutores Uma mulher dessa maneira não se constitui como mulher apenas pela presença de um útero tampouco é apenas a fêmea da espécie humana A mulher se constrói socialmente através da distinção do homem o sujeito histórico Historicamente o homem detém o poder de estruturação social na construção de um sistema patriarcal colocandose como o protagonista da história da sociedade A mulher por sua vez é marginalizada e a ela é atribuído o aspecto do Outro Sua constituição enquanto mulher então é definida na medida em que não é o homem e viceversa Pateman 1993 assim como Beauvoir 2016 analisa a construção social a partir das oposições de gênero e se baseia na tese de que a sociedade somente se constrói no modelo atual com base nessa diferenciação Sem a submissão das mulheres os homens não teriam o poder que arrogam para si E por essa razão precisam reforçar a submissão em uma eterna luta de poderes A forma com que exercem seu domínio contudo ocorre em regra através de uma conduta de violência a qual nem sempre assumirá o explícito caráter de agressão visando assim retirar das mulheres o seu poder de expressão Uma vez que não possuam voz as mulheres não podem exercer livremente seus direitos E muito embora sejam consideradas sujeitos de direitos pelos moldes do Direito contemporâneo não o podem ser plenamente porquanto em sua construção sequer são sujeitos E se não podem se expressar sem as limitações impostas pelas relações desiguais de poder tampouco podem acessar os direitos que em um discurso universalista possuem O que Solnit 2017 evidencia assim é que o silenciamento é uma forma de violência corroborada por outras formas de violência A violência física e a violência verbal são utilizadas não apenas como formas de sanção a uma conduta que ainda que não positivada é estabelecida moralmente como devida pelas mulheres mas também como uma forma de ameaça às condutas coletivas Assim quando uma mulher exerce seu poder de fala é retaliada não somente porque está no imaginário social a ideia de sua impotência É retaliada também porque assim mais mulheres se sentirão impelidas a permanecer em silêncio Por essa razão é que o silenciamento não pode ser tomado apenas como um reflexo da violência mas como uma violência por si Do mesmo modo que um agressor tapa a boca de sua vítima para que os demais não ouçam seus berros a sociedade impede que as vozes das mulheres se manifestem pois o grito de uma reverbera O silêncio por fim não pode ser tomado sem seu aspecto político Manterse em silêncio seria uma escolha autônoma se as mulheres não fossem cerceadas pelas condições Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 168 estruturais No entanto quando há uma ação direcionada ao silenciamento das mulheres entendese que o silêncio mesmo quando não imposto carrega um histórico de imposições E reflete na mulher invalidada perante tribunais reflete na mulher amedrontada ao denunciar reflete na mulher assassinada Dessa maneira o silenciamento talvez seja a primeira forma de uma violência estrutural maior porque é cúmplice das demais violências Abrir espaços de manifestação das vozes das mulheres é o primeiro passo mas não é o único dessa luta de libertação É preciso compreender que a violência ultrapassa as barreiras da agressão visível e invade o psicológico individual e coletivo E é preciso enfim compreender que não se trata de uma mudança superficial Tratase do rompimento com uma estrutura histórica vigente com raízes ainda mais profundas REFERÊNCIAS AMORIM Elba Ravane Alves CONTASTI Katherine Lages De Dilmas a Marielles análise da ausência de marco legal sobre violência contra as mulheres in FERRAZ Carolina Valença coord Manual jurídico feminista Belo Horizonte Letramento 2019 p 445479 BEARD Mary Mulheres e poder um manifesto São Paulo Planeta do Brasil 2018 BEAUVOIR Simone de O segundo sexo fatos e mitos 3 ed Rio de Janeiro Nova Fronteira 2016 BRASIL Lei nº 3071 de 01 de janeiro de 1916 Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Código Civil de 1916 Rio de Janeiro 1916 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03leisL3071htm Acesso 20 ago 2019 BRASIL Lei nº 10406 de 10 de janeiro de 2002 Institui o Código Civil Código Civil de 2002 Brasília DF 2002 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03leis2002l10406htm Acesso em 20 ago 2019 BRASIL Constituição 1988 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 Brasília DF Presidência da República 1988 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Constituicao Constituiçaohtm Acesso em 20 ago 2019 BRASIL Decreto nº 1973 de 01 de agosto de 1996 Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher concluída em Belém do Pará em 9 de junho de 1994 Convenção Interamericana de Belém do Pará Brasília DF 01 ago 1996 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03decreto1996D1973htmtargetTextANEXO20AO 20DECRETO20QUE20PROMULGABELC389M20DO20PARC381E2 809D2FMREtargetTextEntende2Dse20que20a20violC3AAnciaviol C3AAncia20fC3ADsica2C20sexual20e20psicolC3B3gica Acesso em 20 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 169 BRASIL Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos do 8º do art 226 da Constituição Federal da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher altera o Código de Processo Penal o Código Penal e a Lei de Execução Penal e dá outras providências Lei Maria da Penha Brasília DF 2006 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato200420062006leil11340htm Acesso em 20 ago 2019 HABERMAS Jürgen Consciência moral e agir comunicativo Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1989 IPEA INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA A institucionalização das políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres no Brasil versão preliminar Brasília Ipea 2014 OLIVEIRA Amanda Muniz BASTOS Rodolpho Alexandre Santos Melo A violência midiática de gênero e suas interfaces como os direitos humanos das mulheres in BAGGESNTOOS Grazielly Alessandra coord Direito e feminismos materialidades que confrontam discursos Rio de Janeiro Lumen Juris 2018 p 179198 PATEMAN Carole O Contrato Sexual Rio de Janeiro Paz e Terra 1993 PONTES Ana Carolina Amaral de Fontes do Direito e o processo histórico de silenciamento das mulheres reinvenção do direito e não subalternização in FERRAZ Carolina Valença coord Manual jurídico feminista Belo Horizonte Letramento 2019 p 121174 SALGADO Gisele Mascarelli Epistemologia feminista no direito in FERRAZ Carolina Valença coord Manual jurídico feminista Belo Horizonte Letramento 2019 p 6788 SOLNIT Rebecca A mãe de todas as perguntas reflexões sobre os novos feminismos São Paulo Companhia das Letras 2017 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 170 TÊMIS À SOMBRA DE ARES A LATENTE VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA INVISIBILIZAÇÃO DO FEMININO PELA CRIMINOLOGIA Fernanda Miler Lima Pinto1 Liziane da Silva Rodríguez2 Paulo Thiago Fernandes Dias3 Sara Alacoque Guerra Zaghlout4 RESUMO Dentre as várias áreas científicas a Criminologia talvez tenha sido a que mais se aprisionou ao androcentrismo A Criminologia portanto foi idealizada a partir de parâmetros masculinos trazendo na sua estrutura a ordem patriarcal de gênero e até pouco tempo a imposição à mulher a um lugar inferior ao do homem Utilizandose de estudo bibliográfico esta investigação tem como objetivo central traçar a trajetória da Criminologia evidenciando como essa ciência tem negligenciado e invisibilizado a mulher tanto como objeto de estudo criminosa quanto como criadora de conhecimento criminologista Pretendese a partir da Criminologia Feminista tirar essas questões das sombras retirando a mulher dessa posição ocultada Para tanto será analisada a evolução científica da Criminologia do paradigma etiológico ao da reação social para posteriormente desenvolver como a perspectiva de gênero contribuiu para a mudança e para a ampliação do objeto de estudo desse ramo do saber Palavraschave Paradigma etiológico Paradigma da reação social Criminologia Criminologia crítica Criminologia feminista INTRODUÇÃO O saber criminológico se traja com as vestimentas de Ares5 contra o feminino contra tudo aquilo que vê como vulnerável dentro de uma sociedade extremamente desigual e prejudicada por um histórico repleto de problemas sociais dos quais destacase aqui o machismo estrutural que acomete não so os sistemas de controle informais mas também os formais Percebese que a Ciência munida com ferramentas e saberes para examinar o 1 Advogada inscrita na OABMA Mestranda em Direito Público na Universidade Vale do Rio Sinos UNISINOS Email fernandamlp1206gmailcom Lattes httplattescnpqbr1672312046277512 2 Advogada inscrita OABRS Doutoranda em Direito Público na Universidade Vale do Rio dos Sinos UNISINOS Mestra em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Email liziane00hotmailcom Lattes httplattescnpqbr5373453337860546 3 Professor de Direito Penal na Universidade CEUMA e de Direito Processual Penal na Faculdade UNISULMA IESMA Doutorando em Direito Público na Universidade Vale do Rio dos Sinos UNISINOS Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Email paulothiagofernandeshotmailcom Lattes httplattescnpqbr4247353234663822 4 Advogada inscrita na OABMA Doutoranda em Direito Público na Universidade Vale do Rio dos Sinos UNISINOS e Bolsista CAPES Mestra em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Email sahalacoquehotmailcom Lattes httplattescnpqbr2927150421896071 5 Evidenciase a relação do androcentrismo com a visão da guerra da violência que na mitologia grega é representada por Ares conhecido pelos romanos antigos como Marte Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 171 fenômeno criminológico que ocorre na sociedade foi construída com bases sólidas no androcentrismo Assim a relação entre Ares e Têmis se perfaz aqui nesse contexto Na mitologia grega Ares é considerado o principal rival de Têmis a deusa da Justiça que para os romanos antigos é conhecida como Dice Têmis é considerada ainda a guardiã dos juramentos e da Lei dos homens A relação entre Têmis e Ares é utilizada para explicar o título deste trabalho quando a justiça representada por uma deusamulher vêse invisibilizada pela força androcêntrica caracterizada por Ares um deushomem Por que a justiça criminal trata as mulheres de forma tão inequânime Por que a criminologia negligencia e invisibiliza as mulheres quando elas são objeto e quando são sujeitos de estudo as criminosas e as criminologistas Esses são alguns dos questionamentos que direcionam esta pesquisa já que essa negligência científica é responsável pela latente geração e perpetuação de grandes desigualdades e violências às mulheres no âmbito do Sistema Penal Além disso observando os silêncios do poder e do saber vale destacar as indagações Andrade 2012 o que se sabe sobre a mulher no universo criminal6 seja como autora ou vítima de crimes Por que as mulheres são menos encarceradas e criminalizadas do que os homens7 Teriam elas menos propensão à prática de crimes Quais crimes essas mulheres sofrem Que impacto isso causa sobre o Sistema de Justiça Penal Afinal têmse respostas para essas perguntas É seguro dizer concordandose com Oliveira 2002 p 167 que tradicionalmente no campo das Ciências Criminais com ênfase na Criminologia partiase do princípio de que os dados aferidos sobre o homem criminoso serviriam também para o tratamento criminal feminino Assim tendo como problemática central o silêncio do saber criminológico sobre a mulher e partindo da premissa de que a Criminologia nasceu de um discurso masculino para estudar crimes cometidos por homens e também para ser aplicada aos homens e por eles pretendese aqui mediante estudo bibliográfico analisar o trajeto da mulher na Criminologia 6 Mendes 2014 p 13 relata que muitos dos trabalhos para não dizer todos encontrados no Brasil sobre a mulher como autora de crime ou como vítima encontramse referenciadas em paradigmas criminológicos conformadores de categorias totalizantes que se distanciam muito ou totalmente do que produziu a epistemologia feminista Matos 2006 reforça ao dizer que mesmo que a partir do final do século XIX e no decorrer do século XX criminólogosas tenham se dedicado ao estudo da criminalidade feminina esta nunca foi considerada uma área sólida dentro da Criminologia Os estudos e pesquisas a respeito do desvio feminino ficam muito aquém dos estudos sobre desvio masculino Para Adorno 2008 uma das razões que justifica a quase inexistência de estudos sobre as ofensoras mulheres é o fato de que em números os delitos cometidos por elas serem significativamente inferiores quando comparadas aos cometidos pelos homens 7 Segundo Pollak 1950 as mulheres seriam menos visíveis aos olhos do Estado pois praticam crimes de menor risco à sociedade e considerados de pouca relevância tais como aborto infanticídio e pequenos furtos Defende ainda a capacidade feminina de ludibriar as leias em razão da sua capacidade de falsear e o seu poder de sedução Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 172 do surgimento desta como Criminologia Positivista marcada que foi pelo paradigma etiológico que entendia a mulher dentro de um grupo perigoso e com características bastante peculiares à ruptura desse paradigma com o abandono do estalão etiológicodeterminista quando esse ramo do saber passa a seguir o modelo da Reação Social alterandoampliando o seu objeto de estudo Para tanto a análise partirá da perspectiva de gênero8 Apresentase por fim como objetivo principal urgente e necessário dar voz à história da mulher em especial no âmbito da Criminologia pois esta cientificamente sempre se consolidou numa figura androcêntrica austera e autoritária relegando a mulher ao silenciamento9 ao esquecimento Uma inequívoca contradição considerandose a característica progressista da Criminologia Crítica 1 DA CRIMINOLOGIA POSITIVISTA PARADIGMA ETIOLÓGICO Entre os mais diversos estudiosos não há um consenso sobre qual o momento histórico do nascimento da Criminologia enquanto ciência Zaffaroni 2013 por sua vez aponta a obra o Martelo das Feiticeiras como sendo o primeiro discurso criminológico da história Para ele a Inquisição teria sido uma manifestação orgânica do poder punitivo recémnascido que pela primeira vez exibiria de maneira coesa um discurso sofisticado da Criminologia etiológica do Direito Penal do Processo Penal e da criminalística de tal maneira que essa obra deveria ser vista como um dos principais livros em relação às modernas ciências penais ou criminais10 Anitua 2008 explana que a origem da Criminologia está ligada não apenas às ideias sobre a ordem ou o poder punitivo mas também quanto ao momento histórico em que essas ideias se distanciaram da questão política A justificativa dada pelos detentores do poder burocrático e dos estudiosos da época estava presa às ciências exatas e da natureza Por isso o proprio nome Criminologia viria para pontuar o momento de cientificismo e organicismo 8 O gênero se tornou política e teoricamente relevante a partir da década de 1970 com o movimento feminista e a significativa revolução de paradigmas nas ciências estendendose o seu significado original de uma classe de algo música literatura ou de seres animais vegetais para assinalar uma classe de seres humanos demarcando daí para a frente como um conceito de grande importância para a compreensão dos papeis sociais da identidade e das relações entre homens e mulheres na sociedade A partir disso foi possível diferenciar o sexo biológico e o gênero social e com isso ressignificar a dicotomia homemmulher femininomasculino descontruindo não só o modelo androcêntrico de sociedade mas como também os mecanismos que garantiam a dominação masculina o que mantinha a diferença de gênero ignorada ANDRADE 2014 9 Segundo Lemgruber 1999 o silêncio sobre a história das mulheres ocorre através do seu efetivo mutismo nas esferas políticas vistas por muito tempo como locais exclusivos do poder masculino 10 Mendes 2017 relata que apesar de o Martelo das Feiticeiras não ter sido o primeiro a tratar do assunto referindose à obra Directorium Inquisitorum ou Manual dos inquisidores de Nicolau Eymerich 1376 é nele que se estabelece de maneira direta uma relação entre feitiçaria e a mulher a partir de trechos do Antigo Testamento da Antiguidade Clássica e de autores medievais Nele Manual dos inquisidores aduz Mendes 2017 existem afirmações a respeito da malícia da pouca fé das mulheres da perversidade da fraqueza física e mental e até mesmo a determinada classes de homens supostamente imune aos feitiços femininos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 173 marcado pelo século XIX Afinal a ciência médica já vinha observando os estudos desenvolvidos na área penal à procura de uma causa científica para a criminalidade tendo como objeto de estudo não mais o Estado e nem a sociedade mas uma patologia presente no próprio indivíduo A Antropologia Criminal de Lombroso e posteriormente a Sociologia Criminal de Ferri integram duas bases na formação do paradigma etiológico Este a sua vez percebese adstrito à ideia de ciência de acordo com os pressupostos epistemológicos do Positivismo Assim a Criminologia e por isso mesmo Positivista é marcada como uma ciência causal explicativa da criminalidade questionando o que o criminoso faz e por que o faz ANDRADE 2016 A primeira resposta às causas do crime foi levantada pelo já mencionado médico italiano Cesare Lombroso que apoiava sua teoria na tese do criminoso nato a causa do crime está intrínseca no próprio criminoso acreditando em especial no determinismo biológico e psíquico do crime11 ZAGHLOUT 2018 Ferri ao desenvolver a teoria lombrosiana em uma perspectiva sociológica ressaltou uma tríplice série de causas ligadas à etiologia do crime individuais orgânicas e psíquicas físicas ambiente telúrico e sociais ambiente social e com elas ampliou a originária tipificação lombrosiana da criminalidade Ferri afirmou que o crime não é resultado do livre arbítrio mas sim de um produto que é apontado por esses três fatores e que abrangem 11 Tecendo maiores esclarecimentos acerca do livro Luomo Delinquente Lombroso apresenta o delito como um ente natural algo necessário e orgânico como o nascimento a morte e a concepção ou seja determinado por causas biológicas e de natureza hereditária Lombroso acreditava que o comportamento degenerado provinha de uma espécie de doença denominada Regressão Atávica a qual fazia com que o indivíduo se portasse como um ser primitivo desprovido de controle sobre os seus próprios instintos Tal condição seria identificável através de características físicas sendo que a pessoa que as reunisse seria inevitavelmente o criminoso nato Lombroso tendo como aparato o método experimentalindutivo inaugura a tautologia do laboratório prisional buscando confirmar sua tese por meio de estudos em hospitais psiquiátricos e prisões instituições totais do seu tempo em especial no sul da Itália com auxílio de Ferri que indicou o nome criminoso nato Ele buscou assim individualizar nos doentes e criminosos características e anomalias sobretudo físicas cabelo crespo orelhas grandes barba rala olhar errante etc e anatômicas capacidade craniana que seriam próprias de indivíduos que possuíam predisposição para o cometimento de crimes ZAGHLOUT 2018 Buscou Lombroso dessa forma diferenciar tanto nos criminosos quanto nos doentes anomalias em especial fisiológicas e anatômicas que ele acreditava que se repetiam naqueles que estavam predestinados ao cometimento de crimes Em relação a essas buscas pela descrição do criminoso nato Lombroso recorreu primeiramente ao atavismo11 manifestação de traços característicos de uma etapa de desenvolvimento biologico primitivo da raça humana ANDRADE 2003 p 65 para identificar a criminalidade nas características físicas dos indivíduos A originalidade da hipótese de Lombroso sobre o atavismo estava no reaparecimento das características dos ancestrais que foram esquecidas no curso da humanidade O atavismo então poderia se manifestar tanto nos fatores mentais fisiológicos quanto nos fatores craniais e anatômico Dessa forma o criminoso era selvagem por atavismo aquele que em meio à civilização comportavase como um elemento exógeno próprio do passado ou de outras civilizaçoes atrasadas Com o passar do tempo sua hipótese foi sofrendo críticas e Lombroso reviu a sua tese acrescentando como causas da criminalidade não so o atavismo mas também a epilepsia e a loucura moral DUARTE 2017 Atavismo epilepsia e loucura moral constituem o chamado por Vonnacke de tríptico lombrosiano ANDRADE 2003 p 65 Ele passou então a aceitar a hipótese do atavismo em sua plenitude somente para o criminoso nato Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 174 uma minoria de pessoas como sendo socialmente perigosas Assim fundamental seria ver o crime no criminoso pois ele é sobretudo sintoma revelador da personalidade mais ou menos perigosa antissocial de seu autor para qual se deve dirigir uma adequada defesa social ANDRADE 2016 p 47 Em relação ao comportamento desviante da mulher Lombroso e Giovanni Ferrero publicaram em 1892 a obra La donna delinquente Nesta obra a classificação do crime como fenômeno biológico em razão do livrearbítrio agora é posta diretamente às mulheres criminosas Os estudos foram realizados em penitenciárias femininas italianas locais em que foram feitas medições de crânio de traços faciais de marcas de nascença e de cérebros das mulheres encarceradas MENDES 2017 Valendose do evolucionismo positivista e do determinismo biológico como bases Lombroso empregou a teoria do atavismo para explicar fisiologicamente a inclinação das mulheres para a prática de atividades ilícitas Segundo ele as mulheres são mais submissas à lei que os homens sendo instigadas entretanto pela amoralidade Por amorais entendese como sinônimo de frias engenhosas sedutoras calculistas malévolas MENDES 2017 Além do mais alegava Lombroso que as criminosas possuíam a sexualidade aguçada12 a lascívia e o caráter vingativo inflamados MENDES 2017 Elas se entregavam aos impulsos às futilidades aos ciúmes à vaidade à inveja e à avareza HELPES 2014 Enquanto a sexualidade da mulher normal mantinhase controlada subordinada também à maternidade entre as criminosas ocorria o contrário As criminosas não hesitariam em desamparar seus filhos podendo até mesmo induzilos à prostituição13 LOMBROSO FERRERO 1985 Acreditavase que as mulheres tidas como normais seriam incapazes de cometer algum crime pois sua pouca inteligência frigidez sexual e fraqueza das paixões as impediriam de qualquer ato de desobediência Ao mesmo tempo protegidas pelo seu lar as mulheres estariam menos expostas às ameaças e aos perigos da rua ao contrário do homem LOMBROSO FERRERO 1985 12 Para Ferrero e Lombroso as características de cunho sexual eram as mais graves acreditavase que essas eram as criminosas mais perigosas MENDES 2017 13 A maternidade era vista como algo intrínseco ao gênero feminino sendo esse seu principal papel na sociedade Além disso era visto como uma forma de controle pois além de já nascerem com essa predestinação era essa a linha divisória que apartava as mulheres normais das anormais Com isso as prostitutas e as criminosas têm em comum a deficiência do instinto maternal deixandose levar pelo impulso sexual o que colabora e facilita o comportamento delinquente beirando o comportamento masculino KURELLA 1991 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 175 Assim como Lombroso havia classificado os delinquentes masculinos as criminosas poderiam ser dividias em três grupos natas ocasionais e passionais14 A criminosa nata possuía atributos masculinos sendo considerada uma meia mulher ou um homem disfarçado sendo que por ser masculinizada ela rejeita o seu instinto maternal e a sua própria natureza HELPES 2014 Para Lombroso esse tipo de criminosa por ter características e comportamento masculinos seria perigosa por conta da sua similitude com o homem e por ter rompido com o padrão feminino MENDES 2017 A delinquente ocasional não se diferenciaria da normal podendo contudo incidir aquela em algum delito por influência de outras pessoas seja mediante tentação ou por necessidade Essa criminosa a ocasional normalmente comete crimes sem maiores consequências a exemplo do furto Apesar de possuir bom comportamento e bons sentimentos ela pode ceder aos impulsos da paixão da inveja e do ciúme HELPES 2014 A sensualidade e a beleza no estudo da criminalidade feminina eram tidas como sinais de atavismo sendo empregadas para explicar o comportamento desviante a periculosidade e a capacidade de cometer atos ilegais em especial no que tange às criminosas passionais15 Estranhavase entretanto quando se verificava que alguma criminosa nata fosse provida de belos atributos físicos Ademais a seleção natural também poderia ter colaborado para a predominância de mulheres com aparência física menos tipicamente criminosa já que os homens teriam se recusado a casar com as mulheres deformadas preservando assim somente as mais bonitas e por isso menos criminosas Nesse sentido a beleza feminina é apresentada como uma predestinação antecedente aos estudos da escola positivista pois o pecado original faz sucumbir a bela à tentação de uma maçã de uma joia de uma promessa e depois cair numa queda definitiva inscrita no seu próprio corpo NAHOUMGRAPE 1990 apud MENDES 2017 Apesar da contraposição do Positivismo ao conhecimento teleológico a alteração dos métodos científicos não refletiu em mudanças significativas no conteúdo valorativo Na verdade as teorias antropológicas deram valor científico a boa parte das teorias demonológicas São evidentes e marcantes as heranças do pensamento demonológico nas teorias de Lombroso e de Ferrero pois reproduziram a percepção dualista da mulher à medida em que estavam pautados em duas realidades distintas e conflitantes de uma suposta identidade feminina 14 Mendes apresenta mais classificaçoes como ofensoras histéricas criminosas de paixão suicidas mulheres criminosas lunáticas epilépticas e moralmente insanas MENDES 2017 p 43 15 Características essas menos notadas nas criminosas classificadas como ocasionais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 176 Identidade esta que ora seria assinalada pela pureza e pela bondade ora pela crueldade e pela notável inteligência para o mal PEIXOTO 2017 A série de crimes cruéis e violentos praticados por mulheres ao longo da história rebatendo os ideais da mulher santa e maternal conveio para racionalizar cientificamente a visão dualista e estereotipada da mulher e fortalecer o elo entre o corpo sexuado e a essência humana O ódio mortal e a vingança por exemplo foram vistos como sentimentos próprios das mulheres sendo os principais motivos para a prática de delitos Segundo Ferrero e Lombroso 1985 se por um lado as mulheres guardavam no seu íntimo um sentimento de vingança por meses ou anos até que pudessem exteriorizalos por outro lado também recebiam com extrema facilidade um pequeno acontecimento a fim de gerar extremo ódio Um mero ataque de ciúme ou um simples desejo não satisfeito poderia gerar um ressentimento profundo descambando para a prática de vingança Por considerar a mulher criminosa duplamente uma exceção na sociedade pois os criminosos já eram uma exceção dentro da população a delinquência feminina foi tida como inapelavelmente monstruosa equiparada aos conceitos de feitiçaria e de bruxaria nos moldes das teorias demonológicas LOMBROSO FERRERO 1985 Com as teorias fundadas no Positivismo os estudos sobre as mulheres transgressoras giram em torno de questões biológicas e patologizantes fazendo com que se reforcem os estereótipos da passividade da submissão da maternidade e de papéis socialmente construídos ainda hoje MENDES 2017 O peso da tradição patriarcal foié determinante no estudo da criminalidade feminina e na definição da figura de mulher criminosa A visão determinista do fenômeno do delito propiciou a concepção de uma perspectiva distorcida da realidade feminina e a conservação de estereótipos que justificam a discriminação de gênero no funcionamento do Sistema de Justiça Criminal Apontase ainda o fato de que por muito tempo a Criminologia negligenciou as mulheres vítimas de crimes Mendes 2017 relata que ao passo que o interesse daqueles que padecem com as consequências da ação criminosa cresce os estudos neste campo dão espaço a um ramo novo da Criminologia a vitimologia que gerará na sua versão clássica uma série de mitos sobre o tema Um dos mitos da vitimologia é visto no livro The criminal and his victim publicado em 1984 por Hans von Hentig Nessa obra propõese uma tipologia para saber que tipos de pessoas possuem propensão para figurar como vítimas de crimes Os tipos ideais dizem respeito a pessoas que se colocam por sua conta em situação de risco Isso leva a crer que de uma Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 177 maneira ou de outra todas as vítimas têm culpa pelo crime que é perpetrado contra elas Ora pessoas ditas normais não saem em horário específico ou se colocam em situaçoes que se presumem como perigosas Esse ponto de vista remete à ideia da mulher como sedutora e responsável pela ação de seus agressores MENDES 2017 Outro mito é encontrado na obra Origin of The Doutrine of Vitimology de Benjamin Mendelsohn publicada em 1963 Nesse livro contrariando a tese lombrosiana do determinismo biológico fundamentase o cometimento do crime a partir do fato de que a vítima é quem dá oportunidade para o autor do crime Ou seja o crime seria algo desencadeado por alguém no caso a vítima por estar oferecendo oportunidades para que seja cometido o crime MENDES 2017 É possível visualizar a partir dessas teorias o discurso que justificalegitima a prática de crimes contra mulheres E ainda hoje é recorrente ouvir chavoes como a violação é impossível se a mulher não quer as mulheres dizem não somente porque não querem ceder imediatamente ou os violadores são psicopatas homens com problemas sexuais com mães ou mulheres opressoras MENDES 2017 p 4950 2 DA CRIMINOLOGIA CRÍTICA PARADIGMA DA REAÇÃO SOCIAL Em meio à efervescência cultural e política do período de 1950 a 1960 nos Estados Unidos da América surge a teoria do Labelling Approach inaugurando o novo paradigma criminologico16 a partir dos trabalhos de H Garfinkel E Gofmann K Ericson A Cicourel H Becker e outros que participavam da denominada Nova Escola de Chicago ANDRADE 2003 p 39 Essa vertente critica o antigo paradigma etiológico Enquanto este considerava o crime e o criminoso segundo suas características físicas o novo paradigma teve como objetos de análise o sistema penal e seus fenômenos de controle dando ênfase ao estudo das carreiras delinquenciais que decorriam da atividade repressora do sistema institucional Não se tratou de uma nova escola criminológica mas de um movimento criminológico que sofreu influência 16 Esse novo paradigma Paradigma da Reação Social compreende o crime e a criminalidade como construçoes sociais e não mais como dados ontológicos préconstituídos Dessa forma o indivíduo passa a ser visto como um ser em sociedade É a reação social que irá ditar o que é definido como crime Ou seja a maneira pela qual a sociedade e suas instituições reagem diante de um fato é mais determinante para definilo como delitivo ou desviado do que a propria natureza do fato como ensinava o positivismo ANITUA 2008 p 588 Segundo Andrade 2003 p 41 o Labelling Approach parte de conceitos para lançar a ideia que a criminalidade não advém de uma qualidade intrínseca do sujeito mas de uma etiqueta que é atribuída ao indivíduo a partir de processos de interação social A atribuição parte de um duplo processo no qual há a tipificação do crime atribuindo a conduta do indivíduo como criminosa e a seleção que escolhe etiqueta e estigmatiza o acusado como criminoso Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 178 da corrente sociológica do Interacionismo Simbólico analisando a criminalidade e o crime como construções sociais ZAGHLOUT 2018 Nesse sentido a corrente do Interacionismo Simbólico vale dizer é constituída então por uma infinidade de interações concretas entre os indivíduos aos quais um processo de tipificação confere um significado que se afasta das situações concretas e continua a estender se através da linguagem BARATTA 2011 p 87 Ou seja para os interacionistas o comportamento humano é o resultado da interação social Esse enfoque faz parte de um movimento mais amplo da Criminologia e da Sociologia contra os legados das noções positivistas ou absolutistas do delito da desviação e dos problemas sociais TAYLOR YOUNG 1997 p 177 Porém apesar de a teoria do Labelling Approach ter sido bem acolhida em alguns aspectos ela também recebeu severas críticas A influência de ideais marxistas contribuiu para a maturação dos pensamentos criminológicos e fez surgir uma nova Criminologia marcada pela crítica às teorias anteriores já que elas não possibilitavam a investigação da criminalidade como fenômeno social mas somente adstrita à lei penal segundo Andrade 2003 Desse modo a Criminologia Crítica surge para desmistificar o saber e a operacionalidade do Direito Penal direcionando as suas atenções para o processo de criminalização responsabilizando todo o sistema pelos maiores dilemas teóricos e práticos das relações sociais de desigualdade próprios de uma sociedade capitalista Como leciona Baratta 2011 com o auxílio da Criminologia Crítica será possível analisar as condições objetivas funcionais e estruturais da sociedade capitalista no todo e a partir disso interpretar as condutas dos grupos subalternos e dos coletivos dominantes além dos evidentes mecanismos seletivos Isso se dá de tal modo que a Criminologia Crítica olhando para essas problemáticas vai passar dos controlados para os controladores e remetendo uma dimensão política para o poder de controlar pois a chamar atenção para a importância do processo interativo de definição e de seleção para a construção e a compreensão da realidade social da criminalidade ANDRADE 2016 p 5455 Uma das maiores contribuições da Criminologia Crítica e também a da Reação Social foi a lógica da seletividade enquanto dialética estruturante de operacionalização do sistema penal Nos termos dessa lógica da seletividade tornouse essencial a prova empírica viabilizada sobre a a clientela penal na prisão b a da regularidade com que corresponde à criminalização e c o etiquetamento dos estratos mais pobres da sociedade Tratase de uma Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 179 evidência por sua vez há muito vocalizada pelo senso comum no popular adágio de que a prisão é para os três pês o preto o pobre e a prostituta ANDRADE 2016 p 57 3 DA CRÍTICA FEMINISTA É fato que em meados dos 1980 a Criminologia Crítica passa por uma crise Larrauri 1991 acredita que essa crise se deu em razão dos novos movimentos sociais como por exemplo os diversos feminismos17 Esses movimentos questionavam os estudos feitos pela Criminologia Crítica e acrescentavam novos objetos de análise que antes não eram vistos pelos criminólogos Ao lado das novas críticas os estudos sobre vitimologia também ganharam força Com isso o discurso de recorrer ao sistema penal para amparar aqueles grupos que se achavam em posição de vulnerabilidade também ganhou importância aumentando a judicialização das questões sociais18 Fazse aqui um parêntese pois é preciso entender o feminismo em diferentes contextos sociais e históricos para compreender sua influência sobre a Criminologia e o Direito auxiliando a transformar as práticas criminais para enfim reconhecer e proteger os direitos das mulheres Durante a década de 1970 o movimento feminista se dividiu em diversas vertentes criando modelos teóricos diferentes que visavam discutir o androcentrismo presente na sociedade Celmer 2015 p 43 destaca três teorias quais sejam o empirismo feminista ou feminismo da igualdade19 o ponto de vista feminino ou feminismo da diferença20 e o feminismo socialista ou pósmodernismo feminista 17 Assim como não existe apenas uma criminologia Castro 2010 aponta a existência de 30 criminologias mas várias o feminismo também possui inúmeras perspectivas nesse sentido sendo mais adequado falar em criminologias feministas que se diferenciam de acordo com suas posições referentes às fontes das desigualdades de gênero e da subordinação das mulheres Podese identificar por exemplo a criminologia feminista liberal marxista radical pósmoderna socialista interseccional etc 18 Curiosamente o Poder Judiciário tradicionalmente elitizado no Brasil e por meio do qual leciona Comparato 2016 p 120 nossos juízes sempre interpretaram o direito oficial à luz dos interesses dos potentados privados mancomunados com os agentes estatais tornouse o guardador das promessas GARAPON 1996 de justiça social não cumpridas notadamente após a promulgação do Texto Constitucional em 1988 19 Uma teoria que vê o Direito dominado pelos homens por isso esses adquirem vantagens sobre aquele A solução apresentada para esse problema por esse movimento é a aplicação equânime da lei tanto para homens quanto para mulheres em respeito às regras já existentes Porém a crítica que se faz a esse modelo é que ele desconsidera a desigualdade entre os sexos e o caráter estrutural da discriminação feminina CELMER 2015 p 43 Arrazola 2002 p 69 expõe que os críticos do empirismo feminista acreditam que esse sofre de um desvio machista são androcêntricos brancos burgueses e ocidentais questionando assim a objetividade e neutralidade dos conhecimentos produzidos por essas ciências 20 O feminismo da diferença segundo Celmer 2015 p 44 vislumbra o direito como masculino devido a sua natureza ser repleta de conceitos masculinos como a racionalidade e a objetividade e reivindica a inserção de características femininas no direito A solução encontrada por essa teoria é que o direito reconheça as diferenças se traduzindo em um direito feminino às mulheres Ademais Baratta 1999 p 31 assevera que ao mesmo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 180 Acerca dessa terceira teoria apresentada o pósmodernismo feminista destacase que ela partiu de preceitos do feminismo da diferença distinguindose por considerar a relatividade histórica e as realidades diferentes para cada mulher Além disso o feminismo socialista propôs transformações sociais e estruturais profundas Baratta 1999 p 35 explica que o pósmodernismo feminista na realidade compactua com um pensamento contextual21 E como sendo um desse o pensamento feminista busca desconstruir para reconstruir desmitificar grandes verdades da ciência e da cultura dominante para reconstruir um conhecimento que não desconhece as conquistas científicas mas que vai além das distorçoes da mesma em prol de projetos de dominação resgata a sabedoria feminina e a popular por esta encampada o que faz dela instrumento essencial na luta pela emancipação e desenvolvimento humanos Face ao exposto é de se perguntar o quê esse pensamento contextual feminista pretende desconstruir e como isso afeta a Criminologia Para obter essa resposta Baratta 1999 p 36 a partir das pesquisas de Harding Olsen Smart e Smaus afirma que esse feminismo deseja desconstruir as reificaçoes essenciais que estão na base das dicotomias das qualidades e dos valores assim como o seu emprego polarizante na construção social dos gêneros das esferas de vida pública e privada da ciência e das instituições de controle comportamental direito justiça penal e do seu objeto crimes e penas O que deve ser reconstruído Uma subjetividade humana integral ou andrógina portadora ao mesmo tempo das qualidades e dos valores que foram separados e contrapostos na criação social dos gêneros Observase que a exclusão do paradigma do gênero na Criminologia Crítica faz dessa uma análise incompleta quanto à conduta delitiva e ao controle social geral Essa medida acabava por desconhecer a desigualdade presente nas relações entre homens e mulheres marcadas por uma sociedade não apenas capitalista mas principalmente patriarcal que constrói conceitos de gênero de modo que fortalecem a ideologia de superioridade masculina Ora a tempo em que resgata conceitos transcurados subordinados e sacrificados na cultura dominante por serem associados ao feminino também valorizam a dicotomia entre homens e mulheres sendo que o resultado pode ser o de reproduzir e reificar as duas séries de conceitos e a contraposição entre eles 21 Alves 2011 p 32 explica a partir do pensamento de Thiesen que deve haver uma construção e uma reconstrução do conhecimento científico de maneira contextualizada e aplicável dentro da realidade Ademais para melhor elucidar acerca do pensamento contextual Alves assevera que O pensamento contextual busca sempre a relação de inseparabilidade e as interretroações entre qualquer fenômeno e seu contexto e deste com o contexto planetário O complexo requer um pensamento que capte relações interrelações implicações mútuas fenômenos multidimensionais realidades que são simultaneamente solidárias e conflitivas como a própria democracia que é o sistema que se nutre de antagonismos e que simultaneamente os regula que respeite a diversidade ao mesmo tempo que a unidade um pensamento organizador que conceba a relação recíproca entre todas as partes MORIN 2005 p 23 apud in ALVES 2011 p 32 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 181 origem da opressão sobre a mulher não pode ser reduzida à desigualdade de classe pois tirania de gênero é prévia e distinta fruto do próprio arcabouço patriarcal da sociedade Além disso ao excluir a especificidade do gênero mulher do seu objeto a Criminologia Crítica excluía metade da população composta por mulheres Falha alertada por Campos 1999 p 51 há bastante tempo Hodiernamente a população feminina no Brasil supera a masculina tendo índice de 514 PORTAL BRASIL 2015 Vale ressaltar que apesar de as mulheres constituírem a maioria de habitantes nesse país os índices de violência contra elas não diminuíram pelo contrário segundo o Mapa da Violência de 2015 entre 1980 e 2013 os quantitativos passaram de 1353 homicídios para 4762 um crescimento de 2520 Considerando o aumento da população feminina no período o incremento das taxas foi de 1111 o que equivale a um crescimento de 23 ao ano Esta não é uma taxa elevada mas vemos com renovada apreensão a retomada do crescimento nos últimos anos de 2007 a 2013 Nesses seis anos as taxas passam de 39 para 48 por 100 mil o que representa um aumento de 231 muito elevado para um período tão curto em torno de 36 ao ano o que deve ser motivo de grande preocupação dado que não existem fatos significativos no horizonte temporal próximo que permitam supor a consolidação de barreiras de contenção da violência contra a mulher WAISELFISZ 2015 p 73 Ademais nos termos da edição de 2019 do Atlas da Violência a respeito da violência letal contra mulheres constatouse um crescimento expressivo de 307 no número de homicídios de mulheres no país durante a década em análise 20072017 assim como no último ano da série que registrou aumento de 63 em relação ao anterior IPEA 2019 p 35 Diante disso é importante refutar a ideia amplamente difundida pelo senso comum de que os homens são os inimigos das mulheres e a violência contra essas é cometida apenas por aqueles A visão androcêntrica e a dominação sexista faz parte de uma cultura que exerce controle informal e formal na esfera privada e pública e condiciona o pensamento antagonista entre os sexos Nesse sentido Beauvoir 2005 p 82 afirma que o opressor não seria tão forte se não tivesse cumplices entre os proprios oprimidos E sobre esse excerto é importante aqui interpretar opressor como a ideologia e não sujeitos ou grupos determinados de pessoas O pensamento contextual feminista se insere na Criminologia para analisar e desconstruir visões simplistas que acabam reforçando estereótipos moldados pela cultura dominante Assim é preciso resgatar a ideia de gênero como categoria de análise capaz de evidenciar a subsistência do patriarcado a dominação masculina as relações de dominação entre os sexos e a desigualdade material entre homens e mulheres CASTILHO 2008 p 109 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 182 No mesmo sentido Campos 1998 p51 buscando apoio nas obras de Vera Regina Pereira de Andrade e de Elena Larrauri sustenta que com a Criminologia Feminista foi possível questionar a ideologia da superioridade masculina e deslocar a pesquisa criminológica para os sistemas de controle social informal e sua relação com o controle formal Direito Penal quando aplicado às mulheres The law sees and treats women the way men see and treat women The liberal state coercively and authoritatively constitutes the social order in the interest of men as a gender through its legitimizing norms relation to society and substantive policies MACKINNON 1983 p 64422 Podese interpretar esse excerto como a forma que o sistema e seus agentes veem a mulher isto é da mesma forma que a sociedade patriarcal visualiza o que reforça os estereótipos de gênero No entanto a Criminologia Crítica feminista apresenta diferentes análises e soluções para essa questão23 Por um lado há estudiosos que adotam a posição de não utilização do sistema penal como Andrade 1999 p 112113 o sistema penal salvo situações contingentes e excepcionais não apenas é um meio ineficaz para a proteção das mulheres contra a violência e eu falo aqui particularmente da violência sexual que é tema da minha investigação como também duplica a violência exercida contra elas e as divide sendo estratégia excludente que afeta a própria unidade do movimento Isto porque se trata de um subsistema de controle social seletivo e desigual tanto de homens como de mulheres e porque é ele próprio um sistema de violência institucional que exerce seu poder e seu impacto também sobre as vítimas Podese dizer que os principais pontos da crítica de Andrade 2003 2005 2014 2016 ao sistema penal como instrumento de combate à violência contra a mulher sustentamse na multiplicação da violência na seletividade penal e na reprodução de desigualdades Segundo a mesma autora o sistema penal é ineficaz porque age na contramão dos princípios que o ele próprio prega tais como a legalidade a culpabilidade a humanidade e a igualdade jurídica Ao invés de proteger esses princípios o sistema penal opta por contrariálos Para Andrade 2016 no desenvolvimento feminista da Criminologia Crítica em que são agenciados estudos acerca do sistema de justiça criminal tendo a mulher como principal objeto junto das análises das instituiçoes do capitalismo e do patriarcalismo constatamse ações impotentes para promover a proteção da mulher contra violências 22 O Direito vê e trata as mulheres da maneira que os homens veem e tratam as mulheres O estado liberal coercitivamente e autoritariamente constitui a ordem social em favor dos homens como um gênero através de suas normas legitimadoras relação com a sociedade e políticas substantivas Tradução livre 23 Martins Gauer 2019 oferecem um tratamento mais aprofundado ao tema Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 183 A ineficiência do aparato criminal é evidente já que não previne novas violências como também não presta real atenção as necessidades das diferentes vítimas como também não auxilia na mudança do pensamento androcêntrico Destacase ainda que em inúmeros casos o aparato criminal duplica a violência exercida contra elas e as divide sendo uma estratégia excludente que afeta a propria unidade já complexa do movimento feminista ANDRADE 2005 p7476 Além disso Campos 1998 p 59 destaca no pensamento de Andrade que a utilização do sistema penal contribui para a revitimização da mulher que tem suas demandas recebidas com desconfiança e menosprezo além de sua moralidade submetida a julgamento Porém trata se de um sistema que é por excelência violento institucionalmente que desempenha seu poder e seu impacto direto sobre as vítimas Essa dupla vitimização da mulher é fruto do próprio sistema penal pois este expressa dois tipos de violência estrutural a violência nas relações sociais capitalistas e a violência nas relações patriarcais Ou seja o aparato criminal recria os estereótipos inerentes a essas formas de violência o que reproduz ainda mais desigualdade ANDRADE 2005 Segundo Martins e Gauer 2019 p 24 é importante notar que a história do Direito Penal é um processo de marcas de violência contra as mulheres Nesse mesmo sentido ainda é relevante fazer uma breve observação sobre a invisibilização do feminino nas produções teóricas das Ciências Criminais Conforme assinala Sá 2016 o saber jurídico em especial nas Ciências Penais considerada uma das ciências mais duras no âmbito do Direito é essencialmente do mundo masculino ou seja as produções acadêmicas masculinas são quantitativamente superiores às das mulheres A crítica lançada pela autora demonstra que elas apenas têm lugar de fala quando o assunto é voltado para questões femininas fato este que prejudica o fortalecimento dos feminismos e dificulta a superação da misoginia Facio 1996 ao refletir sobre a relação entre feminismo e Criminologia Crítica acredita que na América Latina a Criminologia Crítica parece ainda não ter conseguido superar a misoginia pois mesmo com a ruptura do paradigma etiológico e dos mitos que ele desenvolveu sua visão da realidade continua sendo androcêntrica Ou seja mesmo com produção teórica realizada pelo feminismo a noção tradicional segue negando esse conhecimento malgrado se denomine crítico revolucionário ou radical Conceitos empregados pelas mulheres como feminismo gênero patriarcado androcentrismo etc para explicar a realidade sob outro olhar ainda não são considerados infeliz e hodiernamente CONSIDERAÇÕES FINAIS Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 184 Concordase com Andrade 2012 ao dizer que dentro do universo dos saberes nenhum tenha sido tão prisioneiro do androcentrismo quanto a Criminologia com o seu foco até então restrito inteiramente no masculino tanto em relação ao seu objeto de estudo os criminosos e o crime quanto pelos sujeitos que produzem o saber criminológico os criminólogos Logo a mulher aparece nos discursos criminológicos como uma variável jamais como um sujeito As novas perspectivas que o gênero possibilitou vão hoje na marca da Criminologia da Reação Social e Crítica a partir do deslocamento do objeto de estudo do crime e do criminoso para o sistema penal muito mais além de Lombroso eou Ferrero e seu tempo Pontuase a partir disso a ausência secular da mulher tanto como objeto de estudo da criminologia seja como sujeita da Criminologia ou do próprio arcabouço penal Nesse sentido apesar de reconhecer a importância do trabalho de Lombroso 1985 para a abertura de um debate sobre a mulher no campo da criminologia especialmente no que diz respeito à obra La Donna Delinquente é necessário ponderar que a conservação dos estudos criminológicos na esfera de determinismos biológicos e psicológicos como chave para a compreensão de crimes praticados por mulheres e contra mulheres negligencia aspectos socioculturais que insurgiram ao longo da história da humanidade como fatores exógenos que não poderiam jamais ser ignorados Necessário assentirse com as observações de Oliveira 2002 p 169 quando conclui que a há proporcionalidade entre as criminalidades feminina e masculina b variadas são as razões para a criminalidade feminina c quanto mais o protagonismo político econômico e social da mulher aumenta situações importantes e de consideráveis repercussões nas camadas sociais existentes também crescem A criminologia vista oficialmente como ciência no século XIX transformouse e está a se transformar cada vez mais em teoria crítica e sociológica do sistema de justiça penal ocupandose hoje essencialmente sobre a análise de sua densa fenomenologia e da funcionalidade nas sociedades capitalistas patriarcais E apesar de já ser possível expor resultados criminológicos sólidos e vistos pela comunidade acadêmica como irreversíveis neste sentido ainda não é possível contar com epistemologias fechadas ou saberes absolutos mas sim com construções abertas Mesmo quando constituída na crítica sistemática do conceito do método e da ideologia da Escola Positivista a Criminologia não consegue expor teorias de saber que não sejam em sua essência sexistas ANDRADE 2012 Reconhecese também que o paradigma da reação social foi a chave que permitiu questionar os mitos deixados pelo paradigma etiologico através do estudo do sistema penal da perspectiva de classe para só então chegar às questões afetas ao gênero Essa evolução Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 185 científica proporcionou nalguma medida visibilidade e início ao estudo da Criminologia Feminista A Criminologia Feminista foi a portavoz do movimento feminista na área de estudo do sistema penal pois ela permitiu que o malestream criminológico pudesse entender a ideia androcêntrica que define as estruturas do controle punitivo Quando se trouxe a mulher para o centro dos estudos criminológicos foi possível denunciar as violências produzidas pela forma masculina de aplicação e de interpretação do aparato criminal CAMPOS CARVALHO 2011 Então é necessário evocar o valor do feminismo como sujeito coletivo que fazendo o intermédio entre a historia de um saber masculino onipresente e a historia de um sujeito ausente o feminino invisibilizado possa ressignificar a relação entre ambos ANDRADE 2014 p 127 Desse modo o feminismo possibilita o nascedouro de um novo saber sobre gênero que vem gerando modificações políticas e científicas importantes na área da Criminologia cuja natureza sempre esteve extremamente atada ao androcentrismo REFERÊNCIAS ANDRADE Vera Regina Pereira de Sistema penal máximo x cidadania mínima códigos da violência na era da globalização 2 ed Porto Alegre Livraria do Advogado 2016 ANDRADE Vera Regina Pereira de Pelas mãos da criminologia o controle penal para além da desilusão Rio de Janeiro Revan ICC 2012 Pensamento Criminológico 19 1ª reimpressão 2014 ANDRADE Vera Regina Pereira de A soberania patriarcal o sistema de justiça no tratamento da violência sexual contra a mulher Sequência Estudos Jurídicos e Políticos Florianópolis p 71102 jan 2005 Acesso em jan 2019 ANDRADE Vera Regina Pereira de A ilusão de Segurança Jurídica do controle da violência à violência do controle penal 2 ed Porto Alegre Livraria do Advogado 2003 ANDRADE Vera Regina Pereira de Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum Revista Sequência Florianópolis Editora da UFSC n 30 p 2427 jun 1995 ANDRADE Vera Regina Pereira de Da mulher como vítima à mulher como sujeito de construção da cidadania In CAMPOS Carmen Hein de org Criminologia e Feminismo Porto Alegre Editora Sulivan 1999 ALVES Marcelo José A Educação Física no Contexto Escolar Interdisciplinarizando o conhecimento e construindo os saberes Jundiaí Paco Editorial 2011 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 186 ANITUA Gabriel Ignácio História dos pensamentos criminológicos Tradução Sérgio Laramão Rio de Janeiro Instituto Carioca de Criminologia 2008 Pensamento Criminológico n 15 ANIYAR DE CASTRO Lola Criminologia da Libertação Tradução de Sylvia Moretzsohn Rio de Janeiro Revan 2005 ANIYAR DE CASTRO Lola Criminología de los Derechos Humanos Criminología axiológica como política criminal Buenos Aires Del Puerto 2010 ARRAZOLA Laura Susana Duque Ciência e crítica feminista In Feminismo Ciência e Tecnologia Organizado por Ana Alice Alcântara Costa e Cecilia Maria Bacellar Sardenberg Salvador REDORNEIMFFCHUFBA 2002 BATISTA Vera Malagutti Introdução Crítica à Criminologia Brasileira 2 ed Rio de Janeiro Revan 2011 BARATTA Alessandro O Paradigma do Gênero Da questão criminal à questão humana In CAMPOS Carmen Hein de org Criminologia e Feminismo Porto Alegre Editora Sulivan 1999 BARATTA Alessandro Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal Introdução à Sociologia do Direito Penal Trad Juarez Cirino dos Santos Rio de Janeiro Editora Revan Instituto Carioca de Criminologia 2014 BEAUVOIR Simone de Por uma moral da ambiguidade Tradução de Marcelo Jacques de Moraes Rio de Janeiro Nova Fronteira 2005 CAMPOS Carmen Hein de O Discurso Feminista no Brasil limites e possibilidades Florianópolis UFSC 1998 CASTILHO Ela Wiecko Volkmer de A criminalização do tráfico de mulheres proteção das mulheres ou reforço da violência de gênero Cad Pagu Campinas n 31 p 101123 Dez 2008 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0104 83332008000200006lngennrmiso Acesso em 30 mar 19 CELMER Elisa Girotti Feminismos discurso criminológico e demanda punitiva uma análise do discurso de integrantes de organizações não governamentais feministas sobre a Lei 1134006 1ª ed Curitiba CRV 2015 COMPARATO Fábio Konder O poder judiciário no Brasil In Revista de Estudos Institucionais v 2 n 1 p 114143 Rio de Janeiro 2016 DUARTE Evandro Piza CARVALHO Salo de Criminologia do Preconceito racismo e homofobia nas Ciências Criminais São Paulo Saraiva 2017 FACIO Alda CAMACHO Rosalía Cuando el género suena câmbios trae metodologia para el análises de género dei fenómeno legal San José Costa Rica ILANUD 1996 GARAPON Antoine O Guardador de Promessas Justiça e Democracia Lisboa Instituto Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 187 Piaget 1996 HELPES Sintia Soares Vidas em jogo um estudo sobre mulheres envolvidas com o tráfico de drogas São Paulo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais 2014 IPEA Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada Org Atlas da Violência 2019 Brasília 2019 Disponível em httpwwwipeagovbrportalimagesstoriesPDFsrelatorioinstitucional190605atlasdav iolencia2019pdf Acesso em 23 ago 2019 KURELLA H Cesare Lombroso A modern man of science London Rebman Limited 1991 LARRAURI Elena La herencia de la crim inologia crítica Madrid Siglo Veintiuno 1991 LARRAURI Maite La sexualidad según Michel Foucault Valencia Tandem 2000 LEMGRUBER Julita Cemitérios dos vivos análise sociológica de uma prisão de mulheres 2 ed Rio de Janeiro Forense 1999 LOMBROSO Cesare FERRERO Guglielmo The female ofender Nova York Appleton and Company 1985 MACKINNON Catharine Feminism Marxism method and the State Toward Feminist jurisprudence In Signs Journal of women in culture and society Chicago University Chicago Press 1983 MARTINS Fernanda GAUER Ruth M C Poder Punitivo e Feminismo percurso da criminologia feminista no Brasil Revista Direito e Práxis Ahead of print Rio de Janeiro 2019 Disponível em httpswwwepublicacoesuerjbrindexphprevistaceajuarticleview 3792529808Acesso em 08 de setembro de 2019 DOI 1015902179 8966201937925 MATOS Raquel Vidas raras de mulheres comuns Percursos de vida significações do crime e construção da identidade em jovens reclusas Tese Doutorado em Psicologia Universidade do Minho Braga 2006 MENDES Soraia da Rosa Criminologia feminista novos paradigmas São Paulo Saraiva 2017 PEIXOTO Paula Carvalho Vítimas encarceradas histórias de vidas marcadas pela violência doméstica e pela criminalidade feminina São Paulo IBCCRIM 2017 PORTAL BRASIL Mulheres são maioria da população e ocupam mais espaço no mercado de trabalho 2015 Disponível em httpwwwbrasilgovbrcidadaniae justica201503mulheressaomaioriadapopulacaoeocupammaisespaconomercadode trabalho Acesso em 30 mar 2019 SÁ Priscilla Placha As ciências penais têm sexo Têm sim senhor In Boletim IBCCRIM Disponível em httpswwwibccrimorgbrboletimartigo5726Ascienciaspenaistem sexoTemsimsenhor Acesso em 08 de setembro de 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 188 OLIVEIRA Odete Maria de A mulher e o fenômeno da criminalidade In ANDRADE Vera Regina Pereira de Org Verso e reverso do controle penal desaprisionando a sociedade da cultura punitiva Vol 1 Florianópolis Fundação Boiteux 2002 TAYLOR Ian WALTON Paul YOUNG Jock La nueva criminologia contribución a una teoría social de la conducta desviada Buenos Aires Amorrortu Editores 1997 ZAGHLOUT Sara Alacoque Guerra Seletividade racial na política criminal de drogas perspectiva criminológica do racismo recurso eletrônico Porto Alegre Editora Fi 2018 ZAFFARONI Eugenio Rául A questão criminal Rio de Janeiro Revan 2013 ZAFFARONI Eugenio Rául Em busca das penas perdidas a perda da legitimidade do sistema penal 5 ed Tradução Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição Rio de Janeiro Revan 1999 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da Violência 2015 Homicídio de mulheres no Brasil 1ª Edição Brasília Editora Flcsobrail 2015 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 189 O DISCURSO DE ÓDIO COMO FORMA DE EXPRESSÃO E INCITAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER Bruna Luiza de Souza Pfiffer de Oliveira1 Heloisa Mondardo Cardoso2 RESUMO O presente estudo busca traçar um paralelo entre o discurso de ódio embasado no gênero e a violência contra a mulher Para tanto propõese a compreensão de falas discriminatórias e ofensivas não somente como um tipo de expressão da violência contra a mulher mas também como um mecanismo capaz de fomentar atos de agressão física e de propagar o sistema patriarcal de subjugação do feminino ainda mais legitimado pela ascensão de ideologias conservadoras Inicialmente fazse breve introdução dos Estudos de Gênero e das correspondentes formas de violência Em seguida tratase de aspectos históricos e jurídicos do discurso de ódio e sua relação com a proteção conferida à liberdade de expressão com destaque para discussões levantadas no âmbito internacional para abordagem do problema Finalmente analisase dados divulgados por importantes institutos de pesquisa estatística do País como indicadores do cenário nacional da violência contra a mulher que parece cada vez pior observandose a escassez de informações concretas sobre os casos de discurso de ódio sabidamente agravados nos últimos anos Com base nisso concluise que a permissividade da sociedade e do Estado com expressões de ódio influencia negativamente as questões de gênero razão pela qual o tema exige maior atenção especialmente de governantes e pesquisas específicas a fim de que sejam estabelecidas soluções Palavraschave Gênero Violência contra a mulher Discurso de ódio Liberdade de expressão INTRODUÇÃO A liberdade de expressão garantida pela Constituição Federal de 1988 assim como por diversos instrumentos jurídicos internacionais é direito fundamental e sustentáculo de regimes democráticos A sua ampla observância constitui condição essencial para o desenvolvimento das sociedades e respectivos sistemas de comunicação e expressão dos cidadãos e dos Estados Não se trata porém de direito absoluto Em algumas situações é necessário que em atenção às demais normas fundamentais em especial os princípios da dignidade da pessoa humana e da não discriminação e os direitos que os concretizam se restrinja o seu exercício Sob essa perspectiva neste trabalho inicialmente pretendese demonstrar que a prolação de discurso de ódio é situação que por caracterizar uma forma de violência ofensa e 1 Servidora Pública do Tribunal de Justiça de Santa Catarina TJSC Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Brunapfiffergmailcom Lattes httplattescnpqbr3639464305292466 2 Servidora Pública do Tribunal de Justiça de Santa Catarina TJSC Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Heloisamondardocgmailcom Lattes httplattescnpqbr0823532939753564 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 190 colocar em risco direitos fundamentais alheios autoriza a limitação da liberdade de expressão de quem o proferiu Embora não se verse sobre fenômeno recente a sua ocorrência nos últimos anos se tornou muito mais evidente seja pelo avanço da tecnologia e da influência das redes sociais ou em razão da ascensão de pensamentos extremistas e conservadores e da crise política econômica judicial e moral que assola a sociedade contemporânea E dentre os incontáveis casos de demonstração de intolerância destacamse os que de algum modo decorrem de percepções equivocadas da noção de gênero corrompida por uma construção social patriarcal que historicamente estabeleceu padrões a serem preenchidos e posições a serem ocupadas pelo masculino e pelo feminino A constatação de uma eminente intensificação de casos envolvendo discursos de ódio direcionados à mulher e de uma aparente piora dos índices relacionados à violência de gênero e ao feminicídio despertou o interesse no tema Assim na presente pesquisa propõese um estudo a respeito da possível relação entre a crescente legitimação de discursos de ódio baseados em discriminação de gênero e o agravamento de indicadores relacionados à violência contra a mulher e feminicídio Com esse intuito abordase de forma breve aspectos conceituais históricos e jurídicos da violência de gênero e do discurso de ódio para após traçarse um paralelo entre os dizeres de uma sociedade fundada sobre o patriarcado e os números assinalados por alguns dos principais órgãos de pesquisa estatística do País e do mundo Para tanto utilizase o procedimento monográfico com método indutivo de abordagem e técnica de pesquisa indireta por meio de pesquisa bibliográfica e documental 1 O DISCURSO DE ÓDIO CONTRA A MULHER E A VIOLÊNCIA DE GÊNERO 11 A violência de gênero conceitos e observações A compreensão da estrutura patriarcal da sociedade é ponto inicial para desvendar as nuances circunscritas ao exercício de poder que histórica e culturalmente é empregado pela figura masculina sobre a feminina Destacamse no esforço para a elucidação desse fenômeno os Estudos de Gênero cujas principais características merecem relevo neste tópico introdutório Vale ressaltar que neste trabalho não se visa incorrer em determinismos a respeito do tema tão extenso e complexo buscase apenas deslindar algumas questões que se mostram fundamentais para a assimilação das indagações apresentadas na pesquisa Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 191 O conceito de gênero foi construído no intuito e como uma forma de explicar a ideia de que existem diferenças entre homens e mulheres não como uma consequência de ordem biológica ou pressuposto da condição humana mas sim como resultado da interferência da sociedade predominante e intrinsecamente machista na formação do indivíduo e na determinação de sua posição perante a coletividade Ao introduzilo a sociologa Heleieth Saffioti na obra intitulada Gênero patriarcado e violência enuncia primeiramente a importância da compreensão de que este conceito não se resume a uma categoria de análise 2004 p 45 demonstrando portanto a necessidade de serem concebidas as suas diversas acepções Por outro lado posteriormente enfoca que não obstante a existência de estudos que evidenciam os seus diversos aspectos de maneira bastante plural há ainda que de forma limitada consenso ao considerar que gênero é a construção social do masculino e do feminino 2004 p 45 Entretanto isso é circunstância que longe de tornar simples e estanque a análise da formação da noção de gênero evidencia justamente o motivo pelo qual qualquer estudo atinente ao tema é inevitavelmente complexo qual seja a ideia de que se constitui pelo resultado de inúmeras facetas presentes na sociedade sejam elas de ordem social cultural histórica ou econômica Sobre essa construção social interessante transcrever elucidação contida em publicação integrante do bloco de ações previstas no II Plano Nacional de Política para as Mulheres da Presidência da República 2010 p 19 A maneira como mulheres e homens comportamse diante dos diferentes contextos sociais passou a ser compreendida como fruto de um intenso e duradouro processo de aprendizagem sociocultural de gênero que por sua vez ensina a cada umuma a agir conforme as prescrições já estabelecidas para cada sexo Ou seja as dimensões sentidos símbolos significados sociais e políticos diferenciados que estão associados aos sexos seja o masculino ou feminino e também às posições relativas a homo ou heterossexualidade constroem de modo igualmente diferenciado e frequentemente assimétrico e desigual os gêneros sem grifo no original E quando se fala no conceito de gênero impossível dissociálo da noção de patriarcado que Saffioti define como o regime da dominaçãoexploração das mulheres pelos homens 2004 p 44 que enquanto fenômeno social histórico pensadoras feministas o colocam como categoria específica do período compreendido nos seis ou sete milênios mais recentes da história da humanidade LERNER 1986 JOHNSON 1997 SAFFIOTI 2001 encontrase em constante transformação Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 192 Por óbvio apesar da existência do patriarcado ser uma constante hoje a relação entre homens e mulheres ou mais especificamente a dominaçãoexploração de mulheres por homens é muito diferente da verificada no passado O cenário atual não é o mesmo do da Roma Antiga em que o patriarca poderia optar pela vida ou pela morte de sua esposa3 ou do início do século passado em que o legislador brasileiro estabeleceu entre outras diversas determinações patriarcais que a incapacidade civil se cessaria por concessão do pai e apenas se este fosse morto da mãe e que o marido tinha 10 dias a contar do casamento para anular o matrimônio contraído com mulher já deflorada arts 9 parágrafo único inciso I e 178 1º do Código Civil de 1916 revogado em 2002 Não obstante embora o ordenamento jurídico esteja se adaptando ao longo dos anos à evolução da sociedade muito em resposta às reivindicações de mulheres e outros grupos minoritários a visão do homem sobre corpo e autonomia da mulher sobretudo de sua parceria parece não acompanhar essa positiva transformação Ainda que muito já se tenha conquistado é sabido que um número excruciante de mulheres continua sendo vítima de todo tipo de violência muitas vezes seguida de morte e na maioria das vezes tendo por ofensor o seu próprio parceiro Assim é que ao que tudo indica a cultura da violência contra a mulher que resulta da ideia patriarcal de sociedade parece ser dentre as questões de gênero uma das que muito pouco têm sido influenciadas pelas transformações sociais que vêm modificando positivamente o cenário sociológico Com efeito a violência de gênero é fenômeno inegavelmente complexo Para tentar esmiuçálo podese partir da compreensão de que ela não se restringe a alguma forma de violação à integridade física psicológica sexual e moral Em verdade esta concepção simplista considerando todas as nuances inerentes à formação do conceito de gênero e manifestações dele advindas não exaure e sequer demonstra ordinariamente o efetivo significado da violência neste contexto Outrossim premissa importante para o entendimento do fenômeno é a ideia de que a violência nesse âmbito tem como pressuposto a ideia de hierarquia fundada na concepção de 3 Engels 18841984 p 61 na clássica obra A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado afirma que a família romana antiga surge como primeiro efeito do poder exclusivo dos homens e é o tipo perfeito da família patriarcal Ao comentar sobre a origem da palavra famulus significa escravo doméstico menciona que a princípio a família consistia no conjunto de escravos de um homem sendo o termo posteriormente empregado pelos romanos para designar um novo organismo social constituído pelo patriarca na posição de chefe a mulher os filhos e os escravos A autoridade do pater família incluía o poder de decidir sobre a vida e a morte das mulheres que estivessem sob seu poder e prevalecia mesmo sobre a autoridade do Estado encerrandose tão somente com a sua morte Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 193 superioridade do ser masculino em face do feminino a qual acaba por estabelecer incontáveis relações de desigualdade E nesse momento novamente oportuna a lição de Saffioti no sentido de que a desigualdade longe de ser natural é posta pela tradição cultural pelas estruturas de poder pelos agentes envolvidos na trama de relaçoes sociais 2004 p 71 Aqui vale frisar que embora a princípio o conceito de gênero parta da percepção binária homemmulher a sua formação é também pressuposto para a acepção de outras identidades de gênero Como explana Joan Scott 1995 p 86 gênero é elemento constitutivo de relaçoes sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos e o gênero é o primeiro modo de dar significado às relaçoes de poder Acerca da formação da identidade feminina nessas sociedades construídas com base em relações assimétricas de gênero pertinente destacar a lição de Simone de Beauvoir que apesar de não fazer uso do termo em seus escritos estabeleceu elementos fundantes da teoria de gênero especialmente porque se opunha ao essencialismo biológico e à transformação pela sociedade nos seres em homens ou mulheres necessariamente como se infere de uma de suas mais famosas passagens Ninguém nasce mulher tornase mulher Nenhum destino biológico psíquico econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino BEAUVOIR 1967 p 9 sem grifo no original É nítida nessa formação a possível e provável colisão entre a individualidade do ser e aquilo que lhe é imposto direta ou veladamente pelo meio social por meio de padrões pré estabelecidos que destaquese não atingem somente as mulheres A ideologia patriarcal também é a responsável pela criação de arquétipos relacionados à homossexualidade às identificações cis e trans gênero e até mesmo à heterossexualidade De acordo com Pierre Bourdieu a ideia da dominação masculina tornase inerente ao ser humano mas é assimilada de maneira diversa pelo homem e pela mulher Enquanto aquele aprende essa lógica de predominância esta a absorve inconscientemente GOMES et al 2016 apud BORDIEU 2003 Sobre tal compreensão Segundo o autor na lógica da dominação o dominado reconhece o poder exercido pelo dominante As instituições como Estado família e escola colaboram como agentes de perpetuação dessa relação de dominação pois elaboram e impõem princípios de dominação que são exercidos no campo mais fértil que pode haver em uma sociedade a vida privada Essas instituições determinam comportamentos impõem regras valores que são Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 194 absorvidos pelas instituições familiares de forma que por meio da comunicação aprendese instintivamente mediante esquemas inconscientes de ordem masculina GOMES 2016 p 29 sem grifo no original É justamente nesse campo da sociedade a vida privada que a violência de gênero se manifesta de forma mais feroz a partir da repetição de exemplos como instrumento para a manutenção do projeto de dominaçãoexploração dos homens em detrimento das mulheres Em outras palavras a violência física psicológica e moral contra a mulher constitui um meio de manutenção de padrões tidos como normais e morais sendo nesse aspecto legitimada pelas instituições sociais direta ou indiretamente Por essa razão é dizer por se tratar de problema intrínseco à cultura desta sociedade as respostas oferecidas pelo ordenamento jurídico pátrio à violência contra a mulher não têm sido suficientes mesmo ao se considerar que em diversos aspectos a Lei n 114302006 Maria da Penha e a Lei n 131042015 tipificação do feminicídio trouxeram mudanças positivas 12 O discurso de ódio aspectos históricos e legais O discurso de ódio constitui forma de expressão cujo conteúdo a nada se presta e cuja utilidade a quem desse tipo de fala faz uso é inexistente É a exteriorização de preconceitos e de noções individualistas que sempre encontram algumas vítimas e não raramente conquistam adeptos do mesmo pensamento disseminandose de forma quase instantânea e incontrolável Acerca de manifestações como tais extraise interessante elucidação da pesquisa de Mariana Jantsch de Souza Os discursos que materializam intolerâncias discriminações e ódios em circulação social inseremse num movimento sóciohistórico no qual a relação com outro é tomada como relação de antagonismo e não como uma relação de interlocução O contato com outro instaurase pelo viés do confronto e disso resulta a aversão à diferença materializada em práticas discursivas que produzem efeitos de hostilização e ódio Por isso nesse discurso o outro surge como alvo e não como interlocutor Pôr em questão o discurso de ódio diz respeito sobretudo aos limites dos direitos de liberdade de expressão à forma como é engendrada a relação euoutro à forma como circulam em nossa sociedade os valores liberdade e igualdade Diz respeito portanto a pensar sobre dignidade e direitos humanos No âmbito jurídico o hate speech é discutido especialmente na seara constitucional quando se pensam os limites da liberdade de expressão A discussão centrase na distinção entre liberdade de expressão que fica no nível da opinião do pensamento e ofensa a direitos de terceiros o que configura um ato ilícito na esfera cível eou crime na esfera penal Considerando essa definição podemos pensar inicialmente que o discurso de ódio nasce do ponto de vista jurídico de um excesso O excesso Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 195 de liberdade de expressão aliás um excesso no uso no exercício de um direito legítimo o direito fundamental de liberdade SOUZA 2018 p 929930 sem grifo no original Com efeito tratase de preocupação mundial e a controvérsia que há muito se apresenta diz respeito ao conflito entre normas que garantem o amplo exercício da liberdade de expressão em todas as suas dimensões e normas que no intuito de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana asseguram o direito à liberdade à honra à intimidade à não discriminação Ainda durante a elaboração do projeto da Declaração Universal de Direitos Humanos 1948 os Estados designados para preparar o instrumento encontraram divergências quanto à necessidade de introdução naquelas normas de disposições específicas contra o discurso de ódio De acordo com a historiadora australiana Monica Wilkie 2019 países com políticas mais liberais como Estados Unidos Inglaterra e Austrália por exemplo se opuseram à inclusão de tais preceitos em razão da preocupação com as implicações que isso teria sobre a liberdade de expressão Esse pensamento acabou sendo adotado pela Comissão que não incluiu na DUDH artigo concernente ao tema No âmbito internacional o debate nunca saiu de pauta e atualmente entidades governamentais e não governamentais em especial as relacionadas à defesa dos direitos humanos discutem a respeito da criação de medidas eficazes de controle dessas manifestações não necessariamente com determinações de cunho punitivo que de forma tão negativa afetam as atitudes da sociedade Em fevereiro deste ano o SecretárioGeral das Nações Unidas António Guterres ressaltou a responsabilidade desse órgão quanto à tomada de providências hábeis a conter o avanço do discurso de ódio tornado convencional tanto em governos democráticos quanto autoritários e se comprometeu a definir uma estratégia de aplicação sistêmica e a apresentar um plano de ação global com esse fim Guterres destacou ainda a necessidade de atenção especial às manifestações verbais de violência contra a mulher ponderando que apesar de ser inegável que a busca pela igualdade de gênero tenha conseguido alguns avanços como a ascensão da mulher no mercado de trabalho ainda é alarmante o cenário mundial no que se refere às questões de gênero O discurso do representante da ONU recebeu diversas críticas daqueles que defendem o caráter absoluto da liberdade da expressão e mesmo dos que aceitando que não se trata de postulado ilimitado ponderam os malefícios que podem advir de uma política restritiva Jacob Mchangama 2019 advogado e comentarista social dinamarquês ao analisar referida Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 196 exposição relembrou que a controvérsia é antiga e afirmou que a cura proposta pelo SecretárioGeral da ONU pode ser pior do que a doença De fato jamais se pode perder de vista que medidas que limitam direitos fundamentais como é o da liberdade de expressão carregam consigo risco de a depender das circunstâncias serem revertidas em desfavor da democracia Nas mãos de governantes autoritários por exemplo normas que autorizam o controle de determinadas manifestações podem ser ampliadas ou distorcidas conforme o interesse de quem detém o poder Não obstante certo que o tema demanda atenção e no Brasil pouco se fala a respeito embora já seja visível que o País ou melhor suas minorias notadamente as mulheres sofrem as consequências de uma política que não apenas ignora mas legitima discursos discriminatórios Antes de adentrar nessa questão específica da relação do discurso de ódio voltado ao gênero feminino com os casos de violência física e homicídio registrados contra a mulher porém oportuno discorrer acerca do que dispõe o ordenamento jurídico no que concerne aos princípios e direitos infringidos por essa forma de manifestação É cediço que o regime da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é fundado no princípio democrático que institui um Estado Democrático de Direito A expressão princípios fundamentais trazida no Título I da CF exprime de acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello a noção de mandamento nuclear de um sistema 2007 p 450451 São assim base de normas jurídicas ordenaçoes que irradiam e imantam os sistemas de normas SILVA 2008 p 92 Já o termo direitos fundamentais contemplado no Título II destinase a designar no direito positivo aquelas prerrogativas e instituiçoes que ele concretiza em garantias de uma convivência digna livre e igual de todas as pessoas SILVA 2008 p 178 consagradas como cláusulas pétreas art 60 4º que não podem ser suprimidas nem mesmo por Emenda Constitucional Os direitos fundamentais elencados na Constituição dividemse em individuais que por sua vez podem ser separados em direito à vida direito à intimidade direito de igualdade direito de liberdade e direito de propriedade e coletivos O primeiro que se pode relacionar com o discurso de ódio é o Direito à Privacidade consagrado pela Carta Maior no art 5º X que declara invioláveis a intimidade a vida privada a honra e a imagem das pessoas assegurando ainda no inciso V o direito à resposta proporcional ao agravo além da indenização por dano material moral ou à imagem Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 197 Explica Afonso da Silva que a honra é o conjunto de qualidades que caracterizam a dignidade da pessoa o respeito dos concidadãos o bom nome a reputação A pessoa tem o direito de preservar a propria dignidade SILVA 2008 p 209 É dizer o direito fundamental à privacidade dentre o qual se destaca a inviolabilidade à honra está diretamente ligado ao princípio da dignidade da pessoa Outro direito fundamental violado por manifestações odiosas é o de igualdade A Constituição assim como os mais importantes instrumentos normativos internacionais vedam distinçoes de qualquer natureza justamente porque essas razoes preconceituosas são as que mais comumente se tomam como fundamento de discriminação SILVA 2008 p 223 Assim partindose da premissa de que todos os cidadãos são iguais não se pode admitir que o direito à liberdade de expressão de quem profere discurso de ódio se sobreponha aos direitos à intimidade à honra à privacidade à imagem enfim à não discriminação da vítima Sabese que para os casos mais graves o sistema legal já apresenta uma resposta no âmbito do direito civil criminal ou administrativo No entanto o fato de que os ofendidos podem se valer de intervenção judicial ou estatal depois da ofensa não significa que não se faz necessária a elaboração de medidas que visem prevenir essas situações principalmente diante da existência de indícios de que a falta de políticas destinadas ao controle do discurso de ódio tem contribuído para a piora do quadro da violência de fato 13 O discurso de ódio dirigido à mulher como forma de expressão e incitação da violência de gênero Falas discriminatórias atingem diretamente a honra e a dignidade da pessoa ou do grupo de pessoas a quem se dirigem e a depender do conteúdo podem violar também outros direitos fundamentais Retratam pois tipo de violência psicológica que quando voltada à mulher revela uma expressão da violência de gênero representando um dos vários instrumentos de manutenção e propagação da cultura patriarcal da submissão feminina A respeito do necessário combate ao discurso de ódio sexista pertinente destacar lição extraída de ficha informativa elaborada pelo Conselho da Europa a mais antiga organização internacional daquele continente para seminário ocorrido em Estrasburgo O discurso de ódio sexista é uma das expressões do sexismo inclui expressões que propagam incitam promovem ou justificam o ódio com base no sexo O discurso de ódio sexista assume muitas formas tanto online quanto off line notadamente a culpabilização da vítima e a revitimização xingamentos relacionados à promiscuidade e ao corpo pornô da vingança o Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 198 compartilhamento de imagens explícitas ou sexuais sem consentimento ameaças brutais e sexualizadas de morte estupro e violência comentários ofensivos sobre aparência sexualidade orientação sexual ou papéis de gênero mas também falsos elogios ou supostas piadas usando humor para humilhar e ridicularizar o alvo Vários fatores contribuem para o discurso de ódio sexista incluindo a prevalência de sociedades patriarcais a disseminação de mensagens degradantes sobre mulheres ou meninas imagens violentas e hipersexualizadas notadamente na mídia e as expectativas sobre sexualidade e papéis de mulheres e homens na sociedade Mídias sociais educação livros didáticos e brinquedos estereotipados a família e os círculos sociais bem como arte cinema música vídeos livros são todos influenciados por normas culturais e sociais existentes Eles portanto tendem a perpetuar os estereótipos de gênero e a contribuir à persistência do discurso de ódio sexista CONSELHO DA EUROPA 2016 p 3 sem grifo no original E além de configurar uma forma de violência verbal e de propagação da cultura patriarcal manifestações odiosas embasadas em discriminação de gênero também têm o condão de fomentar atos de violência física contra a mulher Nessas circunstâncias podem inclusive se subsumir aos tipos penais de incitação ou apologia ao crime artigos 286 e 287 do Código Penal a depender do caso concreto Mas não parece que a resposta dada pelo sistema penal a essas formas de violência seja a mais eficaz Estatísticas anteriores e posteriores à publicação da Lei Maria da Penha ou da Lei do Feminicídio evidenciam que tais instrumentos normativos apesar de significativos por si só são insuficientes para resolver problema cultural tão enraizado Com mais de dez anos de vigência do sistema protetivo instituído pela Maria da Penha em 2006 pouco ou quase nada mudou ao menos não para melhor Apesar da lei que tipificou o feminicídio como qualificadora do crime de homicídio e o colocou no rol de crimes hediondos ser mais recente 2015 a lógica é a mesma A criminalização e a exacerbação das penas não parecem estar surtindo efeito justamente por ser a discriminação de gênero algo tão intrínseco ao sistema De acordo com o Instituto Data Senado 2016 em 2016 a taxa de feminicídios antes do advento da Lei n 13102015 computados como homicídios de mulheres entre os anos de 2006 e 2013 aumentou em 125 o que significa 48 vítimas de homicídio em cada 100 mil mulheres Apenas em 2013 foram registrados 4762 casos ou 13 assassinatos por dia em média No ponto cumpre mencionar que enquanto os indicativos atinentes ao homicídio de mulheres brancas diminuíram 3 o das mulheres negras aumentaram 20 DATA SENADO 2016 Essa taxa é ainda pior segundo o Mapa da Violência 2015 WAISELFISZ 2015 que encontrou agravamento de 542 nos registros de feminicídio de mulheres negras Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 199 Ademais do recorte de raça interessante observar que o número de homicídios de mulheres também varia em razão da região tendo se agravado ao longo dos anos em estados do Norte e do Nordeste DATA SENADO 2016 Além de o Brasil apresentar a 5ª pior taxa de feminicídio do mundo OMS 2016 outros indicativos evidenciam a urgência do assunto A cada quatro mulheres uma sofreu agressões verbais ou físicas nos últimos doze meses BUENO 2019 e a cada onze minutos uma mulher é estuprada LIMA et al 2016 Num comparativo entre as duas ediçoes da pesquisa Visível e invisível a vitimização de mulheres no Brasil do FBSP publicadas em 2017 e 2019 estas foram as constataçoes de modo geral não houve redução na vitimização sofrida no período Dito de outro modo quando questionadas sobre experiências de assédio e violências física e psicológica sofridas ao longo do último ano a proporção de mulheres vitimadas nas pesquisas de 2017 e 2019 se manteve estável 286 e 274 respectivamente Outro dado extremamente preocupante diz respeito a quem foi o autor do episódio mais grave de violência relatado já que 764 das mulheres indicaram que o agressor era um conhecido aumento de 25 em relação à pesquisa realizada em 2017 Dentre os vínculos mais citados destacase namoradocônjuge companheiro como o principal perpetrador com 238 aumento de 23 exnamorados e excompanheiros com 152 e vizinhos com 211 sem grifo no original E sobre o acirramento do discurso de ódio via internet Na comparação com a primeira onda da pesquisa destacaramse o aumento no percentual de mulheres que disseram ter sofrido violência na internet de 12 em 2017 para 82 em 2019 p 67 e 15 sem grifo no original Entre 2007 e 2018 a Central de Denúncias de Crimes Cibernéticos recebeu mais de 4 milhões de queixas De 2016 para 2017 o número caiu pela metade mas isso segundo Thiago Tavares presidente da Safernet primeira ONG no País a criar canal anônimo para recebimento dessas reclamaçoes não significa que os casos tenham realmente diminuído e sim que as pessoas não se indignam mais muito por influência segundo a organização de uma chapa presidencial que alimenta o ódio o preconceito e a discriminação para captar votos e espaço na mídia PUGLIERO 2018 Estudo do sociólogo Luiz Valério Trindade 2018 evidencia que as principais vítimas dessas manifestações veiculadas por redes sociais são as mulheres negras de classe média com ensino superior completo que figuram como alvo em 81 dos ataques de ódio virtual no Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 200 Facebook Disso se denota que para mais do que levar em conta o gênero isoladamente estudos sobre o tema exigem uma análise interseccional que considere também raça e classe Com efeito versase sobre circunstância que está longe de ser novidade para pessoas e organizações governamentais ou não governamentais que lidam com o assunto Os principais institutos de pesquisa estatística do País noticiam anualmente a gravidade da situação que se não piora permanece estável o que de todo modo significa que a violência de gênero continua arraigada na sociedade brasileira e que vêm tomando novas formas de expressão como o discurso de ódio E esse tipo de expressão é potencialmente alarmante vez que a obtenção de dados a respeito é ainda mais difícil do que a relativa à violência exteriorizada por meio de agressão física Ora se a subnotificação já é um obstáculo quanto a casos lesão corporal e vias de fato porque a maior parte das vítimas não denuncia 52 tanto em 2016 quanto em 2018 FBSP 2019 p 2 muito mais quanto às ofensas externadas verbalmente Muitas pessoas nem se dão conta de que isso também é violência de gênero Nesse sentido a proposta de análise comparativa de estatísticas referentes ao discurso de ódio encontra verdadeiro impasse em razão da escassez de pesquisas oficiais que coletem informações e abordem o problema As poucas indagações feitas até então priorizam o discurso de ódio proferido pela internet que pode ser o principal meio de propagação mas certamente não é o único Esse quadro no entanto parece passar despercebido ou ser deliberadamente ignorado por aqueles que podem e devem fazer algo a respeito Sobre as causas para tal inércia colhese das já mencionadas recomendações do Conselho da Europa Falta de consciência falta de vontade entre o público em geral autoridades e intervenientes privados para resolver o problema lacunas na legislação e políticas e problemas com a sua aplicação particularmente no que diz respeito aos novos meios de comunicação bem como o anonimato online também contribuem para um clima de impunidade para os agressores Algumas ideologias como o extremo nacionalismo e conservadorismo e movimentos antifeministas são férteis motivos para espalhar o ódio contra as mulheres especialmente quando elas não papéis tradicionais de gênero CONSELHO DA EUROPA 2016 p 4 grifouse Assim é que em que pese a falta de dados mais palpáveis sobre a relação entre o discurso de ódio voltado às mulheres e a violência de gênero parece razoável inferir das informações supramencionadas que aquele simboliza não apenas uma forma de expressão desta mas também um mecanismo de incitação da agressão em si e de propagação do sistema de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 201 dominação masculina legitimado pela ascensão de doutrinas e governos conservadores que preferem ignorar a questão CONSIDERAÇÕES FINAIS O discurso de ódio proferido em detrimento das mulheres consiste em exteriorização da violência de gênero que pode violar a honra a imagem a privacidade e a intimidade da vítima ofendendo portanto direitos fundamentais que concretizam o princípio da dignidade da pessoa humana Por essa razão não é suficiente o argumento de que tais manifestações são protegidas pela garantia da liberdade de expressão vez que o Estado Democrático de Direito estabelece entre outros direitos o da igualdade de modo que as prerrogativas asseguradas a um indivíduo não pode se sobrepor a de outro Apesar da exiguidade de dados concretos sobre o tema é certo que nos últimos anos com a ascensão de ideologias e governos de extremadireita houve uma elevação dos casos de mulheres ofendidas por meio de falas discriminatórias embasadas na noção de gênero dirigidas especialmente às mulheres negras Bem assim pesquisas indicam que concomitantemente o número de mulheres vítimas de agressão e homicídio aumentou estando o Brasil desde 2016 na posição de 5º país com a maior taxa de feminicídio do mundo As principais instituições atuantes no âmbito do direito e das relações internacionais há muito alertam sobre o crescente agravamento dos casos e a aparição de novas modalidades de expressão da discriminação de gênero destacando que muito disso se dá por influência da mídia em especial as redes sociais Embora não se possa afirmar que estatisticamente escolhas políticas permissivas com falas odiosas incitam a prática de atos de violência física parece coerente concluir a partir do cotejo das estatísticas acima aludidas que de alguma forma tais circunstâncias se conectam De todo modo fazse necessário investigar como e em que proporção isso se dá desenvolvendose pesquisas específicas acerca da correlação entre o discurso de ódio voltado à mulher e a violência de gênero exteriorizada de forma corporal Nesse sentido ainda que não se defenda a possibilidade de censura prévia expressamente vedada pela Constituição Federal arts 5º IX e 220 2º certo é que há uma urgente necessidade de discussão sobre as causas e as possíveis soluções ao problema do discurso de ódio proferido contra a mulher assim como da violência de gênero de modo geral No particular vale se reportar novamente aos apontamentos do FBSP Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 202 Os dados apresentados neste relatório indicam que a violência é uma variável presente no cotidiano das mulheres brasileiras e que superála envolve o acolhimento da vítima o acesso à justiça a punição do agressor mas também estratégias de prevenção que trabalhem a origem de todas essas diferentes manifestações de violência Qualquer política que se pretenda efetiva no enfrentamento da violência contra as mulheres precisa necessariamente incluir um componente que busque suas raízes culturais e a necessidade de desconstrução das normas sociais que contribuem para a desigualdade de gênero FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2019 p 7 grifouse Assim talvez o ponto de partida seja justamente reconhecer a utilidade de estudos sobre o tema E para que pesquisas sejam possíveis e proveitosas indispensável a criação especialmente pelo Poder Público de políticas que visem conscientizar as mulheres com atenção às suas particularidades raça e classe por exemplo da importância de falar sobre e buscar entender o que vem lhes impedindo de fazêlo REFERÊNCIAS BEAUVOIR Simone de O segundo sexo experiência vivida São Paulo Difusão Européia do Livro 1967 BOURDIEU Pierre A dominação masculina Tradução de Maria Helena Kühner 3 ed Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2003 BRASIL Constituição 1988 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 Brasília Presidência da República Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ConstituicaoConstituiçaohtml Acesso em 21 jul 2019 BRASIL Conselho da Justiça Federal Org Violência de gênero uma análise crítica da dominação masculina Revista CEJ Brasília Ano XIX n 66 2015 Disponível em httpwwwcorteidhorcrtablasr34812pdf Acesso em 22 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presidencial de 2014 Trabalhos em linguística aplicada Campinas v 57 n 2 p 922953 2018 Disponível em Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 204 httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0103 18132018000200922lngptnrmiso Acesso em 08 set 2019 TRINDADE Luiz Valério Formas Contemporâneas de Racismo e Intolerância nas Redes Sociais Public Policy Southampton 2018 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da Violência 2015 homicídios de mulheres no Brasil 2015 Disponível em httpwwwonumulheresorgbrwp contentuploads201604MapaViolencia2015mulherespdf Acesso em 08 set 2019 WILKIE Monica Free speech vs hate speech The Centre for Independent Studies Disponível em httpswwwcisorgaucommentaryarticlesfreespeechvshatespeech Acesso em 07 jul 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 205 CORAÇÕES SELVAGENS DA ASFIXIA DO DIREITO À POLIFONIA FEMINISTA Miliane dos Santos Fantonelli1 William Hamilton Leiria2 RESUMO A pesquisa tem como problema em que medida partindo da obra Perto do coração selvagem de Clarice Lispector é possível reconhecer um direito que atua como instrumento do necropoder consubstanciado no pacote anticrime bem como pensar em uma maneira de se produzir conhecimento o qual permita a existência dos mais diversos corpos e suas vozes Objetivase assim denunciar o caráter silenciador do direito quando ligado a um poder soberano de morte mas também mostrar sua potencialidade como limite civilizador quando as mais diversas vozes da sociedade são escutadas Utilizase uma metodologia paradigmática de cunho interdisciplinar aliando direito literatura arte e filosofia Ao fim apresentase uma polifonia feminista como meio para se elaborar uma epistemologia jurídica que sobreponha um saber aos demais Palavraschave Direito e literatura Necropolítica Polifonia feminista INTRODUÇÃO Liberdade é pouco O que desejo ainda não tem nome Clarice Lispector Direito literatura e arte são universos tão diversos que parecem não se tocar Ocorre que em tempos tão embrutecidos como os contemporâneos a literatura pode ser uma maneira de sensibilizar os olhos dos juristas Além é claro de abrir outras possibilidades de ação e debate como a de se enxergar o processo como história coerente e íntegra Os pontos de tangibilidade entre direito literatura e arte em muito podem contribuir para a compreensão da complexidade humana É nesta medida que o presente trabalho analisa Perto do Coração Selvagem de Clarice Lispector obra que inaugura a literatura da autora e desde já permite ao leitor o acesso a um universo até então inexplorado ou pouco conhecido Sem dúvida a história de Joana 1 Advogada Bacharel em direito pela Universidade Federal de Santa Maria Mestranda em direito pela Universidade Federal de Santa Catarina Bolsista Capes Membro do Núcleo de Estudos em Filosofia e Teoria do Direito NEFTDUFSC milifantonellihotmailcom Lattes httplattescnpqbr6391039363063323 2 Bacharel em direito pela Universidade Federal de Santa Catarina Mestrando em direito pela Universidade Federal de Santa Catarina Membro do Núcleo de Estudos em Filosofia e Teoria do Direito NEFTDUFSC williamleiriamecom Lattes httplattescnpqbr7382148799595700 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 206 personagem principal do livro leva a meandros os quais nem mesmo as mulheres se permitiam conhecer3 A presente pesquisa parte de uma perspectiva interdisciplinar trespassando pelo direito pela arte pela filosofia crítica e pela epistemologia com uma metodologia paradigmática nos termos de Giorgio Agamben isto é que não vai do particular para o geral ou do geral para o particular mas do singular para o singular O objeto da pesquisa como buscar soluções para um direito silenciador é questão impossível de se responder nessas breves páginas exigindo uma prática éticopolítica Assim o problema do trabalho está justamente na compreensão de em que medida é possível partindo da literatura como maneira de desembrutecimento reconhecer um direito que consolidado em leis como pode vir a ser o pacote anticrime sufoca as mulheres e em última análise se nesse contexto é possível vislumbrar uma nova maneira de escutar o mundo partindo da voz de Clarice e ouvindo outras vozes De todo modo busca se não lançar uma luz à realidade mas retirála dos holofotes que ofuscam a todos mostrando sua escuridão Objetivase apresentar uma epistemologia feminista polifônica como uma possível alternativa ao ensurdecedor silêncio que reverbera contínua e incessantemente Dessa forma a obra de Clarice é o ponto de partida para explorar e questionar um direito que formata e exclui corpos não enquadrados na norma E indo além traz à tona a questão da própria produção de conhecimento e não apenas da importância mas da necessidade de se ouvir e parar de asfixiar corações selvagens na sociedade contemporânea Assim o artigo está estruturado em três capítulos O primeiro aborda propriamente Perto do Coração Selvagem pinçando alguns pontos que se julgam pertinentes para o desenvolvimento das ideias deste projeto conectando com discussões acerca de um direito formatador No segundo discutese então uma das manifestações mais recentes de um tal direito formatador de cunho eminentemente necropolítico qual seja o Pacote Anticrime Projeto de Lei 18642019 proposto pelo Ministro da Justiça e da Segurança Pública Sérgio Moro Por fim o terceiro trata do conceito de polifonia feminista e a indispensabilidade de se mexer na estrutura deste direito marcado pela homofonia O recurso à arte se dá então pela sua incapacidade de ser capturada pelos mecanismo silenciadores da sociedade capitalista pela tentativa de se viver a vida como uma obra de arte Assim pensar na literatura de Clarice Lispector pode revolver as entranhas do ser humano aflorando sensações e sentimentos que impactam na própria compreensão e no entendimento do mundo Assim deveria ser com o feminismo e o direito permitindo que suas estruturas 3 Nesse sentido devido a uma cultura colonial machista em que o homem branco de origem europeia colocava regras universais desconsiderando a realidade das mulheres e seus contextos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 207 fossem mexidas e alteradas ampliando seus horizontes de compreensão Por óbvio a literatura não é salvaguarda mas é uma maneira de despertar para outros universos e debates assim como foi o caso deste trabalho 1 O CORAÇÃO SELVAGEM DE CLARICE LISPECTOR Clarice Lispector é sem dúvidas um dos expoentes da literatura brasileira Mulher escritora e jornalista com formação em direito refugiada vindo parar no Brasil para escapar da caça aos judeus na guerra civil russa em meados dos anos 20 Suas obras têm características que lhe são peculiares como os constantes fluxos de consciência e os insights epifanias Perto do Coração Selvagem de 1944 então é a primeira obra da sua carreira como escritora É sob este pano de fundo que o presente trabalho vai se montar Em linhas gerais a narrativa é feita a partir das lembranças de Joana até a sua vida adulta O fluxo de consciência é constante na obra e o leitor conhece conforme os capítulos passam a mente e os desejos mais íntimos da personagem A obra é divida em duas partes A primeira com nove capítulos explora o ir e vir entre a infância e a fase adulta Já a segunda com dez capítulos diz respeito ao seu relacionamento com Otávio na época noivo de Lídia Cada capítulo representa contextos cotidianos mas em que o envolvimento de Joana com cada um deles abre verdadeiro universo Assim ela inicia uma discussão que contempla já nos anos 40 o casamento e a felicidade uma vez que ela não se adequa aos padrões de mulher da época Joana é órfã por parte de mãe Elza e vive com seu pai Alfredo até quando ele falece e ela vai morar com os tios No entanto desde pequena ela não se enquadrava nos padrões sociais No capítulo O banho a tia vê Joana roubando livros e a reação de Joana foi de naturalidade já que ela quis roubar o livro e por querer não lhe parecia errado A tia perplexa com sua atitude conversa com o marido Os tios então a julgam pela sua personalidade e resolvem levála a um internato onde Joana vive até sua vida adulta No internato ela se apaixona pelo Professor onde dedica um capítulo específico para demonstrar sua relação platônica com ele visto que ainda era uma menina Entre as decisões da personagem em perseguir suas respostas encontramse em seu caminho Otávio e Lídia figuras que farão parte de algo muito íntimo e vívido à Joana Um casamento sem amor com Otávio Ou pelo menos aquele amor romântico pintado pela literatura da época Todas as ações provocavam questionamentos incessantes da personagem A vida sob as lentes de Lispector é vista sob uma nova perspectiva maior que o exterior de seus personagens Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 208 Otávio era noivo de Lídia quando conhece Joana Quando ele a conhece despertalhe curiosidade uma vez que Joana era uma mulher diferenciada Assim Otávio desfaz seu noivado e casase com Joana No entanto logo após o casamento ela se dá conta de quem realmente é Otávio Insatisfeita com o casamento e com o marido o qual achava um medíocre tem seu comportamento cada vez mais influenciado pelo nojo e pela maldade Mas isso não a faz sentir se mal Ao contrário parece que Clarice está levando a entender que essa maldade na verdade representa o desejo pela liberdade da construção de uma mulher livre Ocorre que Otávio a trai com Lídia e a engravida Na entrevista entre Lídia e Joana a pedido da primeira as duas mulheres completamente diferentes se deparam e Joana ao ver a enorme barriga de Lídia lhe diz que nada precisava ser dito que a entrevista estava feita Lídia atônita e buscando provocar Joana lhe desfere palavras duras dizendo que ela não tinha sentimentos e que não amava o marido Ocorre que Joana está mais preocupada consigo própria com questões internas e de fato o marido não lhe despertava mais interesse Joana se separa de Otávio e no capítulo O Homem se envolve com um homem não nomeado durante a obra Ela desenvolve sentimentos por ele mas é abandonada por meio de um bilhete Apesar disso no último capítulo A Viagem já separada de Otávio e sem o Homem ela vai ao seu próprio encontro Nesse momento ela se vê realizada se vê livre porque então viverei só então viverei maior do que na infância Serei brutal e malfeita como uma pedra serei leve e vaga como o que se sente e não se entende me ultrapassei em ondas ah Deus e que tudo venha e caia sobre mim até a incompreensão de mim mesma em certos momentos brancos porque basta me cumprir e então nada impedirá meu caminho até a morte semmedo de qualquer luta ou descanso me levantarei forte e bela como um cavalo novo LISPECTOR p 202 Interessante perceber que Clarice inicia a obra com a epígrafe de um homem de James Joyce Ele estava só Ele estava abandonado feliz perto do selvagem coração da vida e encerra fazendo uma bela metáfora sua como mulher livre um cavalo bravo dando a entender que está conforme o título da obra perto do coração selvagem Se antes a mulher não era ouvida na literatura de Clarice e nesta obra em específico ela é Denuncia sensações sentimentos e emoções até então não faladas na literatura e recriminada pelos padrões esperados para mulher Ou seja até aquele momento na literatura os homens escreviam sobre as mulheres colocandoas sempre no lugar de boazinha prostitua ou adúltera mas agora Clarice acrescentava um tipo de mulher que não era tratado uma mulher diferenciada e inadequada para esses padrões Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 209 Importante é salientar no entanto de que mulher Clarice está falando Joana representa um contexto e isso deve ser percebido Além deste coração selvagem existem tantos outros Esses corações precisam estar batendo em harmonia e sincronicidade sob pena faltar oxigênio em algum órgão vital no grande corpo de mulheres que forma a sociedade Isto é o coração selvagem denunciado por Clarice nesta obra é apenas um dos corações pulsantes no todo Sem dúvida ele é importante mas é vital se ter consciência da sua especificidade e da grandiosidade e complexidade que é o todo É preciso leválo em conta além do gênero a raça e a classe para a composição de um discurso responsável Nesse sentido é que a literatura no caso deste estudo de Lispector pode ser uma chave de acesso a portais não explorados pelo direito É uma maneira de se ter acesso a realidades e compreensões as quais são silenciadas na vida diária Escutar as vozes dessas realidades primeiro pode representar o reconhecimento das atrocidades que são legitimadas não raras as vezes pelo direito conforme será explorado no capítulo seguinte e segundo pode ser uma maneira de se reinventar de pensar em formas de compreensão mais largas e que contemplem o grande emaranhado da vida humana como será visto no último capítulo 2 O SUFOCAMENTO DO DIREITO CONTRA OS CORAÇÕES SELVAGENS Se em 1940 Clarice colocava essas questões da emancipação feminina foi apenas em 1988 com a Constituição que foram possíveis algumas conquistas formais como a questão da igualdade entre homens e mulheres No entanto o formato do direito ainda não está estruturado para as mulheres e para as demais minorias Talvez porque nunca se tenha escutado suas vozes realmente E hoje ainda pior os pequenos avanços que se tiveram talvez até porque nem tenham sido avanços estão em jogo Exemplo paradigmático desse risco que se corre é o Pacote Anticrime Projeto de Lei 18642019 proposto pelo Ministro da Justiça e da Segurança Pública Sérgio Moro o qual pode vir a ser um silenciador das múltiplas vozes das mulheres4 O projeto de lei visa a alterar dez artigos do Código Penal e 16 artigos do Código de Processo Penal Dentre as alterações propostas ressaltase a aplicabilidade da legítima defesa no Código Penal Se aprovado o artigo 23 do Código Penal passará a vigorar acrescido de um 4 Há que se salientar o caráter paradigmático do Projeto Conforme Giorgio Agamben 2019 o paradigma é precisamente um exemplo ao mesmo tempo um exemplar e um modelo que torna cognoscível a realidade diante da impossibilidade de formulação de uma regra a priori A relação paradigmática então é uma entre um singular o próprio exemplo e sua exposição que torna o quadro geral inteligível Assim é para os termos da presente pesquisa irrelevante se o projeto seja aprovado ou não Quer dizer tratase apenas de um caso singular entre tantos outros que poderiam ter sido utilizados para tornar inteligível o quadro geral de um direito silenciador As forças do necropoder sempre hão de encontrar outras formas de se manifestar sendo o Pacote Anticrime apenas uma delas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 210 parágrafo segundo conforme o qual o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicála se o excesso doloso ou culposo praticado em legítima defesa estado de necessidade ou em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito decorrer de escusável medo surpresa ou violenta emoção A redação evidentemente abre margem para um aumento da violência policial Esse não é entretanto o tema do presente artigo Algo a mais está nas estrelinhas ao estilo Gabriela cravo e canela5 o retorno da legítima defesa da honra De fato os artigos 23 e 25 do Código Penal não especificam quais bens jurídicos estão tutelados Assim a defesa da honra poderia ser legítima e aprovado o Pacote Anticrime poderá ainda ser excessiva desde que baseada em violenta emoção Embora não se possa afirmar qual seja o espírito da lei ou a vontade do legislador podemse vislumbrar as possíveis aplicações da norma A norma pode se apresentar como a contraparte do recente ganho das mulheres questionável a partir de uma perspectiva antipunitivista e abolicionista penal da tipificação do feminicídio conforme artigo 121 2º V do Código Penal Cumpre destacar que foi apenas em 2015 que o Brasil sancionou a Lei 131042015 a qual trouxe o feminicídio como qualificadora de aumento de pena para crimes de homicídio praticado contra mulheres por sua condição de gênero Conforme o Código Penal a pena mínima neste caso aumenta de 6 para 12 anos e a máxima de 20 para 30 anos Certamente vale o jargão quanto mais leis menos leis Isso porque se há necessidade de se ter positivada essa questão logo a prática social vai de encontro ao desejado O mapa da violência 2015 de fato comprova isso ao colocar o Brasil com a 5ª maior taxa de feminicídio do mundo BRASIL 20156 Se aprovado o Projeto Anticrime a aplicação do dispositivo do artigo 121 2º V do Código Penal punindo o homicídio de mulheres por sua natureza de gênero tende a ser mitigada diante da violenta de fato emoção do homem O direito nesse sentido surge como ferramenta complexa de domínio É por meio dele que se garante que tudo permaneça como está Apesar do esvaziamento da política em prol da economia a disputa pelo poder político do Estado ainda se apresenta como fundamental uma vez que é por meio do regramento jurídico e do aparato coercitivo estatal que se usa da violência de forma legítima O direito então toma a forma de uma arma de guerra contra o inimigo uma 5 No romance de Jorge Amado que retrata a realidade brasileira especificamente baiana da década de 1920 é prática corriqueira que os coronéis do cacau matem impunemente suas esposas caso descubram que elas os traem a fim de defender suas honras Ou seja temse aí uma legítima defesa da honra excluindo a ilicitude da conduta de homicídio ou feminicídio 6 Por falta de acesso aos sites das entidades oficiais que divulgaram o mapa da violência em 2015 buscouse a informação na página eletrônica do Senado Federal a qual trouxe os dados coletados e pertinentes a essa pesquisa Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 211 forma de imposição das vontades dominantes Além disso uma vez que o direito é manifestação da política somente uma política de guerra pode ensejar também um ordenamento jurídico voltado para silenciamento do Outro A política nesses termos é precisamente aquela marcada pela distinção amigo e inimigo tal qual Carl Schmitt entendia O jurista alemão no entanto pensava sobretudo uma declaração de inimizade externa ao Estado de forma que a possibilidade real de um combate de vida e morte de guerra seria o que configuraria uma relação política entre dois Estados SCHMITT 2015 Dentro de um estado soberano por outro lado não haveria inimigo uma vez que a constituição de um Estado é a decisão política da totalidade do povo homogêneo em si SCHMITT 2007 p 101 Assim o espaço intraestatal seria de perfeita harmonia e ordenação um espaço normal onde pudesse vigorar a norma não a decisão SCHMITT 2006 A declaração de inimizade intraestatal portanto é sinal de guerra civil que põe em risco a unidade política organizada é sinal de desordem ensejando a declaração de estado de exceção que suspende o direito a fim de manter a ordem o Estado SCHMITT 2015 2006 Na esteira de Schmitt Giorgio Agamben entende que o estado de exceção deixou de ser medida excepcional para se tornar um paradigma de governo Para ele constitui um totalitarismo moderno a instauração por meio de um estado de exceção permanente de uma guerra civil legal mas também jurídica que permite a eliminação física não só de adversários políticos mas também de categoriais inteiras de cidadãos que por qualquer razão pareçam não integráveis ao sistema político AGAMBEN 2004 p 13 Se Michel Foucault atribuiu ao poder soberano o direito de fazer morrer e deixar viver e ao biopoder o direito de fazer viver e deixar morrer FOUCAULT 2010 Agamben 2010 percebeu que em nesses tempos a política se tornou integramente biopolítica e que o progressivo alargamento da decisão soberana sobre a vida nua para além dos limites do estado de exceção Assim a decisão sobre a vida tende a se tornar cada vez mais decisão sobre a morte e a biopolítica em tanatopolítica Achille Mbembe 2018 também partindo da crítica foucaultiana dá um passo além e fala de necropolítica afirmando que a noção de biopolítica não é suficiente para entender as formas contemporâneas como o poder de morte se sobrepõe à vida A partir do estudo de Carl Schmitt em O nomos da Terra no jus publicum europæum Mbembe 2018 elucida que a colônia o espaço para além das linhas de amizades SCHMITT 2014 é onde o estado de exceção toma a forma de normalidade com mais vigor um lugar onde a violência da exceção civiliza os selvagens Os corações selvagens aqueles que não se Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 212 adequam ao sistema que subvertem a ordem carecem do caráter específico humano MBEMBE 2018 p 36 O autor então conclui que nas colônias o direito soberano de matar não está sujeito a qualquer regra de forma que a guerra colonial sem fim contra os selvagens se coloca à margem da lei O pensamento de Mbembe é interessante por considerar a questão da soberania e do poder de morte na periferia Revela que aquilo que se apresentou como exceção na Europa o campo é e sempre foi a regra na colônia O que se testemunha na Segunda Guerra Mundial é a extensão dos métodos anteriormente reservados aos selvagens aos povos civilizados da Europa MBEMBE 2018 p 32 Escapalhe no entanto um insight de Agamben que contribui para entender a extensão do poder soberano de morte tanto no capitalismo central quanto na periferia7 O necropoder que aniquila os selvagens não está à margem da lei mas em uma relação simbiótica com ela A relação de soberania que constitui um complexo paradoxo é uma relação de exceção em que não simplesmente se coloca um caso fora da lei mas dentro dela à medida que por ela abandonado A exceção é uma captura fora AGAMBEN 2010 Se não fosse assim não seria possível entender como o próprio direito a própria Lei permite que se promova a aniquilação dos corações selvagens como é o caso da licença para matar do Projeto Anticrime Embora Mbembe 2018 esteja certo sobre a privatização da coerção e do necropoder de forma que o direito de matar possa ser exercido por milícias urbanas o poder de morte também é exercido dentro da lei sob a salvaguarda do Estado soberano De uma forma ou de outra não se pode fugir da Lei essa é a tônica da relação de soberania que é uma relação de abandono Mesmo quando o extermínio é privado a possibilidade de que se possa matar sem cometer homicídio é dada sempre por intervenção positiva ou negativa do Estado da Lei8 Interessante observar que mesmo com a lei 13104 de 2015 que dispõe sobre o feminicídio o último relatório publicado pelo Anuário Brasileiro de Segurança Pública em 7 É certo que pensamos aqui periferias diferentes Mbembe parte do contexto colonial africano pensando a situação da África do Sul onde leciona História e Ciências Políticas de Camarões onde nasceu ou de outros países como a Palestina onde a guerra não toma as vestes de paz No presente trabalho estamos pensando a situação brasileira também colonial mas com suas especificidades onde se vive uma paz que também encobre uma guerra sem fim 8 Embora não sejam o foco do presente trabalho dois casos brasileiros recentes são exemplificativos do exercício do necropoder seja diretamente pelas mãos do Estado seja por um grupo privado Tratase do assassinato de Marielle Franco que traz à tona problemas estruturais do Brasil como o racismo e as milícias e do disparo por parte do Exército brasileiro de 80 tiros contra um veículo de uma família em Guadalupe zona norte do Rio de Janeiro Em ambas as situações percebese a possibilidade de se matar sem cometer homicídio isto é o livre exercício de um poder de morte Com isso não se quer dizer que os ocorridos não configurem crimes como de fato configuram mas a impunidade dos agentes para quem a lei não se aplica Estão salvaguardados não abandonados pela Lei Sobre ambos os casos ver VEJA 2019 BARIFOUSE 2018 CARAMANTE STABILE COELHO 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 213 2018 apontou um aumento de 61 nos casos de feminicídio tendo como base os anos de 2016 e 2017 INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO 2018 Ou seja parece que uma realidade já não muito preocupada com os corações selvagens agora também pretende mitigar a já mínima proteção a essa parcela da sociedade O discurso misógino do Presidente da República tanto antes quanto depois da campanha eleitoral URIBE FERNANDES 2019 acaba autorizando em alguma medida comportamentos agressivos E não apenas o seu discurso mas também e sobretudo as leis que se materializam em seu governo nesse sentido como o projeto de lei do pacote anticrime Assim sendo a sociedade brasileira preconceituosa nas mais variadas vertentes é certo que o padrão de cidadão civilizado é o homem branco de classe alta heterossexual e cisgênero podendo ser estrangeiro desde que europeu ou americanoanglosaxão Àqueles que compõem a regra isto é a exceção visto que 51 da população brasileira é do sexo feminino e apenas 47 se declara branca IBGE 2011 tudo aos selvagens desviantes da regra não integráveis ao sistema a Lei a exceção soberana As lentes de Mbembe permitem então visualizar quem o Estado vai defender e quem não vai quem precisa morrer para garantir a vida dos demais dentro do sistema que se vive hoje Assim o próprio Estado cria as condições para essa necropolítica institucionalização de crianças tratamento xenófobo dispensado a imigrantes criminalização de movimentos sociais recusa de condições de vidas viáveis o racismo as normas de gênero Ao não intervir sobre estas dimensões o Estado está a exercer as suas necropolíticas dividindonos entre quem pode e tem condições para viver e quem merece morrer OLIVEIRA 2014 O fundamento do poder de morte é em última instância o racismo que abre uma cisão no povo separando aqueles que merecem viver e merecem morrer FOUCAULT 2010 Esse racismo não se refere exclusivamente à categoria racial mas a qualquer divisão possível dentro do corpo social No ponto extremo frente ao poder soberano qualquer um pode virtualmente ser matável a fim de que a máquina biopolítica continue em funcionamento AGAMBEN 2010 Fica evidente então que o direito cumpre um papel de exclusão e captura de camadas da população abandonandoas ao julgo do poder soberano Entretanto o direito não é e não precisa ser só isso Para muito além de um instrumento de dominação o direito é um limite ao humano tem um papel civilizador a fim de que se possa viver pacificamente em conjunto É preciso então pensar em como tirar do direito suas vestes necropolíticas de forma que sua realização abra as portas da justiça É a isso que se propõe no próximo capítulo ao pensar como uma epistemologia feminista pode contribuir para a construção de uma nova epistemologia jurídica rompendo as cisões da sociedade entre mulheres e homens brancos e negros gays Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 214 lésbicas e heterossexuais pobres e ricos entre povo e Povo Em outras palavras tratase de pensar um direito que não esteja mais ligado à violência 3 OS CORAÇÕES SELVAGENS QUE PULSAM A POLIFONIA FEMINISTA Imaginar a vida harmonicamente abraçada por trilhas sonoras traz sensação de leveza e de tranquilidade Como se todos os momentos tristes e felizes se acomodassem de maneira precisa Nesse contexto pensar na produção de conhecimento como uma música com compasso e ritmo pode ser uma maneira de melhor compreender a contemporaneidade e a complexidade que é inerente ao ser humano Indo além desenvolver o conceito de polifonia na esfera das epistemologias feministas se demonstra uma possibilidade de superar um discurso totalizante que se sobrepõe às diversas vozes que compõem a realidade e de construir por consequência uma epistemologia jurídica mais democrática um direito civilizador Nessa medida a literatura é a voz muitas vezes a única possível de muitas realidades que são inaudíveis por aqueles que fazem a ciência É o caso de Clarice Lispector na obra analisada neste trabalho Ela como uma das vozes femininas e feministas de sua geração trouxe à tona questões tão caras à mulher que não raras vezes são ignoradas pelo corpo social e por consequência pelo direito Incluir então as vozes das mulheres ou ainda conforme Scott 1990 a categoria gênero na análise histórica em conjunto com classe e raça ajuda a construir não só uma nova história de mulheres mas uma nova história Além disso um novo direito e uma nova política Diante disso é importante conceituar preliminarmente polifonia São muitos os conceitos dados ao termo Este trabalho irá explorar aquele cotejado por Mikhail Bakhtin A partir da análise das obras de Dostoievski Bakhtin coloca que o autor desenvolve muitas vozes e consciências independentes BAKHTIN 2015 p 4 Ou seja existe uma espécie de multiplicidade de consciências equipolentes que se combinam em uma unidade sem no entanto se misturar BAKHTIN 2015 p 5 Dessa forma o diálogo entre as vozes é equânime não se objetificando visto que não deixam de ser autônomas O oposto disso Bakhtin define como homofonia Roman 1992 coloca que neste tipo de romance as vozes se misturam e as consciências se tornam dependentes da consciência una do autor E sob essa perspectiva Bakhtin 2015 p 6 coloca que o enredo de Dostoievski pode parecer um caos ou um amontoado de matérias estranhas e princípios incompatíveis Logo não se pode tentar compreender o seu estilo a partir do romance monológico Podese dizer inclusive que são paradigmas diferentes e como diferentes devem ser tratados Só à luz da Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 215 meta artística de Dostoievski por nós formulada podem tornarse compreensíveis a profunda organicidade a coerência e a integridade de sua poética BAKHTIN 2015 p 6 Além disso Bakhtin traz à tona a questão do dialogismo Ou seja os elementos das histórias bem como a consciência dos personagens apresentamse em franca contradição Bakhtin 2015 p 49 coloca que o romance polifônico é inteiramente dialógico todos os seus elementos estão em contradição e em contraponto Indo além o dialogismo não apenas é uma técnica ou estilo mas é característica que permeia a linguagem humana E é nessa medida que Dostoiéviski consegue captar com maestria em toda parte as relações dialógicas BAKHTIN 2015 p 49 O que deveria ser o discurso feminista senão polifônico e dialógico No entanto quando eclodem os movimentos feministas entre os anos de 1960 e 1970 já começa o confronto de múltiplos interesses Sem um discurso em comum restaram apenas as diversas correntes dos feminismos feminismo socialista feminismo lésbico feminismo negro feminismo chicano feminismo do 3º mundo Em outras palavras um misto de designações que estilhaçam uma suposta unidade inicial que nunca existiu OLIVEIRA 2014 Nesse contexto dentro daquilo que se entende por feminismo existem diversas vozes as quais muitas vezes acabam não compondo o discurso oficial Isto é conforme Oliveira 2014 levase em conta um discurso generalista que não permite especificar aspectos ou configurações feministas o que só acaba por contribuir para a ressignificação do projeto neoliberal operando sobre as reivindicações feministas No entanto é dever do feminismo deixarse compor pelos vários feminismos que o integram É dever não se tornar um só uma unidade acrítica mas permitir a fluência dos diversos corações selvagens que o compõem Assim a partir de Haraway 1995 p 21 parece que ao contrário da produção de uma ciência permeada por verdades universais devese ir em busca de saberes localizados Isto é apenas uma perspectiva parcial promete visão objetiva Na verdade talvez sejam necessários dois movimentos um de desconstrução desse conhecimento universal e outro de construção de uma epistemologia feminista que leve em conta os mais diversos saberes localizados Ou seja que as vozes componentes dos feminismos sejam igualmente consideradas escutadas compreendidas A complexidade polifônica dos feminismos deve ser entendida como um processo harmônico sem sobreposições Exemplo contrário à polifonia feminista revelase o caso do Oriente perverso e repressor onde parece carecer de um Ocidente que o salve e liberte as mulheres mesmo que essa libertação seja a custo de invasões danos mortes pessoas feridas OLIVEIRA 2014 Como se a verdade da mulher ocidental branca de classe média e economicamente privilegiada fosse a correta para todas as mulheres Esses discursos homofônicos são as expressões Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 216 totalizantes da prática necropolítica do Estado e da sociedade Como dito aqueles que não se enquadram no padrão não podem ser integrador na sociedade restandolhes apenas a morte Essas práticas aniquiladoras além do mais acontecem sempre dentro da Lei uma vez que a distinção entre norma e exceção não pode mais ser visualizada com clareza O direito captura fora ex capere exceção por meio de seu discurso homofônico Dessa forma uma possibilidade de superar esses grandes obstáculos de acordo com Haraway 1995 p 22 é defender um conhecimento situado e corporificado e contra várias formas de postulados de conhecimento não localizáveis e portanto irresponsáveis Do contrário tanto o relativismo quanto a totalização que são ambos truques de deus vão apenas prometer igual e inteiramente visão de toda parte e de nenhum lugar mitos comuns na retórica em torno da Ciência HARAWAY 1995 p 24 Assim há de se pensar uma epistemologia feminista que abarque os feminismos que escute principalmente as vozes dos subjugados Isso porque são elas que têm menor probabilidade de permitir a negação do núcleo crítico e interpretativo de todo conhecimento Elas têm ampla experiência com os modos de negação através da repressão do esquecimento e de atos de desaparição com maneiras de não estar em nenhum lugar ao mesmo tempo em que se alega ver tudo HARAWAY 1995 p 23 Da mesma forma é o que coloca Oliveira 2010 através de uma hifenização dos espaços feministas espaços dialógicos marcados por uma necessidade de estabelecer um diálogo com outras áreas de produção teórica Além do mais o dialogismo também está nas diferentes clivagens gênero classe e raça que tangenciam e permeiam os discursos feministas As vozes que deveriam compor os feminismos além do discurso racista e de supremacia branca da sociedade americana OLIVEIRA 2010 são por exemplo o discurso das mulheres negras as quais ocupam uma situação de subalternidade SPIVAK 1996 o que lhes permite pensar o feminismo a partir de uma posição de marginalidade Essa posição de marginalidade permitelhes criticar as hegemonias racistas classistas e sexistas e criar outras práticas feministas que permitam contrariar estas ditas hegemonias OLIVEIRA 2010 Por óbvio não é apenas essa Como já foi mencionado existem diversas correntes de feminismos e de corpos como um todo que representam realidades diferentes e cada uma delas deve ser levada em consideração uma vez que o cenário contemporâneo é tão complexo quanto o ser humano que o cria Em outras palavras é como coloca Oliveira 2010 acerca da reflexão de Haraway 19851991 no que diz respeito a deixar de fazer sentido falar em nome das mulheres ou assentar a teoria feminista na ideia essencializada de mulher Na verdade a categoria mulheres Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 217 engloba tantas outras categorias dominadas que se intersectam com tal categoria e que ao mesmo tempo partilhamlhe uma história e uma sociologia de dominação OLIVEIRA 2010 Este trabalho justamente pretende propor não apenas a possibilidade de um feminismo polifônico mas a necessidade de se caminhar nessa direção Oliveira chega a mencionar a construção de Um caminho marcado pela polifonia em que as várias vozes localizadas irão construir saberes que por vezes podem parecer contraditórios mas que constituem essa manta de retalhos que será a teoria feminista e o feminismo que deixam de ter sentido no singular e adquiremno apenas no plural OLIVEIRA 2010 p 34 É como Haraway 1995 p 31 bem coloca que o feminismo tem a ver com uma visão crítica consequentemente com um posicionamento crítico num espaço social não homogêneo e marcado pelo gênero de maneira que as traduções serão sempre interpretativas críticas e parciais Assim a polifonia feminista pode ser uma aposta do que esta autora chama de melhores explicações de mundo HARAWAY 1995 p 32 Isto é a polifonia feminista pode representar a soma das visões particulares criando um novo paradigma de racionalidade que seria uma racionalidade posicionada HARAWAY 1995 p 33 Na seara do direito muitas das demandas do discurso feminista majoritário ainda não foram incorporados Por óbvio que houve avanços como a possibilidade do divórcio a lei Maria da Penha cotas para mulheres no cenário político entre outros Mas é importante refletir até que ponto podem ser considerado avanços levando em consideração os outros feminismos que compõem ou deveriam compor a polifonia Ou se esses ditos avanços apenas não acabam por corroborar com uma lógica cúmplice de múltiplas formas de opressão OLIVEIRA 2014 Assim é fundamental a identificação de feminismospóscoloniais para se ter consciência de qual caminho está sendo trilhado e em qual direção ele vai levar a humanidade e principalmente a periferia Esse talvez seja um primeiro passo para se pensar um novo papel civilizador do direito não no sentido de civilizar os selvagens mas de reconhecer a selvageria de cada um de nós para que se possa viver em conjunto sem se utilizar da violência Em outras palavras de colocar um limite ao poder soberano de permitir uma civilização contra a barbárie CONSIDERAÇÕES FINAIS A literatura pode ser uma maneira de trocar as lentes e enxergar o direito e a vida de outra maneira Ainda pode ser forma de acessar realidades as quais são inacessíveis em muitos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 218 contextos Ao fim e ao cabo a literatura pode desembrutecer o ser humano Nessa medida é que esse trabalho pretendeu trazer a obra de uma mulher cujo trabalho é referência brasileira e mundial Refletir acerca do significado que teve no seu tempo e na contemporaneidade Perto do Coração Selvagem traz à tona além de características muito nobres da literatura como o constante fluxo de consciência e os momentos de epifania questões da mulher seus entraves internos externos os estereótipos femininos Joana representa sem dúvida a história de muitas Faz também pensar que na época em que foi escrito transgrediu as formas como a mulher era representada Assim acreditase que por mais que a literatura seja apenas um caminho e não seja garantia da formação de pessoas sociedades e em última análise juristas melhores é uma aposta para pensar nas Joanas e além delas Se antes sequer Joana tinha representação hoje além dela as Marias Teresas e Anas também devem ser ouvidas Ou seja pode ser uma maneira de trazer à consciência questões de uma parcela de mulheres Atentando por óbvio que o corpo social é complexo e com tantos outros corações selvagens Contra tais corações selvagens encontrase um Estado asfixiante do direito e da sociedade Percebese com a análise de projetos de lei como Pacote Anticrime como o direito cumpre um papel de exclusão e de captura de parcelas não integráveis à sociedade Por isso pode ser a literatura um passo para se ler as entrelinhas do que está posto pelo direito Fazendo perceber que a relação jurídica é assim a relação de soberania que abandona os selvagens ao julgo do poder soberano ao seu poder de morte O direito no entanto para além de um instrumento do necropoder é poder ser um agente civilizador da humanidade colocando limites aos desejos e apetites irrestritos de cada um Assim buscase explorar uma fuga ao necropoder garantindo que todas as vozes da comunidade sejam ouvidas de forma que não haja um dentro e fora da Lei Nessa medida é que reconhecidas as vozes e um direito que pode ser silenciador entendese ser essencial pensar em diferentes maneiras de se produzir o conhecimento a fim de desenvolver teorias que contemplem a complexidade humana de maneira justa para todos Propôsse então nesse trabalho uma polifonia feminista Isto é a partir da análise dos conhecimentos parciais propostos por Haraway somado ao conceito de polifonia e dialogismo colocado por Bakhtin sob o pano de fundo dos corações selvagens que pulsam a realidade Refletiuse sobre a necessidade de coexistência das mais diversas vozes Não há como pensar em uma epistemologia feminista que sobrepõe uma realidade sobre as demais A contemporaneidade é complexa e dialógica e dessa forma deve ser tratada Em suma ao se trazer Perto do coração selvagem para o campo do direito e dos feminismos buscouse em última análise desbrutalizar um ser humano já tão embrutecido Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 219 pelos grandes entraves dos tempos contemporâneos Como ponto inicial trazer à tona um dos feminismos e a partir dele pensar que existem tantos outros corações selvagens pulsantes espalhados Além de muitas Clarices denunciando essas realidades e buscando seu espaço no mundo REFERÊNCIAS AGAMBEN Giorgio Estado de exceção Homo sacer II 1 2 ed São Paulo Boitempo 2004 AGAMBEN Giorgio Homo sacer o poder soberano e a vida nua I 2 ed Belo Horizonte Editora UFMG 2010 AGAMBEN Giorgio Signatura rerum sobre o método 1 ed São Paulo Boitempo 2019 BAKHTIN Mikhail Problemas da poética de Dostoiévski 5 ed Rio de Janeiro Forense Universitária 2015 BARIFOUSE Rafael O que são e como agem as milícias acusadas de matar Marielle Franco BBC News Brasil São Paulo 15 dez 2018 Disponível em httpswwwbbccomportuguesebrasil46559926 Acesso em 24 ago 2019 BRASIL SENADO FEDERAL Entidades divulgam Mapa da Violência 2015 Homicídio de Mulheres no Brasil Brasília 09 nov 2015 Disponível em httpswww12senadolegbrinstitucionalprocuradoriacomumentidadesdivulgammapada violencia2015homicidiodemulheresnobrasil Acesso em 24 ago 2019 CARAMANTE A STABILE A COELHO L Exército dispara 80 tiros contra carro e mata músico de 51 anos no Rio El País Brasil sl 09 abr 2019 Disponível em httpsbrasilelpaiscombrasil20190408politica1554727102750351html Acesso em 24 ago 2019 FOUCAULT Michel Em defesa da sociedade curso no Collège de France 19751976 2 ed São Paulo WMF Martins Fontes 2010 HARAWAY Donna Saberes localizados a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial Cadernos Pagu 5 Núcleo de Estudos de Gênero PaguUnicamp 1995 p 742 Disponível em httpwwwiegufscbradmindownloadsartigos31102009083336harawaypdf Acesso em 13 mai 2019 IBGE Censo demográfico 2010 características da população e dos domicílios resultados do universo Disponível em httpsbibliotecaibgegovbrvisualizacaoperiodicos93cd2010caracteristicaspopulacao domiciliospdf Acesso em 24 ago 2019 INSTITUTO PATRÍCIA GALVÃO Dados da segurança pública mostram aumento de feminicídios no Brasil em 2017 Sl 2018 Disponível em Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 220 httpsdossiesagenciapatriciagalvaoorgbrviolenciaemdadossegurancapublicamostram aumentodefeminicidiosnobrasilem2017 Acesso em 24 ago de 2019 LISPECTOR Clarice Perto do Coração Selvagem Rio de Janeiro Rocco 1998 MBEMBE Achille Necropolítica biopoder soberania estado de exceção e política de morte São Paulo n1 2018 OLIVEIRA João Manuel de Os feminismos habitam espaços hifenizados a localização e interseccionalidade dos saberes feministas Ex æquo nº 22 2010 pp 2539 Disponível em httpwwwscielomecptscielophpscriptsciarttextpidS087455602010000200005 Acesso em 13 mai 2019 OLIVEIRA João Manuel de A necropolítica e as sombras na teoria feminista Ex æquo nº 29 2014 pp 6982 Disponível em httpwwwscielomecptpdfaeqn29n29a06pdf Acesso em 13 mai 2019 ROMAN Artur Roberto O conceito de polifonia em Bakhtin o trajeto polifónico de uma metáfora Letras Curitiba n4142 p 195205199293 Editora da UFPR SCHMITT Carl O conceito do político Lisboa Edições 70 2015 SCHMITT Carl Teologia política Belo Horizonte Del Rey 2006 SCHMITT Carl O guardião da constituição Belo Horizonte Del Rey 2007 SCHMITT Carl O nomos da Terra no jus publicum europæum Rio de Janeiro Contraponto Editora PUC Rio 2014 SCOTT Joan W Gênero uma categoria útil de análise histórica Educação e Realidade v 20 n 2 p1995 Disponível em httpwwwdireitompprmpbrarquivosFileSCOTTJoanGeneropdf Acesso em 30 de maio de 2019 SPIVAK Gayatri In other worlds New York Routledge 1996 URIBE G FERNANDES T Bolsonaro diz que cada uma das duas ministras vale por dez homens Folha de São Paulo Brasília 8 mar 2019 Disponível em httpswww1folhauolcombrcotidiano201903bolsonarodizquecadaumadasduas ministrasvalepordezhomensshtml Acesso em 24 de ago de 2019 Folha de São Paulo Veja o que se sabe até agora sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco Disponível em httpswww1folhauolcombrcotidiano201903entenda aoperacaolumeshtml Acesso em 24 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 221 A CAÇA ÀS BRUXAS NÃO TERMINOU APONTAMENTOS SOBRE AS RELAÇÕES ENTRE CAPITALISMO E OPRESSÃO1 DAS MULHERES A PARTIR DAS OBRAS DE SILVIA FEDERICI E CAROLE PATEMAN Edegar Fronza Junior2 RESUMO O aumento da violência contra às mulheres especialmente na América Latina atingiu dados alarmantes O Brasil ocupa o quinto lugar no ranking dos países com maior taxa de feminicídio contabilizando cerca de três mulheres assassinadas por dia Apesar de uma legislação avançada sobre o tema ainda há sérios problemas estruturais de apoio que não dão conta da demanda dos casos além é claro de um contexto social profundamente desigual amparado por uma economia neoliberal e uma política reducionista da qual as mulheres são os principais alvos O objetivo central desse artigo é examinar duas obras significativas para o arcabouço literário feminista a saber Calibã e a Bruxa da italiana Silvia Federici e O Contrato Sexual da britânica Carole Pateman no intuito de identificar aproximações entre as duas obras no que tange à crítica ao capitalismo e ao patriarcado moderno a partir de uma perspectiva feminista Ao mesmo tempo o artigo busca evidenciar como o capitalismo é estruturalmente excludente e altamente opressivo em relação às mulheres desde a sua origem até hoje O artigo se divide em três seções a primeira seção discute o papel da propriedade privada que começa a se estabelecer na Idade Média e sua importância para afirmação do contrato sexual a segunda seção problematiza a dicotomia públicoprivado destacando a reestruturação dos papéis de gênero na Europa a partir do século XVI motivada pelo capitalismo a terceira seção trata da relação entre patriarcado do salário e contrato sexual como faces da dominação patriarcal promovida pelo avanço do capitalismo PalavrasChave Capitalismo Patriarcado Perspectiva feminista Violência Crítica INTRODUÇÃO Estamos assistindo cotidianamente em todo o mundo a ascensão de atitudes e políticas que ameaçam seriamente os regimes democrático Noticiários jornais e a mídias sociais hegemônicas exibem posicionamentos nacionalistas xenófobos discursos intolerantes que defendem posicionamentos discriminatórios e racistas refletindo claramente uma postura conservadora e altamente nociva à integração social atingindo diretamente grupos historicamente excluídos e de modo particular as mulheres As justificativas alegadas para a exclusão das mulheres vão desde argumentos baseados no discurso biológico que afirmam a natureza inferior do sexo feminino até um discurso 1 Consideramos a opressão como um dos usos da violência com a finalidade de demonstrar autoridade atos de tirania tratando um determinado indivíduoos ou grupoos com crueldade humilhação exclusão 2 Doutorando do Programa de PósGraduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina com pesquisa na área de ética e filosofia política Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina 2018 Bolsista CAPES edegarfronzagmailcom Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 222 complexo de matriz neoliberal que associa diferentes contextos de justificação a uma lógica baseada na produção na competição e na luta econômica Essa nova razão do mundo termo utilizado por Dardot e Laval não destrói apenas regras instituições e direitos mas também produz certos tipos de relações sociais que criam maneiras de viver moldando inclusive nossa subjetividade atingindo diretamente nossa forma de nos comportarmos e relacionarmos conosco e com os outros A racionalidade neoliberal tem como pressuposto fundamental a generalização da concorrência como norma de conduta e a ideia do homem como empresário de si mesmo DARDOT LAVAL 2016 p 133 As obras analisadas aqui possuem um itinerário comum pois ao apresentarem a gênese histórica e conceitual do desenvolvimento do capitalismo alertam para o fato de que a discriminação e a violência contra as mulheres é fruto de uma construção social que se constitui a partir das diferenças sexuais com a finalidade de cumprir determinadas funções sociais políticas e econômicas Federici3 em Calibã e a Bruxa 2017 a partir de um feminismo interseccional evidencia o não lugar das mulheres na história do pensamento destacando a Caça às Bruxas como marco histórico central para a politização e normatização tanto dos corpos femininos como da sexualidade Ao mesmo tempo destaca que sem o trabalho doméstico e sem a força reprodutiva das mulheres seria impossível o desenvolvimento da Modernidade pois foram elas que asseguraram e sustentaram a força de trabalho do capitalismo A obra de Federici não apenas reorienta nossa compreensão sobre o capitalismo de forma a dialogar com os desenvolvimentos econômicos e sociais contemporâneos mas busca identificar os processos históricos pelos quais as relações de trabalho de subordinação e domesticação das mulheres foram construídas Já Pateman4 em O Contrato Sexual 1993 se propõe a fazer uma desconstrução da teoria política contratualista5 tendo como objetivo demonstrar que a Modernidade se originou 3 Silvia Federici é uma professa e intelectual militante feministas marxista autônoma Nasceu em Parma na Itália em 1942 se mudou para os Estados Unidos em 1967 onde foi cofundadora do Coletivo Internacional Feminista participou também da Campanha por um salário para o trabalho doméstico além de contribuir para o Coletivo notas da meianoite Nos anos 80 foi professora na Nigéria onde contribui na organização feminista Mulheres na Nigéria e na criação do Comitê para liberdade acadêmica na África Atualmente é professora emérita da Universidade de Hofstra em Nova York Além de Calibã e a Bruxa escreveu o livro Revolução em ponto zero 4 Carole Pateman nasceu em Sussex em 1940 obteve seu doutorado pela Universidade de Oxford em 1990 e foi a primeira mulher a integrar o cargo de presidência da Associação Internacional de Ciência Política Foi professora da Universidade da Califórnia em Los Angeles Suas obras abordam questões relativas à democracia participação política críticas ao liberalismo à dominação patriarcal e ao contrato social entre gêneros 5 O contratualismo em sentido amplo compreende as teorias políticas que vêem a origem da sociedade e o fundamento do poder político num contrato ou seja num acordo tácito ou expresso entre os indivíduos que os faria deixar o estado de natureza dando início ao estado social e político O contrato social se caracteriza por ser um acordo feito entre homens preferencialmente brancos burgueses e cristãos pois apenas a eles é assegurado Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 223 de uma ficção política expressa pelo contrato Segundo ela o contrato social está alicerçado sobre o contrato sexual que estabeleceu o patriarcado moderno e legitimou a dominação sistemática dos homens sobre as mulheres O debate político segundo Pateman precisar abandonar as histórias das origens do contratualismo saindo do campo dessa perspectiva do indivíduo proprietário pois uma nova ordem social livre não pode ser de ordem contratual O objetivo principal6 desse artigo será destacar as possíveis aproximações entre a obra de Federici e Pateman a partir de três temas fundantes tendo em vista a crítica ao capitalismo neoliberal e a violência contra as mulheres a saber i a privatização da terra ii a separação públicoprivadodoméstico iii o patriarcado moderno e suas facetas o contrato de casamento e o patriarcado do salário As páginas que se seguem buscarão evidenciar como a História e a própria construção dos conceitos teóricos que dão apoio aos discursos e práticas estão permeados por relações de poder que por vezes ocultam personagens e tramas com objetivos ideológicos de dominação e opressão Reconstruir esse caminho é importante pois a partir da aproximação dessas obras podemos lançar luzes sobre os desafios que as mulheres enfrentam ainda hoje numa época de forte crise econômica incerteza social e realinhamento político 1 A PRIVATIZAÇÃO DA TERRA O QUE AS MULHERES TÊM A VER COM ISSO Num primeiro momento a leitoraleitor poderia se questionar mas afinal de contas o que a privatização da terra tem a ver com as mulheres Que pergunta estapafúrdia é essa Veremos que as mulheres e a propriedade privada têm uma correlação estreita nas obras de Federici e Pateman sendo a privatização da terra um fato central para o estabelecimento do contrato social como importante instrumento de dominação dos homens proprietários sobre as mulheres consideradas suas posses Segundo Federici 2017 p 133 grande parte da privatização da terra se deu por meio dos cercamentos ou seja da expropriação dos trabalhadoresas de suas terras coletivas que se iniciou na Europa a partir do século XV e nas Américas a partir do século XVIII O principal objetivo dos fazendeiros ricos e da Igreja era eliminar o uso comum das terras e expandir suas propriedades o status de pessoa e cidadão Os principais teóricos do contrato incluem nomes importantes como Hobbes Locke Rousseau Kant Rawls dentre outros 6 O objetivo não é fazer uma análise minuciosa das obras em questão mas chamar atenção para determinados temas que possibilitarão estabelecer debates e aproximações significativas entre as duas obras Por isso em algum sentido esse artigo pressupõe certa familiaridade com ambas as obras e autoras referidas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 224 O argumento central em favor dos cercamentos era que a terra estava esgotada e se permanecesse nas mãos dos camponeses ignorantes deixaria de produzir Os cercamentos tornariam a terra mais produtiva o que levaria à expansão do abastecimento de alimentos Todavia não foi isso o que aconteceu A privatização da terra e a comercialização da agricultura embora tenha aumentado a exportação representou para a população mais pobre um período de dois séculos de fome O uso comum das terras era muito mais efetivo pois possibilitava o cultivo de várias faixas de campo permitia um planejamento manejável da terra além de proporcionar uma forma democrática do seu uso onde as decisões de plantar colher drenar pântanos e demais atividades eram tomadas pelos camponeses em assembleia As terras comunais eram importantes especialmente para os pequenos camponeses que podiam ter acesso a esses locais com a finalidade de alimentar seus animais extrair madeira frutos silvestres e ervas ou ainda pescar em suas lagoas em espaços abertos comuns Além disso as terras comunais representavam um significativo espaço de socialização e cooperação no período précapitalista e eram o centro da vida social para muitas mulheres o lugar onde se reuniam trocavam notícias e recebiam conselhos Segundo Federici as terras comunais tinham uma importante função social de modo particular para as mulheres pois tendo menos direitos sobre a terra e menos poder social eram mais dependentes das terras comunais para a subsistência a autonomia e a sociabilidade FEDERICI 2017 p 138 As mulheres certamente foram as mais atingidas com os cercamentos de terra com o consequente adendo de que a partir da privatização da terra houve também uma monetarização da vida como um todo em que somente a produção para o mercado passava a ser criadora de valor moral e econômico enquanto a reprodução biológica era completamente desconsiderada inclusive como trabalho Iniciouse aí uma importante e duradoura distinção entre produção e reprodução fundamentais para que o capitalismo não sucumbisse na Europa pósMedieval A privatização da terra significou a morte de um sentido comum de vidas compartilhadas e de cooperação presente nas pequenas aldeias e vilarejos essa espécie de comunismo primitivo feudal que dava espaço significativo às mulheres e sua participação no cuidado da terra e dos animais que envolvia diferentes saberes e conhecimentos passados de geração em geração também acabava por ser exterminado pois as mulheres foram desde aí confinadas ao âmbito doméstico perdendo a posse da terra e a posse sobre si mesmas É nesse contexto que Pateman faz sua crítica ao retomar a formulação de Locke de que todo homem tem uma propriedade em sua pessoa cf PATEMAN apud LOCKE p 31 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 225 Locke no Segundo Tratado sobre o governo 1967 p 67 trata sobre o tema da propriedade privada e uma das questões importantes para a crítica feminista é justamente o das exclusões causada pelo contrato social Isso por que segundo o filósofo inglês nem todos os indivíduos participam do pacto no estado de natureza Locke assume a exigência de uma racionalidade que lhe permite afastar crianças mulheres e trabalhadores baseado numa compreensão de racionalidade deficiente ou seja a ideia de que haveria em crianças e mulheres certa imaturidade causada por uma debilidade intelectual inata MIGUEL 2016 p 34 A ideia de que os indivíduos são proprietários em sua pessoa é fundamental para entendermos a dominação classista e patriarcal que se estabelece na Modernidade mas que ao mesmo tempo é fruto do mundo prémoderno A questão central da discussão é justamente a continuação dos pressupostos trazidos pela privatização da terra iniciada no Medievo A mulher é desconsiderada enquanto proprietária de qualquer coisa inclusive de si mesma tornandose propriedade de seu marido tanto juridicamente como sexualmente e a esse respeito Pateman comenta que o marido detinha a propriedade da pessoa de sua esposa e o homem era um proprietário e um senhor absoluto somente se ele pudesse fazer o que quisesse com o seu bem PATEMAN 1989 p 184 A doutrina do contrato implica uma única origem para o direito político o patriarcado Embora se insista na ficção de que ambos os sexos são naturalmente livres e iguais os teóricos do contrato com exceção de Hobbes afirmam que o direito dos homens sobre as mulheres tem uma base natural pois somente os homens são indivíduos livres e iguais O indivíduo do contratualismo é um indivíduo possuidor ele possui o seu corpo e suas aptidoes como propriedades exatamente como ele possui propriedades materiais PATEMAN 1993 p 87 A partir dessa perspectiva cada indivíduo deve avaliar o mundo e os outros indivíduos tendo como ponto de partida seu interesse pessoal Desaparece o sentido da comunidade tão caro a uma parte do mundo medieval surge o indivíduo autossuficiente autodeterminado e autorreferente da Modernidade O contrato pressupõe necessariamente que as partes envolvidas se reconheçam como pessoas e proprietárias não apenas como proprietários em potencial de si mesmas mas como proprietárias reais em termos materiais Os indivíduos se reconhecem como proprietários ao fazerem trocas que supostamente beneficiariam ambas as partes o que parece um equívoco tendo em vista que se uma parte está em posição inferior portanto não há outra escolha a não ser aceitar a proposta da parte superior7 7 Thompson ao tratar do contrato de casamento afirma Um contrato Onde estão as características dos contratos dos contratos imparciais e justos nessa transação Um contrato implica a concordância voluntária de ambas as Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 226 A passagem8 do feudalismo para o capitalismo demostra que uma das trocas importantes para a manutenção deste último é a perda da posse da terra e consequentemente da autonomia feminina A troca elemento imprescindível no contrato social9 não se refere apenas aos bens materiais mas também à propriedade no sentido singular que implica a troca de obediência por proteção10 Ora não foi justamente isso o que aconteceu com o avanço do capitalismo na Europa e posteriormente nas Américas As mulheres expropriadas de suas terras eram afastadas da possibilidade de trabalhar e para não morrerem de fome voltavam para a casa de seus pais o que representava uma verdadeira desonra para sua família ou tornavamse prostitutas ou ainda tornavamse esposas subservientes aos seus maridos através do contrato de casamento Totalmente desprovidas do status de pessoa o casamento era sua única alternativa frente ao seu destino trágico Ainda hoje as mulheres continuam a ter sistematicamente menos controle sobre uma série de recursos produtivos de modo particular o acesso à propriedade da terra No Brasil os únicos dados sobre propriedade fundiária por gênero podem ser encontrados no levantamento nacional de agricultores comerciais definidos como aqueles que possuem 50 hectares ou mais de terra Nessa amostra de 36664 proprietários apenas 11 eram de mulheres isso sem considerar que o questionário não permitia a opção dos proprietáriosas relatarem se sua terra era conjunta com os cônjuges potencialmente subestimando a proporção de mulheres que são legalmente proprietárias cf DEERE LÉON 2003 p 107 A posse de terra pelas mulheres é importante para estabelecer uma igualdade de gênero real e não meramente formal Por trás do tema da posse da terra está a ideia de que as mulheres teriam maior poder de barganha dentro da família e da sociedade Há um corpo crescente de estudos na América Latina demonstrando que as proprietárias de terra que têm maior escolha partes concordantes Podem ao menos as partes o homem e a mulher alterarem os termos por meio de um acordo no que se refere à indissolubilidade e à desigualdade desse suposto contrato Não As mulheres foram consultadas acerca dos termos desse suposto contrato THOMPSON 1970 p 5556 tradução nossa 8 Federici esclarece que a passagem do feudalismo para o capitalismo não é meramente transitória cronologicamente mas que a expropriação da terra é um fato imprescindível para o desenvolvimento do capitalismo às custas da exclusão das mulheres 9 Segundo os contratualistas de modo particular Hobbes os indivíduos se reconhecem como proprietários ao fazerem uso recíproco ou ao trocarem suas propriedades A troca é a essência do contrato Cada indivíduo ganha com ela caso contrário ninguém iria alienar sua propriedade desse modo a troca se torna equitativa A grande questão feita pelos críticos socialistas e as feministas ao tratarem do contrato de casamento se refere a ideia de que o simples fato de fazerem um contrato não implica que a troca seja equitativa Isso por que se há desvantagem de uma das partes não há como fazer uma escolha diferente da proposta pelo contratante que se encontra em posição superior cf PATEMAN 1993 p 90 10 Cicely Hamilton em O casamento como um negócio afirma que o casamento era o único meio para que as mulheres ganhassem o seu sustento o casamento é essencialmente um empreendimento comercial ou de troca HAMILTON 1981 p 27 Todavia no caso das mulheres não havia escolha quanto ao trabalho mas uma troca da qual eram forçadas a participar Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 227 de parceiros no casamento desempenham um papel maior na tomada de decisões referentes à renda e produção além disso a posse de terras está associada a menores taxas de violência doméstica se comparadas às mulheres que não têm propriedade cf DEERE LÉON 2003 p 107 A diferença de gênero em relação à propriedade da terra na América Latina é bastante significa envolvendo fatores que vão desde a preferência dada aos homens na herança privilégio masculino no casamento preponderância do sexo masculino tanto nos programas comunitários como nos programas estatais de distribuição de terras até o viés de gênero no próprio mercado fundiário As discussões acerca da desigualdade de gênero estruturada socialmente já estão presentes tanto na obra de Federici como na de Pateman acerca do projeto capitalista iniciado na Idade Média através da expropriação das terras comunais e do afastamento das mulheres do trabalho campesino que culminará na instituição do contrato sexual através do contrato de casamento O confinamento das mulheres à esfera doméstica a desvalorização do seu trabalho além de sua subordinação à tarefa de meras reprodutoras serão elementos cruciais para que o projeto capitalista possa alcançar êxito tanto na Europa como nas Américas Isso porque ao criar distinções como o públicoprivado o capitalismo encobrirá com base numa suposta neutralidade sexual e legal o poder presente na vida sexual íntima familiar considerada estritamente da esfera privada portanto sem nenhuma relação com o público Na segunda seção discutiremos mais detalhadamente a questão da domesticação das mulheres e a redefinição entre público e privado tão cara à lógica capitalista 2 O PESSOAL É POLÍTICO MULHERES E A REDEFINIÇÃO ENTRE PÚBLICO E PRIVADO A discussão acerca da dicotomia entre público e privado é central para grande parte da escrita e luta feminista contemporânea embora algumas feministas tratem a dicotomia como algo universal transhistórico e mesmo transcultural grande parte da crítica feminista voltase justamente para a distinção entre essas duas esferas bem como para sua oposição frutos do desenvolvimento do capitalismo e em certa medida do patriarcalismo liberal A separação criada entre públicoprivado pode ser explicada através do longo processo de degradação social que acontece entre os séculos XVI e XVIII Nesse período é possível Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 228 observar uma constante erosão dos direitos das mulheres11 dentre os quais a impossibilidade de realizar atividades econômicas foi um dos principais Assim em vários países podemos encontrar mulheres perdendo seu direito de fazer contratos ou de se representarem nos tribunais sendo proibidas de viverem sozinhas ou com outras mulheres e no caso das mais pobres inclusive impossibilitadas de morar com suas famílias Além da desvalorização econômica e social as mulheres começam a sofrer um processo de infantilização Surge uma nova política sexual na Europa a partir de duas tendências Por um lado construíramse novos cânones culturais que maximizavam as diferenças entre as mulheres e os homens criando protótipos mais femininos e mais masculinos Por outro lado foi estabelecido que as mulheres eram inerentemente inferiores aos homens excessivamente emocionais e luxuriosas incapazes de se governar e tinham que ser colocadas sob o controle masculino FEDERICI 2017 p 201202 A ideia de que as mulheres são selvagens insubordinadas pouco razoáveis portanto inferiores física moral e psicologicamente falando aparece tanto na literatura da época como na filosofia12 e nos discursos públicos A maneira com que homens e mulheres são situados de forma diferenciada dentro das esferas pública e privada é uma questão complexa alicerçada na crença de que a natureza das mulheres é caracterizada de tal forma que elas devem se submeter aos homens e seu lugar deve ser restrito à esfera domésticaprivada enquanto os homens habitam as duas esferas Locke foi um dos filósofos a oferecer as bases teóricas da separação públicoprivado quando no Segundo Tratado 1967 p 56 faz a distinção entre poder político e poder paterno contra às acusações de Filmer Tal distinção no entanto não incluía a esfera privada concedendo aos maridos controle sobre suas esposas com base numa suposta natureza superior A teoria de Locke opõe claramente esfera pública e privada com base na subordinação natural das mulheres aos homens Todavia surgem alguns questionamentos importantes a serem destacados como as mulheres podem ser consideradas livres e iguais se são excluídas de 11 Ao utilizar o termo direito das mulheres me refiro a algumas concessoes dadas às mulheres e não em si aos direitos jurídicos o que ocorrerá mais tardiamente especialmente a partir do final do século XIX e início do século XX com as diferentes ondas do Movimento Feminista 12 No Primeiro Tratado Locke apesar de não considerar o poder do homem sobre a mulher no âmbito político explica que todo marido detém de mandar nas questoes do domínio privado em sua família como proprietário dos bens e da terra e de ter sua vontade colocada acima da de sua esposa em todas as questoes de domínio comum LOCKE 1967 livro I 48 Rousseau afirma que a desigualdade entre homem e mulher é natural por isso quando uma mulher se queixa a respeito da injusta desigualdade que o homem impoe não tem razão essa desigualdade não é uma instituição humana ou pelo menos obra do preconceito e sim da razão ROUSSEAU 1979 p 308 Kant seguindo a mesma intuição em seus Escritos Políticos afirma que as mulheres em geral não possuem personalidade civil pois sua existência é puramente instintiva Elas devem portanto ser mantidas bem longe do Estado e submetidas aos seus maridos os senhores delas no casamento KANT 1970 p 139 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 229 participar do mundo público Como podem ser consideradas iguais se apenas em partes são consideradas indivíduos capazes de dar seu consentimento somente no contrato de casamento Que contrato é esse onde não há sequer discussão dos seus termos mas uma aceitação passiva por parte das mulheres O capitalismo assim como boa parte do discurso da Modernidade só foi possível porque as mulheres foram confinadas à esfera doméstica através de uma série de mecanismos sutis que paulatinamente foram sendo aplicados não apenas às mentes mas também a seus corpos Foucault em sua obra Vigiar e Punir apesar de não tratar das mulheres diretamente criando um sujeito universal assexuado conforme Federici já havia destacado em sua crítica descreve como o advento da Modernidade reinventou uma noção de poder baseado no disciplinamento dos corpos O que Foucault chama de docilização dos corpos nada mais é do que o controle minucioso das operações do corpo que realizam a sujeição das suas forças e lhe impõem uma relação de docilidadeutilidade que o torna tanto mais obediente quanto mais útil justamente o que começa a acontecer na Europa com a instauração do capitalismo e nas Américas através das plantations FOUCAULT 1999 p 119 Ora Foucault 1999 p 118 nos alerta para uma microfísica do poder que se encontra nos pequenos detalhes Essas pequenas astucias que foram incorporadas ao discurso da Modernidade e que se traduziram diretamente em dicotomias como naturezacultura podermoralidade razãoemoção particularuniversal continuam a ser reproduzidas na sociedade patriarcal e utilizadas como justificativas para fundamentar a desigualdade de gênero É por este motivo que o slogan feminista o pessoal é político continua a ser significativo ao tratarmos das ambiguidades entre público e privado na sociedade capitalista A esse respeito Okin13 comenta O que então outras feministas assim como as mais radicais querem dizer com o pessoal é político Nos queremos dizer primeiramente que o que acontece na vida pessoal particularmente nas relações entre os sexos não é imune em relação à dinâmica de poder que tem tipicamente sido vista como a face distintiva do político E nós também queremos dizer que nem o domínio da vida doméstica pessoal nem aquele da vida nãodoméstica econômica e política podem ser interpretados isolados um do outro OKIN 2008 p 314 A ideia de que o pessoal é político traz à tona diferentes discussões que problematizam as fronteiras entre o que é público e o que é privadodoméstico levando em consideração os diferentes contextos nos quais as mulheres estão inseridas As feministas chamam atenção para 13 Apesar de Okin compartilhar da crítica públicoprivadodoméstico com Federici e Pateman ela não compartilha com as mesmas a crítica ao ideário antiliberal Okin é uma feminista que defende valores liberais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 230 o fato de que as circunstâncias pessoais são estruturadas por fatores públicos como leis o status de pessoa a divisão sexual do trabalho a atenção às crianças e aos trabalhos da casa demonstrando que os problemas supostamente pessoais na verdade só podem ser resolvidos por meios políticos A dicotomia públicoprivadodoméstico segundo Pateman é legado do liberalismo patriarcal que juntamente com o capitalismo redefiniram as funções da mulher como a esposa dependente economicamente do seu marido Todavia a história nem sempre foi essa Em Calibã e a Bruxa Federici 2017 p 144 deixa claro o modo como a pauperização das populações campesinas possibilitou uma marginalização das mulheres na Europa a partir do século XVI e ainda como as mulheres passaram a tornarse dependentes de seus maridos sendo desconsideradas em seus trabalhos e confinadas à tarefa de meras reprodutoras Ainda hoje a ideia de uma identificação das mulheres à esfera doméstica é reforçada por algumas organizaçoes antifeministas retomando o argumento da natureza propria de cada gênero Não faltam exemplos no contexto nacional Segundo Felippe Chaves palestrante do 1º Congresso Antifeminista do Brasil um rapaz so aprende a ser homem a partir da companhia de outros homens e nunca de uma mulher o que pode criar um indesejado homemfeminino A mulher dá à luz e o homem tem maior força física por um motivo claro a proteção dela e da criança ÉPOCA 2018 n p Segundo ele o fato de existirem mais mulheres em um curso de enfermagem e mais homens na engenharia reforça o argumento da natureza propria de cada sexo e ao mesmo tempo a separação de cada gênero com base no pressuposto biológico Os movimentos antifeministas vêm crescendo em todo país carregados de um discurso conservador e reacionário difundido de modo particular através das redes sociais Há um grande número de comunidades na internet sobre o tema que se amparam em lemas como homens e mulheres são diferentes sim e têm de ser tratados como tal atualmente não temos mais as mesmas desigualdades do passado14 o que grosso modo pode ser facilmente contestado com uma rápida investigação acerca dos dados referentes à desigualdade de gênero nas diferentes instâncias sejam elas políticas econômicas sociais ou culturais em nosso país e no mundo A distinção públicoprivadodoméstico foi fundamental para que se estabelecesse uma nova divisão sexual do trabalho na família e ao mesmo tempo fora dela na verdade a instauração do capitalismo na Europa só foi possível porque além dos cercamentos do trabalho 14 Mais informações sobre o assunto KONCHINSK 2019 n p MULHERES CONTRA O FEMINISMO 2019 n p além é claro das comunidades nas redes sociais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 231 assalariado e a perseguição dos hereges associado ao descobrimento das terras no Novo Mundo e a exploração de mão de obra barata as relações sociais na Europa e para além dela foram revistas incluindo a própria definição de trabalho e família o que examinaremos mais detalhadamente na próxima seção 3 PATRIARCADO DO SALÁRIO E CONTRATO DE CASAMENTO DUAS FACES DE UMA MESMA MOEDA A DOMINAÇÃO PATRIARCAL O patriarcado do salário conceito utilizado por Federeci em sua obra referese às políticas que a classe capitalista introduziu com o fim de disciplinar reproduzir e expandir o proletariado iniciando com o ataque contra as mulheres e resultando na construção de uma nova ordem patriarcal FEDERICI 2017 p 129 A família nuclear surge no período de acumulação primitiva como complementação do mercado sobretudo para a propagação da disciplina capitalista e o ocultamento do trabalho das mulheres As diferentes figuras que povoam um conceito bastante alargado de família entre os séculos XVII e XVIII foram desaparecendo dando espaço ao casal composto por marido e mulher como elementos centrais dessa nova ordem A nova configuração familiar burguesa era uma espécie de micro Estado ou uma micro Igreja em que o marido era um dos representantes do Estado e de Deus portanto a única autoridade na casa Paulatinamente a mulher começa a perder muito do seu poder e é excluída dos negócios familiares Segundo Federici a forma de dominação patriarcal se dava de maneira distinta nas classes sociais pois enquanto na classe alta era a propriedade que dava ao marido o poder sobre a esposa e seus filhos nas classes mais baixas a exclusão das mulheres do recebimento de salário concedia ao proletariado masculino um poder semelhante sobre suas mulheres FEDERICI 2017 p 194 Justamente nesse período o contrato de casamento passa ser algo constitutivo das relações domésticas Pateman recorda que os contratos domésticos antigos entre um senhor e seu escravo civil e entre um senhor e seu servo eram contratos de trabalho Segundo a filósofa britânica o contrato de casamento é também um tipo de contrato de trabalho pois tornarse esposa implica tornarse donadecasa ou seja a esposa é alguém que trabalha para seu marido no lar conjugal PATEMAN 1989 p 176 As relações entre o senhor e o servo eram desiguais e deram lugar à relação entre o patrão e o trabalhador A produção com o advento da lógica de mercantilização capitalista passou da esfera familiar para as empresas e os empregados domésticos do sexo masculino tornaramse trabalhadores Essa virada paradigmática é importante pois destaca o modo como Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 232 o empregado assalariado apesar de encontrarse na mesma condição civil de seu patrão no domínio público mantém as mesmas relações de dominação e subordinação da esfera pública na esfera doméstica a esposa tornandose serva e posteriormente escrava tendo por base o contrato de casamento O contrato de casamento reflete a natureza patriarcal do contrato social que se estrutura a partir de uma divisão sexual do trabalho O socialista William Thompson ao tratar sobre a origem do casamento argumenta que a maior força dos homens teria sido auxiliada pela sua astúcia o que possibilitou a escravização das mulheres PATEMAN apud THOMPSON p 179 O casamento marca um estado primitivo de escravidão pois até o final do século XIX a condição civil e legal de uma esposa se assemelhava a de um escravo ou na melhor das hipóteses a de um servo A ilustração mais clara desse fato é que a partir de 1553 prolongando se até o século XX havia vendas de escravos e mulheres casadas na Inglaterra nas quais as mulheres ficavam com uma corda amarrada a seu pescoço assim como o gado até serem leiloadas PATEMAN 1989 p 182 Para Pateman 1993 p 196 o contrato de casamento é a base do contrato de trabalho pois para que o trabalhador homem pudesse existir era preciso antes uma donadecasa para cuidar de suas necessidades cotidianas A figura do trabalhador com um macacão limpo um saco de ferramentas e uma marmita é acompanhada pela figura espectral de sua esposa Não é sem motivo que as feministas aproximaram a relação entre contrato de trabalho e contrato de casamento dando ênfase à dimensão coercitiva da participação nos contratos O contrato de trabalho remunerado criou aquilo que Federici denominou de escravidão do salário ou seja se por um lado com o trabalho assalariado os homens se tornaram livres ainda que apenas formalmente por outro lado as mulheres foram o grupo que mais se aproximou da condição de escravos seja em seu trabalho doméstico seja depois nas fábricas FEDERICI 2017 195 Ora os trabalhadores são coletivamente prisioneiros são escravos assalariados pois em última instância os patrões controlam os meios de produção e estabelecem os termos do contrato em benefício deles próprios restando a seus empregados a sua aceitação passiva Do mesmo modo as mulheres são coagidas coletivamente a se casarem embora toda mulher seja livre para continuar solteira A pressão social para que as mulheres se casem ainda é um fato presente na sociedade hodierna as mulheres solteiras não tendo uma situação social definida e aceitável tornandose dependentes em todos os sentidos do seu marido Com o avanço do capitalismo especialmente nos últimos trinta anos as mulheres conquistaram ainda que a duras penas maior espaço no mercado de trabalho através de suas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 233 qualificações educacionais e habilidades que possibilitaram encontrar empregos e alcançar uma relativa emancipação Contudo ao observarmos o contexto atual de uma economia neoliberal constatamos claramente as desigualdades no mercado de trabalho e na participação política Segundo dados do IBGE de 2018 as mulheres ganham em média 205 menos que os homens no país Considerando apenas as pessoas entre 25 e 49 anos os rendimentos mensais dos homens são de R 2579 e das mulheres R 2050 compondo uma diferença salarial de R 52900 As mulheres mesmo em número maior entre as pessoas com ensino superior completo 215 enquanto que os homens ficam em 156 ainda assim são tratadas de modo desigual no mercado de trabalho e esse número aumenta se considerarmos o recorte de cor ou raça Com relação à participação das mulheres na vida pública e no campo político os dados de 2017 afirmam que as cadeiras ocupadas no Congresso Nacional eram de 113 e no Senado 16 No cenário internacional o Brasil ocupava em dezembro de 2017 a 152ª posição entre 190 países participantes da Inter Parlamentary Union com o pior índice entre os países sul americanos de mulheres que ocupam os assentos nas câmaras baixas ou parlamentos unicamerais15 Os dados apresentados só confirmam que o capitalismo neoliberal e por conseguinte a própria política é continuamente patriarcal e segue ainda uma rigorosa divisão sexual tanto da força de trabalho como da própria participação na vida pública O casamento assim como o contrato de trabalho constitui duas faces de uma mesma moeda a dominação patriarcal que se beneficia da exploração e da opressão das mulheres tanto na esfera pública como na doméstica16 CONSIDERAÇÕES FINAIS A Caça às Bruxas não terminou17 Ao contrário do anunciado e vivido no contexto nacional anterior ao golpe de 2016 o Brasil vive um total retrocesso nas políticas públicas e investimentos nas áreas referentes à diminuição da desigualdade entre homens e mulheres O crescimento de um discurso autoritário sexista e patriarcal se dissemina nas diferentes esferas 15 Mais informações sobre as estatísticas de gênero relacionado à indicadores sociais das mulheres no Brasil podem ser encontrados em IBGE 2018 p 113 16 Esse fato se acentua ainda mais se complementarmos com informações sobre o trabalho doméstico no Brasil que nunca deixou de ser feito pelas mulheres duplicando ou até triplicando sua jornada de trabalho 17 Os casos de mulheres acusadas de bruxaria não são tão raros como imaginamos Só em Gana há seis campos de bruxas com cerca de mil mulheres Na Papua Nova Guiné as acusações de bruxaria são comuns em algumas partes do país e em 2009 ocorreu uma série de execuções no país tendo como justificativa a suspeita de bruxaria BBC BRASIL 2013 n p No Brasil o caso de Fabiana de Jesus é emblemático Fabiana não foi acusada formalmente de bruxaria mas foi julgada e condenada covardemente por populares por causa de um boato sobre magia em 2014 cinco dos acusados do linchamento foram presos G1 2017 n p Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 234 do mundo da vida alcançando inclusive os altos escalões do poder Tal discurso alicerçado em valores tradicionais como Deus Família e Nação se traduz diretamente em atitudes práticas de exclusão e marginalização de determinados grupos e indivíduos dos quais as mulheres são o principal alvo Se na época da Caça às Bruxas Estado e Igreja travaram uma verdadeira guerra contra as mulheres com o intuito de enfraquecer o seu poder social ainda hoje as fogueiras forcas e câmaras de concentração continuam a fazer parte do arsenal do terror encabeçado pelo capitalismo neoliberal que não apenas intensifica o processo de reificação dos indivíduos mas implode as bases da própria democracia nos colocando diante de uma questão fundamental Afinal capitalismo e democracia são compatíveis Certamente uma resposta a essa questão não é simples exigindo de nós um esforço significativo de reconstrução histórica e conceitual do capitalismo e das contradições inerentes a si mesmo enquanto um sistema que desestabiliza os poderes políticos e as instituições democráticas Uma parte dessa importante crítica histórica feita por Federici nos chama a atenção para o modo como a nova ordem social patriarcal com base na acumulação primitiva do capital a apropriação dos meios de produção a divisão sexual do trabalho associada à uma ideologia perversa indicam conforme Fraser afirma que há algo de podre não so na atual forma do capitalismo a forma financeirizada mas na sociedade capitalista per se FRASER 2015 p 155 Há portanto uma contradição não apenas entre capitalismo e democracia mas conforme aponta Pateman ao longo de toda sua obra entre democracia e o contrato social Ora se é verdade que o capitalismo se reinventa a cada novo período histórico e coopta elementos próprios desses períodos em favor de si o contrato social não deixa de ser uma das formas pelas quais o capitalismo substituiu os antigos fundamentos que justificavam a dominação social pelo acordo livre estabelecido nos seus termos Portanto não seria nenhum equívoco afirmar que o contrato social e por conseguinte o contrato de casamento usurpam o direito das mulheres de se autodeterminarem e serem reconhecidas enquanto pessoas um problema que persiste até hoje Não por acaso filósofas no mundo inteiro continuam a indagar se as mulheres são humanas após meio século da Declaração Universal dos Direitos Humanos A Caça às Bruxas não terminou Mais do que nunca podemos continuar a presenciar o silenciamento e a tortura de milhões de mulheres no mundo inteiro Se por um lado o movimento feminista nas suas diferentes configurações conquistou inúmeros direitos promovendo a emancipação das mulheres por outro lado o aperfeiçoamento das técnicas do Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 235 poder ainda mascaram relações de dominação e opressão que se perpetuam através do capitalismo neoliberal e de uma pseudodemocracia A fúria do capitalismo neoliberal e da cultura do Homo economicus18 se traduz nos corpos mutilados destroçados e desfigurados de mulheres brasileiras que tem nome raça e classe Para elas a morte está à espreita dentro de suas casas no transporte público nas ruas no trabalho na educação A violência é o retrato de uma sociedade patriarcal sustentada por relações machistas e misóginas Entretanto poderíamos nos perguntar De onde afinal vem todo esse ódio O que fizeram as mulheres para merecer tamanho castigo Seria culpa de Eva que ao comer do fruto proibido recebe como pena a expulsão do Paraíso por Deus Pai Ou quem sabe a culpa é das primeiras xamãs que como curadoras populares exerciam seu ofício em benefício de pessoas mais pobres ou ainda das bruxas simples camponesas que lutavam pelo uso comum da terra pela igualdade e pelo mínimo acesso aos bens básicos para sua sobrevivência e mesmo assim foram condenadas à uma morte truculenta Acaso estaríamos hoje a repetir esse massacre O surgimento de grupos antifeministas associado ao conservadorismo sexista aponta para um cenário preocupante do qual tanto Federici como Pateman compartilham como diagnóstico de época O que Federici faz em sua obra em termos históricos explicitando a gênese do capitalismo com base na exclusão das mulheres Pateman o faz em termos conceituais a partir do pressuposto do contrato como uma espécie de extensão da obra de Federici Portanto tratamse de obras complementares que apesar de terem métodos e abordagens distintas devem ser lidas em conjunto tendo em vista uma crítica consciente acerca do capitalismo enquanto um sistema econômico e social produtor de desigualdades necessariamente ligado ao racismo e o sexismo Por fim a pergunta de Federici permanece ecoando fortemente no contexto atual de avanço do neoliberalismo Afinal de contas por que depois de quinhentos anos de exploração capitalista o mundo ainda vive uma guerra generalizada que destrói o sistema reprodutivo e a riqueza comum tendo como principal alvo as mulheres Essa questão ainda permanece em aberto nos desafiando a buscarmos respostas teóricas e ações práticas que excluam qualquer configuração econômica e social baseada num capitalismo com rosto humano FEDERICI 2017 p 14 18 Entendase por Homo economicus aquele indivíduo que obedece única e exclusivamente aos comandos emitidos pela razão analisando todos os custos de oportunidades envolvidos nas tomadas decisões Sua razão psicológica é o interesse pessoal o que define aquilo que é próprio da atividade econômica Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 236 REFERÊNCIAS BBC BRASIL Mulher acusada de bruxaria é queimada viva na Papua Nova Guiné Brasília 2013 Disponível emhttpswwwbbccomportuguesenoticias201302130207 mulherbruxariapapuanovaguinefnshtml Acesso em 31 de maio de 2019 DARDOT Pierre LAVAL Christian A nova razão do mundo ensaio sobre a sociedade neoliberal São Paulo Boitempo 2016 DEERE Diana Carmen LÉON Magdalena In Sociologias Porto Alegre ano 5 n 10 juldez 2003 p 100153 ÉPOCA Feche as pernas o que pregam os participantes do 1º congresso antifeminista do Brasil Rio de Janeiro 2018 Disponível em httpsepocaglobocomfecheaspernasque pregamosparticipantesdo1congressoantifeministadobrasil22964525 Acesso em 31 de maio de 2019 FEDERICI Silvia Calibã e a Bruxa mulheres corpo e acumulação primitiva Tradução Coletivo Sycorax São Paulo Elefante 2017 FOUCAULT Michel Vigiar e Punir nascimento de prisão Tradução de Raquel Ramalhete Petrópolis Vozes 1999 FRASER Nancy Crise de legitimação Sobre as contradições políticas do capitalismo financeirizado Tradução de José Ivan Rodrigues de Sousa Filho In Cadernos de Filosofia Alemã Crítica e Modernidade São Paulo USP v 23 n2 2018 G1 Três anos depois linchamento de Fabiane após boato na web pode ajudar a endurecer lei São Paulo 2017 Disponível em httpsg1globocomeounaoenoticiatres anosdepoislinchamentodefabianeaposboatonawebpodeajudaraendurecerleightml Acesso em 31 de maio de 2019 HAMILTON Cicely Marriage as a Trade Londres The Womens Press 1981 IBGE Estáticas de gênero indicadores sociais das mulheres no Brasil Rio de Janeiro 2018 Disponível em httpsbibliotecaibgegovbrvisualizacaolivrosliv101551informativopdf Acesso em 20 de junho de 2019 KANT Imannuel Political Writings REIS H org Cambridge Cambridge University Press 1970 KONCHINSK Vinicius Caroline Campagnolo O feminismo é uma ameaça à civilização ocidental UOL 2019 Disponível em httpsnoticiasuolcombrpoliticaultimas noticias20190217carolinecampagnoloofeminismoeumaameacaacivilizacao ocidentalhtm Acesso em 31 de maio de 2019 LOCKE John Two Treatises of Governament LASLETT P org Cambridge Cambridge University Press 1967 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 237 MIGUEL Luis Felipe Carole Pateman e a crítica feminista do contrato Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS010269092017000100503 Acesso em 25 de agosto de 2019 MULHERES CONTRA O FEMINISMO Feministas apoiam transgêneros que ocupam o lugar de mulheres a doentia agenda Feminista 2019 httpsmulherescontraofeminismowordpresscomtagantifeminismoAcesso em 25 de junho de 2019 PATEMAN Carole O contrato sexual Tradução de Marta Avancini Rio de Janeiro Paz e Terra 1993 OKIN Susan Moller Gênero o público e o privado In Revista Estudos Feministas Florianópolis v 16 n 2 2008 ROUSSEAU JeanJacques Emílio ou Da educação Tradução de Sérgio Millet São Paulo DIFEL 1979 THOMPSON William Appeal of one half the human race womem Against the pretensions of the other half men to retain them in political and thence in civil anda domestic slavery Nova York Source Book Press 1970 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 238 CAPACITANDO COM GÊNERO EXPERIÊNCIAS DO CURSO FEMINICÍDIO E QUESTÕES DE GÊNERO DA ACADEMIA JUDICIAL DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA TJSC André Demetrio1 Michelle de Souza Gomes Hugill2 RESUMO O artigo tematiza os resultados do curso de capacitação realizado pela Academia Judicial do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina sobre feminicídio e questões de gênero O curso versou sobre a necessidade de se incluir uma perspectiva de gênero em decisões judiciais e no cotidiano judicial resultando na promoção dos direitos fundamentais das mulheres Neste quadro por meio de um questionário qualitativo ao fim do curso este artigo pretende analisar os resultados por meio dos seguintes parâmetros dados geográficos e de gênero dos participantes qualidade do curso conhecimento adquirido e aplicabilidade das matérias Como resultado evidenciouse que práticas de capacitação relacionados ao gênero em órgãos públicos promovem a quebra de estereótipos e a possibilidade de novas práticas jurídicas sob a perspectiva de gênero O método científico utilizado foi o dedutivo por meio de pesquisa descritiva e com procedimento técnico bibliográfico Palavraschave Violência contra mulher Capacitação Qualificação Gênero INTRODUÇÃO Considerando os estudos dos movimentos feministas observase que o gênero regula as relações entre homens e mulheres já que é invisível regulador disciplinador e classificador do comportamento de homens e mulheres PITCH 2010 Nesse sentido é importante destacar a participação dos movimentos feministas na luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres3 URRA 2014 E assim embora todas os seres humanos devam ter direito à 1 Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná Brasil Doutorando em Direito pela Universidade Carlos III de Madri Espanha Mestrando em Direito Constitucional pelo Centro de Estudos Políticos e Constitucionais Espanha Bolsista da mesma instituição ORCID httporcidorg0000000200825147 E mail demetriooutlookcom 2 Mestranda em Direito UFSC Especialista em Gestão Pública UFSC e em Direito Público FURB Bacharel em Administração Pública UFSC em Direito UNISUL É Secretária da Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar Cevid Lattes httplattescnpqbr3477035932418295 Email michellesgomesgmailcom 3 Embora não seja objetivo da pesquisa é importante destacar que o movimento feminista brasileiro surgiu bem antes deste recorte metodológico escolhido pelo artigo De acordo com Constância Lima Duarte 2019 podese dividir o movimento de mulheres feministas no Brasil em cinco momentos A primeira no século XIX é destacada pela forma de vida das mulheres com inúmeras limitações jurídicas e presas em em antigos preconceitos e imersas numa rígida indigência cultural DUARTE p 341 Nesse momento urgia levantar a primeira bandeira que não poderia ser outra que o direito básico de aprender a ler e a escrever então reservado ao sexo masculino DUARTE p 341 O segundo momento em 1870 caracterizase principalmente pelo espantoso número de jornais e revistas de feição nitidamente feminista O terceiro momento caracterizase pela busca da cidadania e surge no século XX Nesta etapa mulheres clamam alto pelo direito ao voto ao curso superior e à Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 239 dignidade perante as organizações sociais o parâmetro de sexo e de gênero tornase determinante para limitar determinados direitos NUSSBAUM 1999 nas instituições sociais e jurídicas Como ilustração da desigualdade de gênero constatase o número elevado de mulheres vítimas de feminicídio4 conforme o Atlas da Violência 2019 Dados mostram que morrem 13 mulheres por dia no Brasil representando um aumento de 207 de homicídios contra mulheres entre o período de 2007 a 2017 No âmbito estadual os dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública SSP demonstram que os casos de feminicídio dobraram em Santa Catarina em 20195 Partindo deste panorama o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina TJSC viu a necessidade de criar um curso de capacitação e de aperfeiçoamento para servidores e magistrados sobre feminicídio e questões de gênero O curso buscou expor os mecanismos legais existentes de proteção e de enfrentamento a violência doméstica e familiar contra as mulheres Após estabelecer esta premissa teórica este artigo dividiuse em três etapas Na primeira parte do trabalho a meta será de fazer um caminho histórico da institucionalização das políticas de gênero no Judiciário especificamente no TJSC A segunda etapa consiste no estudo da importância dos cursos de qualificação e de aperfeiçoamento para servidores públicos No terceiro capítulo buscase a observação dos dados qualitativos realizado pelos inscritos no curso O método de pesquisa foi descritivo O argumento a ser desenvolvido neste trabalho é que a promoção de cursos de capacitação sobre violência de gênero contra mulheres é um importante instrumento na inclusão ampliação do campo de trabalho O quarto momento é o da revolução sexual e da literatura nos anos de 1970 Este período ficou marcado pela alteração dos costumes e das tradições existentes na época O ano de 1975 foi considerando o Ano Internacional da Mulher pela Organização das Nações Unidas No Brasil ainda existiram outras conjunturas históricas como a luta contra a ditadura civilmilitar DUARTE 2019 Por fim a última etapa é chamada de pósfeminismo surgindo a partir dos anos de 1990 em que o feminismo sai dos holofotes e se junta a outros movimentos como os de estudos culturais ou estudos gays DUARTE 1990 Ver DUARTE Constância Lima Feminismos uma história a ser contada In HOLLANDA Heloisa Buarque de Pensamento feminista brasileiro formação e contexto Rio de Janeiro Bazar do Tempo 2019 4 O feminicídio foi instituído pela a Lei nº 13104 de 2015 conhecida como Lei do Feminicídio A lei torna o feminicídio um homicídio qualificado Ver MENEGHEL Stela Nazareth PORTELLA Ana Paula Feminicídios conceitos tipos e cenários Ciênc saúde coletiva online 2017 vol22 n9 pp30773086 ISSN 14138123 httpdxdoiorg10159014138123201722911412017 5 De acordo com o portal NSC Total casos de feminicídios dobram em Santa Catarina neste ano Numero de mulheres assassinadas chegou a 15 em abril de 2019 enquanto nos primeiros meses do ano passado foram oito no mesmo período Ver NSC TOTAL Casos de feminicídios dobram em Santa Catarina neste ano Disponível em httpswwwnsctotalcombrnoticiascasosdefeminicidiosdobramemsantacatarinanesteano Acesso em 21 jul 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 240 de uma perspectiva de gênero no cotidiano jurisdicional na mudança cultural e institucional de magistrados e de servidores do Tribunal catarinense 1 O GÊNERO CHEGA AO JUDICIÁRIO Cumpre fazer uma análise histórica sobre como foi o caminho percorrido pela institucionalização da temática de violência de gênero contra as mulheres no âmbito judicial catarinense A chave aqui é traçar um respaldo teórico sobre o cenário em que o curso Feminicídio e Questoes de Gênero está inserido Ou seja não é possível compreender a criação de um curso de capacitação sobre gênero sem observar as mudanças institucionais promovidas por meio da atuação da Academia Judicial e da Cepevid Coordenadoria Estadual da Justiça Criminal e das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar que transformouse em Cevid Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência e Familiar do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina Neste sentido com a promulgação da Lei Maria da Penha Lei nº 11340 de 2006 o Conselho Nacional de Justiça CNJ editou a Recomendação n 920076 na qual recomendou aos Tribunais de Justiça a criação de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e a adoção de mecanismos tendentes à implementação de políticas públicas de garantia aos direitos humanos das mulheres no âmbito doméstica e familiar Posteriormente publicou a Resolução n 1282011 determinando que os Tribunais de Justiça criassem Coordenadorias Estaduais da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar na qualidade de órgãos permanentes de assessoria da Presidência das respectivas Cortes Em atenção às orientações do CNJ o Tribunal de Justiça criou o Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher na Capital de competência exclusiva para o feito e dotado de equipe multidisciplinar própria além de 3 três juizados especializados com competência cumulativa com os juizados especiais criminais nas comarcas de Chapecó São José e Tubarão No tocante a criação das Coordenadorias Estaduais da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar foi editada a Resolução TJ n 402011 que criou a Coordenadoria da Execução Penal da Infância da Juventude e das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar Cepij incluindo a última como um dos núcleos operacionais 6 A Recomendação CNJ n 92017 baseouse também no art 226 8 da Constituição Federal que determina que o Estado em cada um de seus órgãos assegure a assistência às famílias bem como na Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 241 No ano seguinte houve uma cisão dos núcleos criandose da Coordenadoria de Execução Penal e da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher Cepevid por meio da Resolução TJ n 32012 No ano de 2016 nova modificação na estrutura por meio da Resolução TJ n 72016 transformou a Cepevid em Coordenadoria Estadual da Justiça Criminal e das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar subordinado ao Grupo de Monitoramento e Fiscalização GMF que possuía outras duas coordenadorias vinculas Em 2018 a Coordenadoria Estadual da Justiça Criminal e das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar foi cindida do GMF e transformada em Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência e Familiar do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina Cevid vinculada diretamente ao gabinete da presidência do TJSC nos termos da Resolução TJ n 1220187 Diante da necessidade de adequação das ações do Poder Judiciário para atuação sob a perspectiva de gênero na prestação jurisdicional aliada à importância de tratamento adequado aos conflitos com incidência da Lei Maria da Penha e de outros crime praticados em virtude do gênero o Conselho Nacional de Justiça instituiu a Política Judiciária Nacional de Enfrentamento da Violência contra as Mulheres por meio da Portaria n 152017 posteriormente transformada na Resolução n 25420188 Um dos objetivos da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento da Violência contra as Mulheres é estimular a promoção de açoes institucionais entre os integrantes do sistema de Justiça para aplicação da legislação pátria e dos instrumentos jurídicos internacionais sobre direitos humanos e a eliminação de todas as formas de discriminação contra as mulheres Portaria CNJ n 152015 art 2º XI Resolução CNJ n 2542018 art 2º XI Tal política atribuiu às Coordenadorias Estaduais a atribuição de colaborar para a formação inicial continuada e especializada de juízes servidores e colaboradores na área do combate e prevenção à violência contra a mulher Portaria CNJ n 152015 art 4º IV Resolução CNJ n 2542018 art 4º IV 7 Importa destacar que em que pese o nome da coordenadoria remeter apenas à violência doméstica e familiar contra a mulher à Cevid também foi delegada a competência para articulação e execução de políticas e gestão de grupos vulneráveis tais como diversidade de gênero idoso igualdade étnicoracial indígena liberdade religiosa migração pessoa com deficiência política sobre drogas população em situação de ura quilombola refúgio tortura trabalho escravo e tráfico de pessoas conforme disposto na Resolução TJ n 122018 art 7º 8 Destacase que as Semanas da Justiça pela Paz em Casa formalizadas por meio da Portaria 152017 e depois pela Resolução n 2542018 já vinham acontecendo informalmente desde o ano de 2015 nos tribunais de justiça estaduais após reunião convocada pela presidente do CNJ em dezembro do ano anterior que solicitou às coordenadorias estaduais das mulheres em situação de violência doméstica e familiar contra as mulheres que promovessem esforços concentrados para julgamentos de processos e ações afirmativas nos meses de março agosto e novembro Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 242 Não fosse isso observase a preocupação do CNJ com a solução efetiva da problemática da violência contra as mulheres na publicação de diversas normativas recentes das tais destacamse a Resolução CNJ n 2552018 que instituiu a Política da Participação Institucional Feminina do Poder Judiciário e a Resolução CNJ n 2842019 que instituiu o Formulário Nacional de Avaliação de Risco para a prevenção e o enfrentamento de crimes praticados no âmbito e violência doméstica e familiar contra a mulher Além disso a partir de 2018 o CNJ passou a incluir a temática do enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher nas Metas Nacionais Meta 8 que naquele ano determinou aos tribunais de justiça estaduais que promovessem o fortalecimento das redes de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra as mulheres até 31122018 Em 2019 objetivo da Meta 8 é o julgamento de 50 dos processos criminais e de competência do Tribunal do Júri envolvendo delitos de violência doméstica e familiar contra as mulheres distribuídos até 31122018 O que se pretendeu demonstrar foi a importância das normativas relativas ao gênero pelo CNJ para a mudança institucional e cultural nos tribunais brasileiros principalmente no âmbito do TJSC Nesse quadro o próximo tópico pretende abordar o conteúdo do curso Feminicídio e Questoes de Gênero promovido no TJSC 2 PARÂMETRO INICIAL CAPACITAÇÃO E A TEMÁTICA DE GÊNERO A capacitação de servidores públicos é importante para a qualificação do serviço público resultando no desenvolvimento das práticas e das atividades cotidiana do servidor perante a Administração Pública MANFREDINI FROM SELLOW 2015 A literatura citada ainda aponta que há uma relação vinculada entre qualificação e ações que promovam o desenvolvimento de seus colaboradores A tendência atual dos órgãos vinculados ao poder público é de promover cursos de qualificação capacitação e de aperfeiçoamento de seus servidores CHIAVENATO 2008 Isso porque o exercício do cargo público demanda serviço de excelência e tratamento adequado à sociedade nas diversas áreas em que o Estado atua o qual necessita de servidores com conhecimentos específicos devidamente treinados e capacitados para o cumprimento de sua missão e dever de lealdade com a res pública BING 2016 Coelho 2006 chama a atenção para a alta competitividade existente nos concursos públicos que tem exigido um profundo conhecimento de questões legais pelos candidatos e para a constante necessidade de capacitação e aperfeiçoamento constante de servidores já Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 243 existente por meio de atualização teóricometodológica em todas as áreas a fim de enfrentar as dificuldades do âmbito público No âmbito do Poder Judiciário o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina TJSC criou em 2001 o Centro de Estudos Jurídicos do Tribunal de Justiça de Santa Catarina CEJUR conhecido também como Academia Judicial9 Este órgão de educação tem como finalidade a promoção de açoes afirmativas de atualização e de aperfeiçoamento visando aprimorar o trabalho desenvolvido na Instituição e entregue à sociedade ACADEMIA JUDICIAL 2019 À luz dos debates sobre a necessidade de qualificar e criar mecanismos de atualização para servidores e magistrados a Academia Judicial desenvolveu em 2017 o curso Feminicídio e Questões de Gênero com o objetivo de aprimorar a prática dos operadores de justiça especialistas forenses ou quaisquer outros profissionais que atuem com questões relacionadas à investigação ao processamento e ao julgamento de mortes violentas de mulheres em virtude do gênero O curso também tinha como meta o aprofundamento das discussões relacionadas a temática da violência doméstica e familiar sob a perspectiva de gênero ACADEMIA JUDICIAL 2017 Nesta seara o curso estabelecia como conteúdo para serem trabalhados por meio do Ambiente Virtual de Aprendizagem i Perspectiva histórica dos Direitos Humanos das Mulheres ii Enfrentamento dos feminicídios na América Latina e no Brasil iii Diretrizes nacionais e internacionais de investigação processamento e julgamento das mortes violentas de mulheres em virtude do gênero e em situação de violência doméstica e familiar iv A Lei n 131042015 e o Feminicídio no Brasil e v Tribunal do Júri na perspectiva de gênero ACADEMIA JUDICIAL 2017 O primeiro conteúdo debatido com servidores e magistrados foi sobre o panorama geral das realidades existentes para o enfretamento da violência contra as mulheres no Brasil A partir deste pressuposto a aula tinha como objetivo desenvolver o senso crítico em relação a naturalização da desigualdade e hierarquização entre homens e mulheres e conscientizar magistrados e servidores da real situação das mulheres na sociedade brasileira10 ACADEMIA JUDICIAL 2017 9 A Academia Judicial foi criada pela Resolução n 1491TJ e Portaria n 55791 É composto pelos seguintes conselhos Conselho TécnicoCientífico Conselho Editorial Comissão Permanente de Avaliação e Diretoria Executiva Ver ACADEMIA JUDICIAL Institucional Disponível em httpswwwtjscjusbrwebacademia judicialinstitucional Acesso em 2 ago 2019 10 Para um maior aprofundamento sobre o conteúdo da primeira discussão recomendase a leitura dos seguintes artigos NUSSBAUM Martha Sex and Social Justice Oxford Oxford University 1999 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 244 A segunda questão a ser levantada no curso foi a inclusão de uma perspectiva de gênero para investigar e julgar os crimes de violência contra as mulheres A aula tinha como meta estudar as diversas formas de violência existentes contra a mulher e tratar do conceito de gênero11 Dando continuidade o terceiro encontro virtual tinha como finalidade o estudo dos marcos regulatórios de proteção as mulheres no âmbito internacional e nacional Desse modo foi possível conhecer as leis protetivas para mulheres e como incluir uma perspectiva de gênero no âmbito jurídico considerando a história de desigualdade existente entre homens e mulheres12 ACADEMIA JUDICIAL 2017 Atender ao chamado de enfrentamento de violência contra a mulher implica na construção de um sentido jurídico e cultural que inclua a perspectiva de gênero em decisões judiciais e no próprio cotidiano dos tribunais O caminho teórico para atingir esse objetivo deve ser feito sob uma perspectiva distante de extremismos teóricos Assim estudar gênero não se trata de uma ideologia13 mas de mecanismos legais previstos em documentos internacionais da Organização das Nações Unidas ONU14 na Constituição Federal15 e em resoluções do CNJ16 que buscam a igualdade entre homens e mulheres na sociedade Nesse contexto a temática de gênero foi abordada de forma linear por todas as três unidades do curso Neste contexto o curso buscou descontruir estereótipos de gênero que existem na sociedade brasileira PRA Jussara Reis EPPING Léa Cidadania e feminismo no reconhecimento dos direitos humanos das mulheres Revista Estudos Femininos Florianópolis v 20 n 1 p 3351 PITCH Tamar Un derecho para dos La construcción jurícia de género sexo y sexualidad Madrid Trotta Editorial S A 2003 TELES Maria Amélia de Almeida e Mônica de Melo O que é Violência contra a mulher São Paulo Brasiliense 2003 11 Nesse sentido conforme conteúdo programático ver CONNELL Raewyn PEARSE Rebecca Gênero Uma perspectiva global São Paulo Editora nVersos 2015 SCOTT Joan Gênero uma categoria útil de análise histórica Revista Educação e realidade v 20 n 2 p 7199 juldez 1995 12 Conferir CAMPOS Carmen Hein de Feminicídio no Brasil Uma análise críticofeminista Revista Sistema Penal Violência Online v 7 n 2015 p 103115 2015 e CASTILHO Ela Wiecko Volkmer de As diretrizes nacionais para investigação do feminicídio na perspectiva de gênero Revista Eletrônica da Faculdade de Direito da PUCRS Porto Alegre v 8 n 1 p 93106 janjun 2016 13 Ver REIS Toni EGGERT Edla ideologia de gênero uma falácia construída sobre os planos de educação brasileiros Educ Soc online 2017 vol38 n138 pp926 ISSN 01017330 httpdxdoiorg101590es0101 73302017165522 14 Nesse sentido a Convenção Belém do Pará documento da ONU e promulgada pelo Brasil prevê no artigo 1 que entenderseá por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte dano ou sofrimento físico sexual ou psicologico à mulher tanto na esfera publica como na esfera privada Ver BRASIL República Federativa do Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03decreto1996D1973htm Acesso em 1 ago 2019 15 A Constituição Federal quebrou paradigmas ao estabelecer o direito à igualdade artigo 5o inciso I entre homens e mulheres 16 Como ilustração disso a Resolução número 254 do CNJ institui a Política Judiciária Nacional de enfrentamento à violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e dá outras providências Nesse sentido ver CNJ Resolução Nº 254 de 04092018 Disponível em httpwwwcnjjusbratosnormativosdocumento2669 Acesso em 21 jul 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 245 Como se observa todas as unidades abordavam a temática de gênero fato este que faz necessária uma breve análise do tema neste artigo A partir da análise da teórica de gênero é possível compreender a necessidade de sua inserção em políticas institucionais do Poder Judiciário Todas as unidades programáticas foram pensadas por meio de uma desconstrução dos estereótipos envolvendo mulheres na sociedade e utilizando um referencial teórico interdisciplinar Ainda o cursou buscou uma análise abrangente sobre gênero e violência doméstica e familiar com uma pluralidade de docentes conteudistas17 Em suma é possível dizer que o termo gênero tem sido usado mais recentemente como sinônimo de mulheres visando a obtenção de reconhecimento político no campo de pesquisas usa vez que sugere a erudição e a seriedade de um trabalho devido à sua conotação mais objetiva e neutra do que o termo mulheres afastandose da política do feminismo e portanto mais palatável SCOTT p 75 Nesse sentido Scott 1995 p 75 ressalta que a substituição do termo mulheres se trata de apenas um aspecto do gênero pois este também sugere que qualquer informação sobre as mulheres é necessariamente informação sobre os homens que um implica o estudo do outro especialmente porque o mundo das mulheres pertence ao dos homens Dessa forma tais mundos não podem ser estudados isoladamente Ademais gênero também pode ser utilizado para designar as relaçoes sociais entre os sexos SCOTT p 75 rejeitandose explicitamente elucidações de ordem biológica notadamente para as que tentam explicar as variadas maneiras de subordinação feminina tais como em relação à capacidade de gerar um filho da mulher e da força muscular superior masculina Assim o termo gênero é uma concepção inteiramente social da visão sobre os papeis atribuídos aos homens e às mulheres SCOTT 1995 p 75 Na esteira de debates é irrefutável que a desigualdade de gênero esteja relacionada com a violência doméstica e familiar contra mulheres Nesse sentido quando se trata de gênero e da relação próxima entre exclusão e inclusão da mulher há um ator principal o patriarcado Nessa linha o patriarcado seria um sistema de instituições sociais que delimita a atuação de homens e de mulheres questão fundamental para compreensão da violência contra mulheres BARUKI BERTOLIN 2010 Desse modo a violência contra as mulheres possui um leque de agressões com caráter psicológico físico sexual e patrimonial que podem resultar na morte da vítima denominado feminicídio MENEGHEL PORTELLA 2017 Com efeito no Brasil existem inúmeros 17 Professores conteúdistas André Demétrio Alexandre Amini Haddad Campos e Isaac Sabaá Guimarães O curso foi coordenado pela servidora e mestranda Michelle de Souza Gomes Hugill Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 246 documentos legais que protegem a mulher como a Lei nº 131042015 Lei Maria da Penha e a qualificadora do homicídio em decorrência de gênero chamada de feminicídio Nesse quadro o próximo tópico pretende abordar dados referentes aos formulários respondidos por participantes do curso Por meio de gráficos será possível ilustrar a importância de cursos de qualificação na promoção e no desenvolvimento de uma perspectiva de gênero no cotidiano do tribunal catarinense Considerando o conteúdo discutido nesta etapa de pesquisa a próxima etapa pretende traçar a relação entre conteúdo e aplicabilidade do conteúdo para servidores públicos 3 ASPECTOS METODOLÓGICOS E RESULTADOS Este artigo optou pelo método dedutivo e perfil descritivo Nesse sentido pesquisas descritivas tem como objetivo a descrição de fenômenos específicos ou a de determinados grupos sociais Ademais a pesquisa descritiva busca descrever relações entre o sujeito e situações GIL 1999 Na esteira de debates também é possível afirmar que a pesquisa descritiva tem a finalidade de traçar fenômenos valorizando detalhes para compreender o que ocorre com indivíduos grupos ou situações SELLTIZ WRIGHTSMAN COOK 1965 Neste contexto realizouse um formulário de avaliação com todos os magistrados e servidores que aderiram ao curso a qual contou com três turmas sendo que cada uma tinha a capacidade de em média 500 inscrições totalizando 1528 participantes Para o levantamento de dados utilizouse o Instrumento de Avaliação Curso a Distância com Moderação e outros dados disponíveis da Academia Judicial do TJSC Em relação a este formulário preenchido existiam 12 perguntas fechadas e uma com possibilidade de escrever críticas e sugestões As questões fechadas contemplavam as seguintes matérias qualidade do curso conhecimento adquirido aplicabilidade das matérias clareza na linguagem apresentação visual organização das unidades carga horária facilidade na navegação prontidão do moderador apresentação de soluções pelo moderador clareza do moderador avaliação geral do curso Para o universo de aplicação os participantes foram servidores e magistrados do TJSC de todas as comarcas do Estado Por questões metodológicas não serão apresentados os resultados de todos os itens do questionário citado Como resultado do mapeamento do questionário constatase que do universo de 1528 inscritos no curso mais de 60 eram mulheres caracterizando um maior público feminino na realização e no interesse por este tema Em consonância com os dados apresentados pelo CNJ no qual as mulheres representam 566 do total dos servidores que atuaram no Poder Judiciário nos ultimos 10 anos CNJ 2019 Por outro lado vale destacar que no tocante à Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 247 magistratura o judiciário brasileiro cortes supremas e tribunais inferiores é composto por apenas 37 de mulheres como juízas e desembargadoras18 Gráfico 1 Gênero dos participantes Fonte Formulário Inscritos da Academia Judicial TJSC do Curso Feminicídio e Questões de Gênero 2018 O discurso de gênero e da temática de violência doméstica e familiar contra mulheres precisa incluir a participação de homens Como dito na segunda etapa deste artigo é necessário ressignificar o termo gênero para que se promovam discussões em escolas em tribunais e nas famílias sobre a construção dos papeis dos homens e das mulheres na sociedade Somente por meio da mudança de pensamento e de atitude principalmente relacionados ao machismo tóxico19 é que será possível o reflorescimento de uma igualdade entre homens e mulheres Na análise geográfica participaram servidores das seguintes regiões do Estado de Santa Catarina Gráfico 2 Região dos participantes Fonte Formulário Inscritos da Academia Judicial TJSC do Curso Feminicídio e Questões de Gênero 2018 18 Ver CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA Mulheres representam 373 dos magistrados em atividade em todo o país Disponível em httpswwwcnjjusbrnoticiascnj84432percentualdemulheresematividade namagistraturabrasileiraede373 Acesso em 2 ago 2019 19 Ver O GLOBO Combate ao feminicídio passa pela reinvenção do masculino Disponível em httpsogloboglobocomsociedadecombateaofeminicidiopassapelareinvencaodomasculino23404312 Acesso em 2 ago 2019 Mulheres Homens Norte e Planalto Norte Sul e Grande Florianópolis Oeste e Planalto Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 248 Observase que predominam inscritos da região Sul e da Grande Florianópolis O fundamento desta pergunta é vinculado ao fato de que a Comarca da Capital é a maior do Estado abrigando 20 varas e é sede do Tribunal20 TRIBUNAL DE JUSTIÇA 2019 A partir deste panorama sobre o espectro geográfico a próxima questão abordou a qualidade do conteúdo programático Os números demonstram Gráfico 3 Qualidade do curso de aperfeicoamento Fonte Formulário Academia Judicial TJSC do Curso Feminicídio e Questões de Gênero 2018 Desse modo verificase que grande parte dos inscritos achou o curso ótimo ou bom resultando na ampla maioria superior a 85 Na construção e reconstrução deste tema o curso buscou atualizar os servidores e magistrados sobre as novas legislações referentes à mulher vítima de violência doméstica e familiar e quanto à qualificadora do crime de homicídio que passou a ser chamada de feminicídio Há contudo mesmo sendo minoria comentários de que o curso não atingiu o objetivo esperado e de que não há necessidade de se discutir questões relacionadas a gênero nos tribunais TRIBUNAL DE JUSTIÇA 2019 Dentro deste questionamento gráfico III constatase uma relação entre conteúdo referencial teórico e qualidade do curso É exatamente em razão de alguns fatores como a utilização de um referencial teórico interdisciplinar com espectros políticos liberais e 20 Nesse quadro embora a Justiça de primeiro grau esteja espalhada por todo o territorio catarinense o Forum Desembargador Rid Silva pode ser considerado o coração desse sistema A maior comarca do Estado abriga 20 varas de competência criminal e cível sendo algumas especializadas como a Vara Criminal e Metropolitana responsável pelo julgamento de ações penais de combate ao crime organizado e crimes contra a administração pública Execuções Penais Tribunal do Júri Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e Execução contra a Fazenda Publica e Precatorios Ver TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA Maior comarca do Estado Capital é referência para a implantação de projetospiloto Disponível em httpswwwtjscjusbrwebimprensamaiorcomarcadoestadocapitalereferenciaparaaimplantacaode projetospilotoinheritRedirecttrue Acesso em 2 ago 2019 Ótimo Bom Regular Fraco Ruim Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 249 marxistas um corpo conteudista qualificado e a utilização de métodos inovadores de aprendizagem na plataforma virtual que propiciaram o reconhecimento e o sucesso do curso Nesse contexto em relação ao conhecimento adquirido por magistrados e servidores os números mostram Gráfico 4 Conhecimento adquirido Fonte Formulário Academia Judicial TJSC do Curso Feminicídio e Questões de Gênero 2018 Novamente o resultado foi positivo levando em conta que mais de 85 dos inscritos afirmaram ter adquirido conhecimento relacionado a gênero por meio do aperfeiçoamento Além disso muitos participantes elogiaram o curso considerando o material excelente e extremamente atual Como se faz evidente concluise que o curso atingiu o objetivo ao discutir e atualizar magistrados e servidores por meio da capacitação de temas como a inclusão de uma perspectiva de gênero e de direitos humanos em casos judiciais brasileiro o enfrentamento do feminicídio por meio de alterações legislativas no Código Penal e da Lei Maria da Penha Lei nº 113402006 e a possibilidade de um Tribunal do Júri com perspectiva de gênero Fixado estes conceitos o curso propiciou que servidores e magistrados possam responder às novas demandas relativas à proteção dos direitos fundamentais das mulheres na sociedade No âmbito das discussões referentes ao conteúdo do curso o formulário indagava acerca da aplicabilidade do conteúdo nas funções de magistrados e de servidores Importante discussão considerando que uma das unidades do curso destaca a necessidade da inserção da perspectiva de gênero nos tribunais Os resultados indicaram Ótimo Bom Regular Fraco Ruim Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 250 Gráfico 5 Aplicabiliade do conteúdo as funções Fonte Formulário Academia Judicial TJSC do Curso Feminicídio e Questões de Gênero 2018 Constatase que nesta pergunta foi adicionado o item não se aplica porque nem todos servidores e magistrados trabalham diretamente com violência doméstica e familiar Não obstante o resultado confirma que o aperfeiçoamento resultou na aplicabilidade dos conteúdos em suas atividades profissional A chave aqui está na relação entre cursos de aperfeiçoamento e no desenvolvimento das funções dos magistrados servidores resultando no aprimoramento do trabalho do Poder Judiciário perante a sociedade Nesse contexto evidenciase que as temáticas discutidas em aula todos relacionados a temática da violência de gênero foram importantes para o desenvolvimento a conscientização e inclusão de uma perspectiva de gênero nas atividades laborais de servidores e de magistrados do TJSC CONSIDERAÇÕES FINAIS Embora o terreno do gênero pareça ser fixo seu significado está sendo questionado e discutido provocando reflexões envolvendo a desigualdade e a violência de gênero contra as mulheres Nesse sentido questões referentes ao gênero podem servir para indagar como compreensões implícitas na cultura podem ser invocadas e reinscritas por meio de uma perspectiva de gênero no direito Fato é que mulheres foram por muitos séculos invisíveis como sujeitos históricos e constitucionais o que promoveu a legitimação da desigualdade de gênero na sociedade provocando e contribuindo para a violência doméstica e familiar Nesse sentido o curso realizado na plataforma virtual primou pela ampliação do alcance possibilitando que servidores e magistrados de todo o Estado de Santa Catarina pudessem realizálo e com isso permitiu o questionamento pelos operadores de direito a circunstâncias até antes consideradas normais e que agora necessitam de reflexões Ótimo Bom Regular Fraco Ruim Não se aplica Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 251 Como visto a exploração dessas indagações relativas ao gênero constituirá no despontamento de uma história que apresentará novas perspectivas sobre velhas questões e com isso trará visibilidade para as mulheres como partícipes ativos além de criar oportunidades de ser refletir acerca das estratégias políticas feministas atuais e sobre seu futuro Desse modo o curso possibilita que o direito seja aplicado por meio de uma perspectiva de gênero contribuindo para um enfoque feminino no âmbito jurídico e consequentemente no social e político Por fim evidenciouse que práticas de capacitação relacionados ao gênero em órgãos públicos promovem a quebra de estereótipos e a possibilidade de novas práticas jurídicas sob a perspectiva de gênero Ilustração disso é observada por meio dos gráficos IV e V que tratam do conhecimento adquirido e da aplicabilidade do conteúdo no dia a dia de servidores e de magistrados Ressaltase novamente que por motivos de limitações metodológicas como por exemplo o número de páginas não foi possível analisar todos os dados disponíveis do Instrumento de Avaliação Curso a Distância com Moderação e de outros documentos REFERÊNCIAS ACADEMIA JUDICIAL Formulário Academia Judicial TJSC do Curso Feminicídio e Questões de Gênero 2018 ACADEMIA JUDICIAL Formulário Inscritos da Academia Judicial TJSC do Curso Feminicídio e Questões de Gênero 2018 ACADEMIA JUDICIAL Projeto Pedagogico Curso Feminicídio e Questoes de Gênero 2017 BARUKI Luciana Veloso Rocha Portolose BERTOLIN Patrícia Tuma Martins Violência contra a mulher a face mais perversa do patriarcado Quem tem medo do lobo mau São Paulo Rideel 2010 BING Plinio Paulo Corrupção Disfunções de Governo Repensar o Estado de ontem hoje e sempre 1 ed Porto Alegre Age 2016 208 p BRASIL República Federativa de Constituição Federal 1988 CHIAVENATTO Idalberto Gestão de pessoas São Paulo Elsevier 2008 COELHO Fernando de Souza Ensino Superior formação de administradores e setor público um estudo sobre o ensino de administração pública nível de graduação no Brasil 2006 159 f Tese Doutorado em Administração Pública e Governo Curso de Doutorado em Administração Pública e Governo Departamento de Escola de Administração de Empresas de São Paulo Fundação Getúlio Vargas São Paulo 2006 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 252 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA Recomendação n 092007 Recomenda aos Tribunais de Justiça a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e a adoção de outras medidas previstas na Lei 11340 de 09082006 tendentes à implementação das políticas públicas que visem a garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares Disponível em httpwwwcnjjusbrbusca atosadmdocumento1217 Acesso em 28 jul 2019 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA Mulheres representam 373 dos magistrados em atividade em todo o país Disponível em httpswwwcnjjusbrnoticiascnj84432 percentualdemulheresematividadenamagistraturabrasileiraede373 Acesso em 2 ago 2019 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA Resolução n 1282011 Determina a criação de Coordenadorias Estaduais das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar no âmbito dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal Disponível em httpwwwcnjjusbrbuscaatosadmdocumento2574 Acesso em 28 jul 2019 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA Portaria n 152017 Institui a Política Judiciária Nacional de enfrentamento à violência contra as Mulheres no Poder Judiciário e dá outras providências Disponível emhttpwwwcnjjusbrbuscaatosadmdocumento3271 Acesso em 28 jul 2019 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA Portaria n 152017 Determina a criação de Coordenadorias Estaduais das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar no âmbito dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal Disponível em httpwwwcnjjusbrbuscaatosadmdocumento2574 Acesso em 28 jul 2019 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA Resolução n 2542018 Institui a Política Judiciária Nacional de enfrentamento à violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário e dá outras providências Disponível em httpwwwcnjjusbrbuscaatos admdocumento3548 Acesso em 28 jul 2019 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA Resolução n 1282011 Determina a criação de Coordenadorias Estaduais das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar no âmbito dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal Disponível em httpwwwcnjjusbrbuscaatosadmdocumento2574 Acesso em 28 jul 2019 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA Resolução n 2552018 Institui a Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário Disponível emhttpwwwcnjjusbrbuscaatosadmdocumento3549 Acesso em 28 jul 2019 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA Resolução n 2842019 Institui o Formulário Nacional de Avaliação de Risco para a prevenção e o enfrentamento de crimes e demais atos praticados no contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher Disponível em httpwwwcnjjusbrimagesatosnormativosresolucaoresolucao2840506201913062019 144703pdf Acesso em 28 jul 2019 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário 2019 Disponível em Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 253 httpwwwcnjjusbrfilesconteudoarquivo2018018d31f5852c35aececd9d40f32d9abe28p df Acesso em 12 ago 2019 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA Metas Nacionais 2018 Disponível em httpwwwcnjjusbrfilesconteudoarquivo20190642b18a2c6bc108168fb1b978e284b280 pdf DUARTE Constância Lima Feminismos uma história a ser contada In HOLLANDA Heloisa Buarque de Pensamento feminista brasileiro formação e contexto Rio de Janeiro Bazar do Tempo 2019 GIL Antônio Carlos Métodos e técnicas de pesquisa social São Paulo Atlas 1999 IPEA Atlas da violência 2019 Disponível em httpwwwipeagovbrportalindexphpoptioncomcontentviewarticleid34784Ite mid432 Acesso em 21 jul 2019 MANFREDINI Rodrigo FROM Danieli Aparecida SELLOW Marcela A importância da capacitação de servidores no Setor Público Revista Vitrine Prod Acad Curitiba v3 n2 p 300650 juldez 2015 MENEGHEL Stela Nazareth PORTELLA Ana Paula Feminicídios conceitos tipos e cenários Ciênc saúde coletiva online 2017 vol22 n9 pp30773086 ISSN 14138123 httpdxdoiorg10159014138123201722911412017 NUSSBAUM Martha Sex and Social Justice Oxford Oxford University 1999 SELLTIZ C WRIGHTSMAN L S COOK S W Métodos de pesquisa das relacoes sociais Sao Paulo Herder 1965 SEVERI Fabiana Cristina O gênero da justiça e a problemática da efetivação dos direitos humanos das mulheres Direito e Práxis Rio de Janeiro v 7 n 1 p 81115 2016 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar CEVID Disponível em httpswwwtjscjusbrwebviolenciacontraamulhercoordenadoriadamulheremsituacao deviolenciadomesticaefamiliarcevid Acesso em 21 jul 2019 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA Resolução n 402011 Altera dispositivos da Resolução n 42010TJ de 3 de março de 2010 que cria a Coordenadoria de Execução Penal e da Infância e Juventude Cepij no âmbito do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Disponível em httpbuscatjscjusbrbuscatextualintegradocdSistema1cdDocumento1627cdCatego ria1 Acesso em 28 jul 2019 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA Resolução n 32012 Cria no âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina a Coordenadoria de Execução Penal e da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e adota outras providências Disponível em httpbuscatjscjusbrbuscatextualintegradocdSistema1cdDocumento164682cdCate Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 254 goria1qcepijfraseexcluirqualquerprox1prox2proxc Acesso em 28 jul 2019 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA Resolução n 72016 Cria o Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina GMFTJSC a Coordenadoria Estadual da Justiça Criminal e das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar a Coordenadoria Estadual do Sistema Socioeducativo e da Justiça Juvenil e a Coordenadoria Estadual da Execução Penal extingue a Coordenadoria da Execução Penal e da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher Cepevid e dá outras providências Disponível emhttpbuscatjscjusbrbuscatextualintegradocdSistema1cdDocumento157500cd Categoria1qviolEAncia20domE9sticafraseexcluirqualquerprox1pro x2proxc Acesso em 28 jul 2019 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA Resolução n 122018 Transforma a Coordenadoria Estadual da Justiça Criminal e das Mulheres em Situação de Violência Doméstica e Familiar em Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina reestrutura o órgão e dá outras providências Disponível em httpbuscatjscjusbrbuscatextualintegradocdSistema1cdDocumento172061cdCate goria1qviolEAncia20domE9sticafraseexcluirqualquerprox1prox2 proxc Acesso em 28 jul 2019 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA Meta Nacional 8 2019 Disponível em httpswwwtjscjusbrdocuments33808883539315MetaNacional8 2019CNJpdf5f61d4d2883c24b9f0bf89409ef79cc7 Acesso em 28 jul 2019 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA Maior comarca do Estado Capital é referência para a implantação de projetospiloto Disponível em httpswwwtjscjusbrwebimprensamaiorcomarcadoestadocapitalereferenciaparaa implantacaodeprojetospilotoinheritRedirecttrue Acesso em 2 ago 2019 URRA F Masculinidades A construção social da masculinidade e o exercício da violência In BLAY E A Feminismos e masculinidades novos caminhos para enfrentar a violência contra a mulher 1 ed São Paulo Cultura Acadêmica 2014 p 117137 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 255 SER VÍTIMA E SER MULHER REFLEXÕES SOBRE O TRATAMENTO DE GÊNERO NOS CRIMES CONTRA OS COSTUMES DO CÓDIGO PENAL DE 1940 Daniela Queila dos Santos Bornin1 Gabriele Aparecida de Souza e Souza 2 Júlia Farah Scholz3 Mariella Kraus4 RESUMO A violência contra as mulheres encontrase de fato incorporada à cultura brasileira uma lamentável constatação que pode ser vista inclusive em textos legislativos pátrios Exemplo dessa violência enxergase assim no Código Criminal de 1940 sobremaneira em sua redação original nos chamados crimes contra os costumes inicialmente subdivididos em crimes contra a liberdade sexual de sedução e corrupção de menores de rapto de lenocínio e de tráfico contra as mulheres e de ultraje público ao pudor Nesse rumo de pensamento o presente artigo tem por escopo abordar e refletir acerca dos tipos penais descritos no hoje revogado Título VI do Código Penal parte dedicada a tratar dos crimes contra os costumes apresentando breve histórico de elaboração e outorga desta Lei Penal descrevendo os tipos penais mencionados neste Título e abordando o tratamento destinado às mulheres segundo a sua redação Para os fins propostos a metodologia utilizada é primordialmente indutiva por meio de levantamento bibliográfico de jurisprudência e do DecretoLei nº 28481940 em sua publicação original PALAVRASCHAVE Código Penal de 1940 Crimes contra os costumes Violência Direito das mulheres INTRODUÇÃO Há pouco mais de uma década foi promulgada no Brasil a chamada Lei Maria da Penha Lei Federal nº 113402006 ao fito de coibir a violência doméstica e familiar cometida contra as mulheres No mesmo sentido em 2015 com a promulgação da Lei Federal nº 13104 o feminicídio homicídio praticado contra a mulher motivado pela condição desta de ser do sexo feminino passou a ser considerado circunstância qualificadora do crime de 1 Mestre em Direito pela Instituição Toledo de Ensino ITESP Especialista em Direito Penal e Processo Penal Professora de Direito Penal e Processual Penal da UNIVALI advogada 2 Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Especialista em Direito Público pela Universidade do Estado do Amazonas UEA Graduada em Direito pela Universidade do Estado do Amazonas UEA 3 Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Bolsista CAPES Graduada em Direito pelo Centro Universitário Católica de Santa Catarina 4 Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Pósgraduanda em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional ABDConst Graduada em Direito pela Universidade Regional de Blumenau FURB Advogada Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 256 homicídio bem como foi incluído no rol dos crimes hediondos Eis que a despeito de leis como as anteriormente mencionadas a violência contra as mulheres encontrase de fato incorporada à cultura brasileira havendo reflexos dessa violência inclusive em textos legislativos pátrios Observase nesse sentido o Código Penal de 1940 DecretoLei nº 28481940 em sua redação original sobremaneira no que se refere aos chamados crimes contra os costumes Temse pois que a análise dos dispositivos respectivos ilustra o tratamento destinado às mulheres no Brasil do século XX e a violência a que estavam submetidas com efeitos que certamente perduram até os dias atuais Nesse viés o presente artigo tem por escopo abordar e refletir acerca dos tipos penais descritos no hoje revogado Título VI do Código Penal parte dedicada a tratar dos crimes contra os costumes Querse assim apresentar breve histórico de elaboração e outorga desta Lei Penal descrever os tipos penais mencionados neste Título e abordar o tratamento destinado às mulheres segundo a sua redação Para os fins propostos a metodologia utilizada é primordialmente indutiva por meio de levantamento bibliográfico de jurisprudência e do DecretoLei nº 28481940 em sua publicação original 1 A FIGURA DA MULHER NA REDAÇÃO ORIGINAL DO CÓDIGO PENAL DE 1940 11 Os trabalhos de elaboração do Código Penal de 1940 e a tutela penal dos crimes sexuais O Código Penal de 1940 refletia a prática comum do Estado Novo em criar a legislação por meio de comissões de especialistas vinculadas a órgãos do Executivo neste caso ao Ministério da Justiça Nesse sentido a própria Constituição de 1937 em seus artigos 12 e 74 permitia a atividade de legislar através de decretoslei com força de lei ordinária Sob a influência dessa visão objetiva do direito penal predominante no século XX um dos defensores do tecnicismo jurídicopenal Nelson Hungria5 foi membro da comissão6 revisora do projeto de código penal iniciado por José de Alcântara Machado em 1938 que estava sendo produzido 5 Nelson Hungria Hoffbauer nasceu em 16 de maio de 1891 no Município de Além Paraíba Estado de Minas Gerais Ingressou na Magistratura como Juiz da 8º Pretoria Criminal do antigo Distrito Federal nomeado por decreto de 12 de novembro de 1924 Posteriormente foi Juiz de Órfãos e da Vara dos Feitos da Fazenda Pública tendo conquistado o cargo de Desembargador em 1944 Em 29 de maio de 1951 foi nomeado Ministro do Supremo Tribunal Federal por decreto do Presidente Getúlio Vargas Integrou como membro substituto 25 de julho de 1955 e efetivo 23 de janeiro de 1957 o Tribunal Superior Eleitoral tendo ocupado a presidência do órgão no período de 9 de setembro de 1959 a 22 de janeiro de 1961 Mediante concurso obteve a livre docência da cadeira de Direito Penal da Faculdade Nacional de Direito Participou da elaboração do Código Penal do Código de Processo Penal da Lei das Contravenções Penais e da Lei de Economia Popular Faleceu em 26 de março de 1969 na cidade do Rio de Janeiro 6 A comissão revisora do anteprojeto de José de Alcântara Machado era composta por Nelson Hungria Roberto Lyra Antônio Vieira Braga e Narcélio de Queiroz sob supervisão de Antônio José da Costa e Silva Suas atividades perduraram por dois anos e estiveram direcionadas ao estudo detalhado e científico dos institutos penais que deveriam ser codificados ou não Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 257 durante o governo do Presidente Getúlio Vargas A elaboração do código penal outorgado por DecretoLei foi fruto da comissão técnica ligada ao Ministro da Justiça Francisco Campos No entanto devese destacar que o código de 1940 não foi fruto do legislativo tampouco de um corpo de juristas escolhidos pelo princípio da soberania popular Essa carência do elemento representatividade era justificada pela suposta legitimação dessa comissão recaía sobre seu caráter racional técnico e eficiente Além do caráter objetivo do código verificam se na parte especial destinada ao rol de crimes sexuais temática pertinente à presente pesquisa os termos utilizados para a tipificação dos delitos refletiam o pensamento da sociedade da época sobre a figura da mulher moderna Pela linguagem utilizada no código e com base nos comentários de Nelson Hungria percebese que a mulher demonstrava ser um perigo social por estar sujeita a todas as classes de sedução e por representar um risco à degradação dos costumes Com a decadência do pudor a mulher perdeu muito do seu prestígio e charme Atualmente meio palmo de coxa desnuda tão comum com as saias modernas já deixa indiferente o transeunte mais tropical enquanto outrora um tornozelo feminino à mostra provocava sensação e versos líricos As moças de hoje via de regra madrugam na posse dos seus segredos da vida sexual e sua falta de modéstia permite aos namorados liberdades excessivas Toleram os contatos mais indiscretos e comprazemse com anedotas e boutades picantes quando não chegam a ter iniciativa delas escusandose para tanto inescrúpulo com o argumento de que a mãe Eva não usou folha de parreira na boca HUNGRIA 1981 p83 Para Nelson Hungria foi devido a essa frouxidão de pudicícia que se fizeram mais frequentes as infelicidades sexuais e consequentemente os estudos relacionados à criminalidade sexual A fundamentação utilizada pelo jurista tomou como fundamento o estudo de endocrinólogios psicólogos biólogos e principalmente aspectos de cunho religioso HUNGRIA 1981 p 8183 No então código de 18907 os crimes relacionados à sexualidade isto é ao pudor estavam incluídos dentre os crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor No novo código penal os crimes contra a dignidade sexual na redação original do Código Penal de 1940 estavam incluídos no título VI dos crimes contra os costumes e no capítulo destinado aos crimes contra a liberdade sexual sob a seguinte justificativa O vocábulo costumes é aí empregado para significar sentido restritivo os hábitos da vida sexual aprovados pela moral prática ou o que vale o mesmo a conduta sexual adaptada à conveniência e disciplina sociais O que a lei 7 No âmbito do Código Penal de 1890 o adultério era previsto como crime sexual Já no Código Penal de 1940 passou a englobar o rol de crimes contra o casamento Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 258 penal se propõe a tutelar in subjecta matéria é o interesse jurídico concernente à preservação do mínimo ético reclamado pela experiência social em torno dos fatos sexuais HUNGRIA 1981 p 93 A subdivisão em crimes contra a liberdade sexual se justifica do seguinte modo A disciplina jurídica da satisfação da libido ou apetite sexual reclama como condição precípua a faculdade de livre escolha ou livre consentimento nas relações sexuais É o que a lei penal segunda a epígrafe do presente capítulo denomina liberdade sexual É a liberdade de disposição do próprio corpo no tocante aos fins sexuais HUNGRIA 1981 p 100 No Codigo Penal de 1940 vista a sua redação original o vocábulo mulher constava expressamente em dez artigos8 Eis que feita uma leitura inicial desses dispositivos logo é possível notar que a maioria deles foi concentrada como aprontou a comissão responsável pela elaboração desse Codigo no Título VI parte dedicada aos chamados crimes contra os costumes Também observandose o citado Título em sua integralidade verificase que na realidade todos os tipos penais nele elencados mesmo aqueles que não mencionavam textualmente a palavra mulher estavam a ela relacionados Através da lei penal buscavase reprimir na sociedade a prática de determinadas condutas as quais estavam relacionadas umbilicalmente à vida sexual dos indivíduos e eram entendidas à época como atentatórias da moralidade sexual impudicas ou escandalosas SABINO JÚNIOR 1967 p 861 O objetivo maior com as tipificações a proteção da inocência da mulher virgem ou do pudor da mulher honesta para que não caíssem de outro modo em desgraça desonrando seus pais ou maridos Os crimes contra os costumes encontramse divididos em cinco grupos respectivamente crimes contra a liberdade sexual dentre os quais se incluem o estupro atentado violento ao pudor posse sexual mediante fraude e atentado ao puder mediante fraude em seguida a sedução e a corrupção de menores após o rapto violento rapto fraudulento e rapto consensual em quarto as modalidades de lenocínio e tráfico de mulheres e por fim o ultraje público ao pudor englobando o ato obsceno e o escrito ou objeto obsceno De modo geral observase que a proteção aos bons costumes parece estar acima da proteção à dignidade 8 Na publicação original do Codigo Penal de 1940 a palavra mulher pode ser encontrada expressamente nos seguintes artigos em alguns deles mais de uma vez 29 regras sobre penas privativas de liberdade 119 penas que a reabilitação não extingue 213 estupro 215 posse sexual mediante fraude 216 atentado ao pudor mediante fraude 217 sedução 219 rapto violento ou mediante fraude 231 tráfico de mulheres BRASIL Decretolei nº 2848 de 07 de dezembro de 1940 Publicação original Brasília DF Disponível em httpswww2camaralegbrleginfeddeclei19401949decretolei28487dezembro1940412868 publicacaooriginal1pehtml Acesso em 07 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 259 sexual da mulher justamente pelo fato de todos os crimes contra a liberdade sexual estarem inseridos sob o título de delitos contra os costumes da sociedade da época 12 Alguns avanços na tutela penal dos direitos das mulheres Somente a partir dos anos 60 quando o movimento de mulheres passa a concorrer com a Criminologia crítica rumo à minimização do sistema penal é que as categorias ofensas contra a moral sexual tais como o adultério a sedução a casa de prostituição etc passam a ser considerandos como um sistema penal de expressão da sociedade de classes existente ANDRADE 1996 Nesse sentido Particularmente no Brasil contemporâneo e por ocasião da atual reforma da parte especial do Código Penal brasileiro de 1940 em curso assistimos a um processo de dupla via ao mesmo tempo em que se discute a descriminação e despenalização de condutas tipificadas como crimes adultério sedução por inexperiência casa de prostituição aborto etc se discute a criminalização de condutas até então não criminalizadas como violência doméstica e assédio sexual agravamento de penas como no caso de assassinato de mulheres e enfim a redefinição de crimes sexuais como o estupro objetivando a sua neutralização sexista E segmentos muito representativos do movimento feminista no Brasil e da população em geral tem apoiado esta dupla via em especial a criminalização do assédio sexual apontando tal como um progresso ou avanço do movimento feminista ANDRADE 1996 p 89 Para a professora Vera Regina Pereira de Andrade o problema do sistema penal é seu caráter seletivo e desigual de homens e mulheres e porque é um sistema de violência institucional que exerce seu poder e seu impacto também sobre as vítimas E ao incidir sobre a vítima mulher a sua complexa fenomenologia de controle social a culminação de um processo de controle que certamente inicia na família o sistema penal duplica ao invés de proteger a vitimação feminina Pois além da violência sexual representada por diversas condutas masculinas estupro assédio a mulher tornase vítima da violência institucional plurifacetada do sistema penal que expressa e reproduz a violência estrutural das relações sociais capitalistas a desigualdade de classe e patriarcais a desigualdade de gêneros de nossas sociedades e os estereótipos que elas criam e se recriam no sistema penal e são especialmente visíveis no campo da moral sexual dominante ANDRADE 1996 p 90 Na década de 90 houve três instrumentos normativos que contribuíram para as alterações nos crimes sexuais a Lei Federal nº 8069 conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente a Lei Federal nº 8072 de 25 de julho de 1990 a Lei dos Crimes Hediondos e por fim a Lei Federal nº 9281 de 4 de junho de 1996 Nesse sentido com base nas distinções entre o texto original de 1940 e nas reformas da década de 1990 aparentemente houve maior Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 260 preocupação do legislativo na criminalização de novas condutas sexuais o que não significa contudo que na prática houvesse maior defesa dos direitos da mulher 2 O PERFIL DA VÍTIMA MULHER DE ACORDO COM OS CRIMES CONTRA OS COSTUMES DO CÓDIGO PENAL DE 1940 21 Crimes contra a liberdade sexual Eram quatro os crimes contra a liberdade sexual nos moldes do Capítulo I do Título VI ora em comento a estupro b atentado violento ao pudor c posse sexual mediante fraude e d atentado ao pudor mediante fraude Tais infrações nas palavras de Sabino Júnior consubstanciavamse na posse carnal da mulher pelo homem quando ela não se entrega voluntariamente mas o faz constrangida ou levada pela fraude do agente ou ainda quando o faz mediante o uso de violência ou ameaça Ainda em casos que envolviam violência a legislação penal permitia nos moldes do artigo 224 do Código Criminal presumila quando a vítima a tivesse idade inferior a quatorze anos b fosse alienada ou débil mental conhecida a essa circunstância pelo agente violador e c estivesse inconsciente fosse por conduta do agente fosse por doença fosse por outra causa que lhe impeça de oferecer resistência SABINO JÚNIOR 1967 p 865 a Estupro Encontravase tipificado no artigo 213 do Código Penal consistindo em constranger mulher a conjunção carnal mediante violência ou grave ameaça sendo punível a sua prática com reclusão de três a oito anos Neste crime apenas a mulher poderia ser o seu sujeito passivo sendo ela virgem ou não honesta ou prostituta e tanto o homem quanto a mulher poderiam ser sujeitos ativos deste tipo penal9 A consumação se daria então com a cópula vagínica ou conjunção havendo tentativa de estupro quando a despeito do constrangimento à união sexual não houvesse a introdução ainda que parcialmente do membro masculino na vulva SABINO JÚNIOR 1967 p 866 Também a respeito da violência física ou moral utilizada contra a mulher ela deveria ser suficiente para retirarlhe a possibilidade de resistir à união sexual Algumas vezes entretanto a obtenção da prova dessa resistência sobrava dificultada pelas exigências feitas em relação à conduta da vítima no caso concreto Nesse rumo de pensamento videse a seguinte jurisprudência datada de 1955 9 Entendiase não ser necessário que o constrangimento a coação ou a violência partisse da mesma pessoa que realizou o ato sexual Assim nessa função de constranger era possível que uma mulher figurasse como coautora do crime de estupro eis que não se admitia à época que a conjunção carnal se desse entre pessoas do mesmo sexo Videse nesse sentido Sabino Junior 1967 p 866 A violência caracterizase pela conjunção do órgão genital de uma pessoa com o orgão genial de outra de sexo diverso Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 261 3848 O que os autos não revelam é a violência tanto a física como a moral para a caracterização do estupro Deve ser a violência provada bem como ter havido resistência sincera e real por parte da ofendida Na violência física as lesões contusões escoriações atestarão a resistência da vítima Na violência moral onde a ameaça é a sua forma típica deve ter caráter sério formal e injusto para constranger a mulher ao coito SOUZA LIMA a reconhecia representada pelo terror incutido com a ameaça resoluta de morte e exibição de arma destinada para isso ou a aplicação da mão ao pescoço em atitude de estrangulamento Tratado de Medicina Legal 5ª ed pág 537 Ac un da Câm Crim do T J de Sta Catarina de 21655 na ap crim n 8620 de Brusque Rel Des IVO GUILHON Jurispr do Est de Sta Catarina 1955 pág 122 MIRANDA 1962 p 562 Cumpre falar ainda acerca do estupro marital violência carnal cometida na intimidade conjugal a qual a doutrina majoritária até meados da década de 1980 não vislumbrava como crime Sobre o tema Delmanto 1983 p 268 Quanto à possibilidade de o marido ser agente de crime de estupro praticado contra a esposa a grande maioria dos doutrinadores entende que não pode sêlo porquanto seria penalmente lícito constranger a mulher a conjunção carnal mediante violência física ou grave ameaça10 No mesmo sentido Sabino Júnior 1967 p 866 867 entendeu inexistir violação da liberdade sexual no casamento por conseguinte para este autor não há crime de estupro quando da conjunção carnal violenta entre cônjuges b Atentado violento ao pudor Estava disposto no artigo 214 do Código Criminal implicando em constranger alguém mediante violência ou grave ameaça a praticar ou permitir que com ele se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal A pena para este crime consistia em reclusão de dois a sete anos Não estava pacificada na doutrina a possibilidade ou não deste crime na modalidade tentada DELMANTO 1983 p 271 O fim almejado pelo agente do atentado violento ao pudor não era a conjunção carnal como ocorria no estupro mas a prática de ato libidinoso por si que pode ser entendido como a satisfação da luxúria por meio de toques masturbação esfregação entre outros sem que aconteça o coito entretanto SABINO JÚNIOR 1967 p 867 Em relação a este tipo penal podiam ser sujeito passivo tanto o homem quanto a mulher do mesmo modo tanto o homem quanto a mulher podiam ser sujeito ativo HUNGRIA 1959 p 140 c Posse sexual mediante fraude Nos moldes do artigo 215 do Código Penal consistia na conjunção carnal com mulher honesta mediante fraude sendo punível com pena de reclusão de um a três anos a sua prática Consumavase com a união sexual admitindose esse 10 Este contudo não era o entendimento pessoal de Delmanto 1983 p 268 que se filiou ao pensamento de que seria possível o cometimento de crime de estupro pelo marido contra a própria esposa uma vez que o estupro nada mais seria do que o delito de constrangimento ilegal com fins de conjunção carnal Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 262 crime na modalidade tentada Apenas a mulher honesta virgem ou não poderia ser vítima deste crime e somente o homem poderia ser o seu respectivo sujeito ativo Eis que embora a virgindade da mulher não fosse elemento essencial para a configuração deste tipo penal para os casos em que antes da relação sexual fraudulenta a vítima fosse ainda mulher virgem com idade superior a quatorze anos e inferior a dezoito anos o crime passaria a ser qualificado dispondo a legislação penal sobre a aplicação de pena de reclusão de dois a seis anos para essas situações DELMANTO 1983 p 272 Sobre o conceito de mulher honesta Bento de Faria 1959 p 28 No caso em aprêço por não ser exigida a violência ou a ameça grave como integrantes do delito êste não se poderá verificar em relação à prostituta que mantém pùblicamente o comércio da sua carne Mulheres tais não são honestas Não seria possível fraudar uma honestidade que não existe Mas desonestas não são ùnicamente elas mas também as que sem exercer tal ocupação ou profissão mas por devassidão ou mesmo por interêsse embora casadas freqüentam os rendezvous ou os casinos ou boites moralidades estilizadas ou outras reuniões de idêntica moralidade para se oferecerem a conquista dos moços bonitos ou dos velhos que disponham de dinheiro ou de fichas A mulher honesta seria pois aquela que detivesse uma moral sexual irrepreensível outrossim aquela que ainda não tivesse rompido com o minimum de decência exigido pelos bons costumes Para a configuração da posse sexual mediante fraude era necessário o emprego de fraude pelo agente estelionato sexual de modo que essa vítima consentisse para a coito tendo contudo sido enganada para esses fins São exemplos clássicos desse tipo penal a mulher que na obscuridade da alcova recebe indivíduo que se para ela se insinua como seu marido ou a simulação de casamento entre o violador e sua vítima HUNGRIA 1959 p 150151 Cumpre salientar por fim que o erro sobre a honestidade da mulher era causa de extinção de punibilidade da espécie DELMANTO 1983 p 272 d Atentado ao pudor mediante fraude Nos moldes do artigo 216 do Código Penal correspondia a induzir mulher honesta mediante fraude a praticar ou permitir que com ela se pratique ato libidinoso diverso da conjunção carnal variando a pena aplicável a este tipo penal de um a dois anos de reclusão Poderiam ser sujeitos ativos desse crime tanto o homem quanto a mulher mas no polo passivo como vítima deste delito apenas poderia figurar a mulher honesta cuja definição já foi apontada anteriormente neste artigo Admitindose a tentativa do atentado ao pudor mediante fraude a sua consumação se daria com a prática do ato libidinoso em si DELMANTO 1983 p 273 Ainda O ato libidinoso poder praticado sôbre o sujeito Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 263 passivo ou no próprio agente ou pelo próprio sujeito passivo em seu corpo se o fizer constrangido ou induzido mediante fraude SABINO JÚNIOR 1967 p 870 22 Crimes de sedução e corrupção de menores Estes tipos penais encontravamse disposto no Capítulo II do Título VI do Código Penal de 1940 observada a sua publicação original a Sedução Este crime constava do artigo 217 do Código Penal de 1940 estabelecendo pena de reclusão de dois a quatro anos a quem seduzisse mulher virgem menor de dezoito anos e maior de quatorze e tivesse com ela conjunção carnal aproveitandose de sua inexperiência ou justificável confiança Para Nelson Hungria 1959 p 169 a sedução pressupunha a utilização de meios não violentos para corromper sexualmente uma mulher tornandoa acessível aos desejos lúbricos do agente A ofendida era sugestionada à conjunção carnal através de carícias insinuação reiteração do protesto de amor realizadas pelo sujeito ativo SABINO JÚNIOR 1967 p 874 Neste tipo penal somente o homem poderia figurar como sujeito ativo e a sua eventual vítima teria de ser uma moça virgem observada a faixa etária indicada no dispositivo penal e verificada a sua inexperiência ou justificável confiança no agente violador Observese a título de ilustração a seguinte jurisprudência relacionada ao crime de sedução 3893 A lei penal não ampara a menor que à conjunção carnal se deixa levar pela vontade de usufruir a sensação da carne ou pela promessa de retribuição em dinheiro ou presentes Ac un da 2ª Câm Crim do T J de M Gerais de 281152 na ap n 8274 Rel Des PEDRO BRAGA Rev Forense vol 169 pág 403 MIRANDA 1962 p 587 b Corrupção de menores Consoante o artigo 218 do Codigo Criminal corromper ou facilitar a corrupção de pessoa maior de quatorze e menor de dezoito anos com ela praticando ato de libidinagem ou induzindoa a praticálo ou presenciálo seria punível com reclusão de um a quatro anos Poderiam figurar como sujeitos ativos ou passivos deste crime tanto o homem quanto a mulher buscandose através desta tipificação proteger a moral sexual dos menores o menores havidos na sociedade como já moralmente corrompidos não eram abarcados como suas possíveis vítimas DELMANTO 1983 p 276 Nesse contexto videse doutrina histórica relacionada a este tipo penal A corrupção implica na perda do sentimento de pudor e castidade e quem denota não possuílo não poderá ser sujeito passivo dêsse delito Sòmente a mulher inexperiente e recatada de comportamento regrado compatível com Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 264 a idade o estado de virgindade o sexo poderá ser contaminada com as práticas carnais que se presume não conhecer FARIA 1959 p 5657 Assim a consumação da corrupção de menor se daria com a prática do ato libidinoso que o levou à desmoralização exigindose tal desmoralização afinal ou seja sem a demonstração de efetivo desvio moral causado no menor não haveria de se falar em sua corrupção DELMANTO 1983 p 276 23 Crime de rapto No Capítulo III do Título VI do Código Penal constavam os tipos penais referentes ao crime de rapto quais sejam a rapto violento ou mediante fraude b rapto consensual c rapto privilegiado ou para fim de casamento e d concurso de rapto e outro crime a Rapto violento ou mediante fraude Na forma do artigo 219 correspondia a raptar mulher honesta mediante violência grave ameaça ou fraude para fim libidinoso aplicável a esta prática a pena de reclusão de dois a quatro anos O rapto neste capítulo consubstanciava se na retirada da mulher de seu lar doméstico ou de onde se encontre desse modo colocada em perigo a liberdade sexual da vítima por meio da prática da libidinagem SABINO JÚNIOR 1967 p 877878 Tanto o homem quanto a mulher podem ser sujeitos ativos deste crime mas apenas a mulher honesta pode figurar como vítima desta ação DELMANTO 1983 p 276 Ainda era necessário que o rapto tivesse ocorrido mediante o uso de violência emprego de força física exercida contra a vítima pessoalmente ameaça suficiente para impedir ou afastar a resistência do sujeito passivo ou fraude qualquer artifício engano ou pretexto que leve a vítima a acompanhar o seu raptor FARIA 1959 p 61 b Rapto consensual Estava disposto no artigo 220 do Código Penal e estabelecia pena de detenção de um a três anos se a raptada fosse maior de quatorze anos e menor de vinte e um e o rapto se desse com seu consentimento Qualquer pessoa homem ou mulher poderia ser sujeito ativo neste tipo penal mas apenas uma mulher honesta com a faixa etária indicada no dispositivo e não emancipada poderia ser vítima desta espécie de rapto DELMANTO 1983 p 277 Sobre o tema lecionou Sabino Junior 1967 p 879 O rapto consensual é chamado impróprio ou in parentes Nêle a violação do pátrio poder prevalece sobre a ofensa dirigida à liberdade da vítima c Rapto privilegiado ou para fim de casamento Nos moldes do artigo 221 do Código Criminal era possível que o rapto tivesse sido realizado com finalidade de casamento entre raptor e raptada ou ainda que o raptor devolvesse a vítima à sua família sem ter com ela praticado qualquer ato libidinoso Nesses casos a legislação penal possibilitava a diminuição Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 265 da pena seria diminuído em um terço se o rapto tivesse fins matrimoniais e na metade se a mulher fosse posta em liberdade tendo sido mantida a sua honestidade SABINO JÚNIOR 1967 p 879880 A título de ilustração observese o seguinte julgado datado de 1954 O réu é de bons antecedentes e queria casar com a ofendida tendo sido êsse o móvel das ações que praticou É circunstância que deve ser considerada para a fixação da pena do estupro e atua como atenuante especial no rapto em vista do art 221 do Código Penal T J do R G do Sul de 24454 na ap crim n 12423 de P Alegre Rel Des BALTAZAR BARBOSA Rev Jurídica vol 19 pág 293 MIRANDA 1962 p 637 d Concurso de rapto e outro crime Nos moldes do artigo 222 do Codigo Penal se o agente ao efetuar o rapto ou em seguida a este praticasse outro crime contra a raptada aplicarseiam cumulativamente a pena correspondente ao rapto e a cominada ao outro crime 24 Crime de lenocínio e de tráfico de mulheres O Capítulo V do Título VI mencionado dispunham sobre as subclasses referentes ao crime de lenocínio e de tráfico de mulheres sendo a mediação para servir à lascívia de outrem b favorecimento da prostituição c casa de prostituição d rufianismo e e tráfico de mulheres a Mediação para servir à lascívia de outrem Conforme o artigo 227 do Código Criminal este tipo penal consistia em induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem crime este punível com pena de reclusão de um a três anos É o mesmo que lenocínio ou crime de importação nele valendose o agente do induzimento proteção ou incitamento da vítima a satisfazer a libidinagem alheia SABINO JÚNIOR 1967 p 893 Poderiam figurar como autores ou vítimas deste crime tanto o homem quanto a mulher sendo agravada a pena imputável passando à reclusão de dois a cinco anos se o sujeito ativo for ascendente descendente marido irmão ou irmã da vítima ou se esta tiver idade superior a quatorze anos mas menor de dezoito anos FARIA 1959 p 93 b Favorecimento da prostituição Consoante o artigo 228 do Código Penal consubstanciavase em induzir ou atrair alguém à prostituição facilitála ou impedir que alguém a abandone estabelecendose para esse crime pena de reclusão de dois a cinco anos Nos casos em que o autor fosse ascendente descendente marido irmão ou irmã da vítima a pena aplicável seria então reclusão de três a oito anos Se o crime fosse cometido com emprego de violência grave ameaça ou fraude a pena seria de reclusão de quatro a dez anos cumulada com a pena correspondente à violência Por fim se o crime fosse cometido com o fim de lucro aplicarseia também multa de dois conta a quinze contos de réis Qualquer Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 266 pessoa poderia ser sujeito ativo neste tipo penal também o sujeito passivo poderia ser homem ou mulher DELMANTO 1983 p 228 Cumpre notar nada obstante que embora o objeto jurídico deste crime fosse a moralidade pública sexual a qual deveria ser conservada na sociedade reconheciase abertamente aos homens pelo menos aos solteiros certo direito de frequentar casas de prostituição e manter relações sexuais com prostitutas havidas socialmente como mulheres desonradas desonestas Nesse sentido Faria 1962 p 96 I O instinto sexual no homem é incoercível e a sua satisfação fisiológica é condição indispensável à saúde Não há dúvida que o casamento monogâmico é a forma única de regular idealmente o comércio sexual tendo em vista a superveniência da prole as suas garantias e educação Mas não seria lícito supor exija a lei fora dêle a obrigação ascética da completa abstenção da função sexual para impor aos não casados a castidade absoluta c Casa de prostituição Nos moldes do artigo 229 do Código Criminal este crime acontecia com a manutenção por conta propria ou de terceiro casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso havendo ou não intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente punível com reclusão de dois a cinco anos e multa de dois contos a quinze contos de réis Poderia ser sujeito ativo desse crime tanto o homem quanto a mulher e o sujeito passivo seria a coletividade como um todo Tratavase de crime permanente exigindose assim a habitualidade da conduta DELMANTO 1983 p 229 d Rufianismo Tratavase na forma do artigo 230 do Codigo Penal de tirar proveito da prostituição alheia participando diretamente de seus lucros ou fazendose sustentar no todo ou em parte por que a exercesse estabelecendose para este tipo penal reclusão de um a quatro anos e multa de dois contos a quinze contos de réis Poderia ser cometido por qualquer pessoa homem ou mulher mas apenas as meretrizes ou os gigolôs pessoas que comercializam seu próprio corpo com um número indeterminado de fregueses poderiam ser eventuais vítimas desse tipo penal DELMANTO 1985 p 289 e Tráfico de mulheres Estava disposto à época no artigo 231 do Código Penal promover ou facilitar a entrada no territorio nacional de mulher que nele venha exercer a prostituição ou a saída de mulher que vá exercêla no estrangeiro pena reclusão de três a oito anos Nos casos em que a vítima era maior de quatorze anos e menor de dezoito anos bem como nas situações envolvendo agente que fosse ascendente descendente marido irmão tutor ou curador da vítima a pena seria então de reclusão de quatro a dez anos Havendo emprego de violência grave ameaça ou fraude aplicarseia pena de reclusão de cinco a doze anos afora a pena correspondente à violência Por fim se o crime fosse praticado com o Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 267 objetivo de lucro acrescentarseia à pena multa de cinco a dez contos de réis Qualquer pessoa homem ou mulher poderia ser sujeito ativo deste tipo penal mas apenas as mulheres poderiam figurar como possíveis vítimas destas condutas não importava a análise de sua honestidade DELMANTO 1985 p 290 A objetificação da mulher nesse contexto em que é traficada fica patente A mulher explorada sofre um desconceito da sua personalidade como ser humano para ser realmente importada ou exportada como escrava sujeita ao comércio da sua propria carne FARIA 1959 p 109 25 Ultraje público ao pudor O pudor conforme Sabino Júnior 1967 p 901902 diz respeito ao sentimento de vergonha sentimento de reserva natural em relação às coisas sexuais É em outros termos a medida da moralidade sexual Objeto da tutela penal o pudor com fins à sua conservação na sociedade foi contemplado expressamente no Capítulo VI do Título VI do Código Criminal Observados os respectivos tipos penais estes podem ser divididos em quatro subclasses quais sejam a ultraje público por ato obsceno b ultraje público ao pudor por meio de escrito ou objeto obsceno c ultraje público ao pudor por meio de espetáculos em geral e d ultraje público mediante audição ou recitação a Ultraje público por ato obsceno Praticar ato obsceno em lugar publico ou aberto ou exposto ao publico a quem realizasse essa conduta aplicarseia conforme o artigo 233 do Codigo Penal de 1940 pena de detenção de três meses a um ano ou multa de um conto a três contos de réis De um modo geral ato obsceno poderia ser entendido como uma atitude escandalosa que agride a dignidade de outrem geralmente relacionado a práticas sexuais Para Nelson Hungria 1959 p 310 Dizse obsceno o ato que atrita abertamente grosseiramente com o sentimento médio de pudor ou com os bons costumes Tratase de crime que poderia ser à época praticado por qualquer pessoa homem ou mulher e a coletividade era o seu sujeito passivo DELMANTO 1983 p 291292 Ainda sobre a definição de ato obsceno sendo indeterminado definir a obscenidade nos casos concretos videse a seguinte advertência disposta em jurisprudência de 1957 4026 É preciso que as autoridades não exagerem nas providências adotadas para fiscalização de namoros na via pública Evitemse os encontros escandalosos principalmente em lugares sem a devida iluminação mas não se deve chegar ao absurdo de impedir que os jovens se amem Os exageros e arroubos no terreno amoroso devem ser coibidos Não se pode ser contudo muito intolerante pois ao contrário eliminarseiam certos encantos da vida Ac um da 2ª Câm Crim do T de Alçada de S Paulo de 271257 na ap Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 268 crim n 12539 de Mococa Rel Juiz VALENTIM SILVA Rev dos Tribs vol 274 pág 553 MIRANDA 1962 p 694 b Ultraje público ao pudor por meio de escrito ou objeto obsceno Conforme o artigo 234 do Código Penal este crime consubstanciavase em fazer importar exportar adquirir ou ter sob sua guarda para fim de comércio de distribuição ou de exposição pública escrito desenho pintura estampa ou qualquer objeto obsceno Era punível com detenção de seis meses a dois anos ou multa de dois contos a cinco contos de réis Tratase na verdade de uma modalidade do tipo penal descrito no artigo 233 mencionado anteriormente À semelhança deste o ultraje público ao pudor por meio de escrito ou objeto obsceno poderia ser cometido tanto por homens quanto por mulheres e a coletividade era o sujeito passivo respectivo DELMANTO 1983 p 234 c Ultraje público ao pudor por meio de espetáculos em geral Encontravase disposto no 1º II do artigo 234 do Código Penal Também era uma modalidade do crime previsto no artigo 233 versava sobre a realização em lugar publico ou acessível ao publico de representação teatral ou exibição cinematográfica de caráter obsceno ou qualquer outro espetáculo que tenha o mesmo caráter A pena aplicável a esta prática detenção de seis meses a dois anos ou multa de dois contos a cinco contos de réis Este crime poderia ser cometido tanto por homens quanto por mulheres e a coletividade era sua eventual vítima DELMANTO 1983 p 234 d Ultraje público mediante audição ou recitação No moldes do artigo 234 1º III do Código Penal incriminavase a realização em lugar publico ou acessível ao público ou pelo rádio audição ou recitação de caráter obsceno com pena de detenção de seis meses a dois anos ou multa de dois contos a cinco contos de réis Homens ou mulheres poderiam figurar como sujeitos ativos deste tipo penal e como sujeito passivo tinhase a coletividade DELMANTO 1983 p 234 3 A VIOLÊNCIA FORMAL DO CÓDIGO PENAL DE 1940 EM RELAÇÃO ÀS MULHERES Apresentado o aspecto histórico de elaboração do Código Penal de 1940 bem como os tipos penais relacionados à integridade física e sexual da mulher passase a uma análise crítica da violência formal contra as mulheres presente nos tipos penais apresentados Vale destacar que tal análise não se baseia nos valores da atualidade mas aponta como a estrutura estabelecida pelo Código em comento refletiu e reafirmou violências contra as mulheres Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 269 O título original Dos crimes contra os costumes do Codigo Penal de 1940 bem como diversos tipos penais exigiam que a vítima fosse mulher honesta como posse sexual mediante fraude atentado ao pudor mediante fraude sedução rapto consensual já indicavam quem poderia ser vítima de tais crimes uma mulher considerada honesta para a cultura da época Isto quer dizer portanto que nem todas as mulheres poderiam ter respaldo jurídico para se defenderem de um crime sexual sofrido ou seja as mulheres desonestas não possuiam os mesmos direitos ANDRADE 1996 A lesão sofrida pela vítima não era objeto principal de tutela do direito as normas penais não visavam proteger a liberdade sexual das mulheres por isso se tratavam de conceitos de uma estrutura patriarcal afinal tutelavam uma moral sexista onde situava as mulheres numa posição subalterna Infelizmente a evolução neste sentido caminha a passos lentos pois apenas em 2005 a Lei nº 11106 revogou alguns tipos penais como sedução rapto violento ou mediante fraude e rapto consensual aos quais era prevista uma diminuição de pena se o agente contraísse matrimônio com a vítima bem como revogou o dispositivo que previa aumento de pena caso o agressor fosse casado PAIVA SABADELL 2018 De acordo com Vera Regina Pereira de Andrade 2003 p 100 os tipos penais sexuais se prestam em verdade a proteger a moral sexual dominante e não a liberdade sexual feminina que por isso mesmo é pervertida a mulher que diz não quer dizer talvez a mulher que diz talvez quer diz sim pois o sistema penal é ineficaz para proteger o livre exercício da sexualidade feminina e o domínio do proprio corpo Assim é nítido que o tratamento entre homens e mulheres não era igualitário afinal nenhum artigo do Código Penal indicava ao homem a característica de honesto como condição para que pudesse ser enquadrado como vítima de um crime E mesmo nos dias atuais a igualdade expressa no inciso I do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 dispondo que homens e mulheres são iguais perante a lei em direitos e obrigações na prática a luta pela igualdade de tratamento ainda é ampla e pode ser observada através dos inúmeros movimentos feministas atuais Ressaltase que ainda há requícios sexistas da legislação brasileira tratando as mulheres como uma guardiã da honra da família impondo uma conduta recatada sem liberdade sexual e os seus comportamentos que afrontam os padrões estabelecidos e aceitos pela maioria são apontados como uma ofensa a moral e aos bons costumes ACOSTA GASPAROTO 2015 Em razão de uma visão estereotipada das mulheres o direito acaba exigindo uma atitude de recato e com isso impondo uma situação de dependência Mesmo após algumas alterações do Código Penal a respeito persistem nos julgados uma tendência protecionista que dispõe de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 270 uma dupla moral pois nas decisões judiciais aparecem termos sobre a inocência da mulher uma conduta desregrada comportamento extravagante vida dissoluta e outras expressões que possuam uma nítida e forte carga ideológica ou seja é desconsiderada a liberdade da mulher DIAS 1994 Essa desigualdade de gênero refletida nitidamente no direito penal decorre de acordo com Baratta da diferenciação das esferas e dos papéis na divisão social do trabalho que age a construção social dos gêneros A sociedade patriarcal reservou de forma ampla o protagonismo da esfera produtiva aos homens e do círculo reprodutivo às mulheres BARATTA 1999 p 21 A mulher ao longo da história no direito penal brasileiro sempre foi categorizada e rotulada notadamente nos crimes sexuais Para o Direito Penal brasileiro digase patriarcal e machista não basta a mulher ser vítima ela deve ser honesta mesmo apos o banimento dessa concepção de mulher honesta desde 1940 nos crimes de estupro Ainda hoje a honestidade conceituada por preceitos morais faz parte do cotidiano prático jurídico nas análises de casos concretos pelos juízes e tribunais e notadamente nos tribunais populares das redes sociais e da mídia que categorizam e dividem as mulheres em honestas e desonestas dependendo do contexto fático em que se desenvolvem as circunstâncias nos crimes sexuais Nesse sentido Para ser respeitada é necessário que cumpra um determinado modelo de ser mulher como se a sua dignidade fosse condicionada É em tal panorama que se cria a culpa para a vítima visto que pensamento de sexo para a mulher considerada honrada está ligada à dessexualização do corpo sob tal ideologia a mulher não precisaria sentir prazer nas relações sexuais Além disso deveria manter a castidade mesmo no casamento de modo que deveria se relacionar sexualmente apenas para a procriação PERROT 2013 p 75 É a Medusa amaldiçoada e morta depois de ser estuprada por Poseidon que narra a culpabilização da vítima e cultura do estupro BAGENSTOSS BORNIN 2019 Diante disso os sujeitos processuais os atores jurídicos os doutrinadores reproduziram a categorização da mulher no direito penal brasileiro baseado no contexto da sociedade patriarcal de modo a selecionar o perfil de vítima adequadamente enquadrado nos crimes contra os costumes o qual deveria condizer com os valores e bons costumes defendidos por aquela sociedade tradicional Desta forma é necessário considerar os movimentos como os feministas que lutam pelo tratamento igualitário e pela real efetivação do princípio da igualdade entre homens e mulheres previsto na Constituição Federal de 1988 ACOSTA GASPAROTO 2015 Afinal Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 271 sem estes movimentos o Direito acaba funcionando como um sistema que propulsiona desigualdades em vez de combatêlas e a força teórica dos Feminismos derivam da injusta experiência do sistema legal em criar e perpetuar a posição de desigual das mulheres NUNES VIANNA 2017 p 80 Esse tratamento disforme após grandes lutas vem se modificando em passos lentos notadamente após a Convenção de Belém do Pará em 1994 com o advento da Lei 113402006 Lei Maria da Penha que trouxe a dimensão e a conceituação das violências de gênero possibilitando um novo olhar para as mulheres na seara do Direito Penal CONSIDERAÇÕES FINAIS O Código Penal de 1940 carece do elemento representativo eis que foi elaborado por uma comissão técnica ligada ao Ministro da Justiça Francisco Campos e em sequência outorgado na forma de DecretoLei Por não ter sido fruto dos trabalhos do Poder Legislativo tampouco de um corpo de juristas escolhidos pelo princípio da soberania popular a ausência do caráter democrático era justificada por um suposto caráter racional técnico e eficiente do projeto elaborado pelos membros da comissão nomeados pelo Executivo Dentre os trabalhos recebe destaque o jurista Nelson Hungria um dos defensores do tecnicismo jurídicopenal que foi membro da comissão revisora do projeto de código penal iniciado por José de Alcântara Machado em 1938 durante o governo do Presidente Getúlio Vargas e que após sua outorga teceu uma série de comentários aos artigos do Código Penal No que concerne à presente pesquisa os comentários de Nelson Hungria quanto aos crimes contra os costumes retratam a visão dos juristas da época à figura feminina Pela linguagem utilizada no código e com base em seus comentários percebese que a mulher demonstrava ser um perigo social por estar sujeita a todas as formas de sedução e por representar atentar contra os bons costumes Isto porque a proteção aos costumes da sociedade tradicional parece estar acima da proteção à dignidade sexual da mulher justamente pelo fato de todos os crimes contra a liberdade sexual estarem inseridos sob o título de delitos contra os costumes da sociedade da época Por conseguinte o principal objetivo da tipificação penal dessas ações era a proteção da inocência da mulher virgem ou do pudor da mulher honesta para que não caíssem de outro modo em desgraça desonrando seus pais ou maridos O título original Dos crimes contra os costumes do Codigo Penal de 1940 portanto tinha por característica proteger a vítima mulher honesta retirando da esfera penal à tutela dos delitos praticados contra as mulheres desonestas tal como consideradas para a sociedade tradicional da época Por fim o que se Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 272 observa é a presença de uma violência formal na classificação dos tipos penais que escolhe o perfil de vítima melhor adequado aos costumes vigentes em uma sociedade patriarcal de modo a rotular a figura feminina a partir do seu comportamento social e ainda a refletir em uma discriminação de gênero que acaba sustentando a baixa notificação dos casos de violência sexual no sistema de justiça criminal REFERÊNCIAS ACOSTA Leonardo Machado GASPAROTO Carlos Henrique Discriminação no tratamento jurídico recebido pelas mulheres nos códigos penais do século XIX Revista Eletrônica da Faculdade de Direito de Franca ISSN 19834225 v10 n2 dez 2015 Disponível em httpwwwrevistadireitofrancabrindexphprefdfarticleview277260 Acesso em 13 ago 2019 ALVES Branca Moreira PITANGUY Jacqueline O que é feminismo Abril Cultural 1985 ANDRADE Vera Regina Pereira de Violência sexual e sistema penal proteção ou duplicação da vitimação feminina Seqüência Estudos Jurídicos e Políticos v 17 n 33 p 87114 1996 de Porto Alegre RS Disponível em httpsperiodicosufscbrindexphpsequenciaarticleview1574114254 Acesso em 13 ago 2019 ANDRADE Vera Regina Pereira de Sistema penal máximo x cidadania mínima Porto Alegre Livraria do Advogado Editora 2003 ARAÚJO João Vieira de A União Internacional de Direito Penal In Revista Acadêmica da Faculdade de Direito do Recife Recife Typografia de FP Boulitreau V1 Anno 1 1891 p4043 BAGGENSTOSS Grazielly Alessandra BORNIN Daniela Queila dos Santos Mulheres vítimas de violência sexual não podem ter o fim da Medusa In Carta Capital disponível em httpswwwcartacapitalcombrblogs3aturmamedusa acesso em 21 ago2019 BARATTA Alessandro O paradigma do gênero da questão criminal à questão humana In CAMPOS Carmen Hein de org Criminologia e feminismo Porto Alegre Sulina 1999 BRASIL Decretolei nº 2848 de 07 de dezembro de 1940 Publicação original Brasília DF 1940 Disponível em httpswww2camaralegbrleginfeddeclei19401949decreto lei28487dezembro1940412868publicacaooriginal1pehtml Acesso em 07 ago 2019 DELMANTO Celso Código Penal Anotado 4 ed aum e atualizada São Paulo Saraiva 1983 DIAS Maria Berenice Palestra proferida na Oficina de Capacitação sobre Violência e Gênero THEMIS Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero Porto AlegreRS 08091994 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 273 FARIA Bento de Código Penal Brasileiro Comentado 2 ed Rio de Janeiro Distribuidora Récord 1959 6 v HUNGRIA Nelson Comentários ao código penal arts 197 a 249 5ed Vol VIII Rio de Janeiro Forense 1981 HUNGRIA Nelson O tecnicismo jurídicopenal In Questões jurídicopenais Rio de Janeiro Livraria Jacintho 1940 MILLET Kate Política Sexual Dom Quixote Publicações 1969 MIRANDA Darcy Arruda Repositório de Jurisprudência do Código Penal Títulos II a XI da Parte Especial Artigos 155 a 361 Ementas ns 3481 a 4271 São Paulo Revista dos Tribunais 1962 4 v NUNES Bárbara Nogueira VIANNA Roberta de Stéfani Movimento feminista e direitos humanos na américa latina VI Congresso Internacional Constitucionalismo e Democracia o novo constitucionalismo latinoamericano Santa Catarina 2017 Disponível em httpswwwconpediorgbrpublicacoesqu1qisf8g86d5443y3oMN3L4K025VrnUpdf Acesso em 13 ago 2019 PAIVA Lívia de Meira Lima SABADELL Ana Lucia O crime de estupro à luz da epistemologia feminista um estudo de casos no STF DELICTAE Revista de Estudos Interdisciplinares sobre o Delito Sl v 3 n 4 p 110155 jul 2018 ISSN 25265180 Disponível em httpdelictaecombrindexphprevistaarticleview64 Acesso em 13 ago 2019 RIBEIRO FILHO Carlos Antonio Costa Clássicos e Positivistas no Moderno Direito Penal Brasileiro uma interpretação sociológica In PEREIRA Carlos Alberto Messeder HERSCHMANN Michael org A invenção do Brasil moderno Rio de Janeiro Rocco 1994 SABINO JÚNIOR Vicente Direito Penal 3v São Paulo Sugestões Literárias 1967 SONTAG Ricardo Código e técnica a reforma penal brasileira de 1940 tecnicização da legislação e atitude técnica diante da lei em Nelson Hungria 2009 162 pp Tese de Doutorado Dissertação Mestrado UFSC Florianópolis 16 de novembro de 2012 SONTAG Ricardo Unidade Legislativa Penal Brasileira e a Escola Positiva Italiana Sobre um Debate em Torno do Código Penal de 1890 Revista Justiça História v 11 p 89124 2014 SONTAG Ricardo Codigo Criminológico Ciência jurídica e codificação penal no Brasil 18881899 Editora Revan 2014 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 274 PATRIARCADO UM PROBLEMA SOCIAL PERSISTENTE NA CIDADE DE LAGES SC Natielle Machado Santos1 Josilaine Antunes Pereira2 Mareli Eliane Graupe3 RESUMO Este artigo tem como objetivo refletir sobre as violências de gênero contra a mulher na cidade de LagesSC e reiterar a normalização histórica da violência no cotidiano das relações de gênero considerando a influência da cultura patriarcal nos sistemas de poder e dominação nas relações sociais entre mulheres e homens Os principais referenciais teóricos utilizados para a escrita deste artigo são Maria de Lourdes Bandeira 2014 Miriam Pilar Grossi 1994 Heleieth Saffioti 2001 Geraldo Locks 1998 Theophilos Rifiotis 2015 e Wânia Pasinato 2015 Esta pesquisa é um recorte de um projeto internacional e interinstitucional É de abordagem qualitativa e apresenta três entrevistas com mulheres sobre o patriarcado e violências de gênero As mulheres que participaram das entrevistas foram nomeadas neste trabalho como Helena Maria Flor e Madalena que relatam diferentes tipos de violências sofridas por elas Os dados apontam que as mulheres identificam a agressão física como violência e quanto aos outros tipos são atribuídos com menor importância no momento de buscar ajuda Constatouse também a necessidade de práticas alternativas para se trabalhar com os homens agressores já que o papel de dominação e de poder está presente na cultura ou seja passado de geração em geração e a violência contra a mulher é um grave problema social na cidade que ainda desponta nos rankings de violências de gênero no Estado de Santa Catarina Palavraschave Patriarcado Violência de gênero contra a mulher Violência física INTRODUÇÃO Este trabalho tem como objetivo analisar casos de violência de gênero contra a mulher na cidade de Lages SC e região É um recorte do projeto internacional e interinstitucional Estudos da judicialização da violência de gênero e difusão de práticas alternativas numa perspectiva comparada entre Brasil e Argentina com vigência de março de 2018 até fevereiro de 2020 A pesquisa está sendo desenvolvida nas seguintes cidades FlorianópolisSC LagesSC UruguaianaRS Juiz de ForaMG NatalRN além das cidades argentinas de La 1Graduanda em Serviço Social Universidade do Planalto Catarinense UNIPLAC bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnologico CNPq Machadonatielle57gmailcom CV httplattescnpqbr3990334326308454 2 Doutoranda no Programa de PosGraduação em Educação na Universidade do Vale do Rio de Sinos UNISINOS professora na Universidade do Planalto Catarinense UNIPLAC e professora na Rede Municipal de Educação de Lages Antunesjohotmailcom CV httplattescnpqbr6632644658092786 3 Doutora em Educação Professora no Programa de PósGraduação em Educação na Universidade do Planalto Catarinense Profmareliuniplaclagesedubr CV httplattescnpqbr8925934554152921 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 275 Plata e Florencio Valera localizadas na província de Buenos Aires e Orán e Tartagal localizadas na província de Salta O projeto possui três etapas a etapa um propõe o levantamento de análises dos textos normativos e trabalhos científicos artigos dissertações e teses nos bancos de dados Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia IBCT e Scientific Electronic Library Online Scielo mapeamento e caracterização dos principais serviços públicos disponíveis a vítimas de violências de gênero e a perpetradores ou acusados de atos de violência A etapa dois referese ao acompanhamento e descrição dos processos de criação implementação de práticas alternativas de justiça E a última etapa possui como objetivo a descrição e registro e experiências de práticas alternativas de justiça No decorrer dessas atividades realizadas para a pesquisa percebeuse a forte presença da cultura patriarcal Dessa forma o artigo pretende abordar o patriarcado como um dado fundamental para análise do projeto É relevante pesquisar sobre patriarcado e violências de gênero contra a mulher em termos teóricos especialmente no que se refere à compreensão de categorias de análise e reflexões epistemológicas que nos levem a construir outras formas de enfrentar as relações de dominação bem como construir estratégias de intervenção e de transformação da realidade local Para compreendermos a categoria violência de gênero tomamos a conceituação elaborada por Saffioti 2015 p 115 quando diz que ela é ampla podendo ocorrer com crianças adolescentes de ambos os gêneros e também mulheres Portanto neste artigo assumimos o conceito de violência de gênero contra a mulher porque dentro desse contexto a autora ressalta a interferência do sistema de dominação ou seja do patriarcado No exercício da função patriarcal os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas recebendo autorização ou pelo menos tolerância da sociedade para punir o que lhes apresenta como desvio SAFFIOTI 2001 p 115 Este trabalho apresenta depoimentos de três mulheres identificadas com nomes fictícios mas com histórias reais Helena Maria Flor e Madalena Essas histórias demonstram como o sistema do patriarcado e o machismo constituemse como graves problemas sociais persistentes até a atualidade cuja dominação e poder provocam as violências pois o homem ainda amplamente informado pelo poder socialmente legitimado que exerce sobre a mulher e pela experiência de impunidade quando ultrapassa os limites do tolerável lida de forma violenta SAFFIOTI 1994 p 443 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 276 Esta pesquisa caracterizase por meio de uma abordagem qualitativa que de acordo com Flick 2009 é uma produção contextual que trabalha com textos e a coleta de informações Essa é concebida de uma maneira muito mais aberta e tem como objetivo um quadro abrangente possibilitado pela reconstrução do caso que está sendo estudado FLICK 2009 p 23 Nesta perspectiva as entrevistas foram realizadas com as três mulheres ocorrendo no mês de agosto de 2019 entre os dias dois e dezesseis Os critérios utilizados para a escolha dessas mulheres foram a vínculo com os dados de campo da pesquisa interinstitucional b mulheres que reconheceram a influência do patriarcado na sua história de vida c cinco mulheres foram convidadas para participar da pesquisa referente a esse artigo mas somente três mulheres aceitaram relatar a sua história Enfim optouse por essas três mulheres devido ao fato de elas identificarem após conhecer as diferentes formas de violências que suas relações são fruto de um sistema de poder e dominação e de que é um fator persistente nas suas relações sociais e culturais Essas três mulheres fazem parte de uma classe social média duas são graduadas e uma possui o ensino fundamental incompleto Duas das mulheres entrevistadas possuem mais de quarenta anos e uma delas vinte e três anos São histórias atribuídas ao sistema do patriarcado e as violências que elas sofriam em decorrência disso Abordamos com elas a possibilidade de contarem suas histórias e como ocorreu o entendimento e a compreensão das formas de violência que sofreram como também o processo de saída dessa situação As contribuições foram em momentos de conversas individuais para que se sentissem mais à vontade e desse modo pudessem relatar experiências e situações pessoais nas circunstâncias sofridas em uma relação de dominação poder Com esses relatos foi possível identificar as diferentes formas de violência citadas na lei nº 11340 de 2006 mais conhecida como Maria da Penha que dispõe as violências em física psicológica sexual patrimonial e moral BRASIL 2006 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DO OBJETO DA PESQUISA Localizada na região serrana de Santa Catarina a cidade de Lages dispõe da beleza das araucárias das comidas típicas derivadas do pinhão e do frio intenso Uma cidade com características singulares representada por suas maravilhas naturais mas que enfrenta um grave problema social expresso pelo poder e dominação do homem sendo uma cidade boa de se viver mas perigosa para mulheres LOCKS PEREIRA GRAUPE 2018 p 245 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 277 Considerado um fenômeno social persistente a violência contra a mulher possui como justificativa o sistema do patriarcado elencado pelos estudos feministas como um dos pilares dessa violência de gênero BANDEIRA 2014 Em Lages a cultura patriarcal mostra o porquê de ser uma cidade boa de se viver mas perigosa para mulheres conforme o texto Questão agrária e violências de gênero Lages uma cidade boa de se viver mas perigosa para mulheres dasos autorases Locks Pereira e Graupe pois é uma cidade do interior um polo de desenvolvimento regional mas que tem sua origem sustentada na autoridade do homem controlada por valores masculinos e machistas LOCKS 1998 A partir das entrevistas podese observar relatos de mulheres que tiveram seus destinos influenciados pela cultura patriarcal e machista no que se refere aos comportamentos esperados para meninas e mulheres No caso de Helena 40 anos natural de Lages e mãe de quatro filhos identificase como foi viver nesse sistema patriarcal Casei e engravidei aos meus 14 anos porque naquela época era assim teve relação sexual com a pessoa tinha que casar Depois de um tempo decidi voltar a estudar para terminar o segundo grau Ele brigava dizendo pra mim o que eu queria na escola Ele não ajudava na casa era minha obrigação não se colocava a disposição porque não era obrigação dele pegar os filhos na escola levar na creche E eu achava que tinha que ser assim que era minha obrigação por ser mulher de tomar conta da casa Vem da cultura isso porque minha mãe dizia que era minha obrigação como mulher Tinha a infidelidade não me respeitava e colocava isso como certo porque ele era homem HELENA4 Diante de uma cultura patriarcal colocada como forma de se viver em sociedade as mulheres são determinadas a seguir padrões de vida a partir de uma divisão social no que se refere às relações com homens ou seja as relações de gênero Locks Pereira e Graupe 2018 p 242243 descrevem um aspecto fundante do patriarcado que por determinação do modo de produção emerge a divisão social do trabalho às mulheres cabendo os trabalhos domésticos com ênfase para a responsabilidade da educação dos filhos 2018 p 242243 Além disso No exercício da função patriarcal os homens detêm o poder de determinar a conduta das categorias sociais nomeadas recebendo autorização ou pelo menos tolerância da sociedade para punir o que se lhes apresenta como desvio Ainda que não haja nenhuma tentativa por parte das vítimas potenciais de trilhar caminhos diversos do prescrito pelas normas sociais a execução do projeto de dominaçãoexploração da categoria social homens exige que sua capacidade de mando seja auxiliada pela violência Com efeito a ideologia de gênero é insuficiente para garantir a obediência das vítimas potenciais aos ditames do patriarca tendo esta necessidade de fazer uso da violência SAFFIOTI 2001 p 117 4 Entrevista realizada dia 02 de agosto de 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 278 A dominaçãoexploração supracitada por Saffioti manifesta as formas de violências destacadas na Lei Maria da Penha regulamentada em 2006 que apresenta os seguintes tipos de violências contra a mulher físico psicológico sexual patrimonial e moral 2 RELATOS DE VIOLÊNCIAS Maria Flor 56 anos mãe de cinco filhos natural de São José do Cerrito interior de Lages destaca o conhecimento da agressão física como violência sem a compreensão de que em seu casamento conduzido por uma cultura patriarcal sofria outras violências como a psicológica e moral Casei aos 16 anos Naquela época beijava o homem e já casava Após já nos juntarmos fomos morar juntos viemos embora para a cidade de Lages saímos do interior e engravidei da minha primeira filha ainda nos meus 16 anos Na minha gestação ele já me batia era só fazer o uso de bebida alcoólica que se achava no direito de bater Na época ele me ofendia eram muitos xingamentos com nomes de ofensa e hoje eu sei que também é uma violência porque antes pra mim era normal MARIA FLOR 5 Essas agressões aconteciam na relação conjugal de Maria Flor antes da promulgação da lei que garante o direito da mulher sem que haja todas as formas de discriminação Conforme Maria Flor hoje tem essas leis de proteção mas naquela época nos anos de 2000 se a polícia pegasse em flagrante ele era solto minutos depois Às vezes eu ficava registrando o boletim na delegacia e quando eu chegava em casa ele já estava lá Maria Flor discorre dessa dificuldade antes de existir a Lei Maria da Penha da garantia de segurança e efetividade dos procedimentos necessários quando acionado o órgão competente como expresso em seu relato Rifiotis 2015 destaca a luta para que acontecesse um avanço nas práticas de justiça relacionado à violência contra a mulher Para situar o cenário em que se desenvolvem as práticas de justiça lembremos que no Brasil a luta contra a impunidade nos casos de violência contra as mulheres tomou a forma emblemática da delegacia de proteção da mulher sob a responsabilidade da Polícia Civil de cada Estado com competências judiciárias Concretamente tratase de instituições criadas como instâncias formais de acolha e tratamento especializado nos casos de violência contra as mulheres Elas deveriam ampliar o espectro de acolha produção de investigação policial e instalação de inquéritos policiais nos respectivos casos De modo sintético diremos que as lutas feministas produziram nos últimos dez anos importantes mudanças institucionais e normativas no Brasil um primeiro com a criação da Delegacia da Mulher que teve lugar em pleno 5 Entrevista realizada no dia 03 de agosto de 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 279 processo de redemocratização O segundo sem dúvida alguma foi a promulgação da Lei Maria da Penha RIFIOTIS 2015 p 268269 Outro fator na história de Maria Flor é o uso do álcool que está vinculado como justificativa da agressão É uma realidade e concepção presente nessas situações em que as mulheres colocam como a causa de estarem sofrendo a violência Embora o abuso de álcool e a violência sejam abordados como uma relação causal destacase que esse não é a causa da violência sofrida Mas um fator que potencializa ou vulnerabiliza as mulheres ao contexto violento VIEIRA et al 2014 p 370 É importante questionar o sistema do patriarcado e as suas relações desiguais entre homens e mulheres para que possamos refletir e combater as violências de gênero contra a mulher A vulnerabilidade expressa pela dominação do homem e a desculpa como no uso do álcool normalizam a agressão como uma necessidade de ação da figura do homem em relação à mulher A contextualização histórica social e cultural é importante para compreendermos e lutarmos contra a exclusão e a violação dos direitos das mulheres Helena 40 anos mãe de quatro filhos hoje já separada da relação a qual relata a vivência em um sistema patriarcal destaca a continuidade da violência mesmo após a sua separação Em seu relato revela como o homem considerase dono e no direito de controlar a vida da exmulher buscando culpála pela separação provocando a desistência da determinação de sair da situação de violência acreditando na mudança que muitas vezes o homem traz como proposta afirmando que vai melhorar e não irá ser mais da mesma forma Helena conta ter reatado a relação por acreditar que haveria mudança e porque não suportava as chantagens emocionais que a atingiam através dos filhos Teve uma época a gente se separou por uns noves meses e ele disse que eu era culpada me deixou um lixo me chamava de gorda dizia que eu era feia Meu filho mais velho vendo toda essa situação disse para eu viver e sair curtir Procurei sair me divertir com as amigas Depois de uns seis meses arrumei um namorado ele começou a incomodar ia até minha casa e os filhos abriam a porta e quando via ele estava dentro da casa e começávamos a discutir e minha filha mais nova na época com cinco anos começava a chorar Eu pensava meu Deus vai virar um inferno de novo Para não haver mais problemas terminei o meu namoro Me chamaram na creche para falar que minha filha chorava chamando o pai me falaram que o pai ia lá chorando e de fato ele fazia uma chantagem emocional através dela muito grande dizia que estava sofrendo e que eu não queria perdoar que eu era ruim Voltamos a nos aproximar e resolvi dar mais uma chance pelos meus filhos Chamei ele e conversamos ele disse que ia mudar e eu acreditei porque estava mais participativo com a família Mas voltou tudo de novo às brigas e ele dizia que não sairia de casa Então eu sai porque não aguentava mais fui pagar aluguel Mesmo eu saindo de casa ele me perseguia através de mensagens com Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 280 ameaças que iria me matar que se não ficasse com ele não ficaria com mais ninguém Dizia também que ele não errou porque era homem que ter amante era coisa de homem HELENA 6 O processo de desconstrução de compreender que viveu inserida em um sistema opressor e de dominação não é simples e uma das ferramentas utilizadas nesse processo é a informação o conhecimento a educação Helena e Maria Flor possuem relações amorosas influenciadas pela cultura patriarcal em que o homem pode ter amantes não precisa ajudar na educação dasos filhasos enquanto que a mulher deve ficar em casa e servir a família No decorrer do tempo as mulheres começaram a questionar os comportamentos machistas e desiguais nas relaçoes Helena destaca a faculdade a participação de grupos e rodas de conversa a leitura me trouxe muita coisa muito conhecimento Madalena 23 anos natural de Ponte Alta cidade que faz parte da região serrana com uma distância de aproximadamente 40 minutos de Lages fala emocionada e com lágrimas que o sistema do patriarcado é tão evidente e demonstrase através das violências Comecei a namorar com ele aos meus 20 anos o relacionamento durou um ano e meio Ele me xingava me diminuía como mulher vestia uma roupa e ele dizia que eu estava feia ou que a roupa estava curta decidia o que eu ia usar Eu pedia permissão para ele quando iria sair porque senão ele ficava bravo e brigava por não avisar Mas quando ele saia com os amigos eu não ligava deixava ele ir Você tem noção disso Eu dona do meu nariz pedia permissão para fazer tal coisa usar tal roupa Eu não sei como foi chegar nesse ponto Eu tinha medo de ficar sem ninguém meu primeiro namorado na época Quando eu decidi não ter mais ele foi no momento que comecei a ter a informação na faculdade sobre violência Mesmo sendo difícil sair de uma relação eu pensava em tudo de ruim que ele me fazia e não queria mais isso para minha vida Isso vem de uma cultura patriarcal porque o pai dele tratava a mãe dele assim com posse de poder e a mulher com a obrigação de obedecer MADALENA 7 A concepção cultural é um fator predominante a ser observado e discutido Nos relatos apresentados quando o conhecimento de que o aspecto patriarcal é caracterizado como algo educativo e que se sobressai na violência contra a mulher desperta para a compreensão da não culpabilização por sofrer agressão e de que o homem não deve ter um caráter de poder e nem a mulher de submeterse à opressão A violência contra a mulher constituise em fenômeno social persistente multiforme e articulado por facetas psicológica moral e física Suas manifestações são maneiras de estabelecer uma relação de submissão ou de poder implicando sempre em situações de medo isolamento dependência e intimidação para a mulher É considerada como uma ação que envolve o uso 6 Entrevista realizada no dia 02 de agosto de 2019 7 Entrevista realizada dia 16 de agosto de 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 281 da força real ou simbólica por parte de alguém com a finalidade de submeter o corpo e a mente à vontade e liberdade de outrem BANDEIRA 2014 p 460 Identificar as violências que hoje constituem a lei 113402006 BRASIL 2006 é fundamental para não ficar no moralismo simplista pressupondo que só ocorre agressão quando esta for do tipo física nem todas as formas de violência ocorram sempre na mesma ação também não é possível dizer que existe uma hierarquia entre elas Uma mulher pode ser humilhada por anos a fio ou viver sob intenso controle de sua vida e sofrer severos danos à sua autoestima e saúde mental sem que seu agressor nunca cometa um único gesto de violência física PASINATO 2015 p420 Concebendo o efeito da educação em relação ao sistema do patriarcado que é uma cultura e por isso perpassa de seus antepassados às demais gerações tornase necessária uma prática alternativa para que os meninos os homens aprendam outras formas de comportamento sem a base na dominação e no poder E também para que as meninas as mulheres aprendam que o comportamento do menino do homem não é de dominador Esses comportamentos patriarcais não acontecem somente com os homens pois também as mulheres podem desempenhar por delegação a função patriarcal Efetivamente isto ocorre com frequência SAFFIOTI 2009 p 116 Por serem criadas em uma cultura que predomina o poder a obediência à figura masculina a mulher tende a por exemplo exercer o mesmo papel na criação dos filhos A desconstrução de um sistema patriarcal é um processo que ocorre e continuará ocorrendo nas relações sociais por meio das práticas de disseminação de conhecimentos no compartilhamento como de histórias que reflitam o valor da vida e da vida sem violências das discussões sobre a importância do empoderamento pessoal social e econômico das mulheres Esperamos que a partilha desses relatos possa servir como motivação para a construção de uma sociedade de respeito que seja possível acreditar na luta no enfrentamento das situações de violências mesmo que seja difícil afastarse do agressor Segundo Helena o casamento não tem que ser uma gaiola tem que ser espaço livre um espaço com respeito e as mulheres são fundamentais neste processo de construção de relações mais justas e equitativas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 282 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao discorrer nesse trabalho sobre o sistema patriarcal observase o impacto na vida social econômica e política da mulher esferas em que o poder de decisão vem de uma ordem superior frequentemente designada ao homem Por se tratar de uma cultura percebese a necessidade de abordar e trabalhar sobre violências de gênero contra a mulher com a figura masculina e refletir sobre o problema social causado pelo patriarcado nas relações afetivas entre homens e mulheres É importante compreender que o homem também é vítima desse sistema que o coloca como macho aquele que manda e que pressupõe possuir o poder de determinar as condições de seu relacionamento Ou seja é necessário que os meninos os homens aprendam outras formas de masculinidade que contribuam para construção de relacionamentos justos e equitativos entre homens e mulheres pautados no respeito no carinho na compreensão e no diálogo Os conflitos são inerentes às relações sociais mas combater a cultura machista e patriarcal é condição sine qua non na construção de uma sociedade mais justa solidária e fraterna É preciso entender a complexidade dessa discussão pois se de um lado é exaustivamente debatido e refletido de outro as violências contra as mulheres perduram A informação o conhecimento tornamse ferramentas essenciais nessa discussão como observado nos depoimentos de Helena Maria Flor e Madalena Por fim constatase a necessidade de buscar práticas alternativas políticas públicas de enfrentamento a esta realidade Importante salientar que a cultura é dinâmica portanto passível de mudança de transformação pois nós seres humanos construímos o mundo e nele somos construídos Somos a síntese ativa de nossas relações sociais Somos filhos de um tempo e de um espaço datados e localizados mas inacabados Desta forma podemos e devemos fazer o enfrentamento a esta cultura machista patriarcal a curto médio e longo prazo REFERÊNCIAS BANDEIRA Lourdes Maria Violência de gênero a construção de um campo teórico e de investigação Sociedade e Estado Brasília v29 n2 ago 2014 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS010269922014000200008 Acesso em 06 ago 2019 BRASIL Lei Maria da Penha Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato200420062006leil11340htm Acesso em 19 ago 2019 FLICK Uwe Introdução à Pesquisa Qualitativa 3 ed Porto Alegre Artmed 2009 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 283 GROSSI Miriam Pillar Novasvelhas violência contra a mulher no Brasil Estudos Feministas Florianópolis v 2 n especial p 473483 1994 Disponível em httpmiriamgrossipaginasufscbrfiles20120316179498031PBpdf Acesso em 07 ago 2019 LOCKS Geraldo Augusto Identidade dos Agricultores Familiares Brasileiros de São José do Cerrito SC Orientador Dr Hélio Raymundo Santos Silva 1998 216 f Dissertação Mestrado em Antropologia Social Centro de Filosofia e Ciências Humanas UFSC Florianópolis 1998 Disponível em httpsrepositorioufscbrbitstreamhandle12345678977931147141pdfsequence1isAll owedy Acesso em 07 ago 2019 LOCKS Geraldo Augusto PEREIRA Josilaine Antunes GRAUPE Mareli Eliane Questão Agrária e Violências de Gênero Lages uma cidade boa de se viver mas perigosa para mulheres In DAMBRÓS Gabriela RADAELII Idiane Mânica MOURAD Leonice Aparecida de Fátima A P DEGGERONE Zenicléia Angelita orgs Questões Agrárias em Foco v 2 Ituiutaba Barlavento 2018 p 231255 Disponível em httpwwwematertchebrsitearquivospdftesesDambros20et20 al2020Questoes20Agrarias20em20Foco20II20Ebookpdf Acesso em 18 ago 2019 PASINATO Wânia Acesso à justiça e violência doméstica e familiar contra as mulheres as percepções dos operadores jurídicos e os limites para a aplicação da lei Maria da Penha Direito GV São Paulo v 11 n 2 p407428 2015 Disponível em httpbibliotecadigitalfgvbrojsindexphprevdireitogvarticleview5811656581 Acesso em 22 ago 2019 RIFIOTIS Theophilos Violência Justiça e Direitos Humanos reflexões sobre a judicialização das relações sociais no campo da violência de gênero Cad Pagu Campinas n 45 p 261295 dez 2015 Disponível em httpwwwscielobrpdfcpa n4501048333cpa4500261pdf Acesso em 22 de ago de 2019 SAFFIOTI Heleieth Iara Bongiovani Violência de gênero no Brasil atual Estudos Feministas Florianópolis n especial p 443461 1994 Disponível em httpsperiodicosufscbrindexphprefarticleview1617714728 Acesso em 21 ago 2019 SAFFIOTI Heleieth Iara Bongiovani Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero Cad Pagu Campinas n 16 p 115136 2001 Disponível em httpwwwscielobrscielophp scriptsciarttextpidS010483332001000100007 Acesso em 06 ago 2019 VIEIRA Letícia Becker CORTES Laura Ferreira PADOIN Stela Maris de Mello SOUZA Ivis Emília de Oliveira PAULA Cristiane Cardoso de TERRA Marlene Gomes Abuso de álcool e drogas e violência contra as mulheres denúncias de vividos Rev Bras Enferm Brasília v 67 n 3 p 366372 2014 Disponível em httpwwwscielobrpdfrebenv67n300347167reben67030366pdf Acesso em 07 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 284 DO LUTO À LUTA LÉSBICAS NO FOCO E NO ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES Jéssica Janine Bernhardt Fuchs1 Bruna Amato2 RESUMO O presente trabalho trata de analisar os processos sociais históricos e políticos que produzem vetores de violência e formas de vulnerabilização de mulheres lésbicas Procurase compreender esse panorama levando em consideração o amplo espectro de violência contra as mulheres e as particularidades que esta assume na articulação entre misoginia e lesbofobia As análises foram realizadas a partir do diálogo entre diversas autoras e autores que contribuem para a discussão de como a sexualidade e o gênero se inscrevem nos processos de desumanização hierarquização e subjugação dos sujeitos Além disso são trazidos alguns dados e indicadores relacionados às mortes e violência sexual contra mulheres lésbicas no Brasil nos últimos anos O uso de noções como heteronormatividade lesbofobia e lesbocídio articulam o debate em torno das violências produzidas no regime político heterossexual e como estas fazem parte das vidas de mulheres lésbicas em particular aquelas que não performam feminilidade A partir disso evidenciase como as violências fatais contra as lésbicas denunciam os discursos e práticas de aniquilamento simbólico e político em vida desde o ódio social direcionado a seus corpos relações de afeto e desejo às sucessivas negligências e desamparo que dificultam o reconhecimento de suas existências Pretendese portanto contribuir para a visibilização de questões fundamentais às existências lésbicas sistematicamente apagadas e silenciadas em suas próprias histórias Palavraschave Violência Lesbofobia Mulher lésbica Heteronormatividade Lesbocídio INTRODUÇÃO Quando adentramos o debate sobre a violência contra a mulher nos deparamos com as inúmeras formas de opressão e vulnerabilização que atravessam nossos corpos e vivências entendendo que este é um problema a ser enfrentado tanto institucionalmente quanto no cotidiano das relações sociais afetivas e familiares Da mesma forma falar sobre violência contra a população LGBT nos remete às normas e regulações sobre aquelas e aqueles cuja existência desestabiliza a heteronorma e denuncia assim sua face mais perversa a promoção do ódio e as tentativas de aniquilação social E quando resolvemos nos voltar para a violência 1 Psicóloga colaboradora do núcleo Margens Modos de vida Família e Relações de Gênero e integrante da Associação em Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade Mestrado em Psicologia pelo curso de Pós Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina PPGPUFSC 2019 Email jessicabfuchsgmailcom Lattes httplattescnpqbr700350262253442 2 Psicanalista pela Escola Brasileira de Psicanálise pesquisadora autônoma e voluntária na Associação em Direitos Humanos com Enfoque na Sexualidade Graduada em Educação Física pela Universidade Gama Filho UGF 2007 Email buproducaogmailcom Lattes httplattescnpqbr0284657496697506 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 285 contra as mulheres lésbicas quais questões se colocam ao debate Em que podemos nos apoiar para destrinchar suas origens mecanismos e efeitos Ao discutir de forma generalizada acerca da mulher correse o risco de desconsiderar o lugar de sua sexualidade no contexto da violência ao pensar a lésbica como vítima de LGBTfobia há de se ter cuidado para não perder de vista a especificidade de seu gênero Nesse sentido compreendemos que pautar o debate da violência contra mulheres lésbicas torna necessário explanar a interseccionalidade das violências sofridas Não poderíamos deixar de analisar então como essa sobreposição de violências resulta de uma história marcada pela exploração do sexo feminino e dos processos de desumanização específicos direcionados às lésbicas em particular as chamadas butch3 eou que não performam feminilidade4 A complexidade dessa discussão se deve em parte à própria produção da violência pois sua história é também a história da formação das instituições Por este motivo iniciamos com a proposta de pontuar breve e historicamente como o capitalismo a igreja e seus derivados se utilizam econômica e mercadologicamente do corpo das mulheres para acúmulo de riqueza e capital social durante pelo menos seis séculos Na sequência procuramos abordar como as opressões de gênero e as respectivas formas de controle institucionais se tornaram questões pautadas pelos movimentos feministas porém muitas vezes baseados em um ideal branco e heterocentrado de mulher negando outras vozes e demandas nas quais estão incluídas as lésbicas Pretendemos apontar igualmente como essa exclusão faz parte de uma lógica mais ampla do sistema sexogênero no qual a figura da lésbica butch aparece como denúncia de seu funcionamento normativo A partir disso trazemos contribuições de autoras que se dedicaram a fazer uma análise política e social da heterossexualidade evidenciando seu caráter regulador dos corpos e desejos Situar as mulheres lésbicas nos exige estar atentas às diversas práticas e discursos que deslegitimam sua existência considerada antinatural desviante e mesmo imoral A heteronormatividade surge assim como um regime que produz espaços de abjeção no qual 3 Termo ressignificado positivamente pelas lésbicas que originalmente designava mulheres lésbicas às quais eram atribuídos maneirismos e comportamentos próprios do que é considerado masculino em uma tentativa de heterossexualizar a figura da lésbica que não performa a feminilidade hegemônica dentro da relação 4 É entendido já nos estudos de gênero que as noções de masculinidade e feminilidade são construções sócio históricas e ficções políticas que regulam os processos de constituição dos corpos generificados As referências às lésbicas butch comumente carregam atribuições masculinizadas no sentido de deslocálas do lugar socialmente relegado ao feminino Como apontam Butler 2017 e Preciado 2014 a masculinidade associada à butch nada tem a ver com os parâmetros heteronormativos que definem a figura do homem ou com um processo de heterossexualização da lésbica No entanto no propósito de desestabilizar essa ideia optamos pela compreensão de que as lésbicas butch não performam feminilidade e nesse sentido se encontram à margem daquilo que é culturalmente inteligível como feminino Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 286 as lesbiandades oscilam entre o não reconhecimento e uma inteligibilidade precária ora como subcategoria de mulher ora como impossibilidade humana O cruzamento dessas discussões com os dados concretos de mortes e estupros de lésbicas no Brasil como trazem o Dossiê do Lesbocídio e o Mapa da Violência de Gênero nos auxilia a pensar concretamente os processos que produzem as violências e violações direcionadas a essas mulheres e como se relacionam com seus contextos de vida A invisibilidade também é uma forma de violência que se traduz na falta de informações sistematizadas e produção de conhecimento sobre as múltiplas realidades da existência lésbica na negação de direitos e no desamparo das políticas sociais Como afirmam Peres Soares e Dias 20182019 p 46 o estudo do lesbocídio é sempre um estudo sobre o nãodito e o combate e enfrentamento à violência contra as mulheres lésbicas só será minimamente possível se deixar de ser silêncio e anonimato 1 MARX E FEDERICI PROCESSO HISTÓRICO DE INVISIBILIZAÇÃO E EXPLORAÇÃO DO CORPO FEMININO Marx nos contemplou com uma vasta detalhada e brilhante visão do capitalismo Em sua obra O Capital esmiuçou o quão bárbaro e violento foi o processo que expropriou de suas terras e suas casas camponeses subfeudatários5 transformandoos em proletários fora da lei6 Explanou o processo nefasto que criou convenientemente uma nova categoria os mendigos ladrões e vagabundos órfãos do feudalismo passaram a compor uma parcela da sociedade que não tinha nada além de sua mão de obra para vender por um preço irrisório oferecido em troca de um mínimo de dignidade e como única forma de escapar das punições legais aplicadas aos marginalizados Essas punições datadas desde 1530 incluíam chicoteamento prisão mutilação escravidão agrilhoamento e morte MARX 2013 O trabalho de Marx é de suma importância para compreendermos não só como o capitalismo enquanto espectro atua desde o princípio mas as alianças que criou com o Estado e a igreja a quem serve e por omissão do próprio autor através de que corpos ele opera Tendo o gênero mulher ficado de fora das análises críticas que denunciavam o vilipendioso desenvolvimento capitalista entendemos que ao considerar esse sistema uma alternativa econômica positiva capaz de estreitar as desigualdades materiais Marx 5 Condição daqueles que trabalhavam em feudos dos quais não eram proprietários mas que utilizavam para a produção da própria subsistência 6 Desempregados pela desapropriação de suas terras e casas exsubfeudatários Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 287 negligenciou a existência de corpos femininos nesse contexto Essa crítica é apontada já na introdução da obra Calibã e a Bruxa na qual se afirma que Marx Nunca poderia ter suposto que o capitalismo preparava o caminho para a libertação humana se tivesse olhado a história do ponto de vista das mulheres Essa história ensina que mesmo quando os homens alcançaram certo grau de liberdade formal as mulheres sempre foram tratadas como seres socialmente inferiores exploradas de modo similar às formas de escravidão FEDERICI 2017a p 27 Superpopulação nunca vai ser um problema para quem detém riqueza e os meios de produção Superpopulação significa mão de obra desesperada logo barata O mercantilismo do século XVI traz atrelado a si a ideia de que uma nação rica e próspera depende de uma grande população e nesse sentido Federici 2017a p 173 vai pontuar que encontramos na teoria e na prática mercantilistas a expressão mais direta dos requisitos da acumulação primitiva7 e da primeira política capitalista que trata explicitamente do problema da reprodução da força de trabalho Por 200 anos a acumulação capitalista fez das mulheres escravas enquanto eram obrigadas a parir as crias para expansão dessa força de trabalho Durante os séculos XVI XVII e XVIII a Europa estava sendo dizimada pela fome e nas terras colonizadas como o Brasil o genocídio dos povos originários produziu uma abissal redução da população As soluções do Estado como projeto de nação foram campanhas de incentivo à natalidade O Estado entende que o feminino tem o que é preciso para aquecer esse novo mercado e retira todo e qualquer direito de autonomia que as mulheres pudessem ter em relação aos seus corpos e suas funções na sociedade Portanto qualquer medida de controle de natalidade antes a cargo e critério das mulheres passou a ser criminalizada Não era mais permitido abortar as mulheres foram restringidas a trabalhos domésticos não remunerados ao posto de cuidadoras dos maridos e criação dos filhos Esses últimos por sua vez vêm a ser a base da pirâmide que sustenta a economia a mão de obra que movimenta o capitalismo FEDERICI 2017a Excluídas do mercado de trabalho as taxas de desemprego subiram exponencialmente Parteiras não eram mais autorizadas a exercer seus serviços a menos que trabalhassem como espiãs para o governo No lugar delas aos médicos homens coube a tarefa de fazer os partos evitando que famílias paupérrimas cometessem infanticídio quando sabiam que não teriam condições de sustentar a cria e a esses mesmos médicos homens cabia a decisão de deixar a 7 Acúmulo de capital recursos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 288 mulher morrer no parto em casos nos quais a cria estivesse correndo risco de morte FEDERICI 2017a A prostituição que se tornou saída para muitas mulheres continuarem existindo passou a ser criminalizada e sua prática era punida com açoitamentos e morte por afogamento Mendigar também era proibido e as punições físicas eram severas Qualquer tipo de método contraceptivo era proibido e as mulheres passaram a servir ao Estado como úteros inclusive morrendo novas quando seus corpos não aguentavam a quantidade de partos em tão pouco espaço de tempo e em condições insalubres Eram punidas caso se recusassem a fazer sexo se abortassem e se fossem estupradas A proibição e a criminalização se estenderam até as relações homoeróticas entendidas como práticas de sexo não procriativas FEDERICI 2017a A igreja durante a Reforma Protestante teve papel importante na sustentação desse sistema capitalista O celibato fora repensado e condenado as uniões matrimoniais e a constituição de organizações familiares heterocentradas passaram a ser consideradas a base sólida de uma sociedade próspera e a mulher passou a ser publicizada como entidade divina pela sua capacidade de dar à luz FEDERICI 2017a Antes da revolução industrial as mulheres trabalhavam em diversos segmentos no campo no comércio no lar e prestando serviços Com a industrialização essas mulheres viraram mão de obra análoga à escravidão Trabalhavam em desumanas condições e escalas e só eram aceitas nas fábricas pois recebiam salários menores que os homens e se submetiam mais avidamente ao trabalho proposto Essa posição de vulnerabilidade criada expôs meninas e mulheres ao frequente abuso sexual que acarretava em gravidezes na idade prépúbere ou púbere no momento em que abortar era ilegal em qualquer circunstância Vale ressaltar que esse trabalho fabril além de empregar uma pequeníssima parcela das mulheres era interrompido quando elas passavam a ser mães e eram obrigadas a se dedicar integralmente às crias sem remuneração FEDERICI 2017b Quando Marx deixa de considerar que a base do capitalismo fora fundada dentro da concepção de estrutura familiar heterocentrada onde o homem detém riqueza capital social e trabalha por salário e à mulher é relegada a função de parideira cuidadora e doméstica ele não leva em conta que todo um sistema de acumulação primitiva é sustentado através da violência do gênero feminino E que sem esse corpo não haveria capitalismo patriarcado a supremacia do gênero masculino tampouco a santíssima trindade pai filho e espírito santo 2 FERNANDES GALF E FOUCAULT MULHER COMO CATEGORIA DE ANÁLISE MILITÂNCIA POLÍTICA E RELAÇÕES DE PODER Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 289 A luta dos movimentos feministas desde sua origem carrega um caráter político anti capitalista Do movimento sufragista às ondas do feminismo do final do século XIX até o século XXI as lutas cresceram e se desenvolveram conforme as necessidades das mulheres eram reconhecidas partindo da pluralidade de seus próprios corpos e vivências porém encontrando resistência quando analisados os contextos de privilégios que também transpassavam esses corpos Do direito ao voto a participação na vida política e pública acesso ao sistema de educação melhores condições de trabalho igualdade social e de direitos liberdade sexual maternidade direitos de reprodução até o reconhecimento das interseccionalidades de opressão diversos momentos históricos podem ser apontados como influenciadores desses tópicos específicos para que viessem à tona ganhassem caráter político e de análise No entanto embora para o movimento feminista tenham ficado evidentes as opressões de gênero do capitalismo e como o controle estatal dos corpos femininos é a grande arma que sustenta e mantém aquecido o sistema econômico as lutas não contemplavam as diversas mulheridades e suas especificidades políticas Nesse panorama diversas mulheres não são abarcadas as lésbicas as pobres as negras e as transexuais visto que os primeiros movimentos feministas que foram visibilizados eram compostos por mulheres brancas e de classe média No Brasil o primeiro movimento de lésbicas feministas saiu de dentro do Grupo SOMOS de São Paulo em 1979 Após três meses de ativismo dentro do grupo organizado por homens gays as lésbicas feministas entenderam que seria impossível ver suas pautas sendo discutidas e politizadas haja vista a discriminação e o machismo com que foram recebidas naquela organização Fernandes 2018 aponta que durante reunião onde tentavam implementar pautas de discussões como machismo e feminismo dentro do SOMOS espaços específicos para acolhimento de mulheres lésbicas e uma tentativa de aliança com o movimento feminista foram hostilizadas por aqueles homens e chamadas de histéricas No ano seguinte junto ao movimento feminista o LF Lésbicas Feministas integrou a coordenação do III Congresso da Mulher Paulista e ao abordarem o tema da liberdade sexual contra a heterossexualidade compulsória e a submissão ao gênero masculino foram brutalmente silenciadas por aquelas mulheres em especial por integrantes do MR88 sob o pretexto de que a lésbica nega a sua própria condição de mulher não pode fazer parte de um movimento feminino FERNANDES 2018 online 8 Movimento Revolucionário 8 de Outubro uma organização de extremaesquerda marxista que participou da luta armada contra a ditadura militar brasileira Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 290 Diante da impossibilidade de ter voz dentro do movimento gay e dentro do movimento feminista heterossexual ambos se utilizando de seus privilégios para silenciar as mulheres lésbicas a LF se torna independente e passa a se chamar GALF Grupo de Ação Lésbica Feminina Suas atuações no campo da resistência incluem disseminar material impresso que alertava e informava a comunidade sobre o preconceito e a discriminação de mulheres lésbicas contra a violência arbitrariedade e prisões dessas mulheres durante o período em que perdurou o golpe militar brasileiro e na resistência contra a repressão e a proibição de ocuparem espaços públicos FERNANDES 2018 Quase 40 anos depois as lésbicas em especial as que não performam feminilidade e negras seguem enfrentando as mesmas dificuldades sociopolíticas Permanecemos não tendo o direito de nos expressar livremente de ocupar espaços públicos com segurança de termos nossos corpos respeitados e valorizados de vivermos nossas formas de amar Ainda não temos políticas públicas que nos contemplem e continuamos sistematicamente a ser hostilizadas invisibilizadas e violentadas pelo Estado dentro da sociedade cristã heteronormativa dentro do movimento feminista heterossexual e obviamente também dentro do movimento gay absolutamente hegemônico nas pautas de direitos LGBTs Se para as lésbicas resistência é a única forma de existência que mecanismos mantêm esses dispositivos de poder que agem de forma a nos manter vulneráveis socialmente Se de acordo com Foucault 1995 para se estabelecer uma relação de poder existe a necessidade de que o outro seja mantido como sujeito ativo e livre e que haja para tal uma possibilidade de fuga ou de luta ou de resistência podemos supor que o Estado e a igreja conduzem desviam dificultam e nos impedem de acessar esferas públicas e privadas ao mesmo tempo que patrocinam e conduzem as condutas dos outros grupos de indivíduos com quem dividimos os espaços sociais Esses indivíduos passam a exercer o cargo de agentes que personificam pessoalizam e materializam essas violências e suas ações sejam elas físicas psicológicas virtuais em grupo isoladas públicas privadas ou institucionais retornam como uma demanda da sociedade para o governo O governo responde que atende aos interesses da população E nós sem pertencer a nenhum lugar de direito os corpos ativos incansavelmente em movimento tentamos sobreviver sem a menor possibilidade de criar estratégias de articulação para modificação estrutural Quando as mulheres e os ativismos lésbicos reivindicam seu espaço no campo político e nas pautas mais amplas de gênero dos movimentos feministas e LGBT evidenciase a disputa sobre quais questões se tornam legítimas de luta e quais vozes acabam sendo priorizadas Ficam nítidos também os efeitos da heteronorma quando se centraliza a figura da Mulher em um Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 291 sujeito universal e normativo a partir da qual outras existências e realidades de outras mulheres ficam subjugadas eou são tratadas como problemáticas de ordem menor Seja nos movimentos sociais nas instituições ou no cotidiano a heteronorma irrompe como referencial naturalizado e por isso mesmo dissimulado das relações humanas e sociais Nesse sentido podemos dizer que ela aparece nas regulações sociais propriamente ditas tais como as leis regras prescrições legais e códigos institucionais que constituem as formas engessadas do poder No entanto como alerta Foucault 1995 as relações de poder operam também de maneira complexa e capilarizada fazendo parte dos próprios processos de subjetivação ou seja da relação que os sujeitos estabelecem com as normas Este é um entendimento primordial para compreender como o sistema sexogênero regula e produz os sujeitos e fornecem os parâmetros para designar como certos corpos desejos e afetos serão reconhecidos classificados e validados Foucault 2012 trabalhou essa questão de certa forma por meio da noção de dispositivo da sexualidade para mostrar 1 como o sexo foi racionalizado em uma verdade sobre os sujeitos e 2 como a articulação de diversos saberes e discursos fizeram da sexualidade um domínio do conhecimento e um objeto da política Contudo além de se debruçar mais especificamente sobre as existências homossexuais masculinas não vemos em Foucault uma análise mais precisa do poder sobre as relações de gênero ou como se desdobram seus efeitos Butler 2014 p 252 defende que o gênero não é simplesmente algo sujeito às normas mas é ele próprio um aparato normativo o que não significa que a regulação de gênero é paradigmática das relaçoes de poder enquanto tais mas sim que gênero requer e institui seu proprio regime regulador e disciplinar específico Pensar então as articulações entre gênero e sexualidade bem como os efeitos de um sobre outro nos leva a questionar como as ideias construídas de masculino e feminino fixam lugares e funções sociais préestabelecidos para os sujeitos e qualquer existência que desafie esse lugar naturalizado terá sua legitimidade colocada em xeque 3 RICH WITTIG E BUTLER HETEROSSEXUALIDADE COMPULSÓRIA ECONOMIA HETEROSSEXISTA E CORPO ABJETO A heterossexualidade compulsória é muito mais do que sua definição pura e simples de que a heterossexualidade é a única sexualidade normalizada e aceita socialmente É preciso buscar compreender que a obrigatoriedade da heterossexualidade feminina é a forma pela qual o gênero masculino garante direitos de acesso irrestrito ao corpo da mulher econômica e emocionalmente e para tanto fazse indispensável de forma estratégica suprimir entre muitas liberdades a existência da lesbiandade Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 292 Rich 2012 aponta alguns marcadores sóciohistóricos que servem para enumerar as diversas formas de exercer o poder através do enclausuramento do corpo da consciência e da sexualidade feminina sendo que entre eles estão o uso de cinto de castidade a clitoridectomia9 infibulação10 morte em razão da sexualidade lésbica ou do adultério negação psicanalítica do clitóris restrições contra a masturbação negação da sexualidade da mãe e da mulher pós menopausa histerectomias desnecessárias imagens pseudolésbicas na mídia e na literatura com finalidade fetichista de entretenimento masculino fechamento de arquivos e destruição de documentos relacionados com a existência lésbica estupro corretivo e marital agressão física ou psicológica da esposa incesto paifilha irmãoirmã idealização do romance heterossexual na arte na literatura na mídia na propaganda etc casamento infantil casamento arranjado prostituição harém doutrinas psicanalíticas da frigidez e do orgasmo vaginal descrições pornográficas das mulheres a responder com prazer à violência sexual e à humilhação exploração do trabalho feminino a fim de controlar sua produção instituições de casamento e da maternidade como produção sem pagamento segregação horizontal das mulheres em trabalho assalariado controle masculino do aborto e contracepção cafetinagem infanticídio feminino direito paterno e do sequestro legal esterilização forçada apreensão legal dos filhos de mães lésbicas pelos juizados má conduta profissional de homens obstetras uso da mãe como mediadorasimbolica da tortura na mutilação genital estupro como terrorismo o uso de purdah11 correção dos pés atrofiando as mulheres de suas capacidades atléticas uso de salto alto e de um codigo de vestuário feminino na moda uso de véu assédio sexual nas ruas prescriçoes de uma mãe atuar todo o tempo em casa dependência obrigatória forçada das esposas utilização das mulheres como objetos em transações masculinas uso das mulheres como presentes pelo dote ou preço da noiva a perseguição de bruxas e campanhas contra parteiras e curadoras e nos pogroms12 contra mulheres independentes definição das buscas e intenções masculinas como mais valiosas do que as femininas em qualquer cultura o que faz com que os valores culturais se tornem a corporificação da subjetividade masculina restrição da satisfação pessoal feminina apenas para o casamento e maternidade exploração sexual das mulheres por homens artistas e professores interrupção social e econômica das aspirações criativas das mulheres apagamento das tradições femininas não educação das mulheres o Grande Silêncio quanto às mulheres e particularmente da existência de lésbicas 9 Remoção de parte ou todo o órgão sexual 10 Sutura do orifício genital para impedir relações sexuais 11 Espécie de burca que impede as mulheres de serem vistas por homens que não sejam seus parentes diretos 12 Causar estrago destruir violentamente perseguição de grupos específicos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 293 na história e na cultura monitoramento por sexo como um fator para desviálas da esfera das ciências da tecnologia e de outras profissoes consideradas masculinas laços sociais e profissionais masculinos que excluem as mulheres e discriminação das mulheres nas profissões Essas são algumas das ferramentas utilizadas de forma sistemática e institucionalizada para subalternizar as mulheres garantindo economicamente a manutenção do capitalismo exploratório e da dominação pelo gênero masculino Como já foi apontado nesse texto o Estado e a igreja estão no topo dessa cadeia de opressão e as sociedades civis são a base o braço forte que opera a mecânica dessas práticas de poder As mulheres lésbicas principalmente as negras em suas pulsões não coadunam com a lógica estruturalista do patriarcado não reconhecem a heterossexualidade como um processo instituído não servem como moeda de troca em negociações de organização familiar rompem com o ciclo do poder econômico masculino produzem e se inscrevem através e para outras mulheres e portanto são as que sofrem a maior carga de violência institucional física sexual psicológica de invisibilização de silenciamento e apagamento histórico e social Essas violências têm seu início marcado teologicamente na comercialização da ideia de que lésbicas não são mulheres são menos que mulheres A bíblia aponta o pecado o sistema econômico explora a medicina patologiza a psiquiatria medicamentaliza as ciências psi psicologia e psicanálise investigam e curam as políticas públicas de assistência não reconhecem o mercado exclui a sociedade estupra e mata a mídia ignora A conhecida postulação de Wittig 1992 de que as lésbicas não são mulheres indica precisamente como a categoria mulher está inscrita na economia heterossexual demarcada pelo binarismo de gênero e na relação de oposição ao homem Nesse sentido entendemos que não se trata de destituir a lésbica das inúmeras mulheridades possíveis mas de apontar como essa posição de sujeito desestabiliza os próprios termos que assentam e naturalizam a diferença sexual A partir daí podemos recorrer à noção de abjeção trabalhada por Butler 2010 2017 para compreender como os sujeitos são marcados por fronteiras de inteligibilidade que produzem e acentuam processos sociais de hierarquização e exclusão Falar em abjeção não consiste como reforça Butler PRINS MEIJER 2002 em delimitar quais corpos e sujeitos são considerados abjetos em si mas se torna útil para pensar como os códigos sociais criam condições para que determinadas vidas adquiram inteligibilidade ou seja sejam potencialmente reconhecidas como reais e humanas Como bem aponta a autora à medida que as normas estabelecem um campo de inteligibilidade para os sujeitos constituise também um resto aquele não amparado pelas prescrições normativas e ao mesmo tempo necessário à Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 294 sua delimitação Desse modo se levarmos em conta que os corpos sexuados são constituídos e regulados por uma matriz heterossexual BUTLER 2017 vamos nos deparar com a abjeção daquelas existências que de alguma forma colocam em questão as referências pelas quais essa matriz é constantemente reafirmada Ao voltarmos especificamente para o lugar social das lésbicas parece cabível questionar quais códigos inteligíveis e portanto de reconhecimento sustentam suas existências Como a produção de inteligibilidade acerca de gênero e sexualidade criam mecanismos de subalternização desvalorização e apagamento político de seus corpos Nesse sentido uma aproximação entre as contribuiçoes de Wittig e Butler nos mostram um não lugar ou talvez uma indeterminação social nos termos colocados pela matriz heteronormativa Como aponta Butler em entrevista Se a lesbiandade13 for entendida como uma dentre muitas formas de impropriedade então a relação entre sexualidade e gênero permanece intacta no sentido de que não nos perguntaríamos sob quais condições a lesbiandade realmente afeta a noção de gênero Não é simplesmente a questão de o que é uma mulher própria ou imprópria mas o que não é absolutamente concebível como uma mulher E é aqui que retornamos para a noção de abjeção Eu acho que a abjeção tenta sinalizar o que permanece fora dessas oposições binárias a ponto mesmo de possibilitar esses binarismos PRINS MEIJER 2002 p 165 É importante ressaltar portanto que a referência à lésbica não está restrita às relações sexuaisafetivas entre mulheres tampouco diz respeito a apenas uma possibilidade de experienciar a sexualidade humana mas remete a um lugar que rompe e denuncia a heterossexualidade como regime político e econômico Esse nãolugar habitado por mulheres lésbicas postulam a todo tempo os discursos espaços e as relações que compõem suas existências e como não poderia deixar de ser expressa os efeitos de violência sobre seus corpos 4 A INVISIBILIDADE DA VIOLÊNCIA E DO LESBOCÍDIO DADOS DE MORTE E ESTUPRO DE MULHERES LÉSBICAS NO BRASIL Tentaremos discutir a partir de agora a relação entre as violências e os processos de abjeção que incidem sobre as vidas de mulheres lésbicas com base principalmente em duas iniciativas de mapeamento e sistematização de dados sobre violência 1 o Dossiê sobre lesbocídio do Brasil de 2014 até 2017 PERES SOARES DIAS 2018 importantíssimo 13 O termo utilizado no texto e tradução originais é lesbianismo No entanto optamos por substituir por lesbiandade a fim de descaracterizar a carga patologizante que acompanha o sufixo ismo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 295 documento lançado em 2018 em que as pesquisadoras procuram sistematizar dados sobre os assassinatos de lésbicas e assim prover uma maior compreensão sobre os mecanismos da violência perpetrada contra essas mulheres além de criar um espaço de memória coletiva sobre suas existências e suas mortes 2 o Mapa da Violência de Gênero GÊNERO E NÚMERO 2019 plataforma que cruza dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde SINAN e do Sistema de Informações sobre Mortalidade SIMDATASUS no intuito de construir e monitorar o cenário da violência contra mulheres e pessoas LGBT no país De acordo com as autoras do dossiê o fato de não haver levantamentos oficiais sobre os lesbocídios e de tais mortes nem sequer serem relacionadas às opressões que desumanizam as mulheres lésbicas nos mostram o quão precariamente suas vidas são levadas em conta Apesar de o lesbocídio integrar o amplo espectro da violência contra mulheres as pesquisadoras enfatizam que este se diferencia da noção de feminicídio e se caracteriza por ser uma prática de extermínio fundada no ódio promovido contra a existência lésbica PERES SOARES DIAS 2018 Dessa forma estamos diante de uma violenta articulação de misoginia e lesbofobia direcionada às mulheres que não fazem parte da dinâmica relacional e institucional da heterossexualidade Não à toa as análises empreendidas no dossiê indicam que os assassinatos na maior parte cometidos por homens 83 dos casos estão relacionados com as lésbicas enquanto indivíduos e grupo social de todo modo mulheres com as quais eles não possuem necessariamente vínculos familiares conjugais ou domésticos PERES SOARES DIAS 2018 p 20 Chamam a atenção alguns dados levantados pela pesquisa que abarcou o período entre 2014 e 2017 cerca de 72 dos lesbocídios ocorreram em espaços públicos e em 64 dos casos os assassinatos foram cometidos por pessoas conhecidas eou com algum tipo de vínculo afetivofamiliar com a vítima Da totalidade dessas mortes 66 correspondem às lésbicas não feminilizadas14 A configuração dos lesbocídios como crimes de ódio também se expressa através da forma como os assassinatos ocorrem 47 das lésbicas foram vitimadas por arma de fogo e 23 por facadas Entre as tipologias da violência elencadas pelas autoras constam os assassinatos com motivações lesbofóbicas declaradas e também aqueles cometidos por homens que ocupam posições diversas em relação às suas vítimas excompanheiros parentes conhecidos sem qualquer vínculo afetivo familiar ou consanguíneo e completos desconhecidos Apesar de cada 14 Lésbicas nãofeminilizadas é o termo utilizado no dossiê para designar as lésbicas que não performam feminilidade expressão pontuada no início do trabalho Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 296 uma dessas posições expressar um arranjo específico da violência há algo em comum que as constitui o extermínio como forma de restituição da normalidade e da ordem heterossexual seja na instituição familiar seja nos espaços compreendidos como públicos e comunitários Os corpos lésbicos vistos como desviantes e portanto indignos de habitar espaços instituídos de estabelecer relações afetivas e de pertencimento com outras mulheres produzem rupturas na organização social heteronormativa e nos códigos inteligíveis de seu regime As pesquisadoras mostram a recorrência de casos em que o assassinato é praticado por homens que se relacionaram anteriormente com mulheres que passam a assumir relacionamento com outra mulher Em algumas dessas situações ambas são vitimizadas porém é comum que a lesbofobia se direcione mais diretamente àquela que não performa feminilidade entendida pelo homem em questão como uma ameaça à sua virilidade Não podemos assim ignorar a relação entre a intensidade dessa ruptura com as marcas de não reconhecimento que cada corpo lésbico carrega o que torna mais evidente o fato de que mais da metade das mulheres lésbicas fatalizadas são as butch aquelas lidas pejorativamente como mulhermacho Nem completamente mulheres nem suficientemente homens para os parâmetros binários de gênero e sexualidade a butch implode a aparente fixidez das categorias pois sua existência demonstra a possibilidade da produção de uma feminilidade alternativa Sua identidade surge exatamente do desvio de um processo de repetição PRECIADO 2014 p 207 Ao tentar ser inutilmente assimilada pelos códigos que lhes dão consistência ela sustenta outra posição no mundo e reivindica uma existência e linguagens próprias Uma reivindicação que ao mesmo tempo é possibilidade de criação entre e apesar das normas sustenta um lugar de desamparo social cujo não reconhecimento pode desembocar na anulação de sua própria humanidade Além dos assassinatos analisados no documento citado é importante lembrar que uma das principais violências perpetradas contra lésbicas são os chamados estupros corretivos que consistem em práticas de punição eou tentativa de correção de sua sexualidade De acordo com o levantamento feito pela organização Gênero e Número através dos dados do SINAN 61 dos estupros ocorreram no espaço da residência e 20 em locais públicos em 2017 sendo que os homens aparecem como agressores em 96 dos casos Só naquele ano há registro de 2379 casos de estupro contra lésbicas nos quais em mais da metade das ocorrências 61 as vítimas foram violentadas mais de uma vez SILVA 2019 Esta forma de violência sexual frequentemente carregada de insultos lesbofóbicos e discursos de odio como aprender a virar mulher eou gostar de homem se concretiza como retaliação dos corpos considerados perversos e imorais Segundo Santos Araujo e Rabello Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 297 2014 há a probabilidade de que os estupros corretivos sejam uma violência ainda menos notificada dentro do espectro da violência lesbocida marcada já por subnotificações dificuldades para denúncia e invisibilização no âmbito das políticas públicas Na discussão sobre a violência lesbofóbica Peres Soares e Dias 2018 incluem o suicídio como tipologia dos assassinatos Para as autoras as mortes de lésbicas suicidadas dizem muito mais de um contexto de discriminação invisibilidade e deslegitimação de suas histórias e trajetórias de vida que têm efeitos crueis para a saúde mental individual e coletiva dessas mulheres O constante apagamento e tentativas de silenciar a existência lésbica se manifesta também na falta de referências e sentidos sobre as sexualidades nãoheterocentradas bem como na vivência de isolamento e desamparo familiar comunitário e institucional Os dados do dossiê apontam um crescente número de suicídios entre lésbicas que atingem principalmente aquelas feminilizadas No que concerne à dimensão étnicoracial dos lesbocídios mais da metade das notificações de assassinato correspondem a lésbicas brancas enquanto 45 das vítimas são lésbicas negras e 1 indígenas Segundo os dados da organização Gênero e Número as lésbicas negras apareceram como as maiores vítimas de estupro em 2017 totalizando 58 dos casos e as indígenas e amarelas 1 SILVA 2019 As autoras do dossiê apontam que o índice de mortes relacionados às lésbicas negras e indígenas é provavelmente muito maior pois levantamentos oficiais indicam aumento da violência letal contra a população de mulheres negras no Brasil O conhecimento sobre o homicídio de lésbicas indígenas é ainda bastante precário para não dizer inexistente pois por um lado sabese do alto índice de mortalidade das populações indígenas por meio de seu extermínio e por outro a falta de informações sistematizadas sobre a violência contra mulheres indígenas invisibiliza as opressões que compõem a realidade de suas vivências PERES SOARES DIAS 2018 De maneira geral as mortes de mulheres lésbicas são subnotificadas eou invisibilizadas por não haver o entendimento da lesbofobia como vetor da violência estrutural e consequentemente como possibilidade da motivação dos assassinatos Em cada memória da existência lésbica a morte nos aponta para os sofrimentos injustiças e tentativas de aniquilamento físico e simbólico vividas por essas mulheres Casos como a morte de Luana Barbosa dos Reis mulher negra e lésbica moradora da periferia de São Paulo que foi brutalmente espancada por policiais enquanto levava seu filho para a escola são emblemáticos da violência racista e lesbofóbica denunciando a intersecção de opressões que recaem sobre as vidas lésbicas Anne Mickaelly vítima de lesbocídio pelo pai de sua namorada no dia em que a pediria em casamento denuncia o ódio aos afetos e relações que fogem à concepção de família Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 298 heterossexual O casal Iasmym Nascimento de Souza da Silva e Caio Dantas uma mulher cis lésbica e um homem trans que sofreram agressões e foram mortos a facadas por um vizinho após uma discussão envolvendo assédio por parte deste mostra a repulsa destinada aos corpos que não se submetem à lógica de controle e satisfação da masculinidade hegemônica Angela Ro Ro primeira cantora brasileira a se assumir lésbica perdeu uma parte da visão e da audição após diversos espancamentos proferidos por autoridades militares e policiais de quem ouviu em certa vez que sapatão não tem utero apos ser ferida em seu baixo ventre Os números e casos citados comprovam a necessidade de mais pesquisas que articulem pautas consistentes de denúncia e enfrentamento dessas violências pois as violências sofridas costumam ser alocadas em espaços de segredo que fazem com que o combate às mesmas seja ainda mais prejudicado Apartadas do direito de viver de exaltar sua condição lésbica e de deixar provas das opressões que sofriam as lésbicas acabam se tornando seres humanos sem história ou com uma história cheia de ausências nãoditos e vácuos que revelam muito sobre a existência das opressões e pouco sobre minúcias de suas mortes PERES SOARES DIAS 20182019 p 46 CONSIDERAÇÕES FINAIS Escrevemos um texto sobre uma forma de existência precarizada sendo nós mesmas essa existência sobre formas específicas de violência sendo nós mesmas as violentadas sobre como um corpo é subjugado massacrado e aniquilado sendo nós mesmas esse corpo Portanto para quem vive dentro dessa realidade de abjeção esse projeto tem como objetivo identificar denunciar e demarcar os componentes históricos sociais políticos e culturais que perpetram que ainda existam vidas insustentáveis de viver Do lado de quem faz parte de diversas das estatísticas citadas mas não teme a morte mais do que o silenciamento ou o apagamento nossa pretensão é afirmar conforme se propôs o texto que a causa da violência que deixa indigna ou morta uma mulher lésbica é uma estrutura globalizada que rejeita nossas vidas quando não enxergam utilidade em nós Porém é importante ressaltar que resistência é movimento e política é feita por corpos que se movimentam Para Foucault 1995 toda relação de poder implica um contrapoder e a violência atinge seu ápice quando não há possibilidade de reação e nesses casos o que sobra é tortura escravidão e extermínio Enquanto houver possibilidades de resistência ainda que em condições precárias estaremos sempre em movimento para cobrar aos governos que nos regem enquanto nação e responsabilizar a sociedade civil por mais nefasta que seja sua resposta ou nos matam ou mesmo a duras penas nos faremos ser ouvidas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres com ênfase no gênero V 3 299 Esse texto toma como base dados coletados de forma autônoma por iniciativas localizadas e denuncia a insuficiência da sistematização de informações em relação às violências sofridas por mulheres lésbicas que dê base para que políticas públicas específicas sejam criadas e também para que essas violências sejam identificadas nas políticas já existentes no combate à violência de gênero e LGBTfóbica Este panorama de precariedade evidencia os processos que pretendem invisibilizar e reduzir nossas necessidades as violências que sofremos a punição dos nossos algozes nosso acesso ao sistema de educação e saúde e nossa livre e segura circulação pelos espaços públicos O combate à lesbofobia e ao lesbocídio também implicam compreender como a heteronorma constrói e organiza não somente as lógicas institucionais mas também nosso cotidiano nossas relações sociais afetivas e familiares muitas vezes marcadas por lugares de silenciamento inferiorização ou indiferença Tornar visível a existência lésbica passa portanto pelo reconhecimento de que somos sujeitos da história e com história e sobretudo por nomear as violências que acompanham nossas vidas REFERÊNCIAS BUTLER Judith Cuerpos que importan Sobre los límites materiales y discursivos del sexo 2ª ed 1ª reimp Buenos Aires Paidos 2010 BUTLER Judith Problemas de gênero feminismo e subversão da identidade 13ª ed Rio de Janeiro Civilização brasileira 2017 BUTLER Judith Regulações de gênero Cadernos Pagu Campinas n 42 p 249275 jan jun 2014 DOI httpdxdoiorg10159001048333201400420249 Disponível em httpwwwscielobrpdfcpan4201048333cpa4200249pdf Acesso em 10 set 2019 FEDERICI Silvia Calibã e a Bruxa mulheres corpo e acumulação primitiva 1ª ed São Paulo Elefante 2017a FEDERICI Silvia Notas sobre gênero em O Capital de Marx Cadernos Cemarx Campinas n 10 p 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ORGANIZADORAS GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS POLIANA RIBEIRO DOS SANTOS SALETE SILVA SOMMARIVA MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGLL CAPA ATHENA DE OLIVEIRA NOGUEIRA BASTOS ILUSTRAÇÃO DA CAPA BRUNA VETTORI PROJETO EDITORIAL E DESENVOLVIMENTO POLIANA RIBEIRO DOS SANTOS