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GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS POLIANA RIBEIRO DOS SANTOS SALETE SILVA SOMMARIVA MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGLL O R G A N I Z A D O R A S Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V O L U M E 2 I S B N o b r a 9 7 8 8 5 6 6 1 4 9 4 0 1 I S B N c o l e ç ã o 9 7 8 8 5 6 6 1 4 9 3 8 8 COLEÇÃO ORGANIZADORAS Grazielly Alessandra Baggenstoss Poliana Ribeiro dos Santos Salete Silva Sommariva Michelle de Souza Gomes Hugill Coleção NÃO HÁ LUGAR SEGURO Estudos e Práticas sobre Violências Contra as Mulheres à Luz da Multidisciplinariedade Volume 2 Edição Eletrônica Florianópolis 2019 Copyright 2019 by Editora Centro de Estudos Jurídicos CEJUR Diagramação Poliana Ribeiro dos Santos Capa Athena de Oliveira Nogueira Bastos Categoria Produção Editorial Editora Centro de Estudos Jurídicos CEJUR O conteúdo deste livro é de responsabilidade dos autores e não expressa posição técnica ou institucional do Poder Judiciário de Santa Catarina das Organizadoras e da Universidade Federal de Santa Catarina CONSELHO TÉCNICOCIENTÍFICO Desembargador Rodrigo Tolentino de Carvalho Collaço Desembargador Moacyr de Moraes Lima Filho Desembargador Henry Petry Junior Desembargador Luiz Cézar Medeiros Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Vânia Petermann Juiz de Direito Marcelo Pizolati Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta CONSELHO EDITORIAL Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta Juiz de Direito Fernando de Castro Faria Juiz de Direito João Batista da Cunha Ocampo Moré Juiz de Direito Antônio Zoldan da Veiga Os trabalhos que compõe esta coleção foram submetidos à dupla avaliação cega doubleblind review por pareceristas ad hoc pósgraduados CIPBRASIL CATALOGAÇÃONAFONTE B144c Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade Organizadoras Grazielly Alessandra Baggenstoss Poliana Ribeiro dos Santos Salete Silva Sommariva Michelle de Souza Gomes Hugill Florianópolis Editora Centro de Estudos Jurídicos CEJUR 2019 Volume 2 489 p fig tabs ISBN obra 9788566149401 ISBN coleção 9788566149388 1 Violências contra as mulheres 2 Feminismo 3 Direitos das mulheres 4 Mulheres Condições sociais I Baggenstoss Grazielly Alessandra II Santos Poliana Ribeiro dos III Sommariva Salete Silva IV Hugill Michelle de Souza Gomes V Título CDD 340 Ficha catalográfica elaborada por Deise Oliveira de Almeida CRB 113414ª Este livro está sob a licença Creative Commons que segue o princípio básico do acesso público à informação O livro pode ser compartilhado desde que atribuídos os devidos créditos de autoria Não é permitida nenhuma forma de alteração ou a sua utilização para fins comerciais brcreativecommonsorg CENTRO DE ESTUDOS JURÍDICOS CEJUR CONSELHO TÉCNICOCIENTÍFICO Desembargador Rodrigo Tolentino de Carvalho Collaço Desembargador Moacyr de Moraes Lima Filho Desembargador Henry Petry Junior Desembargador Luiz Cézar Medeiros Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Vânia Petermann Juiz de Direito Marcelo Pizolati Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta CONSELHO EDITORIAL Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta Juiz de Direito Fernando de Castro Faria Juiz de Direito João Batista da Cunha Ocampo Moré Juiz de Direito Antônio Zoldan da Veiga CEJUR Academia Judicial Rua Almirante Lamego 1386 Centro FlorianópolisSC 88015601 Fone 48 32872801 academiatjscjusbr wwwtjscjusbracademia PARECERISTAS DA COLEÇÃO Os trabalhos que compõe a coleção foram submetidos à dupla avaliação cega doubleblind review por pareceristas ad hoc pósgraduados Adaiana Fátima Almeida UFSC Adailson da Silva Moreira PUCSP Adriana Aparecida da Conceição Santos Sá UNIVALE Adriana De Toni UFSC Adriele Andreia Inacio UEL Alberth Alves Rodrigues UFSC Alessandra Knoll UFSC Alessandro Tonon Câmara Ávila UFSC Alexandre Botelho UFSC Aline Antunes Gomes UNIJUÍ Amanda Muniz Oliveira UFSC Amina Regina Silva UFSC Ana Cláudia Wendt dos Santos USP Ana Cristina Costa Lima UFSC Ana Lúcia Cintra UFSC Ana Maria Justo UFSC Ana Martina Baron Engerroff UFSC Ana Paula Araujo de Freitas UFSC Andréa Martini UFSC Andressa Kikuti Dancosky UEPG Angela Maria Moura Costa Prates UFSC Arisa Ribas Cardoso UFSC Athena de Oliveira Nogueira Bastos UFSC Bettieli Barboza da Silveira UFSC Bianca Bez Goulart UFSC Brune Camillo Bonassi UFSC Camila Damasceno de Andrade UFSC Carla Pires Vieira da Rocha UFSC Carolina Frescura Junges UFSC Charles Raimundo da Silva UFSC Chimelly Louise de Resenes Marcon UNIVALI Christiane Heloisa Kalb UFSC Cinthia Creatini da Rocha UFSC Clara Martins do Nascimento UFPE Clarindo Epaminondas de Sá Neto UFSC Claudia Regina Nichnig UFSC Cristiane Valéria da Silva UFSC Daniela Castamann UEL Daniela Lippstein UNISC Daniela Maysa de Souza UFSC Daniele Beatriz Manfrini UFSC Débora Diana da Rosa UFMG Deborah Cristina Amorim UFSC Diana Piroli UFSC Dnyelle Souza Silva UFSC Edivane de Jesus UFSC Eduardo de Carvalho Rêgo UFSC Elaine Cristina Novatzki Forte UFSC Elton Fogaça da Costa UFSC Emmanuelle Elise Campos de Moraes UFSC Eunice Maria Nazarethe Nonato UNISINOS Ezair José Meurer Junior UFSC Fabiani Cabral Lima UFSC Fernanda Ax Wilhelm UFSC Fernanda Cardozo UFSC Fernanda da Silva Lima UFSC Fernanda Martins UFSC Fernanda Nunes da Rosa Mangini UFSC Frederico Augusto Paschoal UFSC Frederico Ribeiro de Freitas Mendes UFSC Gabriel Silva Costa USP Gabriela Dal Forno Martins UFRGS Gerusa Morgana Bloss UFSC Giácomo Tenório Farias UNISC Giovana Dorneles Callegaro Higashi UFSC Giovana Ilka Jacinto Salvaro UFSC Gisele Garcia Lopes UFSC Henrique Franco Morita UFSC Iara Cristina Corrêa UFSC Idonézia Collodel Benetti UFSC Isabela Martins Nadal UEPG Isabele Bruna Barbieri PUCPR Isabele Soares Parente UFSC Isabella Cristina Lunelli UFSC Ivette Sonora Soto ISA Janaina de Fátima Zdebskyi UFSC Janaina Mayara Müller da Silva FURB Janine Gomes da Silva RENNES Jessica Gustafson Costa UFSC Jéssica Sbroglia da Silva UFSC Joana DArc Vaz UFSC Joanara Rozane da Fontoura Winters UFSC Josélia da Silveira Nogueira UFSC Josiele Bené Lahorgue UFSC Juliana Alice Fernandes Gonçalves UFSC Juliana Schumacker Lessa UFSC Karine Grassi UCS Karolyna Marin Herrera UFSC Katheri Maris Zamprogna UFSC Kathiuça Bertollo UFSC Kátia Maria Zgoda Parizotto UFSC Kênia Mara Gaedtke UFSC Lady Mara Lima de Brito UFAM Laila Priscila Graf Ornellas UFSC Larissa Antunes UFSC Leide Sayuri Ogasawara UFSC Lenna Eloisa Madureira Pereira UFPA Leticia Scartazzini UFSC Liamara Teresinha Fornari UFSC Libiana Carla Bez Machado UFSC Liendina Joaquim Chirindza UFSC Ligia Ribeiro Vieira UFSC Loren Marie Vituri Berbert UFSC Luana Loria UFSC Luana Michele da Silva Vilas Bôas UERJ Luceni Medeiros Hellebrandt UENF Lúcia Helena Fidelis Bahia UDESC Luciana de Fátima Leite Lourenço UFSC Luciana Martins Saraiva UFSC Luciana Ribeiro de Brito UFSC Luciano Jahnecka UFSC Luciany Alves Schlickmann UFSC Luis Irapuan Campelo Bessa Neto UFSC Luiz Eduardo Dias Cardoso UFSC Luiza Landerdahl Christmann UFSC Maiara Pereira Cunha UFSC Maíra Marchi Gomes UFSC Marcel Soares de Souza UFSC Marcia Regina Calderipe Farias Rufino UFSC Marcio Jose Rosa de Carvalho UFSC Mareli Eliane Graupe OSNABRUECK Margarete Maria de Lima UFSC Maria Aparecida Salci UFSC Maria Cecilia Olivio UFSC Maria de Jesus Hernnandez Rodriguez UFSC Maria Eduarda Ramos UFSC María Fernanda Vásquez Valencia UFSC Mariana Aquilante Policarpo UFSC Mariana Caroline Scholz UFSC Marilande Fátima Manfrin Leida UFSC Marília dos Santos Amaral UFSC Marília Nascimento de Sousa UFSC Marina da Silva Sanes FURG Maris Stela da Luz Stelmachuk UFSC Marluce Dias Fagundes UFRGS Maurício da Cunha Savino Filó UFSC Melina de la Barrera Ayres UFSC Mirian Carla Cruz UFSC Monica Ovinski de Camargo Cortina UFSC Morgani Guzzo UFSC Natalia Fonseca de Abreu Rangel UFSC Nayala Lirio Gomes Gazola UFSC Noa Cykman UFSC Odisséia Fátima Perão UFSC Paula Helena Lopes UFSC Paula Pinhal de Carlos UFSC Paulo Ricardo Maroso Pereira UFRGS Poliana Ribeiro dos Santos UFSC Priscila Schacht Cardozo UNESC Priscilla Stuart da Silva UFSC Rafael de Almeida Pujol UFSC Rafaela Luiza Trevisan UFSC Renata Andrade de Oliveira UEM Renata Guimarães Reynaldo UFSC Renata Nunes UFSC Rene Erick Sampar UEL Roberto Wöhlke UFSC Rosana Sousa de Moraes Sarmento UFSC Roselete Fagundes de Aviz UFSC Rudá Ryuiti Furukita Baptista UEL Sabrina Aparecida da Silva UFSC Sabrina Blasius Faust UFSC Samanta Rodrigues Michelin UFSC Samira de Moraes Maia Vigano UFSC Samuel Martins dos Santos UFSC Sandra Iris Sobrera Abella UFSC Sérgio Cabral dos Reis UFSC Sheila Cristina Silva Ferraz UFSC Silvana Marta Tumelero UFSC Silvia Araújo Dettmer PUCSP Silvia Cardoso Rocha UFSC Simone Lolatto UFSC Simone Vidal Santos UFSC Soraia Carolina de Mello UFSC Tânia Welter UFSC Tatiana Pires Escobar UFSC Thatiane Cristina Fontão Pires UFSC Valéria de Angelo Ghisi UFSC Valine Castaldelli Silva UNICESUMAR Vanessa Dorneles Schinke PUCRS Wellington Lima Amorim UFRJ Yasmim Pereira Yonekura UFSC Zuleica Pretto UFSC Autoresas da Coleção Adria de Lima Sousa UFSC Adriana Dutra Tholl UFSC Adriano Beiras UFSC Alessandra Guterres Deifeld UNIVALI Amanda Ferreira da Silva CESUSC Amanda Mauricio Alexandroni UFSC Amanda Muniz Oliveira UFSC Ana Beatriz Cruz Nunes UNESP Ana Beatriz Eufrauzino de Araújo UNIPE Ana Paula Bourscheid UFSC Ana Paula Machado UFFS André Demetrio Alexandre PUCPR Anna Quialheiro Abreu da Silva UDESC Antônio José Ledo Alves da Cunha ENSP Ariane Mattei Nunes UFSC Ariê Scherreier Ferneda PUCPR Athena de Oliveira Nogueira Bastos UFSC Athena de Oliveira Nogueira Bastos UFSC Beatriz Berg USP Beatriz de Almeida Coelho UFSC Beatriz Moreira Bezerra Vieira UEM Benhur Pinós da Costa UFRJ Betina Fontana Piovesan UNIVALI Bettieli Barboza da Silveira UFSC Bianca Louise Wagner UFSC Bruna Adames UNIFEBE Bruna Amato UGF Bruna Boldo Arruda UNIVALI Bruna Camila Schuhardt UNIASSELVI Bruna Carolina Bernhardt UFSC Bruna Luisa Macelai UNIVALI Bruna Luiza de Souza Pfiffer de Oliveira UFSC Bruna Marques da Silva UNISINOS Caio Henrique de Mendonça Chaves Incrocci UFSC Camila Maffioleti Cavaler UFSC Camila Trindade UFSC Carla Julia da Silva UFRN Carla Roberta Carnette UNOESC Carmen Leontina Ojeda Ocampo Moré ULISBOA Carolina Carvalho Bolsoni UFSC Carolina Carvalho Bolsoni UFSC Carolina Orquiza Cherfem UNICAMP Carolina Young Yanes UFSC Charlene Fernanda Thurow FURB Christiane Heloisa Kalb UFSC Clarete Trzcinski UFRGS Clarindo Epaminondas de Sá Neto UFSC Cláudio Macedo de Souza UFMG Cristiane Floriano Rieg UFSC Cristiane Tonezer UFRGS Dábine Caroene Capitanio UFSM Daiane dos Santos Possamai UNESC Daniela Queila dos Santos Bornin ITE Daniela Urtado PUCPR Danielle Alves da Cruz UFSC Deise Warmling UFSC Deisemara Turatti Langoski UFSC Denise Maria Nunes UFSC Edegar Fronza Junior UFSC Edna Wernke Niehues dos Reis UNISUL Eduardo Passold Reis AJTJSC Eliane Rodrigues UFSM Elizabeth Cristiane Mendonça Azevedo UNIPAMPA Elza Berger Salema Coelho UFSC Elza Berger Salema Coelho UFSC Emilly Marques Tenorio UFES Érika Costa da Silva UFBA Fábio Mattos FGV Fernanda Cornelius Lange UNIVALI Fernanda de Carvalho Rodrigues da Silva CEGSC Fernanda Marcela Torrentes Gomes UFSC Fernanda Miler Lima Pinto UFMA Fernanda Moreira Ballaris UFRJ Fernanda Moura Muniz PUC Fernanda Nunes da Rosa Mangini UFSC Flávia Rubiane Durgante UFSM Flavia Soares Ramos UFSC Franciele Volpato UFSC Francisco Pereira de Oliveira UFPA Gabriela Feldhaus de Souza UNIPLAC Gabriela Ferreira Dutra Birkbeck College Gabriele Aparecida de Souza e Souza UEA Gabriele Nigra Salgado UFSC Genilson Fernandes Monteiro UFPA Georgia Paula Martins Faust UNIASSELVI Giovana Ilka Jacinto Salvaro UFSC Grazielly Alessandra Baggenstoss UFSC Hellen Lopes Dutra Mazzola UNIVALI Heloisa Mondardo Cardoso UFSC Hildemar Meneguzzi de Carvalho UNIVALI Íris de Carvalho PUCRS Isabele Bruna Barbieri UEL Ísis de Jesus Garcia UFSC Ismê Catureba Santos UCAM Ivone Maria Mendes Silva USP Janice Merigo PUCRS Jeanine Dewes de Oliveira UNISUL Jéssica Janine Bernhardt Fuchs UFSC Jéssica Painkow Rosa Cavalcante UFG João Antonio da Cruz dos Santos UNIVALI João Fillipe Horr UFSC José Dias Santana UFPA José Elias Gabriel Neto FMPRS Josilaine Antunes Pereira UNISINOS Júlia Farah Scholz CATÓLICASC Júlia Sleifer Alonso UNIPAMPA Juliana Alice Fernandes Gonçalves UFSC Juliana Andrade da Silva PUCRS Karine Grassi UFSC Karine Kerkhoff UNOCHAPECÓ Karla Fernanda Pereira UFMA Karolyna Marin Herrera UFSC Karopy Ribeiro Noronha UFSM Kelly Cristina Schäfer Batistella UNISUL Kimberly Gianello Studer UFSC Laís Castro UEM Larissa Emília Guilherme Ribeiro IESP Larisse de Oliveira Rodrigues UERJ Lauriana Urquiza Nogueira UFSC Letícia de Cisne Branco CESUSC Lia Gabriela Pagoto UFFS Liandra Savanhago UFSC Lívia Dornelles Madrid URI Liziane da Silva Rodríguez PUCRS Luana Limberger Marques CESUSC Luana Marina dos Santos UNISINOS Lucas Francisco Neto DOCTUM Lucely Ginani Bordon UFRN Luciana Bittencourt Gomes Silva UNIDERP Luciele Mariel Franco UEM Lucienne Martins Borges UQÀM Luisa Chaves de la Rosa UNIPAMPA Luísa Neis Ribeiro UFSC Luiza Alano de Almeida UNESC Luiza Niehues Bonetti UNESC Maiara Leandro UFSC Mainara Gomes Cândida Coelho UFSC Maira Gabriela Anschau UNOCHAPECÓ Márcia Aline Pacheco de Medeiros CESUSC Márcia Cristiane NunesScardueli UNISUL Mareli Eliane Graupe UFSC Mareli Eliane Graupe UNIPLAC Mariana Silvino Paris CLACSO Mariane Pires Ventura UFSC Mariane Vanderlinde da Silva UFSC Mariella Kraus FURB Marília de Nardin Budó UFPR Marília dos Santos Amaral UFSC Marina Williamson Touro UFSC Marja Mangili Laurindo UFSC Mayara de Abreu Stuepp Cardoso FMP Mayara Zimmermann Gelsleichter UFSC Michelle de Souza Gomes Hugill UFSC Milena Barbi UFSC Miliane dos Santos Fantonelli UFSM Mirenchu Maitena dos Santos Rivas UNIPAMPA Miriam Olivia Knopik Ferraz PUCPR Monica Ovinski de Camargo Cortina UFSC Nádia Maria Gonçalves Krüger CEGSC Natália Aparecida Antunes UFSC Natielle Machado Santos UNIPLAC Nínive Degasperi Poffo UFSC Pamela de Gracia Paiva UNINTER Paola Dozoretz FURB Patrícia Backes UFSC Patrícia Borba Marchetto UB Paulo José Mueller UNIVALI Paulo Thiago Fernandes Dias PUCRS Paulo Thiago Fernandes Dias UNISINOS Poliana Ribeiro dos Santos UFSC Priscila Fernanda Santiago Ferreira UFMA Raul da Silveira Santos UFPA Regina Célia Costa Lima PUCGO Roberta Logobuco de Araujo Pereira PUC Sabrina Nerón Balthazar UFSC Sara Alacoque Guerra Zaghlout PUCRS Scheila Krenkel UFSC Sheila Rúbia Lindner UFSC Stella Scantamburlo de Mergár UCAM Sthefanie Aguiar da Silva UFSC Tainá Malinski UNISUL Thamyres Cristina da Silva Lima UFSC Thays Berger Conceição UFSC Vanessa Martinhago Borges Fernandes UFSC Vilma Pimentel Siqueira UFSM Wellington Lima Amorim UFRJ William Hamilton Leiria UFSC Vítimas sublimes projetos de sujeitos Não Sistema e sistemas Estrutura e estruturas Hierarquia e hierarquias Vários sub Subsistemas subestruturas Dentro disto sujeitOs Fora sujeitAs Há entrecruzamentos logo não há universalismo Num espaço como o Brasil seus contextos históricopolíticoeconômicocultural jurídico importam Invasão genocídio dos povos originários escravidão ditadura militar golpes políticos Poder descentralizado nas mãos dos que observados os períodos e cenários já o detinham e o detém Pequenos desvios dentro destes ciclos perpétuos Luta muita luta Contra o genocídio escravidão ditaduras golpes políticos retiradas de direitos Negação muita negação De todos estes eventos e características próprias No atravessamento as periferias Os territórios e corpos periféricos Ditos periféricos A marginalização do outrO Da outrA Sufocamento A construção de uma mentalidade social hierarquizada sob moldes coloniais na organização de mundo dividida entre Sul e Norte Global A trama do desenho do sujeito Do que é o sujeito Do sujeito de direito Quem tem direitos E do outrO Da outrA Que não o do direito Quem não tem direitos Nesta composição articulada secularmente sem descanso num território não recuperado de seus traumas a SujeitA boa é aquela que se mantém como a outrA sem direitos isto é a não sujeitO Ocorre que em vários pontos do globo dentre contextos sociais surgem reflexões e mobilizações destas sujeitAs mulheres Novamente luta muita luta e negação muita negação Se estrutura a sujeitA para que seja boa Uma boa vítima SujeitA vítimA A negação do gênero como arma feminicida Entrecruzamentos interseccionalidades descolonizações enfrentamentos Desconstruções morais e reconstruções de alianças políticas Desfazimento da desumanização dos projetos de sujeitos como vítimas sublimes Nem boa Nem vítima Sujeita de direito Sujeitas de direitos Em oposição às violências perpetradas contra as sujeitas mulheres as margens desde e para as margens ou seja desde os corpos periféricos para um país construído como periferia Brasil por teorias e práticas desde e para as periferias do mundo Disputas narrativas e materiais pelas e para as sujeitas mulheres Juliana Alice Fernandes Gonçalves APRESENTAÇÃO A violência contra as mulheres remonta dos tempos primitivos da humanidade cuja desigualdade entre os gêneros aqui no sentido das relações de poder entre homens e mulheres é observada em todo os campos da vida humana baseada nas diferenças biológicas e com isso na divisão do trabalho e funções em uma sociedade patriarcal Às mulheres era atribuído um papel secundário e de submissão ao domínio dos homens sob o argumento de serem seres frágeis física e intelectualmente como também da sociedade e da religião que lhes limitava as atribuições à esfera privada tais como a família reprodução e afazeres domésticos enquanto aos homens era permitida a atuação na esfera pública associada à liberdade à produção à política Tal situação foi sendo alterada por meio dos movimentos feministas e dos avanços normativos em especial a partir do século XX em que foram firmados Tratados e Convenções Internacionais assim como a promulgação da Constituição Cidadã de 1988 e das leis Maria da Penha e do Feminicídio os quais não só alçaram as mulheres à condição de sujeitos de direito e não mais de objeto como também reconheceram que as violações esses direitos são violações aos direitos humanos colocando as mulheres em patamar de igualdade com os homens Por outro lado temse que os avanços sociais não acompanharam a evolução formal uma vez que por conta da manutenção da desigualdade na divisão sexual do trabalho as mulheres passaram a assumir uma sobrecarga de responsabilidades Mesmo trabalhando fora de casa permanecem como as principais responsáveis pelos afazeres domésticos cuidados com os filhos e familiares Assim as limitações existentes para as mulheres no âmbito profissional contribuem para a manutenção das desigualdades e das violências sobre elas exercidas Como se vê o mundo atual ainda não é um lugar seguro para as mulheres pois as mulheres continuam a sofrer vários tipos de violências no âmbito doméstico e familiar no trabalho e na esfera pública Em pleno século XXI mulheres continuam sendo vitimadas subjugadas e morrendo pelas mãos de seus ex parceirosmaridosnamorados permanecem com medo de sair nas ruas à noite sendo julgadas pelo seu comportamento social ou pelas roupas que vestem Diante de tudo isso é que se denota da importância desta obra cujo título da Coleção Não há lugar seguro reflete a busca dosas pesquisadoresas de diversas áreas em trazer panoramas argumentos críticas e sugestões para possíveis caminhos e soluções para a problemática da violência de gênero Com toda a certeza as reflexões aqui apresentadas contribuirão para o desenvolvimento de ideias e ações sejam elas no âmbito público ou privado para o aprimoramento da Justiça e dos serviços públicos de proteção às mulheres E por que não dizer contribuirão para que se dê mais um passo rumo à efetivação dos direitos humanos das mulheres e para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária Boa leitura Salete Silva Sommariva Desembargadora do Tribunal de Justiça de Santa Catarina TJSC PREFÁCIO O presente livro integra a Coleção Não Há Lugar Seguro constituída por estudos científicos aprovados na I Mostra de Pesquisa Científica sobre Violências Contra as Mulheres Sendo uma parceria entre o Tribunal de Justiça de Santa Catarina e o Lilith Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos da Universidade Federal de Santa Catarina devidamente certificado pelo CNPq O presente volume contempla pesquisas sobre violências contra mulheres e seu tratamento em âmbito institucional na esfera de políticas públicas e em ambientes como a mídia o cárcere e a área rural A violência de forma genérica consubstanciase como desvios comportamentais a partir de uma referência de expectativa relacional positiva ao sujeito Assim compreendida é tida como um dilema humano sustentada por processos históricos relacionais e culturais que acometem a sociedade Por isso inclusive inserese com extrema relevância no contexto mundial da área inserida por se consubstanciar como um problema de saúde pública conforme posicionamento da Organização Mundial da Saúde OMS especialmente no que se refere à violência relacionada às mulheres Nesse espectro a violência temática também tratada no âmbito jurídico não têm efeitos restritos em tal campo mas é um desafio de abordagem complexa em virtude de sua ocorrência multidimensional e polifacética Tanto o é que pesquisas científicas e referências bibliográficas abordam de diversas formas a violência contra mulheres diferindo em conceitos extensões ocorrências e classificações nos mais variados âmbitos de atuação profissional Percebese assim que a violência de modo relacional que permeia a dinâmica de construção de subjetividades para os indivíduos envolvidos especialmente no que se refere da estruturação subjetiva das mulheres tal como um fator integrante dos símbolos compartilhados socialmente Atingese assim formas de relações que se espraiam micro e macropoliticamente estabelecendo condições de vulnerabilidade e hipossuficiência de diversas ordens o que a subjuga a esta violência caracterizada pelos modelos culturais de ser e existir A definição do problema da violência contra as mulheres portanto implica na responsabilidade do Estado e de pesquisas científicas que conceituem o fenômeno de forma teórica e numérica utilizando estatísticas que descrevam com precisão a natureza e a escala da violência as características dos mais afetados a distribuição geográfica dos episodios e as consequências da exposição a tais violências Além disso as investigações sobre fatores de ocorrência do problema implica na verificação de causas e correlatos os fatores que aumentam ou diminuem o risco de sua ocorrência fatores de risco e de proteção e os fatores que poderiam ser modificáveis através da intervenção Devese igualmente promover a perquirição sobre maneiras de prevenir o problema da violência por sua vez prescinde do manejo das informações colhidas interiormente e da elaboração monitoramento e avaliação da eficácia dos programas por meio de avaliações de resultados A disseminação de informações d finalmente também se faz necessária pela divulgação de dados sobre a eficácia dos programas e ampliar a escala de programas com eficácia comprovada1 Frente à complexidade da temática fazse urgente a abordagem científica de verificação da ocorrência de violência contra as mulheres nos mais diversos campos a partir de uma ótica multi inter e transdisciplinar tendo em vista que a perspectiva de proteção individual é insuficiente para tanto já que por seus nós fomentadores tratase como fenômeno sistêmico e estrutural que atinge de variadas maneiras diferentes grupos de mulheres Com tal objetivo portanto seguemse estudos que pretendem a multidisciplinariedade de tal tratamento fomentando a sensibilidade para contextos específicos e apontando para a imprescindibilidade de que tais questões sejam concomitantemente tratadas de forma conexa mas com observâncias às especificidades locais Grazielly Alessandra Baggenstoss 1 OPASOMS 2012 Organização Mundial da Saude Prevenção da violência sexual e da violência pelo parceiro íntimo contra a mulher ação e produção de evidência ISBN 9789275716359 SUMÁRIO FEMINISMO E PODER LEGISLATIVO FEDERAL UMA ANÁLISE DA ATUAÇÃO DOSAS PARLAMENTARES EM RELAÇÃO À PAUTA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER 17 Dábine Caroene Capitanio Marília de Nardin Budó POLÍTICAS DE COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER BRASILEIRA COMO ESTRATÉGIA PARA A PROMOÇÃO DE DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL INTERNACIONAL 34 Sthefanie Aguiar da Silva POLÍTICA PÚBLICA E VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES UMA ABORDAGEM EM GRUPO NO CENTRO DE REFERÊNCIA ESPECIALIZADO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL 54 Mayara Zimmermann GelsleichterFernanda Marcela Torrentes Gomes PARA ONDE EU VOU A INSERÇÃO DAS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR NO PROGRAMA HABITACIONAL EM NOVA IGUAÇU RIO DE JANEIRO 74 Roberta Logobuco de Araujo Pereira A VIOLÊNCIA QUE ROUBA O TEMPO E AS ESCOLHAS DAS MULHERES UMA ANÁLISE SOBRE O TRABALHO DOMÉSTICO NÃO REMUNERADO SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA POLÍTICOFEMINISTA DO CUIDADO 90 Beatriz de Almeida Coelho Grazielly Alessandra Baggenstoss ALGUÉM DISSE GÊNERO ABORDAGENS INSTITUCIONAIS SOBRE VIOLÊNCIA DE GÊNERO NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAMPA 107 Elizabeth Cristiane Mendonça Azevedo Luisa Chaves de la Rosa Mirenchu Maitena dos Santos Rivas Amanda Muniz Oliveira VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NO PARFOR A CONCEPÇÃO DOSAS DOCENTESFORMADORESAS DO CAMPUS DE BRAGANÇAPARÁ 125 Raul da Silveira Santos Francisco Pereira de Oliveira Genilson Fernandes Monteiro José Dias Santana A VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL CONTRA A MULHER NA PERSPECTIVA DA JURISPRUDÊNCIA PENAL 139 Bianca Louise Wagner Cláudio Macedo de Souza A MEDIAÇÃO APLICADA À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER 159 Beatriz Berg O ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES SOB O ENFOQUE DA JUSTIÇA RESTAURATIVA E DA PERSPECTIVA SISTÊMICA 178 Bruna Boldo Arruda João Antonio da Cruz dos Santos A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER E A CONSTELAÇÃO FAMILIAR SISTÊMICA UMA ANÁLISE SOBRE O PROJETO METENDO A COLHER DA COMARCA DE BRAÇO DO NORTE 198 Ariane Mattei Nunes Edna Wernke Niehues dos Reis Luiza Niehues Bonetti NAS ASAS DO ASSUM PRETO PRÁTICAS RESTAURATIVAS NO COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E ALCANCE DA CIDADANIA NO ESTADO DA PARAÍBA 216 Ana Beatriz Eufrauzino de Araújo Larissa Emília Guilherme Ribeiro VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER UMA ANÁLISE DA NORMA PENAL FRENTE AO BEM JURÍDICO TUTELADO E OS DESAFIOS DA IMPLEMENTAÇÃO DE MEDIDAS DE JUSTIÇA RESTAURATIVA EM SANTA CATARINA 231 Márcia Aline Pacheco de Medeiros Kelly Cristina Schäfer Batistella Christiane Heloisa Kalb Denise Maria Nunes METE A COLHER NEWSGAME COMO AGENTE DE CONSCIENTIZAÇÃO NO COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES 250 Mariane Pires Ventura Ana Paula Bourscheid Paulo José Mueller VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES O EDUCATIVO FORMATIVO DAS MATÉRIAS JORNALÍSTICAS DO WEBSITE G1 269 Íris de Carvalho VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER UM OLHAR DA MÍDIA E DAS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA 286 Ana Paula Machado Ivone Maria Mendes Silva VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES NO CAMPO A PARTIR DO MUNICÍPIO DE ANITÁPOLISSC UMA HISTÓRIA SILENCIADA 300 Cristiane Floriano Rieg Carolina Orquiza Cherfem AS LUTAS DO MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS DO BRASIL NO ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA MULHERES RURAIS 319 Daiane dos Santos Possamai Giovana Ilka Jacinto Salvaro VIOLÊNCIA PATRIMONIAL AS MULHERES RURAIS EXCLUÍDAS DA HERANÇA DA TERRA NO SUL DO BRASIL 339 Karolyna Marin Herrera Flavia Soares Ramos A VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL CONTRA A MULHER ASPECTOS DESTACADOS SOBRE O DEGRADANTE TRATAMENTO FEMININO NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO 357 Hellen Lopes Dutra Mazzola Luciana Bittencourt Gomes Silva AUTOVIOLÊNCIA FEMININA O PARADOXO DO SUICÍDIO NO CÁRCERE 369 Fernanda Moreira Ballaris Ismê Catureba Santos Antônio José Ledo Alves da Cunha SUJEITAS ENCARCERADAS MARGINALIZADAS E INVISIBILIZADAS ALGUMAS CONSTATAÇÕES SOBRE O SISTEMA PRISIONAL FEMININO DO PARANÁ 385 Pamela de Gracia Paiva PRESOS FEMININOS SOB A TUTELA DE GESTORES MASCULINOS REPRESENTATIVIDADE IMPORTA 405 Sabrina Nerón Balthazar VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NAS CIDADES PERCEPÇÃO DE SEGURANÇA NOS ESPAÇOS URBANOS 426 Bettieli Barboza da Silveira Adria de Lima Sousa Charlene Fernanda Thurow Poliana Ribeiro dos Santos GUARDA COMPARTILHADA UMA DAS FORMAS DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA FAMILIAR E À ALIENAÇÃO PARENTAL 437 Hildemar Meneguzzi De Carvalho PERFIL DAS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA INTERPESSOAL EM SANTA CATARINA BRASIL 449 Carolina Young Yanes Fernanda Cornelius Lange CARACTERIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES IDOSAS DE 2008 A 2014 EM SANTA CATARINA BRASIL 461 Lauriana Urquiza Nogueira Deise Warmlig Carolina Carvalho Bolsoni Sheila Rúbia Lindner PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER IDOSA UMA PESQUISA AÇÃO ESTRATÉGICA 476 Vanessa Martinhago Borges Fernandes Jeanine Dewes de Oliveira Tainá Malinski Anna Quialheiro Abreu da Silva Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 17 FEMINISMO E PODER LEGISLATIVO FEDERAL UMA ANÁLISE DA ATUAÇÃO DOSAS PARLAMENTARES EM RELAÇÃO À PAUTA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER Dábine Caroene Capitanio1 Marília de Nardin Budó2 RESUMO A organização da luta das mulheres e o surgimento dos movimentos feministas no Brasil colocaram em pauta a desigualdade de gênero e tornaram inevitável nos mais diversos espaços do poder político o enfrentamento dos problemas gerados pela estrutura patriarcal Dentre as pautas é possível identificar a da violência doméstica e familiar contra a mulher que levou à promulgação de leis como a Lei Maria da Penha 113402006 e a Lei do Feminicídio 131042015 Para compreender como essa pauta tem sido apropriada no discurso político este trabalho parte do seguinte questionamento de que maneira osas Deputadosas Federais brasileirosas recepcionam as demandas dos movimentos feministas em seus discursos inseridos na proposição de Projetos de Lei a respeito da violência doméstica A metodologia utilizada foi a Teorização Fundamentada nos Dados de viés predominantemente indutivo a partir das técnicas de pesquisa bibliográfica e documental Inicialmente o trabalho descreve a construção da luta contra a violência doméstica no Brasil a partir dos grupos feministas Após apresenta os resultados da análise dos projetos de lei propostos por Deputadosas Federais a respeito da pauta da violência doméstica contra a mulher fazendo interagirem o objeto das proposições com as justificativas apresentadas pelosas parlamentares Os resultados apontam que quanto ao tipo de política de prevenção proposta os parlamentares apresentam discurso predominantemente punitivista A apropriação da gramática feminista está longe de ser coerente com seus fundamentos Palavraschave Discurso político Movimentos feministas Violência doméstica INTRODUÇÃO A partir do final do século XIX em meio ao surgimento da luta organizada de diversos segmentos sociais marginalizados o Brasil observou a construção e o desenvolvimento da luta das mulheres e do movimento feminista em meio a um contexto mundial de combate à desigualdade de gênero Uma das principais lutas do feminismo desde os anos sessentasetenta foi a publicização e o combate da violência doméstica e familiar contra a mulher problema que mesmo tendo estado sempre presente nas relações conjugais foi invisibilizado durante muito 1Advogada Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Santa Maria no ano de 2019 Email dabineccgmailcom 2Professora Adjunta de Direito Penal e Direito Processual Penal no centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná UFPR com estágio sanduíche na Facoltà di Giurisprudenza da Università di Bologna na Itália com bolsa PDSECAPES com conclusão em 2013 Email mariliadbyahoocombr Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 18 tempo A agressão da mulher pelo homem sempre foi acobertada e por vezes legitimada razão pela qual não havia políticas de combate e conscientização sobre o tema Um caso de maior destaque foi o da farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes conforme Maria Berenice Dias 2007 p 13 vítima de violência doméstica que sofreu duas tentativas de homicídio por parte de seu exmarido O processo apos ter o primeiro julgamento anulado levou cerca de 15 anos para chegar ao fim razão pela qual organizações de direitos humanos e de defesa da mulher levaram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos CIDH A Comissão apos análise do ocorrido declarou o Brasil como país negligente no caso de Maria da Penha Foi nesse contexto em que foi promulgada a Lei Maria da Penha lei nº 1134306 considerada um marco na luta feminista brasileira pelo fim da violência doméstica e familiar contra a mulher Assim o presente trabalho objetiva identificar como as pautas do movimento feminista são recepcionadas na agenda e no discurso dosas parlamentares do Legislativo Federal notadamente em relação à violência doméstica e familiar contra a mulher Tendo por base os projetos de leis propostos bem como os discursos utilizados nas justificativas das proposições formuladas pelosas parlamentares o problema de pesquisa foi formulado da seguinte forma de que maneira osas Deputadosas Federais brasileirosas recepcionam as demandas dos movimentos feministas em seus discursos inseridos na proposição de Projetos de Lei a respeito da violência doméstica e familiar contra a mulher Para tanto foram analisados 28 projetos de lei compreendendo as alterações legais propostas bem como as justificativas a elas na totalidade dos projetos encontrados através do termo de busca violência doméstica no período de 01 de janeiro de 2017 a 31 de outubro de 2018 Foi utilizada a metodologia da Teoria Fundamentada nos Dados TFD a qual segundo Riccardo Cappi 2017 p 391 serve como importante ferramenta nas pesquisas empíricas no Direito sobretudo pela possibilidade de se realizar uma produção teorica a partir de dados e de observações de campo Assim a escolha da metodologia foi em razão de sua adequação para análise quantitativa e qualitativa do objeto de estudo formulando hipoteses e categorias que extraiam dos discursos parlamentares a inserção das pautas feminista nas agendas políticas Segundo o autor a TFD é caracterizada por uma análise predominantemente indutiva de caráter circular onde primeiramente observase um fenômeno para depois serem elaboradas algumas hipoteses ou afirmações com base nos discursos predominantemente apresentados pelo objeto de estudo CAPPI 2017 p 397 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 19 As técnicas de pesquisa utilizadas no presente trabalho foram a bibliográfica e a documental A bibliográfica utilizada na primeira parte da pesquisa buscou analisar o surgimento e o desenvolvimento da pauta da violência doméstica no movimento feminista além da forma que se procurou inserir este debate na sociedade Já a partir da documental realizada na segunda parte do trabalho foram estudados os projetos de lei propostos na Câmara dos Deputados desde o início do ano de 2017 a respeito da violência doméstica e familiar contra a mulher A busca foi feita no portal eletrônico da Câmara dos Deputados de onde foram selecionados os projetos de lei e suas justificativas que possibilitaram a construção de um panorama a respeito da produção legislativa em âmbito federal sobre violência doméstica e familiar contra a mulher 1 DESENVOLVIMENTO A violência doméstica de acordo com Heleieth Saffioti 2011 além de ter sua origem na violência de gênero posto que advinda da dominação masculina pode ocorrer tanto no ambiente familiar como também atingir pessoas que não pertencendo à família vivem parcial ou integralmente no domicílio do agressor como é o caso de agregadasos e empregadasos domésticasos SAFFIOTI 2011 p 6971 A partir dos anos setenta conforme o entendimento de Maria Amélia de Almeida Teles 1993 p 136 passouse a dar ênfase à violência doméstica encoberta há séculos no nosso país sob o manto da sagrada família que visa proteger a mulher e oferecer o seu bemestar Nessa época a violência doméstica era considerada como um tema restrito à vida conjugal do casal de foro privado sendo encarada como inaceitável que o Estado ou a vida publica interviesse de qualquer forma para coibila PINTO 2006 Vera Regina Pereira de Andrade 1996 denomina este fenômeno como publicizaçãopenalização do privado onde problemas até pouco definidos como privados como a violência sexual no lar doméstica e no trabalho se converteram mediante campanhas mobilizadas pelas mulheres em problemas públicos e alguns deles se converteram e estão se convertendo em problemas penais crimes mediante forte demanda neocriminalizadora ANDRADE 1996 p 87 Dois fatos de grande repercussão serviram de estopim para a movimentação feminista no combate à violência doméstica O primeiro ocorrido em São Paulo foi quando uma mulher da classe média alta decidiu denunciar o espancamento sofrido pelo marido um professor universitário demonstrando que a violência conjugal não estava atrelada a critérios econômicos também atingindo a população mais rica O segundo fato por sua vez foi o Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 20 assassinato da socialite Ângela Diniz pelo companheiro Doca Street em Cabo Frio litoral do Rio de Janeiro sendo ele absolvido na primeira sessão realizada pelo Tribunal do Juri As manifestações feministas nesse contexto permitiram a realização de um novo julgamento onde foi condenado pelo Conselho de Sentença TELES 1993 Por essas razões em meio a uma manifestação realizada nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo foi fundado em 10 de outubro de 1980 o SOS Mulher grupo que pretendia prestar serviços de amparo à mulher vítima de violência doméstica assim como desenvolver a conscientização a respeito do feminismo Este enfrentamento evidenciou além da grande frequência em que ocorriam casos de agressão física no âmbito doméstico a conivência da sociedade e das autoridades com estas ocorrências as quais eram consideradas pelos representantes do Estado como meras desavenças familiares SILVEIRA 2005 Salientase que apesar de bemintencionado o programa desde seu nascimento apresentou entraves em sua implementação principalmente de ordem prática posto que as vítimas apos passarem pelo atendimento acabavam retornando para a convivência com o agressor o que contrariava a intenção das mulheres atuantes no programa As vítimas quando buscavam o programa não tinham a pretensão de entrar para a militância mas apenas fazer cessarem as agressões que sofriam PINTO 2003 Conforme expõe Lenira Silveira 2005 os problemas estruturais e o desgaste causado pelo trabalho realizado sem qualquer suporte por parte do aparelho estatal fez com que as mulheres atuantes no programa aos poucos fossem se retirando dessa luta levando ao fim do SOS Mulher Nesse contexto contudo foram criadas as Delegacias de Polícia de Defesa da Mulher DPDM ou Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher DEAM A primeira delegacia especializada foi fundada no estado de São Paulo pelo então Secretário de Segurança Pública Michel Temer MDB no ano de 1985 em resposta às denúncias de machismo nas delegacias de polícia existentes até então Em 1992 as delegacias já haviam se espalhado para outros estados da federação atingindo o número de 141 postos policiais especializados no atendimento de ocorrências de violência contra a mulher PINTO 2003 Wânia Pasinato e Cecília MacDowell Santos 2008 p 12 apontam que A primeira delegacia da mulher atendeu de imediato um grande número de mulheres em situação de violência mostrando que este problema existia era grave e carecia de um atendimento policial especializado Logo após esta experiência foram criadas novas delegacias da mulher em São Paulo Em vários outros estados grupos feministas e de mulheres passaram a reivindicar a criação de delegacias da mulher como parte integrante e principal de uma política pública específica à questão da violência contra mulheres Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 21 Em que pese o objetivo das delegacias especializadas fosse justamente proporcionar um melhor tratamento a essas agressões já nos anos noventa os grupos feministas passaram a denunciar a falta de capacitação por parte dos policiais para atuar com vítimas de violência doméstica No início da implementação das Delegacias até houve a realização de programas de treinamento e capacitação de policiais no estado de São Paulo realizado pelo Conselho Estadual de Condição Feminina CECF o que contudo não teve continuidade SANTOS 2008 Uma questão bastante evidente no cotidiano das delegacias especializadas também gerada pela falta de capacitação das Delegadas e dosas policiaisas para acolhimento de vítimas é a dificuldade que as mulheres possuem em romper com a relação conjugal violenta O dia a dia das Delegacias sempre foi marcado por mulheres que procuram o atendimento logo apos as agressões mas escolhem não prosseguir com as investigações e processamento do cônjuge retornando para o convívio com o agressor SILVEIRA 2005 Salientase que mesmo antes da implementação das delegacias de atendimento à mulher o movimento feminista já pleiteava uma ação mais ampla por parte do Estado exigindo que fosse além da criminalização de condutas para abarcar também serviços de assistência social saude e outras formas de amparo SANTOS 2008 Em 1995 entrou em vigor a Lei nº 909995 a qual implementou os Juizados Especiais Criminais no Brasil trazendo um novo rito ao processo penal no que tange às contravenções penais e às infrações de menor potencial ofensivo com pena máxima não superior a dois anos BRASIL 1995 Wânia Pasinato e Cecília MacDowell Santos 2008 referem nesse sentido que o Juizado Especial Criminal em razão da pena máxima estipulada para os crimes que obedeceriam seu rito acabou sendo aplicado à maioria dos casos de violência doméstica denunciados nas Delegacias Especializadas Para o movimento feminista a aplicação da Lei nº 909995 aos casos de violência doméstica abrandou a punição dos agressores banalizando as agressões sofridas pelas mulheres A corrente que defendia a desaplicação do JECrim aos casos de violência doméstica pretendeu a responsabilização dos agressores sem que lhes fossem aplicados os institutos conciliatorios da lei 909995 principalmente em razão da situação de desigualdade que se encontravam as vítimas perante os agressores dificultando o diálogo equilibrado Essa vulnerabilidade ficava bastante aparente no momento da manifestação de vontade das vítimas em manterem a ação penal que acabam renunciando a seus direitos em razão da relação íntima de afeto que vivem FLAUZINA 2015 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 22 Nesse contexto em meio à revolta da sociedade com o descaso do Estado com a violência doméstica DIAS 2007 foi promulgada em 2006 a Lei Maria da Penha lei nº 113402006 que instituiu um novo sistema de proteção das mulheres vítimas desse tipo de violência Com previsão expressa de afastamento da aplicação do JECrim art 41 da Lei nº 1134006 a Lei Maria da Penha nada mais significa do que reação à maneira absolutamente inadequada com que a Justiça cuidava da violência doméstica DIAS 2007 p 8 A Lei 113402006 recebeu o nome da farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes vítima de violência doméstica que sofreu duas tentativas de homicídio por parte de seu ex marido O acusado apos ser condenado em 1991 à pena privativa de liberdade de 08 anos teve o julgamento anulado sendo novamente condenado à pena de 10 anos e 06 meses de reclusão DIAS 2007 Contudo o processo levou cerca de 15 anos para chegar ao fim Por esta razão organizações de direitos humanos e de defesa dos direitos da mulher levaram o caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos CIDH que declarou o Brasil como país negligente no caso de Maria da Penha Fernandes Além desta decisão os tratados internacionais a que o Brasil fora signatário como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher CEDAW em 1979 e a Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher em 1994 possibilitaram a criação de um movimento que concluiu pela promulgação da Lei 113402006 FLAUZINA 2015 Além dos mecanismos de ordem repressiva a Lei 113402006 também aborda a importância da prevenção como forma de coibir a ocorrência de violência contra a mulher em âmbito doméstico de modo amplo a Lei Maria da Penha preocupase também em apontar as questões referentes à assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar bem como a necessidade imprescindível da criação de políticas públicas que visem a coibir todas as formas de violência contra a mulher através do esforço conjunto da União Estados e Municípios para promover a integração do Poder Judiciário do Ministério Público e das Defensorias Públicas com os órgãos de segurança pública assistência social saúde educação entre outros COSTA AQUINO 2011 p 130 Foram ainda implementadas as Medidas Protetivas de Urgência para dar efetividade ao caráter preventivo da Lei Maria da Penha Carolina Eloáh Reis 2008 pontua que as medidas protetivas são consideradas as principais conquistas para as mulheres em situação de vulnerabilidade no âmbito doméstico posto que a situação de urgência instaurada pode ser resolvida de forma mais breve O afastamento do agressor do lar e a proibição de aproximação Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 23 por exemplo são as mais utilizadas e apresentam facilidade na execução face à possibilidade da decretação de prisão preventiva em caso de descumprimento Porém como nota Campos 2015 um dos problemas decorrentes do deslocamento dos processos de violência doméstica para os Juizados Especializados foi a não ampliação da estrutura desses Juizados mantendoos sobrecarregados A autora nota que ocorre até os dias atuais é como se não houvesse uma adequação do Poder Judiciário à realidade da violência doméstica fazendo com que a realidade social deva se adequar ao Judiciário Em 2012 foi realizada uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito conhecida como CPMI da Violência Doméstica cuja finalidade era investigar a situação da violência doméstica contra a mulher no Brasil bem como verificar a omissão por parte do Poder Publico BRASIL 2013 Através do relatorio publicado pela CPMI foi constatado mais de 92 mil mulheres foram assassinadas no Brasil nos ultimos 30 anos majoritariamente pelo marido companheiro ou pessoa que mantinha relação íntima e de afeto BRASIL 2013 O documento reiterou a importância da Lei Maria da Penha para o enfrentamento da violência de gênero e proteção das mulheres apontando que em quase todo o País constatamos que ela ainda não é plenamente aplicada no Brasil em algumas capitais e sobretudo no interior os operadores jurídicos continuam aplicando a lei conforme lhes convém fazendo uso de instrumentos ultrapassados e já proibidos pelo Supremo Tribunal Federal STF como os institutos despenalizadores da Lei nº 9099 de 26 de setembro de 1995 entre os quais se destaca a suspensão condicional do processo BRASIL 2013 p 9 A conclusão do relatorio apresentou numerosas medidas de combate à violência doméstica contra a mulher em relação a benefícios socioeconômicos à saude e assistência social educação e até mesmo quanto aos meios de prova aceitos em sede de comprovação das agressões sofridas No âmbito criminal a principal proposta foi a de implementação da qualificadora do feminicídio ao crime de homicídio para casos ocorridos no contexto da violência doméstica e pela motivação do desprezo pelo sexo feminino BRASIL 2013 a qual se concretizou em 2015 com a promulgação da Lei nº 131042015 Assim sendo é possível perceber que a violência doméstica ao longo dos anos foi inserida como uma das principais pautas do movimento feminista adquirindo tom de denuncia e pleiteando um combate efetivo por parte do Estado A Lei Maria da Penha foi a principal ferramenta implementada a respeito do tema abordando tanto questões mais punitivistas como também pela promoção de políticas publicas de proteção de prevenção da mulher Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 24 A respeito disso a demanda criminalizante do movimento feminista é centro de discussão entre as que militam pela causa e as estudiosas da criminologia feminista que criticam tanto o sexismo como a deslegitimação do sistema penal para enfrentar a violência além de medidas que fossem alternativas à privação de liberdade MARTINS GAUER 2019 Carmen Hein de Campos 2017 salienta contudo que a Lei Maria da Penha tem como aspectos vitais as Medidas Protetivas de Urgência MPU que propugnam por um tratamentoatendimento integral interseccional e interdisciplinar aos casos de violência doméstica o que segundo a autora romperia com a visão meramente punitivista CAMPOS 2015 p 520 Desde a implementação das primeiras Delegacias da Mulher DEAMs observase que a principal política publica de segurança para essas vítimas tinha por foco a esfera policial o que é demonstrado pelo crescimento expressivo do numero de DEAMs em cerca de 20 anos que não teve acompanhamento dos demais serviços de proteção e prevenção CAMPOS 2015 2 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NO DISCURSO PARLAMENTAR REPRODUÇÃO E DESCONEXÃO A análise das leis que foram produzidas pelosas Deputados Federais a respeito do tema da violência doméstica apos a consolidação legislativa precedente Leis 113402006 e 131042015 é uma ferramenta importante no estudo da continuidade ou não da atuação do Poder Legislativo em relação ao combate da violência contra a mulher possibilitando que se extraia do discurso político como o tema tem sido tratado dentro da Câmara dos Deputados e em que medida houve a absorção dessas pautas pelosas parlamentares Para tanto foram selecionados todos os projetos de lei identificados a partir da busca avançada do site da Câmara dos Deputados através da expressão violência doméstica no período de 1º de janeiro de 2017 a 31 de outubro de 2018 Como a intenção é analisar a incorporação da pauta pelos políticos eleitos limitouse a busca também quanto às propostas feitas pelos Deputados e Deputadas excluindose aquelas de iniciativa do Executivo Judiciário Defensoria Publica e Ministério Publico Os critérios de abrangência temporal de 1º de janeiro de 2017 a 31 de outubro de 2018 e o tipo de proposição pesquisada qual seja Projetos de Lei foram elencados em razão do volume do objeto de estudo como forma de limitar a análise às possibilidades de um artigo científico A partir desses critérios de busca foram encontrados 34 Projetos de Lei os quais foram catalogados com o numero do projeto autor partido político e breve resumo do escopo do projeto extraído a partir da justificativa do parlamentar Do numero total foram excluídos Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 25 06 Projetos de Lei nºs 108432018 70712017 73502017 75092017 101962018 e 98142018 posto que da análise de suas intenções não abordavam especificamente a violência doméstica contra a mulher restando assim 28 projetos pendentes Tendo por base a Teorização Fundamentada nos Dados analisandose as justificativas dosas parlamentares para todos os 28 Projetos de Lei selecionados a respeito da temática da violência doméstica podese induzir que a categoria mais saliente foi a Ocultação da vítima da violência doméstica e exposição do agressor descrita a seguir 3 OCULTAÇÃO DA VÍTIMA DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E PUNIÇÃO DO AGRESSOR COMO PROTEÇÃO Inicialmente é possível perceber que 12 dos 28 Projetos selecionados foram propostos por parlamentares mulheres o que representa 428 do total de PLs em análise Isso em universo onde apenas 99 dos Deputados Federais eleitos são mulheres ou seja 51 deputadas frente aos 513 cargos parlamentares BRASIL 2019 Disso se extrai que em que pese o reduzido numero de Deputadas Federais mulheres há expressivo numero de Projetos de Lei de autoria feminina a respeito de violência doméstica evidenciando significativa atuação em termos quantitativos por parte das mulheres parlamentares quanto ao tema Em outra via podese perceber em se tratando da discussão aqui exposta que a participação da mulher na política não necessariamente representa a incorporação do discurso feminista à agenda política das Deputadas quando da análise qualitativa do conteudo e das justificativas dos Projetos de Lei Mesmo com a expressividade de Projetos propostos por mulheres a maioria das justificativas apresentadas foram bastante rasas havendo pouca manifestação no sentido crítico do papel da mulher da opressão de gênero da cultura machista e patriarcal que permeia a sociedade brasileira Grande parte da análise realizada em verdade acabou se debruçando sobre as ausências Deparouse com a dificuldade inclusive de utilização do termo mulher para se referir à vítima de violência doméstica mesmo que o projeto de lei visasse este segmento como foi com o PL nº 74802017 da deputada Laura Carneiro do MDBRJ BRASIL 2017a A justificativa deste projeto que pretende aumentar a pena do crime de lesão corporal em caso de violência doméstica art 129 9º do Codigo Penal utiliza termos extremamente genéricos para se referir à vítima dessa espécie delitiva frisese que a violência doméstica prejudica o bemestar a integridade física psicológica e o pleno desenvolvimento de um membro da família Nesse contexto verificase que a hipótese de que o ambiente familiar pelas Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 26 ligações afetivas protegeria seus membros mais vulneráveis tem se mostrado bastante falha BRASIL 2017a np grifo nosso Nesse caso os termos de um membro e seus membros grifados acima aparentam omitir a verdadeira vítima do caso abarcado pelo parágrafo 9º do art 129 do Codigo Penal ou seja a mulher evidenciando uma certa fuga da terminologia e do real enfrentamento do problema A justificativa do PL nº 74802017 nega a identificação da vítima gerando um processo de invisiblização Relacionase essa exclusão com o que foi apresentado no capítulo anterior quanto à luta do movimento feminista pela publicização de questões consideradas privadas pertinentes somente ao casal Outra análise importante no que tange à pesquisa quantitativa foi o expressivo numero de Projetos focados no agressor em detrimento das propostas que visassem a implementação de políticas de proteção e reinserção das vítimas Ao total foram 15 PLs com foco no autor de crimes de violência doméstica em contraponto com 5 que tivessem por objetivo a vítima Essa análise tornase importante quando considerado o que foi exposto anteriormente a respeito da Lei Maria da Penha ter pretendido abordar tanto o sistema repressivo como o sistema protetivo pretendendo ampliar o amparo à vítima e à família que vive a violência doméstica para além de medidas criminalizantes e que visam exclusivamente a figura do agressor O foco na mulher vítima de violência doméstica é extremamente reduzido havendo poucas proposições visando sua inserção no mercado de trabalho sua saude física e mental independência financeira e proteção A ideia de que a punição do agressor é uma forma de coibir a violência doméstica tem sido repetida sistematicamente nos discursos que defendiam a punição do autor tanto de forma criminal como patrimonial sob a perspectiva de que assim seria coibida a violência doméstica bem como haveria uma maior proteção da vítima O mesmo PL 74802017 que invisibiliza a vítima se dirige ao aumento das penas a agressores BRASIL 2017a No corpo da justificativa a deputada Laura Carneiro MDBRJ expressamente defende a punição rigorosa por parte do Estado como medida eficaz de redução do numero de casos de violência doméstica conforme se analisa dos trechos abaixo assim apesar de já ter se verificado um incremento na punição desse tipo de violência é preciso apresentar um maior rigor na punição desse crime já que esse tipo de acontecimento se não for devidamente repreendido poderá levar a consequências gravíssimas tendo em vista que a violência só tende a crescer se não for obstada no início BRASIL 2017a np grifo nosso Também nesse sentido vem o PL nº 69962017 da Deputada Flávia Morais PDTGO que pretende afastar a aplicação da Lei do Juizado Especial Criminal nº 909995 das Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 27 contravenções penais praticadas em âmbito de violência doméstica e familiar contra a mulher BRASIL 2017b Atualmente conforme exposto os crimes praticados nesse contexto não sofrem intervenção do JECrim pelo que o projeto de lei pretende estender a limitação também para as contravenções penais tudo como forma segundo a autora de coibir a repetição de violência doméstica contra a mulher entretanto a redação original do art 41 da Lei nº 113402006 ao fazer essa exclusão referiuse tão somente a crimes olvidandose de mencionar as contravenções penais Assim caso a mulher seja vítima de por exemplo vias de fato contravenção penal consistente em agressão mais leve que a lesão corporal o agressor se beneficiará dos privilégios do Juizado Especial o que contraria aos objetivos da Lei Maria da Penha de reprimir qualquer agressão e coibir a sua repetição BRASIL 2017b np grifo nosso Outro projeto que segue o viés aqui apresentado é o de nº 68722017 proposto pelo Deputado Mosés Rodrigues MDBCE o qual pretende criminalizar a conduta de desobedecer às medidas protetivas de urgência principalmente como forma de viabilizar a prisão em flagrante do autor BRASIL 2017c conforme podese constatar as inovações legislativas que proponho por meio deste Projeto de Lei objetivam reforçar a proteção às mulheres vítimas de violência Amparado em tais argumentos é que peço o apoio dos nobres Pares para a aprovação deste Projeto de Lei que tanto contribuirá para a proteção dos direitos fundamentais das mulheres BRASIL 2017c np grifo nosso A respeito da discussão Marilia Montenegro de Mello 2015 p 102 refere que tanto o tipo penal de violência doméstica quanto a lei nº 113402006 surgiram através de reivindicações feministas para o combate da violência doméstica contra a mulher O objetivo penalizador assim como as justificativas dos projetos de lei apresentados evidenciam que os parlamentares se associaram muito mais à frente do movimento feminista que defende a criminalização como proteção da mulher em detrimento de medidas de caráter social e de prevenção Destacase o contraponto defendido pelas pesquisadoras aliadas à Criminologia Feminista que criticam justamente essa demanda punitivista de parte do movimento feminista e da sociedade o qual não raras vezes reflete na atividade legislativa Vera Andrade 1999 nesse diapasão refere que o discurso feminista da neocriminalização encontrase no mesmo contexto patriarcal e jurídico a que faz crítica o feminismo ou seja segmentos do movimento feminista buscam libertarse da opressão masculina traduzida em diferentes formas de violência recorrendo à proteção Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 28 de um sistema demonstradamente classista e sexista e crêem encontrar no Estado e no Direito estatal o grande pai capaz de reverter sua orfandade social e jurídica ANDRADE 1999 p 115 Ana Luiza Pinheiro Flauzina 2015 faz importante contextualização a respeito de como essa defesa de punição de condutas por parte do movimento feminista acaba silenciando quanto ao recorte de raça necessário à discussão A autora aponta que o cárcere e o sistema punitivo como um todo visam especialmente as pessoas negras tanto pelas vítimas serem em sua extensa maioria mulheres negras como pela repressão estatal sempre recair sobre homens negros segmento que compõe grande parte da massa carcerária do Brasil Ainda refere que a assunção de posturas punitivistas acionam particularmente as preocupações dos feminismos negros por estimularem a reprodução de logicas que vulnerabilizam pelas vias do racismo Nesse sentido o movimento feminista tem sido bastante crítico às alternativas preventivas apresentadas exigindo uma maior atuação por parte do Estado Contudo pela flagrante limitação que o sistema protetivo encontra fica claro que há uma pactuação das posturas militantes hegemônicas com os horizontes da punição por ser esta a principal resposta ofertada na logica de um sistema que se alimenta de corpos descartáveis FLAUZINA 2015 O discurso parlamentar pela punição do agressor também pode ser identificado nos projetos de lei que pretendem atingir de alguma forma o patrimônio dos homens agressores O PL nº 84322017 representa bem esta análise por pretender instituir a demissão do emprego por justa causa em caso de reincidência em crimes cometidos no âmbito de violência doméstica e familiar contra a mulher BRASIL 2017d De autoria de Gorete Pereira PRCE fica evidente o objetivo da proposta em reprimir a conduta estabelecendo um outro tipo de punição além do sistema penal a perda do emprego em caso de outro delito praticado no contexto da violência doméstica apos já ter uma condenação com trânsito em julgado pelo mesmo crime Importante destacar que o objetivo maior de nossa proposta não é penalizar o agressor com a perda do emprego tão raro nos dias atuais mas acima de tudo permitir a reflexão do condenado sobre as consequências econômicofinanceiras que a prática de seu ato de violência provocará para si e para a família Sem dúvida esse comportamento de ponderação reduzirá as estatísticas de reincidência dos crimes cometidos contra as mulheres contribuindo principalmente para evitar tragédias como o feminicídio que tanto lutamos para combater BRASIL 2017d np grifo nosso Ainda em mesmo sentido vai o PL nº 96912018 proposta conjunta dos Deputados Rafael Motta PSBRN e Mariana Carvalho PSDBRO que objetiva o ressarcimento por parte do agressor aos cofres publicos quanto aos gastos que o Sistema Único de Saude SUS Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 29 tiver no tratamento físico eou psicologico à vítima bem como dos gastos provenientes de dispositivos de segurança utilizados para monitoramento da mulher em caso de risco de vida BRASIL 2018b Nessa curiosa proposta também podese identificar a categoria aqui estudada posto que os autores expressamente apontam que a criação da obrigação de ressarcir ao Estado os gastos com os tratamentos e cuidados da vítima produziriam resultados na redução e coibição da violência doméstica Importante lembrar que a obrigação de reparar todos os danos ao ser expressa de modo indubitável na lei pode servir como mais um fator de desestímulo à prática de violência contra a mulher no âmbito doméstico e familiar Além das sanções na esfera penal os agressores saberão que os danos causados e que sejam economicamente apuráveis poderão ser cobrados diretamente deles BRASIL 2018b np grifo nosso Assim é flagrante a quem seriam destinados estes projetos de lei de caráter patrimonial pessoas frequentadoras do SUS pobres e negras principais alvos do sistema punitivista estatal conforme exposto no estudo de Ana Flauzina 2015 Verificase de forma evidente que a medida de punir o agressor através da criação de dívidas em pouco serve à redução da reincidência ou mesmo da prevenção de crimes de violência doméstica servindo apenas como medida de marginalização de grupos sociais já extremamente marginalizados A categoria ora analisada reflete como foi a incorporação da luta feminista no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher em se tratando da discussão iniciada pela revolta com os Juizados Criminais e o surgimento da Lei Maria da Penha que trouxe a dualidade repressão versus prevenção ao campo político Pelo menos no intervalo de tempo analisado a atuação e o discurso legislativo predomina no sentido da repressão ser medida eficaz na luta pelo fim da violência conjugal reproduzindo o discurso criminalizante e punitivista CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho buscou analisar os projetos de lei propostos pela Câmara dos Deputados bem como dos discursos dos parlamentares quando da justificativa para a proposição destes projetos a respeito da pauta da violência doméstica e familiar contra a mulher a partir da luta do movimento feminista no Brasil Foi possível extrair a partir das análises realizadas que tanto em termos quantitativos como qualitativos há pouca reprodução por parte dosas Deputadosas de algumas pautas levantadas pelo feminismo Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 30 Através da organização em grupos objetivando o combate à agressão em âmbito conjugal o aumento das denúncias de violência doméstica ensejou a criação das Delegacias Especializadas dando especial atenção às agressões perpetradas contra a mulher Com a ampliação dessa luta foi possível a promulgação da Lei Maria da Penha que representou um marco para o movimento feminista principalmente considerando as revoltas geradas com a implementação do Juizado Especial Criminal e as medidas despenalizantes que acabaram aos olhos das feministas legitimando a conduta do agressor A partir da pesquisa realizada quanto aos projetos de lei a respeito da violência doméstica nos últimos anos constatouse nas justificativas dos parlamentares o discurso da punição do autor como medida de combate ao problema e prevenção da vítima Nesse sentido a partir da categoria extraída podese perceber inicialmente uma absorção do viés punitivista pelosas Deputadosas que evidentemente consideram a repressão tanto criminal como patrimonial como ferramenta para a proteção da mulher Este resultado está em consonância com toda a movimentação realizada pelo movimento feminista pela promulgação da Lei Maria da Penha e consequente afastamento da aplicação do JECrim bem como faz contraponto ao debate proposto pela Criminologia Feminista que vê na punição uma ferramenta de marginalização de setores sociais considerando os recortes de raça e classe Ainda foi possível perceber que em que pese a expressiva atuação quantitativa das Deputadas Federais mulheres a respeito do tema qualitativamente não se pode dizer que há grande reflexão crítica a respeito da condição da mulher e da cultura machista e patriarcal por parte das parlamentares Os discursos apresentados foram extremamente rasos por vezes sequer mencionando que a vítima da violência doméstica é a mulher sendo flagrante a fuga à terminologia O trabalho demonstrou de tudo o que foi exposto que a atuação do Legislativo Federal em se tratando das lutas do movimento feminista no Brasil ainda é deficiente sendo pouca a absorção das pautas pelosas Deputadosas pelo menos a partir da análise dos projetos de lei a respeito da violência doméstica Quando há a atuação apresentase de forma pouco crítica reproduzindo discursos pontuais por exemplo quanto à criminalização de condutas do agressor sem profunda reflexão a respeito da emancipação da mulher da desconstrução da cultura machista e do combate à desigualdade de gênero REFERÊNCIAS Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 31 ANDRADE Vera Regina Pereira de Violência sexual e sistema penal proteção ou duplicação da vitimização femininaSequência Estudos Jurídicos e Políticos Florianopolis v 17 n 33 p87114 abr 1996 Disponível em httpsperiodicosufscbrindexphpsequenciaarticleview1574114254 Acesso em 26 nov 2018 BRASIL CÂMARA DOS DEPUTADOS Ed Bancada feminina cresce de 45 para 51 deputadas Disponível em httpswwwcamaralegbrnoticias442448bancadafeminina crescede45para51deputadas Acesso em 11 set 2019 BRASIL Comissão Parlamentar Mista de Inquérito da Violência contra a Mulher Relatorio final Diário do Senado Federal ano 68 1049 p Brasília 2013 Disponível em 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2006 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato200420062006leil11340htm Acesso em 14 nov 2018 BRASIL Lei nº 9099 de 26 de setembro de 1995 Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências Diário Oficial da Republica Federativa do Brasil Brasília 26 set 1995 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03LEISL9099htm Acesso em 14 nov 2018 BRASIL Projeto de Lei nº 7480 de 25 de abril de 2017a Altera o 9º do art 129 do DecretoLei nº 2848 de 7 de dezembro de 1940 Codigo Penal a fim de aumentar a pena do crime de lesão corporal em caso de violência doméstica Brasília Disponível em httpwwwcamaragovbrproposicoesWebpropmostrarintegracodteor1548446filename PL74802017 Acesso em 27 nov 2018 BRASIL Projeto de Lei nº 6996 de 22 de fevereiro de 2017b Altera o art 41 da Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 para que às contravenções penais praticadas no âmbito da violência doméstica contra a mulher não seja aplicada a Lei nº 9099 de 26 de setembro de 1995 Brasília Disponível 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relações de gênero são descritas como construções sociais historicamente estabelecidas por grupos de interesse que permitem que exista um cenário de dominação e dominado posicionando as mulheres em papeis determinados como inferiores perante a sociedade Estas relações nocivas de dominação patriarcal tornaramse um debate recorrente no âmbito das organizações internacionais principalmente no âmbito da Organização das Nações Unidas ONU que estabeleceu através dos 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável ODS a necessidade de que a igualdade de gênero fosse medida internacional para a promoção de desenvolvimento igualitário entre os países e diminuição de índices de violência e desigualdade Este trabalho destaca a centralidade do ODS 5 igualdade de gênero e empoderamento feminino para cumprir a Agenda 2030 prevista Como Estado signatário desta Agenda cabe ao Brasil o cumprimento de seus objetivos e metas correspondentes para se estabelecer como potência na promoção de desenvolvimento sustentável internacional Utilizando o ODS 5 como medida de promoção de sustentabilidade no país este trabalho discute os resultados e desafios que o Brasil apresenta no cumprimento de igualdade de gênero em território nacional principalmente ao se tratar das metas de redução de violência doméstica eou sexual contra a mulher Nesse sentido tornase necessária ao país uma melhor adaptação de suas políticas voltadas ao combate da violência contra a mulher e o seu reconhecimento como ator pleno de grande importância para o desenvolvimento nacional para que seja possível a concretização do cumprimento da acordada Agenda 2030 Palavraschave Mulher Objetivos do desenvolvimento sustentável Brasil Violência Gênero INTRODUÇÃO O conceito de gênero surge a partir de uma construção social que vai além do sexo e características físicas para aspectos psicológicos e relações sociais dando espaço para relações de dominação e exclusão com base nesta formulação GUEDES 1995 Para Bandeira e Oliveira 1990 p 8 as divisões de gênero são processos de construçãoreconstrução das práticas das relações sociais que homens e mulheres desenvolvemvivenciam no social Nesse sentido gênero são construções de desigualdade e caracterização dos indivíduos através de uma hierarquia estabelecida a partir de contextos históricos e sociais das relações de poder Sendo 1 Mestranda em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade do Sul de Santa Catarina Unisul em 2018 Email sthefanieaguiardsgmailcom Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 35 assim gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder SCOTT 1989 p 21 Para Simone de Beauvoir 1980 a condição de mulheres como papel na sociedade não é decisão autônoma das mesmas e sim um reflexo da imposição masculina do que deve ser considerado mulher e as atividades femininas que as cercam sendo a sua função um objeto de manipulação de outra existência a masculina que é soberana e essencial Anne Murray completa a ideia de construções historicas e sociais desiguais ao citar que embora não haja nada intrinsecamente desigual ou mesmo negativo na atribuição de categorias talvez uma tendência humana natural são os juízos de valor destrutivos que se seguem que precisam ser eliminados MURRAY 2008 p 11 tradução nossa Estas construções baseadas em características de gênero são responsáveis por expor as mulheres a cenários de violência que partem desde contextos estruturais presentes no Estado até ao contexto pessoal e familiar Considerando que violência se refere às noções de constrangimento e de uso da superioridade física sobre o outro CASIQUE FUREGATO 2006 p 3 a violência contra a mulher é resultado de padrões culturais que as inserem em uma posição de inferioridade e justifica a ação nociva de homens sobre as mesmas A violência de gênero é aquela exercida pelos homens contra as mulheres em que o gênero do agressor e o da vítima estão intimamente unidos à explicação desta violência Dessa forma afeta as mulheres pelo simples fato de serem deste sexo ou seja é a violência perpetrada pelos homens mantendo o controle e o domínio sobre as mulheres CASIQUE FUREGATO 2006 p 3 Considerando que as mulheres vivem em condições de desigualdade social em relação aos homens CASIQUE FUREGATO 2006 p 3 que geram cenários de violência contra as mulheres e o aumento das denúncias contra esses padrões de desigualdade em níveis internacionais a eliminação de hierarquias de gênero passam a ser consideradas como uma ferramenta para garantir a segurança global TICKNER 1992 Buscando melhorar a relação entre as políticas públicas promovidas pelos Estados as mulheres e o cenário de segurança internacional destacamse os objetivos promovidos pela Organização das Nações Unidas ONU lançados como medidas para políticas nacionais a serem elevadas a padrões internacionais gerando um cenário de maior igualdade Entre 2000 e 2015 os Objetivos do Milênio ODM foram de grande importância para a elaboração de políticas públicas principalmente em países em desenvolvimento Os Estados destes afirmaram que para além das responsabilidades que todos temos perante as nossas Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 36 sociedades temos a responsabilidade coletiva de respeitar e defender os princípios da dignidade humana da igualdade e da equidade a nível mundial ONU 2000 p 4 o que é expresso em alguns dos objetivos buscando reduzir as desigualdades em questões econômicas e de gênero É nesse sentido que a declaração de origem dos ODM expõe a necessidade de aumentar em todos os países a capacidade de aplicar os princípios e as práticas democráticas e o respeito pelos direitos humanos incluindo os direitos das minorias ONU 2000 p 12 onde também é exposta a necessidade de combater todas as formas de violência contra a mulher e garantir o direito de participação de todos os indivíduos em processos políticos Os ODM pretendiam 1 acabar com a fome e a miséria 2 Oferecer educação básica de qualidade para todos 3 promover a igualdade entre os sexos e a autonomia das mulheres 4 Reduzir a mortalidade infantil 5 melhorar a saúde das gestantes 6 Combater a Aids a malária e outras doenças 7 Garantir qualidade de vida e respeito ao meio ambiente e 8 Estabelecer parcerias para o desenvolvimento ONU 2015a mostrando a preocupação com as relações de gênero disposta entre todos os objetivos mas com atenção especial nos objetivos 3 e 5 É notável que os Estados passaram a adotar maiores e melhores medidas nacionais para a proteção à mulher após a adesão dessa discussão na agenda internacional KECK SIKKINK 2014 Os 15 anos de dedicação e debate sobre os ODM abriram espaço para maior inserção desses temas nas políticas nacionais e internacionais que além de se refletirem nas ações dos Estados e organizações internacionais se refletiram em outros debates para planejamento do sistema internacional gerando entre outros a Agenda 2030 para os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável ODS Dos 17 ODS planejados para cumprimento entre 2015 e 2030 este trabalho destaca o objetivo 5 alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas como medida central para o desenvolvimento sustentável internacional visto que introduz as questões de gênero como essenciais para a garantia de um cenário global baseado nos direitos humanos e inserindoas em questões ambientais econômicas sociais de educação e demais objetivos necessários para alcance da sustentabilidade internacional Como Estado signatário destes objetivos o Brasil se compromete em até 2030 alcançar as metas relacionadas aos mesmos Isto significa que o país precisa adaptarse a novos padrões de medidas de sustentabilidade que contam com perspectivas sociais econômicas ambientais e políticas Nesse contexto também precisa adequar o cenário nacional de promoção de igualdade de gênero com vistas a diminuir padrões nocivos de dominação sobre as mulheres que resultam em altos números de violência contra a mulher em seu território Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 37 Considerando que enquanto as mulheres são vítimas de violência estas estão em cenário de vulnerabilidade que as impede de cumprir papel pleno na conquista dos objetivos este trabalho utiliza os indicadores do quinto ODS como medidas do cenário nacional de promoção de igualdade de gênero com foco especial na meta 52 eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos e seus respectivos indicadores 521 proporção de mulheres e meninas com idade igual ou superior a 15 anos submetidas à violência física sexual ou psicológica por um parceiro íntimo atual ou antigo nos últimos 12 meses por forma de violência e por idade e 522 proporção de mulheres e meninas com 15 anos ou mais de idade submetidas a violência sexual por outras pessoas que não um parceiro íntimo nos últimos 12 meses por idade e local de ocorrência Com o objetivo de medir o cenário de violência contra a mulher no Brasil como ferramenta para a participação do país na promoção de desenvolvimento sustentável internacional este trabalho utiliza de revisão bibliográfica e análise documental sendo realizados a partir de materiais já publicados e disponibilizados como documentos resultantes das conferências das Nações Unidas documentos disponibilizados pelo governo brasileiro organismos públicos e respectivas legislações bem como livros e artigos científicos voltados para o tema central 1 OBJETIVOS DO DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL Surgindo a partir da maduração dos debates gerados pelos Objetivos do Milênio os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável foram responsáveis pela inserção dos debates de igualdade de gênero em outras esferas da agenda internacional tirando as mulheres do debate exclusivo do seu grupo e inserindo em questões ambientais econômicas sociais de educação e demais objetivos necessários para alcance da segurança paz e sustentabilidade internacional Destacamse estes objetivos pelo reconhecido impacto e aceitação internacional com o empenho de diversos países e regiões em atingilos para um bem comum garantindo a sustentabilidade em curto e longo prazo nas mais variadas áreas de desenvolvimento Estes objetivos pretendem que possam garantir que todos os seres humanos possam realizar o seu potencial em matéria de dignidade e igualdade ONU 2015b p 1 tradução nossa e estão listados no Quadro 1 formando a Agenda 2030 Quadro 1 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável Objetivos do Desenvolvimento Sustentável 1 Acabar com a pobreza em todas as suas formas em todos os lugares Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 38 2 Acabar com a fome alcançar a segurança alimentar e melhoria da nutrição e promover a agricultura sustentável 3 Assegurar uma vida saudável e promover o bemestar para todos em todas as idades 4 Assegurar a educação inclusiva e equitativa e de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos 5 Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas 6 Assegurar a disponibilidade e gestão sustentável da água e saneamento para todos 7 Assegurar o acesso confiável sustentável moderno e a preço acessível à energia para todos 8 Promover o crescimento econômico sustentado inclusivo e sustentável emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todos 9 Construir infraestruturas resilientes promover a industrialização inclusiva e sustentável e fomentar a inovação 10 Reduzir a desigualdade dentro dos países e entre eles 11 Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos seguros resilientes e sustentáveis 12 Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis 13 Tomar medidas urgentes para combater a mudança do clima e seus impactos 14 Conservação e uso sustentável dos oceanos dos mares e dos recursos marinhos para o desenvolvimento sustentável 15 Proteger recuperar e promover o uso sustentável dos ecossistemas terrestres gerir de forma sustentável as florestas combater a desertificação deter e reverter a degradação da terra e deter a perda de biodiversidade 16 Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável proporcionar o acesso à justiça para todos e construir instituições eficazes responsáveis e inclusivas em todos os níveis 17 Fortalecer os meios de implementação e revitalizar a parceria global para o desenvolvimento sustentável Fonte Elaborado pela autora baseada em ONU 2015b No sentido de garantia de um futuro sustentável os objetivos defendem que pessoas em vulnerabilidades precisam ser empoderadas ONU 2015b p 7 tradução nossa como uma estratégia de promoção de igualdade nos diferentes cenários nacionais e no sistema internacional como um todo vista a necessidade da mesma para os impactos positivos dos demais objetivos poder alcançar igualmente todos os povos É também afirmado pelos países signatários que A realização do pleno potencial humano e do desenvolvimento sustentável não é possível se metade da humanidade continuar a ter seus direitos humanos e oportunidades negados Trabalharemos por um aumento significativo nos investimentos para fechar a lacuna de gênero e fortalecer o apoio às instituições em relação à igualdade de gênero e ao empoderamento das mulheres nos níveis global regional e nacional ONU 2015b p 6 tradução nossa Com estas considerações foram planejadas metas específicas para a garantia do quinto objetivo e indicadores respectivos a estas para a medida das conquistas nacionais desta agenda conforme listados no Quadro 2 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 39 Quadro 2 Objetivo do Desenvolvimento Sustentável 5 ODS 5 ALCANÇAR A IGUALDADE DE GÊNERO E EMPODERAR TODAS AS MULHERES E MENINAS 51 Acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda parte 511 Existência de estruturas legais para promover fazer cumprir e monitorar a igualdade e a não discriminação com base no sexo 52 Eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos 521 Proporção de mulheres e meninas com idade igual ou superior a 15 anos submetidas à violência física sexual ou psicológica por um parceiro íntimo atual ou antigo nos últimos 12 meses por forma de violência e por idade 522 Proporção de mulheres e meninas com 15 anos ou mais de idade submetidas a violência sexual por outras pessoas que não um parceiro íntimo nos últimos 12 meses por idade e local de ocorrência 53 Eliminar todas as práticas nocivas como os casamentos prematuros forçados e de crianças e mutilações genitais femininas 531 Proporção de mulheres entre 20 e 24 anos que eram casadas ou em união antes dos 15 anos e antes dos 18 anos 532 Proporção de meninas e mulheres entre os 15 e os 49 anos que sofreram mutilação genital feminina por idade 54 Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado por meio da disponibilização de serviços públicos infraestrutura e políticas de proteção social bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família conforme os contextos nacionais 541 Proporção do tempo gasto com trabalho doméstico e cuidado não remunerado por sexo idade e localização 55 Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e a igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política econômica e pública 551 Proporção de assentos ocupados por mulheres nos parlamentos nacionais e governos locais 552 Proporção de mulheres em cargos gerenciais 56 Assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos como acordado em conformidade com o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento e com a Plataforma de Ação de Pequim e os documentos resultantes de suas conferências de revisão 561 Proporção de mulheres entre os 15 e os 49 anos que tomam as suas próprias decisões informadas sobre relações sexuais uso de contraceptivos e cuidados de saúde reprodutiva 562 Número de países com leis e regulamentos que garantem às mulheres entre 15 e 49 anos acesso a cuidados de saúde sexual e reprodutiva informação e educação 5a Realizar reformas para dar às mulheres direitos iguais aos recursos econômicos bem como o acesso a propriedade e controle sobre a terra e outras formas de propriedade serviços financeiros herança e os recursos naturais de acordo com as leis nacionais 5A1 a Proporção da população agrícola total com posse ou garantia de direitos sobre as terras agrícolas por sexo e b participação de mulheres entre proprietários ou detentores de direitos de terras agrícolas por tipo de posse 5A2 Proporção de países em que a estrutura legal incluindo o direito Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 40 consuetudinário garante direitos iguais da mulher à propriedade eou controle da terra 5b Aumentar o uso de tecnologias de base em particular as tecnologias de informação e comunicação para promover o empoderamento das mulheres 5B1 Proporção de indivíduos que possuem um telefone móvel por sexo 5c Adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas em todos os níveis 5C1 Proporção de países com sistemas para rastrear e fazer alocações públicas para a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres Fonte Elaborado pela autora baseada em ONU 2015b e Sustainable Development Knowledge Platform 2018 Como parte de 17 objetivos integrados o quinto objetivo se relaciona com todos os demais através de suas metas e indicadores para garantir que as mulheres tenham o mesmo acesso que os homens aos impactos positivos do desenvolvimento sustentável internacional Tornase essencial para o cumprimento de um futuro sustentável que metade da população global não esteja sob um padrão de violência que as oprime e impossibilita de participação e dedicação completa aos demais objetivos de âmbitos sociais ambientais políticos e econômicos Nesse sentido Eva Blay já citava que Para enfrentar esta cultura machista e patriarcal são necessárias políticas públicas transversais que atuem modificando a discriminação e a incompreensão de que os direitos das mulheres são direitos humanos Modificar a cultura da subordinação de gênero requer uma ação conjugada BLAY 2003 p 96 Considerando que a violência de gênero concentrase em agressões individuais que transcendem o nível social refletindo sem dúvida a dominação de um grupo e a subordinação do outro CASIQUE FUREGATO 2006 p 4 as consequências da violência contra a mulher ultrapassam o nível individual da vítima afetando também as relações interpessoais a comunidade regional e mesmo nacional assim impactando o cenário internacional e exigindo a abordagem deste tema na formulação de políticas públicas em todos os âmbitos do desenvolvimento sustentável Como Estadomembro da ONU e parte importante do cumprimento dos ODM nos anos anteriores o Brasil assinou a carta de formulação dos ODS em sua consolidação no início de 2015 se comprometendo a cumprir com seus 17 objetivos metas e indicadores correspondentes até 2030 Assim se dispôs também a reduzir os padrões de desigualdade no país empoderando as mulheres e meninas através da melhor distribuição de riscos e recursos ambientais econômicos e tecnológicos aumento na representação política criação e gerenciamento de parâmetros legais que as protejam de violência e fortalecimento de um padrão cultural que evite Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 41 que estes casos cheguem a acontecer através da reformulação do cenário de dominação patriarcal2 existente no país 2 CENÁRIO BRASILEIRO DE CUMPRIMENTO DO QUINTO ODS A declaração dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável afirma que Esta é uma Agenda de alcance e significância sem precedentes Aceita por todos os países e aplicável a todos leva em conta as diferentes realidades nacionais as capacidades e os níveis de desenvolvimento respeitando as políticas e prioridades de cada país Tratase de objetivos e metas universais que se aplicam ao mundo todo tanto aos países desenvolvidos quanto aos em desenvolvimento ONU 2015b p 3 tradução nossa Percebese então que todos os países envolvidos na assinatura destes objetivos podem e se comprometem a melhorar os cenários de igualdade nacionais Nesse sentido o cumprimento do quinto objetivo igualdade de gênero é essencial para que os países cumpram a Agenda 2030 de forma igualitária o que não é diferente no caso brasileiro Assim este trabalho mede o cenário de cumprimento dos indicadores do quinto objetivo com foco na meta 52 e respectivos indicadores no cenário brasileiro no ano de publicação do mesmo para avaliar a perspectiva de alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável no país Buscando entender a participação brasileira em objetivos internacionais ressaltamse os resultados obtidos pelo país nos Objetivos do Milênio precursores da Agenda 2030 Em questões de violência baseada em gênero o ODM 3 objetivou a redução destes casos e da criação de parâmetros legais para a proteção da mulher No Brasil a medida utilizada para cumprir com tal meta considerando para além dos ODM demandas e necessidades nacionais de mudança foi principalmente a criação de mais instituições de atenção às mulheres em situação de violência aumentando da oferta de 331 serviços em 2003 para 988 em 2013 além da criação da Central de Atendimento à Mulher em 2006 que permitia que denúncias de violência contra a mulher fossem feitas através de serviço de telefone Estes canais demonstraram a sua importância no aumento de denúncia desses casos indo de 46 mil ligações em 2006 para 732 mil em 2012 IPEA 2014 Para cumprir com as metas dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável até 2030 cabe ao Brasil atentarse aos seus respectivos indicadores Tratandose de violência doméstica e sexual contra a mulher os indicadores com relação mais direta a este tema são os relacionados à meta 52 sendo 521 Proporção de mulheres e meninas com idade igual ou superior a 15 2 Patriarcado aqui é considerado como um sistema de relações sociais onde a dominação masculina se estende como regra em diversos campos da convivência entre os gêneros Ver Walby 1989 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 42 anos submetidas à violência física sexual ou psicológica por um parceiro íntimo atual ou antigo nos últimos 12 meses por forma de violência e por idade e 522 Proporção de mulheres e meninas com 15 anos ou mais de idade submetidas a violência sexual por outras pessoas que não um parceiro íntimo nos ultimos 12 meses por idade e local de ocorrência Quanto à violência física e psicológica os números têm sido assustadores e crescentes nos últimos anos desde a assinatura dos ODS principalmente se tratando de casos de violência doméstica De acordo com o relatório gerado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2017 foram registrados o total de 606 casos de violência doméstica por dia no país considerando que a estimativa de registro de casos foi de menos de 10 do total de ocorrências este número passa a ser ainda mais preocupante Os números ainda demonstraram um aumento em comparação com os resultados de 2016 sendo 84 maiores em 2017 FBSP 2018 mostrando que o comprometimento em cumprir as metas internacionalmente acordadas não tem mostrado muito efeito desde os anos de aplicação da mesma em cenário nacional Em 2018 os resultados seguiram alarmantes Somente no primeiro semestre do ano referido milhares de casos de violência contra a mulher haviam sido reportados dos quais a maioria foram físicas 33835 casos e psicológicas 18615 casos BRASIL 2018a no total do ano foram registrados cerca de 68 mil casos de violência doméstica no país BRASIL 2018b O Mapa da Violência Contra a Mulher realizado pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara de Deputados brasileira revela que estes casos se dão em sua maioria 837 em mulheres jovens adultas entre 18 e 59 anos de idade e são causados por seus companheiros íntimos sendo namorados esposos ou mesmo ex relacionamentos 58 ou familiares 42 no ambiente doméstico mostrando uma tendência nociva de perpetuação cultural do patriarcado e dominação masculina nas relações afetivas BRASIL 2018b Estes altos números de violência resultam em casos de feminicídio3 que também mostram quantidades preocupantes e crescentes nos anos seguintes à assinatura dos ODS Entre 2016 e 2017 estes casos tiveram um aumento de 61 totalizando 1133 vítimas FBSP 2018 enquanto em 2018 foram registrados 1173 mais do que o número registrado no ano anterior LIMA BRUNO 2019 Em 2019 estes números seguem crescentes somente até março do ano citado já haviam sido registrados mais de 200 casos de feminicídio CALCAGNO 2019 Somente no estado brasileiro de Santa Catarina os resultados do primeiro semestre do referido ano se mostraram 409 maior do que o ano anterior SIMON 2019 Estes casos de 3 No Brasil o conceito de feminicídio foi registrado legalmente em 2015 através da Lei Nº 13104 de 9 de março de 2015 que o define como homicídio contra a mulher pela condição do sexo feminino quando se envolve de violência doméstica e familiar ou menosprezo à condição de mulher BRASIL 2015 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 43 feminicídio em 2019 são reflexos dos casos de violência física e psicológica em situação doméstica que não têm diminuído durante o ano utilizando as medidas da cidade de Manaus por exemplo foram registrados mais de 13 mil casos somente no primeiro semestre do ano RYLO 2019 em outra cidade brasileira São Paulo somente nos primeiros três meses do ano foram registrados cerca de 7900 casos ACAYABA ARCOVERDE 2019 Os números de feminicídio possuem um cenário diferente do que a violência doméstica sem resultado fatal nestes casos apesar de persistir a mesma média de idade da mulher quase o total dos casos 952 é causado por parceiros ou exparceiros da vítima com um percentual menor de participação dos familiares da vítima 48 BRASIL 2018b Quanto à violência sexual não causada por parceiros íntimos medida pelo indicador 522 o Brasil também apresenta números alarmantes Em 2017 foram registrados 164 casos de estupro por dia FBSP 2018 maior do que o ano precedente quando foi registrada a média de 135 novos estupros diários IPEA 2018 Em 2018 o total registrado entre janeiro e novembro foi de 32916 casos sendo 43 dos casos considerados estupro de vulnerável meninas menores de 14 anos 18 de vítimas entre jovens de 15 e 18 anos 35 adultas entre 18 e 59 anos e 4 de idosas a partir dos 60 anos BRASIL 2018b Apesar do indicador do quinto ODS solicitar a medida para mulheres a partir dos 15 anos é essencial ressaltar que no Brasil os casos se dão em sua maioria em meninas menores de 14 anos no ambiente doméstico causado por familiares ou outros conhecidos próximos 864 cenário que se altera se considerar meninas maiores de 18 anos quando os casos passam a acontecer majoritariamente fora do ambiente doméstico se estendendo para locais de trabalho e públicos sendo causados por desconhecidos 52 IPEA 2018 BRASIL 2018b Com os dados medidos pelos indicadores 521 e 522 percebemse padrões de violência que demonstram a clareza do cenário brasileiro de violência As violências físicas e psicológicas são causadas em mulheres adultas no ambiente doméstico e os agressores se dividem entre parceiros afetivos e familiares mas quando chegam à fatalidade são causados em sua maioria por parceiros ou ex parceiros afetivos Quanto à violência sexual a maioria é causada em meninas crianças e adolescentes no ambiente doméstico e por familiares ou conhecidos dos mesmos o que só se altera quando a mulher chega à idade adulta e passa a sofrer os abusos também de conhecidos em áreas de trabalho ou mesmo desconhecidos Estes padrões demonstram uma cultura brasileira preocupante de dominação masculina no ambiente doméstico amoroso e familiar como uma extensão da cultura patriarcal Dados alarmantes como estes exigem políticas públicas que permitam garantir um cenário de melhor segurança para as mulheres brasileiras o que pode ser medido também pelo Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 44 indicador 511 do quinto ODS que prevê a medida de existência de estruturas legais para promover fazer cumprir e monitorar a igualdade e a não discriminação com base no sexo No caso brasileiro a não discriminação com base no sexo está expressa desde os objetivos fundamentais da Constituição Federal que cita que o país pretende I construir uma sociedade livre justa e solidária II garantir o desenvolvimento nacional III erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais IV promover o bem de todos sem preconceitos de origem raça sexo cor idade e quaisquer outras formas de discriminação BRASIL 1988 online A partir dos princípios da Constituição se baseiam medidas e leis do governo brasileiro para garantir a proteção contra a violência contra a mulher e garantia de igualdade no âmbito nacional Sobre os casos de violência destacase o protagonismo no Brasil da Lei 11340 de 7 de agosto de 2006 conhecida como Lei Maria da Penha lei de importância internacional vista a ação pressão e luta de mulheres brasileiras e organismos internacionais para sua consideração e estabelecimento4 As disposições preliminares da lei dão um panorama para o entendimento da mesma ao preverem que Art 1o Esta Lei cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos do 8o do art 226 da Constituição Federal da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Violência contra a Mulher da Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher e de outros tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar Art 2o Toda mulher independentemente de classe raça etnia orientação sexual renda cultura nível educacional idade e religião goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana sendolhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral intelectual e social Art 3o Serão asseguradas às mulheres as condições para o exercício efetivo dos direitos à vida à segurança à saúde à alimentação à educação à cultura à moradia ao acesso à justiça ao esporte ao lazer ao trabalho à cidadania à liberdade à dignidade ao respeito e à convivência familiar e comunitária 1o O poder público desenvolverá políticas que visem garantir os direitos humanos das mulheres no âmbito das relações domésticas e familiares no sentido de resguardálas de toda forma de negligência discriminação exploração violência crueldade e opressão 2o Cabe à família à sociedade e ao poder público criar as condições necessárias para o efetivo exercício dos direitos enunciados no caput BRASIL 2006 online 4 Ver SANTOS Cecília MacDowell Da delegacia da mulher à Lei Maria da Penha absorçãotradução de demandas feministas pelo Estado Revista crítica de ciências sociais n 89 p 153170 2010 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 45 Entre as ações legais para a proteção do princípio de não discriminação da mulher implementadas no âmbito da Lei Maria da Penha se destacam o Ligue 180 canal de denúncia de casos de violência por via telefônica responsável pelo atendimento de mais de 1 milhão de ligações realizadas em 2016 BRASIL 2017 e as DEAMs Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher que têm por função ações de prevenção proteção e investigação dos crimes de violência doméstica e violência sexual contra as mulheres entre outros BRASIL 2012 A quantidade de delegacias pelo país tem aumentado com o passar dos anos saindo de cerca de 340 municípios atendidos em 2004 para 440 municípios em 2014 mas ainda assim atingindo somente 79 do total de municípios brasileiros IBGE 2018 A abrangência de políticas de proteção das mulheres em casos de violência resulta em um nível considerável de punição dos agressores em 2016 a cada 20 inquéritos de violência doméstica abertos 13 medidas protetivas e uma condenação penal foram aplicadas IBGE 2018 Estes parâmetros legais existentes no Brasil são de exemplar sucesso quando se trata de conscientização de vítimas expostas a casos de violência levando a um maior número de denúncias desde o ano de sua criação e que têm aumento gradativamente visto que as mulheres passam a ter maior conhecimento dos seus direitos e das medidas de proteção que podem ser aplicadas contra os seus agressores MENEGHEL et al 2013 Ainda os programas de combate à violência de gênero e proteção da mulher brasileiros são passíveis de críticas principalmente contra a falta de articulação destes entre todos os órgãos públicos passíveis de envolvimento e a conscientização da existência de uma cultura nociva de violência que precisa ser combatida alertando e inserindo também a sociedade civil nestes debates conforme citado por Eva Blay Exemplo dessa desarticulação está na proposta de criação de mais Delegacias de Defesa da Mulher instrumento muito importante mas que tem de ser aparelhado em sua estrutura física equipamento e ligação com as demais delegacias com a Secretaria de Segurança da Justiça da Educação e demais órgãos do governo estadual e federal Assim como o pessoal desta importante instituição precisa ser treinado permanentemente as Delegacias pouco podem fazer se não estiverem inseridas em um programa de transformação da cultura da força e da violência de gênero BLAY 2003 p 9697 Isto mostra um cenário em que as políticas públicas buscam punir o agressor e garantir a proteção à vítima após o caso ter sido consumado com pouca atenção para a redução do padrão cultural patriarcal que faz com que esses casos existam É notável que algumas vítimas de violência física moral ou sexual ainda temam a denúncia de seus casos e entre os maiores motivos para tal está o vínculo de dependência que as vítimas possuem com seu agressor seja essa financeira ou emocional DEEKE et al 2009 GARBIN et al2006 BRASIL 2018b Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 46 Para garantir que a ideia de dependência não seja um impedimento para a denúncia de agressores os ODS planejam outros objetivos metas e indicadores que possam empoderar as mulheres e meninas e criar um cenário de independência e igualdade Dentro do quinto objetivo podemse citar os indicadores que tratam de independência econômica como melhor acesso à saúde e melhor distribuição de horas de trabalho doméstico salários e cargos gerenciais Também se destacam os indicadores para empoderamento através do acesso a recursos naturais e tecnologia como ferramentas para melhor acesso das mulheres à informação e consequente conscientização e especialização No Brasil os resultados destes também colocam as mulheres em cenário de maior vulnerabilidade as mulheres desprendem o dobro de horas em trabalhos domésticos quando comparadas aos homens ocupam a menor parte dos cargos gerenciais 39 têm salários médios cerca de 25 menores que dos homens menor parcela na distribuição de recursos ambientais e tecnológicos e são a menor parte de representação em todos os poderes do Estado SILVA 2018 Os demais objetivos também são de cumprimento essencial para a garantia de diminuição de índices de violência contra a mulher Preparar a mulher com recursos que a tornem menos vulnerável ODS 12 como alimentos ODS 2 água ODS 6 e energia limpas ODS 7 retirálas de linhas de pobreza ODS 1 tornar o mercado de trabalho mais justo e inclusivo ODS 8 garantir acesso à saúde ODS 3 promover a inovação ODS 9 tornar as cidades seguras ODS 11 tornar as mulheres menos vulneráveis às mudanças climáticas 13 participação na conservação dos oceanos ODS 14 e ecossistemas ODS 15 e reduzir as desigualdades em nível global ODS 10 É importante notar também a necessidade de participação e representatividade política das mulheres como expresso tanto nos indicadores do quinto objetivo como são essenciais para o cumprimento de instituições inclusivas e justas ODS 16 e acesso igualitário a meios de implementação dos objetivos ODS 17 Considerando que as hierarquias de gênero são socialmente construídas e mantidas por meio de estruturas de poder que trabalham contra a participação das mulheres na elaboração de políticas de segurança externa e nacional TICKNER 2001 p 21 tradução nossa tornase essencial o incentivo à participação feminina nos debates envolvendo seus direitos e proteção como ferramenta para tornar os ambientes políticos mais justos democráticos e eficientes tendo reconhecimento da mulher como ator de políticas nacionais e externas SILVA 2018 Destacase também o papel do ODS 4 planejando educação inclusiva e de qualidade Para as mulheres a educação é uma ferramenta para a garantia de maior autonomia fazendo Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 47 com que estas reconheçam seu papel como parte da sociedade e tenham acesso a informações essenciais para sua formação como indivíduo Ainda o maior alcance da educação permite que as mulheres tenham maior acesso à pesquisa recursos tecnológicos e inovação as aplicando com maior habilidade eficiência e produtividade no mercado de trabalho em todos os setores e como promotoras do desenvolvimento sustentável estabelecendo uma relação de troca as mulheres são empoderadas com o conhecimento e empoderam o ambiente ao seu redor com o que foi adquirido HUYER 1997 BANCO MUNDIAL 2001 Para além da geração de maior conhecimento e consequente maior autonomia para as mulheres tornandoas menos dependentes de seus agressores a educação é responsável por conscientizar e diminuir padrões nocivos de cultura patriarcal sensibilizando desde a infância até a formação continuada para impedir que a violência se propague e trabalhar através da prevenção destes casos citados para além da punição dos casos já ocorridos Considerando que a educação é o espaço a partir do qual pode acontecer a transformação cultural da sociedade FREIRE 2006 é essencial promover um ambiente educacional em que masculino e feminino tenham condições de estar em pé de igualdade inclusive para combater as violências contra o gênero feminino consideradas por alguns como inelutáveis ou inerentes à condição masculina REIS EGGERT 2017 p 21 Com o investimento e manejo de políticas públicas eficientes para prevenir e punir a violência contra a mulher em consonância com os objetivos internacionalmente acordados será possível alcançar os parâmetros do quinto ODS e diminuir o cenário de insegurança para as mulheres brasileiras conforme citado pelo Mapa de Violência Contra a Mulher de 2018 A cada 17 minutos uma mulher é agredida fisicamente no Brasil De meia em meia hora alguém sofre violência psicológica ou moral A cada 3 horas alguém relata um caso de cárcere privado No mesmo dia oito casos de violência sexual são descobertos no país e toda semana 33 mulheres são assassinadas por parceiros antigos ou atuais O ataque é semanal para 75 das vítimas situação que se repete por até cinco anos Essa violência também atinge a parte mais vulnerável da família pois a maioria dessas mulheres é mãe e os filhos acabam presenciando ou sofrendo as agressões BRASIL 2018b p 6 Para além dos padrões de violência o Brasil também possui outras lacunas de gênero Apesar de o país apresentar um nível de igualdade na educação internacionalmente reconhecido em 2017 o Brasil havia sido um dos seis países a eliminar disparidades de gênero na educação entre 144 países observados pelo relatorio The Global Gender Gap Report 2017 do Forum Econômico Mundial ficando em 1º lugar nos países promotores de igualdade em questões de educação e saúde Ainda assim o país ficou na 90º entre estes países no contexto global geral de igualdade de gênero tendo como principais razões para tal a desigualdade econômica e política como barreiras para sua Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 48 melhor posição em contexto internacional No quesito de economia o país ficou em 83º lugar na promoção de igualdade mundial principalmente devido às desigualdades salariais e representação em posições de gerencia e em questões políticas em 110º lugar devido à baixa representatividade das mulheres no poder legislativo e poucos anos de representatividade no poder executivo WEF 2017 Ainda podem ser citadas desigualdades de gênero na distribuição de recursos ambientais desde o ambiente rural onde as mulheres possuem menor parcela de terra água energia tecnologia e demais recursos como ambientes de pesca florestas e mesmo na distribuição de alimentos e nutrição SILVA 2018 todos agravantes da dependência da mulher de seus parceiros e familiares homens Nesse sentido é essencial a atenção brasileira a todos os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável integrados visando o empoderamento feminino em questões sociais ambientais econômicas e políticas e permitindo que o país seja promotor de igualdade de gênero e consequentemente responsável pelo cumprimento de objetivos internacionalmente acordados Para alcançar as metas internacionalmente acordadas o país precisa adaptarse principalmente na diminuição de riscos de violência contra a mulher em todos os âmbitos moral sexual ou física visto que o país apresenta índices cada vez mais altos nesse sentido e nos casos de feminicídio mostrando que apesar da estrutura legal para a proteção da mulher ainda há uma cultura patriarcal que justifica os casos de violência contra a mulher vista a sua inferioridade frente aos homens Com o cenário atual de desigualdade de gênero o Brasil apresenta não só desafios para sua inserção internacional como promotor de desenvolvimento sustentável como acordado com a Organização das Nações Unidas como desafios para o cumprimento dos direitos humanos básicos e essenciais que movem os princípios constitucionais do Estado brasileiro além de um descumprimento com a própria Constituição Nacional de 1988 indo contra seus princípios mais básicos de garantia de igualdade de gênero e de promoção de empoderamento da mulher CONSIDERAÇÕES FINAIS Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável são ferramentas essenciais para partir da ideia de um desenvolvimento sustentável para além do ambiental incluindo objetivos econômicos políticos e sociais para a garantia de um ambiente mais justo e saudável Dentro destes objetivos percebese a inclusão da necessidade de diminuir as desigualdades nacionais e internacionais envolvendo as relações de raça regionais de desenvolvimento e de gênero No caso de gênero atentase para o quinto objetivo pretendendo a igualdade de gênero e o Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 49 empoderamento feminino até 2030 discorrendo sobre diversas áreas de desigualdade existentes Como Estado signatário dos objetivos o Brasil se compromete a alcançar as metas e indicadores relacionadas a este objetivo dentro do prazo estipulado necessitando de adaptação e manejo de suas políticas públicas para a promoção dos ideais presentes na Agenda 2030 Este artigo pretendeu realizar a medida de dois indicadores do quinto objetivo 521 e 522 vista a sua abordagem direta dos padrões de violência nacionais dos países signatários Neste contexto se notaram dados preocupantes sobre o cenário de igualdade de gênero no Brasil onde as mulheres estão expostas a variados tipos de violência incluindo os medidos pelos ODS psicológica física e sexual nos mais diversos ambientes pelos mais diversos agressores e em todo o seu percurso de vida Apesar de não estar totalmente segura em nenhum momento a mulher brasileira está mais propensa à violência física e psicológica enquanto jovem adulta causada por parceiros afetivos ou familiares no ambiente doméstico à feminicídio na mesma faixa de idade por parceiros afetivos e à violência sexual na infância e juventude causadas por familiares ou conhecidos próximos Apesar das limitações dos números de denúncia causados pela vergonha ou medo da vítima em se expor e expor seu agressor ou mesmo pela relação de dependência entre os envolvidos os números registrados de todos os tipos de violência contra a mulher têm sido crescentes nos anos seguintes à assinatura dos ODS o que pode refletir uma maior busca das mulheres em denunciar causada pela sensibilização das leis de punição ou proteção brasileira mas de qualquer forma não mostra uma diminuição do acontecimento dos casos mostrando que o Brasil segue sendo um país inseguro para as mulheres e não tem garantido esforços suficientes para o cumprimento da Agenda 2030 No caso brasileiro também se notam desafios para as medidas e abrangência das políticas públicas pela extensão territorial do país tendo diferentes índices de casos e registros efetivos pelos seus estados e regiões bem como diferença na presença de delegacias especializadas pelos seus municípios Os índices também atentam para desigualdades de localização rural ou urbana situação de vulnerabilidade econômica e cor sendo os casos mais recorrentes em mulheres negras do que brancas Apesar dos indicadores do quinto ODS relacionados à violência não solicitarem as medidas de tais divergências no caso brasileiro esta atenção será essencial para a promoção de igualdade de fato englobando todas as desigualdades envolvidas na promoção de igualdade de gênero Para o Brasil atingir os objetivos é essencial também para a mitigação do padrão cultural de patriarcado que percorre o país Conforme medido o Brasil ainda há muito que melhorar como promotor de igualdade de gênero em contexto local para se estabelecer como Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 50 potência internacional no tema O país apesar de garantir um aparato de normas e legislação com vista de proteção da mulher tem uma das posições mais altas do mundo em casos de violência contra a mulher seja em casos de violência sexual ou violência doméstica e em casos de feminicídio com índices altos que impedem que as mulheres brasileiras se sintam completamente seguras em território nacional Cabe ao Brasil além de medidas de proteção à vítima e punição do agressor medidas de prevenção para diminuir a alta frequência destes casos desmistificando o cenário de dominação masculina que propaga a violência contra a mulher como uma atitude natural e recorrente Além dos indicadores medidos por este trabalho é essencial que o país cumpra com os demais indicadores apresentados pelo quinto objetivo com a intenção de empoderar a mulher através de reconhecimento e valorização do trabalho doméstico concretização de distribuição igualitária de jornadas e salários bem como de recursos ambientais e tecnológicos e maior inserção da mulher em debates políticos através de maior representatividade nos poderes do Estado Sugerese para pesquisas futuras a realização da medida de todos os indicadores do quinto objetivo com vistas a caracterizar o cenário de promoção de igualdade de gênero no Brasil a partir de perspectivas para além da violência contra a mulher Por fim o Brasil precisa notar a centralidade e essencialidade que a promoção de igualdade de gênero possui no cumprimento da Agenda 2030 sendo o empoderamento das mulheres uma ferramenta necessária para a garantia de um cenário nacional sustentável em questões sociais ambientais políticas e econômicas Assim sugerese uma revisão dos espectros políticos do Brasil para adaptarse às medidas internacionais por este assinadas e garantir que este se estabeleça como um país promotor de desenvolvimento internacional sustentável através da valorização do papel que as mulheres brasileiras têm como garantia de promoção de desenvolvimento econômico social e ambiental pleno e igualitário conforme objetivos acordados Somente com uma atenção ao contexto de gênero no país que este conseguirá cumprir com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável até 2030 promovendo uma melhor distribuição de recursos menor degradação ambiental melhor adaptação às mudanças climáticas garantia de cidades e campos sustentáveis promoção de instituições justas e igualitárias e inserção em uma comunidade global integrada em busca de movimentos pela paz e sustentabilidade por meio de princípios de igualdade e diversidade REFERÊNCIAS ACAYABA Cíntia ARCOVERDE Léo SP tem 88 casos por dia de lesão corporal por violência doméstica em 2019 2019 Disponível em httpsg1globocomspsao Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 51 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Graduação Curso de Relações Internacionais Universidade do Sul de Santa Catarina Florianópolis 2018 SIMON Guilherme Casos de feminicídios crescem 409 em Santa Catarina 2019 Disponível em httpswwwnsctotalcombrnoticiascasosdefeminicidioscrescem409em santa catarinafbclidIwAR1QLDAF47qp1r3dRcxQhg2be9XI3kXsFVgWgSZItPDj0UYLj5ynO Jyo Acesso em 26 jul 2019 SUSTAINABLE DEVELOPMENT KNOWLEDGE PLATFORM Sustainable Development Goal 5 Disponível em httpssustainabledevelopmentunorgsdg5 Acesso em 22 jul 2019 WALBY Sylvia Theorising patriarchy Sociology v 23 n 2 p 213234 1989 WEF The Global Gender Gap Report 2017 2017 Disponível em httpwww3weforumorgdocsWEFGGGR2017pdf Acesso em 26 jul 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 54 POLÍTICA PÚBLICA E VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES UMA ABORDAGEM EM GRUPO NO CENTRO DE REFERÊNCIA ESPECIALIZADO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Mayara Zimmermann Gelsleichter1 Fernanda Marcela Torrentes Gomes2 RESUMO Este artigo tem por objetivo relatar o trabalho social realizado com mulheres em situação de violação de direitos atendidas pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social CREAS do município de São José Santa Catarina Tratase de um relato de experiência de abordagem metodológica qualitativa e descritiva A coleta de dados se deu por meio da observação participante das autorasprofissionais do serviço tendo como elemento estruturante do texto o cenário de construção de um grupo de mulheres e de crianças filhasos das participantes O período da coleta corresponde a 16 meses 2016 a 2018 de planejamento e execução do grupo concomitante aos atendimentos individuais e familiares realizados preconizados pela Política Nacional de Assistência Social PNAS Esta pesquisa se ancora em uma perspectiva crítica das teorias feministas e dos estudos de gênero particularmente em uma leitura interseccional Os resultados correspondem às análises empreendidas sobre o processo de construção de um grupo de mulheres em situação de violação de direitos logo de uma estratégia de enfrentamento das violências de gênero O estudo evidencia que os estudos de gênero e o feminismo são uma importante chave de interpretação e mediação das relações entre trabalhadorases e usuáriasos assim como de orientação da práxis profissional nas políticas públicas sociais de enfrentamento à violência contra as mulheres Em suma tal abordagem possibilita ressignificar as atribuições do feminino e as lógicas imperantes nas estruturas sociais do Estado que se caracterizam nas demandas do sistema sociojurídico de atendimento às mulheres Palavraschave Mulheres Feminismo Violência Política Pública INTRODUÇÃO O presente artigo tem como objetivo relatar o trabalho social realizado com mulheres em situação de violação de direitos atendidas pelo Centro de Referência Especializado de Assistência Social CREAS do município de São José Santa Catarina As motivações que impulsionaram a construção deste relato decorrem de três aspectos principais 1 Assistente social Mestra pelo Programa de PósGraduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina PPGSSUFSC Especialista pelo Programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde do Hospital Universitário Polydoro Ernani de São Thiago da Universidade Federal de Santa Catarina RIMSHUUFSC mzgelsleichtergmailcom Lattes httplattescnpqbr3314850749484736 2 Assistente social Mestra pelo Programa de PósGraduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina PPGSSUFSC Atualmente é assistente social no município de São José SC fernandatorrentesgmailcom Lattes httplattescnpqbr7945820540914833 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 55 O primeiro deles referese às experiências cotidianas das autoras que a partir de suas construções teóricas e políticas sobre o feminino procuraram pontos de partida na vida acadêmica e profissional que projetassem a realidade social das mulheres Refutaram com isso o olhar colonizador sobre os corpos os saberes e as produções RIBEIRO 2017 o que potencializou consequentemente o interesse pelas pautas defendidas pelos movimentos e estudos feministas comprometidos com uma visão crítica de mundo em que as violências contra as mulheres se impõem como um desafio às políticas sociais públicas O segundo aspecto diz respeito à formação das autoras em Serviço Social e às suas aproximações aos estudos de gênero e ao feminismo como objeto de estudo das suas produções científicas e de atuação profissional principalmente ao que corresponde ao feminismo interseccional CRENSHAW 2002 BRAH 2006 Esta chave de interpretação oriunda dos movimentos feministas contribui para ampliar a noção genérica de mulher e como o proprio nome sugere tal leitura traz a perspectiva de que existem intersecções entre as opressões vivenciadas sejam elas de classe gênero raçaetnia entre outras Interseções estas explicitadas pelas mulheres atendidas no CREAS em um tempoespaço e em determinadas culturas bem como em suas dinâmicas sociais e econômicas Problematiza desse modo a compreensão das experiências pessoais e coletivas consideradas universais no caso a representação de mulheres brancas americanaseuropeias heterossexuais e de classe média Abarca sobretudo os estudos de gênero sobre violência contra a mulher denunciada ativamente pelo discurso e pela ação feminista em âmbito nacional e internacional O terceiro e último aspecto corresponde à vivência do exercício profissional no CREAS ou seja ao campo de atuação das autoras no Serviço de Proteção e Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos PAEFICREAS Nesse sentido o cotidiano de trabalho foi determinante para a reflexão e para a construção teórica deste estudo Refletir sobre essa experiência significou um ponto de resistência na trajetória profissional das autoras visto que foram transferidas da instituição pública no início de 2018 e não puderam dar continuidade ao trabalho desenvolvido Diante disso intensificaram o interesse pela publicização dos saberes produzidos com por e para as mulheres SALGADO 2008 os quais têm como premissa pensar as relações de poder instituídas socialmente e vivenciadas pelas próprias mulheres profissionais e usuárias que passaram pela instituição O trabalho desenvolvido com mulheres em atendimento nos CREAS possibilitou que fossem desconstruídas e reconstruídas noções sobre as dinâmicas de vida instituídas Estas noções permitem discutir o feminino e suas atribuições a maternidade os lugares sociais ocupados os diferentes tipos de violência bem como os desafios coletivamente partilhados Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 56 revelando matizes da realidade e refletindo sobre a responsabilização das mulheres na provisão da proteção social principalmente pela individualização dos efeitos das violências sofridas Assim nesse espaço plural a invisibilidade do espectro de violências e opressões são narradas e projetadas com intensidade e com a dor do vivido onde as violências de gênero ganham destaque assim como a intervenções de outras mulheres no caso das profissionais Problematizar os arranjos que determinam a inserção das mulheres nos espaços sociais segue sendo um desafio para a produção de conhecimento voltada aos estudos de gênero É notória a majoritária presença de mulheres na Política Nacional de Assistência Social PNAS seja na gestão na execução ou como usuárias dos serviços Essa relação evidencia a feminização das profissões de serviço social psicologia pedagogia SIMÕES 2012 LHULLIER 2013 Tal conformação possibilita tanto intervir em questões que perpassam a transversalidade de gênero nos processos de trabalho como elaborálas academicamente visto serem pouco abordadas na teoria em serviços sociais públicos LISBOA 2010 Nesse cenário mulheres atendem a outras mulheres trazem suas famílias e os sentidos atribuídos às subjetividades femininas atravessam as demandas e os atendimentos além de mobilizarem processos de significações que são discutidos por intermédio do trabalho desenvolvido e aqui relatado Em termos de abordagem metodológica este estudo possui dimensão qualitativa e descritiva visto que se trata de um relato de experiência A coleta de dados se deu por meio da observação participante das autorasprofissionais tendo como elemento estruturante do texto o cenário de construção de um grupo de mulheres e de crianças filhasos das participantes O período de coleta corresponde a 16 meses novembro de 2016 a fevereiro 2018 de planejamento tendo como principal elemento a experiência profissional das autoras no âmbito de um CREAS serviço da PNAS no qual durante os anos de 2016 2017 e 2018 a proposta de trabalho com as mulheres em grupo foi desenvolvida concomitantemente aos atendimentos individuais e familiares realizados tipificados pela PNAS BRASIL 2005 Por certo o trabalho profissional no CREAS particularmente no grupo de mulheres foi um lócus privilegiado para problematizar a concepção universal de mulher e de outras categorias como violência educação trabalho política pública família e religiosidade logo um cenário em potencial de coleta de dados O grupo foi simultaneamente campo de intervenção e de pesquisa Tal concepção sugere que os valores as injunções políticas e as relações humanas são elementos fundamentais no estudo de experiências de grupos assim como na apreensão das realidades veiculadas pelas usuárias que deles participam MINAYO 2011 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 57 Ao longo dos 16 meses foram realizados 20 encontros do grupo As profissionais os registravam por meio de um diário de campo e de gravação digital celular com autorização por escrito das participantes Esses registros foram transcritos no formato de relatórios de atividades do grupo e compartilhados com asos demais profissionais do CREAS com a finalidade de disponibilizar os documentos para as equipes psicossociais que acompanhavam as participantes bem como realizar a avaliação das atividades dos encontros É importante esclarecer que os dados foram construídos considerando a interação entre os elementos o contexto de inserção das autoras CREAS os fluxos e as estratégias de atendimento às famílias e indivíduos em situação de violação de direitos o delineamento metodológico das atividades em grupo a coordenação dos encontros ancorada nos feminismos interseccionais as falas das mulheres que fazem referências a suas experiências pessoais e de socialização Para cumprir com o propósito deste estudo o texto está estruturado a fim de apresentar criticamente quatro principais eixos que foram abordados nos seguintes tópicos em Invisibilidades e perversidades a projeção do feminino na política pública problematizouse as concepções de mulheres feminino e família na assistência social bem como suas implicações na realidade social por uma perspectiva feminista posteriormente em O Centro de Referência Especializado de Assistência Social cenário de intervenção e de pesquisa situouse o CREAS como campo de operacionalização da política e de atendimento às mulheres em situação de violação de direitos logo de um espaço propício ao emprego de metodologias de trabalho de abordagem feminista em O atendimento à mulher em situação de violação de direitos a construção do grupo como estratégia de intervenção apresentouse o processo de trabalho que resultou na formação de um grupo que é tratado especificamente no último tópico em A experiência do grupo de mulheres como perspectiva de protagonismo feminino e enfrentamento das violências de gênero Por fim as considerações finais trouxeram elementos e questões fundamentais para se repensar as práticas de trabalho com mulheres em situação de violação de direitos 1 INVISIBILIDADES E PERVERSIDADES A PROJEÇÃO DO FEMININO NA POLÍTICA PÚBLICA Os atendimentos prestados às mulheres em situação de violação de direitos tanto individualmente quanto em grupo ocorreram via Sistema Único de Assistência Social SUAS que destaca a importância da matricialidade sociofamiliar como seu eixo estruturador A diretriz da PNAS tem a família como centralidade da oferta dos serviços programas projetos e benefícios PAIVA ROCHA CARRARO 2010 havendo um suposto tácito em sua Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 58 operacionalização de que alguém cumprirá tarefas sem que se nomeie a princípio de quem é a responsabilidade Reafirma desse modo o que a historiadora Joana Maria Pedro 2005 denomina de invisibilidade ideologica Ou seja de fato as mulheres estas situadas interseccionalmente PISCITELLI 2008 COSTA 1998 são demandadas como as principais responsáveis pelo acesso aos programas da PNAS Tal tendência possui grande parte de sua origem na gradativa incorporação da categoria gênero ao eixo principal ou como tema transversal das políticas sociais do Estado BANDEIRA 2004 SOARES 2011 Importante neste momento relembrar a pressão exercida pelos movimentos feministas para a inclusão de uma perspectiva de gênero na formulação das políticas sociais Aliás as feministas também foram responsáveis por chamar atenção para o crescimento de uma visível pobreza feminina que inclui um contexto histórico de trabalhos não remunerados direcionados ao cuidado ALVAREZ 2000 Contudo o que se observou é que propostas inicialmente apresentadas por grupos feministas para auxiliar um processo de emancipação feminina são deslocadas para o âmbito da tradição política do Estado Nessa conjuntura obtém outros fins que implicam em sua maioria uma normatização e regulação da vida dessa população que pouco ou nada tem a ver com a promoção da equidade especificamente da equidade de gênero BANDEIRA 2004 Por seu turno os discursos no âmbito do Estado e das organizações internacionais dentre elas do Banco Mundial BM direcionados à feminização da pobreza termo mencionado pela primeira vez em 1978 por Diane Pearce identificam essa problemática como a principal questão social a ser resolvida adquirindo centralidade nas políticas voltadas às famílias Tal concepção permite que se direcionem critérios particularizados a programas sociais que visam selecionar os mais pobres entre os pobres no caso as mulheres e dentre elas as mulheres negras GOMES 2014 Essa logica pressupõe que a questão social pode ser enfrentada por meio de iniciativas de empreendedorismo integração social empoderamento dos indivíduos e solidariedade mútua ignorando a desigualdade social como um componente da lógica de acumulação capitalista SOARES 2011 Nesse sentido a noção de empoderamento apesar de ser em sua origem relacionada ao movimento de mulheres e possuir laços originários no Brasil com uma ressignificação de Paulo Freire empoderamento de classe tem sido reconceitualizada e incorporada pelas organizações mundiais Assim empoderamento se constituiria em um projeto que reforça a capacidade de indivíduos e grupos sociais fazerem escolhas de modo a transformálas em ações e resultados almejados CARVALHO 2013 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 59 As mulheres por meio desse viés são tomadas como cuidadoras responsáveis pela reprodução social da família Essa função pode ser desempenhada pela genitora ou por outras mulheres como a avo a tia e até mesmo a filha do nucleo familiar Isto é as mulheres o principal público da PNAS acumulam também as tarefas destinadas à saúde à educação aos cuidados gerais dos membros da família reforçando em certa medida a visão tradicional das construções sociais de gênero GOMES 2014 Foi com a proposta de desestabilizar essa lógica instituída muitas vezes reproduzida pelos próprios serviços sociais públicos que o trabalho em grupo com mulheres passou a ser concebido no CREAS do município de São José 2 O CENTRO DE REFERÊNCIA ESPECIALIZADO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL CENÁRIO DE INTERVENÇÃO E DE PESQUISA As formas de acesso ao CREASSJ ocorriam de diferentes maneiras por demanda espontânea buscaativa por encaminhamento de outros serviços da assistência social assim como por outras políticas públicas e por órgãos do Sistema de Garantia de Direitos tais como o Ministério Público o DisqueDenúncia o Disque100 as promotorias o Conselho Tutelar As demandas geradas pelos encaminhamentos eram atendidas nos diferentes serviços que compõem a instituição a saber Abordagem Social Medidas Socioeducativas Liberdade Assistida e Prestação de Serviços à Comunidade e PAEFI Desse modo era previsto que cada serviço atuasse conforme a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais BRASIL 2009 Sendo assim o trabalho essencial aos serviços inclui acolhida estudo social visita domiciliar orientação e encaminhamentos grupos de famílias acompanhamento familiar atividades comunitárias campanhas socioeducativas informação comunicação e defesa de direitos promoção ao acesso à documentação pessoal mobilização e fortalecimento de redes sociais de apoio desenvolvimento do convívio familiar e comunitário mobilização para a cidadania conhecimento do território cadastramento socioeconômico elaboração de relatórios eou prontuários notificação da ocorrência de situações de vulnerabilidade e risco social busca ativa BRASIL 2009 p 13 As demandas eram relacionadas a situações de risco pessoal e social com violação de direitos como violência física psicológica e negligência violência sexual afastamento do convívio familiar devido à aplicação de medida de proteção situação de rua abandono trabalho infantil discriminação por orientação sexual eou raçaetnia descumprimento de condicionalidades do Programa Bolsa Família PBF em decorrência de violação de direitos cumprimento de Medidas Socioeducativas em Meio Aberto de Liberdade Assistida LA e de Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 60 Prestação de Serviços à Comunidade PSC por adolescentes entre outras O acompanhamento era direcionado ao serviço correspondente e articulado com a rede socioassistencial Por mais que as demandas apresentadas indicassem a necessidade de intervenções psicossociais voltadas ao enfrentamento da violação de direitos muitas vezes a própria lógica institucional de atendimentos reproduzia violências ao não reconhecer as dimensões histórico estruturais nas quais as famílias estavam inseridas por exemplo Isso porque ao partirse dos estudos de gênero e de teorias feministas principalmente das que tratam da interseccionalidade identificase que as opressões na medida em que são fruto de desigualdades historicamente produzidas não são abordadas no serviço em sua totalidade e complexidade As leituras empreendidas sobre as situações que chegavam ao CREASSJ eram interpretadas por diferentes perspectivas teóricas e políticas sendo o senso comum um tipo de conhecimento reafirmado nas intervenções realizadas SWAIN 2001 Nessa perspectiva Paulo Freire 1980 ao pensar a Teoria da Conscientização como prática para libertação e estratégia de ação com grupos oprimidos afirma que toda compreensão de algo corresponde em algum momento a uma ação Partindo desse pressuposto podemos considerar que se a compreensão dos profissionais direcionadas aos processos de trabalho não corresponde à realidade concreta das famílias atendidas o trabalho em si dificilmente corresponderá Ao ignorar certas discussões e leituras do campo feminista que reconhecem a herança colonial e escravista dos processos desenvolvidos na sociedade GILROY 2012 KILOMBA 2019 os serviços mantêm a estrutura de desigualdades dentro do grupo das mulheres silenciando as vozes das negras das trabalhadoras ou das lésbicas MIGUEL BIROLI 2014 p 102 inclusive das violências de gênero não explicitadas nos requerimentos de acompanhamento no CREASSJ Por certo as famílias que vivem em condiçõeslimite de vida e sobrevivência frequentemente são questionadas pelos profissionais acerca da oferta de cuidados e serviços a seus membros sem que se considere o debate fundamental relacionado à presença do Estado como provedor de um sistema de garantia de direitos BERBERIAN 2015 A partir dessa dinâmica de trabalho são reafirmadas atribuições tradicionais de gênero para mães pais avós filhas como se dependesse exclusivamente dos sujeitos atendidos pela Política os esforços e deslocamentos necessários para driblar as situações de violências pobreza racismo ao qual estão submetidos Essa responsabilização era tão evidente que a falta de profissionais recursos materiais as críticas à formulação da PNAS e ao seu funcionamento assim como as desigualdades sociais de classe raçaetnia gênero pouco eram consideradas em relação às demandas e subsequentes intervenções realizadas pela instituição Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 61 Através dos desafios explicitados construiuse a proposta de trabalhar com o grupo de mulheres levandose em conta a intersecção entre os marcadores sociais HENNING 2015 Estes fundamentaram a elaboração de estratégias de atendimento que consideram as desigualdades sociais produzidas pelos variados sistemas de dominação assim a relação entre gênero raçaetnia e classe foi considerada um elemento fundante para problematizar a realidade social e os lugares que as mulheres ocupam dentro deles MIGUEL 2017 Neste cenário a partir das reuniões semanais de equipe do CREAS foi construído o projeto de grupo de mulheres para trabalhar as múltiplas opressões vivenciadas pelas usuárias dos serviços Instituiuse uma dinâmica coletiva de atendimento que até então não existia partindo do entendimento de que existem potencialidades nos trabalhos em grupo assim como limites nos atendimentos individuais Foi perceptível a predominância do acesso de mulheres ao serviço porém as leituras empreendidas sobre gênero eram preteridas àquelas que responsabilizavam as usuárias pelos seus nucleos familiares Dessa maneira as profissionais que tinham interesse em trabalhar com os estudos interdisciplinares de gênero e partilhavam da ação feminista possibilitaram a construção de um espaço que refletisse sobre o feminino e suas intersecções 3 O ATENDIMENTO À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLAÇÃO DE DIREITOS A CONSTRUÇÃO DO GRUPO COMO ESTRATÉGIA DE INTERVENÇÃO Majoritariamente duas profissionais da equipe3 coordenaram e organizaram os encontros que se iniciaram em novembro de 2016 Conforme supracitado foram realizados 20 encontros que ocorreram quinzenalmente tendo como abordagem o feminismo interseccional e a ação feminista O critério de inclusão no grupo era a vinculação aos serviços do CREAS sendo o convite de participação efetuado pelasos profissionais de referência da equipe psicossocial que acompanhavam as mulheres no serviço O objetivo inicial era discutir as demandas que levaram as mulheres ao atendimento no CREAS e propiciar a construção coletiva do grupo pautado no protagonismo das usuárias Para tanto foram realizadas dinâmicas que possibilitaram às mulheres falarem sobre suas expectativas com o trabalho a ser desenvolvido assuntos a serem discutidos intenções e compromissos com as demais participantes sendo construídos planejamentos semestrais com acordos pactuados tais como assiduidade horários de realização importância do sigilo 3 Fernanda Marcela Torrentes Gomes assistente social e Mayara Zimmermann Gelsleichter assistente social A técnica Cristina Corrêa psicóloga foi uma das organizadoras do projeto e participou ao todo de quatro encontros devido à transferência de trabalho solicitada para o SUSSJ Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 62 respeito às falas possibilidade de proposição de pautas temáticas e atividades Ou seja partiu se do entendimento de que era necessário escutar nesse caso por quem sempre foram autorizadas a falar nesses espaços as profissionais RIBEIRO 2017 O grupo contou com a participação regular de aproximadamente 10 mulheres todas brasileiras com histórico de migração procedentes do município de São José com idades compreendidas entre 16 e 60 anos Aberto à incorporação de novas usuárias totalizando o número aproximado de 25 mulheres acompanhadas em geral o grupo reuniu mulheres adultas cis4 e trans RODOVALHO 2017 heterossexuais e homossexuais negras e não brancas LUGONES 2014 A maioria partilhava da experiência da maternidade visto que quase todas eram mães e algumas eram avós Segundo se pôde observar nenhuma delas possuía contrato de trabalho formal exerciam atividades de faxineira manicure catadora de materiais recicláveis assim como eram profissionais do sexo vendedoras de alimentos eou cartões de jogos de azar nas ruas residiam em casas próprias cedidas alugadas e compartilhavam da rua como espaço de moradia e de sustento O trabalho não remunerado de cuidados e doméstico era desempenhado tradicionalmente por elas e foram evidenciados em suas narrativas Essa realidade sugere que a responsabilidade nos cuidados atribuída tradicionalmente às mulheres constitui forte barreira de acesso ao mercado laboral e portanto à renda BLOFIELD FRANZONI 2014 Para viabilizar o grupo foi elaborado e executado concomitantemente um projeto voltado às crianças que acompanhavam as mulheres participantes Tal projeto foi desenvolvido para acolher asos filhasos e netasos durante os encontros Logo no início as mulheres enfatizaram a importância do espaço para as crianças para manter sua participação em todo o processo uma delas em especial frisou que o acolhimento àsaos filhasos determinou sua participação e o fato de ter sido respeitada a singularidade das mulheres na condição de mães Apesar da nítida relevância como suporte para a realização do trabalho com as mulheres foi entendido de maneira hierárquica por váriosas profissionais do CREAS como um mero apoiocuidado sendo um pretexto para a não participação nas ações desenvolvidas com as crianças participantes Embora não seja o foco da análise aqui discutida vale ressaltar que houve inúmeras tentativas de justificar teórica e tecnicamente a importância do envolvimento dasos profissionais da equipe no desenvolvimento dessas atividades No grupo de mulheres utilizouse como estratégia para fomentar as discussões os seguintes recursos audiovisuais para exibição de filmes documentários cartazes músicas 4 Cisgênero cis é o termo utilizado para se referir ao indivíduo que se identifica com o gênero que lhe é atribuído socialmente ao nascer em função do seu sexo biológico Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 63 apresentação de concertos leitura de contos e poesias oficinas fotográficas e de escrita Nesse sentido a arte e a cultura foram pensadas como importantes ferramentas de promoção de diálogo considerando as existências e experiências múltiplas das usuárias Os temas organizados e debatidos a partir das mulheres foram mediados pelas profissionais e abarcaram discussões sobre história das mulheres violências de gênero com destaque à violência sexual e física discriminação e racismo saúde mental álcool e outras drogas sexualidade direitos sexuais e reprodutivos maternidade família estética e padrões de beleza serviços sociais da rede de proteção do município feminismos assim como participação em eventos no município com garantia de fala das usuárias em mesa de debate Da mesma maneira a presença de profissionais da área da saúde Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas e da assistência social Abordagem Social Medidas Socioeducativas e PAEFI bem como de acadêmicas e docentes da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC propiciou que as usuárias falassem escutassem e questionassem umas às outras De modo geral os encontros eram realizados na sede do CREASSJ em uma das salas de atendimento As profissionais organizavam o espaço a fim de formarem uma roda com as cadeiras democratizandoo objetiva e subjetivamente Interessante notar que sempre que uma nova participante comparecia às atividades era realizado o seu acolhimento todas se apresentavam explicitavam os princípios do grupo e os pactos iniciais No decorrer dos encontros as participantes decidiram nomear o grupo para se identificarem enquanto um coletivo Sendo assim a ideia da palavra vividas e suas opressões foram demarcadas como símbolo das trajetórias de vida que conectavam as mulheres assim como significava um horizonte de ver vidas que eram compartilhadas por todas propiciando a construção do nome Coletivo Vividas A sua presença em outros espaços também foi relevante ao grupo como na ocasião do evento Lugar de mulher é onde ela quiser promovido em março de 2017 pelo Forum da Comarca de São JoséSC no qual foi debatido o funcionamento da Lei da Maria da Penha no município e contou com a fala de uma das integrantes que apresentou testemunhos e problematizou as deficiências na sua execução Da avaliação dessa participação o tal coletivo organizou um evento protagonizado pelas mulheres e uma amostra fotográfica dos registros ensaiados pelas próprias participantes ambos ocorreram em julho de 2017 4 A EXPERIÊNCIA DO GRUPO DE MULHERES COMO PERSPECTIVA DE PROTAGONISMO FEMININO E ENFRENTAMENTO DAS VIOLÊNCIAS DE GÊNERO Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 64 Nos espaços de diálogo do grupo tevese a oportunidade de verificar certas premissas que acompanharam os atendimentos direcionados às mulheres na rede socioassistencial dentre elas podemos destacar os destinados às mulheres que se encontram em situação de violência Esse cenário ainda é tratado por grande parte das instituições e profissionais enquanto um problema psicológico individual do agressor o que faz com que equivocadamente as políticas voltadas ao tema entendendo o problema como incapacidade afetiva social e psicológica do nucleo familiar fomente o fortalecimento e a retomada dos vínculos desconsiderando as relações de poder instituídas historicamente Essas ações mesmo que de maneira sutil denotam mais uma violação dos direitos humanos das mulheres tendo como um de seus estímulos a tentativa de conservar a noção de família tradicional nuclear negando aos modelos alternativos boa parte das políticas destinadas a grupos familiares marginalizados ou seja àquelas pessoas que se encontram fora desse enquadramento Do mesmo modo enquanto profissionais foi emblemático observar as violências institucionais invisibilizadas no processo de trabalho Especificamente no PAEFI havia uma predominância de encaminhamentos da rede intersetorial cuja motivação do atendimento era caracterizada por negligência direcionada às famílias pelos formulários do PAEFICREASSJ referindose assim à desproteção das mulheres adultas para com as crianças adolescentes idosasos eou pessoas com deficiência Ao tomar conhecimento das narrativas das usuárias identificouse que as situações entendidas como negligência não correspondiam à totalidade das sujeitas acompanhadas desconsiderando sua concreta inserção em uma sociedade que se configura de maneira objetiva Notouse que o termo negligência era operado por meio de um cunho moralista que elencava critérios préestabelecidos sobre o que é bom adequado capaz normal sendo possível localizar a transferência às mulheres de responsabilidades do Estado para a figura da família assim como sua culpabilização pelo não desempenho das funções a elas atribuídas BERBERIAN 2015 Importante destacar que a noção de negligência utilizada nos formulários de encaminhamento remete à responsabilização das mulheres pelasos suasseus filhasos netasos irmãsirmãos pais e avós se constituindo em mais um obstáculo em suas vidas Se nos países latinoamericanos não existe uma política familiar explícita existe um conjunto de medidas programas e projetos que afetam as famílias de forma direta ou indireta TEIXEIRA 2013 Essa característica das políticas sociais se volta à ótica do familismo no qual se pratica a prestação mínima por parte do Estado de bemestar diminuindo os serviços de creches de cuidados domiciliares de socialização e convivência de serviços profissionalizantes de ocupação de tempo livre de idosasos crianças adolescentes jovens e Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 65 pessoas com deficiência que passam a ser consideradas funções familiares ou melhor das mulheres consideradas responsáveis pelo nucleo familiar Por meio de suas narrativas nos encontros é possível assegurar que há um equívoco nas interpretações que embasam as noções de negligência ou seja estas ancoramse em perspectivas da realidade Aliás os momentos em que elas contavam sobre si enquanto autoras de suas histórias foram emblemáticos Uma delas descrevendo sua trajetória de vida a partir dos enfrentamentos e das resistências narrou episódios de trabalho doméstico infantil abuso sexual violências físicas e psicológicas situação de rua abandono dos estudos entre outros que materializam a intersecção das opressões vividas De fato as mulheres se identificavam com o fato de serem atendidas no CREAS devido a um histórico de violação de direitos Notouse que havia a necessidade de falarem sobre o que as levou a ser acompanhadas em um serviço especializado como estratégia de romperem com os silêncios que envolvem as práticas de violência Essa estratégia evidenciou que ao falarem sobre si se projetavam como protagonistas de suas narrativas e criavam laços umas com as outras SQUIRE 2014 Uma das participantes do grupo inclusive contou que em vários momentos se percebeu nas histórias das demais e que isso foi muito importante para ela pois escutar e falar sobre as situações que lhe causaram sofrimento fazia com que compreendesse a dimensão política da vida pessoal Destacase que as próprias mulheres eram autônomas em decidir compartilhar suas experiências e o motivo em comum que as levaram para o CREAS visto os acordos firmados anteriormente Dessa forma essa urgência partiu delas e se expressou no contexto de formação do grupo logo pode ser considerado um exercício de cidadania no uso dos espaços sociais públicos Apontase que de modo geral as participantes não tomavam o discurso de vítimas ao contrário criavam reiteradamente estratégias de sobrevivência com os recursos que lhes eram possíveis Tais relatos entretanto demonstram que apesar de discussões como feminização da pobreza saúde mental da população direitos sexuais e reprodutivos trabalho sexual entre outras estarem na pauta diária das feministas não o estão necessariamente na do Estado que mesmo ao discutir essas questões não oferece respostas materiais satisfatórias do ponto de vista emancipador Ao contrário ainda se apresenta na perspectiva de gênero como um instrumento regulador Nesse sentido houve momentos em que as próprias mulheres se culpabilizavam ou responsabilizavam as outras pelas situações de violência ocorridas em suas trajetórias reforçando e reproduzindo por vezes o machismo direcionado a elas cotidianamente inclusive por profissionais dos serviços Essas situações eram trabalhadas pelas profissionais do grupo Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 66 que compartilhavam pontos de reflexão ancorados nos estudos do feminismo interseccional para motivar os debates e gerar deslocamentos A dimensão educacional também chamou atenção em diferentes aspectos A falta de acesso das mulheres à escolarização ROSEMBERG 2001 resulta na baixa alfabetização tendo sido imprescindível planejar as atividades considerando que algumas das participantes não sabiam ler eou escrever No entanto as possibilidades de que algumas dispunham mesmo em contextos adversos demonstram que as suas formações educacionais não se vinculam necessariamente aos bancos escolares mas são demarcadas por saberes adquiridos ao longo da vida Sobre esse aspecto uma das usuárias relatou ao grupo que amava escrever e que já havia produzido um extenso caderno com poesias contos e histórias Mencionou que almejava publicar um livro cujo título que tinha em mente era Caminhos de Pedra e gravar uma canção com sua voz Nesses momentos de escrita confidenciou que relembrava muitas situações de sua vida e isso causavalhe sofrimento sendo indicada pelo médico psiquiatra a interromper esse processo para tratar de sua saúde mental A participante para além da fala exposta evidenciou que era preciso enunciar seus sofrimentos como meio de elaborálos e ressignificálos mais do que interrompêlos Ademais a concepção de cidadania atrelada ao acesso à educação foi percebida significativamente durantes as atividades Naquelas em que foram entregues certificados de participaçãoorganização observouse sentimentos de comoção por parte das mulheres que o recebiam pela primeira vez Nas mulheres negras a narrativa de falta de acesso à educação mostrouse frequente Nesta perspectiva destacase que as mulheres negras e não brancas são as que vivem as consequências dessas desigualdades com maior intensidade visto que os estudos evidenciam que elas vivem em piores condições de vida e saúde e possuem os piores níveis de renda e escolaridade no Brasil MARTINS 2006 AKOTIRENE 2018 Com efeito a abordagem teórica utilizada na condução do grupo foi imprescindível para que se revelassem os conflitos e as desigualdades de gênero classe raçaetnia haja vista o feminismo interseccional explicitar os pontos de resistência frente às desigualdades sociais Entretanto diferentemente de abordagens que se apropriam do termo interseccional para neutralizar categorias de análise a intencionalidade dada no desenvolvimento do grupo e desse estudo visou estabelecer conexões com as tradições do feminismo negro e dos movimentos de libertação decoloniais que foram propulsores de tal teoria AKOTIRENE 2018 Atribuiuse a essa perspectiva o exercício profissional das autoras que sustentaram esse projeto de trabalho Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 67 em grupo no CREASSJ durante o período de 16 meses tempo anterior à arbitrária transferência da instituição CONSIDERAÇÕES FINAIS Primeiramente fazse importante destacar que as reflexões apresentadas neste texto partiram da experiência vivenciada pelas profissionais na coordenação do grupo e procuraram na medida do possível destacar a autonomia o protagonismo e a resistência das mulheres participantes Nesse sentido acrescentar ao debate sobre violência contra as mulheres projetos que democratizam os espaços públicos e as ações profissionais assegurou que o tema fosse significado pelas próprias mulheres em situação de violação de direitos Em seu conjunto afirmase que o grupo potencializou a partilha de experiências informações saberes e direitos sociais civis e políticos bem como a valorização das trajetórias de vida das usuárias situandoas em seus contextos sociais e políticos Por seu turno a promoção das narrativas e dos relatos de experiência das mulheres foi um exercício coletivo de política feminista que buscou articular uma das noções fundamentais do feminismo o pessoal é político HANISCH 1969 desnaturalizando suas realidades sociais Por suposto um exercício propiciado por uma escuta políticofeminista das profissionais GELSLEICHTER 2019 Observouse que as intersecções de raçaetnia classe e sexo atravessaram os encontros e se projetaram como marcadores sociais Do mesmo modo que as integrantes do Coletivo Vividas têm suas vidas fortemente atravessadas pelos eixos de opressão de gênero classe raçaetnia articulados aos marcadores de sexualidade geração território que intensificam os processos de violência contra às mulheres Percebeuse também que quanto mais o grupo se fortalecia em interlocução com as pautas feministas mais as mulheres ressignificavam suas compreensões sobre dinâmicas familiares trajetórias de vida e violências de gênero contra as mulheres Isso permitiu a consolidação de um espaço democrático e coletivo quer dizer mexeu com a lógica de uma instituição que tinha uma trajetória de atendimentos individuais Ou seja a partir de novas premissas trazidas pelas usuárias o grupo desestabilizou verdades e nomeou realidades e demandas que no geral seguiam invisíveis no serviço Assim mais do que compartilhar experiências e dificuldades as usuárias dividiram processos de resistência ocuparam espaços e subverteram lugares de fala Sua implementação por meio das atividades e dos debates fortalecia os vínculos entre todas as participantes inclusive as profissionais e apontava para a consolidação de um espaço plural que negava os apagamentos e as exclusões da história de vida de suas integrantes Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 68 promovidos pela própria Política Nacional de Assistência Social PNAS BRASIL 2005 Nessa perspectiva se compreendermos por meio de Michel Foucault 1995 que não há relação de poder sem resistência e estratégias de luta podemos afirmar que o grupo se constituiu como uma ferramenta de resistência nas relações de poder estabelecidas na rede de atendimento socioassistencial do município Por sua vez a perspectiva interseccional nos permitiu compreender a lógica das relações institucionais que culpabilizam e responsabilizam as mulheres pela situação familiar na qual se encontram ou seja de que elas são o começo e a solução dos problemas sociais da família sem que se leve em consideração as dificuldades de acesso aos serviços públicos garantidos pela Constituição Federal de 1988 tais como educação saúde habitação e saneamento básico BRASIL 1990 Além do mais tal realidade aprofunda as desigualdades instituídas ao passo que atribui à mulher a provisão do bemestar e a reprodução da vida social em uma realidade de violação de direitos As categorias de gênero raçaetnia classe sexualidade e diversidade sexual que estiveram entrelaçadas durante todo o processo de trabalho em grupo explicitaram outras faces das opressões vividas pelas mulheres o que levou as coordenadoras a ressignificar as noções de violência que situam o cotidiano de operacionalização da PNAS abrindo espaço para a inclusão e para o tensionamento de outras perspectivas de leitura da realidade Nesse sentido a construção do grupo fez com que os próprios serviços tivessem a necessidade de reconhecer as especificidades das mulheres atendidas incentivando os profissionais a mudarem a lógica institucional procurando trabalhar em parceria com as usuárias e não como agentes identificadores de falhas A garantia de acesso às mulheres dos diferentes serviços do CREAS PAEFI Abordagem Social e Medidas Socioeducativas propiciou que houvesse a participação de mulheres em situação de rua com acompanhamento em saúde mental de transexuais entre outras identidades e contextos enriquecendo e complexificando o espaço de discussão Isso fortaleceu a presença desses segmentos frequentemente esquecidos e marginalizados nos espaços disponibilizados pelos serviços públicos Em geral as mulheres avaliaram o grupo como necessário visto a dificuldade de acessar instituições que partam da perspectiva de gênero para acolher suas demandas Por esse ângulo a formação do grupo de crianças foi essencial pois além de oferecer uma rede de apoio que garantisse a participação delas também se constituiu ao longo dos encontros como um local de formação para crianças e adolescentes revelando a precarização dos serviços públicos diante das insuficientes vagas em creches escolas atividades de contraturno escolar e no caso do Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 69 Serviço de Convivência Familiar e Fortalecimento de Vínculos SCFV que permaneceu fechado no município durante o período em que as atividades foram realizadas Fundamental registrar que os desafios estiveram presentes durante todo o processo a interrupção dos lanches que eram partilhados por parte da gestão do município a falta de auxíliotransporte para que as mulheres pudessem se deslocar ao CREASSJ a dificuldade de acessar recursos materiais e de disponibilizar de recursos humanos Relacionado ao último item considerase que houve resistência por parte da equipe multiprofissional do CREAS em participar do desenvolvimento dos grupos Uma das interpretações a que se chegou é que isso ocorreu devido a uma não proximidade com a perspectiva crítica de gênero proposta visto que a temática não é obrigatória nos currículos educacionais das universidades acarretando em limites na atuação profissional Além do mais as capacitações profissionais disponibilizadas no SUASSJ foram insuficientes para suprir as demandas que emergem na realidade de trabalho Portanto há uma negligência das políticas sociais publicas em dispor de recursos que não é comumente evidenciada no processo de trabalho tanto na relação da instituição para com asos profissionais quanto na relação da operacionalização da política para com asos usuáriasos do SUAS Face à isso observouse que os tensionamentos gerados pelas demandas produzidas no grupo de mulheres e de crianças foram deslocados do trabalho desenvolvido já que a opção foi transferir as profissionais que coordenaram as atividades em vez de repensar as práticas instituídas Acerca dessa questão vale ressaltar que quando os serviços que operacionalizam as políticas sociais não resistem ao projeto hegemônico do Estado capitalista incorrem na reprodução da violência enquanto projeto de sociedade Assim usuárias e profissionais são colocadas lado a lado na experiência de desproteção social dentro das políticas públicas do Estado Ou seja os resultados deste trabalho não se desvinculam do atual período histórico brasileiro de retirada dos direitos sociais públicos das minorias políticas No CREAS a violação dos direitos que acometia as mulheres se configurava tanto no âmbito das violências físicas psicológicas sexuais patrimoniais quanto na dimensão das violências estruturais do Estado sexismo racismo classicismo Considerase que o acompanhamento de mulheres pelos serviços da PNAS pode se materializar em mais um espaço de culpabilização e responsabilização dessa população Nesse sentido cabe às profissionais procurar compreender os significados das opressões estruturais e sua relação indissociável com a realidade social das mulheres atendidas buscando por fim desenvolver práticas de trabalho que caminhem na contramão de uma visão liberal e Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 70 colonizadora que sustenta a raiz das diferentes violências institucionais que envolvem as experiências aqui descritas REFERÊNCIAS AKOTIRENE Carla O que é interseccionalidade Rio de Janeiro Letramento 2018 ALVAREZ Sônia E Em que ESTADO está o feminismo latinoamericano Uma leitura crítica das políticas publicas com perspectiva de gênero In FARIA Nalu SILVEIRA Maria L NOBRE Míriam orgs Gênero nas políticas públicas impasses e perspectivas para a ação feminista São Paulo SOF 2000 p 925 Cadernos Sempreviva BANDEIRA Lourdes Brasil fortalecimento da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres para avançar na transversalidade da perspectiva de gênero nas políticas públicas Brasília CEPAL SPM jan 2004 BERBERIAN Thais P Serviço Social e avaliações de negligência debates no campo da ética profissional Serviço Social Sociedade São Paulo n 121 p 4865 janmar 2015 BLOFIELD Merike FRANZONI Juliana Martínez Maternalism coresponsibility and social equity a typology of workfamily policies Social Politics International Studies in Gender State Society v 22 n 1 p 3859 Spring 2015 BRAH Avtar Diferença diversidade diferenciação Cadernos Pagu São Paulo n 26 p 329376 janjun 2006 Disponível em httpsperiodicossbuunicampbrojsindexphpcadpaguarticleview8644745 Acesso em 08 set 2019 BRASIL Constituição 1988 Constituição da República Federativa do Brasil 4 ed São Paulo Saraiva 1990 Promulgada em 5 out 1988 BRASIL Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Secretaria Nacional de Assistência Social Política Nacional de Assistência Social PNAS2004 Brasília DF MDS 2005 Disponível em httpwwwmdsgovbrwebarquivospublicacaoassistenciasocialNormativasPNAS2004pd f Acesso em 12 maio 2018 BRASIL Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome Secretaria Nacional de Assistência Social Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais Brasília MDS 2009 CARVALHO Ivy Ana de O Fetiche do empoderamento do conceito ideológico ao projeto políticoeconômico 2013 Dissertação Mestrado em em Serviço Social Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2013 COSTA Claudia de Lima O tráfico do gênero Cadernos Pagu trajetórias do gênero masculinidades Campinas n 11 p 127140 1998 Disponível em httpsperiodicossbuunicampbrojsindexphpcadpaguarticleview8634468 Acesso em 08 set 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 71 CRENSHAW Kimberlé Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero Revista Estudos Feministas Florianópolis v 10 n 1 p 171188 jan 2002 FOUCAULT Michel O sujeito e o poder 1982 In DREYFUS H RABINOW P Org Michel Foucault uma trajetória filosófica Rio de Janeiro Forense Universitária 1995 FREIRE Paulo Conscientização teoria e prática da libertação uma introdução ao pensamento de Paulo Freire 3 ed São Paulo Cortez Moraes 1980 GELSLEICHTER Mayara Zimmermann Aspectos sociais e de gênero da obesidade em mulheres no serviço de cirurgia bariátrica do HUUFSC 2019 279 p Dissertação Mestrado Universidade Federal de Santa Catarina Centro Socioeconômico Programa de PósGraduação em Serviço Social Florianópolis 2019 Disponível em lthttpwwwbuufscbrtesesPGSS0225Dpdfgt Acesso em 08 set 2019 GILROY Paul O Atlântico negro 2 ed Rio de Janeiro 34 2012 GOMES Fernanda Marcela Torrentes A representação social da mulher na política pública de assistência social 2014 Trabalho de Conclusão de Curso Bacharelado em Serviço Social Universidade Federal de Santa Catarina Florianopolis 2014 Disponível em httpsrepositorioufscbrbitstreamhandle123456789124893Fernanda20Marcela20Tor rentes20Gomes2020TCCpdfsequence1isAllowedy Acesso em 08 set 2019 HANISCH Carol O pessoal é político Tradução livre fev 1969 Disponível em httpsweriseupnetradfemopessoalC389polC3ADticocarolhanish251157 Acesso em 08 set 2019 HENNING Carlos Eduardo Interseccionalidade e pensamento feminista as contribuições históricas e os debates contemporâneos acerca do entrelaçamento de marcadores sociais da diferença Mediações Dossiê Desigualdades e Interseccionalidades Londrina v 20 n 2 p 97128 juldez 2015 KILOMBA Grada Memórias da plantação episódios de racismo cotidiano Rio de Janeiro Cobogó 2019 LISBOA Teresa Kleba Gênero feminismo e Serviço Social encontros e desencontros ao longo da história da profissão Revista Katálysis Florianópolis v 13 n 1 p 6675 janjun 2010 LHULLIER Louise Amaral org Quem é a psicóloga brasileira Mulher Psicologia e trabalho 1 ed Brasília Conselho Federal de Psicologia maio 2013 LUGONES Maria Rumo a um feminismo descolonial Revista Estudos Feministas Florianópolis v 22 n 3 p 935952 set 2014 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 72 MARTINS Alaerte L Mortalidade materna de mulheres negras no Brasil Cadernos de Saúde Pública Reports in public health Rio de Janeiro v 11 n 22 p 24732479 nov 2006 MIGUEL Luis Felipe BIROLI Flávia Feminismo e Política uma introdução São Paulo Boitempo 2014 MIGUEL Luis Felipe Voltando à discussão sobre capitalismo e patriarcado Revista Estudos Feministas Florianópolis v 25 n 3 p 12191237 out 2017 Disponível em httpsperiodicosufscbrindexphprefarticleview39408 Acesso em 08 set 2019 MINAYO Maria Cecília de S Importância da Avaliação Qualitativa combinada com outras modalidades de Avaliação Saúde Transformação Social Health Social Change Florianópolis v 2 n 2 p 211 28 abr 2011 Disponível em httpincubadoraperiodicosufscbrindexphpsaudeetransformacaoissueview193showToc Acesso em 08 set 2019 PAIVA Beatriz ROCHA Mirella CARRARO Dilceane Participação popular e assistência social contraditória dimensão de um especial direito Revista Katálysis Florianopolis v 13 n 2 p 250259 juldez 2010 Disponível em httpsperiodicosufscbrindexphpkatalysisarticleviewS14144980201000020001215118 Acesso em 08 set 2019 PEARCE Diana The Feminization of Poverty Women Work and Welfare Urban and Social Change Review Washington v 11 p 2836 1978 PEDRO Joana Maria Traduzindo o debate o uso da categoria gênero na pesquisa histórica História São Paulo v 24 n 1 p 7798 2005 PISCITELLI Adriana Interseccionalidade categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras Sociedade e Cultura v 11 n 2 p 263273 juldez 2008 Disponível em httpswwwrevistasufgbrfchfarticleview5247 Acesso em 08 set 2019 RIBEIRO Djamila O que é lugar de fala Belo Horizonte Letramento Justificando 2017 RODOVALHO Amara M CIS by TRANS Revista Estudos Feministas Florianópolis v 25 n 1 p 365373 janabr 2017 Disponível em httpsperiodicosufscbrindexphprefarticleview48521 Acesso em 08 set 2019 ROSEMBERG Fúlvia Políticas educacionais e gênero um balanço dos anos 1990 Cadernos Pagu Campinas n 16 p 151197 2001 Disponível em httpsperiodicossbuunicampbrojsindexphpcadpaguarticleview8644544 Acesso em 08 set 2019 SALGADO Martha Patricia C Metodología de la Investigación Feminista Guatemala Centro de Investigaciones Interdisciplinaras en Ciencias y Humanidades CEIHC 2008 SIMÕES Pedro Assistentes Sociais no Brasil um Estudo a Partir das PNADs 1 Ed Rio de Janeiro Epapers 2012 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 73 TEIXEIRA Solange Maria A família na trajetória no Sistema de Proteção Social Brasileiro do enfoque difuso à centralidade na Política de Assistência Social In TEIXEIRA S M A Família na Política de Assistência Social concepções e tendências do trabalho social com família nos CRAS de Teresina PI Teresina EDUFPI 2013 SQUIRE Corinne O que é narrativa Civitas Revista de Ciências Sociais Porto Alegre v 14 n 2 p 272284 maioago 2014 Disponível em httprevistaseletronicaspucrsbrojsindexphpcivitasarticleview17148 Acesso em 08 set 2019 SOARES Suamy Rafaely A feminização da pobreza e as políticas sociais focalizadas nas mulheres um debate a ser repensado Trabalho apresentado na V Jornada Internacional de Políticas Públicas São Luiz MA 2011 Disponível em httpwwwjoinppufmabrjornadasjoinpp2011CdVjornadaJORNADAEIXO2011QUES TOESDEGENEROETNIAEGERACAOAFEMINIZACAODAPOBREZAEAS POLITICASSOCIAISpdf Acesso em 08 set 2019 SWAIN Tania Navarro Feminismo e recortes do tempo presente mulheres em revistas femininas São Paulo em Perspectiva São Paulo v 15 n 3 p 6781 julset 2001 Disponível em httpprodutosseadegovbrprodutossppv15n03v15n0309pdf Acesso em 08 set 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 74 PARA ONDE EU VOU A INSERÇÃO DAS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR NO PROGRAMA HABITACIONAL EM NOVA IGUAÇU RIO DE JANEIRO Roberta Logobuco de Araujo Pereira1 RESUMO Este artigo tem como objetivo analisar os processos que envolvem a inserção das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar atendidas no Centro Especializado de Atendimento à MulherCEAM no Programa Minha Casa Minha Vida do município de Nova Iguaçu localizado no Estado do Rio de Janeiro com vistas a apresentar como têm sido tratadas as demandas postas aos profissionais nos atendimentos A pesquisa seguiu uma abordagem qualitativa e quantitativa por meio de levantamento do perfil das mulheres vítimas de violência atendidas no CEAM e análise dos documentos relativos ao atendimento das usuárias Os resultados demonstram que ainda há muitas dificuldades para inserção das mulheres vítimas de violência se inserirem na Política Habitacional e conclui que as mulheres vítimas de violência apresentam questões que configuram situação de vulnerabilidade social e o enfrentamento das questões sociais como a inserção no Programa Habitacional poderá fazer com que elas reconstruam novos caminhos Palavras Chaves Habitação social Nova Iguaçu Violência doméstica e Mulher INTRODUÇÃO Este trabalho parte de uma reflexão referente à experiência profissional no atendimento às mulheres em situação de violência doméstica e familiar no Centro Especializado de Atendimento à Mulher CEAM de Nova IguaçuRJ Buscouse analisar os processos que envolvem a inserção das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar atendidas no Centro Especializado de Atendimento à MulherCEAM no Programa Minha Casa Minha Vida do município de Nova Iguaçu localizado no Estado do Rio de Janeiro como uma das possibilidades de garantir proteção e autonomia para este público Além de levantamento bibliográfico o estudo utilizou dados das fichas de atendimento do CEAM para traçar o perfil das mulheres vítimas de violência no ano de 2018 que apresentaram como demanda o acesso ao direito à moradia no processo de rompimento de vínculo com o autor da violência De acordo com Lisboa e Pinheiro 2005 a violência contra a mulher tem sido apontada pela Organização das Nações Unidas ONU como uma violação dos Direitos Humanos e como um problema de saúde pública ou seja como uma das principais causas de doenças das 1 Assistente Social Especialização em Assistência Social e Direitos Humanos Pontifícia Universidade Católica PUC 2019 Bacharel em Serviço Social pela UFRJ 2009 Email bethaufrjyahoocombr httplattescnpqbr3143466721611119 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 75 mulheres hipertensão angústia depressão sofrimento psíquico e outras Os dados de um levantamento do Datafolha feito em fevereiro de 2019 encomendada pela ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública FBSP para avaliar o impacto da violência contra as mulheres no Brasil apresentou que nos últimos 12 meses 16 milhão de mulheres foram espancadas ou sofreram tentativa de estrangulamento no Brasil enquanto 22 milhões 371 de brasileiras passaram por algum tipo de assédio Dentro de casa a situação não foi necessariamente melhor Entre os casos de violência 42 ocorreram no ambiente doméstico Após sofrer uma violência mais da metade das mulheres 52 não denunciou o agressor ou procurou ajuda De acordo com o Instituto Patrícia Galvão em quase todas as violências abordadas no Dossiê Mulher 2019 as mulheres pretas e pardas são a maioria das vítimas evidenciando a maior vulnerabilidade deste grupo à violência principalmente às suas expressões mais graves como homicídio doloso 591 tentativa de homicídio 550 e estupro 558 A violência contra a mulher é compreendida para fins deste estudo nas relações de gênero e com análise histórica quanto ao papel da mulher na sociedade Partese portanto da análise histórica das relações desiguais de poder entre homens e mulheres De acordo com o artigo 5º da Lei 1134006 Lei Maria da Penha configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte lesão sofrimento físico sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial Para Scott 1995 p 75 o termo gênero além de um substituto para o termo mulheres nas pesquisas acadêmicas é também utilizado para sugerir que qualquer informação sobre as mulheres é necessariamente informação sobre os homens que um implica o estudo do outro Essa utilização enfatiza o fato de que o mundo das mulheres faz parte do mundo dos homens que ele é criado nesse e por esse mundo masculino Esse uso rejeita a validade interpretativa da idéia de esferas separadas e sustenta que estudar as mulheres de maneira isolada perpetua o mito de que uma esfera a experiência de um sexo tenha muito pouco ou nada a ver com o outro sexo O termo gênero também é utilizado para designar as relações sociais entre os sexos Sendo assim a violência contra a mulher pode ser considerada uma violência de gênero e compreendida nesta perspectiva de desigualdade que a mulher é colocada em relação ao homem Segundo Bourdieu 1999 a dominação masculina exerce uma dominação simbólica sobre todo o tecido social corpos e mentes discursos e práticas sociais e institucionais des historiciza diferenças e naturaliza desigualdades entre homens e mulheres Para Bourdieu a dominação masculina estrutura a percepção e a organização concreta e simbólica de toda a vida Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 76 social Portanto o conceito de violência contra as mulheres que tem por base a questão de gênero remete a um fenômeno multifacetado com raízes históricoculturais que é permeado por questões étnicoraciais de classe e de geração Falar em gênero ou seja em construção social entre os sexos requer do Estado e demais agentes uma abordagem intersetorial e multidimensional na qual as dimensões acima mencionadas sejam reconhecidas e enfrentadas A rede de atendimento faz referência ao conjunto de ações e serviços de diferentes setores em especial da assistência social da justiça da segurança pública e da saúde que visam à ampliação e à melhoria da qualidade do atendimento à identificação e ao encaminhamento adequado das mulheres em situação de violência e à integralidade e humanização do atendimento BRASIL 2011 Em relação específica à questão da moradia em 2016 a lei estadual do Rio de Janeiro Lei n 775716 previu que 4 das vagas nos programas habitacionais do estado fossem destinadas as mulheres vítimas de violência doméstica tráfico de pessoas e exploração sexual concedendo prioridade porém por ser uma Lei Estadual não abrange os municípios e não há ainda uma lei municipal em Nova Iguaçu que possa fornecer cotas às mulheres vítimas de violência A lei federal 12424 de 16 de junho de 20112 prioriza mulheres responsáveis pela unidade familiar nos programas habitacionais contudo a maioria das mulheres vítimas de violência que ainda vivem com o autor não possui renda dependendo financeiramente do mesmo para a sua sobrevivência e ainda o Programa Minha Casa Minha Vida inclui como critério de inserção a comprovação de renda mensal A questão de renda dificulta a aquisição de moradia para mulheres que sequer estão inseridas no mercado de trabalho quando possuem baixa renda e não conseguem pagar o imóvel Famílias com renda de até R 180000 fazem parte da Faixa 1 do Programa Minha Casa Minha Vida A Caixa Econômica Federal responsável pela operação financeira do programa habitacional oferece um financiamento de até 120 meses com prestações mensais que variam de R 8000 a R 27000 conforme a renda bruta familiar3 A situação das usuárias que configuram a amostra deste estudo é compreendida sob a 2 Esta lei altera a Lei no 11977 de 7 de julho de 2009 que dispõe sobre o Programa Minha Casa Minha Vida PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas as Leis nos 10188 de 12 de fevereiro de 2001 6015 de 31 de dezembro de 1973 6766 de 19 de dezembro de 1979 4591 de 16 de dezembro de 1964 8212 de 24 de julho de 1991 e 10406 de 10 de janeiro de 2002 Código Civil revoga dispositivos da Medida Provisória no 219743 de 24 de agosto de 2001 e dá outras providências 3httpwwwcaixagovbrvocehabitacaominhacasaminhavidaurbanaPaginasdefaultaspx Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 77 ótica do que Medeiros e Costa 2008 apresentam como a feminização da pobreza ou seja um fenômeno relacionado com uma mudança nos níveis de pobreza partindo de um viés desfavorável às mulheres ou aos domicílios chefiados por elas Esta questão é de extrema relevância para a compreensão da importância da proteção integral das mulheres vítimas de violência visto a desigualdade social que mulheres ocupam na sociedade em relação aos homens embora tenhamos avanços como a Lei Maria da Penha 1134006 com instrumentos para acolher e prestar assistência à mulher vítima de violência Ainda é necessário traçar rumos que possam ver a mulher vítima de violência em sua totalidade A intervenção através da Política Habitacional juntamente com as outras políticas tornase de suma importância no enfrentamento a violência contra a mulher Este conjunto de setores são relativos às políticas setoriais que funcionam de modo desarticulado fragmentando sobremaneira a o estilhaçadao usuáriao do serviço Sem prescindir a atenção setorial há que se pensar em ações positivas que reestabeleçam a cidadania de sujeitos sociais vitimados nopelo fenômeno POUGY 2005 pp8 O acesso à habitação assegura à mulher um direito importante que deve ser priorizado para melhor efetivação das políticas de enfrentamento a violência contra a mulher A violência contra a mulher é considerada um problema relevante e de alto índice em todo o mundo e discutir a viabilização da prioridade de acesso destas mulheres às políticas públicas setoriais bem como o tratamento do Estado para esta demanda é de suma importância para alçar políticas eficazes na prevenção e na assistência às mulheres em situação de violência Este trabalho se organiza através dos seguintes tópicos além desta introdução apresentase o CEAM campo de realização da pesquisa e que faz parte dos equipamentos incluídos na política de enfrentamento à violência contra as mulheres seguese com o debate sobre a interface da Política de Habitação Social e a Política de enfrentamento a violência contra a mulher e os desafios e limites no atendimento às mulheres vítimas de violência depois se traça breves considerações sem que o tema se esgote neste artigo 1 O CENTRO ESPECIALIZADO DE ATENDIMENTO A MULHER DE NOVA IGUAÇU No dia 22 de agosto de 1998 a prefeitura de Nova Iguaçu através de um termo cooperativo com o Conselho Estadual de Direitos da Mulher do Rio de Janeiro CEDIM implantou o Núcleo Integrado de Atendimento à Mulher NIAM que funcionava ligado a Coordenadoria de projetos especiais onde este órgão era responsável por atendimentos e Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 78 políticas públicas voltadas para mulheres Atualmente estas políticas públicas estão na Coordenadoria de Políticas para Mulheres que é ligada a Secretaria Municipal de Assistência Social SEMAS de Nova Iguaçu O Núcleo de Referência e Atendimento à Mulher passou a ser Centro Especializado de Atendimento a Mulher CEAM no ano de 2016 A Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres atua na formulação elaboração e coordenação de políticas públicas voltadas para a questão de gênero e violência contra a mulher bem como acompanha e executa projetos para garantia e atendimento das demandas no combate das diferentes formas de discriminação e de violência contra a mulher estimulando o exercício pleno das mulheres em articulação com diversos programas e políticas setoriais O programa prioritário da Coordenadoria Especial de Políticas para Mulheres é o CEAM Este realiza acolhimento informa e presta atendimento social jurídico e psicológico às usuárias e atendimento aos seus filhos que possuem problemas psicológicos ou de aprendizagem escolar devido ao fato de presenciarem a violência doméstica contra a genitora Estas crianças e adolescentes são atendidos quando necessário pela Psicologia e Psicopedagogia Também é realizado trabalho em grupo onde são trabalhadas temáticas como empoderamento autoestima gênero dentre outros O CEAM atualmente possui sete salas no segundo andar de um prédio compartilhado com mais dois equipamentos públicos e a equipe é composta por 1 Coordenadora 3 Psicólogas 2 Assistentes Sociais 1 Advogada 1 Psicopedagoga 1 Assistente Administrativa 1 motorista 1 Auxiliar de serviços gerais e 1 porteiro Nova Iguaçu tem a população estimada em 818875 habitantes segundo IBGE E existem mais mulheres do que homens Sendo a população composta de 5206 de mulheres e 4794 de homens O município de Nova Iguaçu possui um alto índice de violência contra as mulheres de acordo com os dados do Dossiê Mulher 2017 a AISP 20 ÁREAS INTEGRADAS DE SEGURANÇA Mesquita Nilópolis Nova Iguaçu quase dobrou o número de mulheres mortas com 29 vítimas em 2016 ou seja 12 homicídios de mulheres a mais do que o total apresentado em 2012 A diferença entre 2015 e 2016 também apresenta aumento de 5 vítimas ratificando a tendência de aumento da violência letal contra a mulher na AISP 20 PROJETO DA COORDENADORIA DE POLÍTICAS PARA MULHERES DE NOVA IGUAÇU 2019 De acordo com o Dossiê Mulher 2019 Nova Iguaçu teve 1043 denúncias de violência contra a mulher em 2018 Os Centros de atendimento as Mulheres têm alta relevância no combate e na erradicação Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 79 da violência contra a mulher possibilitando caminhos e intervenções para romperem com a violência que fora vítima e são considerados como avanços da Política de Enfrentamento a Violência Contra a Mulher sendo implantados após inúmeras reivindicações de movimentos sociais das mulheres Os Centros devem exercer o papel de articuladores dos serviços de organismos governamentais e não governamentais que integram a rede de atendimento às mulheres em situação de vulnerabilidade social em virtude da violência de gênero com os seguintes eixos de direcionamento aconselhamento em momentos de crise atendimento psicossocial aconselhamento e acompanhamento jurídico e atividades de prevenção BRASIL 2006 Os Centros de Atendimento a Mulher podem ser considerados como políticas públicas no que tange ao enfrentamento a violência contra a mulher pois possibilitam autonomia das mulheres em situação de violência desenvolvendo um trabalho através de escuta e orientação como também podem desenvolver um trabalho que potencialize as mulheres a se empoderarem e desenvolverem a autoestima A aplicação de medidas de atendimento ofertadas às mulheres em situação de violência são mecanismos que fazem parte da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher de 2003 onde a partir da Lei 1134006 conhecida como Lei Maria da Penha houve novo dimensionamento para este atendimento priorizando as questões inerentes às mulheres e suas demandas O trabalho da equipe multidisciplinar nos centros de atendimento implica uma perspectiva de assistência integral para as mulheres em situação de violência garantindo direitos e reinserção social visto que muitas acabam se isolando por medo ou vergonha A constituição e formação de equipes técnicas e de apoio responsáveis locais pelo cotidiano dos serviços tão competentemente esboçados pela política nacional e detalhados em normas técnicas específicas que funcionam como grandes diretivas para a feição dos projetos políticos pedagógicos planos e rotinas apresentamse como um importante desafio Não obstante o esforço na capacitação contínua dos agentes há que se constituir um quadro técnico permanente por meio de seleção pública cuja etapa fundamental seja a preparação na área de gênero que englobe conteúdos acumulados por décadas de práticas sociais e restaure as lutas gerais e específicas POUGY 2010 No entanto as políticas de atendimento a mulheres devem ser pautadas no impacto das desigualdades de gênero e fortalecendo as mulheres para o rompimento da violência 2 A INTERFACE DA POLÍTICA DE HABITAÇÃO SOCIAL E A POLÍTICA DE ENFRENTAMENTO A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 80 Em 2018 o CEAM Nova Iguaçu atendeu 177 mulheres que chegaram pela primeira vez ao serviço e 917 atendimentos de retorno 20 mulheres atendidas neste período apresentaram demandas de habitação como uma das estratégias importantes para romperem com o ciclo da violência doméstica A Política de Habitação tem grande relevância na situação de mulheres vítimas de violência pois as políticas setoriais são importantes para o rompimento da violência contra a mulher visando seu empoderamento e garantia de direitos No ano de 2009 o governo Lula lançou o programa Minha Casa Minha Vida cuja intenção era construir um milhão de moradias BOLFE 2014 O Programa tem como objetivo subsidiar a aquisição de imóvel próprio para famílias com renda de até 18 mil reais e facilitar as condições de acesso ao imóvel para famílias com renda superior cuja construção de moradias visava diminuir o déficit habitacional O Programa está inserido em três faixas de renda porém este artigo foca na análise do programa para a faixa de renda 1 devido a situação das mulheres aqui estudadas que apresentam renda de até 18 mil sendo o permitido para esta faixa até 3 salários mínimos O Programa Minha Casa Minha Vida é o primeiro e único programa habitacional delineado para atender às diversas faixas de renda da população brasileira Segundo a Caixa Econômica Federal 2014 em geral o Programa acontece em parceria com estados municípios empresas e entidades sem fins lucrativos De acordo com Maricato 2009 o Programa é uma ação econômica camuflada ao remeter à construção civil o foco da tarefa de geração de postos de trabalho e instrumento de enfrentamento à crise internacional Este programa foi criado com o propósito de encaminhar a participação da iniciativa privada para o setor mais desprovido sócio econômico da sociedade tanto das empresas ligadas ao ramo da construção civil como das empresas ligadas ao financiamento de crédito habitacional que são as Instituições bancárias como por exemplo a Caixa Econômica Federal e o Banco do Brasil Apesar das controvérsias do programa este tem sido a principal ação pública para a questão da moradia de famílias de baixa renda no país Nova Iguaçu possui uma Subsecretaria de Habitação Social onde as demandas atendidas pelo CEAM são encaminhadas porém o município não possui nenhuma legislação que priorize uma determinada porcentagem de vagas para as usuárias na política e a demanda posta é de extrema urgência para a vítima que não possui onde morar e necessita sair de casa como uma das formas de quebrar o ciclo da violência Em 2019 o CEAM a Coordenadoria de Políticas para Mulheres a Subsecretaria de Habitação e a Secretaria Municipal de Assistência Social regularizaram através de acordo interno o atendimento das prioridades para a habitação através de um formulário de Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 81 encaminhamento que visa priorizar a inserção das mulheres vítimas de violência e demais usuários atendidos no CENTRO POP e CREAS4 para terem o direito à habitação Não sendo necessária uma legislação para viabilização de um direito no Município O CEAM identificou diversos motivos que levam as mulheres vítimas de violência doméstica e familiar a permanecerem nas residências com os autores da violência como residência como herança de familiares do autor da violência medidas protetivas de acordo com a lei 1134006 indeferidas dificuldades em fazer o registro de ocorrência por medo do autor da violência dependência financeira para pagamento de casa alugada dentre outras Quando os serviços encontram situações como estas com a ausência de aparato jurídico legal que garanta a prioridade desses casos emergenciais no acesso aos programas e benefícios sociais há dificuldades na garantia do direito colocando a questão da universalidade e da equidade na pauta da formulação das políticas públicas Devido à desigualdade social e a falta de outras políticas que atendam ás necessidades das mulheres e suas famílias muitas são obrigadas a permanecerem na situação de violência ou quando abrigadas pelo Centro Especializado de Atendimento á Mulher em locais sigilosos para mulheres com risco de vida e os profissionais do Serviço Social buscam como porta de saída o Programa Minha Casa Minha Vida para que as mesmas tenham moradia A realidade dos atendimentos é permeada por questões burocráticas de acesso na qual muitas delas retornam para o convívio do autor por não terem condições de se manterem financeiramente e pagar o aluguel e muito menos adquirir a compra de um imóvel As equipes da Coordenadoria de Políticas para Mulheres do Centro Especializado de Atendimento a Mulher da Secretaria Municipal de Assistência Social e da Subsecretaria de Políticas para Mulheres têm alçado propostas propositivas para intervenção nesta demanda onde a garantia destes direitos tem sido priorizadas De acordo com o Plano Nacional de Habitação historicamente a falta de alternativas habitacionais gerada por fatores como o intenso processo de urbanização baixa renda das famílias apropriação especulativa de terra urbanizada e inadequação das políticas de habitação levou um contingente significativo da população a viver em assentamentos precários BRASIL 2010 p5 Para a referida política portanto enfrentar o déficit habitacional acumulado ao longo 4 O Centro Pop é uma unidade pública voltada para o atendimento especializado à população em situação de rua e Centro de Referência Especializado de Assistência Social CREAS é uma unidade pública da política de Assistência Social onde são atendidas famílias e pessoas que estão em situação de risco social ou tiveram seus direitos violados Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 82 de décadas e a demanda habitacional futura representam um desafio de cerca de 31 milhões de novos atendimentos habitacionais até 2023 BRASIL 2006 Embora o governo justifique o déficit habitacional como um problema difícil de solucionar a questão da moradia não é consequência da escassez de elaboração de projetos e legislações que possam dar resposta a esta demanda mas fruto das disputas políticas e econômicas que impedem o acesso aos direitos 3 MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA E AS DEMANDAS PARA A POLÍTICA DE HABITAÇÃO DESAFIOS E LIMITES NO ATENDIMENTO Para a realização efetiva do trabalho do CEAM é necessário articulação entre programas e políticas setoriais através da Rede de Atendimento com recursos para atender as mulheres garantindo acessibilidade nas necessidades e direitos para rompimento da violência para tal são necessários os serviços da Delegacia especializada de Atendimento a Mulher Hospitais Programas Sociais Defensoria Pública Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher dentre outros que se fazem necessários O cotidiano é o espaço que oferece as oportunidades os desafios e os limites para a ação profissional O conhecimento sobre os contornos as potencialidades as demandas e as respostas possíveis é a condição primeira para um exercício profissional competente e comprometido com os usuários Lisboa e Pinheiro 2005 Planejar ações profissionais direcionadas por metas que alcancem intervenções significativas nas vidas das usuárias atendidas bem como dar visibilidade ao trabalho executado trazendo clareza e consistência na prática de trabalho é de suma importância para um atendimento focalizado na demanda da violência contra a Mulher O principal desafio profissional é desenvolver um trabalho propositivo contribuindo de forma positiva para a garantia de direitos e transformação social da população usuária Os limites profissionais são diversos por esbarrarmos em políticas públicas focalizadas e mercadorizadas que não atendem a realidade presente Este trabalho buscou identificar os limites e possibilidades no atendimento do CEAM a 19 mulheres vítimas de violência doméstica e que apresentaram como principal demanda a necessidade de acesso à moradia A pesquisa foi realizada através de abordagem quantitativa e qualitativa onde foram utilizados como material de estudo as fichas de atendimentos das usuárias do CEAM no ano de 2018 Em relação ao perfil das mulheres no que se refere aos tipos de relacionamentos afetivos 4 foram vítimas de violência pelo marido 5 por companheiros 3 por exmaridos 4 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 83 por ex companheiros 2 por irmãos e 1 por exnamorado Quanto ao estado civil as mulheres são solteiras 14 casadas 3 e divorciadas 2 De acordo com dados as situações de violência contra a mulher ocorreram em um relacionamento estável ou seja em situações de casamento ou de união estável Durante séculos as mulheres têm sido tratadas como propriedades de seus maridos pais que exercem atitudes que a inferiorizam e cometem violência as tratando como propriedade Ao se levar em conta que os homens maridos companheiros pais irmãos são os principais agressores das mulheres podese dizer que a violência contra a mulher é também uma forma de violência de gênero Narvaz Koller 2006 p 8 A maioria das mulheres sendo 10 vítimas de violência dentro da amostra analisada tem entre 40 e 50 anos de idade De acordo com o Mapa da Violência Waiselfisz 2015 o ciclo de violência contra a mulher inicia quando ela tem menos de um ano Até os 14 anos os principais agressores são os pais dos 15 aos 59 os agressores passam a ser os parceiros ou exparceiros para então aos 60 ou mais terem como maiores agressores seus filhos Com maior reincidência entre as vítimas de 30 a mais de 60 anos Waiselfisz 2015 Quanto à violência que foram vítimas o estudo identificou que a maioria das mulheres sofreu mais de um tipo de violência sendo que 18 foram vítimas de violência psicológica 15 sofreram violência física 16 sofreram violência moral 15 sofreram violência patrimonial e 6 sofreram violência sexual O artigo 7º da Lei nº 113402006 Lei Maria da Penha descreve os tipos de violência doméstica e familiar contra a mulher da seguinte forma Violência psicológica entendida como qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações comportamentos crenças e decisões mediante ameaça constrangimento humilhação manipulação isolamento perseguição contumaz insulto chantagem exploração e limitação do direito de autodeterminação Violência física compreendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal a violência moral percebida como qualquer procedimento que configure calúnia difamação ou injúria A violência patrimonial entendida como qualquer conduta que configure retenção subtração destruição parcial ou total de seus objetos instrumentos de trabalho documentos pessoais bens valores e direitos ou recursos econômicos incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades A violência sexual entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar a Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 84 manter ou a participar de relação sexual não desejada mediante intimidação ameaça coação ou uso da força que a induza a comercializar ou a utilizar de qualquer modo a sua sexualidade que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio à gravidez ao aborto ou à prostituição mediante coação chantagem suborno ou manipulação ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos Quanto a cor das vítimas estudadas maioria se auto declararam de cor parda 11 seguidas de cor preta 7 e uma ficha não constava o preenchimento do quesito cor e nenhuma mulher se declarou de cor branca As mulheres negras sofrem não apenas na questão da violência doméstica mas também o preconceito racial e ainda a maior parte da população em condição de subalternidade e exclusão é negra enfrentando também a questão de classe Quanto à condição de moradia das mulheres no ano em que foram atendidas responderam a maioria na entrevista social que residem em casa cedida 13 alugada 3 e casa própria 3 sendo que as que disseram residir em casa própria algumas vezes são moradias sem escrituras como posse e outras que teriam que ver juridicamente direitos de permanência porém o medo de ameaças faz com que procurem outro local A maioria das mulheres neste estudo reside em casa cedida onde os proprietários são amigos familiares dela ou do autor da violência ou pertencem ao autor da violência como herança de família na qual elas não possuem direitos por eles terem adquirido antes da união estável ou matrimônio Identificouse que nos casos das usuárias que residem de aluguel muitas vezes quem paga é o autor da violência e por não terem renda suficiente não podem alugar outra casa para romperem com a violência Três das usuárias que fazem parte deste estudo no ano de 2018 apresentavam condição de moradia alugada Quanto ao número de filhos somente 3 mulheres não possuem filhos sendo 8 com 1 ou 2 filhos 5 mulheres possuem de 3 a 5 filhos e 3 mulheres possuem mais de 5 filhos Em 2014 a Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República SPM5 registrou 52975 denúncias de agressões contra mulher no Brasil e de todas as denúncias registradas 80 das mulheres vítimas tinham filhos Muitas mulheres vítimas de violência acabam convivendo com o autor também em virtude dos filhos a preocupação com a moradia e o bemestar deles acabam sendo priorizados Quanto à renda mensal das mulheres o estudo demonstra que recebem Menos de um 5 httpsptorgbrmaessaoprincipaisvitimasdeviolenciadomesticanobrasil Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 85 salário mínimo 11 Sem renda 4 Um salário Mínimo 3 Não sabenão lembra 1 Uma das dificuldades para que as mulheres não abandonem o autor da violência tem a ver com a dependência financeira visto que a maior parte das mulheres possui renda insuficiente para sobrevivência O fato de ganharem pouco ou de terem que depender do companheiro para sobreviver apenas favorece o aumento da vulnerabilidade e do desamparo bem como a diminuição da autoestima dessas mulheres como apontado por Carneiro e Oliveira 2008 As profissões e atividades relatadas pelas mulheres foram Vendedora informal empregada doméstica administradora de empresas garçonete caixa de farmácia do lar auxiliar de serviços gerais estudante e operadora de telemarketing Quanto à escolaridade as mulheres possuem o ensino fundamental incompleto 6 ensino médio completo 8 Ensino Médio Incompleto 2 Ensino Superior Incompleto 1 Superior completo ou mais 1 e Não informado 1 A necessidade de cuidar dos filhos acaba dificultando também para que mulheres possam se inserir no mercado de trabalho formal sendo necessário obrigatoriamente a optarem por serviços com horários mais flexíveis e de forma informal Em revisão da literatura realizada pela Organização Mundial da Saúde OMS não há indícios conclusivos de associação entre condição socioeconômica ou escolaridade indicando que estudos ora apresentam essa associação ora esta não está presente Marinheiro 2006 A baixa escolaridade deixa as mulheres em situação de maior vulnerabilidade social pois dificulta a colocação em mercado de trabalho e favorece os baixos salários A escolaridade também influencia nas condições de subalternidade frente aos companheiros De acordo com a reportagem no RECORD 2014 a violência física atinge 19 das mulheres com curso superior ou mais contra 25 das que têm só o ensino fundamental No entanto as formas de controle ou cerceamento atingem 19 das mulheres com menor escolaridade contra 27 das que possuem diploma superior Os dados demonstram a necessidade de agregar inúmeras políticas para atendimento das questões sociais e econômicas apresentadas pelas mulheres que buscam o CEAM como o desemprego a condição de moradia educação dentre outras Os equipamentos criados pela Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra a Mulher não são suficientes para a resolução dos problemas Apesar de se constituírem como fundamentais na rede de apoio às mulheres é preciso mais investimento do Estado nas políticas públicas e que considerem as particularidades deste grupo específico De acordo com dados da Secretaria de Políticas para as Mulheres órgão do governo Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 86 federal há no país 115 núcleos de atendimento para a mulher vítima de violência 207 centros de referência que oferecem atenção social psicológica e orientação jurídica às mulheres 72 casas abrigo que acolhem as mulheres vítimas de violência doméstica 51 juizados especializados em violência domiciliar e 47 varas adaptadas Existem muitos desafios impostos às mulheres vítimas da violência doméstica e familiar que resolvem romper com o silêncio muitas vezes o senso comum culpabiliza a vítima que continua com o autor da violência porém são inúmeras questões já aqui mencionadas que a colocam nessa condição Vivemos numa sociedade machista e muitas mulheres têm direitos negados o que não lhes dá segurança e um olhar para a possibilidade de um empoderamento Quanto a inserção no Programa Habitacional das usuárias atendidas em 2018 que compõem este estudo poucas foram inseridas no Programa apenas 3 foram inseridas outras usuárias não puderam mais comparecer nos atendimentos do CEAM e não foi possível contato Uma usuária está recebendo o aluguel social e aguardando ser incluída no Programa Habitacional e três aguardam análise bancária e questões burocráticas de documentação da agência bancária Apesar dos avanços nas políticas públicas para mulheres vítimas de violência elas ainda precisam de melhorias manutenção e conquistas No entanto a violência doméstica contra a mulher transfigurou em um objeto de atuação profissional sendo um desafio cotidiano que requer reflexão e intervenção profissional CONSIDERAÇÕES FINAIS Este estudo apresenta contribuições relevantes a uma questão pouco problematizada e estudada referente à demanda específica das mulheres vítimas de violência de se inserirem na política de habitação de forma preferencial levando em consideração suas múltiplas determinações como mencionadas no estudo do perfil das mulheres atendidas no CEAM Constatouse que entre os documentos pesquisados as vítimas são mulheres maduras idade que se segue à juventude solteiras negras moram em casas cedidas são mães e possuem baixa escolaridade e renda inferior a um salário mínimo Verificase que o grande desafio no enfrentamento da violência contra a mulher é a efetivação de uma rede de serviços que agregue os diferentes programas e projetos consolidando uma política social de atendimento Lisboa e Pinheiro 2005 O problema habitacional é objeto de políticas públicas há bastante tempo desde quando as cidades passaram a sofrer com a migração do campo e com o aumento populacional Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 87 No ano de 2009 com a criação do Programa Minha Casa Minha Vida visando facilitar o acesso da população ao direito de moradia este vem no formato mercantil com a inciativa privada e este Programa mesmo com todas as dificuldades de acesso e limitações é a possibilidade para muitas mulheres que desejam romper o vínculo com o autor da violência Na área da habitação e infraestrutura seria importante a geração e o desenvolvimento de políticas públicas inclusivas com o objetivo de garantir recursos que contemplem crédito para a construção de casas para as mulheres que estão nos serviços de Lisboa e Pinheiro 2005 Embora a Lei Maria da Penha tenha medidas protetivas que podem afastar o autor da violência da residência temos este quadro onde na maioria das vezes a mulher é que tem que procurar outro local para residir A reestruturação do campo das políticas para as mulheres tem um enorme desafio tramar a interjurisdicionalidade e a intersetorialidade consorciando ações locais regionais e nacional por meio de pactuação entre os três níveis do poder executivo Em que pese a magnitude das ações políticas gerais sua expressão local a decantada rede de atenção carece de reparos diuturnos na qual o eixo estruturante é produto e processo dos intervenientes do plano legal e político Pougy 2010 As mulheres vítimas de violência apresentam questões que configuram situação de vulnerabilidade social o enfrentamento das questões sociais poderá fazer com que elas superem as situações que lhes causaram danos e assim reconstruam novos caminhos O atendimento dispensado às mulheres em situação de violência doméstica deve ser pautado em estratégias que possam conduzir a superação das violações de direitos pois a acolhida e escuta são de suma importância por envolver uma prática que constrói uma relação com as usuárias de sigilo identificação da situação que lhes fez buscar o atendimento e respostas para as demandas postas sendo um desafio na atual conjuntura com o desmonte das políticas públicas sendo necessário um plano de ação avaliando os riscos estratégias e acompanhamento sistemático pela equipe multidisciplinar de forma propositiva Para onde eu vou Este é o questionamento e a busca incansável de várias mulheres que desejam romper com a violência e a luta diária de profissionais que estão comprometidos com a garantia de direitos desta população usuária REFERÊNCIAS BOURDIEU P A dominação masculina Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1999 BRASIL Lei nº 12424 DE 16 DE JUNHO DE 2011 Legislação Federal Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Ato201120142011LeiL12424htmart1 Acesso em Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 88 11032019 BRASIL Ministério das Cidades Plano Nacional de Habitação Versão para debates Brasília 2010 BRASIL Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as mulheres Brasília SPM 2011 BRASIL Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres Norma técnica de uniformização Centros de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência Brasília 2006 Disponível httpwwwcompromissoeatitudeorgbrwpcontentuploads201301SPM NormaTecnicadeUniformizacaoCRAMs2006pdf Acesso em 03 jun 2019 CAIXA ECONÔMICA FEDERAL Programa Minha Casa Minha Vida Disponível em httpmcmvcaixagovbr Acesso em 22 fev 2019 CARDOSO A e ARAGÃO T A 2011 A reestruturação do setor imobiliário e o Programa Minha Casa Minha Vida In MENDONÇA J G e SHIMBO L Z 2011 Empresas construtoras capital financeiro e a constituição da habitação de mercado In MENDONÇA J G e COSTA H S M orgs Estado e capital imobiliário convergências atuais na produção do espaço urbano brasileiro Belo Horizonte CArte CARNEIRO A OLIVEIRA S Violência intrafamiliar baseada em gênero com implicação de risco de vida mulheres abrigadas na Casa Abrigo Maria HaydeéRio Mulher Rio de Janeiro In XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais ABEP Caxambú MG outubro de 2008 LISBOA TK PINHEIRO EA A intervenção do Serviço Social junto à questão da violência contra a mulher Revista Katálysis Florianópolis v 08 n 02 p 199210 juldez 2005 MARICATO E O Minha Casa é um avanço mas segregação urbana fica intocada Carta Maior maio de 2009 disponível em wwwcartamaiorcombr Acessado em 3 de junho de 2019 MARINHEIRO ALV Vieira EM Souza L Prevalência da violência contra a mulher usuária de serviço de saúde Rev Saude Publica Internet 2006 acesso em 15 jun 2019 40460410 Disponível em httpdxdoiorg101590S0034 891020060005000089GarciaMV Acesso em 3 de junho de 2019 MEDEIROS M COSTA J O que Entendemos por Feminização da Pobreza Centro Internacional da Pobreza 2008 58º ed Disponível em httpwwwipc undporgpubportIPCOnePager58pdf Acessado em 27 de março de 2019 NARVAZ M G KOLLER SH 2006 A concepção de família de uma mulhermãe de vítimas de incesto Psicologia Reflexão e Crítica 193 395406 PINTO RMF et al Condição feminina de mulheres chefes de família em situação de vulnerabilidade social Serv Soc Soconline 2011 n105 pp167179 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 89 POUGY LG II jornada Internacional em Políticas Públicas Mundialização e Estados Nacionais Violência de Gênero e Política de Assistência Social As necessidades sociais de mulheres em situação de violência2005CongressoDisponívelTem httpwwwjoinppufmabrjornadasjoinppIIIhtmlTrabalhos2liliaguimarC3A3es135p df Acesso em 8 de junho de 2018 POUGY LG Direitos humanos democracia e políticas públicas com recorte de gênero In Fazendo Gênero 9 2010 Florianópolis Diásporas Diversidades Deslocamentos Anais Disponível em httpwwwfazendogeneroufscbr9resourcesanais1278273779ARQUIVOTrabalhocom pletoLiliaGuimaraesPougyST591pdf Acesso em 15 de junho de 2019 Pereira RLA 2019 Projeto da Coordenadoria de Políticas para Mulheres de Nova Iguaçu Mimeo Prefeitura Municipal de Nova Iguaçu Nova Iguaçu RJ RECORD 19 das mulheres com diploma sofrem violência física em casa 22 de fevereiro de 2014 Disponível em httpsnoticiasr7comcidades19dasmulherescom diplomasofremviolenciafisicaemcasa04032014 Acesso em 14 de julho de 2019 RUBIN G R BOLFE S A O desenvolvimento da habitação social no Brasil Ciência e Natura Santa Maria v 36 n 2 maiago 2014 p 201213 2014 SCOTT J Gênero uma categoria útil de análise histórica Educação Realidade Porto Alegre v 2 n 20 p juldez 1995 WAISELFISZ J Mapa da Violência 2015 Homicídio de Mulheres no Brasil 2015 Disponível em httpwwwmapadaviolenciaorgbrpdf2015MapaViolencia2015mulherespdf Acesso em 15 de jun de 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 90 A VIOLÊNCIA QUE ROUBA O TEMPO E AS ESCOLHAS DAS MULHERES UMA ANÁLISE SOBRE O TRABALHO DOMÉSTICO NÃO REMUNERADO SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA POLÍTICOFEMINISTA DO CUIDADO Beatriz de Almeida Coelho1 Grazielly Alessandra Baggenstoss2 RESUMO A categoria trabalhador não é universal As questões de trabalho são estruturadas a partir da divisão sexual do trabalho que está na base da produção de gênero com interseccionalidade nas questões de raça e de classe O cerne desta pesquisa pretende analisar a conexão entre a divisão sexual do trabalho e o tempo de trabalho das mulheres Levando em consideração a forma como o sistema capitalista estrutura as relações de trabalho produtivo com o trabalho reprodutivo questionase Qual é o impacto das atividades domésticas não remuneradas no tempo e na vida das mulheres a partir da perspectiva de uma Teoria PolíticoFeminista do Cuidado Para responder o problema da pesquisa foi utilizada uma abordagem qualitativa e revisão bibliográfica narrativa Constatase que o trabalho para obtenção de lucros não pode existir sem o trabalho de reprodução social não remunerado Só que em contrapartida dá pouco ou nenhum valor a ele Quer dizer chegouse à hipótese de que a desvalorização do trabalho doméstico serve à manutenção do formato de produção do capital Avançando na teoriapolítico feminista do cuidado vêse que o controle sobre o tempo das mulheres responsabilizadas exclusivamente pelas atividades do processo do cuidado é exercido a partir de duas perspectivas no sentido coletivo através do controle sobre os planos de vida e em sentido individual mediante a dependência financeira A análise do que se passa nos espaços privados é significativa para entender a dinâmica social Se as relações de poder nesses espaços destoam de valores de referência igualitários existe um problema Palavraschave Trabalho doméstico não remunerado Reprodução social Feminismos Divisão sexual do trabalho INTRODUÇÃO O cenário é o seguinte é domingo e a família se reúne à mesa para almoçar a comida feita pela mãe Todos comem Os homens sentam no sofá Elas devem guardar a comida que restou e lavar as louças sujas Segundo a última pesquisa do IBGE as mulheres trabalham em média 209 horas semanais nos afazeres domésticos enquanto os homens trabalham apenas 1 Advogada Mestranda em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina Pesquisadora Grupo de PesquisaCNPq Lilith Nucleo de Pesquisas em Direito e Feminismos almeidacoelhobeatrizgmailcom httplattescnpqbr9599053140306671 2 Professora Doutora em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina Doutoranda em Psicologia na Universidade Federal de Santa Catarina Pesquisadora Líder do Grupo de PesquisaCNPq Lilith Nucleo de Pesquisas em Direito e Feminismos grazyabgmailcom httplattescnpqbr5153671954706971 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 91 111 horas Outra pesquisa3 de 2015 constatou que 82 das tarefas domésticas ainda são realizadas por elas Enganase portanto quem pensa que essa estrutura ficou no passado É só parar para pensar como acontece nas casas dos brasileiros Muito além dos dados a proposta é ultrapassar os números para te perguntar o assunto está sentado na sala da sua casa Em algum momento da sua vida uma mulher fez o seu jantar lavou sua roupa e te proporcionou usar o tempo para estudar trabalhar e se desenvolver pessoalmente Porque é na vida que nos encontramos quem lê quem pesquisa e quem escreve Como disse Ângela Davis 2016 por mais impressionante que qualquer estatística possa parecer ela não é sequer uma estimativa da atenção constante e impossível de ser quantificada que as mães precisam dar às suas crianças Assim como as obrigações maternas de uma mulher são aceitas como naturais o infinito esforço como dona de casa raramente é reconhecido no interior da família Por essa razão Márcia Tiburi 2018 sugere que não podemos pensar na questão das mulheres sem pensar no trabalho principalmente porque o trabalho é uma necessidade que a civilização capitalista nos impõe E a problematização da conexão entre gênero e trabalho nos permite questionar categorias e métodos que aprendemos a considerar neutros SOUZA LOBO 1991 p 149 Nessa perspectiva precisamos analisar onde como e quando as mulheres trabalham Porque não é exagerado se falarmos que desde que nasce uma menina está condenada a um tipo de trabalho que se parece muito com a servidão e que em tudo é diferente do trabalho remunerado ou dependendo da classe social a qual se pertence o trabalho que se pode escolher TIBURI 2018 Em diferentes contextos lugares países e culturas mulheres em idades distintas trabalharão para homens de sua família Serão apenas por serem mulheres submetidas ao trabalho doméstico Desde à infância entre panelinhas corderosa e bonecas para alimentar as mulheres são educadas para os enlaces romantizados dessas tarefas Apresentamlhes o casamento como plano único de sucesso e não como uma possibilidade de vida E mesmo quando mais tarde tiver um emprego fora de casa a maior parte das mulheres trabalhará mais do que os homens porque acumularão o trabalho remunerado com o não remunerado Com pouco ou nenhum tempo para desenvolverem outros aspectos da própria vida A questão central está também em acreditarem que isso é natural como se fosse uma predisposição biológica que acompanha as mulheres TIBURI 2018 3 Disponível em httpswwwcartacapitalcombrsociedademulherestrabalham75horasamaisdoqueos homensdevidoaduplajornada Acesso em 10072019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 92 Há uma exploração que se efetiva porque o trabalho doméstico é realizado por mulheres Mas isso não significa que a exploração seja aplicada nas mesmas condições a todas as mulheres É que a divisão sexual do trabalho dita as regras ao trabalho doméstico mas o faz de maneiras distintas e afeta as mulheres de forma e em graus desiguais levando em consideração o fator de classe e de raça Por essa razão que Saffioti 2013 p 133 destaca a concentração de renda como componente incontornável das hierarquias se as mulheres da classe dominante nunca puderam dominar os homens de sua classe puderam por outro lado dispor concreta e livremente da força de trabalho de homens e mulheres da classe dominada É que as mulheres são impactadas de maneiras distintas pela atribuição distinta das responsabilidades A ideia de que as mulheres entraram no mercado de trabalho nas últimas décadas não se aplica àquelas mulheres que nunca tiveram a possibilidade de não fazer parte dele Ainda que isso significasse uma antecipação da problemática atual de acúmulo de trabalho doméstico com trabalho mal remunerado BIROLI 2015 Entre as camadas mais pobres da sociedade há muito o trabalho das mulheres fora de casa representava mais uma estratégia familiar de sobrevivência menos normas de gênero Nesse contexto o documentário Babás produzido e dirigido por Consuelo Lins traz a foto de um bebê branco no colo de sua ama de leite A informação se constata sem nada dizer porque para ter direito à foto a mulher certamente amamentou a criança desde os primeiros dias de vida O menino se apoia nela com afeto e intimidade Provavelmente ela transferiu a ele o amor pelos filhos que lhe foram tirados para que pudesse ser ama de leite O historiador Luiz Felipe Alencastro afirmou que nosso país deve caber nessa foto Não sei se quase todo Brasil cabe nessa imagem Mas da história de muitas famílias brasileiras certamente faz parte O ponto aqui é que as desvantagens que atingem as mulheres não são suficientes para que se constitua um grupo de interesses homogêneos O gênero não se configura de maneira independente em relação à classe e à raça Mas também não é apenas um acessório não relevante dessa equação É nesse panorama que se pretende analisar a conexão entre a forma como é feita a divisão sexual do trabalho e o tempo de trabalho das mulheres Questionase portanto qual é o impacto das atividades domésticas não remuneradas no tempo e na vida das mulheres a partir da perspectiva de uma Teoria PolíticoFeminista do Cuidado Partindose de tal objetivo utilizarseá uma abordagem qualitativa e revisão bibliográfica narrativa Em primeiro lugar será brevemente abordada a divisão sexual do trabalho no centro da dinâmica de opressão das mulheres e da produção do gênero Tudo isso a Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 93 se verificar o real valor social do trabalho doméstico não remunerado Sempre conectando a discussão à intersecção da produção do gênero com questões de classe e raça especificamente em relação a esse tipo de trabalho Avançase na discussão para conectar a divisão sexual do trabalho à produção das vulnerabilidades que constrangem estruturalmente as possibilidades de vidas das mulheres Por fim adentrouse à teoriapolítico feminista do cuidado a partir do qual foram esclarecidos os efeitos coletivos e individuais de se responsabilizar exclusivamente às mulheres pelas atividades do processo de cuidado 1 O VALOR SOCIAL DO TRABALHO DOMÉSTICO NÃO REMUNERADO Ao contar a história do trabalho revelase a construção histórica e determinante da divisão sexual do trabalho Podese começar com o limite do direito das mulheres de trabalhar fora de casa restringindose apenas à produção para auxiliar seus maridos Qualquer trabalho feito por mulheres era considerado não trabalho Não possuía valor econômico mesmo quando voltado para o mercado FEDERICI 2017 O passo seguinte foi definir todo trabalho feminino quando realizado em casa como tarefa doméstica E mesmo quando realizado fora de casa era dado um valor menor do que o trabalho masculino Nunca era remunerado o suficiente para que as mulheres pudessem sobreviver desta renda FEDERICI 2017 A produção foi transferida para as fábricas minas e escritórios Nesses lugares foi considerada econômica e remunerada com salários em dinheiro A reprodução social por outro lado foi relegada à família em que foi feminizada e sentimentalizada definida como cuidado em oposição à trabalho e realizada por amor em oposição ao dinheiro ARRUZZA 2019 Em decorrência da dependência financeira o casamento virou a carreira das mulheres E o contrato de casamento virou um contrato de trabalho O contexto aqui é da mulher branca e de classe média ou alta possivelmente europeia É que tornarse esposa implica em tornarse donadecasa ou seja a esposa é alguém que trabalha para seu marido de forma não remunerada no lar conjugal PATEMAN 1993 Quando se adicionam as atividades sexuais como atribuições da mulher casada dizse que se um homem casa com sua empregada doméstica ou com uma prostituta os mesmos trabalhos não serão mais remunerados BIROLI 2016 No contexto do pensamento anglocentrado ao longo do tempo contudo a família assumiu diferentes formas A partir do surgimento de demandas por força do trabalho o sistema do capital interferiu na manutenção do sistema patriarcal As mulheres tiveram que sair de casa para trabalhar e suprir essa necessidade Contudo foi a privatização do trabalho das mulheres imposta pelo sistema patriarcal que tornou a mão de obra feminina mais barata se comparadas Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 94 a dos homens Assim surgiram as duplas ou triplas jornadas das mulheres que se mantiveram responsabilizadas pela vida doméstica WALBY 1990 Nesse contexto que surge a crise da reprodução social O trabalho de reprodução social não tem seu valor reconhecido e é tratado como uma dádiva gratuita e inesgotável Presumese que sempre haverá energia suficiente para produzir seres humanos que serão mão de obra e sustentar as relações sociais das quais a produção econômica depende E a forma atual neoliberal de capitalismo está mostrando exatamente o contrário ao expor suas principais provedoras à longas e cansativas jornadas de trabalho mal remuneradas está esgotando sistematicamente as capacidades individuais e coletivas para reconstituir os seres humanos e para sustentar os laços sociais ARRUZZA 2019 À primeira vista essa estrutura pode parecer estar destruindo a divisão de gênero entre mão de obra produtiva e reprodutiva Proclamase o novo ideal de família com dois salários Só que esse ideal é fraudulento É verdade que uma pequena parte das mulheres extrai algum benefício do neoliberalismo quando ingressa em profissões de prestígio A ampla maioria entretanto é exposta a algo diferente é submetida ao trabalho precário e mal remunerado Inclusive o trabalho das mulheres é sempre remunerado de forma menor que o dos homens Outra consequência é a comoditização de parte do trabalho de reprodução que antes era realizado sem remuneração ARRUZZA 2019 Contudo todas essas consequências por certo não emancipam as mulheres Pelo menos não em sentido coletivo A maioria das mulheres ainda é exposta ao trabalho de reprodução social só que agora no segundo turno E o trabalho assalariado feminino não é libertador Por ser mal remunerado não é suficiente para pagar a autonomia e autorrealização das mulheres O que esse trabalho oferece de fato é a exposição e a vulnerabilidade ao abuso e ao assédio ARRUZZA 2019 Descobrimos que o macacão de trabalho não nos dá mais poder que o avental muitas vezes ainda menos porque agora nós temos que vestir ambos e por isso nos sobrou menos tempo e energia para lutar contra eles FEDERICI 2019 Por isso que se diz que a família é institucionalização do trabalho não remunerado e da dependência financeira que as mulheres têm em relação aos homens Quer dizer é a institucionalização da divisão desigual do trabalho que disciplina as mulheres E também disciplina os homens na condição de provedor da família Uma situação emblemática é o caso de Luo mãe taiwanesa que abriu um processo em 2017 contra seu filho reivindicando uma indenização pelo tempo e pelo dinheiro que investiu na criação dele Luo criou os dois filhos sozinha tendo sido responsabilizada por todos os aspectos da vida deles inclusive os custos da faculdade de odontologia de ambos Em troca Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 95 esperava que os filhos cuidassem dela na velhice Quando um dos filhos não satisfez sua expectativa ela o processou Em decisão inédita a Suprema Corte de Taiwan determinou que o filho pagasse 967 mil dólares à mãe como custo de sua criação O caso de Luo ilustra três aspectos fundamentais sobre o trabalho doméstico O primeiro é o pressuposto universal humano que o capitalismo prefere ignorar e esconder que são necessários muitos recursos e muito tempo para dar à luz cuidar e manter seres humanos Enfatiza em segundo lugar que muito desse trabalho de criar e manter seres humanos ainda é feito por mulheres E por último expõe que no curso normal a sociedade capitalista não confere nenhum valor a esse trabalho mesmo dependendo dele Quer dizer a história enfatiza um imperativo com elementos que estão entrelaçados e ao mesmo tempo estão em lados opostos o trabalho para obtenção de lucros não poderia existir sem o trabalho não remunerado de produção de pessoas E em contrapartida dá pouco ou nenhum valor a ele ARRUZZA 2019 2 REPRODUÇÃO SOCIAL E O CAPITAL O trabalho de produção de pessoas é o que se denomina de reprodução social que abrange todas as atividades que sustentam os seres humanos como seres que possuem corpos e que não precisam apenas comer e dormir mas também criar suas crianças cuidar de suas famílias e manter comunidades Tudo isso enquanto perseguem esperanças para o futuro ARRUZZA 2019 Silvia Federeci 2019 distingue o trabalho de produção de pessoas em relação aos outros tipos de trabalho que são remunerados pelo fato de que ele foi imposto às mulheres e transformado em um atributo natural da psique e da personalidade femininas Ele foi transformado em um atributo natural em vez de ser reconhecido como trabalho Só assim o capital encontrou justificativas para convencer as mulheres a trabalhar sem remuneração E justamente essa condição não remunerada do trabalho tem sido a arma mais poderosa para fortalecer o senso comum de que trabalho doméstico não é trabalho e portanto impedir que as mulheres lutem contra essa condição O capital matou dois coelhos com uma cajadada só Primeiro obteve grande quantidade de trabalho quase de graça e assegurou que as mulheres procurariam esse trabalho como fosse o sentido de suas vidas Ao mesmo tempo disciplinou os homens a tornar sua esposa dependente de seu trabalho e de seu salário e o aprisionou nessa disciplina Toda vez que um homem pensar em sair dessa condição terá que lembrar que é através dela que consegue o Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 96 sustento de toda família Criouse portanto um dos atributos da masculinidade tóxica que é a necessidade de o homem ser o provedor da casa FEDERICI 2019 É imprescindível ainda reforçar que o capital explorou a capacidade reprodutiva do corpo da mulher negra a partir de um sistema de propriedade privada esses corpos que foram escravizados eram considerados mercadorias o que consolida as relações de classe capitalistas COLLINS 2000 Nesse sentido no contexto pátrio Gonzalez 1984 traz que para a consolidação dos sistemas do capital as relações familiares dos corpos escravizados foram rasgadas a partir do desmembramento de diversas famílias e pela violência de imposição de novos nomes e novas línguas às pessoas escravizadas o que promovia a facilitação do controle dos corpos ao sistema que era implantado Mesmo após a abolição da escravatura dentre outros fatores e a exemplo do que Davis 2016 ensina houve o controle dos corpos das mulheres negras com a oferta de trabalho doméstico e de ama de leite em situação análoga à escravidão E muito embora isso não resulte em um salário às mulheres o trabalho de reprodução social produz o produto mais precioso que existe no mercado capitalista a força de trabalho Muito mais do que limpar a casa Servese os trabalhadores remunerados de forma física emocional e sexual preparandoos para o trabalho dia após dia Cuidase das crianças que são os trabalhadores do futuro Amparandoas desde o nascimento garantindo que os desempenhos escolares estejam de acordo com o que se espera Esse é um trabalho oculto FEDERICI 2019 A comunidade é essencialmente o lugar das mulheres no sentido de que é ali que elas aparecem e realizam seu trabalho diretamente Mas a fábrica é igualmente o lugar onde é incorporado o trabalho das mulheres que não aparecem ali e que transferiram o trabalho das mulheres aos homens que lá estão Similarmente a escola também incorpora o trabalho das mulheres que não aparecem ali mas que transferiram o seu trabalho aos alunos que retornam todas as manhãs alimentados bem cuidados e com a roupa passada pela mãe DALLA COSTA Mariarosa Comunidade fábrica e escola na perspectiva da mulher 1972 Esses constrangimentos materiais que constituem as escolhas feitas pelas mulheres devem ser situados numa dinâmica social em que são produzidas e não explicadas numa perspectiva individual É que as motivações das escolhas se apresentam às mulheres como desdobramentos das estruturas em que estão configuradas PATEMAN 1993 A divisão sexual do trabalho tem um caráter estruturante Daí porque a produção dos modelos de trabalho doméstico não remunerado pautada na divisão sexual do trabalho é a base fundamental sobre a qual se assentam as hierarquias de gênero O trabalho que as mulheres desempenham no cotidiano das atividades domésticas e na Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 97 criaçãomanutenção de seres humanos libera os homens para que se engajem no trabalho remunerado com dinheiro Por trás do empregado de sucesso ou do pesquisador produtivo existe uma mulher que mantém as suas necessidades de pessoa corporificada Que cozinha o alimento para matar a forme Que limpa a sujeira Que lava a roupa suja Muitas vezes essa mulher não tem uma carreira profissional Quando tem produz menos Porque divide o tempo de produção com as tarefas relativas à reprodução social O capital leva em conta o quanto menos a mulher produz mas não leva em consideração o tempo que gasta nas atividades domésticas É comum nos depararmos com argumentos de que essa estrutura ficou para trás que é coisa do passado De fato a nova consciência associada ao movimento feminista contemporâneo encorajou um número crescente de mulheres a reivindicar que seus companheiros ofereçam algum auxílio no trabalho doméstico Muitos homens já começaram a colaborar com suas parceiras em casa alguns deles ainda que poucos até devotando o mesmo tempo que elas aos afazeres domésticos Contudo a questão principal é quantos desses homens se libertaram da concepção de que as tarefas domésticas são trabalho de mulher Quantos deles não caracterizariam suas atividades de limpeza da casa como uma ajuda às suas companheiras E a explicação pode estar no conceito de carga mental Se compararmos a família com uma grande empresa veremos que são as mulheres na grande maioria que gerenciam e planejam as tarefas Por mais que os homens realizem as tarefas domésticas planejar e garantir que todas as tarefas se encaminhem é responsabilidade da mulher Fazer a lista da feira verificar se falta arroz para o almoço conferir o tamanho das roupas dos filhos agendar consultas médicas são tarefas atribuídas exclusivamente às mulheres Com efeito as regulamentações legais os aparelhos estatísticos e em muitos casos a literatura científica limitam o conceito de trabalho ao trabalho remunerado que é exercido a título de atividade profissional Nessa perspectiva o valor do tempo restringese exclusivamente a tempo de trabalho associado à produção Isto é aquelas tarefas que são trocadas por moeda Quando se remunera com dinheiro PERISTA 2002 E por consequência uma parte significativa do trabalho sobretudo do trabalho das mulheres é tornada invisível para a sociedade para as estatísticas e para as contas nacionais Que é todo o trabalho em que não há troca por dinheiro associado à reprodução à execução de tarefas domésticas e de prestação de cuidados tarefas às quais não é atribuído um valor social quiçá econômico E que normalmente sequer são reconhecidas como trabalho PERISTA 2002 Não é à toa que se diz que as tarefas domésticas são praticamente invisíveis Ninguém as percebe exceto quando não são feitas Notase a cama desfeita mas não o chão varrido Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 98 Tendo a divisão sexual do trabalho caráter estruturante ela não é a expressão das escolhas de homens e mulheres mas constitui estruturas que são construídas a partir da responsabilização desigual pelo trabalho doméstico E o ciclo é favorável à reprodução Veja se essas estruturas correspondem às possibilidades de atuação na medida em que constrangem as hipóteses com base em argumentos baseados na natureza em aptidões que são inerentes aos homens e às mulheres e fundamentam as formas de organização da vida E os efeitos são ciclos viciosos que se reforçam mutuamente Como o capitalismo atribui o trabalho reprodutivo sobretudo às mulheres interfere no acesso das mulheres ao tempo livre e ao tempo de desenvolvimento pessoal A capacidade de participar plenamente do trabalho produtivo é restrita O resultado é simples a maioria das mulheres acaba em empregos mal remunerados insuficientes para sustentar uma família Inclusive a dependência financeira pode explicar a dificuldade das mulheres de saírem de relacionamentos abusivos Há aqui a violência ambivalente primeiro a dependência de relações pessoais e em segundo lugar a dependência aos promotores do capital O sistema é todo interligado as mulheres têm menores chances de assumirem posições de alta relevância social e consequentemente não podem influenciar decisões e produzir normas que as afetam diretamente Continuando o sistema cíclico esses obstáculos contribuem para a manutenção do status quo visto que dessa forma é mais difícil para as mulheres se libertarem dessas correntes A família permanece portanto como fator principal da produção do gênero e da opressão às mulheres a partir da produção e da manutenção das vulnerabilidades Há sem dúvidas conexão entre essas vulnerabilidades e a divisão sexual do trabalho que constrange estruturalmente as possibilidades que são apresentadas às mulheres O que se vê é que a divisão sexual do trabalho é a base para a opressão das mulheres o gênero é produzido na forma da exploração do trabalho e da vulnerabilidade relativa que é concebida Isto é as diferenças que definem a dicotomia femininomasculino embora supostamente sejam codificadas como correspondentes ao sexo biológico decorrem da atribuição distinta de habilidades e tarefas construídas aos homens e às mulheres E essas diferenças são utilizadas para justificar as desvantagens econômicas das mulheres WILLIAMS 2010 A divisão sexual do trabalho está ancorada na naturalização de relações de autoridade e subordinação que são justificadas por teorias biológicas Em ato contínuo são ensinadas restrições definidas pelo gênero pela raça e pela classe social que fazem as escolhas serem conformadas Dessa forma distribuise desigualmente as responsabilidades incentivam o acesso a determinadas ocupações enquanto dificultam o acesso a outras BIROLI 2016 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 99 E as restrições se estabelecem na forma de opressões cruzadas na convergência entre gênero classe e raça Sem que se leve em conta as relações de gênero é impossível explicar porque as vulnerabilidades são maiores entre as mulheres Sem que se leve em conta as relações de classe e de raça é impossível compreender porque as mulheres estão em posições assimétricas nas hierarquias que as definem BIROLI 2016 3 A TEORIA POLÍTICOFEMINISTA DO CUIDADO Adentrase neste tópico à Teoria PolíticaFeminista do Cuidado Sem a pretensão de esgotar todas as teorias buscase apenas contextualizar a questão do tempo das mulheres destinado às tarefas domésticas não remuneradas à existência de uma teoria política do cuidado Isso tudo para demonstrar a existência de relações de poder que permeiam as atividades domésticas as possibilidades de escolha e a utilização do tempo das mulheres mormente no que diz respeito à exposição dos limites que as responsabilidades do cuidado impõem às mulheres Em um movimento de criticar o androcentrismo dos estudos precedentes Carol Gilligan introduziu a questão de gênero no campo da teoria do cuidado através da dinâmica de ouvir a voz diferente as diferentes vozes das mulheres sobre suas experiências que antes não eram ouvidas Como metodologia utilizouse de entrevistas semiestruturadas com mulheres e homens que incluíam questões sobre experiências pessoais com conflitos e escolhas Em geral o raciocínio das mulheres denotava uma preocupação com o contexto de onde os problemas surgiam e uma tendência de resolvêlos a partir da preservação das relações pessoais O que emergia uma ética atenta às necessidades das pessoas que foi definida como Ética do Cuidado e da Responsabilidade GILLIGAN 1982 Uma especial atenção foi dada ao dilema de Heinz e mais precisamente à resposta de Amy uma adolescente a respeito desse problema Tratavase de uma situação em que a esposa estava extremamente doente e o marido estava sem disposição para auxiliála A atenção da garota se voltou ao contexto relacional da situação o que fazer quando um membro da sociedade não mede as consequências das suas ações sobre a vida de outra pessoa Desviou portanto o foco do ponto que havia sido proposto deixando de ser uma questão lógico matemática ZIRBEL 2016 Amy entendia o mundo como constituído por relacionamentos entre pessoas e não um sistema de pessoas isoladas A consciência da conexão entre as pessoas fazia com que acreditasse na responsabilidade de uns pelos outros e da necessidade de responder à necessidade de alguém GILLIGAN 1982 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 100 Ao final do estudo ao relacionar as perspectivas das mulheres às dos homens Gilligan concluiu pela existência de dois modos de pensar de duas experiências diferentes a primeira delas representa a tradição teórica centrada nas vozes dos homens de um raciocínio centrado na justiça e na lei a segunda representa a ética presente nas vozes das mulheres em um raciocínio centrado no cuidado e na manutenção das relações ZIRBEL 2016 Uma das críticas feitas à teoria de Gilligan é de que sua concepção pode levar ao risco do conservadorismo Quer dizer que a defesa da voz diferente levaria à manutenção da submissão das mulheres na sociedade e à prevalência do estereótipo de que a mulher nasceu para cuidar de pessoas Esse é o ponto levantado por Antony 2012 de que o modelo moral da voz diferente se assenta na reivindicação de diferenças essenciais entre homens e mulheres na forma de pensar sobre os problemas morais Por essa razão correse o risco de sustentar um essencialismo na forma de pensar os gêneros de que há diferenças inevitáveis entre homens e mulheres Em contraponto apresentase de que a defesa à voz diferente feita por Gilligan não tem a finalidade de sustentar uma forma de essencialismo de gênero de que a mulher se caracteriza e se diferencia do homem por ter uma voz moral essencialmente diferente Mas ao contrário Objetiva mostrar como as vozes diferentes são formadas numa sociedade patriarcal A explicação não é biológica mas psicológica Atrelase ao processo de formação e aprendizagem da individualidade de meninos e meninas em tenra idade KUHNEN 2014 Grande questão da teoria do cuidado é sobre o conceito de autonomia visto que há a necessidade de ampliar as possibilidades de escolhas das mulheres quanto a seus projetos de vida Dito de outro modo de tornaremse pessoas autônomas E a partir daí conseguem entender as dinâmicas de opressão e lutar contra elas MACKENZIE STOLJAR 2000 As principais críticas ao conceito tradicional de autonomia portanto é que ele se dá em meio a uma simbologia abstrata e idealizada Uma simbologia que se assenta na dualidade descritiva e prescritiva de gênero autonomiamasculina versus dependênciafeminina A partir disso o homem deve ser autônomo independente e autoconfiante e deve direcionar todos os esforços para a maximização de seus ganhos pessoais Marilyn Friedman 2003 defende que o conceito de autonomia deve ser repensado para se tornar realmente relevante para as mulheres chegando ao conceito relacional de autonomia Esse conceito permite englobar noções de interdependência e vulnerabilidade É importante pensar portanto no conceito de autonomia desenvolvido por Meyers 2000 que permite a aplicação inclusive em realidades que a pessoa está atrelada a formas de relacionamento e tradições que lhe condicionam de forma profunda Mesmo em relações de Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 101 dependência É que as relações de dependência foram historicamente usadas para desqualificar determinados indivíduos autorizando atitudes colonialistas ou paternalistas em nome de crenças contrárias ao desenvolvimento da autonomia Daí que se entende que a autonomia é uma competência que compreende diferentes habilidades que envolvem autoconhecimento e autodirecionamento e que só acontecem no contexto de relações sociais Não se pode ser totalmente autônomo sem compreender as maneiras pelas quais somos constituídos na interação com outras pessoas a partir de grupos significativos e significantes como os marcadores sociais de gênero raça etnia classe e orientação sexual Friedman 2003 aprofunda o conceito ao explorar os aspectos disruptivos da autonomia relacional que resultam em desconexão Quer dizer que faz parte da liberdade e da capacidade decisória da pessoa autônoma decidir se heranças sociais importam E assim elas só serão válidas se a pessoa decidir que valem Isso porque existem relacionamentos que podem promover o desenvolvimento da competência da autonomia enquanto outros relacionamentos impedem esse desenvolvimento A ruptura portanto costuma acontecer quando a pessoa pondera sobre os efeitos nocivos das relações sociais em que se encontra A forma como produzirá o afastamento necessário para ponderar a esse respeito é outra questão A teoria do cuidado também reivindica que certos tipos de relações como as relações de dependência geram responsabilidades e deveres Quando atenta às questões de gênero a teoria leva em conta a experiência moral e prática de milhares de mulheres que tiveram ao seu encargo atividades de cuidado especialmente vivenciadas na esfera familiar Essas atividades foram exercidas de forma não remunerada e recebem pouca estima social ao ponto de ao serem exercidas fora da esfera doméstica e sob remuneração foram assumidas por mulheres de camadas sociais desvalorizadas em troca de baixíssimos salários ZIRBEL 2016 Conforme as pesquisas avançaram foise estabelecendo uma linha de raciocínio sobre desigualdade de poder e relações de dependência envolvendo as atividades de cuidado A partir de então utilizouse o cuidado como um operador crítico às teorias políticas tradicionais ZIRBEL 2006 Quer dizer a conexão entre ética do cuidado e feminismo levou as discussões sobre o cuidado a um patamar político especialmente porque expuseram os limites que as responsabilidades do cuidado impuseram sobre as mulheres Por essa razão tratase de uma teoria políticofeminista do cuidado Enfrentar a má distribuição das atividades de cuidado entre a população adulta capaz de exercêlas é um dos principais desafios dessa teoria Nesse contexto foram exibidas as estruturas sociais injustas que conectam o mundo privado do mundo público E de igual forma passouse a discutir a necessidade e a responsabilidade que afeta e Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 102 deve ser exercida por todos Para uma teoria políticofeminista as relações de cuidado e as relações de poder estão intimamente relacionadas ZIRBEL 2006 E o cuidado não pode ser descrito como um conjunto de tarefas É um processo E como característica de todos os processos o tempo é um aspecto fundamental No processo de cuidar o tempo é onipresente É preciso investir e coordenar o tempo ZIRBEL 2006 A responsabilidade pelo cuidado nas relações pessoais especialmente familiares traz à tona o tema do uso do tempo Enquanto o sujeitohomem individualizado é visto como alguém que faz escolhas do que fazer com o seu tempo livre o sujeitomulher interdependente das teorias do cuidado precisa conciliar o trabalho produtivo e tempo livre com o cuidado de si e dos demais membros da família ZIRBEL 2016 Na luta para conciliar responsabilidades de cuidado com trabalho remunerado milhares de mulheres têm se submetido ao que foi denominado de desclassificação ocupacional que nada mais é do que a escolha de empregos preponderantemente informais abaixo do seu nível de competência com baixos salários e condições precárias Normalmente envolvemse com atividades semelhantes àquelas desempenhadas no ambiente familiar produção de alimentos cuidado informal de crianças e de idosos confecção de roupas em atividades estéticas ou na revenda de produtos Em geral essas atividades geram uma remuneração baixa e pouca ou nenhuma proteção social ZIRBEL 2016 Os efeitos da delegação da maioria das responsabilidades de cuidado às mulheres são injustos e sistemáticos Na perspectiva privada especificamente no seio familiar temse de um lado uma sobrecarga de atividades que interferem no desenvolvimento das capacidades e dos planos de vida das mulheres contribuindo para a desvalorização de seus trabalhos Por outro autorizam determinados grupos em especial aos homens o não envolvimento e a não responsabilidade pelas atividades de cuidado Além disso incentivam a exploração de mulheres para o cuidado de si próprio ZIRBEL 2016 Paralelamente há a desconexão das atividades desenvolvidas no âmbito público com as atividades essenciais de cuidado Os protagonistas do cenário público são vistos como pessoas que não são responsáveis pelo cuidado de ninguém nem pelo cuidado de si próprio que também é delegado a outra pessoa em geral mulher Ser livre do cuidado consigo e com as demais pessoas do convívio é uma qualificação relevante para o trabalho e para a aquisição de uma vida boa ZIRBEL 2006 Acontece que essas qualificações são destinadas exclusivamente aos homens enquanto essa organização social e trabalhista cria desvantagens significativas às mulheres responsabilizandoas diretamente pelo cuidado de toda a população Nas relações de trabalho Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 103 produtivo e remunerado são duplamente penalizadas Em sentido prático sofrem a limitação econômica de um trabalho mal remunerado e precário acabando por depender financeiramente de alguém normalmente um homem De forma mais abstrata têm seus planos de vida e de trabalho extremamente limitados por políticas públicas decisões sobre controle de gestações e normas regulamentadoras de trabalho tanto explícitas quanto implícitas e pelo uso do tempo consumido pelo processo das atividades de cuidado CONSIDERAÇÕES FINAIS Em uma perspectiva sistêmica a análise do que se passa nos espaços privados e domésticos é significativo para entender a dinâmica social Se as relações de poder nesses espaços destoam de valores de referência igualitários os quais se busca na esfera pública existe um problema Recorrendo à expressão de Carole Pateman a tolerância à subordinação compromete as democracias mesmo que corresponda a esferas bem determinadas BIROLI 2015 A análise de como se organiza a divisão sexual do trabalho dimensão fundamental das relações de poder permite levar em conta que os espaços domésticos são produtos sociais efeitos das normas sociais É importante terse em conta que o entendimento sobre as relações de poder perpassa as diferentes esferas Isto é as relações de poder domésticas ultrapassam os espaços privados e atingem ao público BIROLI 2015 Dois ou três desfechos são fundamentais para se entender a questão da divisão sexual do trabalho a a divisão sexual do trabalho não pode ser explicada no âmbito da individualidade como se fossem escolhas voluntárias dos indivíduos b a divisão sexual do trabalho estrutura identidades e alternativas das mulheres sendo aplicada por instituições e políticas públicas que atingem à esfera privada e são aplicadas desde à infância c a divisão sexual do trabalho constitui privilégios e restrições que interferem diretamente nas condições de acesso ao tempo livre e à renda e no reconhecimento de competências e habilidades Por último verificase que a desvalorização do trabalho doméstico serve à manutenção da forma de produção do capital Isso porque o trabalho para obtenção de lucros não pode existir sem o trabalho não remunerado de produção de pessoas E da forma como foi institucionalizado o trabalho doméstico dentro dos lares o capital não precisa pagar ou paga pouco por todo esse trabalho desempenhado pelas mulheres Na perspectiva da teoriapolítico feminista do cuidado adentrase na questão doméstico familiar a partir do cuidado como categoria para operar criticamente às teorias políticas tradicionais Vêse as influências no que diz respeito às relações e funcionamentos internos da Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 104 estrutura familiar e à expansão para as demais instituições sociais A forma como é estruturada a responsabilização pelo cuidado não tem apenas efeito negativo sobre a liberdade a igualdade o uso do tempo e a capacidade de escolha das mulheres mas possui o efeito de repassar às próximas gerações modelos injustos de estruturação social e visões deturpadas de relacionamentos ZIRBEL 2016 Em uma sociedade em que homens definem o mundo do trabalho de maneira a ser incompatível com o parto e a criação dos filhos que não aceitam a remuneração pelo trabalho doméstico sujeita mulheres a se submeterem a relações de dependência financeira com alguém que possua uma renda maior Em geral um homem Não é de se estranhar que em um sistema assim meninos busquem realização e segurança pessoal através dos empregos que meninas se empenhem para associarse aos homens ou a trabalhos compatíveis com as atividades maternais O casamento resulta sempre em uma relação desigual no que diz respeito ao potencial de obtenção de renda KYMLICKA 2006 Em linhas gerais os homens em sentido coletivo exercem controle sobre as chances gerais de planos de vida das mulheres através de decisões políticas a respeito do aborto e a respeito de decisões econômicas referentes a exigências de trabalho Em sentido individual os homens exercem controle econômico sobre as mulheres dentro dos casamentos KYMLICKA 2006 Então a posição das mulheres nas democracias é melhor entendida se aceitarmos de partida que muito mudou O percurso que marcou as conquistas de direitos pelas mulheres teve grande impacto na organização das novas relações sociais Mas ao mesmo tempo o controle de corpos das mulheres não se esgotou apenas tomou novas formas Formas mais complexas A divisão sexual do trabalho tem caráter estruturante nas relações interpessoais ela não é a expressão das escolhas de homens e mulheres mas constitui estruturas que são construídas a partir da responsabilização desigual pelo trabalho E a responsabilização neste ponto deve ser entendida de forma sistêmica porque ela está vestida com novos trajes Trajes mentais e invisíveis E o ciclo é favorável à reprodução Especialmente porque somente a partir dessa configuração é possível manter a dinâmica de exploração do trabalho produtivo que objetiva o capital REFERÊNCIAS ANTONY L Different voices or perfect storm why are there so few women in Philosophy Journaul of Social Philosophy v 43 n 3 2012 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 105 ARRUZZA C BHATTACHARYA T FRASER N Feminismo para os 99 um manifesto Tradução Heci Regina Candiani São Paulo Boitempo 2019 BABÁS Direção Consuelo Lins Produção Flávia Castro e Leon Vilhena Rio de Janeiro Empresa Produtora Consuelo Lins 2010 20 min Publicado pelo Porta Curtas Disponível httpportacurtasorgbrfilmenamebabas Acesso em 15 jul 2019 BIROLI Flávia Uma posição desigual mulheres divisão sexual do trabalho e democracia Boitempo São Paulo mar 2015 Disponível em httpsblogdaboitempocombr20150306umaposicaodesigualmulheresdivisaosexual dotrabalhoedemocracia Acesso em 28 set 2018 BIROLI Flávia Divisão sexual do trabalho e democracia Revista Dados Rio de Janeiro jul set 2016 DOI httpdxdoiorg10159000115258201690 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS001152582016000300719 Acesso em 01 out 2018 COLLINS Patricia Hill Black feminist thought Nova Iorque Routledge 2000 DAVIS Angela Mulheres raça e classe Tradução Heci Regina Candiani São Paulo Boitempo 2016 FEDERICI Silvia O Calibã e a bruxa mulheres corpo e acumulação primitiva Tradução Coletivo Sycorax São Paulo Editora Elefante 2017 FEDERICI Silvia O ponto zero da revolução trabalho doméstico reprodução e luta feminista Tradução Coletivo Sycorax São Paulo Editora Elefante 2019 FRIEDMAN Marilyn Autonomy Gender Politcs Oxford Oxford University Press 2003 GILLIGAN Carol Uma voz diferente Psicologia da diferença entre homens e mulheres da infância à fase adulta Rio de Janeiro Rosa dos Tempos 1982 GONZALEZ Lélia Racismo e sexismo na cultura brasileira Revista Ciências Sociais Hoje Anpocs São Paulo 1984 p 223244KUHNEN Tânia Aparecida A ética do cuidado como teoria feminista Anais do III Simpósio Gênero e Políticas Públicas Universidade Estatual de Londrina ISSN 21778248 Londrina 2014 KYMLICKA Will Filosofia Política Contemporânea São Paulo Martins Fontes 2006 MACKENZIE Catriona STOLJAR Natalie Relational autonomy Feminist Perspectives on Autonomy Agency and the Social Self Oxford Oxford University Press 2000 MEYERS Diana Tietjens Intersectional Identity and the Authentic Self Opposites Attract In MACKENZIE Catriona STOLJAR Natalie Org Relational autonomy Feminist Perspectives on Autonomy Agency and the Social Self Oxford Oxford University Press 2000 p 151180 PATEMAN Carole O contrato sexual São Paulo Editora Paz e Terra SA 1993 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 106 PERISTA Heloísa Gênero e trabalho não pago os tempos das mulheres e os tempos dos homens Análise Social Lisboa vol 37 n 163 2002 p 447 474 SAFFIOTI Heleieth A mulher na sociedade de classes mito e realidade São Paulo Expressão popular 2013 SOUZALOBO Elizabeth A classe operária tem dois sexos trabalho dominação e resistência São Paulo Brasiliense 1991 TIBURI Márcia Feminismo em comum para todas todes e todos Rio de Janeiro Editora Rosa dos Tempos 2018 WALBY Sylvia Theorizing Patriarchy Oxford Basil Blackwell 1990 WILLIAMS Joan C Reshaping the workfamily Debate why men and class matter Cambridge Havard University Press 2010 ZIRBEL Ilze Uma teoria PolíticoFeminista do cuidado 2016 Tese Doutorado em Filosofia Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 2016 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 107 ALGUÉM DISSE GÊNERO ABORDAGENS INSTITUCIONAIS SOBRE VIOLÊNCIA DE GÊNERO NA UNIVERSIDADE FEDERAL DO PAMPA Elizabeth Cristiane Mendonça Azevedo1 Luisa Chaves de la Rosa2 Mirenchu Maitena dos Santos Rivas3 Amanda Muniz Oliveira4 RESUMO O trabalho busca verificar se a temática Violência de Gênero é abordada através de ações ou até mesmo mediante a efetivação de uma política institucional sobre tema na Universidade Federal do Pampa RS Para isso realizouse pesquisa exploratória mediante análise documental e de informações contidas no site da universidade conversas informais e questionário online direcionado aos discentes do campus de SantAna do Livramento a fim de obter um panorama acerca da difusão das iniciativas institucionais bem como para analisar o posicionamento dos discentes em relação à temática Os resultados apontam que embora existam diversas ações promovidas pela instituição há um alto índice de desconhecimento destas ações por parte dos alunos do campus SantAna do Livramento Além disso não há um núcleo específico para o atendimento e apoio às mulheres que sofrem violência dentro da universidade Esperase portanto que o trabalho possa impulsionar o debate entre os discentes e entre os demais setores da instituição auxiliando a construção de um núcleo institucionalizado específico Palavraschave Violência de gênero Universidade UNIPAMPA Políticas institucionais INTRODUÇÃO Uma pesquisa realizada pelo Instituto Avon5 entre setembro e outubro de 2015 com 1823 universitários de cursos de graduação e pósgraduação de todo o país demonstrou que no ambiente universitário 10 das mulheres entrevistadas sofreu violência por parte de algum homem e 2 dos homens admitiu ter cometido algum ato de violência contra a mulher No 1 Graduanda do 8º semestre do curso de Direito da Universidade Federal do Pampa UNIPAMPA campus SantAna do LivramentoRS Email azevedoecmgmailcom Lattes httplattescnpqbr1130756741941962 2 Graduanda do 8º semestre do curso de Direito da Universidade Federal do Pampa UNIPAMPA campus SantAna do LivramentoRS Email luisacdelarosa30gmailcom Lattes httplattescnpqbr6210360823373932 3 Graduanda do 8º semestre do curso de Direito da Universidade Federal do Pampa UNIPAMPA campus SantAna do LivramentoRS Email mmaitenahotmailcom Lattes httplattescnpqbr4763165161187592 4 Professora Adjunta na Universidade Federal do Pampa UNIPAMPA campus SantAna do LivramentoRS Doutora e Mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina Membro do Lilith Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos Email amandaoliveiraunipampaedubr Lattes httplattescnpqbr3656942869359698 5 Disponível em httpwwwouvidoriaufscarbrarquivosPesquisaInstitutoAvonV9FINALBx20151pdf Acesso em 12 jul 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 108 mesmo trabalho ao apresentarem aos entrevistados uma lista de possíveis práticas de violência 67 das mulheres reconheceu ter sofrido muitas delas e 38 dos homens reconheceu ter cometido algumas das ações elencadas Deste modo percebese que não há lugar específico para ocorrência de violência em razão do gênero ela pode ocorrer até mesmo na universidade ambiente de ensino formação pessoal e profissional Neste sentido o foco deste trabalho é a Universidade Federal do Pampa RS criada em 2008 e localizada na metade sul do estado do Rio Grande do Sul A universidade está organizada de forma multicampi possuindo campi em São Borja Itaqui Uruguaiana Alegrete São Gabriel Caçapava do Sul Dom Pedrito SantAna do Livramento Bagé e Jaguarão Em razão desta forma de estruturação para esta pesquisa utilizouse questionário e entrevistas direcionados aos discentes e docentes do campus de SantAna do Livramento no qual estamos inseridas como discentes e docente A motivação para o desenvolvimento deste trabalho emerge a partir da oitiva reiterada de comentários depreciativos neste ambiente6 e a aparente falta de discussões sobre discriminação e violência de gênero contra as mulheres dentro deste espaço Assim a investigação que se segue tem como problema central a seguinte questão o tema violência de gênero é abordado de forma institucional pela universidade Para tanto responder a tal indagação o termo gênero foi aqui compreendido como um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e uma forma primária de dar significado às relações de poder SCOTT 1995 p 86 Violência de gênero é o conceito mais amplo abrangendo vítimas como mulheres crianças e adolescentes de ambos os sexos SAFFIOTI 2001 p 115 Nesta pesquisa o conceito foi utilizado para se referir à violência de gênero contra as mulheres por entender que o poder é atribuído à categoria social homens e que as mulheres como categoria social não têm contudo um projeto de dominaçãoexploração dos homens SAFFIOTI 2001 p 116 grifo da autora Por forma institucional compreendese palestras eventos rodas de conversa e ações similares coordenadas pelos órgãos de gestão do campus SantAna do Livramento e da instituição assim como ouvidorias eou núcleos de apoio ou similares neste mesmo espaço O objetivo principal é verificar a existência ou não das referidas ações institucionais na Unipampa Livramento Para isso realizouse pesquisa exploratória através da análise de 6 Como exemplo podese mencionar os seguintes comentários o direito não precisa do feminismo so tirou 10 porque é mulher e porque o professor gosta de ti mas você tem certeza que é assédio que bobagem essa coisa de paridade em número de homens e mulheres palestrantes Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 109 projetos de ensino pesquisa e extensão informativos no site da Unipampa políticas institucionais projetos pedagógicos dos cursos de graduação do campus entrevistas informais com professores discentes e assistente social análise dos planos de gestão das candidaturas ao processo de consulta à comunidade acadêmica para o cargo de Reitor da Unipampa e questionário online via google docs direcionado aos discentes de graduação do campus de SantAna do Livramento A presente pesquisa foi feita entre junho e agosto de 2019 No primeiro tópico do trabalho serão tecidas algumas considerações acerca do papel da universidade como instituição de ensino no combate à violência de gênero Na sequência os resultados serão apresentados e discutidos e ao final serão feitas as considerações finais 1 O PAPEL DA UNIVERSIDADE NO ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO A universidade não constitui uma realidade separada sendo antes a expressão historicamente determinada de uma sociedade CHAUÍ 2001 p 35 Corroborando com o entendimento de Cristiane Gonçalves da Silva e Tatiana Lionço 2019 p 181 entendese que as instituições de ensino estão atravessadas por pânicos morais em torno das questões de gênero e sexualidades que são significadas em termos de ameaça representando um perigo iminente o que justifica a pertinência de discutir sobre as disputas entre significados e sobre a insistência em hierarquizar pessoas corpos e estilos de vida Nesse sentido O campo educacional se apresenta como um espaço da luta feminista pela igualdade de gênero porque através de representações e práticas a escola reproduz os estereótipos sobre a mulher e sobre as diferenças de gênero contribuindo para a manutenção das desigualdades entre homens e mulheres na sociedade QUEIROZ 2001 p 132 A universidade possui um papel relevante sobre as relações sociais dinamizadas no seu interior de forma que fomentar a discussão sobre violência de gênero faz parte do caráter político e interventivo da educação na reconstrução de uma sociedade mais igualitária pois a educação é uma forma de intervenção no mundo FREIRE 1996 p 38 A violência de gênero como problema social que é se apresenta como um obstáculo ao efetivo exercício da cidadania O domínio do homem e a subordinação da mulher não estão baseados unicamente em diferenças biológicas mas sobretudo em relações sociais ALAMBERT 1986 p 119 e relações de poder entre homens e mulheres e as muitas formas sociais e culturais que os constituem como sujeitos de gênero MEYER 2013 p 18 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 110 A constituição e diferenciação das categorias homem e mulher se inscrevem em uma articulação intrínseca entre gênero e educação o que amplia a noção de educação para além dos processos familiares MEYER 2013 p 1617 Por isso através da educação a universidade exerce ou deveria exercer um papel crucial na desconstrução das relações sociais machistas e discriminatórias seja através do ensino propriamente dito seja por meio de práticas que visem romper as desigualdades nas quais se edifica a violência de gênero A manutenção de uma educação sexista reproduz a ordem social machista que naturaliza os processos de subalternização das mulheres A insistente reprodução das violências nas relações cotidianas das instituições de ensino dá visibilidade às diferenças constitutivas das pessoas e as experiências de violências vividas pelas pessoas materializam o perigo real em torno do gênero SILVA LIONÇO 2019 p 184 ademais essa prática preconceituosa de gênero ofende a subjetividade do ser humano e nega radicalmente a democracia FREIRE 1996 p 17 As instituições universitárias devem incorporar uma agenda institucional através da implementação de ações efetivas e afirmativas de forma a estabelecer uma política institucional feminista ou seja que institua a discussão sobre gênero e sobre violência de gênero no ambiente universitário visando construir um ambiente educacional saudável e igualitário a todos Nesse sentido cumpre destacar o que assinala Paulo Freire apud IMEN 2004 p 74 não há prática social mais política que a prática educativa Com efeito a educação pode ocultar a realidade de dominação e alienação ou pode ao contrário denunciálas anunciar outros caminhos convertendose assim em uma ferramenta emancipatoria7 O assunto violência de gênero precisa ser discutido no ambiente acadêmico para além da elaboração de artigos ou trabalhos de iniciativa exclusiva de discentes fazse necessária também a presença de todo um arcabouço institucional dedicado tanto a promover eventos sobre a temática de gênero quanto a atuar na prevenção apoio e cuidado de discentes docentes e técnicasos potenciais vítimas de violência de gênero Por entender que a mulher como uma intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não deve rejeitar como um floreio SPIVAK 2010 p 126 propõese investigação na Universidade Federal do Pampa da qual as autoras fazem parte no intuito de verificar a existência ou inexistência de ações institucionais voltadas ao tema da violência de gênero 7 Traduziuse do original em espanhol no hay práctica social más política que la práctica educativa En efecto la educación puede ocultar la realidad de dominación y la alienación o puede por el contrario denunciarlas anunciar otros caminos convertiéndose así en una herramienta emancipatoria Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 111 2 RESULTADOS DA PESQUISA A pesquisa foi iniciada a partir da análise de informações disponíveis no site institucional da Universidade Federal do Pampa8 Para a busca dos dados utilizouse as palavraschave gênero mulher e violência 21 Ações vinculadas à Reitoria Entendese que as ações vinculadas à Reitoria possuem uma importância peculiar já que se trata do órgão executivo máximo da instituição e cujas propostas estendemse para todos os campi Dentre tais ações foi possível verificar a existência de uma Coordenadoria de Ações Afirmativas encarregada de promover ações transversais de equidade junto aos orgãos da administração superior comissões órgãos complementares e suplementares próreitorias e unidades universitárias9 e que possui como visão reduzir as discriminações étnicoraciais geracionais de gênero de diversidade sexual de deficiências entre outras que são estruturantes das desigualdades sociais brasileiras grifouse No entanto nos relatórios de atividade10 desta Coordenadoria correspondentes ao ano de 2016 e 2017 não consta nenhuma ação relativa à promoção da igualdade de gênero eou combate a violência de gênero Há apenas a partir de uma iniciativa da Comissão de Graduação desta Coordenadoria um curso de PósGraduação Lato Sensu em História e Cultura Africana Afrobrasileira e Indígena que contem uma componente curricular sobre Gênero Corporeidade e Educação Há também um Núcleo de Desenvolvimento de Pessoal que programa e coordena ações do Programa de Capacitação dos Servidores Docentes e Técnicos Administrativos em Educação que propôs a realização de um curso intitulado Deveres Proibições e Causas de Demissão na Lei 8112 Enfrentamento das Violências no ambiente do serviço público O curso seria realizado no mês de junho de 2019 e trataria de situações de violência em razão do gênero opção sexual religião deficiência física raça situação socioeconômica hierarquia posição política quociente intelectual dentre outros Porém teve sua realização cancelada11 Importante ressaltar que este curso se realizado abordaria questões relativas à violência de gênero mas seria ministrado por um homem e integrante da Polícia Rodoviária Federal órgão destinado ao patrulhamento ostensivo das rodovias federais conforme art 144 2º da CF88 Desta forma tendo por base a autora Djamila Ribeiro 2017 sp é possível questionar 8 Disponível em httpnovoportalunipampaedubrnovoportal Acesso em 22 jul 2019 9 Disponível em httpssitesunipampaedubrcaf Acesso em 22 jul 2019 10 Disponível em httpssitesunipampaedubrcafrelatoriodeatividades Acesso em 22 jul 2019 11 Disponível em httpssitesunipampaedubrnudepeagenda2019 Acesso em 22 jul 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 112 a legitimidade conferida a este sujeito homem para discursar sobre lugares que não ocupa afinal o falar não se restringe ao ato de emitir palavras mas a poder existir Logo negar este espaço a uma mulher faz com que suas produções intelectuais saberes e vozes sejam tratados de modo subalternizados e impossibilita que suas vozes sejam ouvidas RIBEIRO 2017 sp Ainda vinculado à Reitoria mas gerenciado por um Comitê Gestor12 há o Programa de Desenvolvimento Acadêmico que visa fomentar as atividades acadêmicas da graduação em atividades de ensino pesquisa inovação tecnológica extensão ações sociais e culturais e de atenção à diversidade no âmbito da comunidade acadêmica O programa financia bolsas diárias passagens para servidores públicos materiais de consumo serviços de terceiros por meio de editais específicos nos quais os candidatos são avaliados por um barema de pontuação No edital de seleção para o ano de 2019 propostas que abordassem questões sobre diversidade e gênero seriam pontuadas com 5 a mais do total de pontos atingido13 Verificase que há interesse da Reitoria na realização de medidas com relação à promoção da igualdade de gênero e combate à violência No entanto seria desejável a inserção de uma política concreta como por exemplo a implantação de uma Coordenadoria própria de gênero ou para igualdade de gênero 22 Ações vinculadas às PróReitorias A Unipampa possui sete PróReitorias de graduação extensão e cultura pesquisa pós graduação e inovação gestão de pessoas administração assuntos estudantis e comunitários e de planejamento e infraestrutura Dentre elas foi possível encontrar as iniciativas listadas abaixo 1 PróReitoria de Graduação Um seminário anual sobre Corpos Gêneros Sexualidades Relações ÉtnicoRaciais na Educação notícia sobre o encontro anual dos grupos PET da Unipampa no qual foram realizadas duas palestras sobre gênero proferidas por professoras da instituição14 e realização de um levantamento institucional conjuntamente com 12 Este Comitê Gestor é formado por representantes da PróReitoria de Graduação PróReitoria de Extensão e Cultura PróReitoria de Pesquisa Pósgraduação e Inovação PróReitoria de Assuntos Estudantis e Comunitários e um representante discente do Conselho Universitário 13 Disponível em httpnovoportalunipampaedubrnovoportalsitesdefaultfilesdocumentosedital69 2019programadedesenvolvimentoacademico2019editaldeselecaodepropostaspdf Acesso em 24 jul 2019 14 As palestras foram as seguintes Representatividade feminina na ciência proferida pela Profa Cristina dos Santos Lovato e Feminização da Docência realizada pelo Prof Gabriel dos Santos Kehler Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 113 a Coordenadoria de Ações Afirmativas onde foi constatada a necessidade de formações que trabalhem temas relativos à diversidade na educação como gênero15 2 PróReitoria de Extensão e Cultura três programas institucionais que abordam a temática de gênero o HEFORSHE ElesPorElas Momentos Unipampa Gênero e Sexualidade vinculado ao HEFORSHE e Tempos e Diálogos No que se refere ao HEFORSHE16 a partir de sua adesão a Unipampa passou a integrar o Comitê Gaúcho Impulsor do Movimento Mundial Eles por Elas da ONU Mulheres e assumiu o compromisso da constituição de onze comitês locais um em cada campus da universidade encarregados de promover ações relacionadas à temática do programa Em 2017 o Comitê Gaúcho impulsor do Movimento realizou 6 reuniões participou de 4 eventos nos campi de Bagé Uruguaiana e SantAna do Livramento realizou uma conversa com a reitoria em Bagé promoveu o I Fórum Regional em Defesa da Igualdade de Gênero em Bagé lançou concurso fotográfico Rosa e Azul para incentivar a auto prevenção sobre o câncer de mama e o câncer de próstata lançou edital para seleção de projetos para cursos de formação continuada de profissionais da educação básica na modalidade EAD sendo uma das linhas de pesquisa sobre igualdade de gênero e empoderamento feminino e realizou um mapeamento da proporção entre mulheres e homens na instituição17 Em 2018 o Comitê realizou 7 reuniões promoveu o evento Momento Unipampa ElesPorElas em todos os campi da universidade e exposições fotográficas em três campi realizou o II Forúm Regional em Defesa da Igualdade de Gênero realizou rodas de conversa em 4 campi elaborou a websérie Mulheres que inspiram e lançou cartilha sobre Violência de Gênero na Universidade18 No que se refere ao ano de 2019 até o momento de coleta de dados agosto de 2019 ainda não havia sido publicado o relatório das atividades Por último o projeto de extensão Tempos e Diálogos entre o vivido e o por viver tem como objetivo construir espaços críticos de discussão entre a universidade e a sociedade e na 15Informação encontrada através da notícia de um evento Disponível em httpnovoportalunipampaedubrnovoportalcafpromovepalestrasobreacoesafirmativaseracismo institucional Acesso em 24 jul 2019 16 Louvável a iniciativa no entanto somos críticas ao movimento Muito embora vise a promoção da igualdade de gênero o movimento é prioritariamente voltado para os homens O próprio nome HEFORSHE Eles por elas em português traz a ideia de que é necessária a presença dos homens na luta pela igualdade de gênero o que coloca os homens como salvadores das mulheres Vejase no site a descrição da organização que destaca a figura masculina HeForShe é um convite para que homens e pessoas de todos os gêneros se demonstrem solidários às mulheres para assim formar uma frente ambiciosa visível e unida em direção à igualdade de gênero Disponível em httpswwwheforsheorgptbrmovement Acesso em 10 ago 2019 17Disponível em httpssitesunipampaedubrmomentosunipampafiles201903relatorio2017unipampa hfspdf Acesso em 12 ago 2019 18Disponível em httpssitesunipampaedubrmomentosunipampafiles201903relatorio2018unipampa hfspdf Acesso em 12ago 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 114 edição de 2017 tinha como objetivo apoiar e incentivar a partilha e criação de grupos de estudo e práticas educativas promotoras da educação para todos ancorada na inclusão social respeito aos direitos humanos à justiça social à diversidade igualdade de gênero e à sustentabilidade ambiental19 3 PróReitoria de Assuntos Estudantis e Comunitários Essa próreitoria desenvolve programas benefícios e ações de assistência estudantil e de acesso aos direitos de cidadania direcionados à comunidade universitária20 Em 2018 mediante chamada interna para descentralização de recursos financeiros a fim de contemplar ações atividades e projetos nas áreas de Cultura Esporte Saúde Inclusão Digital e Acessibilidade foi contemplado um projeto relativo às mulheres denominado Mulheres na universidade nenhuma a menos no campus de Caçapava do Sul Em 2016 juntamente com o curso de Ciências Humanas no campus de São BorjaRS realizouse conversa sobre o tema diversidade abordando assuntos como imposição de gênero inferiorização e objetivação da mulher21 Nesse mesmo ano foi emitida nota de repúdio a uma manifestação escrita em uma sala de aula que incentivava a violência e banalizava o estupro A próreitoria também se posicionou acerca do estupro coletivo ocorrido no Rio de Janeiro em 2105201622 e contra manifestações da comunidade acadêmica que culpabilizam a vítima e façam apologia a qualquer discurso de odio crime e violência Em 2011 a proreitora ministrou oficina sobre Gênero e Classes Sociais 4 Comissão Interna de Supervisão do Plano de Carreira dos Cargos Técnico Administrativos em Educação da Universidade Federal do Pampa dentre as atribuições desta comissão está a de prestar auxílio à PróReitoria de Gestão de Pessoas É possível encontrar disponível na página da Comissão duas cartilhas direcionadas às mulheres Lei Maria da Penha Perguntas e Respostas da Procuradoria Especial da Mulher do Senado Federal e da Comissão Parlamentar Mista de Combate à Violência Contra a Mulher e Assédio Moral e Sexual elaborada pela Diretoria Geral do Senado Federal23 19Disponível em httpseventosunipampaedubrtemposedialogos20182 Acesso em 25 jul 2019 20Disponível em httpssitesunipampaedubrpraec Acesso em 22 jul 2019 21Disponível em httpssitesunipampaedubrpraec20160516praececursodechrealizamrodade conversasobrediversidade Acesso em 22 jul 2019 22 O fato teve ampla divulgação nacional sendo veiculado por notícias em jornais televisivos e nas redes sociais A vítima com 16 anos foi dopada e violentada por cerca de 30 homens As imagens do crime foram divulgadas nas redes sociais A manifestação machista de odio encontrada escrita na classe continha frases como vou estuprar se mulher e viva ao machismo Veja em httpssitesunipampaedubrpraec20160601notaderepudio Acesso em 22 jul 2019 23 Disponível em httpssitesunipampaedubrciscartilhasemanuais Acesso em 23 jul 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 115 5 Comissão Especial Há uma Comissão Especial integrada por representantes de cada PróReitoria para enfrentar violências na universidade criada por Portaria em 2017 denominada Comissão Especial de Elaboração de Política Institucional de Prevenção e Conscientização e Responsabilização COPREVI que abrange temas como violências moral sexual de gênero étnicoracial etc24 Não foi possível encontrar relatórios de atividades desta Comissão de forma que não se pode concluir se por meio dela estão sendo realizadas medidas de enfrentamento à violência na universidade 23 Busca geral no site da Universidade Federal do Pampa A partir de buscas no site da instituição foi possível verificar que em 2019 ocorreu no campus de São Borja palestra sobre Gênero e Diversidade no campus Uruguaiana houveram ações da Liga Acadêmica de Saúde Materno Infantil uma associação universitária fundada em 2017 que promove nas escolas de sua comunidade encontros para adolescentes a fim de discutir questões sobre gênero sexualidade e o papel social do jovem25 Em 2018 o campus de Uruguaiana promoveu a Semana de Prevenção e Combate ao Assédio Sexual26 no campus São Borja ocorreu o II Seminário Des Fazendo Saberes cuja temática foi Gêneros sexualidades feminismos modos de ser e existir27 e por fim o PETLetras do campus de Bagé proporciona rodas de conversa que abordam assuntos como gênero e diversidade28 Em 2017 o campus Uruguaiana promoveu um seminário sobre questões de gênero e étnicoraciais na educação29 Em 2015 foi divulgado edital para selecionar propostas de cursos de aperfeiçoamento para profissionais do magistério no documento havia a possibilidade de se enviar propostas sobre Gênero e Diversidade na Escola e Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça30 24Informação encontrada através de uma notícia Disponível em httpnovoportalunipampaedubrnovoportalunipampacriacomissaoespecialparaenfrentarviolenciasna universidade Acesso em 24 jul 2019 25 Disponível em httpnovoportalunipampaedubrnovoportalligaacademicadaunipampapromoveenxoval solidarioemuruguaiana Acesso em 24 jul 2019 26Disponível em httpnovoportalunipampaedubrnovoportalcampusuruguaianapromovesemanade prevencaoecombateaoassediosexual Acesso em 24 jul 2019 27 Disponível em httpnovoportalunipampaedubrnovoportaliiseminariodesfazendosaberesnafronteira foirealizadonocampussaoborja Acesso em 24 jul 2019 28 Disponível httpnovoportalunipampaedubrnovoportalpetletrasbageoferecerodadeconversanaoe mimimi Acesso em 24 jul 2019 29 Disponível em httpnovoportalunipampaedubrnovoportalcampusuruguaianapromoveseminariosobre questoesdegeneroeetnicoraciaisnaeducacao Acesso em 24 jul 2019 30 Disponível em httpssitesunipampaedubrformacaocontinuadafiles201408Edital162015COMFOR 2pdf Acesso em 24 jul 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 116 24 Núcleos institucionais Na universidade existem apenas dois Núcleos Institucionais que abrangem a discussão sobre violência de gênero 1 Núcleo de Estudos Afrobrasileiros e Indígenas com organização e funcionamento em todos os campi e vinculado à Coordenadoria de Ações Afirmativas já mencionada31 e 2 Núcleo de Desenvolvimento Educacional NuDE que é Vinculado à Coordenação Acadêmica responsável pela execução da política de assistência estudantil e pelo apoio pedagógico e psicossocial no âmbito do Campus de forma integrada com a Pró Reitoria de Assuntos Estudantis e Comunitários PRAEC com a Próreitora de Graduação PROGRAD e com o Núcleo de Inclusão e Acessibilidade NInA32 Segundo informações apresentadas no site da Unipampa a atuação da equipe multiprofissional do NuDE objetiva contribuir com a adaptação e a integração no cenário universitário com a ascensão do acesso aos direitos e com o enfrentamento da evasão e da retenção acadêmicas Conforme relatado pelo assistente social do NuDE do campus de Santana do LivramentoRS em conversa informal33 as funções desse setor são basicamente pautadas pelas ações acima referidas sendo que o NuDE não é um órgão institucionalizado com o fim de atender casos relacionados a violência na universidade Entretanto caso ocorram e sejam encaminhados ao setor osas assistentes sociais poderão prestar o auxílio necessário Desse eventual auxílio adotamse as seguintes medidas a orientações gerais para ser realizada a denúncia b encaminhamento de nota para a Ouvidoria a fim de formalizar a acusação c direcionamento da vítima para a delegacia de polícia e outros locais pertinentes ao apoio e d comunicação ao setor pertinente do campus para a instauração de processo administrativo Além disso o assistente social afirmou que o NuDE do campus de SantAna do Livramento realiza contato com o Centro de Referência de Violência contra a Mulher e com o Centro de Referência Especializado da Assistência Social da cidade para que em conjunto possam melhor atender às vítimas dos casos de violência Por último ele enfatizou que não há no campus um setor específico para atender esses casos apenas possui o auxílio dos assistentes sociais integrantes do núcleo 25 Projetos de ensino pesquisa e extensão da Universidade Federal do Pampa 31 Ver UNIPAMPA 2016 Disponível em httpssitesunipampaedubrconsunifiles201805res1612016 neabialteradapelares196pdf Acesso em 15 ago 2019 32 Disponível em httpnovoportalunipampaedubrlivramentonude Acesso em 24 de jul de 2019 33 O servidor nos autorizou a mencionar esta conversa conforme Termo de Consentimento Livre e Esclarecido Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 117 Dentre os projetos de ensino pesquisa e extensão34 estão vigentes 2 projetos de ensino sendo um no campus de SantAna do Livramento sobre violência contra mulheres 17 projetos de pesquisa sendo 2 no campus de SantAna do Livramento um sobre conceitos e preconceitos de gênero no trabalho e carreira e outro sobre mulheres e hiperencarceramento e 12 projetos de extensão sendo 1 em SantAna do Livramento sobre violência contra a mulher Há também no campus de Uruguaiana um projeto selecionado pelo edital Elas nas Exatas intitulado Cientistas do Pampa que busca aproximar meninas do ensino médio das Ciências Exatas e da carreira acadêmica 26 Planos de gestão das candidaturas ao processo de consulta à comunidade acadêmica para o cargo de reitor da universidade 2019 No momento de escrita deste trabalho julho de 2019 a universidade estava em processo de consulta à comunidade acadêmica para escolha do candidato ao cargo de Reitor da instituição tendo sido inscritas seis candidaturas Da pesquisa feita nos planos de gestão lançados pelos candidatos encontrouse as seguintes informações dentre as 6 candidaturas 4 delas mencionam em seus planos as palavras gênero mulher e violência contendo propostas no sentido de combater a discriminação de gênero incentivar o debate sobre gênero apoiar grupos de pesquisa sobre gênero criar um programa de enfrentamento à violência de gênero promover igualdade de gênero e a existência de um compromisso com o gênero35 Dentre as 6 candidaturas há apenas 2 mulheres e destas apenas uma abrange a temática em seu plano de gestão de forma bastante genérica apenas mencionando que irá combater discriminações de gênero Considerando a candidatura de 2 mulheres dentre 6 homens interessante analisar quantas mulheres já foram reitoras da universidade Consoante as informações encontradas no site institucional36 desde a data de criação da Unipampa houveram 3 reitores sendo duas mulheres no período entre 2008 e 2015 atualmente um homem ocupa o cargo Verificase 34 Projetos de ensino Disponível em httpnovoportalunipampaedubrnovoportalprojetosensinocampus Acesso em 08 jul 2019 Projetos de pesquisa Disponível em httpnovoportalunipampaedubrnovoportalprojetospesquisacampus Acesso em 08 jul 2019 Projetos de extensão Disponível em httpnovoportalunipampaedubrnovoportalprojetosextensaocampus Acesso em 08 jul 2019 35 Disponível em httpnovoportalunipampaedubrnovoportalprojetodaunipampaaproximameninasdo ensinomediodaareadecienciasexatas Acesso em 24 jul 2019 36 Disponível em httpsunipampaedubrportal5653 Acesso em 15 de ago de 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 118 portanto que em relação ao cargo de reitora há certa participação e representatividade feminina 27 Projetos pedagógicos dos cursos de graduação do campus de SantAna do Livramento O campus de SantAna do Livramento possui 5 cursos de graduação Gestão Publica Administração diurno e noturno Direito Relações Internacionais e Ciências Econômicas Investigando os projetos pedagógicos mais recentes dos cursos foram encontrados os seguintes resultados 1 No projeto pedagógico do curso de Administração de 2017 há na ementa de uma disciplina a palavra gênero mas referente à gêneros textuais não havendo nenhuma menção a mulher eou violência 2 No projeto pedagógico do curso de Ciências Econômicas de 2019 há ementa de uma disciplina referente à gênero no mercado de trabalho e outra sobre mulher no mercado de trabalho foram encontradas ainda duas referências bibliográficas sobre mulher no mercado de trabalho nada constando sobre violência 3 No projeto pedagógico do curso de Direito de 2019 uma componente curricular complementar de graduação ou seja uma disciplina optativa sobre gênero e sistema de justiça duas ementas sendo uma sobre gênero técnico científico e outra sobre trabalho da mulher duas referências bibliográficas uma sobre igualdade de gênero e outra sobre violência sexual contra crianças e adolescentes e um grupo de estudos sobre mulher violência e sistema de justiça criminal 4 No projeto pedagógico do curso de Relações Internacionais de 2019 encontramos uma componente curricular complementar de graduação disciplina optativa sobre gênero e sistema de justiça 5 No projeto pedagógico do curso de Gestão Pública de 2016 nada foi encontrado37 Depreendese desta análise que o curso mais preocupado com a temática de gênero é o curso de Direito seguido de Relações Internacionais Todavia a componente curricular 37 Disponível em Curso de Administração httpdspaceunipampaedubrbitstreamriu1279PPCAdministrac3a7c3a3oSantana20do20Livr mentopdf Curso de Ciências Econômicas httpdspaceunipampaedubrbitstreamriu1288PPCCic3aanciasEconc3b4micaspdf Curso de Direito httpdspaceunipampaedubrbitstreamriu12911PPCDireitoSantanadoLivramentopdf Curso de Relações Internacionais httpdspaceunipampaedubrbitstreamriu13110PPCRelac3a7c3b5es20Internacionaisrevisado maio2019pdf Curso de Gestão Pública httpdspaceunipampaedubrbitstreamriu1303PPCGestaopublica2016Livramentopdf Acesso em 09 jul 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 119 complementar Gênero e sistema de justiça prevista nos projetos pedagógicos dos cursos de Direito e Relações Internacionais chegou a ser ofertada no semestre de 20191 mas foi cancelada por falta de quórum Ou seja na prática não houve interesse por parte de discentes em realizar a disciplina Desse modo inferese que há certo desinteresse por parte das coordenações dos cursos de graduação ao não construir uma organização didáticopedagógica através da elaboração de uma política de ensino pesquisa e extensão relativa à temática de gênero e violência 28 Entrevistas Inicialmente cumpre ressaltar que todas as entrevistas foram realizadas pelas pesquisadoras mediante conversas informais tendo sido os participantes avisados de que as informações seriam utilizadas na elaboração desta pesquisa Todos consentiram Verificouse a existência de uma pesquisa sobre assédio38 realizada mediante questionário através da plataforma Google Docs realizada no campus de SantAna do Livramento pelas professoras Tanise Brandão Bussmann e Carolina Freddo Fleck do curso de Administração as quais relataram em entrevista no dia 28 de junho de 2019 que a ideia surgiu no ano de 2018 em razão de uma preocupação dos então coordenadores de curso sobre conversas que escutavam nos corredores da universidade mas que não eram informações seguras sobre assédio moral e sexual no campus A pesquisa faz parte do projeto elaborado pela profa Carolina sobre as questões de gênero nas organizações mais especificamente sobre as mulheres no mercado de trabalho e objetiva ter um panorama daquilo que se percebe e se vivencia na universidade sem detalhar ou identificar pessoas O trabalho tem como objetivo servir de base para criar ações futuras de educação no intuito de inibir violências e discriminações dentro do campus Até o momento da entrevista haviam sido respondidos 23 questionários e conforme relatado pelas docentes nenhuma das respostas coletadas apontavam para uma possível denúncia Contudo caso viessem a surgir as denúncias seriam feitas através da ouvidoria que seria o meio formal para a realização destas No mesmo sentido da pesquisa realizada pelas docentes de Administração em 2015 houve iniciativa de discentes do curso de Relações Internacionais para investigação por meio de um questionário sobre gênero pela plataforma Google Docs Em conversa com os alunos 38 Disponível em httpsdocsgooglecomformsde1FAIpQLSeXy9zjkOlDtT8ZWYzYXLGlAlD O7doEMNfoDnPGkgqwAviewform Acesso em 23 jul 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 120 responsáveis39 foi informado que os resultados da pesquisa foram extremamente alarmantes nas palavras dos entrevistados e que o curso com mais incidência de casos de violência de gênero e assédio foi o curso de Administração sendo o com menos incidência o curso de Relações Internacionais Os resultados foram encaminhados à direção coordenadores acadêmicos e coordenação acadêmica do campus e ao Núcleo de Desenvolvimento Educacional Os discentes não souberam informar quais medidas foram tomadas pois concluíram o curso naquele mesmo ano Assim considerando o relato deste discente buscouse o coordenador acadêmico do curso de Relações Internacionais em 2015 Em conversa ele informou que dos nove anos em que lecionou na Unipampa campus SantAna do Livramento a média aproximada de casos de assédio que chegaram a seu conhecimento foi de um por ano Ele informou ainda que no ano de 2017 integrantes do coletivo feminista da universidade realizaram uma atividade com as calouras do curso de Relações Internacionais na qual separaram as mulheres dos homens e conversaram sobre assédio violência e empoderamento feminino Procurouse também as integrantes do coletivo feminista mencionado pelo coordenador acadêmico de Relações Internacionais o Coletivo LivraElas40 Porém os questionamentos não foram retornados sendo disponibilizado um vídeo feito pela fundadora do Coletivo Neste vídeo é informado que o grupo foi criado por demanda dasos estudantes pois apesar de ocorrer um diálogo aberto sobre feminismo e gênero na universidade não havia o estudo de teorias feministas e de gênero nas Relações Internacionais curso do qual a fundadora era discente Para além de um projeto de ensino pesquisa e extensão o Coletivo vislumbrava realizar atividades para com a comunidade através de debates palestras eventos dentre outras41 29 Questionário online Diante dos resultados encontrados no decorrer da pesquisa exploratória elaborouse um questionário direcionado aos discentes do campus de SantAna do Livramento a fim de verificar se estes a têm conhecimento das iniciativas realizadas pela universidade b consideram importante a discussão sobre violência de gênero no ambiente acadêmico c entendem que o campus e a universidade como um todo fomentam ações de combate à violência 39 Dentre os alunos responsáveis conversamos diretamente com Gustavo Rodrigues Costa entrevistado 40 O Coletivo está desativado mas encontrase em vias de institucionalização para o período de 201902 pela prof Dra Amanda Muniz de Oliveira orientadora deste artigo 41 Disponível em httpswwwyoutubecomwatchvRlMHwmJZYk0featureyoutube Acesso em 31 jul2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 121 e assistência às vítimas e o mais importante d sabem o que fazer caso sofram violência no âmbito na universidade O questionário foi amplamente divulgado via email institucional grupos de whatsapp e redes sociais bem como pessoalmente nas salas de aula ficando aberto para respostas pelo período de três semanas 010719 190719 Contudo ainda que o campus tenha em torno de 1014 discentes de graduação42 apenas 143 discentes responderam sendo 98 mulheres e 45 homens A partir das respostas foi possível construir as tabelas abaixo Tabela 1 Questionário online parte 1 Curso Mulher Sabe o que fazer na ocorrência de violência de gênero Considera relevante discutir sobre violência de gênero SIM NÃO SIM NÃO TALVEZ Direito 35 11 24 35 Relações Internacionais 15 7 8 14 1 Administração 29 7 22 26 1 2 Gestão Publica 11 1 10 11 Ciências Econômicas 7 4 3 5 2 Fonte Elaborado pelas autoras com os resultados obtidos através do questionário online Tabela 2 Questionário online parte 2 Curso Homem Sabe o que fazer na ocorrência de violência de gênero Considera relevante discutir sobre violência de gênero SIM NÃO SIM NÃO TALVEZ Direito 21 14 7 18 3 Relações Internacionais 7 5 2 7 Administração 9 3 6 7 1 1 Gestão Publica 4 3 1 1 3 Ciências Econômicas 4 2 2 3 1 Fonte Elaborado pelas autoras com os resultados obtidos através do questionário online Os discentes do curso de Direito foram os que em maior número participaram sendo os dos cursos de Gestão Pública e de Ciências Econômicas os que menos se dispuseram a responder o questionário Curioso vislumbrar que justamente os alunos destes dois cursos Gestão Pública e Ciências Econômicas são os que mais consideram irrelevantes as discussões 42 UNIPAMPA 2017 p 13 Informação referente ao ano de 2017 conforme relatório da Unipampa Disponível em httpnovoportalunipampaedubrnovoportalsitesdefaultfilesapresentacaoinstitucionalunipampa01 112017pdf Acesso em 31 jul 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 122 sobre gênero e violência na universidade Além disso coincidentemente ou não são Gestão Pública e Ciências Econômicas os cursos que não possuem em seu projeto pedagógico ementas referências bibliográficas eou projetos relativos à temática de gênero violência ou violência de gênero Quando questionados se consideram que a Unipampa a instituição como um todo aborda a temática de gênero e violência 71 dos discentes responderam que a universidade realiza algumas medidas referentes à ocorrência de violência de gênero 112 consideram que a instituição possui núcleos pesquisas e uma política institucional e 406 não tem conhecimento de alguma ação específica Em relação ao campus de SantAna do Livramento dasos participantes do questionário 119 consideram que o tema é amplamente discutido 517 considera que a temática poderia ser mais discutida 364 não tem conhecimento de alguma ação e 14 informou que já verificou e não existe nenhuma ação acerca do tema Uma pessoa mencionou a existência do Coletivo LivraElas e uma pessoa informou não compreender o que seria uma abordagem suficiente sobre o tema43 Com os resultados obtidos através da realização do questionário foi possível verificar que o número de mulheres participantes foi mais que o dobro do de homens Sobre a relevância do tema 4 homens e 4 mulheres não consideram importante discutir sobre violência de gênero no ambiente acadêmico ou seja proporcionalmente temse que 888 dos homens não compreende a importância do tema contra 408 do percentual de mulheres Além disso tais respostas evidenciam como o machismo ou de forma otimista a ignorância sobre violência de gênero se encontra presente nas relações cotidianas dentro da universidade inclusive dentre as maiores vítimas as mulheres CONSIDERAÇÕES FINAIS O objetivo do trabalho foi o de verificar se a Universidade Federal do Pampa realiza ações que visem impulsionar a discussão sobre violência de gênero ocorrida no âmbito da universidade Através do questionário feito com os discentes da graduação do campus de SantAna do Livramento também foi possível verificar a publicidade das medidas realizadas e obter um panorama acerca da opinião dos discentes relativa à temática Com a pesquisa percebeuse que a instituição possui iniciativas nesse sentido possuindo projetos de ensino pesquisa e extensão comissões e eventos No entanto levando em 43 Perguntouse considera que o campus de SantAna do Livramento aborda a temática suficientemente Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 123 consideração o questionário online a amostra participante do campus de SantAna do Livramento demonstra que essas iniciativas não são difundidas É preocupante visualizar que em um questionário respondido por 143 discentes 8 deles sendo 4 mulheres e 4 homens consideram totalmente irrelevante essa discussão no ambiente acadêmico Ademais do total de respondentes 93 não sabem o que fazer quando esse tipo de violência ocorrer no âmbito acadêmico sendo que destes 67 são mulheres Tais dados demonstram a vulnerabilidade das discentes mulheres que como vítimas em potencial não sabem quais medidas tomar A universidade como espaço formador de sujeitos não pode permanecer inerte frente a discussões como a que aqui se faz somente agindo quando demandada Esta deve incorporar uma política que propicie um ambiente igualitário a todos os sujeitos independentemente do gênero mas esse ambiente igualitário só será efetivamente construído quando a relevância do tema for reconhecida e incorporada na materialidade prática e concreta Diante do exposto por meio dos resultados iniciais desta pesquisa exploratória pretendese auxiliar tanto na coleta de informações quanto na construção de medidas que visem colocar o gênero em debate e especificamente a violência de gênero Esperase que a longo prazo seja possível a construção de uma universidade democrática e inclusiva para que os direitos das mulheres não sejam apenas abstratamente reconhecidos mas efetivamente assegurados REFERÊNCIAS ALAMBERT Zuleika Feminismo o ponto de vista marxista São Paulo Nobel 1986 BRASIL Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 Brasília DF 1998 CHAUÍ Marilena de Souza Escritos sobre a Universidade São Paulo UNESP 2001 FREIRE Paulo Pedagogia da autonomia saberes necessários à prática educativa São Paulo Paz e Terra 1996 GONÇALVES DA SILVA Cristiane LIONÇO Tatiana Temas perigosos para educação Juventudes instituições de ensino gênero e sexualidades Revista Inter Ação vol 44 n1 2019 p180195 Disponível em httpswwwrevistasufgbrinteracaoarticleview48959 Acesso em 25 jul 2019 IMEN Pablo El conocimiento como mercancía la escuela como shopping los docentes como proletarios In FREIRE Paulo El grito manso 1 ed Buenos Aires Siglo XXI Editores Argentina 2003 p 7394 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 124 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO Universidade Federal do Pampa Edital nº 162015 Seleção de projetos de formação de profissionais do magistério da educação básica referente à ação 20RJ do MEC Site da Universidade Federal do Pampa Bagé 16 jan 2015 Disponível em httpssitesunipampaedubrformacaocontinuadafiles201408Edital16 2015COMFOR2pdf Acesso em 26 jul 2019 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO Universidade Federal do Pampa Edital nº 692019 de 15 de março de 2019 Processo seletivo para seleção de propostas de projetos para o Programa de Desenvolvimento Acadêmico Site da Universidade Federal do Pampa Bagé 15 mar 2019 Disponível em httpnovoportalunipampaedubrnovoportalsitesdefaultfilesdocumentosedital69 2019programadedesenvolvimentoacademico2019 editaldeselecaodepropostaspdf Acesso em 26 jul 2019 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO Universidade Federal do Pampa Resolução nº 161 de 31 de outubro de 2016 Aprova regimento geral do núcleo de estudos afrobrasileiros e indígenas NEABI da Universidade Federal do Pampa UNIPAMPA e criar o Fórum NeabiUnipampa Site da Universidade Federal do Pampa Bagé 31 out 2016 Disponível em httpssitesunipampaedubrconsunifiles201805res1612016neabialteradapela res196pdf Acesso em 15 ago 2016 QUEIROZ Delcele Mascarenhas Raça gênero e educação superior 2001 Tese Doutorado em Educação Faculdade de Educação Universidade Federal da Bahia Salvador 2001 Disponível em httpwwwredeacaoafirmativaceaoufbabruploadsufbatese2001DMQueirozpdf Acesso em 09 set 2019 RIBEIRO Djamila O que é lugar de fala Belo Horizonte Grupo Editorial Letramento 2017 Ebook sem paginação SAFFIOTI Heleieth I B Contribuições feministas para o estudo da violência de gênero Cad Pagu Campinas n 16 2001 p 115136 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS010483332001000100007lngen nrmiso Acesso em 14 ago 2019 SCOTT Joan Gênero Uma categoria útil de análise histórica Educação Realidade Porto Alegre v 20 n 2 1995 Disponível em httpsseerufrgsbreducacaoerealidadearticleview71721 Acesso em 25 jul 2019 SPIVAK Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Belo Horizonte Editora UFMG 2010 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 125 VIOLÊNCIA SIMBÓLICA NO PARFOR A CONCEPÇÃO DOSAS DOCENTESFORMADORESAS DO CAMPUS DE BRAGANÇAPARÁ Raul da Silveira Santos1 Francisco Pereira de Oliveira2 Genilson Fernandes Monteiro3 José Dias Santana4 RESUMO O pensar em violência geralmente nos remete a refletir sobre algum tipo de violência física onde as marcas são fáceis de serem percebidas Porém há várias formas de violência como por exemplo a violência simbólica que não deixa marcas no corpo mas que atinge psicologicamente quem a sofre O trabalho tem como objetivo geral analisar a concepção dos docentesformadores sobre vulnerabilidade social no Plano Nacional de Formação Docente da Educação Básica PARFOR com foco na violência simbólica demarcada no ensino superior e descrever a concepção dos docentesformadores sobre a questão da violência simbólica contida no PARFOR ademais traçar o perfil das alunas que cursaram licenciaturas pelo PARFOR na Universidade Federal do Pará Campus de Bragança nordeste paraense O estudo foi desenvolvido junto aos docentesformadores da referida Universidade onde a coleta de dados se deu mediante a aplicação de um questionário para 15 quinze docentesformadores das licenciaturas de LetrasLíngua Inglesa Pedagogia e Ciências Naturais com perguntas semiestruturadas constituindo por princípio uma abordagem qualitativa de pesquisa e o tratamento dos dados coletados ocorreu a partir da análise do discurso dos entrevistados O resultado demonstrou a vulnerabilidade social e o preconceito para com as alunas do PARFOR assim como em todos os segmentos de uma sociedade com base capitalista E concluise que os docentesformadores consideram que as alunas estão em situação de vulnerabilidade social devido ao baixo grau de instrução educacional e por conseguinte ausentes dos direitos empregatícios para a sustentação de seus estudos no ensino superior Palavraschave Violência simbólica Vulnerabilidade social PARFOR INTRODUÇÃO O ato de pensar em violência geralmente nos remete a refletir sobre algum tipo de violência física onde as marcas são fáceis de serem percebidas No entanto há várias formas 1 Docente externo na Universidade Federal do Pará Especialista em Educação e Interculturalidade na Amazônia pela Universidade Federal do Pará Mestrando no Programa de PósGraduação em Linguagens e Saberes na AmazôniaUFPA Email raulsantos21hotmailcom Lattes httplattescnpqbr8857084478164330 2 Professor Adjunto da Universidade Federal do Pará Doutor em Biologia Ambiental pela Universidade Federal do Pará Email foliveiranonogmailcom Lattes httplattescnpqbr6672819410146078 3 Pedagogo pela Universidade Federal do Pará e Especialista em Educação e Interculturalidade na Amazônia Mestrando no Programa de PósGraduação em Linguagens e Saberes na AmazôniaUFPA Email genilsonf982gmailcom Lattes httplattescnpqbr2246820309241294 4 Pedagogo pela Universidade Federal do Pará Mestrando no Programa de PósGraduação em Linguagens e Saberes na AmazôniaUFPA Email diasufpahotmailcom Lattes httplattescnpqbr0492428563712777 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 126 de violência como por exemplo a violência simbólica que não deixa marcas no corpo mas que atinge psicologicamente as pessoas que sofrem esse tipo de agressão A violência contra as mulheres é um problema que atinge o mundo todo fazendo um recorte para o Brasil o Laboratório de Análises Econômicas Históricas Sociais e Estatísticas LAESER 2014 realizou um estudo e trouxe números alarmantes Em 2012 houve 103794 mil denúncias de mulheres que sofreram violência doméstica sexual entre outras violências Ademais entre 2011 e 2012 30607 mulheres sofreram violência sexual sendo que 22884 mulheres sofreram estupro LAESER 2014 o que resulta em 62 mulheres sendo estupradas por dia ou 261 mulheres estupradas a cada hora Notícias sobre violência tornaramse recorrentes em nossa sociedade estão cada vez mais comuns e frequentes os relatos de violência pois os noticiários como os jornais sites de notícias revistas etc são divulgadores em especial das violências físicas Os relatos surgem das mais variadas formas e dos mais diversos contextos como por exemplo no âmbito familiar na escola no trabalho e se manifesta muitas vezes de forma silenciosa e imperceptível aos nossos olhos no entanto está acontecendo é real e medidas precisam ser tomadas para romper ou pelo menos minimizar os mais variados tipos de violência contra as mulheres em nossa sociedade Nesse contexto de argumentação fazse um novo recorte para a discussão sobre a concepção dos docentesformadores do Campus Universitário de Bragança da Universidade Federal do Pará UFPA a respeito da vulnerabilidade social que as mulheres professoras e alunas do Plano Nacional de Formação de Professores da Educação Básica PARFOR sofrem dentro do contexto acadêmico Buscando conhecer de forma consistente e ampla a literatura já produzida sobre a temática foi realizado um inventário bibliográfico na Plataforma SUCUPIRA5 e na Plataforma CAPES6 com o intuito de fazer um levantamento sobre os trabalhos escritos e divulgados sobre a violência simbólica no PARFOR no entanto não foi encontrada nenhuma produção científica dentro do contexto apresentado pelo trabalho proposto o que certamente tornase justificável 5 A Plataforma Sucupira é fruto da parceria da Capes com a Universidade Federal do Rio Grande do Norte UFRN Em maio de 2012 as duas instituições assinaram termo de cooperação para o desenvolvimento de um sistema voltado a coletar informações dos programas de pósgraduação em tempo real e estabelecer os procedimentos de avaliação com transparência para toda a comunidade acadêmica BRASIL 2014 6 O Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES é uma biblioteca virtual que reúne e disponibiliza a instituições de ensino e pesquisa no Brasil o melhor da produção científica internacional Ele conta com um acervo de mais de 45 mil títulos com texto completo 130 bases referenciais 12 bases dedicadas exclusivamente a patentes além de livros enciclopédias e obras de referência normas técnicas estatísticas e conteúdo audiovisual Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 127 e necessária a realização de pesquisas nesse viés da violência simbólica no ensino superior em universidade pública Bourdieu 1994 p 25 afirma que a violência suave onde se apresentam encobertas as relações de poder que regem os agentes e a ordem da sociedade global Mediante ao exposto indagase qual a concepção dos docentesformadores sobre vulnerabilidade social das alunas do PARFOR E como objetivo primeiro considerase analisar a concepção desses atores sobre vulnerabilidade social impressa de forma silenciosa no PARFOR assim como descrever a concepção dos docentesformadores de forma analítica a partir dos discursos impressos por ocasião das entrevistas e ademais traçar o perfil das alunas dos cursos de licenciaturas ofertados por meio do PARFOR na UFPA Campus de Bragança nordeste paraense Ao levaremse em consideração as desigualdades que historicamente atingem vários segmentos da nossa sociedade inclusive na área da educação ponderase mediante ao contexto de agressão simbólica contra as mulheres a importância de fomentar o debate sobre a problemática com o intuito de criar mecanismos de combate a esse histórico social das mais variadas formas de violência logo ratificase a escolha pelo estudo sobre a temática descrita no trabalho além de disponibilizar uma produção científica para a sociedade como forma de empoderamento à aquelas mulheres que sofrem ou já sofreram algum tipo de trauma através da referida violência 1 REFERENCIAL TEÓRICO Neste tópico serão apresentados conceitos fundamentais nas discussões realizadas no decorrer do presente estudo Violência simbolica no PARFOR a concepção dos docentesformadores do Campus de BragançaPará a saber O PARFOR e um breve contexto histórico e vulnerabilidade social Em relação aos termos serão fundamentados no cerne das legislações vigentes e de autores que dialogam com o objetivo de caracterizálos 11 Plano Nacional de Formação dos Professores do Magistério da Educação Básica Um breve contexto histórico O PARFOR surge dentro de um contexto para atender demandas educacionais No ano de 2009 mediante o Decreto 6755 emitido pela Presidência da República fica estabelecida a Política Nacional de Formação dos Professores do Magistério da Educação Básica tendo como o escopo de organizar a formação desses profissionais em nível superior Com isso o Ministério da Educação MEC através do PARFOR buscou atender o que a LDB Nº 939496 passou a exigir que todos os professores da educação básica tenham formação específica para cada nível Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 128 eou modalidade de ensino Logo inferese que o Estado passou a promover a busca por uma melhor qualificação partindo de programas com destaque para o PARFOR dentro da conjuntura apresentada no decorrer do trabalho Havia uma grande porcentagem de professores que atuavam nas escolas apenas com o magistério ou seja o nível médio Essa política de formação de professores é resultado da ação conjunta do Ministério da Educação de Instituições Públicas de Ensino Superior IPES e das Secretarias de Educação dos estados e municípios estabelecendo com isso um novo regime de colaboração da União com os estados e municípios O PARFOR é direcionado aos professores em exercício das escolas públicas estaduais e municipais sem formação adequada exigida pela atual Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB Nº 9394916 com a oferta de cursos superiores gratuitos de qualidade e por instituições superiores federais públicas do Brasil Até o final de 2016 foram implantadas 2890 turmas em 509 municípios localizados em 24 unidades da federação Nesse período o PARFOR atendeu professores oriundos de 3282 municípios brasileiros e de 28925 escolas Até aquele ano Programa registrava 36871 professores cursando uma licenciatura e 34549 formados CAPESBRASIL 2016 p 05 O PARFOR portanto é uma ação emergencial que visa estimular a formação em nível superior de professores em exercício de redes públicas da Educação Básica Com isso o programa é destinado a um público específico e insere os professores que estavam na docência sem a devida qualificação Nesse sentido recorrese a Ramalho Nuñez e Gauthier 2004 p 50 para descrever o que se entende por docência com a devida qualificação A profissionalização é entendida como desenvolvimento sistemático da profissão fundamentada na prática e na mobilizaçãoatualização de conhecimentos especializados e no aperfeiçoamento das competências para a atividade profissional Ou seja é um processo socializador de construção das características da profissão fundamentada em valores de cooperação entre os indivíduos e o progresso social NUÑEZ GAUTHIER 2004 assim como o devido trato às questões teóricas e prática em âmbito da docência Logo é mister esclarecer mesmo não sendo o foco principal deste trabalho evidenciase a importância de políticas públicas para a constituição do princípio e necessidade para que haja o mínimo de igualdade na sociedade ou seja políticas públicas voltadas para grupos sociais historicamente excluídos como por exemplo as mulheres docentes da educação básica Outrossim medidas de reparo e de justiça social necessária para elucidar sujeitos sociais inviabilizados por anos em nossa sociedade brasileira Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 129 As ações afirmativas nos dias correntes é um termo de amplo alcance que designa um conjunto de estratégias iniciativas ou políticas que visam favorecer grupos ou segmentos sociais que se encontram em piores condições de competições MENEZES 2001 p 27 Os acontecimentos históricos no decorrer dos séculos passados privilegiaram e ao mesmo tempo desprivilegiaram outros grupos sociais Nesse sentido Demo 2000 p 14 afirma que os direitos humanos são inalienáveis e devidos por natureza Esses direitos inalienáveis perpassam por uma sociedade mais justa e sem qualquer tipo de violência contra sujeitos sociais como os docentes em especial as mulheres Nesse caso chamase a atenção para a docência com o foco para o gênero mulheres pois historicamente elas em qualquer contexto foram e são vítimas de distrato em formato diverso mas no âmbito da docência certamente é um fator que merece análise pois ser mulher docente com a entrada tardia no ensino superior por meio de uma política publica assistiva e no interior da Amazônia certamente é um caso a ser debruçado e refletido para os dias atuais em que o gênero tem sido tão discutido e provocado o descortinamento de fatos que outrora nem se pensava Salutarmente é merecido o destaque no que concerne à docente mulher nos dias atuais pois há de se reconhecer que apesar da profissão professora ser desvalorizada economicamente o ser mulher professora nos dias de hoje é para além dessa questão significa ter acesso ao trabalho economicamente ativa e independente capaz de escolher gerir e planejar sua carreira Ou seja o gênero feminino dedicase cada vez mais a elevar sua qualificação intelectual para o mercado laboral MELO LOPES 2012 ANDRADE BARBOSA 2013 Talvez aqui esteja uma das maiores conquistadas para as mulheres docentes que entraram no ensino superior para a sua qualificação na Educação Básica pois mediante a retratos de apenas correção de anos de exclusão seja provavelmente somente discurso o que na prática o ganho para as mulheres esteja no campo do reconhecimento também por ser do gênero feminino 12 Vulnerabilidade social O termo vulnerabilidade tem sido empregado e bastante discutido nos últimos anos portanto surgem diversas interpretações Wisner 1998 faz uma análise do conceito sob o contexto da vulnerabilidade que os sujeitos em determinada conjuntura podem apresentar nos mais variados casos O autor ainda faz outros apontamentos ao enfatizar que a vulnerabilidade e a capacidade fazem parte de um mesmo processo já que a segunda está relacionada à Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 130 capacidade de luta resistência e de recuperação que o indivíduo pode realizar em situações adversas Sendo assim corroborase através da análise do autor que em meio as situações de vulnerabilidade social há processos de resistência através dos sujeitos para romper com as mais variadas situações de vulnerabilidade A vulnerabilidade social é compreendida partindo de vários fatores que condicionam o estado dos sujeitos Nesse sentido a vulnerabilidade não é uma essência ou algo inerente a algumas pessoas e a alguns grupos mas diz respeito a determinadas condições e circunstâncias que podem ser minimizadas ou revertidas JEOLÁS 1999 p 1 Destarte entendemos a vulnerabilidade a partir da exposição aos riscos de diferentes vertentes entre os quais econômicos sociais eou culturais e consequentemente a esses variados desafios surgem os enfrentamentos para serem superados CAMARANO et al 2004 Ademais a vulnerabilidade pode ser compreendida também A vulnerabilidade é entendida como o desajuste entre ativos e a estrutura de oportunidades provenientes da capacidade dos atores sociais de aproveitar oportunidades em outros âmbitos socioeconômicos e melhor sua situação impedindo a deterioração em três principais campos os recursos pessoais os recursos de direitos e os recursos em relações sociais KATZMAN 2001 p 18 Ou seja a vulnerabilidade social é permeada por desigualdades entre as estruturas que fazem parte de uma sociedade portanto é uma construção social logo há a necessidade de ser entendida como um processo dialético considerando as características dos sujeitos e o contexto no qual estão inseridos 2 METODOLOGIA 21 Área de estudo A presente pesquisa foi desenvolvida no Campus Universitário de Bragança da Universidade Federal do Pará UFPA município de Bragança do Pará Figura 1 a cidade está localizada no nordeste paraense a 210 quilômetros da capital do Estado Belém Segundo dados do IBGE 2018 possui uma população de 126436 habitantes Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 131 Figura 1 Localização do município de Bragança do Pará Fonte IBGE 2018 A pesquisa aconteceu no Campus Universitário de Bragança UFPA com idas regulares ao referido local no período de 03062019 até 10082019 Quando por conseguinte obtivemos o retorno dos questionários e então partimos para análise dos dados coletados 22 Coleta de dados A coleta partiu da ideia da abordagem qualitativa de pesquisa que segundo Bauer 2014 p 23 a pesquisa qualitativa evita numeros lida com interpretações das realidades sociais o que certamente foi o objetivo primeiro do presente estudo Como instrumento de pesquisa lançouse mão do questionário construído a partir de questões semiestruturadas compostas por onze questões sistematicamente articuladas com o intuito de captar informações correlacionadas ao estudo em questão De início para a coleta de dados entrouse em contato com os diretores das faculdades do Campus de Bragança a saber Faculdade de Matemática Faculdade de História Faculdade de Letras Português e Inglês Faculdade de Ciências Naturais e a Faculdade de Educação Entregamse os ofícios e recebeuse o aval dos diretores para que fossem entreguem os questionários aos docentesformadores Complementarmente a pesquisa se utilizou de elementos documentais e bibliográficos que segundo Gil 2002 p 44 a pesquisa bibliográfica é desenvolvida com base em material já elaborado constituído principalmente de livros e artigos científicos Uma das vantagens da pesquisa bibliográfica é a possibilidade do pesquisador usufruir de pesquisas já produzidas nesse caso específico trabalhos que foram feitos sobre vulnerabilidade social e sobre o PARFOR no entanto realizados separadamente Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 132 O processo de análise empreendido foi à análise do discurso uma vez que os questionários respondidos remetiam a discursos diversos e por assim requerer os dados foram por primeiro tabulados organizados submetidos ao processo de verossimilhança das respostas ou não o que levou a transcrição total ou parcial dos discursos respeitando a escrita original dos respectivos docentesformadores na emissão das respostas O discurso assim vinculase ao modo em que as palavras são reflexos de outros ditos FOUCAULT 1997 p 33 Ou seja os dados qualitativos requerem um tratamento específico pois o objetivo do pesquisador é compreender o seu caso particular e específico sem preocupar em buscar leis aplicáveis a qualquer outra realidade semelhante MEKSENAS 2010 p 122 Com isso destacase que o discurso será ponderado e analisado mediante aos reflexos das vivências dos sujeitos dentro do espaço acadêmico As respostas de maior representatividade foram expostas com o objetivo de demonstrar o discurso a partir de suas respostas o que por conseguinte respeitaramse a originalidade dos discursos 3 RESULTADOS E DISCUSSÃO 31 Vulnerabilidade social e preconceitos no PARFOR Este tópico do trabalho tem como escopo apresentar as concepções dos docentesformadores do PARFOR na UFPA Campus de Bragança sobre vulnerabilidade social que as alunas do PARFOR sofrem através de perguntas que ajudaram a esclarecer suas concepções Os primeiros estudos feitos sobre vulnerabilidade social tiveram seu foco na pobreza e na desvantagem social Os motivos das desvantagens estavam diretamente ligados a uma série de fatores sociais psicológicos e antropológicos A vulnerabilidade social como o resultado negativo da relação entre a disponibilidade dos recursos materiais ou simbólicos dos atores sejam eles indivíduos ou grupos e o acesso à estrutura de oportunidades sociais econômicas culturais que provêm do Estado do mercado e da sociedade Esse resultado se traduz em debilidades ou desvantagens para o desempenho e mobilidade social dos atores ABRAMOVAY 2002 p 29 A grandeza espacialgeográfica também é um quesito que pode indicar um estado de vulnerabilidade social ou seja considerase que a localização pode gerar alguns preconceitos e estigmas sociais A vulnerabilidade é entendida como desajuste entre ativos e a estrutura de oportunidades provenientes da capacidade dos atores sociais de aproveitar oportunidades em outros âmbitos socioeconômicos e melhor sua situação Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 133 impedindo a deterioração em três principais campos os recursos pessoais os recursos de direitos e os recursos em relações sociais KATZMAN 2001 p 171 O preconceito está diretamente ligado à discriminação e as diferenças que existem no mundo cujos sujeitos preconceituosos atribuem um juízo de valor sobre algo seja de cunho social cultural religioso cor da pele preferência sexual entre outros Fica nítido que o preconceito é um conceito criado e muitas vezes estão associados aos rótulos ou estereótipos que foram instituídos na sociedade O preconceito é caracterizado pelo conteúdo de uma Atitude interior no sentido interno de um sujeito que viola os atributos e os qualificativos em relação ao outro sujeito estabelecendo o funcionamento cognitivo e os contatos perceptivos de forma equivocada cindida e traumática portanto pondo sempre à prova ou derrotando as capacidades e os recursos simbólicos do outro TAUSSIG 1999 p 159 Quando acontece esse ato ou até mesmo pensamento passouse a estabelecer a diferença entre os indivíduos com isso fica caracterizado o ato de discriminação tendo em vista o tratamento diferencial dado ao sujeito que sofre tal discriminação Nessa ótica entendese que há a necessidade de conhecer o perfil dos alunos que ingressam no PARFOR a partir da percepção dos docentesformadores Assim perguntouse Qual o perfil das estudantes do PARFOR As respostas demonstram que os docentesformadores percebem que as estudantes do PARFOR tem o perfil a maioria pobres mães meio rural dificuldades de leitura para alguns Outros enumeram que são profissionais da educação educação infantil ensino fundamental e ensino médio A grande maioria são pobres mulheres mães com idade mediana oriundos do meio rural e com dificuldades de leitura e interpretação de textos Docente9 Hoje esse perfil é misto No curso letras Língua Portuguesa há professores da educação infantil da educação básica ensino fundamental servidores que não são docentes A faixa etária também varia já quanto ao gênero em sua grande maioria são mulheres Docente4 Os outros docentesformadores apontam para a percepção de que o perfil se apresenta como esperança e vontade de aprender e trabalham há muito tempo em comunidades longínquas como destacado nas falas a seguir Alunos que tem muita esperança e vontade de aprender Alunos que visualizam o PARFOR como mudança para suas práticas pedagógicas Alunos com muita dificuldade de leitura e escrita Docente7 Há visível alteração nas capacidades e habilidades dos cursistas embora haja muitos deles com grandes dificuldades de escrita Docente4 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 134 A maioria dos docentes do PARFOR são professores de escolas públicas quase sempre municipais que trabalham há muito tempo em comunidades longínquas da sede do município É importante ressaltar que boa parte não passou na graduação ou fizeram a primeira graduação em instituições particulares de baixa qualidade Docente8 Podemos incluir ainda a questão de que o público é na sua maioria composto por mulheres como pudemos perceber nas falas dos docentesformadores o que pode acarretar na maioria das vezes uma terceira jornada como algo imposto socialmente se considerarmos o âmbito familiar com marido filhos e etc Além da igualdade de oportunidades é necessário condições a estes sujeitos Partindo dessa conjectura cabe destacar que apesar dos diversos espaços conquistados a condição da mulher ainda é permeada por estigmas derivados de uma sociedade fundamentalizada no patriarcado cujos vestígios contemporâneos podem ser vistos no reducionismo e naturalização da mulher à esfera privada ou seja ao âmbito doméstico do lar A luta pela igualdade das condições de formação que se configura como um direito dos sujeitos e um dever do Estado estão em contradição com as e em posição frontal às políticas atuais que propugnam a igualdade de oportunidades ou equidade que se configura como um dever dos sujeitos e um direito do estado FREITAS 1999 p 29 Cruz 2006 p107 ao discorrer sobre vulnerabilidade social faz referência a um processo em vez de um estado portanto ponderase que a vulnerabilidade social é algo construído dentro da sociedade para atender interesses de uma classe dominante Sobre isso ainda buscouse saber O público do PARFOR são alunosas que estavam eou estão em situação de vulnerabilidade social A referida pergunta nos trouxe duas categorias a primeira os docentesformadores acreditam que os alunos do PARFOR estão em situação de vulnerabilidade social como se destaca nas respostas abaixo De certa forma sim pelo baixo grau de instrução e alheio a seus direitos e deveres ficou submetidos a decisões unilaterais Docente9 Sim Moram em locais distantes e de difícil acesso com renda baixa e instabilidade no trabalho além da sensação de abandono ou falta de apoio Docente12 E a segunda categoria constituída por percepção docentesformadores que alegam não ter condições de opinar sobre o assunto Nesta conjuntura formada pelas respostas destacamos as seguintes em relação à segunda categoria Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 135 Sem condição de responder pois não tenho acesso a dados cadastrais Docente6 O que entendo por vulnerabilidade social é que seja uma situação de risco que beira à miséria Não posso afirmar que meus alunos estejam nestas condições extremas mas sei que passam por inúmeras necessidades para se manterem durante o período de estudos Sou ciente de que o termo pode ter outro sentido no discurso das políticas públicas mas esta é a forma como entendo Docente8 Segundo Foucault 1996 p 48 o discurso nada mais é do que a reverberação de uma verdade Analiticamente podese inferir que as respostas demonstram por parte de alguns docentesformadores conhecimento das dificuldades em que se encontravam ou se encontram os estudantes do PARFOR com relação à vulnerabilidade social como a emissão de alguns termos como baixo grau de instrução e alheio a seus direitos e deveres instabilidade no trabalho e sensação de abandono ou falta de apoio De certo as estudantes do PARFOR são pessoas que encontramse em situação de vulnerabilidade social pois o grau de instrução e o acesso à formação e à informação são escassos uma vez que a vida profissional de muitos está concentrada em lugares longínquos com ausência de recursos em todos os âmbitos pessoais e profissionais Em continuidade à análise das respostas dos docentesformadores detectouse na pergunta Os professores formados pelo PARFOR sofrem algum tipo de preconceito Quais que os docentes no geral apontam para a mesma percepção como se destaca na transcrição abaixo Sim Muitas pessoas acreditam que uma formação no PARFOR é decadente em relação à graduação regular Docente5 Na universidade são vistos como velhos oportunistas que os professores facilitam sua vida acadêmica Docente9 Por meio dos relatos dos docentes inferese um jogo de poder com o objetivo de perpetuar uma condição de subordinação da mulher na sociedade nesse discurso verdadeiro o que está em jogo senão o desejo do poder FOUCAULT 1996 p 20 Sendo assim constatase o histórico de negação sofrido pelas mulheres Com mais riqueza de detalhes outros dois docentesformadores discorrem sobre o assunto ressaltando que No social e profissionalmente em muitos casos há uma desvalorização no sentido do programa ser um programa no qual eles ingressam sem concorrência Um lugar simbólico da conquista e do mérito pessoal do acesso ao nível superior por meio de alguma seleção ainda é algo valorizado socialmente Na academia ainda há muitos resquícios de que o tempo longe da escola configura um quadro de limitações muito grande capital cultural Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 136 a base para o aluno enfrentar o curso com qualidade as exigências cabíveis Docente1 Sim Em especial os que só cursaram uma graduação Dentre alguns preconceitos perceptíveis falta de reconhecimento de outros colegas professores assim como menosprezo por parte das pósgraduações públicas O professor também pode agir com preconceito ao subestimar os conhecimentos dos alunos já participei de conversas informais em que isto ficava implícito Docente8 Foucault 1996 p 9 afirma que o discurso longe de ser um elemento transparente ou neutro São observadas nas respostas expressões como formação no PARFOR é decadente são vistos como velhos oportunistas os professores facilitam sua vida acadêmica ingressam sem concorrência e quadro de limitações Termos que ajudam a dimensionar a visão que outro tem sobre as alunas do PARFOR ademais contribuem de forma explícita para uma visão preconceituosa em relação as mulheres Vale ressaltar que são expressões que os docentesformadores têm percebido entre as conversas na academia mas não reflete a concepção dos docentesformadores que participaram da presente pesquisa Essas três perguntas desta sessão objetivou conhecer e analisar o perfil das alunas que fazem parte do PARFOR a partir da percepção dos docentesformadores e constatar se as alunas estão em situação de vulnerabilidade social A vulnerabilidade social bem como o preconceito é uma luta aparentemente invisível mas acontece em todos os segmentos de uma sociedade que vai dos ambientes mais privados como por exemplo o familiar até os ambientes mais púbicos como uma sala de aula e dentro do contexto do PARFOR identificouse fatores característicos do preconceito assim como relatos dos docentes que acreditam que os alunos estão em situação de vulnerabilidade social CONSIDERAÇÕES FINAIS Ressaltase que os objetivos do trabalho foram alcançados nas seguintes condições Em relação ao perfil na grande maioria são pessoas com baixo poder aquisitivo O PARFOR é constituído na sua maioria por mulheres que são mães Adicionalmente podese inferir que as professorasalunas na maioria são oriundas do meio rural E assim que ingressam no curso ofertado pelo Ensino Superior apresentam dificuldades de leitura e interpretação de textos na sua maioria Adicionalmente detectouse que alguns docentesformadores consideram que as alunas estão em situação de vulnerabilidade social tendo em vista o baixo grau de instrução e por Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 137 estarem ausentes de seus direitos e deveres Foi levado em consideração também por morarem em locais distantes com renda baixa e principalmente a instabilidade no trabalho Constatamos ainda nas falas dos docentesformadores alguns fatores que contribuem para o preconceito como por exemplo uma formação tida como decadente em relação à graduação regular as alunas são tidas como velhas além dos professores facilitariam sua vida ou seja é como se as alunas fossem incapaz de atender as demandas de uma graduação Concluise ao afirmarmos que entendemos o PARFOR como uma política pública implementada que tem demonstrado uma mudança no processo de formação dos professores da educação básica no caso específico da pesquisa de mulheres Enquanto nação temos uma dívida histórica com aqueles sujeitos que ficaram e a inda ficam à margem de seus direitos e as políticas de Estado é um caminho a ser seguido para diminuir as desigualdades em nosso país e concomitantemente a diminuição da vulnerabilidade social em relação as mulheres REFERÊNCIAS ABRAMOVAY Miriam Juventude violência e vulnerabilidade social na América Latina desafios para políticas públicas Brasília UNESCO BID 2002 ANDRADE Juliana Oliveira BARBOSA Allan Claudius Queiroz Carreiras Femininas Indo Além Do Senso Comum Um Estudo Com Mulheres Profissionais Brasileiras In XXXVII ENCONTRO DA ASSOCIAÇÃO DOS PROGRAMAS DE PÓSGRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO 7 a 11 de Setembro 2013 Rio de Janeiro Anais Eletrônicos Rio de Janeiro 2013 BAUER Martin Pesquisa qualitativa com texto imagem e som um manual prático 12ed Petrópolis RJ Vozes 2014 BOURDIEU Pierre O campo científico In Ortiz R Bourdieu Pierre Coleção Grandes Cientistas Sociais São Paulo Ática 1994 BRASIL Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Lei Nº 939496 Ministério da EducaçãoMEC de 20 de dezembro de 1996 Brasília DOU 23121996 BRASIL Decreto 6755 de 19 de janeiro de 2009 Institui a Política Nacional de Formação dos Profissionais do Magistério e regulamenta a ação da CAPES Brasília 2009 Publicado no Brasília 29 de janeiro de 2009 BRASIL Relatório de Gestão Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior CAPES 2011 2012 Brasília 2009 Acessado em 05072019 Disponível em httpwwwcapesgovbreducacaobasicacapespibidrelatoriosedados BRASIL Laboratório de Análises Econômicas Históricas Sociais e Estatísticas LAESER Tempo em Curso Ano VI Vol 6 nº 1 Janeiro 2014 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 138 BRASIL Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Contagem Populacional 2018 CAMARANO Ana Amélia Famílias espaço de compartilhamento de recursos e vulnerabilidades In CAMARANO A M Org Os novos idosos Brasileiros muito além dos 60 Rio de janeiro IPEA 2004 CRUZ Lilian Rodrigues Desarticulando as políticas públicas no campo da infância Implicações da abrigagem Santa Cruz do Sul RS Editora da Universidade de Santa Cruz do Sul 2006 DEMO Pedro Educação pelo avesso assistência como direito e problema São Paulo Cortez 2000 FOUCAULT Michel A Ordem do Discurso São Paulo Loyola 1996 FOUCAULT Michel O que é um autor Vega Passagens 1997 FREITAS Helena Costa Lopes de A reforma do Ensino Superior no campo da formação dos profissionais de educação básica As políticas educacionais e os movimentos dos educadores Educação e Sociedade N 68 Campinas SP 1999 GIL Antonio Carlos Como elaborar projetos de pesquisa 4 ed São Paulo Atlas 2002 JEOLÁS Leila Solberg O Jovem e o imaginário da aidso bricoleur de suas práticas e representações Tese de Doutorado PUC São Paulo 1999 KATZMAN Robert Seducidos y abandonados el aislamiento social de los pobres urbanos Revista de la CEPAL Santiago do Chile n 75 p 171 189 dec 2001 MEKSENAS Paulo Método em Pesquisa Empírica In Pesquisa social e ação pedagógica conceitos métodos e práticas São Paulo Loyola 2010 Cap 6 p109148 MELO Marlene Katarina de Oliveira Lopes LOPES Ana Lúcia Magri Empoderamento de Mulheres Gerentes A Construção de um Modelo Teórico de Análise Revista Gestão e Planejamento Salvador v 12 n 3 p 648667 setembrodezembro 2012 MENEZES Paulo Lucena de Ação afirmativa affirmative action no direito norte americano São Paulo Revistas dos Tribunais 2001 RAMALHO Betania Leite NUÑEZ Izauro Beltrán GAUTHIER Clermont Formar o Professor profissionalizar o ensino perspectivas e desafios Porto Alegre Sulina 2004 SEVERINO Antônio Joaquim Metodologia do Trabalho Científico 23 Ed São Paulo Cortez 2007 TAUSSIG Michael O pensamento de Niestzsche Lisboa Editorial Presença 1977 WISNER Ben Marginality and vulnerability Editora Appl Geogr 1998 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 139 A VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL CONTRA A MULHER NA PERSPECTIVA DA JURISPRUDÊNCIA PENAL Bianca Louise Wagner1 Cláudio Macedo de Souza2 RESUMO Este artigo objetiva investigar a relação entre a violência institucional praticada contra a mulher e as decisões judiciais proferidas pelos Tribunais Regionais Federais na repressão ao tráfico de pessoas para fins sexuais Existem decisões judiciais no Brasil que excluem a ocorrência do tráfico de pessoas ao constatarem que a mulher vítima do crime consentiu na sua própria exploração sexual Neste contexto a pesquisa indaga A interpretação conferida pela jurisprudência penal brasileira ao tráfico de pessoas para fins de exploração sexual configura violência contra a mulher Supõese que o entendimento jurisprudencial fundamentado no consentimento da vítima para a exclusão do crime configura uma espécie de violência institucional contra a mulher É sabido que a tutela das mulheres pelo Estado compreende também o julgamento dos crimes de tráfico de pessoas pelo Poder Judiciário Nesta direção a pesquisa investigou julgados penais prolatados pelos Tribunais antes e após a alteração do Código Penal pela Lei 1334416 Constatouse portanto que as decisões judiciais se caracterizam como manifestação de violência institucional contra a mulher enquanto meio de manutenção da estratificação de gênero socialmente desigual Palavraschave Tráfico de pessoas Exploração sexual Violência contra a mulher Direitos humanos INTRODUÇÃO Este artigo objetiva investigar a relação entre a violência institucional praticada contra a mulher e as decisões judiciais proferidas pelos Tribunais Regionais Federais do Brasil na repressão ao tráfico de pessoas para fins sexuais e faz parte do trabalho desenvolvido pela Universidade Federal de Santa Catarina no CONATRAP Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Ministério da Justiça O Protocolo Adicional das Nações Unidas denominado Protocolo de Palermo deu atenção especial ao combate do tráfico de mulheres e crianças e estabeleceu no artigo 3 alínea 1 Acadêmica de Direito da UFSC Universidade Federal de Santa Catarina Bolsista PIBICCNPq na área de Direito Penal Integrante do GDPI Grupo de Direito Penal Internacional da UFSC Email blouisewagnergmailcom Currículo Lattes httplattescnpqbr6674370041620415 2 Professor e advogado Doutor em Ciências Penais pela UFMG Universidade Federal de Minas Gerais Professor de Direito Penal da UFSC Universidade Federal de Santa Catarina Representante da UFSC no CONATRAP Comitê Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas vinculado ao Ministério da Justiça Email clauruasgmailcom Currículo Latttes httplattescnpqbr7935302615095690 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 140 b que o consentimento dado pela vítima será considerado irrelevante quando configurada uma situação de vulnerabilidade Com efeito em 2016 entrou em vigência a Lei de nº 13344 que revogou o artigo 231 até então vigente no Código Penal acrescentando ao diploma o artigo 149A que estabelece o novo tipo penal do tráfico internacional de pessoas realizando diversas alterações legais dentre elas a adição ao caput dos meios de execução do crime mediante grave ameaça violência coação fraude ou abuso Assim tornase necessária a investigação acerca do entendimento jurisprudencial quanto à ocorrência de ao menos um desses meios de execução ocasião em que o consentimento da vítima tem sido considerado para o julgamento pelos tribunais brasileiros Nesse contexto existem decisões judiciais que excluem a ocorrência do tráfico de pessoas ao constatarem que a mulher vítima do crime consentiu na sua própria exploração sexual Diante desse quadro indagase A interpretação conferida pela jurisprudência penal brasileira ao tráfico de pessoas para fins de exploração sexual configura violência contra a mulher Supõese que o entendimento jurisprudencial fundamentado na relevância do consentimento da vítima para a exclusão do crime configura uma espécie de violência institucional contra a mulher A metodologia de investigação foi estruturada na pesquisa teórica com o levantamento da literatura jurídica e também na pesquisa documental Nesse sentido foi proposta a pesquisa quantitativa como forma de abordagem mediante a coleta de julgados penais dos Tribunais Regionais Federais proferidos antes e após a publicação da Lei 133442016 Ademais outros documentos foram coletados tais como leis e relatórios Ainda foi avaliado o conteúdo das decisões judiciais coletadas O artigo está dividido em duas partes Em primeiro lugar discorreuse acerca da tipificação penal e das alterações legislativas ocorridas na esfera do crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual A dignidade humana foi identificada como bem jurídico tutelado com base na vulnerabilidade da mulher enquanto vítima do crime Em segundo lugar foram examinadas as decisões judiciais proferidas antes da publicação da Lei 133442016 contrastandoas com a jurisprudência publicada após a alteração legislativa Essa metodologia teve o fim de compreender a relação entre a jurisprudência penal majoritária e a forma de violência institucional praticada contra a mulher A pesquisa tem como conclusão a produção do III Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 141 1 A VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL CONTRA A MULHER UMA RELAÇÃO ENTRE A LEGISLAÇÃO PENAL E A JURISPRUDÊNCIA DOS TRIBUNAIS O tráfico de pessoas previsto no Código Penal de 1890 constava do rol dos crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do ultraje público ao pudor BRASIL 1980 A redação exigia para a configuração do crime que as vítimas mulheres tivessem sido constrangidas por intimidações ou ameaças ou que houvesse abuso de fraqueza ou miséria Desse modo depreendese que o consentimento da vítima afastaria a tipificação desse crime3 A Lei 299215 alterou a redação do referido artigo e passou a considerar que mesmo com o seu consentimento vítima há a ocorrência do crime contudo ainda não tratado como tráfico de pessoas4 BRASIL 1915 O Código Penal de 1940 atualmente em vigor trouxe como redação originária o tráfico de mulheres inserido no rol dos crimes contra os costumes consubstanciado na promoção ou facilitação da entrada no Brasil de mulher que venha a exercer a prostituição ou saída daquela que vai exercêla em país estrangeiro5 A primeira alteração foi por meio da Lei 11106 de 2005 que além de alterar o artigo 231 para tráfico internacional de pessoas também incluiu o artigo 231A tráfico interno de pessoas Ademais passou a considerar o tráfico de pessoa não apenas de mulher6 Verificase que a lei penal desconsidera o consentimento da vítima para tipificação do crime de tráfico internacional de pessoas de modo que a utilização de violência grave ameaça ou fraude é apenas uma qualificadora sem ônus para a subsunção da norma Na hipótese de 3 Art 278 Induzir mulheres quer abusando de sua fraqueza ou miséria quer constrangendoas por intimidações ou ameaças a empregaremse no tráfico da prostituição prestarlhes por conta própria ou de outrem sob sua ou alheia responsabilidade assistência habitação e auxílios para auferir directa ou indirectamente lucros desta especulação Penas de prisão cellular por um a dous annos e multa de 500 a 1000000 BRASIL 1890 4 Art 278 1º Aliciar atrair ou desencaminhar para satisfazer as paixões lascivas de outrem qualquer mulher menor virgem ou não mesmo com o seu consentimento aliciar atrair ou desencaminhar para satisfazer as paixões lascivas de outrem qualquer mulher maior virgem ou não empregando para esse fim ameaça violência fraude engano abuso de poder ou qualquer outro meio de coacção reter por qualquer dos meios acima referidos ainda mesmo por causa de dívidas contraídas qualquer mulher maior ou menor virgem ou não em casa de lenocínio obrigála a entregarse à prostituição BRASIL 1915 5 Art 231 Promover ou facilitar a entrada no território nacional de mulher que nele venha exercer a prostituição ou a saída de mulher que vá exercêla no estrangeiro Pena reclusão de três a oito anos 1º Se ocorre qualquer das hipóteses do parágrafo 1º do art 227 Pena reclusão de quatro a dez anos 2º Se há emprego de violência grave ameaça ou fraude a pena é de reclusão de cinco a doze anos além da pena correspondente à violência BRASIL 1940 6 Art 231 Promover intermediar ou facilitar a entrada no território nacional de pessoa que venha exercer a prostituição ou a saída de pessoa para exercêla no estrangeiro Pena reclusão de 3 três a 8 oito anos e multa 1º 2º Se há emprego de violência grave ameaça ou fraude a pena é de reclusão de 5 cinco a 12 doze anos e multa além da pena correspondente à violência BRASIL 2005 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 142 violência ou grave ameaça contra a vítima seria aplicada a pena cominada do 2º do artigo 231 mas mantendose a tipificação penal Já a Lei 1201509 foi a primeira a incluir o tráfico de pessoas no rol dos crimes contra a dignidade sexual e utilizar em sua redação o termo exploração sexual ampliando o tipo Ainda passou a ser uma majorante o emprego de violência grave ameaça ou fraude7 Notase que até então o crime de tráfico de pessoas era limitado ao fim de exploração sexual tão somente Por esse motivo a Lei 1334416 foi de extrema importância Tratase de alteração que visou a prevenção e repressão ao tráfico interno e internacional de pessoas trazendo além de uma série de princípios e diretrizes a revogação dos artigos 231 e 231A e a redação do artigo 149A inserindoo no rol dos crimes contra a liberdade pessoal8 É pois uma lei de grande importância ao enfrentamento ao tráfico de pessoas que logicamente se manifesta para outros fins que não somente o de exploração sexual fato esse reconhecido nessa modificação legislativa Dessa forma restou também tipificado o tráfico de pessoas que visa a remoção de órgãos tecidos ou parte do corpo submissão de trabalho análogo à escravidão submissão à servidão e adoção ilegal Outrossim o legislador alterou a pena mínima do tipo que passou de três para quatro anos A nova lei também prevê a assistência jurídica social de trabalho saúde e emprego abrigo e acolhimento provisório prevenção à revitimização no atendimento e nos procedimentos investigatórios e judiciais atendimento humanizado e a informação sobre procedimentos administrativos e judiciais Contudo a inclusão no caput do artigo da expressão mediante grave ameaça violência coação fraude ou abuso trouxe grandes consequências sobretudo quanto à possibilidade de caracterização do crime em casos de consentimento da vítima Agora o emprego dessas ações não mais incide em um aumento de pena como anteriormente nas Lei 1110605 e 1201509 Logo do texto do legislador podese dizer que inexistindo grave ameaça violência coação fraude ou abuso não há crime de tráfico de pessoas O bem jurídico penal é o interesse relevante à tutela de proteção do Estado no âmbito criminal Com efeito a tipificação do tráfico internacional de pessoas está incluído no rol de 7 Art 231 Promover ou facilitar a entrada no território nacional de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual ou a saída de alguém que vá exercêla no estrangeiro Pena reclusão de 3 três a 8 oito anos 1º Incorre na mesma pena aquele que agenciar aliciar ou comprar a pessoa traficada assim como tendo conhecimento dessa condição transportála transferila ou alojála 2º A pena é aumentada da metade se IV há emprego de violência grave ameaça ou fraude BRASIL 2009 8 Art 149A Agenciar aliciar recrutar transportar transferir comprar alojar ou acolher pessoa mediante grave ameaça violência coação fraude ou abuso com a finalidade de V exploração sexual Pena reclusão de 4 quatro a 8 oito anos e multa BRASIL 2016 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 143 crimes contra a liberdade pessoal sendo esse a princípio o bem jurídico tutelado pelo presente Código Penal Todavia Nucci 2014 p 2930 considera o crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual como grave por abranger a lesão múltipla a bens jurídicos de crucial relevância tais como a liberdade a integridade física a honra a saúde individual e em último grau a vida Assim a ofensa não somente ultrapassa a esfera da liberdade mas também atinge a dignidade sexual da vítima que é associada à intimidade e à vida privada sendo direito da pessoa realizarse sexualmente sem interferência alheia Bittencourt 2018 p 206 entende que nos crimes contra a dignidade sexual no entanto junto ao bem jurídico liberdade ofendemse também outros bens jurídicos que desempenham Isso porque a liberdade desempenharia um papel secundário na tutela penal de modo que essa finalidade do crime de tráfico de pessoas lesa também a dignidade sexual Para Regis Prado 2019 p 229 o bem jurídico tutelado é além da liberdade sexual a dignidade da pessoa humana Pondera que no crime em questão a lesão aos referidos bens jurídicos é evidente visto que a vítima ainda que consinta com o deslocamento tão somente o faz mediante violência grave ameaça coação fraude ou abuso sendo tratada como mera res coisa ou objeto A dignidade para Afonso da Silva 1998 p 9193 é atributo intrínseco da essência da pessoa humana único ser que compreende um valor interno superior a qualquer preço que não admite substituição equivalente Assim a dignidade entranha e se confunde com a própria natureza do ser humano e reclama condições mínimas de existência existência digna conforme os ditames da justiça social como fim da ordem econômica Nesse viés a Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988 considera a dignidade da pessoa humana um fundamento da República Federal enquanto constituída em um Estado Democrático de Direito Diante disso possui um valor supremo sendo um princípio que transcende a ordem jurídica reverberando também na ordem política social econômica e cultural Portanto a dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional pois ela é um desses conceitos a priori um dado preexistente a toda experiência especulativa tal como a própria pessoa humana A Constituição reconhecendo a sua existência e a sua eminência transformoua num valor supremo da ordem jurídica quando a declara como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil constituída em Estado Democrático de Direito SILVA 1998 p 91 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 144 Esse conceito prévio ao qual Silva se refere é oriundo da filosofia kantiana do século XIX Emmanuel Kant sustenta que o ser humano possui consciência de si próprio de modo que a dignidade do homem ser racional obedece tão somente à lei que ele mesmo institui Assim a natureza racional existente como um fim em si mesma possui um valor absoluto indisponível que por consequência limita o arbítrio do ser humano tendo em vista que o homem não pode ser utilizado como meio para a ação de outro Kant deu origem à ideia de dignidade da pessoa humana como bem próprio da natureza do ser humano e indisponível o que foi ratificado pela Constituição Federal de 1988 Temse que o tráfico de pessoas enquanto ofensa à liberdade e dignidade sexual transcende esse aspecto sobretudo considerando a situação de vulnerabilidade inerente à vítima desse crime Dessa forma atinge também a dignidade da pessoa humana cuja proteção é fundamento da Carga Magna brasileira porquanto bem jurídico intrínseco e indisponível às pessoas Desse modo tratase de um crime cujo bem jurídico a ser tutelado é o da dignidade da pessoa humana Por conseguinte sua violação se configura em verdade como ofensa aos direitos humanos 11 Diretrizes preventivas repressivas e punitivas do crime O Protocolo de Palermo foi elaborado no ano de 2000 em Nova York Estados Unidos e foi recepcionado pelo Decreto nº 5017 de 12 de março de 2004 sendo denominado de Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas em Especial Mulheres e Crianças Esse instrumento internacional delineou medidas destinadas à prevenção do tráfico de pessoas a fim de conservar os direitos fundamentais das vítimas por parte dos países signatários A necessidade da elaboração do protocolo surgiu da preocupação de que não existia outro instrumento que abordasse os pormenores do crime de tráfico de pessoas Assim a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional foi aditada com o objetivo de prevenir reprimir e punir o tráfico de pessoas em especial de mulheres e crianças BRASIL 2004 O artigo 3º alínea a do protocolo definiu A expressão tráfico de pessoas significa o recrutamento o transporte a transferência o alojamento ou o acolhimento de pessoas recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação ao rapto à fraude ao engano ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 145 aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração A exploração incluirá no mínimo a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual o trabalho ou serviços forçados escravatura ou práticas similares à escravatura a servidão ou a remoção de órgãos BRASIL 2004 Na alínea b desse mesmo artigo estabeleceuse como irrelevante o consentimento da vítima em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a do presente Artigo9 o que inclui logicamente as diversas modalidades de exploração sexual Do mesmo modo a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas aprovada pelo Decreto nº 5948 de 26 de outubro de 2006 também visou estipular medidas com a finalidade estabelecer princípios diretrizes e ações de prevenção e repressão ao tráfico de pessoas e de atenção às vítimas conforme as normas e instrumentos nacionais e internacionais de direitos humanos e a legislação pátria10 BRASIL 2006 Nesse sentido adotou o conceito de tráfico de pessoas convencionado pelo Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas repisando o artigo 3º alínea a do referido Protocolo em seu artigo 2º11 ressaltando no 7º que o consentimento dado pela vítima é irrelevante para a configuração do tráfico de pessoas12 BRASIL 2006 Logo em análise aos instrumentos supramencionados extraise que tanto a situação de vulnerabilidade quanto o pagamento ou concessão de benefícios para obtenção de consentimento da vítima para a exploração sexual impedem que a concordância da vítima seja válida razão pela qual é irrelevante para a configuração do crime como dito A ameaça violência coação fraude engano ou abuso de autoridade como causa de impossibilidade absoluta de consentimento válido é fato incontroverso na doutrina e jurisprudência Contudo a situação de vulnerabilidade da vítima é desconsiderada sendo 9 Art 3 alínea b O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a do presente Artigo será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a BRASIL 2004 10 Art 1º A Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas tem por finalidade estabelecer princípios diretrizes e ações de prevenção e repressão ao tráfico de pessoas e de atenção às vítimas conforme as normas e instrumentos nacionais e internacionais de direitos humanos e a legislação pátria BRASIL 2006 11 Art 2º Para os efeitos desta Política adotase a expressão tráfico de pessoas conforme o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas em especial Mulheres e Crianças que a define como o recrutamento o transporte a transferência o alojamento ou o acolhimento de pessoas recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação ao rapto à fraude ao engano ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração A exploração incluirá no mínimo a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual o trabalho ou serviços forçados escravatura ou práticas similares à escravatura a servidão ou a remoção de órgãos BRASIL 2006 12 Art 2º 7º O consentimento dado pela vítima é irrelevante para a configuração do tráfico de pessoas BRASIL 2006 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 146 sopesado tão somente se há algum vício de consentimento baseado naquelas situações descritas sem levar em conta o cenário de vulnerabilidade em que se encontra a vítima desvalorizando a dignidade da pessoa humana A UNODC Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime conceitua vulnerabilidade em seu artigo Abuse of a position of vulnerability and other means within the definition of trafficking in persons No contexto do tráfico a vulnerabilidade é tipicamente usada para se referir àquelas intrínsecas ambientais ou circunstanciais que aumentam a suscetibilidade de um indivíduo ou grupo a ser traficado Estes fatores geralmente incluem violações de direitos humanos como pobreza desigualdade discriminação e violência baseada em gênero todas contribuindo para a privação econômica e condições sociais que limitam a escolha individual e facilitam a ação de traficantes e exploradores UNODC 2013 p 2324 tradução livre A UNESCO Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura associa a vulnerabilidade ao risco de violência ao qual uma pessoa é submetida BRASIL 2014 Dessa forma entendese que a pessoa vulnerável está sob constante risco de violência e está nessa condição justamente por ser carente de direitos e garantias que a cidadania oferece Para Domingos Jorio 2019 p 6 os vulneráveis são aqueles expostos a uma situação de fragilidade e não possuem consciência dos bens jurídicos de que são titulares estando em constante exposição a danos e perigos De acordo com o Relatório Global sobre o Tráfico de Pessoas apresentado pela UNODC 2018 p 10 tradução livre a exploração sexual é a forma mais comum de tráfico de pessoas Os dados demonstram que a vasta maioria dessas vítimas são mulheres majoritariamente adultas mas com um número significativo de meninas também De acordo com a pesquisa 72 das vítimas de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual são do gênero feminino sendo 49 mulheres adultas e 23 meninas menores de dezoito anos Ainda importante salientar que entre as crianças que somam 30 do número de vítimas de tráfico 23 são do gênero feminino O Protocolo de Palermo dá enfoque especial à prevenção do tráfico de mulheres e crianças em face de sua condição evidente de vulnerabilidade Em seu artigo segundo traz como objetivo a prevenção e combate ao tráfico de pessoas prestando uma atenção especial às mulheres e às crianças13 13 Art 2º Os objetivos do presente Protocolo são os seguintes a Prevenir e combater o tráfico de pessoas prestando uma atenção especial às mulheres e às crianças b Proteger e ajudar as vítimas desse tráfico respeitando Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 147 Do mesmo modo a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas prevê no artigo 8º inciso X ações dedicadas à proteção e promoção especificamente dos direitos das mulheres14 Segundo Simone de Beauvoir 1970 p 95 o mundo desde sempre pertenceu aos homens porquanto desde os primórdios da humanidade foi imposto às mulheres sua tarefa de repetição da vida de modo que deveriam se resguardar em casa dedicandose à maternidade enquanto ao homem cabia a caça o sustento da família Essa construção social pautada na desigualdade se mantém até os dias atuais incidindo em uma divisão da sociedade que historicamente separou as atribuições de cada gênero Essa hierarquia nos papéis de gênero origina uma desigualdade que tem efeitos na dominação do gênero masculino sobre o feminino sendo que as mulheres sofrem o reflexo dessa ideia de submissão social fato esse intrínseco à cultura e história da humanidade A violência de gênero se manifesta pois em resultado a uma estratificação social que concede privilégios ao homem Por esse motivo a mulher por si só já é vulnerável em relação ao homem fato esse que deu causa à proteção especial do Protocolo de Palermo e da Política Nacional Com efeito a vítima de tráfico de pessoas se encontra em uma situação de vulnerabilidade decorrente da sua própria condição de mulher Entendese que o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual contém uma série de fenômenos como o contrabando de migrantes a prostituição voluntária no exterior a exploração sexual comercial de menores o trabalho escravo a industria pornográfica o turismo sexual e outros serviços de cunho sexual RODRIGUES 2013 p 21 A prostituição uma das modalidades mais recorrentes de exploração sexual nos casos de tráfico de pessoas mesmo quando consentida pressupõe uma hipossuficiência financeira da plenamente os seus direitos humanos e c Promover a cooperação entre os Estados Partes de forma a atingir esses objetivos BRASIL 2004 14 Art 8º Na implementação da Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas caberá aos órgãos e entidades públicos no âmbito de suas respectivas competências e condições desenvolver as seguintes ações X na área da Proteção e Promoção dos Direitos da Mulher a qualificar os profissionais da rede de atendimento à mulher em situação de violência para o atendimento à mulher traficada b incentivar a prestação de serviços de atendimento às mulheres traficadas nos Centros de Referência de Atendimento à Mulher em Situação de Violência c apoiar e incentivar programas e projetos de qualificação profissional geração de emprego e renda que tenham como beneficiárias diretas mulheres traficadas d fomentar debates sobre questões estruturantes favorecedoras do tráfico de pessoas e relativas à discriminação de gênero e promover ações de articulação intersetoriais visando a inserção da dimensão de gênero nas políticas públicas básicas assistenciais e especiais f apoiar programas projetos e ações de educação nãosexista e de promoção da diversidade no ambiente profissional e educacional g participar das capacitações visando garantir a temática de gênero e h promover em parceria com organizações governamentais e nãogovernamentais debates sobre metodologias de atendimento às mulheres traficadas BRASIL 2006 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 148 vítima a ser superada rapidamente por meio da troca de dinheiro por atos sexuais Diante disso temse que a vítima encontrase em uma situação de vulnerabilidade econômica oriunda das desigualdades de gênero e socioeconômica contexto em que não possui a capacidade de consentir propriamente FIGUEIREDO PEIXOTO 2010 p 198 A vítima está sujeita às violências inerentes ao exercício da prostituição que comumente incide em um abuso de drogas Além disso a prostituta também é mais suscetível a ter problemas de saúde tais quais doenças sexualmente transmissíveis gravidez não planejada e aborto incluindo ainda distúrbios mentais como depressão e ansiedade Essa situação é agravada no caso da vítima de tráfico internacional de pessoas Isso porque está em país diverso muitas vezes em condição ilegal em localidade de língua estrangeira e longe de quaisquer raízes familiares Tornase problemático então o fato de que estar solitária afasta a possibilidade de sair dessa conjuntura de exploração sexual sobretudo porquanto apenas tem contato com seus aliciadores outras vítimas em situação similar e pessoas que usufruem de seus serviços sexuais De mais a mais o pagamento por esses serviços não descaracteriza a vulnerabilidade da pessoa traficada sendo salientado no artigo 3º alínea a do Protocolo de Palermo que o pagamento ou concessão de benefícios invalida o consentimento da vítima Leciona João Paulo Orsini Martinelli 2010 p 263 O direito penal deve evitar a exploração da vulnerabilidade pela qual alguém aproveitandose da fragilidade do ofendido obtém vantagem injusta Quando um vulnerável é explorado mesmo sem violência ou grave ameaça seu comportamento é dirigido por uma vontade que não corresponde à realidade Quer dizer a vontade demonstrada ser explorado oposta à vontade real não ser explorado No entanto por não haver alternativas diferentes o ofendido acaba por sucumbir à relação de exploração Estudo sociológico realizado por Adriana Piscitelli 2011 p 4 acerca do tráfico de pessoas na Espanha para fins de exploração sexual revelou que muitas das pessoas traficadas não reconhecem sua condição de vítima São diversas as causas seja pela simples falta de reconhecimento do crime ali praticado por medo dos aliciadores dependência psicológica em relação aos autores do crime ou ainda vergonha da exploração sexual que sofreram Como esclarece Siddharth Kara 2009 p 12 tradução livre o sujeito passivo do crime de tráfico de pessoas está sujeito a um cenário comum estupro abuso de drogas escassez de comida e remédios e moradia em condições insalubres À vista disso é evidente que a conjuntura de vulnerabilidade em que a vítima se encontra é inerente à sua condição de sujeito passivo do crime de tráfico de pessoas sendo essa Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 149 conjuntura capaz de violar por si só a dignidade da pessoa humana Desse modo inexiste a capacidade de anuir propriamente motivo pelo qual eventual consentimento da vítima não é válido nem legítimo Como verificado além da situação de inerente vulnerabilidade das vítimas em lato sensu restou demonstrado que essa condição é agravada no caso de vítimas do gênero feminino razão pela qual tiveram enfoque especial nos instrumentos nacionais e internacionais de combate ao tráfico Desse modo temse uma espécie de dupla incidência de vulnerabilidade no caso de vítima de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual enquanto mulher que além de estar sujeita à vulnerabilidade relacionada ao gênero está também em constante risco de violência em razão do crime da qual é vítima 12 A jurisprudência penal dos Tribunais Regionais Federais O exame da jurisprudência anterior à Lei 1334416 envolve diversas decisões unânimes em relação à existência do crime de tráfico de pessoas em que pese o consentimento dado pela vítima Isso porque os meios executivos violência grave ameaça ou fraude não constituíam o caput do artigo limitandose à sanção penal como qualificadora Lei 1110605 ou majorante Lei 1201509 Dessa forma todos os tribunais superiores foram uníssonos em desconsiderar a concordância da vítima na égide das leis anteriores matéria incontroversa até mesmo para os doutrinadores Já as decisões proferidas após a vigência de Lei 1334416 são mais escassas razão pela qual foram averiguados somente onze acórdãos sendo quatro do TRF1 dois do TRF3 dois do TRF4 e três do TRF5 Não foram encontrados julgados do Tribunal Regional Federal da 2ª Região com relevância à pesquisa15 O Tribunal Federal Regional da 1ª Região considera que o crime previsto no artigo 149 A do Código Penal somente se configura caso ocorra o agenciamento aliciamento recrutamento transporte transferência compra alojamento ou acolhimento da vítima para fins de exploração sexual ocorre sob grave ameaça violência coação fraude ou abuso uma vez que os meios executivos são elementos essenciais do tipo nos termos da Lei 13344 grave ameaça violência coação fraude ou abuso são elementos da definição legal do tipo do crime de tráfico de pessoas na sua forma simples CP Art 149A caput Sem a presença de pelo menos um desses elementos na conduta do agente o crime de tráfico de pessoas não se caracteriza Dessa forma se o agente recrutar alguém para explorar seus serviços sexuais no Brasil ou no exterior sem o emprego de grave ameaça 15 Acesso em httpsdrivegooglecomopenid1pahzPzwNSNgc8z2S6GkKphaWlWdkZv Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 150 violência coação fraude ou abuso a conduta será atípica BRASIL TRF1 2017 Desse modo o entendimento é o de que a redação do caput restringe a configuração do crime aos casos que não há consentimento da vítima Tal fato não ocorria na vigência das leis anteriores pois o crime não dependia da falta de anuência da vítima Nesse sentido podese considerar que a legislação atual é mais benéfica ao réu o que incide na irretroatividade da lei mais gravosa em fatos ocorridos antes da Lei 1334416 Embora o novo art 149A do CP preveja penas mais graves quatro a oito anos de reclusão e multa que as anteriormente previstas em lei ele corresponde no sentido acima exposto a uma norma penal posterior é mais branda que o art 231 do CP já expressamente revogado por limitar a abrangência do tipo penal ensejando sob esse viés abolitio criminis das condutas que não possam mais ser incluídas dentro do âmbito de incidência típica da norma penal incriminadora e retroagindo no caso concreto para contemplar fatos anteriores à sua vigência conforme prevêem o art 5º XL da Constituição Federal e o art 2º caput e único do Código Penal Não há que se falar portanto em responsabilização penal pela prática de conduta que não se encontra mais prevista em lei como delituosa impondose a absolvição dos denunciados BRASIL TRF1 2017 Em decisão à Apelação Criminal nº 00051654420114013600MT a Desembargadora Mônica Sifuentes redigiu seu voto no seguinte sentido À luz do Protocolo e da Lei 1334416 somente há tráfico de pessoas se presentes as ações meios e finalidades nele descritas Por conseguinte a vontade da vítima maior de 18 anos apenas será desconsiderada se ocorrer ameaça uso da força coação rapto fraude engano ou abuso de vulnerabilidade num contexto de exploração do trabalho sexual Portanto não há que se falar na configuração do delito de tráfico internacional de pessoas consoante a interpretação dada ao art 149A se o profissional do sexo voluntariamente entrar ou sair do país manifestando consentimento de forma livre de opressão ou de abuso de vulnerabilidade BRASIL TRF1 2019b Em que pese a análise se basear também no Protocolo de Palermo não houve avaliação quanto à situação de vulnerabilidade da vítima condição que de acordo com o instrumento internacional impossibilita a validação do seu consentimento Do mesmo modo entende o Tribunal Regional Federal da 3ª Região na Apelação Criminal nº 00035692720074036181SP que a decisão expôs especialmente com relação ao crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual de que se cuida nos autos que uma vez verificada a existência de consentimento válido sem qualquer vício resta afastada a tipicidade da conduta BRASIL TRF3 2017a Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 151 O Desembargador Wilson Zauhy na Apelação Criminal nº 0003784 9520104036181SP discorreu nesse mesmo sentido considerando que caso existente o consentimento da vítima não há conduta típica Na vigência da Lei 111062005 o emprego de violência grave ameaça ou fraude consistia qualificadora das condutas descritas no caput do artigo 231 do Código Penal Logo na vigência dessa lei o consentimento da vítima era irrelevante para a configuração do delito previsto no caput Contudo na nova redação do artigo 149A do CP dada pela Lei 133442016 a violência a grave ameaça e a fraude e agora também as figuras da coação e o abuso estão incluídas como circunstâncias elementares do novo tipo penal de modo que se elas não ocorrem não se configura a tipicidade da conduta BRASIL TRF3 2017b Em concordância ao entendimento dos referidos tribunais o TRF da 4ª Região também entende pela configuração do abolitio criminis em caso de consentimento da vítima de tráfico internacional de pessoas Em atenção à AC nº 50047846720164047002PR o Desembargador Relator Fernando Paulsen foi enfático ao estabelecer que as condutas do art 149A do CP quando praticadas mediante acordo de vontades com a suposta vítima não configuram mais crime BRASIL TRF4 2017 Em contrapartida o Tribunal da 5ª Região entendeu diferente dos demais utilizando como critério para análise da lei mais gravosa a pena cominada Tendo em vista que na nova lei a pena mínima é de quatro anos temse que é a lei mais grave uma vez que a anterior tinha como punição pena de reclusão mínima de três anos As Leis 111062005 e 120152009 não trouxeram inovações que proporcionasse algum benefício em termos de cominação de pena ou atipicidade de conduta a permitir a incidência do efeito retrospectivo à luz do princípio da retroatividade da lei mais benéfica ao réu Assim na espécie é inegável que deve ser aplicável a redação originária do art 231 do CP por se revelar mais benéfica à ré BRASIL TRF5 2017a À vista disso temse que o TRF5 julga irrelevante o consentimento da vítima uma vez considerada a inteligência do artigo 231 do Código Penal razão pela qual é desimportante que a vítima tenha consciência de que será entregue à prostituição no exterior já que o crime se consuma independentemente do seu consentimento BRASIL TRF5 2017b O Desembargador Federal Leonardo Carvalho também posicionouse nesse sentido na decisão da Apelação Criminal 15004RN Portanto constatase que os Tribunais Regionais Federais da 1ª 3ª e 4ª Regiões são uníssonos em considerar que de acordo com a redação da Lei 1334416 é elementar do tipo a ocorrência dos meios de execução previstos grave ameaça violência coação fraude ou abuso Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 152 para a caracterização do crime Por conseguinte caso haja o consentimento da vítima ocasião em que não se configura nenhum dos meios executivos não há tipicidade da conduta de qualquer um dos verbos nucleares do artigo 149A A Lei 1334416 é pois mais benéfica ao réu devendo ser aplicada aos casos em que o crime ocorreu na vigência da legislação anterior Já o Tribunal Regional da 5ª Região afere que é irrelevante consentimento da vítima uma vez que reputa como mais benéfica a legislação anterior tendo em vista que a pena cominada é menor em comparação à da lei atual devendo essa retroagir Logo em nenhum dos casos analisados se atentou à condição de vulnerabilidade da vítima à dignidade da pessoa humana ou ao fato de que o crime viola os direitos humanos De acordo com o CNJ Conselho Nacional de Justiça a violência institucional é uma modalidade motivada por desigualdades sociais predominantes como a de gênero de modo que a violência se caracteriza pela expressão dessas desigualdades quando se formalizam e se institucionalizam nas organizações privadas e aparelhos estatais Portanto entendese que Violência institucional é aquela praticada por ação eou omissão nas instituições prestadoras de serviços públicos tais como hospitais postos de saúde escolas delegacias Judiciário dentre outras É perpetrada por agentes que deveriam garantir uma atenção humanizada preventiva e reparadora de danos Na seara da violência institucional podemos encontrar desde a dimensão mais ampla como a falta de acesso aos serviços de saúde e a má qualidade dos serviços prestados até mesmo como expressões mais sutis mas não menos violentas tais como os abusos cometidos em virtude das relações desiguais de poder entre profissional e usuário A eliminação da violência institucional requer um grande esforço de todos nós pois em sua grande maioria acontece em nossas práticas cotidianas com a população usuária dos serviços TAQUETTE 2007 p 95 A Lei 1334416 proveu aos Tribunais Regionais Federais substrato para uma interpretação equivocada em dissonância ao princípio da dignidade humana que possui grandiosa tutela como fundamento da Constituição Federal da República Brasileira Nesse viés percebese que o Poder Judiciário enquanto parte dos três poderes que regem a organização estrutural brasileira deu continuidade à violência ocasionada pelas relações desiguais de gênero incidindo em uma manifestação de violência institucional ao entender o consentimento da vítima afasta a configuração do crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual O crime de tráfico de pessoas viola os direitos humanos porquanto a situação de vulnerabilidade é inerente à condição de mulher enquanto sujeito passivo conforme o Protocolo Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 153 de Palermo recepcionado pelo Brasil Ao ignorar tal fato a jurisprudência majoritária incorre em uma manifestação mesmo que velada de violência institucional Tratase pois de discurso mantenedor da estrutura hierárquica brasileira de dominação do homem Não se argumenta no entanto que essa reprodução é voluntária Ao contrário trata se de uma conjuntura intrínseca à sociedade sendo que a hierarquia de gênero se manifesta por vezes inconscientemente Todavia não ameniza a nocividade dessa conduta CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo buscouse compreender a relação entre as decisões judiciais proferidas pelos Tribunais Regionais Federais e a violência institucional contra a mulher no crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual Sabese que a mulher vítima de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual está em situação de vulnerabilidade e carente de direitos básicos garantidos pela cidadania e em razão disso não possui capacidade para consentir A par disso a mulher enquanto parte de um sistema social hierarquicamente desigual em razão da dominação do gênero masculino tornase vulnerável e por isso merece tutela diferenciada nos instrumentos de combate ao tráfico de pessoas Além desse próprio cenário de vulnerabilidade da mulher temse que o tráfico de pessoas é de crime de exploração do ser humano Neste caso ofende a dignidade humana bem jurídico indisponível e por isso é impensável que mulheres possam consentir na sua própria exploração sexual Todavia a pesquisa constatou que a jurisprudência majoritária brasileira tem decidido em sentido contrário pois considera os meios executivos grave ameaça violência ou fraude elementos essenciais para a ocorrência do crime Desse modo não havendo grave ameaça violência coação fraude ou abuso o crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual não se configura sob o argumento de haver consentimento da vítima conforme decisões judiciais investigadas Tendo em vista o conceito de violência institucional do próprio Conselho Nacional de Justiça concluise que o Poder Judiciário ao afastar a configuração do crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual com base no consentimento da mulher reproduz a manutenção da violência ocasionada pelas relações desiguais de gênero incidindo em uma manifestação de violência institucional Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 154 O resultado da pesquisa indica que a interpretação da lei penal ignora a situação de vulnerabilidade da mulher e sobrepõe erroneamente a relevância do seu consentimento à dignidade da pessoa humana Esta interpretação não atenta para o fato de que a mulher sequer possui a capacidade de consentir devido à exploração sexual À vista disso a interpretação judicial manifesta uma preservação da estrutura de desigualdade social em face do gênero e sendo um aparelho estatal que ratifica essa estrutura de poder é uma clara expressão de violência institucional contra a mulher enquanto vítima do crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual REFERÊNCIAS BEAUVOIR Simone O Segundo Sexo fatos e mitos 4 ed São Paulo Difusão Européia do Livro 1970 BITENCOURT Cezar Roberto Tratado de Direito Penal 12 ed São Paulo Saraiva Educação 2018 BRASIL Tribunal Regional Federal da 1ª Região 3 Turma Apelação Criminal nº 00035335620074014300TO Art 231 do Código Penal Conduta praticada na vigência da Lei 111062005 Superveniência da Lei 133442016 Relator Desembargadora Federal Mônica Sifuentes Brasília DF 31 jul 2019 Disponível em httpsarquivotrf1jusbrPesquisaMenuArquivoaspp100035335620074014300 Acesso em 10 jul 2019 BRASIL Tribunal Regional Federal da 1ª Região 3 Turma Apelação Criminal nº 00051654420114013600MT Art 231 do Código Penal Conduta praticada na vigência da Lei 111062005 Superveniência da Lei 133442016 Relator Desembargadora Federal Mônica Sifuente Brasília DF 09 ago 2019 Disponível em httpsarquivotrf1jusbrPesquisaMenuArquivoaspp100051654420114013600 Acesso em 10 jul 2019 BRASIL Tribunal Regional Federal da 1ª Região 4 Turma Apelação Criminal nº 00270396020124013500GO Art 149A do CP Limitada a hipótese de incidência típica da norma incriminadora Saída consciente e voluntária Abolitio criminis Retroação a fatos anteriores à sua vigência Relator Desembargador Federal Leão Aparecido Alves Brasília DF 01 junho 2018 Disponível em httpsarquivotrf1jusbrPesquisaMenuArquivoaspp100270396020124013500 Acesso em 10 jul 2019 BRASIL Tribunal Regional Federal da 1ª Região 3 Turma Apelação Criminal nº 00622341420094013500GO Tráfico de pessoas Inexistência de violência grave ameaça ou fraude Abolitio criminis no caso Relator Desembargador Federal Cândido Ribeiro Brasília DF 24 nov 2017 Disponível em httpsprocessualtrf1jusbrconsultaProcessualprocessophpsecaoTRF1proc00622341 420094013500 Acesso em 10 jul 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 155 BRASIL Tribunal Regional Federal da 3ª Região 1 Turma Apelação Criminal nº 00035692720074036181SP Artigo 231 caput do Código Penal Conduta praticada na vigência da lei 111062005 Superveniência da lei 133442016 Relator Desembargador Federal Wilson Zauhy São Paulo SP 26 set 2017 Disponível em httpwebtrf3jusbracordaosAcordaoBuscarDocumentoGedpro6423562 Acesso em 10 jul 2019 BRASIL Tribunal Regional Federal da 3ª Região 1 Turma Apelação Criminal nº 00037849520104036181SP Artigo 231 caput do Código Penal Conduta praticada na vigência da lei 111062005 Superveniência da lei 133442016 Relator Desembargador Federal Wilson Zauhy São Paulo SP 26 set 2017 Disponível em httpwebtrf3jusbracordaosAcordaoBuscarDocumentoGedpro6423570 Acesso em 10 jul 2019 BRASIL Tribunal Regional Federal da 4ª Região 8 Turma Apelação Criminal nº 50009820620134047216SC Tráfico internacional de pessoas Art 231 1º do CP Fraude e abuso não configuradas Absolvição Relator Desembargador Federal Nivaldo Brunoni Porto Alegre RS 06 jun 2018 Disponível em httpsjurisprudenciatrf4jusbrpesquisainteiroteorphporgao1documento9072239te rmosPesquisadosIGRpcmVpdG8gcGVuYWwgdHJhZmljbyBpbnRlcm5hY2lvbmFsIGRlIH Blc3NvYXMgY2FzYSBwcm9zdGl0dWljYW8g Acesso em 10 jul 2019 BRASIL Tribunal Regional Federal da 4ª Região 8 Turma Apelação Criminal nº 50047846720164047002PR Tráfico internacional de pessoas para fins de prostituição Lei 13344 Abolitio criminis Relator Desembargador Federal Leandro Paulsen Porto Alegre RS 05 dez 2017 Disponível em httpsjurisprudenciatrf4jusbrpesquisainteiroteorphporgao1documento9197712te rmosPesquisadosIGRpcmVpdG8gcGVuYWwgdHJhZmljbyBpbnRlcm5hY2lvbmFsIGRlIH Blc3NvYXMgcHJvc3RpdHVpY2FvIA Acesso em 10 jul 2019 BRASIL Tribunal Regional Federal da 5ª Região 2 Turma Apelação Criminal nº 200483000134691PE Tráfico internacional de mulheres para exploração sexual art 231 do código penal Incidência da redação originária do tipo Relator Desembargador Federal Carlos Wagner Dias Ferreira Recife PE 31 out 2017 Disponível em httpswww4trf5jusbrInteiroTeorpublicacoesjspnumproc200483000134691 Acesso em 10 jul 2019 BRASIL Tribunal Regional Federal da 5ª Região 2 Turma Apelação Criminal nº 00072057520104058400RN Apelações criminais interpostas pelo Ministério Público Federal e pelos réus atacando sentença condenatória calcada na prática continuada dos crimes de tráfico internacional de pessoas e de redução à condição análoga à de escravo Relator Desembargador Federal Vladimir Souza Carvalho Recife PE 06 set 2017 Disponível em httpswww4trf5jusbrInteiroTeorpublicacoesjspnumproc00072057520104058400 Acesso em 10 jul 2019 BRASIL Tribunal Regional Federal da 5ª Região 2 Turma Apelação Criminal nº 00019835320154058400RN Tráfico internacional de pessoas para prostituição art 231 do Código Penal Redação da lei 111062005 Relator Desembargador Federal Leonardo Carvalho Recife PE 09 jan 2018 Disponível em Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 156 httpswww4trf5jusbrInteiroTeorpublicacoesjspnumproc00019835320154058400 Acesso em 10 jul 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Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 158 Nations 2013 Disponível em httpswwwunodcorgdocumentshuman trafficking2012UNODC2012IssuePaperAbuseofaPositionofVulnerabilitypdf Acesso em 31 jul 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 159 A MEDIAÇÃO APLICADA À VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER Beatriz Berg1 RESUMO O presente artigo busca investigar a possibilidade de aplicação da mediação à violência doméstica e familiar contra a mulher enquanto uma forma de resposta do Estado aos delitos sujeitos à aplicação da Lei n 1134006 A busca por um mecanismo alternativo se justifica em razão dos problemas inerentes à opção pela tutela penal como principal forma de resposta à violência contra a mulher por vezes violando seus direitos e contrariando seus interesses além não prevenir violências futuras Considerando as características da mediação em especial a transformativa entendese que possa ser um mecanismo promissor para o enfrentamento desse tipo de violência pois faz parte do procedimento o efetivo empoderamento dos envolvidos Além disso o mediador possui diversas ferramentas para promover o equilíbrio entre os mediandos como a mediação indireta ressaltandose ainda a importância do suporte de uma rede de atendimento O Projeto Íntegra Gênero e Família é um exemplo prático de aplicação da mediação a conflitos que envolvam violência de gênero sendo que com a análise de um caso prático observado no âmbito do referido projeto é possível constatar a potencialidade do método e sua capacidade transformadora A metodologia utilizada consiste predominantemente em revisão bibliográfica e na parte final relativa ao Projeto Íntegra e ao caso prático foi realizada pesquisa de campo com a observação dos trabalhos realizados no Projeto e a participação nas sessões Palavraschave Mediação Violência doméstica Gênero Empoderamento INTRODUÇÃO O presente artigo tem por escopo apresentar algumas análises e conclusões desenvolvidas em pesquisa no âmbito do Mestrado em Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo atinentes à utilização da mediação como forma de tratamento adequado de conflitos referente a delitos que envolvam violência doméstica dado seu enfoque relacional e seu potencial transformador A busca por mecanismos alternativos se justifica ante a constatação de que Lei n 1134006 Lei Maria da Penha embora represente um compromisso do Estado com a valorização dos direitos humanos das mulheres aposta na punição como forma de promover 1 Mestra em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo USP em 2018 Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra Especialista em Direito Processual Penal pela Escola Paulista da Magistratura EPM Graduada em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo USP 2013 Mediadora e Conciliadora formada pelo Centro Brasileiro de Estudos e Pesquisas Judiciais CEBEPEJ Mediadora penal formada pela Escola Superior do Ministério Público ESMP Mediadora e Conciliadora habilitada pelo Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo CEJUSC TJSP Endereço de email beatrizberguspbr Link do lattes httplattescnpqbr3689943738051697 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 160 mudanças sociais padronizando a resposta estatal com base em papéis estereotipados de autor e vítima e ignorando a dimensão relacional dos conflitos O EstadoJuiz que possui acesso apenas à restrita parcela da realidade que interessa ao processo ignora a frequente complexidade do contexto conflituoso que subjaz a esse tipo de delito não sendo capaz de fornecer respostas satisfatórias aos envolvidos e por vezes impondo soluções contrárias ao interesse da vítima além de não contribuir para evitar novos episódios de violência Como um contraponto a essa realidade será apresentada a mediação enquanto meio de solução de controvérsias que busca o empoderamento das pessoas envolvidas e a sua transformação aprimorando a sua capacidade de se comunicar e gerir a própria controvérsia Será explorada ainda a mediação penal distinguindoa da Justiça Restaurativa bem como a viabilidade de aplicação da mediação aos casos que envolvam violência de gênero discutindose a possibilidade de se manter o equilíbrio de poder entre as partes nessas condições Após será apresentado o Projeto Íntegra Gênero e Família adstrito ao Fórum Regional de Santana em São PauloSP que promove a mediação em casos que envolvem violência de gênero Por fim relatarseá um caso prático observado no âmbito do referido Projeto e as conclusões decorrentes de sua análise A metodologia utilizada será predominantemente a revisão bibliográfica Apenas na parte final relativa ao Projeto Íntegra e ao caso prático foi realizada pesquisa de campo com a observação dos trabalhos realizados no Projeto e a participação nas sessões sem todavia ser realizada qualquer interferência por esta pesquisadora Com este trabalho buscase contribuir para o avanço dos debates acerca dos métodos alternativos de solução de controvérsias bem como perquirir sobre como o Estado pode enfrentar a violência doméstica da maneira mais efetiva promovendo o empoderamento e a valorização de todos os envolvidos 1 LEI MARIA DA PENHA E TUTELA DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO A Lei n 1134006 foi criada para concretizar o compromisso constitucional de coibir a violência no âmbito das relações domésticas2 além de sinalizar para a comunidade internacional que o Brasil está comprometido com a proteção dos direitos humanos das 2 Como estabelece o artigo 226 8º da Constituição Federal de 1988 O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 161 mulheres DIAS 2007 p 273 Nesse sentido é inegável que a Lei Maria da Penha materializa um reconhecimento do Poder Público no sentido de que essa é uma forma de violência que interessa ao Estado e a toda a sociedade A referida lei propõe que a violência contra a mulher seja tratada de forma ampla pelas instituições públicas não se restringindo à tutela penal mas também prevendo medidas de proteção à integridade física das mulheres e de seus direitos medidas de assistência destinadas a contribuir para o fortalecimento da mulher e medidas de prevenção que buscam romper a reprodução da violência de gênero na sociedade PASINATO 2011 p 120 Dessa forma há que se questionar se a tutela penal prevista na Lei n 1134006 é adequada e suficiente para enfrentar a violência de gênero e eliminar a discriminação contra a mulher Karam 2006 afirma que movimentos feministas ao lado de outros movimentos sociais aderiram à intervenção do sistema penal como pretensa solução para os problemas sociais contribuindo para a legitimação de um maior rigor penal que marcou as legislações de todo o mundo no final do século XX o qual se faz acompanhar de uma sistemática violação a princípios e normas assentados nas declarações universais de direitos e nas Constituições democráticas com a crescente supressão de direitos fundamentais 2006 p 07 A autora defende ser um equívoco a aposta na capacidade de promover mudanças sociais por meio do Direito Penal pois a superação das relações de desigualdade e dominação passariam necessariamente pelo rompimento com tendências criminalizadoras sejam elas pautadas pelo discurso de lei e ordem ou por uma ótica progressista KARAM 2006 p 07 Ademais a autora destaca existir na Lei n 1134006 um afã de superproteger a mulher que acaba muitas vezes por impor violações a seus direitos contrariando sua vontade e seus interesses KARAM 2006 p 07 Por esta razão defende a busca por instrumentos mais eficazes e menos nocivos do que o apelo à intervenção do sistema criminal pois ele não realizaria suas funções de proteger bens jurídicos e evitar condutas danosas além de não solucionar conflitos não interferindo positivamente na dinâmica familiar conflituosa nem tampouco evitando que a mulher sofra violências futuras produzindo como consequência um grande volume de sofrimento e dor KARAM 2006 p 07 SOARES por sua vez afirma que as medidas de enfrentamento baseadas no afastamento entre agressor e vítima e rompimento concreto e simbólico dos canais de 3 A Lei n 1134006 faz referência em sua ementa às Convenções sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e a Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 162 comunicação aprofundam a ruptura dos canais dialógicos já profundamente afetados pela situação de violência em si 2012 p 2024 A autora destaca que o conceito de violência contra a mulher tornouse uma espécie de paradigma a partir do qual foram criados os papéis de vítima e agressor nesse tipo de conflito SOARES 2012 p 196 São engessados assim os papeis do homem que agride e da mulher que apanha como se todas as pessoas reais fossem meras repetidoras de comportamentos padronizados consubstanciados nesses papéis SOARES 2012 p 1965 Nesse sentido destaca a importância de não se perder de vista que os casos de violência envolvem pelo menos dois seres humanos em interação no tempo e no espaço perdendose muito ao se levar em conta apenas o desempenho do papel de gênero dos envolvidos a não ser que se conceba a dominação patriarcal como uma força abstrata imutável e ahistórica descolada das dinâmicas pessoais e sociais em que ela se atualiza SOARES 2012 p 197 Em vez da aposta na punição como forma de inibir a violência contra a mulher SOARES defende como uma possibilidade promissora a transformação dos comportamentos violentos por meio da interação e do diálogo 2012 p 206 Segundo a pesquisadora a violência possui uma dimensão intersubjetiva uma vez que dentro ou fora do modelo patriarcal é na esfera da relação entre as pessoas que as agressões adquirem significados para quem as sofre motivo pelo qual também é por meio das relações entre sujeitos individuais ou coletivos que se pode operar a desconstrução das imagens e estereótipos que alimentam as violências concretas e simbólicas SOARES 2012 p 206 No caso de um marido que espanca a própria esposa por exemplo a ideia de que as agressões são autorizadas no imaginário masculino em função das imagens estereotipadas da mulher e das relações de gênero explica porque esse mesmo homem jamais cogitaria agredir seu vizinho ou seu chefe SOARES 2012 p 207 O cerne da questão então é o modo de ver o outro e conceber a relação íntima o que conduz à conclusão de que reduzir ou eliminar a violência passa necessariamente por entre outras coisas uma mudança de percepção de quem 4 A autora assevera que os discursos individuais se perdem no discurso homogêneo da violência contra a mulher o qual elimina a percepção individual e a possibilidade de diálogo e permite apenas uma mudança fixa e predefinida que é a libertação da mulher pelo afastamento e pelo reconhecimento de que seus parceiros são criminosos enquanto aos parceiros só resta a assunção da culpabilidade de gênero nos limites previstos pelo modelo SOARES 2012 p 202 5 Embora correspondendo à minoria das histórias reais a situação da esposa indefesa apassivada submetida cotidianamente ao poder arbitrário e tirânico de seu parceiro masculino aterrorizada e paralisada diante de suas ameaças e agressões transformouse na matriz universal de todas as violências vividas por mulheres SOARES 2012 p 196 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 163 agride a respeito da pessoa ou de uma categoria de pessoas passíveis de serem agredidas SOARES 2012 p 207 MUSZKAT e MUSZKAT a seu turno apontam para a dificuldade dessa transformação pois segundo as convenções tradicionais a violência para os homens sempre foi referencial de masculinidade e virilidade cabendo ao homem no âmbito da família comandar e disciplinar seus membros de maneira que espancar filhos esposas e servos já foi considerado legítimo 2016 p 67 Ainda que as leis tenham mudado e a agressão a esposas e filhos tenha se tornado crime a transformação das práticas do diaadia da sociedade são muito mais lentas Para tanto é necessário alterar o significado dos conceitos de homem e mulher para além da dualidade forte fraco MUSZKAT MUSZKAT 2016 p 67 Com efeito a criação de novas leis é importante mas não é suficiente quando as pessoas não se sentem convencidas a respeito de como e porque as práticas não devem mais ser as mesmas Leis não alteram o imaginário de uma cultura Por isso a violência dentro da família perdura MUSZKAT MUSZKAT 2016 p 68 Propondo formas de estimular a transformação dos comportamentos violentos a partir do viés relacional SOARES defende como uma alternativa ao rompimento do diálogo o oferecimento a vítimas autores de violência profissionais e ativistas espaços de escuta fora das amarras e dos enquadramentos predefinidos do discurso da violência contra a mulher dentro e fora do sistema de justiça criminal 2012 pp 2052066 Assim buscando uma resposta a esse desafio a seguir será discutida uma proposta de abordagem dos conflitos diversa da tutela penal bem como a viabilidade de sua aplicação aos casos de violência de gênero 2 MEDIAÇÃO A pacificação social é o escopo primordial da atuação da Poder Judiciário qualquer que seja o campo do direito envolvido7 Todavia tal objetivo pode ser buscado e alcançado por vezes de forma mais efetiva do ponto de vista material por meio de ferramentas externas ao 6 SOARES cita como um exemplo frutífero os grupos reflexivos para homens autores de violência bem como os grupos mistos em que as vítimas falariam não apenas diante de outras mulheres vitimadas e profissionais de atendimento mas também e sobretudo para outros homens e mulheres produtores de violências 2012 p 208 Assim se viabilizaria uma troca efetiva de relatos memorias sentimentos e percepções capazes de propiciar a reelaboração das narrativas Além disso as mulheres falariam também para os especialistas Porém junto com eles e não sob sua tutela ou na condição de mera ilustração de um modelo geral SOARES 2012 p 208 7 Segundo DINAMARCO o aspecto substancialmente relevante do exercício da jurisdição é a busca da pacificação das pessoas e grupos por meio da eliminação dos conflitos nos quais estejam envolvidos DINAMARCO 2009 p 125 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 164 sistema formal de Justiça mais especificamente dos meios alternativos de solução de controvérsias8 Dos referidos meios alternativos destacamse por sua maior utilização no contexto brasileiro a arbitragem9 e os métodos consensuais de conciliação10 e mediação11 A mediação mais cara a este trabalho consiste em um procedimento12 no qual um terceiro imparcial procura facilitar a comunicação entre as partes em conflito identificando suas necessidades e ajudandoas a restabelecer o diálogo para que elas encontrem a melhor solução para o próprio conflito Partese da premissa segundo a qual o que torna o diálogo difícil ou inefetivo é o contexto conflituoso motivo pelo qual cabe ao mediador facilitar o diálogo propiciando o aparecimento do respeito mútuo além de auxiliar os mediandos a buscar a corresponsabilidade seja no conflito presente seja com relação aos futuros compromissos assumidos SAMPAIO 2015 p 661 O acordo se houver é resultante de um bom trabalho de cooperação realizado ao longo do procedimento e não sua premissa básica SAMPAIO 2015 pp 660661 Cabe ressaltar ainda o enfoque da mediação na preservação e reelaboração de relações que é o seu diferencial em face dos outros métodos compositivos BACELLAR 2015 p 82 apresentandose como um método indicado para partes que possuem uma relação prévia ao conflito e que por vezes serão obrigadas a continuar se relacionando como parentes vizinhos 8 Alguns autores preferem a utilização da expressão métodos adequados de solução de conflitos tendo em vista que os modelos autocompositivos não seriam uma alternativa ao modelo judicial mas um mecanismo de real e adequada resolução do conflito permitindo a efetiva pacificação social MENDES 2014 pp 8586 9 A arbitragem disciplinada pela Lei n 930796 Lei da Arbitragem consiste em um meio de solução de controvérsias situado fora da atividade jurisdicional do Estado No procedimento de arbitragem as próprias partes nomeiam um árbitro de sua confiança que deverá proferir uma decisão dotada de força de coisa julgada sem a necessidade de homologação pelos tribunais estatais valendo como título executivo MARASCA 2007 p 49 10 A conciliação é uma modalidade de autocomposição por meio da qual um terceiro imparcial intervém no conflito ouvindo e orientando as partes envolvidas OLIVEIRA 2015 p 636 Caracterizase pela atuação propositiva do conciliador que dirige as partes a um ponto comum propondo alternativas e sugerindo soluções com o intuito de conduzilas a um acordo OLIVEIRA 2015 p 636 O método é indicado para casos em que não há um relacionamento duradouro entre as partes e o objeto do litígio é apenas material razão pela qual as partes podem preferir encerrar rapidamente a controvérsia ainda que o acordo não contemple todas as suas necessidades e interesses LUCHIARI 2012 p 15 11 Na doutrina especializada baseada na experiência estrangeira constatase que existem muitos outros métodos alternativos de solução de conflitos como a negociação a avaliação neutra de terceiro o minitrial LAGRASTA 2015 p 629 CABRAL destaca também os seguintes métodos ombudsman transação adjudicação summary jury trial rent a judge courtannexed arbitration courtannexed mediation early neutral evaluation finnaloffer arbitration oneway arbitration confidential listener special master neutral factfinder expert factfinder joint factfinder etc 2013 p 42 que desbordam dos limites deste trabalho e por esta razão não serão tema de análise mais detida 12 Inobstante as expressões processo de mediação e procedimento de mediação sejam comumente empregadas pela literatura especializada e pela legislação vejase nesse sentido o Manual de Mediação Judicial CNJ 2016 e a Lei n 1314015 respectivamente optouse pelo emprego desta última expressão a fim de evitar confusão com o processo judicial mantendose a primeira apenas nas hipóteses em que empregada por autores diretamente referidos no texto Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 165 sócios entre outros A mediação é indicada para esses casos porque permite a compreensão do conflito pelas partes para que possam melhor administrálo e evitar novos desentendimentos no futuro MARASCA 2007 pp 5051 3 MEDIAÇÃO PENAL SICA defende que a mediação seria o pilar de sustentação do novo paradigma de justiça na medida em que amplia o horizonte comunicacional entre ofensor e vítima promovendo a reapropriação do conflito pelas partes SICA 2007 pp 7374 Podese destacar como características gerais da mediação penal dentre outras i a aplicabilidade a conflitos intersubjetivos ii a voluntariedade iii a confidencialidade iv a informalidade v a disponibilização de meios para o equilíbrio de poderes o protagonismo o empowerment a autorreflexão a superação da visão adversarial vi a flexibilização das atitudes rígidas gerando a comunicação mais eficiente entre os envolvidos em conflitos intersubjetivos e a transformação do padrão relacional muitas vezes disfuncional vii a celebração de acordos quando possível e desejado pelas partes constituindo enfim um procedimento conduzido por um terceiro capacitado e treinado estranho ao conflito e que não possua autoridade decisória atuando com equidistância por meio de técnicas de comunicação escuta ativa e negociação visando à pacificação da situação conflituosa ZAPPAROLLI 2009 p 540 Para fins de aplicação prática devem ser ressalvados os limites de interação existentes na atualidade entre a mediação e o Direito Penal Nesse sentido importante observar que a mediação penal ainda possui aplicação bastante restrita no Brasil de forma subsidiária à tutela penal ou seja gerando efeitos no processo judicial tão somente nas hipóteses em que a legislação permite o consenso e a manifestação de vontade da vítima13 4 MEDIAÇÃO E VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER Uma vez admitida a mediação em matéria penal observado o alcance de sua repercussão no processo judicial surge a questão dos limites de sua aplicação especialmente em relação a 13 Dessa maneira poderiam ser submetidos à mediação apenas conflitos que envolvam direitos patrimoniais disponíveis ou relativamente indisponíveis dado que exclusivamente tais direitos podem ser objeto de acordo extrajudicial MARASCA 2007 pp 5051 Assim de forma reflexa na mediação penal nos casos de crimes sujeitos à ação penal privada ou à ação penal pública condicionada o acordo em mediação poderá culminar na renúncia da queixacrime ou na retratação da representação formulada MARASCA 2007 pp 5051 Em que pese não ocasionar os mesmos efeitos processuais nada impede que a mediação seja aplicada aos casos sujeitos à ação penal pública incondicionada ainda que apenas visando o diálogo entre as partes caso queiram preservar a relação subjacente MARASCA 2007 pp 5051 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 166 delitos que envolvam violência doméstica em razão das especificidades que envolvem esse tipo de crime Devese destacar inicialmente que o procedimento de mediação por suas características é considerado ideal para aplicação em conflitos familiares ALMEIDA 2005 p 45 Nesse sentido merece destaque o caráter discursivo da mediação o qual pode ser bastante útil em delitos de natureza relacional como são os crimes envolvendo violência doméstica VALVERDE destaca que para além da reparação dos danos materiais causados pelo delito ocorre uma análise do conflito interpessoal que subjaz ao crime investigando suas causas e consequências e buscando satisfazer as verdadeiras necessidades tanto da vítima quanto do agressor 2008 pp 2526 Não obstante uma ressalva usual à mediação aplicada a casos envolvendo violência de gênero reside no temor de que a aplicação do método transmita uma mensagem errônea à sociedade no sentido de que estes delitos são menos reprováveis dado que podem ser solucionados por simples encontros privados ao invés da sanção criminal VALVERDE 2008 pp 6667 Restaria frustrada com isso a função de prevenção geral da pena VALVERDE 2008 pp 6667 Em resposta a esse questionamento compartilhase do posicionamento de LEONARDO SICA no sentido de que a participação livre e consentida das partes transmite uma mensagem de confiança e reconhecimento da norma mais significativa do que a ameaça da pena 2007 p 55 Dessa forma o princípio da voluntariedade requisito fundamental da mediação caracterizaria segundo o autor o aspecto de prevenção geral da mediação enquanto reação penal SICA 2007 p 55 14 Outro aspecto controverso consiste no risco de privatização da resposta ao crime VALVERDE 2008 pp 6667 o que representaria um retrocesso ao se considerar todo o esforço empregado para transportar tais violações da esfera privada para a pública culminando inclusive na promulgação da Lei Maria da Penha Entendese contudo que não se cuida de uma privatização da resposta ao delito dado que não há um abandono do caso nas mãos das partes mas sim a promoção de uma forma de abordagem que contemple suas necessidades de 14 Na mesma trilha ALMEIDA defende que a comunidade não deve ser chamada a interferir na mediação pois seu interesse consubstanciado na prevenção geral já se encontra defendido pela mediação em si 2005 p 47 MARQUES DA SILVA em sentido contrário defende que a mediação é voltada à superação dos conflitos individuais não podendo ocupar o lugar do direito penal o qual impõe uma intervenção punitiva por parte da autoridade pública que reconhecendo a injustiça do ato pune o agente ainda que sob fundamentos preventivos 2005 p 105 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 167 forma mais satisfatória que a tutela criminal visto que sequer é uma preocupação do Direito Penal obter algum grau de satisfação da vítima ou do ofensor Outra inquietação doutrinária diz respeito à viabilidade da mediação em uma situação em que há desequilíbrio de poder potencializado nesse tipo de caso em que a vítima se apresentaria como parte mais fraca e vulnerável reproduzindo as relações de vitimização de gênero que já ocorrem no contexto social onde se dá a vida cotidiana dos mediandos VALVERDE 2008 p 72 Em que pese a relevância da referida crítica devese ressaltar que o mediador possui ferramentas para promover o empoderamento dos mediandos e garantir o equilíbrio ao longo do procedimento de mediação decorrentes inclusive do próprio método utilizado em especial na mediação transformativa15 A mediação transformativa é um modelo de mediação que busca transformar a característica destrutiva do conflito com base na ética da alteridade promovendo a compreensão de que o ser humano é um ser social que depende dos demais à sua volta LUZ 2012 pp 125126 Nesse sentido AGUIAR destaca que o modelo busca o fortalecimento das pessoas para que atuem como protagonistas das próprias vidas e assumam as responsabilidades de suas escolhas 2009 p 107 O foco encontrase no empoderamento apropriação capacitação autoafirmação ou fortalecimento das partes VASCONCELOS 2017 p 200 que devem assumir o protagonismo do seu conflito e recuperar a autoestima abalada pelo problema vivenciado LUZ 2012 p 126 O objetivo é que os mediandos pessoas grupos ou comunidades recuperem reflexivamente seu próprio poder restaurativo afastandose de modelos em que um terceiro expert concede o poder às pessoas VASCONCELOS 2017 p 200 O modelo transformativo tem como meta enfim a transformação da interação entre os mediandos e o respectivo padrão relacional VASCONCELOS 2017 p 204 Não importa o acordo mas a mudança nas pessoas e na sua forma de se relacionar MUSZKAT 2008 p 68 A atuação do mediador assim voltase ao empoderamento enquanto o protagonismo dos mediandos se amplia à medida em que é reconstruída sua autoestima VASCONCELOS 2017 p 20416 15 Outros modelos de mediação são a Mediação Tradicional Facilitativa ou Linear Harvard e a Mediação CircularNarrativa de SARAH COBB Para mais informações vejase VASCONCELOS 2017 16 Conforme SAMPAIO esse modelo trabalha para alcançar o desenvolvimento potencial de mudança nas pessoas ao descobrir suas próprias habilidades suas responsabilidades e o reconhecimento do outro como parte do conflito Tem o objetivo de modificar a relação entre as partes não importando se cheguem ou não a um acordo Não está centrado na chamada resolução do conflito mas sim na transformação relacional 2015 p 663 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 168 Anota VASCONCELOS que na mediação transformativa o mediador não é diretivo adotando inclusive o afastamento ou o silêncio quando percebe que os mediandos estão discutindo ou dialogando em sua linguagem natural 2017 p 204 O mediador dessa forma é legitimado como um colaborador no processo de construção do diálogo pelas partes não como um técnico VASCONCELOS 2017 p 204 O empoderamento das partes por sua vez reforça as possibilidades de contextualização e empatia com a consideração conjunta dos problemas material e relacional VASCONCELOS 2017 p 204 BUSH e FOLGER a seu turno destacam que diferentemente de outros métodos voltados à melhora da situação das partes o enfoque transformador define como objetivo a melhora das partes 2010 pp 133134 Em outras palavras considerase que a mediação transformativa obteve êxito quando os mediandos se fortalecem e aprimoram sua capacidade de se relacionar com os outros Tratase dos objetivos de capacitação autodeterminação e reconhecimento empatia BUSH FOLGER 2010 pp 133134 Nas palavras dos autores En la orientación transformadora la respuesta ideal a un conflicto no consiste en resolver el problema sino en ayudar a transformar a los individuos comprometidos en ambas dimensiones del crecimiento moral Responder productivamente a los conflictos significa utilizar las oportunidades que ellos representan de cambiar y transformar a las partes como seres humanos Significa alentar y ayudar a los adversarios a utilizar el conflicto para comprender y realizar sus cualidades intrínsecas tanto por lo que se refiere a la fuerza del yo como a la relación con los demás BUSH FOLGER 2010 p 131 Nesse contexto uma das ferramentas disponíveis ao mediador para promover o equilíbrio de poderes é a mediação indireta17 apontada por SICA como um importante instrumento de empoderamento das partes que passam a controlar de forma mais intensa diversos aspectos do procedimento de mediação a marcha do processo as regras do debate e a forma do procedimento que é uma reivindicação notada em diversas pesquisas acerca da insatisfação das vítimas com a justiça penal ter algum poder sobre o desenvolvimento do método de resolução do conflito que as atingiu 2007 p 59 Com isso reforçase a democracia deliberativa e participativa na justiça penal SICA 2007 p 59 17 A mediação pode ser direta com o efetivo encontro entre as partes ou indireta ou seja as partes conversam com o mediador em oportunidades distintas e ele realiza o intercâmbio entre impressões e pretensões A mediação indireta pode ocorrer quando circunstâncias inviabilizam o encontro entre ofensor e vítima como medo ou desconforto do ofendido SICA 2007 p 59 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 169 Podese apontar igualmente a importância de existir uma rede de atendimento abrangendo em especial o suporte psicológico bem com a possibilidade de encaminhamento das partes a serviços de saúde educação tratamento para drogadição entre outros De fato o efetivo empoderamento dos mediando demanda por vezes o atendimento de necessidades que extrapolam as possibilidades do mediador sendo necessária a complementação por outros serviços Ademais há que se ressaltar a importância dos grupos de discussão18 sejam eles grupos de mulheres homens ou mistos A utilização de grupos de prémediação é mencionada por SUSANA MUSZKAT integrante da Organização Não Governamental PróMulher como uma ferramenta efetiva para a promoção do equilíbrio entre as partes em casos de violência doméstica nos quais um dos membros por vezes a mulher encontrase em situação de submissão ou opressão em relação ao outro 2003 p 189 Com efeito o mediador que atua como coordenador de grupos possui como uma de suas atribuições a função de auxiliar os participantes a pensar em narrativas alternativas que lhes possibilitem ver seus problemas sob novas perspectivas MUSZKAT 2003 p 190 Dessa forma procurase ampliar o espaço de reflexão mediante a desconstrução de posturas rígidas e questionamento de formulações maniqueístas temse ainda o objetivo de estimulálos a exercer uma maior autonomia e desenvolver a noção de responsabilidade sobre suas ações oferecendo recursos para que atuem como cidadãos conscientes de seus direitos e responsabilidades MUSZKAT 2003 p 190 Assim é possível perceber a importância dos grupos de discussão para promover o fortalecimento de ambas as partes contribuindo para estabelecer um equilíbrio entre elas Finalmente reconhecer a relevância da mediação como meio adequado de tratamento do conflito de gênero não significa que essa seja apropriada a todas as hipóteses de violência doméstica até porque o método possui limitações que decorrem da própria voluntariedade dos participantes indispensável para o sucesso do procedimento Entretanto um olhar mais compassado pode revelar ser essa uma opção promissora que deve ser oferecida às partes 5 O PROJETO ÍNTEGRA GÊNERO E FAMÍLIA 18 Grupos de discussão podem ser constituídos por homens mulheres ou mistos nos quais se procura abordar uma temática proposta pelo profissional que conduz os trabalhos como gênero conflitos violência parentalidade e conjugalidade a fim de promover a reflexão e a troca de experiências Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 170 Uma vez assentada a possibilidade de realização da mediação penal em hipóteses que envolvam violência doméstica contra a mulher será apresentado o Projeto Íntegra Gênero e Família e relatado um caso acompanhado em seu âmbito de atuação O Projeto Íntegra adota uma metodologia de mediação interdisciplinar19 desenvolvida para a aplicação em casos de relações afetivas continuadas Nesse sentido contempla conflitos que envolvam as temáticas de gênero e família submetidos às Leis n 909995 e n 1134006 O Projeto foi idealizado por CÉLIA REGINA ZAPPAROLLI em 2001 e desde 2005 possui núcleo implantado no Fórum Regional de Santana em São PauloSP Um aspecto muito relevante do Projeto está no fato de trabalhar os conflitos em sua integralidade contemplando a esfera relacional jurídica cível e criminal de segurança saúde educação trabalho dentre outras Dessa forma o Projeto não se limita à gestão dos problemas interpessoais pois também busca alternativas para os conflitos sociais e violências estruturais que permeiam as relações Para isso funciona em parceira com as redes pública e privada locais nas questões de saúde atendimento psicológico entre outros Os casos são encaminhados ao Projeto pelos juízes da Vara de Violência Doméstica ou da Vara Criminal Varas Cíveis Varas de Família pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública todos atuantes no Fórum de Santana 20 Os mediadores são voluntários e possuem formação variada predominando psicólogos e operadores do Direito Cumpre ressaltar o critério para o encaminhamento de casos ao Projeto O caso em primeiro lugar deve envolver questões familiares patrimoniais eou de gênero Dos casos encaminhados pela Vara de Violência Doméstica há alguns em que não existem elementos para a concessão da medida protetiva e até mesmo em que houve reconciliação entre as partes porém o magistrado percebe que há um contexto de violência que pode ser trabalhado e por esta razão enviaos ao Projeto São também encaminhados casos em que há a iminência de um episódio violento Nesses casos em geral a medida protetiva costuma ser deferida e as partes são encaminhadas 19 Nesse sentido o Projeto conta com atendimentos por psicólogos e estudantes de psicologia Disponível em httpwwwpremioinnovarecombrpraticasprojetointegramediacaoemcrimesdegeneroefamilialeis 113402006e909919951782 Acesso em 28102015 20 Tratandose de caso enviado pela Vara de Violência Doméstica o encaminhamento ao núcleo geralmente ocorre antes da primeira audiência criminal no intervalo compreendido entre a chegada do inquérito ou termo circunstanciado ao Fórum e a realização da referida audiência Observese no entanto que muitas vezes há processos já extintos que são encaminhados ao projeto tendo em vista a manutenção do relacionamento familiar permeado pelos conflitos que os geraram Nessas situações também é disponibilizado atendimento buscando prevenir novos episódios de violência Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 171 para o atendimento em grupo de discussão Após a participação nos grupos as pessoas são encaminhadas à mediação21 Nos primeiros atendimentos explicase o que é o Projeto e seu método de trabalho Há um breve esclarecimento sobre a mediação envolvendo seu conceito os princípios da confidencialidade voluntariedade imparcialidade dos mediadores bem como o papel destes como facilitadores da comunicação As partes são convidadas a participar assinando um termo de adesão Além disso os mediandos expõem o conflito pela primeira vez e é oferecido suporte psicológico aos envolvidos por meio de psicoterapia breve individual ou de casal a depender do caso22 É oferecido ainda auxílio em outras demandas que os mediandos apresentem em relação a educação saúde tratamento psiquiátrico entre outros pois tais problemas interferem diretamente em suas vidas e por vezes agravam ou impedem que administrem a situação conflituosa Com tais medidas buscase consolidar a adesão ao procedimento de mediação e fortalecer as pessoas envolvidas Nas sessões seguintes em linhas gerais ocorre a discussão das questões trazidas pelos mediandos com a finalidade de auxiliálos a encontrar alternativas para que seus interesses sejam atendidos de forma satisfatória para todos É relevante destacar que o Projeto cuida do conflito de forma global reunindo todos os processos e demandas bem como tratando de todas as questões que permeiam o conflito entre as partes Quando há um processo penal em curso caso a ação penal seja pública incondicionada o processo criminal corre paralelamente à mediação não sendo afetado formalmente pela mediação No entanto caso a ação penal seja privada ou pública condicionada à representação a mediação pode ter efeitos no processo nos limites em que a lei processual permite à parte exercitar sua autonomia da vontade no processo seja por meio do não oferecimento da representação retratação dentre outros Ao final considerase que a mediação foi bemsucedida quando há uma transformação na conduta das partes que se reflete em uma melhora na vida dessas pessoas e que muitas vezes é materializada por meio de um acordo Há a possibilidade de serem realizados pactos em 21 Dada a forma como os casos chegam ao Projeto por serem encaminhados por juízes defensores públicos ou promotores é imperioso notar que eles passam pelo filtro dessas instâncias Ademais verificase que predominam conflitos em que não há um risco iminente à integridade física da vítima nem violência sexual 22 Importante ressaltar que a psicoterapia ocorre paralelamente às sessões de mediação e o conteúdo das sessões é confidencial sendo reportado aos mediadores apenas o que puder ser de interesse para a mediação A gestão das informações se dá de maneira estratégica visando evitar que o conflito se agrave e ocorram novos episódios de violência Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 172 matéria cível que são levados a juízo para homologação como a formalização de divórcio partilha de bens alimentos guarda dos filhos e regime de visitas Para a homologação desse tipo de pacto o Projeto se utiliza do aparato do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania CEJUSC que atua no próprio Fórum de Santana Neste ponto importa destacar que muito embora diversos casos cheguem ao Projeto em decorrência da prática de um crime a pacificação do contexto conflituoso que ocasionou a prática do delito não raras vezes demanda providências de natureza cível 6 ESTUDO DE CASO PROJETO ÍNTEGRA Os mediandos Maria mulher e João homem23 conviveram em união estável por 17 anos e possuem duas filhas adolescentes Filha 1 e Filha 2 Tratase de um caso antigo que retornou ao Projeto quando a Filha 1 foi morar com o pai Em 2015 haviam sido concedidas a Maria as medidas protetivas de proibição de aproximação proibição de manter contato e afastamento do lar em razão de uma lesão corporal praticada por João contra Maria consistente em um soco no braço que foi confirmada por exame de corpo de delito Além disso há outro boletim de ocorrência da mesma época no qual Maria afirma que João apertou seu pescoço inclusive levantandoa do chão João por sua vez registrou boletim de ocorrência dando conta de que Maria atirou água sanitária em seus olhos e que o provocava para fazêlo perder o controle e se complicar com a Justiça Em exame de corpo de delito a agressão com água sanitária não foi comprovada Houve algumas sessões de mediação na época ocorrendo o abandono do procedimento pelas partes Quando retornaram ao Projeto em 2017 a situação era a seguinte a Filha 1 havia ido morar com o pai motivo pelo qual ele não queria mais pagar a Maria metade do valor da pensão dado que ele passaria a suportar as despesas de uma das filhas Maria por outro lado afirmava que havia contraído dívidas para pagar os estudos da filha que estava morando com ela Filha 2 onerando a maior parte da pensão motivo pelo qual não podia dispor de metade do valor João reclamava por Maria ter tomado esse tipo de decisão sem consultálo afirmando que não sobrava dinheiro para pagar as despesas da Filha 1 e que não é justo investir todo o dinheiro em uma única filha enquanto Maria exigia receber a pensão integral Na ocasião Maria aceitou suporte psicológico 23 Foi selecionado um caso representativo dentre os diversos observados Os nomes dos mediandos foram substituídos por outros a fim de preservar a identidade dos envolvidos Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 173 Chegouse a um impasse pois Maria comprometeu a maior parte da pensão em dívidas com a filha que morava com ela enquanto João estava decidido a reduzir o valor da pensão e não aceitava negociar Ao final realizaram um pacto provisório estabelecendo que 23 da pensão ficaria com a Filha 2 e 13 ficaria com a Filha 1 ou seja haveria uma redução de 13 no valor a ser pago por João a título de alimentos De forma surpreendente na sessão em que iriam assinar o termo de dissolução da união estável os mediandos chegaram decididos a se reconciliar Até então estavam firmes em suas posições e agindo de forma bastante agressiva um com o outro Nesse dia no entanto relataram que João descobrira que possuía uma doença grave e estava muito debilitado Maria por sua vez também estava doente e sofrendo por não ter mais acesso ao plano de saúde de João visto que uma vez que havia desconto na folha de pagamento dele do valor da pensão a empresa em que trabalhava considerava que ele estava separado de sua companheira motivo pelo qual ela não tinha mais direito ao seu plano de saúde Nesse momento João aceitou suporte psicológico Ambos afirmaram outrossim que a vida estava insustentável financeiramente e emocionalmente Estavam esgotados pelas brigas e dispostos a se ajudar mutuamente Maria propôs que João voltasse a morar em sua casa sendo que dividiriam o espaço e teriam uma relação baseada no companheirismo dado que como frisado por Maria não buscavam reatar o relacionamento amoroso Acrescentaram que as filhas possuíam os próprios compromissos e não tinham tempo para cuidar dos pais sendo a melhor alternativa cuidarem um do outro O mediador então buscou fazêlos refletir sobre como seria essa relação a médio e longo prazo Procurouse estabelecer ainda os termos em que se daria a convivência nesta nova situação bem como projetar de forma realista possíveis conflitos que pudessem ocorrer no futuro tais como a repetição da polarização das filhas que já havia ocorrido antes além da possibilidade de algum deles começar a se relacionar com outra pessoa Quanto ao valor da pensão os mediandos definiram que seria depositado em fundo comum a ser gerido por ambos mediante diálogo Se não funcionasse poderiam discutir novamente na mediação Além disso Maria afirmou não desejar que o inquérito policial que tramitava contra João tivesse seguimento Maria João e um representante do Projeto foram até o cartório formalizar a posição de Maria e apurar o que seria possível fazer nesse sentido Maria desistiu das medidas protetivas Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 174 Em sessão ocorrida em setembro de 2017 os mediandos relataram que João havia voltado a morar na casa de Maria Noticiaram que o pacto estava funcionando Estavam finalizando a reforma da casa de modo a separar os aposentos de cada um Além disso disseram ter equalizado a forma de decidir sobre a educação das filhas que costumava ser objeto de muitas divergências anteriormente Relataram ainda que o dinheiro da pensão estava sendo administrado conjuntamente o que não ocorria nem quando formavam um casal época em que segundo afirmou Maria João monopolizava a gestão das finanças Ficou estabelecido que a mediação seria encerrada e haveria apenas monitoramento telefônico mensal pois os mediandos mostraramse capazes de manter o diálogo e um padrão de civilidade bastante positivo em seu relacionamento24 Como resultado do processo de mediação podese concluir que Maria e João pactuaram uma forma de coabitação sustentável Quanto ao processo penal em setembro de 2018 foi determinado o arquivamento do inquérito policial em relação ao delito de lesão corporal por ausência de elementos a embasar a denúncia e a extinção da punibilidade pela decadência quanto ao crime de injúria pois decorrido o prazo sem o oferecimento de queixacrime Podese observar que o caso em análise teve um desfecho bastante inusitado dado que após anos de mediação e negociação sobre a divisão dos bens e despesas quando finalmente iam pactuar o fim da união estável as partes perceberam que a separação era insustentável sob diversos aspectos não apenas financeiramente Ambos estavam esgotados do ponto de vista físico e emocional de sorte que o mais conveniente para ambos era manter formalmente a união dividirem a mesma casa e realizarem a gestão conjunta dos valores destinados às filhas Além disso mostraramse dispostos a apoiaremse mutuamente Neste caso temse claramente que a tutela penal pouco ajudaria O contexto mudou de forma radical ao longo dos atendimentos e é indiscutível ter ocorrido a transformação de ambas as partes que apesar de inicialmente bastante violentas uma com a outra ao final conseguiram não apenas adotar um padrão respeitoso de comunicação mas também desenvolveram uma empatia mútua e pensaram a própria situação de forma isenta e racional decidindo pelo que consideraram o melhor para si 24 Notese que é necessário nessas circunstâncias encerrar a mediação para não criar uma relação de dependência de modo a evitar que só consigam dialogar naquele espaço Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 175 Muito relevante aliás ressaltar que a ideia de dividirem a residência e prestarem apoio recíproco nas questões relacionadas à saúde bem como gerir conjuntamente o dinheiro destinado à pensão das filhas partiu dos próprios mediandos Nesse caso é inegável que as partes efetivamente empoderaramse ao longo do procedimento de mediação assumindo o protagonismo na gestão de sua situação Propuseram uma solução criativa e que poderia parecer insustentável para a maioria das pessoas mas que funcionou para eles porque foi fruto de uma decisão madura resultante do seu fortalecimento e da transformação na forma de relacionarem CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo buscou analisar a possibilidade de se aplicar a mediação penal a delitos que envolvam violência doméstica contra a mulher diante da insuficiência da tutela penal prevista na Lei n 1134006 para responder à complexidade das situações que abarcam esse tipo de conflito pois a resposta penal parte de papéis engessados de autor e vítima ignorando a individualidade das pessoas implicadas Uma verdadeira mudança no contexto conflituoso tem maiores possibilidades de acontecer se for realizada uma abordagem que parta do ponto de vista relacional o que pode ser respondido em alguma medida pela mediação enquanto método que se baseia na valorização e empoderamento das partes A mediação penal possui aplicabilidade aos casos de violência doméstica a despeito da inicial assimetria de poder entre as partes porquanto o mediador possui diversos instrumentos para promover o equilíbrio dentre eles a mediação indireta Ademais a promoção do empoderamento da autorresponsabilização e a transformação dos mediandos são características da própria mediação em particular em sua modalidade transformativa de modo que o fortalecimento de vítima e ofensor é parte essencial do procedimento Há que se ressaltar ademais a importância da vinculação a uma rede de atendimento pois o efetivo empoderamento das pessoas passa pelo atendimento de necessidades que permeiam os conflitos tais como suporte psicológico educação tratamentos de saúde e drogadição entre outros Com o exemplo prático do Projeto Íntegra foi possível verificar como pode ser concretizado um modelo real de atendimento voltado ao fortalecimento das pessoas para que elas possam gerir seus conflitos O relato do caso por sua vez revelou as potencialidades do método na medida em que os mediandos que chegaram ao Projeto imersos em um contexto de violência vivenciaram uma transformação e aprimoraram sua capacidade de se comunicar e se Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 176 relacionar de maneira respeitosa propondo a solução que eles entenderam ser a mais adequada ao próprio conflito REFERÊNCIAS AGUIAR Carla Zamith Boin Mediação e Justiça Restaurativa a humanização do sistema processual como forma de realização dos princípios constitucionais São Paulo Quartier Latin 2009 ALMEIDA Carlota Pizarro de A mediação perante os objectivos do Direito Penal In PELIKAN Christa et al A Introdução da Mediação VítimaAgressor no Ordenamento Jurídico Português Colóquio de 29 de junho de 2004 Faculdade de Direito da Universidade do Porto Coimbra Almedina 2005 pp 3951 BACELLAR Roberto Portugal Sustentabilidade do Poder Judiciário e a mediação na sociedade brasileira In SOUZA Luciane Moessa de coord Mediação de conflitos novo paradigma de acesso à justiça Santa Cruz do Sul Essere nel Mondo 2015 BUSH Robert A Baruch E FOLGER Joseph P La Promesa de Mediación cómo afrontar el conflicto a través del fortalecimento propio y el reconocimiento de los otros Buenos Aires Granica 2010 CABRAL Marcelo Malizia Os meios alternativos de resolução de conflitos instrumentos de ampliação do acesso à justiça Porto Alegre TJRS Departamento de Artes Gráficas 2013 CNJ Conselho Nacional de Justiça Código de Ética de Conciliadores e Mediadores Judiciais Disponível em httpwwwcnjjusbrbuscaatosadmdocumento2579 Acesso em 12102018 DIAS Maria Berenice A Lei Maria da Penha na Justiça a efetividade da Lei 113402006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher São Paulo Revista dos Tribunais 2007 DINAMARCO Cândido Rangel Instituições de Direito Processual Civil Volume I 6ª edição São Paulo Malheiros 2009 KARAM Maria Lúcia Violência de gênero o paradoxal entusiasmo pelo rigor penal Boletim IBCCRIM n 168 nov 2006 p 07 LAGRASTA Valeria Ferioli Métodos Alternativos de Solução de Conflitos Autocomposição In NETO Caetano Lagrasta SIMÃO José Fernando coords Dicionário de direito de família volume 2 IZ São Paulo Atlas 2015 pp 627630 LUCHIARI Valeria Ferioli Lagrasta Mediação judicial São Paulo Forense 2012 LUZ Ilana Martins Justiça Restaurativa a ascensão do intérprete e a nova racionalidade criminal Dissertação de mestrado Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia Salvador 2012 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 177 MARASCA Elisângela Nedel Meios alternativos de solução de conflitos como forma de acesso à Justiça e efetivação da cidadania Direito em debate Ano XV n 27 janjunjul dez 2007 MENDES Maria Lúcia Ribeiro de Castro Pizzotti Mediação e conciliação Histórico dos métodos adequados de solução de conflitos e experiências contemporâneas no Brasil e em outros países Das técnicas de conciliação e mediação suas nuances pontos convergentes e aspectos práticos In TOLEDO A S P de TOSTA Jorge ALVES José Carlos Ferreira Estudos avançados de mediação e arbitragem Rio de Janeiro Elsevier 2014 pp 85106 MUSZKAT Malvina Esther Guia prático de mediação de conflitos em famílias e organizações 3ª edição São Paulo Summus 2008 MUSZKAT Malvina Esther MUSZKAT Suzana Série O que fazer Violência familiar São Paulo Blucher 2016 MUSZKAT Suzana Novas práticas na abordagem de gênero e violência intrafamiliar In MUSZKAT Malvina Esther org Mediação de Conflitos pacificando e prevenindo a violência 3ª edição São Paulo Summus 2003 pp 179201 OLIVEIRA Hertha Helena Rollemberg Padilha de Métodos Alternativos de Solução de Conflitos Conciliação In NETO Caetano Lagrasta SIMÃO José Fernando coords Dicionário de direito de família volume 2 IZ São Paulo Atlas 2015 pp 636640 PASINATO Wânia Avanços e obstáculos na implementação da Lei 113402006 In CAMPOS Carmen Hein de org Lei Maria da Penha Comentada em uma perspectiva jurídicofeminista Rio de Janeiro Lumen Juris 2011 pp 119142 PINTO Renato Sócrates Gomes Justiça restaurativa um novo caminho In Revista IOB de Direito Penal e Processo Penal Porto Alegre vol 8 n 47 dez 2007jan 2008 pp 190 202 SAMPAIO Lia Regina Castaldi Métodos alternativos de solução de conflitos mediação conceito princípios e escolas In NETO Caetano Lagrasta SIMÃO José Fernando coords Dicionário de direito de família volume 2 IZ São Paulo Atlas 2015 pp 660664 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 178 O ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES SOB O ENFOQUE DA JUSTIÇA RESTAURATIVA E DA PERSPECTIVA SISTÊMICA Bruna Boldo Arruda1 João Antonio da Cruz dos Santos2 RESUMO O objetivo do presente artigo é contextualizar a violência contra as mulheres na sociedade atual ao demonstrar a influência de reprodução de violências impingidas pelo patriarcado e oferecer alternativas humanizadas a exemplo da justiça restaurativa do direito sistêmico e da justiça restaurativa sob a perspectiva sistêmica para seu enfrentamento Para tanto foi utilizado o método de pesquisa dedutivo com base em demais pesquisas científicas documentais já realizadas sendo que as considerações finais do artigo apontam que o enfrentamento à violência contra as mulheres deve ser visto de forma mais ampla e profunda com foco na reparação de danos dos envolvidos ao entender a situação como uma questão social e assim promover uma efetiva mudança de paradigmas Palavraschave Feminismos Violências contra as mulheres Justiça restaurativa Pensamento sistêmico INTRODUÇÃO A temática violência contra as mulheres parece estar cada vez mais em voga há um significativo aumento nas demandas que versam sobre o tema em todos os setores da segurança pública e atuação jurídica Diariamente vêse casos de feminicídio e agressões contra as mulheres nos noticiários de modo que não raro escutase da população senso comum3 que a violência doméstica contra as mulheres parece ter aumentado ao longo dos últimos anos Mas seria essa impressão condizente com a realidade Ou tais aumentos de índices seriam reflexos de um empoderamento das mulheres para denunciar casos de violência Tais questionamentos ainda não encontram respostas científicas considerando tratarse de percepção recente que não comporta ainda uma conclusão certeira mas hipóteses Fato é que a discussão acerca da violência contra as mulheres está mais presente em nossos dias sendo 1 Advogada Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Universidade do Vale do Itajaí UNIVALI em convênio com a Escola do Ministério Público de Santa Catarina 2016 PósGraduanda em Direito Sistêmico com ênfase em Constelações Sistêmicas pelo Instituto Nacional de Pericias e Ciências Forenses INFOR 2019 Bacharela em Direito pela Sociedade Educacional de Santa Catarina Unisociesc 2014 brunaboldogmailcom httplattescnpqbr4463083527710303 2 Advogado PósGraduando em Direito Sistêmico com ênfase em Constelações Sistêmicas pelo Instituto Nacional de Pericias e Ciências Forenses INFOR 2019 Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Itajaí UNIVALI 2018 joaoacsantosoutlookcom httplattescnpqbr0077799559073079 3 O senso comum é a sabedoria tradicional da tribo a mistura das coisas que todo mundo sabe que as crianças aprendem à medida que crescem os estereotipos da vida cotidiana BECKER 2008 p 190191 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 179 inegável olhar para o tema que ressoa como grito de socorro a fim de que soluções sejam encontradas para seu enfrentamento Assim sem esgotar o tema utilizandose o método de pesquisa dedutivo pretendese com este trabalho incentivar o leitor à reflexão sobre o sistema de sociedade patriarcal vigente os tipos de violência presentes na sociedade e por fim propor métodos alternativos de enfrentamento à violência contra as mulheres como a justiça restaurativa sob a perspectiva sistêmica a partir da interpretação destes autores 1 O SISTEMA DE SOCIEDADE PATRIARCAL A fim de introduzir o tema violência contra as mulheres julgase importante realizar um breve apanhado histórico na tentativa de buscar as origens desta violência percebendo o contexto em que se está inserido e a cultura dominante de nossa nação Ao falar de violência contra as mulheres por ser um tema tão presente e recorrente tem se a impressão de que a sociedade sempre foi dominada por homens agressivos que tentam se sobrepor às mulheres entretanto nem sempre foi assim Alambert 2004 afirma que Na aurora da humanidade não podemos falar na existência de desigualdades entre o homem e a mulher Naquele tempo não existiam povos nem Estados separados os seres humanos viviam em pequenos grupos hordas e depois em famílias e tribos Vivendo em meio hostil os seres humanos tinham que se manter agregados solidários entre si para sobreviver e se defender dos animais ferozes e das intempéries ALAMBERT 2004 p 27 Extraise do trabalho de Alambert 2004 que a transição daquele sistema para o sistema patriarcal teve seu início junto ao comércio junto às necessidades de se obter bens materiais posses O surgimento de máquinas do arado passou a substituir o trabalho da mulher nas hordas trazendo maior valorização à atividade mecanicista relacionada ao homem e inferiorizando o trabalho da mulher Nesse contexto o homem passa a ter uma percepção mais individualista sobre a terra com necessidade de delimitar e manter suas posses de maneira que a mulher passa a ser vista como mero objeto reprodutor o qual garantiria a manutenção dos bens familiares através dos herdeiros gerados Então a mulher é considerada a primeira posse a primeira escrava do homem o objeto que lhe dará frutos Percebese desse modo a estreita ligação entre o início da exploração da mulher com a exploração da própria natureza Notase também a dificuldade em se entender tal sistema patriarcal visto estar há tantos anos enraizado na sociedade como sistema preponderante tanto Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 180 que seus dogmas são frequentemente entendidos como leis naturais universais sendo que apenas recentemente especialmente a partir dos anos 60 passou a ser questionado com maior força por meio do surgimento de movimentos feministas Capra 1986 Observa Capra 1986 p 30 ainda que A exploração da natureza tem andado de mãos dadas com a das mulheres que têm sido identificadas com a natureza ao longo dos tempos Desde as mais remotas épocas a natureza e especialmente a terra tem sido vista como uma nutriente e benévola mãe mas também como uma fêmea selvagem e incontrolável Em eras prépatriarcais seus numerosos aspectos foram identificados com as múltiplas manifestações da Deusa Sob o patriarcado a imagem benigna da natureza converteuse numa imagem de passividade ao passo que a visão da natureza como selvagem e perigosa deu origem à idéia de que ela tinha de ser dominada pelo homem Ao mesmo tempo as mulheres foram retratadas como passivas e subservientes ao homem Com o surgimento da ciência newtoniana finalmente a natureza tornouse um sistema mecânico que podia ser manipulado e explorado o que coincidiu com a manipulação e a exploração das mulheres Assim a antiga associação de mulher e natureza interliga a história das mulheres e a do meio ambiente e é a fonte de um parentesco natural entre feminismo e ecologia que está se manifestando hoje em grau crescente O autor referido acima estima que a humanidade está vivendo há cerca de 3000 três mil anos na era do patriarcado este sistema econômico político e cultural baseado em um modelo de dominaçãoexploração do estereótipo de homem másculoviril sobre as demais espécies Capra 1986 Para Saffioti 1987 p 50 o patriarcado não se resume a um sistema de dominação modelado pela ideologia machista Mais do que isto ele é também um sistema de exploração Enquanto a dominação pode para efeitos de análise ser situada essencialmente nos campos político e ideológico a dominação diz respeito diretamente ao terreno econômico No desenvolvimento das civilizações esses estereótipos foram ganhando mais força tanto na idade média com as doutrinas religiosas sobre a família como nos séculos seguintes em que se destaca a era do Iluminismo período de grande revolução industrial e predomínio do ser racional A época marcada pela ascensão da burguesia reforça os papeis de homem dominador de todo conhecimento sobre as mulheres e demais classes por eles subjugadas evidenciandose o homem branco burguês como estereótipo do sucesso do homem provedor a quem compete a esfera externa do mundo e a mulher de outro lado a quem compete a vida privada doméstica por seu estereótipo de fragilidade e delicadeza modelos que perduram nos dias atuais MARCON 2018 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 181 Denotase então de uma forma simplista que o sistema patriarcal impõe sobretudo uma relação de poder e domínio pelo seu estereótipo de homem sobre as demais espécies como as mulheres homossexuais e todos aqueles que não se encaixam no padrão de conquistadores exploradores que se utilizam da força guerra e violência À violência nesse contexto é conferido o protagonismo de ser o meio adequado e predominante para obter aquilo que se almeja 2 AS FORMAS DE VIOLÊNCIA VÍSIVEIS E INVISÍVEIS CONTRA AS MULHERES Sobre a violência escolheuse neste artigo trabalhar com as três subdivisões elencadas por Galtung 1971 e 1990 violência direta cultural e estrutural O autor entende que a primeira forma de violência direta é aquela visível sobre a qual geralmente preponderam os discursos de atendimento às questões de violência contra as mulheres Entretanto entendese necessário fomentar cada vez mais os debates e ações no tocante às violências estrutural e cultural invisíveis para que se alcance uma efetiva política de enfrentamento da violência contra as mulheres para tanto fazse mister uma breve conceituação sobre cada uma A violência direta pode ser entendida como aquela em que é possível identificar agressores e vítimas decorrente de eventos fatos por isso também chamada de visível Seriam os cinco tipos de violência doméstica física moral psicológica financeira e sexual especificados na Lei Maria da Penha Lei n 1134006 Segundo a Organização Mundial da Saúde violência direta definese como Uso intencional da força física ou poder ameaçado ou efetivo contra a si mesmo outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade que resulte em ou tenha uma alta probabilidade de resultar em ferimentos morte dano psicológico deformações ou privação KRUG 2002 p 5 Nesse tipo predomina o entendimento de que seja necessária a intenção de causar um ato violento ou seja atos decorrentes de acidentes de trânsito por exemplo não seriam entendidos como violência direta Já no que concerne à violência estrutural a definição de Galtung 1969 é que se trata de uma violência oculta invisível vez que permeia o modo de viver da sociedade Logo nem sempre será possível identificar seus agentes diz o autor enquanto no primeiro caso essas consequências podem ter sua origem traçada de volta até pessoas e agentes concretos no segundo caso isso não é mais significativo Talvez não haja nenhuma pessoa que diretamente cause dano a outra na estrutura A violência é embutida na estrutura e aparece como Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 182 desigualdade de poder e consequentemente como chances desiguais de vida Galtung 1969 p 171 Assim uma sociedade que mantém relações de desigualdades sociais que fomenta o poder de uns sobre outros que exclui determinados grupos criando diferenças socioeconômicas e privilégios está reproduzindo violência de modo estrutural Finalmente a violência cultural também invisível por não serem facilmente identificáveis os seus sujeitos veio a ser observada e conceituada mais tarde por Galtung 1990 como aquela que legitima e justifica as demais Traz o autor A violência cultural atuando através de mecanismos de interiorização faz com que a violência direta e estrutural pareçam corretas ou que pelo menos não pareçam erradas Galtung 1990 p 291 A legitimação de determinadas violências pode ser identificada em discursos de ódio propagados em redes sociais nas mídias entre outros canais como a linguagem Toda vez que alguém profere falas machistas como com essa roupa estava pedindo para ser estuprada se não tivesse saído de madrugada isso não aconteceria apanhou porque fica provocando está se legitimando a violência exercida sobre determinado segmento da sociedade Suzana Muszkat 2006 p 45 traz a compreensão específica do tema para a questão da violência doméstica contra as mulheres Vale contudo lembrar que a cultura que reproduz e perpetua as relações hegemônicas masculinas de gênero onde práticas de dominação dos homens sobre as mulheres são avalizadas não se restringe ao universo masculino Sem querer com isso culpabilizar as mulheres por situações de humilhação ou violência a que são com frequência submetidas não podemos desconsiderar que também as mulheres compartilham extensamente destes mesmos códigos e valores contribuindo com sua manutenção É portanto essencial despertarmos nosso olhar para um sujeito implicado como sujeito da e na cultura Impedidos de olhar para a questão da violência de gênero de um ângulo que abranja ambos os gêneros caímos numa armadilha maniqueísta que de nosso ponto de vista tem sido o grande obstaculizador na obtenção de melhores resultados para a transformação destes padrões de relacionamento destaques no original Considerando os conceitos anteriormente expostos verificase que atualmente ao tratar o tema violência contra as mulheres as autoridades e instituições ainda focam estritamente no atendimento das vítimas e punição dos agressores olhando apenas para o resultado da violência direta e estigmatizando4 por consequência agressores e vítimas 4 o estigma envolve não tanto um conjunto de indivíduos concretos que podem ser divididos em duas pilhas a de estigmatizados e a de normais quanto um processo social de dois papéis no qual cada indivíduo participa de ambos pelo menos em algumas conexões e em algumas fases da vida O normal e o estigmatizado não são pessoas Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 183 Porém quando se amplia o olhar para concepções macro de violência percebese que todos os gêneros são frutos e produtos de uma violência estrutural e cultural perpetrada pelo sistema patriarcal Assevera também Hooks 2018 p 97 que enfatizar a violência de homens contra mulheres de maneira a sugerir que é mais horrível do que todas as outras formas de violência patriarcal não serve para promover os interesses do movimento feminista Isso ofusca a realidade de que muito da violência patriarcal é direcionada às crianças por mulheres e homens sexistas Nesse sentido pretendese ressaltar no presente trabalho o conceito de violência patriarcal como meio de força coercitiva através da qual determinados indivíduos se colocam em uma posição de poder sobre os demais pretendendo assim exercer seu controle Em uma cultura de dominação todo mundo é socializado para enxergar violência como meio aceitável de controle social HOOKS 2018 p 9598 Portanto a reprodução da violência não está inserida apenas aos âmbitos domésticos mas em todas as relações em que se pretende exercer poder sobre o outro Quando o sistema patriarcal impõe ao homem que este deve exercer controle social por meio da violência verificase o protagonismo do sexo masculino em todos esses meios de opressão A título de exemplo é comum que homens desempregados ou que recebam salários baixos não suportem ver mulheres no mercado de trabalho realizando grandes feitos então alguns destes homens acreditam no uso da violência como maneira de estabelecer e manter o poder e a dominação sobre as mulheres dentro de uma ideia de hierarquia sexista HOOKS 2018 Desse modo embora sejam notórios os esforços das lutas feministas especialmente a partir da década de 60 e o consequente empoderamento das mulheres percebese que a sociedade numa acepção econômica e políticocultural segue propagando perfis idealizados e estigmatizantes de esposa desde a infância com brinquedos de menina e brinquedos de menino sobretudo pelos meios midiáticos platonizando papeis de sexos idealizando famílias perfeitas e objetificando a mulher Assim defrontandose com a realidade não romantizada homens e mulheres podem tornarse agressivos ou violentos intencionando o descarte ou vingança sobre o objeto defeituoso Muszkat 2006 Afirma a feminista Hooks 2018 p 101 em sua obra O feminismo é para todo mundo que e sim perspectivas que são geradas em situações sociais durante os contatos mistos em virtude de normas não cumpridas que provavelmente atuam sobre o encontro GOFFMANN 1988 p 148150 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 184 Mulheres e homens devem se opor ao uso de violência como meio de controle social em todas as suas manifestações guerra violência de homens contra mulheres violência de adultos contra crianças violência de adolescentes violência racial etc Os esforços feministas pelo fim da violência de homens contra mulheres deve ser estendido a um movimento pelo fim de todas as formas de violência Assim concluise que enquanto não houver um olhar ampliado sobre os homens como produtos da sociedade patriarcal em que se vive atualmente continuaremos a focar apenas na violência direta que é consequência da violência estrutural e cultural Logo percebese a necessidade de atuação políticoeconômica diante destas últimas para uma verdadeira mudança de concepções e de práticas intersetoriais buscando não só a quebra de tais paradigmas para o agressor em determinada pena mas também pela mídia e demais veículos formadores da cultura da sociedade 3 REFLEXOS DA VIOLÊNCIA PATRIARCAL ASPECTOS GERAIS A construção social de gênero baseiase tradicionalmente na ideia da desvalorização do feminino na opressão e na submissão das mulheres e também na desigualdade de poder dos gêneros Assim a violência contra as mulheres institui uma violação dos direitos humanos embasada nas desigualdades de gênero numa cultura machistasexista É um fenômeno social complexo o qual requer a atuação de diferentes áreas sociais IAMARINO RIGO e CRUZ 2011 Diante disso é necessário compreender a violência entender sua origem para que se busque caminhos que possam minimizála não apenas pelo combate mas por sua compreensão Essa perspectiva não quer dizer que as violências serão aniquiladas mas que ao falar sobre será possível enfrentála com maior leveza OLDONI OLDONI e LIPPMANN 2018 Em complemento a essa ideia Lederach 2012 diz que o conflito é algo natural nas relações humanas e que ao invés de vêlo como uma ameaça precisamos compreendêlo para que se possa ter a oportunidade de crescer e aumentar a nossa consciência sobre nós mesmos sobre os outros e sobre a nossa sociedade A violência contra as mulheres como visto não atinge apenas o gênero feminino mas todo o sistema familiar ao qual ela está inserida afetando todos os seus integrantes no seu desenvolvimento físico e psicológico principalmente daqueles que são considerados mais vulneráveis como os filhos menores GUERRA e SANTOS 2014 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 185 Assim devem ser amparadas as crianças e adolescentes que presenciaram episódios de violências entre seus pais pois figuram como vítimas indiretas podendo causar diversas consequências ao presenciar esse ambiente violento sejam elas a reprodução de violência em outro momento da sua vida danos no emocional e comportamental nos níveis sociais e psicológicos BIANCHINI 2019 Muitos homens que são agressivos com suas companheiras por exemplo também sofreram algum tipo de violência significativa na infância seja presenciandoa no ambiente doméstico ou sendo vítima direta desta caracterizando uma violência intergeracional ao reproduzila contra seus familiares repetindo padrões GUERRA e SANTOS 2014 Entendese nesse contexto ser de suma importância o acompanhamento dos ofensores para a construção do enfretamento à violência contra as mulheres pois quando esses homens atribuem para si a responsabilidade sobre seus atos bem como a desconstrução de estereótipos de gênero e de padrões dominantes de masculinidade podese evitar a reprodução dessa violência IAMARINO RIGO e CRUZ 2011 Portanto necessária a implementação de políticas públicas com viés restaurativo que atuem de forma integral para família exposta à violência principalmente no que tange ao empoderamento de todos os seus membros a fim de que se desconstruam dos estigmas socialmente impostos promovendo a igualdade o respeito e a cultura da paz entre as mulheres os homens e todos os seres nas suas orientações e identificações BIANCHINI 2019 4 MÉTODOS DE SOLUÇÃO ALTERNATIVOS NA DESCONSTRUÇÃO DE PARADIGMAS A JUSTIÇA RESTAURATIVA E A PERCEPÇÃO SISTÊMICA NO DIREITO No Brasil no que se refere a violência de gênero temse que sua primeira iniciativa de enfrentamento deuse com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil em 1988 onde reconheceuse a igualdade entre mulheres e homens Mas somente em 2006 foi publicada uma lei específica para tratar da violência sofrida pelas mulheres restrita ao âmbito doméstico conhecida como Lei Maria da Penha Lei n 113402006 sendo que em 2015 foi ainda incluído o crime de Feminicídio como uma qualificadora ao delito de homicídio no Código Penal criminalizando de modo específico mais gravemente àqueles que cometem homicídio motivados simplesmente pela condição de gênero feminino da vítima NOGUEIRA 2015 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 186 Vale destacar a diferenciação dos conceitos de violência doméstica protegida em maior senão único grau pela legislação como sendo todo tipo de violência praticada em âmbito doméstico ou familiar em razão do gênero feminino e a violência contra a mulher sobre a qual visa discutirse neste artigo a qual é caracterizada por todo ato constrangimento ou ameaça contra a mulher por esta condição de gênero que ocorram em qualquer ambiente não necessariamente o familiar GOLART e MAIER 2016 Denotase que as medidas de enfrentamento oferecidas à sociedade são majoritariamente de caráter punitivista fundamentadas por um modelo de Direito Penal tradicional com foco nas sanções do resultado aparente do conflito limitandose a políticas de atendimento e pouco preocupandose com o enfrentamento no sentido de compreender a violência contra as mulheres como uma questão social Em contrapartida a justiça restaurativa apresentase com foco na transformação do conflito a partir da compreensão de suas causas buscando olhar o todo situando as questões e crises dentro de um sistema de relações e do contexto social sendo assim capaz de promover mudanças edificantes OLDONI OLDONI e LIPPMANN 2018 Dentro da persecução criminal brasileira atual a vítima é simplesmente esquecida Tanto na propositura da ação penal quanto na aplicação da sanção ao ofensor não são levados em conta seus interesses isto quer dizer que não há participação efetiva da vítima para solução do conflito Portanto o Direito Penal não oferece de fato um suporte à vítima para que ocorra a reparação dos danos que a violência lhe causou GOMES 2016 Atentase que o Direito Penal sempre sofreu mudanças tanto evolutivas como regressivas durante sua história quando surgem novas formas de pensar e olhar sobre os conflitos É sobre essas novas formas especialmente no que concerne à justiça restaurativa e à percepção sistêmica que serão abordados os tópicos seguintes dentro da perspectiva da violência contra as mulheres 41 A Justiça restaurativa É evidente que o Direito Penal tradicional não se faz útil para efetiva reparação de danos à vítima sendo urgente uma mudança de paradigmas da justiça a partir de um olhar amplo a fim de verificar todos os danos causados em uma relação entre vítima e ofensor não só para estes mas para comunidade em geral conceitos idealizados pela justiça restaurativa GOMES 2016 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 187 O surgimento da justiça restaurativa não conta com data exata porém os estudos e projetos sobre essa temática se intensificaram por volta da década de 70 nos países como Nova Zelândia Estados Unidos Canadá e outros surgindo como uma proposta de proporcionar encontros entre a vítima ofensor e comunidade impactada inspirados pelos costumes indígenas primitivos de cada uma das regiões referidas Dessa forma originouse o modelo que seria mais tarde utilizado em outros países e em diversas partes do mundo em cada lugar com as suas peculiaridades diante de suas realidades NASCIMENTO 2019 Para Santana 2010 a justiça restaurativa retrata a ideia de reparação individual e coletiva onde o autor do fato ao praticar a conduta ilícita incide na obrigação de restaurar a vítima e por alcance a comunidade O método propõe o reconhecimento de todas as nuances de um conflito para assim promover a pacificação e restauração dos danos causados Diante disso verificase a existência de dois modelos principais de se compreender a justiça o retributivo que preconiza a ideia de crime como uma violação contra o Estado entendendo que há desobediência à norma De outro lado o modelo de justiça restaurativa onde o crime é visto como uma violação dos direitos e princípios de pessoas e relacionamentos ressaltando a ideia de corrigir os erros envolvendo a vítima ofensor e a comunidade para auto responsabilização na busca da reparação de danos ZEHR 2008 Importante mencionar que a justiça restaurativa não surge a fim de substituir o sistema penal tradicional vigente mas com a finalidade de trazer um novo olhar uma nova perspectiva sobre a forma com que se abordam os delitos e o modo de tratamento do conflito e a sua solução Portanto deve observar os danos necessidades e obrigações de todos os envolvidos em um crime buscandose a reparação das relações interpessoais NASCIMENTO 2019 p 2 A justiça restaurativa traz o foco da reparação de danos à vítima antes preterida no processo penal possibilitandolhe a resolução do conflito de forma rápida participativa e eficaz oportunizando verbalizar seus sentimentos e suas necessidades promovendo seu protagonismo sobre o conflito como parte atuante no processo e de modo indireto promove assim também a restauração da ordem pública e a paz social auxiliando na ressocialização do ofensor do ato criminal GOMES 2016 Ao ofensor é oportunizado assumir as suas responsabilidades e dizer o motivo do cometimento do delito Ao ter a oportunidade de ouvir a vítima poderá refletir sobre os danos que a prática de seu ato causou e ao participar da resolução do conflito poderá proporcionar à vítima a reparação devida aos danos causados Dessa maneira tomando consciência o ofensor Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 188 poderá no futuro agir de forma mais consciente sobre seus atos evitando a reincidência e promovendo a sua reintegração na sociedade de modo mais eficaz GOMES 2016 Para Zehr 2008 a justiça restaurativa traz o responsável pelo ato lesivo para corrigi lo responsabilizandose por ele Dessa forma o autor do fato deixa de ser visto como um criminoso estigmatizado e se torna protagonista sobre seus conflitos Do mesmo modo traz a vítima para o ponto de partida do processo colocandoa em evidência também Portanto ambos têm atuação e visibilidade sobre o próprio conflito Conforme Nascimento 2019 p 6 a justiça restaurativa é uma alternativa de solução de conflitos que pode trazer resultados eficientes na condução de casos em que o diálogo a responsabilização e a empatia podem mudar a forma como vemos os conflitos e nos permitir alcançar verdadeiramente a tão sonhada paz social e ainda reduzir o número de processos judiciais que muitas vezes acabam por criar ainda mais transtornos reincidência e caos Os métodos mais usualmente utilizados no Brasil para a aplicação da justiça restaurativa são os círculos da paz e a mediação vítimaofensor O primeiro visa a comunicação em grupo a construção de relacionamentos tomadas de decisões e a resolução de conflitos de forma eficaz Essa prática inspirada nos povos indígenas deve ser voluntária e é realizada por um facilitador que guia os envolvidos por meio de questionamentos sobre o tema da demanda Incialmente é feito um acordo entre os presentes para se expressarem de forma sincera íntegra e com valores estes determinados pelo grupo no momento da composição do círculo utilizandose o bastão da fala NASCIMENTO 2019 O segundo oferece às vítimas de danos desde que juridicamente viável a possibilidade de se encontrar em um local seguro e organizado na presença de um mediador capacitado que facilite à vítima expressar no seu entendimento o que seria eficaz para responsabilizar o autor do fato por sua atitude e ao mesmo tempo este autor também teria a oportunidade de oferecer assistência e compensações que entende possíveis à vítima OLDONI OLDONI e LIPPMANN 2018 Muitas são as possibilidades de aplicação das práticas restaurativas não havendo restrição ao seu uso desde que respeitados seus princípios pois o importante é que se atinja o máximo de eficácia dos métodos utilizados A justiça e as práticas restaurativas devem sempre manter um olhar abrangente e integrativo sistêmico vislumbrando todo contexto cultural e estrutural em que se insere sem focar tão somente ao fato que será discutido Essa é a diferença principal da justiça restaurativa Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 189 sobre a retributiva pois a primeira entende o conflito como uma questão social violência estrutural e cultural e não apenas enxerga o ato isolado violência direta 42 A Percepção sistêmica no direito A priori fazse necessária a compreensão do que vem a ser o pensamento sistêmico o qual pode ser entendido como conjunto de elementos que se relacionam através de um objetivo comum organizamse e formam uma teia complexa de relações entre si O pensamento sistêmico surge em contraponto à visão mecanicista de mundo que o percebe de modo fracionado separando as partes integrantes para analisálas isoladamente enquanto a concepção sistêmica é integrativa voltando seu olhar para o todo CAPRA 1986 Sob a perspectiva sistêmica é possível ampliar o olhar para reconhecer inclusive informações transgeracionais do indivíduo advindas do seu sistema familiar assim como os sistemas nos quais ele faça parte Ao analisar uma questão de forma sistêmica devese observar o entorno do conflito considerando os sistemas nos quais as partes estão inseridas e as suas relações a fim de buscar identificar o que não está aparente na questão apresentada ampliando se o foco possibilitando a resolução do conflito na sua essência SCHREIBER 2019 No Direito o pensamento sistêmico é integrado por operadores que buscam atuar de forma mais cooperativa e menos agressiva dando lugar a todos os envolvidos em uma questão visando isentarse de grandes paixões e emoções Uma das formas de utilização do pensamento sistêmico no Direito é denominada de Direito Sistêmico método que aborda um sistema inclusivo livre de julgamentos que vai além de tão somente aplicar as regras reguladoras de sistemas fechados Entretanto não os exclui mas os integra paralelamente a outros métodos que promovem a real solução do conflito pois da mesma forma que a justiça restaurativa o Direito Sistêmico não exclui o direito tradicional mas o complementa trazendo uma nova perspectiva sobre sua utilização OLDONI LIPPMANN e GIRARDI 2018 Entre essas a forma mais conhecida de utilização do Direito Sistêmico é a aplicação das constelações sistêmicas que de modo muito breve pode ser definida como método psicoterapêutico realizado por meio de representações e aplicado segundo a metodologia da abordagem Sistêmicofenomenologica Tal método pode ser aplicado tanto de forma individual como coletiva de forma individual as representações sobre o conflito se dão por meio de figuras bonecos desenhos entre outros objetos de suporte já em grupo as representações ocorrem com a ajuda de participantes Em ambas as formas o facilitador Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 190 constelador visualiza o emaranhado conflituoso através das representações por ele orientadas a fim de chegar à origem do conflito no sistema familiar do constelado LIPPMANN 2017 Nesse sentido importante observar a diferenciação que faz Lippmann 2017 informação verbal apud Ruschel 2018 p 218 Acredito que não exista o novo Direito dessa forma a terminologia de Direito Sistêmico não considero como uma terminologia válida O que nós temos no meu ponto de vista é a inserção na área jurídica de uma visão sistêmica calcada em Bert Hellinger não é nem o pensamento sistêmico pois o pensamento sistêmico e a teoria sistêmica são muito mais abrangentes Se nós formos analisar a fundo as constelações familiares nós vamos entender que no momento histórico que o Bert Hellinger estruturou o método ou a técnica das Constelacões familiares o momento da teoria sistêmica era outro atualmente é um processo mais complexo por que os sistemas não estão parados os sistemas estão em evolução Ruschel 2017 p 218 pondera ainda acerca dessa necessidade de diferenciação entre o pensamento sistêmico e suas formas de aplicação pois as constelações sistêmicasfamiliares são apenas uma forma de aplicação dentro do Direito Se os profissionais do Direito tiverem cuidado no uso da nomenclatura talvez consigamos diminuir a resistência abrindo um maior caminho para a pesquisa e para o uso da técnica nesta área Importante assim o cuidado com as terminologias para não se perder o objetivo fim comum a todos que de alguma forma estejam atuando de modo sistêmico que se traduz em analisar os casos para além das percepções óbvias da mente auxiliando na resolução dos conflitos de modo a tornar o Direito mais humano e efetivo Na abordagem de casos de violência contra as mulheres especialmente a doméstica os autores Oldoni Lippmann e Girardi 2018 apontam que a utilização das constelações sistêmicas tem gerado desdobramentos positivos no Brasil onde o método vem sendo aplicado por alguns operadores do Direito que na sua maioria relatam bons resultados a partir da tomada de consciência das partes que retomam o protagonismo sobre seus conflitos e tem uma nova perspectiva para todos os envolvidos Diante disso o pensamento sistêmico entendido na área jurídica mais especificamente por meio do Direito Sistêmico mostrase extremamente pertinente na compreensão e enfrentamento da violência contra a mulher agindo de modo mais profundo ao que a temática exige sob o entendimento de que essa mulher que sofre violência sofre danos que geram consequências não apenas para si mas para todo seu sistema familiar da mesma forma que as consequências do ato do agressor também geram reflexos em todo seu sistema Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 191 43 A Justiça restaurativa sob a perspectiva sistêmica No Brasil a justiça restaurativa encontra respaldo na Resolução nº 20022012 da ONU Organização das Nações Unidas onde estão previstos os princípios básicos norteadores de sua aplicação no âmbito da esfera penal NUNES 2018 Esta referida Resolução da ONU orientou a edição da Resolução nº 2252016 do CNJ Conselho Nacional de Justiça pautandose nos princípios da justiça restaurativa Contudo Oldoni Oldoni e Lippmann 2018 entendem que o instituto tem algumas limitações merecendo modificação Uma de suas críticas por exemplo é o fato da justiça restaurativa no Brasil ter apoio legal apenas em relação a atos infracionais e infrações de menor potencial ofensivo Outra questão é a necessidade de judicialização da prática pois o trâmite do procedimento restaurativo prevê a formulação de acordo entre as partes o qual deve ser homologado em juízo Tal forma pode serlhes prejudicial considerando a morosidade e excesso de demandas do Poder Judiciário Assim os autores referidos sugerem que as práticas restaurativas sejam realizadas no seio da comunidade devolvendo efetivamente a autonomia dos conflitos aos envolvidos sendo local propício para restauração em sua origem OLDONI OLDONI e LIPPMANN 2018 Finalmente a obrigatoriedade de vítima e ofensor terem que se encontrar frente a frente para passar pelo processo restaurativo pode ser um grave problema devido à exposição e vulnerabilidade de algumas vítimas inviabilizando a reparação de danos Por exemplo se o ofensor quiser participar de um círculo da paz e a vítima não a ideia da justiça restaurativa tradicional é de que o movimento não poderá ser feito sem a presença de ambos OLDONI OLDONI e LIPPMANN 2018 Diante disto Oldoni Oldoni e Lippmann 2018 propõem que É preciso repensar o modelo que o Brasil quer adotar Flexibilizar e ampliar as práticas restaurativas talvez seja uma necessidade pois a busca pela transformação do conflito não pode ser monopólio do judiciário pelo contrário essa transformação pela experiência que temos dificilmente virá pelas mãos do Estado Para Bauman 2003 a essência da justiça restaurativa é comunitária e por isso mesmo multidimensional pois promove encontros reparações e transformações de pessoas levando à reflexão sobre o próprio sistema de justiça estrutural Afirma assim que o fato de trazer as práticas restaurativas para o seio da comunidade vai muito além de deslocar da judicialização Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 192 dos conflitos pois tratase de um sentimento quando as pessoas se veem como pertencentes ao processo restaurativo sentemse conectadas e solidárias Diante dessa aparente rigidez da justiça restaurativa Oldoni Oldoni e Lippmann 2018 lhe propõem uma visão inovadora em prol de facilitar os caminhos para cultura da paz aplicandoa não só de modo extrajudicial mas sob a perspectiva sistêmica que possibilita aos envolvidos uma reparação de danos mais profunda fornecendolhes a oportunidade de compreender os motivos do conflito sem a necessidade de obrigatoriamente ambos se fazerem presentes para aplicação do método pois cada qual pode observar o conflito sob a sua ótica a sua percepção sistêmica Em complemento a essa justificativa Oldoni e Oldoni 2019 p 5 dizem que São duas possibilidades que não se afastam pelo contrário se complementam pois estão a serviço de um pensar sistêmico e complexo que não separa Estão em Rede E esse é o ponto O pensamento sistêmico supera o pensamento cartesiano e se quisermos agir sistemicamente é preciso compreender que tanto a Justiça Restaurativa como o Direito Sistêmico a Mediação etc não são caminhos paralelos São antes caminhos que se cruzam em uma interdisciplinaridade complexa e com objetivos em comum Cultuar a Paz Segundo Dutra 2019 as práticas da justiça restaurativa no âmbito extrajudicial já vem sendo aplicadas de forma mais flexível por algumas brechas integrando ao modelo clássico à perspectiva sistêmica sendo que seus resultados tem sido satisfatórios uma vez que abrange um número maior de interessados em sanar seus conflitos priorizando assim o resultado efetivo e não a formalidade na aplicação Assim a justiça restaurativa ao ser integrada com a perspectiva sistêmica propicia uma maior abrangência das práticas restaurativas fazendo com que seus efeitos sejam potencializados ao incluir novos métodos e dinâmicas além de possibilitar com que essas técnicas sejam utilizadas para prevenção dos desequilíbrios bem como ser utilizada dentro ou fora do âmbito jurisdicional DUTRA 2019 Paralelamente quanto à aplicação do Direito Sistêmico para Oldoni Lippmann e Girardi 2018 esta poderá ocorrer de três formas distintas a mediante postura sistêmica fenomenológica do profissional realizando intervenções com frases de solução b mediante exercícios e dinâmicas sistêmicas e c através da aplicação das constelações familiares Diante disso Oldoni Oldoni e Lippman 2018 entendem que essas aplicações citadas acima podem ser utilizadas como ferramentas dentro de práticas restaurativas de forma integradasistêmica Podem por exemplo ser utilizadas como recurso em círculos da paz ou Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 193 como parte da mediação vítimaofensor pois as partes envolvidas poderão olhar através das lentes das constelações as dinâmicas ocultas que estão por trás do conflito possibilitando assim ressignificar suas questões e abandonar as posturas de vitimaagressorsalvador que até então pudessem vir adotando Ribes 2019 entende sob a perspectiva das Constelações Sistêmicas em casos de violência contra as mulheres que quando a violência é praticada dentro de uma relação independente de orientação sexual o casal pode se encontrar neste triângulo de manipulação em que ambos intercalamse nos papeis ora de perseguidor ora de salvador ora de vítima compondo um jogo contínuo onde ambos têm responsabilidades Assim mesmo que apenas uma das partes participe do procedimento ao conseguir tomar consciência sobre o jogo e assumir suas próprias responsabilidades será capaz de colocarse no lugar de adulto e retirar se deste jogo havendo então a cura pessoal eou relacional quando capazes de olhar para além de julgamentos não significando com isso a isenção das consequências legais do sistema no qual estão inseridos A autora entende ainda que é importante saber o tipo de violência empregado entre homens e mulheres para que se possa promover a cura da pessoa que foi violentada e trabalhar na prevenção desvendando a causa do conflito nos sistemas de ambos e evitando assim que a pessoa que praticou tal violência repita o movimento RIBES 2019 Ribes 2019 critica desse modo a política e cultura da sociedade que não olha com compaixão para o sujeito de reações agressivas e explosivas considerando ser de suma importância darlhes tratamento psicológico adequado para que tratem suas questões e não reincidam nesses atos violentos Ressaltase mais uma vez que isso não quer dizer eximir o agressor de sua responsabilidade ou justificar seus atos longe disso o objetivo é justamente olhar a causa de origem para que o sujeito rompa seu padrão violento e não crie nova vítimas Também na execução penal já foram identificados resultados positivos de práticas restaurativas sob a perspectiva sistêmica envolvendo apenas uma das partes do conflito vez que o ofensor que cumpre pena já foi excluído de seus sistemas familiar e social e submetido ao sistema prisional implicando no seu não pertencimento a lugar algum Há então uma probabilidade muito grande de que quando esse ofensor saia da prisãopenitenciária ele volte a cometer delitos Contudo ao ser ouvido e submetido a técnicas que promovam o seu aceite à punição estatal é possível que compreenda seu papel no mundo e em seus sistemas familiar e social assumindo responsabilidade sobre o delito cometido identificando questões ocultas e rompendo ciclos de repetições de padrões Entender que muitas das violências surgem pela Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 194 repetição de padrões passados é a grande contribuição que a constelação proporciona OLDONI LIPPMANN e GIRARDI 2018 p 141 Dutra 2019 por sua vez olhando para as mulheres afirma que a justiça restaurativa sob a perspectiva sistêmica é instrumento de suma importância no processo de empoderamento feminino tendo em vista que fornecem os meios necessários de apoio e suporte na restauração dos conflitos além de que propiciam não só a inclusão das mulheres mas também devolvem para elas o poder e a autoconfiança para retomarem suas vidas de forma que sejam elas as protagonistas de suas histórias DUTRA 2019 p 219 Nesse contexto observando os casos concretos de vítimas de violência direta contra as mulheres entendese pela importância de se ter um sistema não apenas punitivo mas restaurativo e sistêmico onde haja espaço para diálogos onde homens e mulheres que se sentem na obrigação e pressão de manter os estigmas e cumprir seus papeis impostos pela sociedade patriarcal possam ter a oportunidade de mudar suas perspectivas em prol de uma efetiva mudança de cultura e quiçá estrutura da sociedade5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante de tudo que já foi exposto entendem esses autores que a questão do enfrentamento às violências contra as mulheres deve ser vista de forma mais ampla e profunda Todavia o que se percebe atualmente na sociedade brasileira é que as instituições públicas e privadas continuam se preocupando muito mais com o atendimento do que com o enfrentamento No mesmo sentido a atenção é mais voltada ao atendimento de vítimas de violências em âmbito doméstico deixando de lado as demais exercidas pela cultura e estrutura da sociedade Assim enquanto o foco for apenas nas violências diretas a política continuará sendo apenas de atendimento Portanto a proposta dos autores deste artigo é que as instituições passem a dar maior atenção às violências culturais e estruturais contra as mulheres com foco na mudança de paradigmas de uma sociedade atuando de modo preventivo no efetivo enfrentamento destas o que propõem a partir da adoção de algumas ferramentas como a justiça restaurativa sob a perspectiva sistêmica que promove a mudança de olhar sobre o conflito 5 Por fim há quem diga sobre a Justiça Restaurativa que busca uma transformação nas estruturas da sociedade e na forma de interação entre os seres humanos e destes com o meio ambiente PALLAMOLLA 2009 p 59 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 195 Vale contudo ressaltar que os métodos abordados não são os únicos meios de promoção do enfrentamento à violência contra as mulheres mas algumas alternativas viáveis que possam auxiliar nesta mudança de perspectivas que é urgente e merece um olhar integrativo e restaurativo entendendo a situação como questão social para efetiva mudança de paradigmas REFERÊNCIAS ALAMBERT Zuleika A história da mulher a mulher na história 1 ed Brasília Fundação Astrogildo Pereira 2004 p 2728 BAUMAN Zygmunt Comunidade a busca por segurança no mundo atual 1 ed Tradução Plínio Dentzien Rio de Janeiro Zahar 2003 141 p BECKER Howard Saul Outsiders estudos de sociologia do desvio 1 ed Rio de Janeiro Zahar 2008 p 190191 BIANCHINI Alice Os filhos da violência de gênero Bahia Jusbrasil 2017 Disponível em httpsprofessoraalicejusbrasilcombrartigos493876113osfilhosdaviolenciade genero Acesso em 20 jul 2019 BRASIL Secretaria de Políticas para as Mulheres Rede De Enfrentamento à violência contra as mulheres Brasília DF Secretaria de Políticas para as Mulheres 2011 p 68 CAPRA Fritjof O ponto de mutação 1 ed São Paulo Cultrix 1986 p 19239 DUTRA Carolina Cardoso Justiça Restaurativa sob a perspectiva Sistêmica e sua aplicação na promoção do empoderamento feminino In MÁRCIA SARUBBI LIPPMAN Org Direito Sistêmico a serviço da Cultura da Paz Joinville Manuscritos 2019 p 214222 GALTUNG Johan Cultural Violence 1 ed v 27 Londres Sage Publications 1990 p 291305 GALTUNG Johan Violence Peace and Peace Research 1 Ed v 6 Londres Sage Publications 1969 p 167191 GALTUNG Johan Structural and direct violence A note on operationalization 1 ed Londres Sage Publications 1971 p 7376 GOFFMAN Erving Estigma notas sobre a manipulação da identidade deteriorada 4 ed Rio de Janeiro Guanabara Koogan 1988 p 148150 GOLART Eduarda Aparecida Santos MAIER Jackeline Prestes Justiça Restaurativa e violência contra a mulher uma nova perspectiva de solução eficaz Rio Grande do Sul UNISC 2016 Disponível em httpsonlineuniscbracadnetanaisindexphpsnpparticleview146873111 Acesso em 05 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 196 GOMES Carla Alexandra Gonçalves Violência Conjugal aplicabilidade das práticas restaurativas Dissertação Mestrado Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra Coimbra 2016 p 1520 GUERRA Marcela Gorete Rosa Maia SANTOS Andreia Colhado Gallo Grego Dos reflexos da violência doméstica contra a mulher no exercício da parentalidade responsável e das políticas públicas de enfrentamento Santa Catarina CONPEDI 2014 Disponível em httppublicadireitocombrpublicacaoufsclivrophpgt213 Acesso em 30 jul 2019 HOOKS Bell O feminismo é para todo mundo políticas arrebatadoras 1 ed Rio de Janeiro Rosa dos Tempos 2018 p 95100 KRUG Etienne MERCY James DAHLBERG Linda ZWI Anthony World report on violence and health 1 ed Geneva World Health Organization 2002 Tradução própria LEDERACH John Paul Transformação de conflitos 1 ed Tradução Tônia Van Acker São Paulo Palas Athenas 2012 p 1768 LIPPMANN Marcia Sarubbi Constelações Sistêmicas aplicadas na resolução de conflitos familiares São Paulo Empório do Direito 2017 Disponível em httpemporiododireitocombrleituraconstelacoessistemicasaplicadasnaresolucaode conflitosfamiliares1508416963 Acesso em 20 jul 2019 LIPPMANN Marcia Sarubbi Fragmento da entrevista cedida a Caroline Vieira Ruschel por Marcia Sarubbi Lippmann em 01 dez 2017 Universidade do Vale do Itajaí apud RUSCHEL Caroline Os limites do Direito Ambiental na preservação dos recursos naturais comuns epistemologia da sustentabilidade e estudos de caso Tese Doutorado Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 2018 299 p MARCON Chimelly Louise de Resenes Já que viver é e ser livre a devida diligência como standard de proteção dos direitos humanos das mulheres a uma vida sem violência 1 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2018 p352 MUSZKAT Susana Violência e masculinidade uma contribuição psicanalítica aos estudos das relações de gênero Dissertação Mestrado Universidade de São Paulo São Paulo 2006 NASCIMENTO Priscila de Miranda Justiça Restaurativa no Brasil novos caminhos para a resolução de conflitos e a desjudicialização Brasília Conteúdo Jurídico 2019 Disponível em httpsconteudojuridicocombrconsultaartigo53181justiarestaurativanobrasilnovos caminhosparaaresoluodeconflitoseadesjudicializao Acesso em 20 jul 2019 NOGUEIRA Renzo Magno A evolução da sociedade patriarcal e sua influência sobre a identidade feminina e a violência de gênero Piauí Jus 2015 Disponível em httpsjuscombrartigos48718aevolucaodasociedadepatriarcalesuainfluenciasobrea identidadefemininaeaviolenciadegenero Acesso 20 jul 2019 NUNES Kimberly Dos Santos Justiça Restaurativa Piauí Jus 2018 Disponível em httpsjuscombrartigos63401justicarestaurativa Acesso 19 jul 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 197 OLDONI Everaldo Luiz OLDONI Fabiano Justiça Restaurativa e Direito Sistêmico caminhos para a construção da paz São Paulo Empório do Direito 2019 Disponível em httpsemporiododireitocombrleiturajusticarestaurativaedireitosistemicocaminhos paraaconstrucaodapaz Acesso em 01 ago 2019 p 5 OLDONI Everaldo Luiz OLDONI Fabiano LIPPMANN Márcia Sarubbi Justiça Restaurativa Sistêmica 1 ed Joinville Manuscritos 2018 p 20103 OLDONI Fabiano LIPPMANN Márcia Sarubbi GIRARDI Maria Fernanda Gugelmin Direito Sistêmico aplicação das leis sistêmicas de Bert Hellinger ao Direito de Família e ao Direito Penal 2 ed ver e ampl Joinville Manuscritos 2018 p 44147 RUSCHEL Caroline Os limites do Direito Ambiental na preservação dos recursos naturais comuns epistemologia da sustentabilidade e estudos de caso Tese Doutorado Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 2018 299 p SAFFIOTI Heleieth I B Gênero patriarcado violência 2 Ed São Paulo Fundação PerseuAbramo 2011 p 50 SANTANA Selma Pereira de Justiça Restaurativa a reparação como consequência jurídicopenal autonomia do delito 1 ed Rio de Janeiro Lumen Juris 2010 p 15 SCHREIBER Tâmara Scolari Leveza que o olhar Sistêmico traz ao Profissional da Advocacia In MÁRCIA SARUBBI LIPPMAN Org Direito Sistêmico a serviço da Cultura da Paz Joinville Manuscritos 2019 p 104105 Violencia entre hombres y mujeres 2019 1 vídeo 20m15s Publicado pelo canal Brigitte Champetier de Ribes Disponível em httpswwwyoutubecomwatchtimecontinue293vzsnrGr6dvc Acesso em 19 jul 2019 ZEHR Howard Trocando as lentes 3 ed São Paulo Palas Athena 2008 p 336 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 198 A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER E A CONSTELAÇÃO FAMILIAR SISTÊMICA UMA ANÁLISE SOBRE O PROJETO METENDO A COLHER DA COMARCA DE BRAÇO DO NORTE Ariane Mattei Nunes1 Edna Wernke Niehues dos Reis2 Luiza Niehues Bonetti3 RESUMO O acesso à justiça pressupõe a resolução adequada dos conflitos A aplicação da autocomposição penal possui nuances próprias e surgem as ideias propagadas pela Justiça Restaurativa Discutese no campo teórico sobre a aplicação de práticas restaurativas aos conflitos decorrentes de violência contra a mulher no âmbito doméstico ou familiar O problema da pesquisa questiona a possibilidade de aplicação de métodos alternativos aos conflitos que envolvam violências descritas na Lei n 113402006 O objetivo geral da pesquisa é analisar os métodos adequados de solução de conflitos e a violência doméstica e familiar contra a mulher com o estudo do projeto Metendo a colher da Comarca de Braço do Norte A pesquisa caracterizase pela abordagem qualitativa e quanto aos fins ela é descritiva O método científico de abordagem é o indutivo A coleta de dados baseiase em dados secundários documentos e resoluções e fontes bibliográficas Há ainda o relato da experiência vivenciada pelas autoras O Judiciário brasileiro tem sinalizado para a possibilidade das práticas restaurativas como instrumento no combate à violência doméstica e familiar No entanto a disseminação desses métodos deve ser discutida pela sociedade a fim de não representar um retrocesso aos avanços conquistados com a Lei Maria da Penha A Comarca de Braço do Norte por intermédio do próprio Judiciário e do Conselho da Comunidade local tem ofertado aos envolvidos em violência doméstica e familiar serviços disponibilizados pelo Projeto Metendo a colher consistente no atendimento psicologico e encaminhamento à Constelação Familiar Sistêmica Palavraschave Violência doméstica Mulher Justiça Restaurativa Constelação Familiar Sistêmica INTRODUÇÃO A noção de acesso à justiça implica em afirmar a importância dos métodos adequados para a solução efetiva dos conflitos sociais uma vez que ao lado do Poder Judiciário tendem a promover a pacificação social 1 Analista Jurídica e Chefe de Cartório da 1º Vara Cível na Comarca de Braço do Norte Poder Judiciário de Santa Catarina Mestranda em Direito pelo Programa de Pósgraduação Profissional em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina PPGPDUFSC 2 Oficial da Infância e da Juventude na Comarca de Braço do Norte Poder Judiciário de Santa Catarina e Secretária do Conselho da Comunidade da Comarca de Braço do Norte Pósgraduada em Família e Mediação Familiar pela Universidade do Sul de Santa Catarina 2012 3 Estudante da 9ª fase de Direito na Universidade do Extremo Sul Catarinense UNESC Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 199 Nos conflitos civis a utilização de métodos não adversarias de conflitos como a mediação e a conciliação têm sido nas últimas décadas estimulada pelo Poder Judiciário Ademais há flagrante incentivo do próprio legislador em razão da aprovação de leis como o Código de Processo Civil BRASIL 2015a e a Lei da Mediação BRASIL 2015b No sistema penal de Justiça a autocomposição tem tido aplicação nos juizados especiais e ainda há experiências relatadas nas varas afetas à Infância e Juventude com a aplicação da Justiça Restaurativa aos adolescentes em conflito com a lei A disseminação e o estímulo de práticas restaurativas aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher também vêm ganhando força no Brasil especialmente com a atuação do Conselho Nacional de Justiça Referida política pública no entanto tem sofrido diversas discussões no campo teórico e acadêmico diante das características próprias desse tipo de violência e em razão da preocupação de tal prática representar uma possível afronta aos anseios conquistados pela Lei Maria da Penha A presente pesquisa possui como objeto de trabalho a análise da violência contra a mulher no ambiente doméstico e familiar terminologia esta utilizada pela Lei Maria da Penha BRASIL 2006 e incorporada no presente artigo e do Projeto Metendo a colher O problema da pesquisa questiona a possibilidade de utilização de métodos adequados de conflitos aos casos de violências previstas na Lei n 113402006 e estuda o projeto aplicado na Comarca de Braço do Norte intitulado Projeto Metendo a colher Como objetivo geral a pesquisa tem o propósito de analisar a violência doméstica e familiar contra a mulher os métodos adequados de resolução de conflitos e especialmente o Projeto Metendo a Colher Justificase a realização da presente pesquisa uma vez que o tema se mostra extremamente controvertido no campo teórico com críticas severas por parte de algumas feministas e é importante entender como uma política pública vem sendo aplicada pelo Poder Judiciário de Santa Catarina na Comarca de Braço do Norte Quanto à metodologia aplicada esclarecese que o método cientifico de abordagem utilizado é o indutivo por pretender realizar o estudo de alguns fenômenos particulares violência contra a mulher métodos adequados de resolução de conflitos constelação familiar para a apresentação de uma proposição mais geral com a análise do Projeto Metendo a colher Além disso pela abordagem a pesquisa caracterizase como qualitativa e como se pretende descrever um fenômeno quanto aos fins ela é descritiva A coleta de dados baseiase Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 200 em dados secundários resoluções e relatórios emitidos no âmbito do Judiciário documentos como o projeto Metendo a Colher e fontes bibliográficas Durante o desenvolvimento do trabalho há ainda o relato da experiência vivenciada pelas autoras tanto no Conselho da Comunidade de Braço do Norte como no trabalho desempenhado no Fórum A estrutura do presente artigo dividese além desta introdução e considerações finais em dois capítulos principais No primeiro apresentamse noções sobre métodos adequados de solução de conflitos e a im possibilidade de aplicação aos conflitos que envolvem violências previstas na Lei n 113402006 e o segundo capítulo aborda a Constelação Familiar Sistêmica e analisa o Projeto Metendo a colher reconhecer o bom lugar de quem faz parte 1 MÉTODOS ADEQUADOS DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS E A IM POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO AOS CONFLITOS QUE ENVOLVEM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER Quando se pretende estudar o movimento de acesso à Justiça é necessário mencionar o arranjo das ondas renovatorias traçado por Cappelletti e Garth CAPELLETTI GARTH 1988 Cappelletti e Garth 1988 após detectarem óbices ao acesso à justiça propuseram reformas do Sistema de Justiça que foram estruturadas em etapas e denominadas ondas renovatorias A primeira onda buscou fortalecer a assistência judiciária ao constatarem que a existência de um obstáculo econômico a contratação de advogado era uma barreira de acesso aos Tribunais pelos menos favorecidos A segunda onda desenhou a ideia de um obstáculo organizacional de acesso à justiça qual seja a problemática da representação da tutela coletiva dos direitos ao argumentarem que a concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção dos direitos difusos CAPELLETTI GARTH 1988 p 49 Por fim a terceira onda preconizou um novo enfoque de acesso à justiça preocupado em reconhecer que em certos tipos de conflitos a solução tradicional poderia não ser a mais adequada E é justamente nesse contexto que estão situados os métodos adequados de solução de conflitos No Brasil o Poder Judiciário tem estimulado a utilização de métodos adequados ou por alguns denominados alternativos de solução de conflitos que de acordo com suas respectivas peculiaridades contribuem com a realização da Justiça de diversas formas Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 201 consenso entendimento pacificação ou até mesmo um simples acordo para a resolução da lide Algumas normatizações balizam essa tendência em especial a Resolução 125 do Conselho Nacional de Justiça a qual dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário BRASIL 2010 No âmbito do sistema penal há a Resolução n 225 também do Conselho Nacional de Justiça que dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário BRASIL 2016 Nos conflitos civis a utilização de métodos como a conciliação e a mediação pode se mostrar perfeitamente apropriada Tais práticas permitem uma abordagem da contenda de uma forma informal criativa inclusiva e mais ampla se comparado à forma tradicional de resolução de conflitos Aliás Goulart ao discorrer sobre a mediação de conflitos lembra que no âmbito do processo as partes orbitam em volta do pedido jurídico o que se chama lide processual Já a mediação por tratar de questões ligadas aos sentimentos interesses e outras questões se debruça sobre a lide sociologica GOULART 2018 Não raras vezes observamse em sessões de mediação ou em audiências de conciliação questões interesses ou sentimentos que não haviam sido trazidos ao processo pelo advogado mas que no entanto eram situações essenciais à solução efetiva e adequada para o conflito Quando se está diante da prática de uma infração penal a abordagem adequada ou alternativa do conflito é realizada com nuances próprias Em contraponto ao sistema penal tradicional preocupado primordialmente na punição do agente ignorando na maioria das vezes a vítima encontrase situada a Justiça Restaurativa Zehr um dos precursores da Justiça Restaurativa no mundo ao apresentar a visão geral sobre os conflitos crimes e a relação com o sistema penal tradicional pondera que Enquanto sociedade como devemos reagir às ofensas Quando acontece um crime ou quando é cometida uma injustiça o que precisa ser feito O que pede o nosso senso de justiça O sistema jurídico ocidental ou mais especificamente a justiça criminal tem importantes qualidades No entanto vem crescendo o reconhecimento de suas limitações e carências Não raro vítimas ofensores e membros da comunidade sentem que o sistema deixa de atender às suas necessidades Os profissionais da área da justiça juízes advogados promotores oficiais de condicional funcionários do sistema prisional amiúde expressam sua frustação com o sistema Muitos sentem que o processo judicial aprofunda as chagas e os conflitos sociais ao invés de contribuir para seu saneamento e pacificação ZEHR 2015 p 11 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 202 Na tentativa de fixar uma definição para fins operacionais Zehr conceitua a Justiça restaurativa como Uma abordagem que visa promover justiça e que envolve tanto quanto possível todos aqueles que têm interesse numa ofensa ou dano específico num processo que coletivamente identifica e trata os danos necessidades e obrigações decorrentes da ofensa a fim de restabelecer as pessoas e endireitar as coisas na medida do possível ZEHR 2015 p 54 Ao discorrer sobre a Justiça Restaurativa no Brasil Vasconcelos apresenta algumas referências legais ao asseverar que Quanto à autocomposição penal no Brasil o marco regulatório que inicialmente resumiase ao previsto na Lei 90991995 e na Lei 102592001 atualmente ampliou a perspectiva consoante a Lei 125942012 Lei do Sinase Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo Em verdade tais regras devem ser compreendidas e interpretadas consoante os fundamentos constitucionais da cidadania da dignidade da pessoa humana e da promoção da paz inclusive porque aplicações mais amplas em situações decorrentes de crimes de maior gravidade os programas restaurativos a eles relacionados poderão e deverão ser estruturados no acolhimento desses valores constitucionais VASCONCELOS 2018 p 268 Vêse portanto que a aplicação da Justiça Restaurativa no Brasil é relativamente recente e inserida nas infrações penais afetas aos juizados especiais e aplicável aos adolescentes em conflito com a lei Surge assim a discussão sobre a impossibilidade de aplicação aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher Sabese que a violência contra as mulheres especialmente a familiar e doméstica não é um fato isolado descrito apenas em livros históricos Infelizmente essa forma de violência ainda é uma prática comum em diversos países muitos senão praticamente todos do qual o Brasil encontrase inserido Não se nega como registra Dias DIAS 2018 p 25 que Ditados populares com natureza aparentemente jocosa acabam por absorver e naturalizar a violência doméstica em briga de marido e mulher ninguém mete a colher ele pode não saber por que bate mas ela sabe por que apanha Esses entre outros ditos repetidos como brincadeira revelam certa conivência da sociedade para com a violência contra a mulher No Brasil a Lei Maria da Penha Lei n 113402006 BRASIL 2006 representou um avanço significativo na luta em defesa dos direitos das mulheres e no enfrentamento das violências perpetradas contra elas por incluir políticas públicas voltadas a prevenção proteção além de medidas de caráter punitivo A Lei n 113402006 exige a atuação de vários atores no combate à violência contra mulher seja o próprio Judiciário o Ministério Público a sociedade e ainda toda uma rede de Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 203 suporte não somente à vítima aos familiares mas também ao próprio agressor a fim de trabalhar entre os eixos de combate assistência e prevenção Sobre essa atuação de vários seguimentos da sociedade conectados com o Poder Público Dias assevera que A lei traçou diretrizes para atuação articulada e integrada dos entes públicos nas esferas federal estadual e municipal e organizações não governamentais na implementação de política pública para coibir essa forma de violência e de medidas de assistência e proteção às mulheres bem como trouxe orientações para atuação das polícias do Ministério Público do Judiciário e das equipes multidisciplinares Inúmeros dos seus dispositivos revelam esse enfoque e a necessidade de integração entre as instituições DIAS 2018 p 250 Ao criar mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher Dias 2018 p 09 lembra que a Lei nada mais fez do que resgatar a cidadania feminina A autora ainda faz em poucas palavras um resgate das razões e impasses da lei Levou 27 anos para ser editada E só foi em face da tenacidade de uma mulher que bateu às portas de organismos internacionais denunciando o descaso com que a violência doméstica era tratada no país Por isso merecidamente a lei leva o seu nome Lei Maria da Penha Mas o preço foi caro Desgraçadamente por duas vezes foi vítima de tentativa de homicídio tendo ficado paraplégica O fato é que se tornou a lei mais conhecida do Brasil segundo alguns magistrados também a mais eficaz Nem por isso a mais efetiva do mesmo modo como historicamente sempre foram tradas as mulheres a Lei Maria da Penha foi desprezada difamada ridicularizada no afã de destruíla foi chamada de inconstitucional pela singela razão de proteger a mulher e não assegurar tutela ao homem Mas somente quem tem enorme resistência de enxergar a realidade da vida alegar que afronta o princípio da igualdade tratar desigualmente os desiguais DIAS 2018 p 10 Ainda que o objetivo do presente artigo não seja adentrar sobre os mecanismos e terminologias previstos na Lei Maria da Penha alertase o leitor que a Lei n 113402006 BRASIL 2006 previu algumas definições importantes ao pontuar sobre o âmbito de abrangência qual seja violência praticada no âmbito doméstico familiar e em relações de afeto além de discorrer sobre as formas de violência Neste sentido Fernandes adverte e registra que A Lei Maria da Penha não contém um rol de crimes de violência doméstica mas sim a referência às formas de violência praticadas contra a mulher dada a sua condição peculiar arts 4o e 7o da Lei n 113402006 A conduta do agente ação ou omissão que cause sofrimento físico mental sexual moral ou dano patrimonial em razão do gênero nas situações previstas no art 5o âmbito da unidade doméstica âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto configura violência regulada pela Lei Maria da Penha FERNANDES 2015 p 5758 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 204 Assim são formas de violência expressamente previstas e definidas pela Lei Maria da Penha física psicológica sexual patrimonial e moral artigo 7º BRASIL 2006 A violência física ocorre quando a conduta ofende a integridade ou saude corporal da mulher artigo 7º inciso I BRASIL 2006 Alguns exemplos de violência física são socos chutes tapas empurrões queimaduras cortes tirar de casa à força obrigar a tomar algum medicamento desnecessário obrigar a ingerir bebidas alcoólicas entre outros Geralmente a violência contra a mulher em âmbito doméstico ou familiar não se inicia com a forma física Não raras vezes o agressor inicia a dominação com a segunda forma de violência prevista na Lei Maria da Penha A violência psicológica ocorre quando há qualquer conduta que cause danos à autoestima ou dano ao emocional da mulher artigo 7º inciso II BRASIL 2006 Nesse tipo de violência é comum o isolamento de amigos e familiares ameaças proibição de trabalhar ou estudar insultos constantes manipulação afetiva e assim por diante A terceira forma de violência descrita na Lei Maria da Penha artigo 7º inciso III BRASIL 2006 é a violência sexual Caracterizase como qualquer conduta que force a mulher a praticarpresenciar relação sexual na qual não deseja Também configura violência sexual conduta que atinja o exercício de direitos sexuais e reprodutivos o qual inclui o fato de obrigar a mulher usar ou não usar anticoncepcionais contra sua vontade A violência sexual abrange os seguintes aspectos conceituais prática de ato sexual não desejado ou com quem não tem condições de consentir exploração da sexualidade da mulher e a restrição dos direitos reprodutivos ou da liberdade sexual FERNANDES 2015 p 96 Violência patrimonial também chamada com violência econômica ou financeira são os atos ou omissões do agressor que afetam a sobrevivência e satisfação das necessidades como a retenção subtração destruição ainda que parcial de objetos bens instrumentos de trabalho documentos pessoais da mulher artigo 7º inciso IV BRASIL 2006 Entendese como violência moral artigo 7º V BRASIL 2006 qualquer conduta que importe em calúnia quando o agressor afirma falsamente que a vítima praticou tal crime difamação quando o agressor atribui à mulher fatos que prejudiquem sua reputação injúria quando há ofensa a dignidade da mulher podendo inclusive ocorrer pela internet A violência moral como lembra Fernandes 2015 p 108 é uma das formas mais comuns de dominação da mulher Xingamentos publicos e privados minam a autoestima e expõem a mulher perante amigos e familiares contribuindo para seu silêncio Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 205 Vêse portanto que ao romper com o tradicional conceito de violência que remete à ideia de agressão física o legislador preocupouse em situar a noção de violência como uma violação aos direitos da mulher Logo atentandose para as diversas formas de violências possíveis praticadas contra a mulher no âmbito doméstico e familiar que não se exaurem às acima expostas4 discutese se esses conflitos podem ser submetidos a procedimentos diversos dos praticados pelo sistema penal tradicional De fato um dos temas mais controvertidos no campo da autocomposição penal e Justiça Restaurativa é justamente a utilização de métodos não adversariais em conflitos decorrentes de violência doméstica e familiar contra a mulher Ao discorrer sobre o impacto da prática restaurativa até mesmo em crimes mais graves Zehr 2015 faz uma ponderação importante aconselha cautela na aplicação da Justiça Restaurativa na área de violência doméstica Zehr considera ainda que as abordagens restaurativas são desafiadoras em todas as ofensas onde se verifica um significativo desequilíbrio de poder ZEHR 2015 p 24 e não se nega que muitos conflitos decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher estejam caracterizados por esse problema O Conselho Nacional de Justiça nos últimos anos tem sinalizado positivamente para a possibilidade de utilização da Justiça Restaurativa a casos de conflitos decorrentes de violências previstas na Lei 113042006 Para Machado e Santos 2018 a postura fundamentase no fato de que o sistema penal punitivo é ineficaz para resolver tais conflitos e atingir a harmonia no espaço doméstico e familiar Em relatório apresentado no ano de 2018 no qual o Conselho Nacional de Justiça contratou a realização da pesquisa ao apresentar os marcos normativos em âmbito nacional da Justiça Restaurativa constou que A Lei 113402006 Lei Maria da Penha apesar de não prever expressamente ou recomendar medidas ou práticas restaurativas em seus dispositivos extras penais prevê a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher com equipes de atendimento multidisciplinar Ou seja não há menção expressa mas também não há proibição Não obstante dentre outras questões o espírito da Lei Maria da Penha é o da promoção de políticas e ações que promovam a restauração das partes assim como a Justiça Restaurativa Poderá ser aplicada a Justiça Restaurativa nos procedimentos que envolvem crimes de violência doméstica mas a ação penal 4 Para entender quais crimescontravenções penais as formas de violência podem caracterizar sugerese a leitura da obra de Fernandes FERNANDES 2015 A autora apresentou um quadro esquemático sobre o conceito de violência de gênero formas de violência além de apontar as infrações penais possíveis para cada tipo de violência Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 206 não poderá ser suspensa deverá seguir seu curso normal até a sentença por expressa proibição legal de qualquer flexibilização BRASIL 2018 p 88 Dentre os argumentos contrários à utilização de meios não tradicionais para o tratamento dos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher está no fato de ela representar um possível retrocesso às conquistas da Lei Maria da Penha A intenção legislativa foi muito clara ao impedir a aplicação da Lei 90991995 e consequentemente repelir os procedimentos despenalizadores ou conciliatórios CUNHA PINTO 2007 logo entendeuse pela incongruência de aplicação de métodos autocompositivos penais Há ainda limites legais em sentido amplo que podem representar um obstáculo à utilização dessas práticas como por exemplo a Recomendação Geral 33 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres CEDAW que aconselhou os Estados partes e o Brasil é signatário que assegurem que casos de violência contra as mulheres incluindo violência doméstica sob nenhuma circunstância sejam encaminhados para qualquer procedimento alternativo de resolução de disputas ONU 2015 p 24 Machado e Santos 2018 ao discorrerem sobre suas preocupações em razão da atual proposta do Judiciário brasileiro em instaurar práticas restaurativas como a constelação familiar aos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher argumentam que para que se conceba um modelo de justiça transformadora aplicável aos casos de violência doméstica devese coordenar alternativas individuais e coletivas reconfigurando a política de valoração das mulheres a partir de sua experiência de vida mas também se propondo enfrentar a violência enquanto fenômeno presente em nossa cultura colonizadora dos corpos femininos e no contexto de instituições que por sua vez tendem a reproduzir a lógica da violência de gênero racializada Isso quer dizer que não podemos creditar todas as expectativas de enfrentamento da violência doméstica contra mulheres em soluções únicas e apenas ao nível da intervenção individual MACHADO SANTOS 2018 p 258 De fato a violência praticada contra a mulher no âmbito doméstico ou familiar exige o envolvimento de toda a sociedade ademais práticas aplicadas pelo Estado não podem representar um retrocesso como por exemplo promover a revitimização das mulheres Portanto toda e qualquer política pública voltada ao enfrentamento da violência contra a mulher no âmbito doméstico e familiar deve atentarse para as características próprias dessa forma de violência bem como entender toda a luta das mulheres e a evolução dos direitos Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 207 2 PONDERAÇÕES SOBRE A CONSTELAÇÃO FAMILIAR SISTÊMICA E ANÁLISE DO PROJETO METENDO A COLHER Metendo a Colher reconhecer o bom lugar de quem faz parte nasceu em razão da escuta de relatos reiterados de atos de violência em processos judiciais de violência doméstica e familiar contra a mulher A problemática foi levada ao conhecimento do Conselho da Comunidade da Comarca de Braço do Norte que ao verificar também a necessidade de realizar um trabalho a princípio de apoio mas também preventivo buscou profissionais ligados à Psicologia e Constelação Familiar para elaboração deste projeto que culminou com a escolha do nome fazendo referência ao dito popular em briga de marido e mulher ninguém mete a colher Antes de apresentar informações sobre o projeto em si realizado na Comarca de Braço do Norte apresentase noções gerais e teóricas sobre a Constelação Familiar Sistêmica 21 Apontamentos sobre a constelação familiar sistêmica A técnica psicoterapêutica foi desenvolvida no fim do século XX pelo alemão Bert Hellinger HELLINGER 20045 e busca resolver antigos conflitos e até doenças que se repetem a cada geração Atua de forma direta para que a nova geração possa compreender e curar tais conflitos entender e aceitar a herança familiar para que possa se libertar mais facilmente deles Baggenstoss e Fiegenbaum argumentam que A Constelação Sistêmica vem sendo caracterizada como uma ferramenta científica extremamente eficaz que possibilita a identificação da origem ou do motivo dos conflitos humanos que se escondem por detrás das demandas judiciais trabalhando padrões destrutivos do comportamento e da interação do sujeito com o grupo familiar ou com seu grupo de convívio auxiliando na compreensão mútua potencializando assim o restabelecimento do diálogo e prevenindo futuros conflitos BAGGENSTOSS FIEGENBAUM 2017 p 114 Vêse portanto que as constelações surgem para que o processo ande de uma forma diferente para que o conflito seja realmente resolvido entre as partes com a ampliação do diálogo e não apenas dada uma sentença ao processo Ainda que haja a mediação a Constelação Familiar tende a solucionar problemas que vem de geração em geração 5 Não é pretensão das autoras apresentar e aprofundar as bases epistemológicas da Constelação Familiar Sistêmica No entanto esclarecese que a técnica nasceu em razão de estudos e experiências vivenciadas por Hellinger relacionadas às áreas da psicologia e psicoterapia Na obra Ordens do amor HELLINGER 2004 o autor descreve o processo que o fez criar um modelo básico e as ordens naturais do relacionamento Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 208 A técnica pretende ajudar a solucionar vários conflitos com os filhos com casais emocionais vícios entre outros Com a prática da Constelação podese encontrar soluções para os conflitos e especialmente saber a causa destes Bert Hellinger a partir de estudos concluiu que a técnica é regida por três princípios da nossa relação que são chamados de Ordens do Amor são elas A Lei do Pertencimento A Lei da Hierarquia e A Lei do Equilíbrio Assim apresentase a seguir a ideias principais de cada uma delas retiradas de Hellinger HELLINGER 2004 e Hellinger e Hovel HELLINGER HOVEL 2006 2016 A Lei do Pertencimento é que há uma necessidade de pertencimento ou de vinculação a um determinado grupo não podendo ser negado São pertencentes de tal grupo independente de qualquer coisa Se ocorrer exclusão da pessoa da geração porque praticou fato criminoso ou porque era alcoolico as proximas gerações serão compensados Por isso as ações tentem a se repetir se não forem devidamente aceitas ou perdoadas pelo grupo A Lei da Hierarquia funciona como uma ordem de chegada ao grupo As pessoas que estão no sistema há mais tempo têm preferência às que entraram depois Portanto os avós têm preferência aos filhos aos netos Mas não só entre ascendentes e descendentes os sogros e as sogras também tem preferência entre a nora e o genro como também a primeira mulher do casamento tem preferência entre a segunda a segunda tem preferência entre a terceira e assim por diante Essa ordem cronológica deve ser respeitada para que não haja um desequilíbrio A Lei do Equilíbrio pode ser chamada também de Compensação que funciona entre o dar e receber podendo ser trocas positivas e também trocas negativas Numa relação onde deve ocorrer a troca de dar e receber como por exemplo carinhos e companheirismo se há uma parte que acha que não recebe na mesma proporção que propicia pode acabar não permitindo aquilo que pode dar para que o companheiro lhe alcance para que haja um equilíbrio Porém essa compensação e equilíbrio deve ocorrer de formas positivas nada adianta se ocorrer de forma negativa O início da técnica da Constelação Sistêmica ocorre com um facilitador que nada mais é que uma pessoa devidamente formada em Constelação Sistêmica O facilitador pede à pessoa que diga tudo o que deseja constelar com a descrição também de fatos importantes que ocorreram na sua vida e na vida dos seus antepassados como por exemplo divórcios agressões doenças assassinatos suicídios entre outros Logo depois ocorre a escolha A pessoa a ser constelada escolhe alguém para representála e também representar os membros de sua família posicionando cada um em um espaço que lhe achar melhor onde tais escolhas devem ser partidas do coração A técnica Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 209 poderá também ser realizada individualmente em que os membros familiares são representados por objetos O método da Constelação permite que a pessoa entenda o porquê de alguns sentimentos e atitudes praticados por si e também por outros membros de sua geração Traz uma compreensão e aceitamento de determinadas situações irreversíveis e pode mudar o pensamento ou seja a partir desse momento modificase a forma de pensar para atingir a felicidade Em relações conjugais a técnica não tem como objetivo principal a restauração da união que se encontra em crise mas sim saber o porquê cada um agiu de determinada forma e saberem se é possível uma mudança ou então apenas aceitar tal fato Pode de fato ocasionar uma decisão difícil como a do rompimento divórcio Há muitos casos em que a mulherhomem descobre que o maridoesposa a trai sem reação para mudar a situação por medo e até mesmo outros sentimentos como raiva que mesmo não querendo a situação se manifesta em seus filhos e posteriormente eles praticam essa mesma traição com seus cônjuges e companheiros Em conflitos familiares portanto são variadas as formas de se trabalhar o conflito com a técnica da Constelação Familiar Sistêmica pode permitir entender a situação e elucidar percepcções equivocadas dos envolvidos no sistema familiar Ademais possibilita um espaço mais humano e eficiente na pacificação dos conflitos BAGGENSTOSS FIEGENBAUM 2017 p 121 Quanto aos conflitos decorrentes de infração penal igualmente abrese a possibilidade da mulher que sofreu a agressão passar por atendimento psicoterápico breve e Constelação Familiar na intenção de enfrentar e superar o trauma sofrido e ressignificar a violência e o relacionamento que viveu A Constelação Familiar contribui para ampliar as compreensões das dinâmicas familiares diante dos contextos que se apresentam e cada um vai ajudando a romper o ciclo de violência É um caminho que auxilia na obtenção de soluções para demandas de diversas áreas As soluções dos conflitos dependem da melhora no relacionamento e compreensão do outro Há uma reconstrução a princípio interna e que gradualmente vai ganhando forma dos relacionamentos de maneira sadia cresce a autoestima há fortalecimento de vínculos e valores de maneira harmoniosa e respeitosa Abrese ainda a possibilidade de atender casais e constelar famílias que estejam envolvidos em processos onde há indícios de Alienação Parental Nesse novo olhar para o Direito as partes podem buscar o equilíbrio nos seus sistemas familiares que muitas vezes Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 210 podem estar com questões a serem vistas ou aprofundadas em todas essas leis ou em apenas uma Logo o que se vê é que a Constelação Familiar Sistêmica representa uma forma alternativa de lidar com conflitos sociais6 dentre eles os conflitos familiares que podem incluir inclusive atos de violência praticados no âmbito familiar e doméstico 22 Experiência vivenciada na comarca de braço do norte projeto metendo a colher reconhecer o bom lugar de quem faz parte Como afirmado outrora o Projeto Metendo a colher reconhecer o bom lugar de quem faz parte BECKER WESSLER 2019 nasceu de inquietações vivenciadas na Comarca de Braço do Norte especialmente em razão de relatos reiterados de atos de violências praticados contra mulheres no âmbito doméstico e familiar Não diferente do resto do país a Comarca de Braço do Norte possui registros consideráveis dessa forma de violência e a situação foi relatada em uma das reuniões do Conselho da Comunidade Em plantão judicial realizado no início do ano de 2019 por uma das autoras houve a lavratura de 5 autos de prisão em flagrante em um final de semana e todos envolveram violência doméstica contra a mulher Essa situação é um exemplo que demonstra a prática recorrente de violação de direitos das mulheres O Conselho da Comunidade é um órgão da execução penal com previsão na Lei de Execução Penal BRASIL 1984 que deve ser instalado nas Comarcas pelo juiz Em Braço do Norte Santa Catarina desde a sua instalação7 em 2007 pelo Juiz de Direito Fernando de Castro Faria o Conselho da Comunidade promove ações e desenvolvimento de projetos na área social com foco na prevenção de infrações penais além de realizar visitas em presídios da região e prestar assistência aos egressos do sistema prisional e respectivas famílias Dentre os projetos realizados pelo Conselho da Comunidade de Braço do Norte está o da mediação escolar que tem como objetivo criar e capacitar equipes de mediação de conflitos escolares nas escolas da Comarca Também foi encampado pelo Conselho o projeto 6 Em razão da presente proposta de pesquisa ter limitações que incluem números de páginas escritas não se aprofundou sobre as resistências para a aplicação da Constelação Familiar aos casos de violência doméstica e familiar Sugerese a leitura de Machado e Santos MACHADO SANTOS 2018 bem como Severi SEVERI 2017 7 Uma das autoras do presente artigo é integrante do Conselho da Comunidade de Braço do Norte Portanto referidas informações tem por base vivências dela Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 211 Depoimento Especial com enfoque no atendimento humanizado na oitiva de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual Referidos projetos a exemplo do projeto Metendo a Colher indicam a preocupação da sociedade local em proporcionar às pessoas um cuidado na relação do Poder Público com os conflitos sociais existentes O Projeto Metendo a colher reconhecer o bom lugar de quem faz parte implantado em Braço do Norte no ano de 2019 recente portanto pretende oferecer aos envolvidos em conflitos previstos na Lei Maria da Penha atendimento psicológico bem como a Constelação Familiar Sistêmica BECKER WESSLER 2019 O serviço é realizado por psicólogas uma inclusive com formação em Constelação Familiar A remuneração é realizada diretamente pelo Conselho da Comunidade uma vez que a Comarca de Braço do Norte não possui em seus quadros servidores psicólogos concursados efetivos Com base no Projeto tanto a vítima quanto o agressor são atendidos pois se pensou em incluir o agressor tanto no atendimento psicológico primeira e segunda fase quanto na Constelação Familiar visando assim o equilíbrio no sistema familiar De início as partes vítima e agressor são intimadas para comparecerem ao atendimento psicológico em razão de decisão inicial proferida no processo de medida protetiva com autorização de aproximação da vítima pelo agressor no momento da participação no projeto O local de atendimento é nas dependências do Fórum de Braço do Norte pois há segurança no local A participação em todas as fases do projeto não é obrigatória voluntária portanto O atendimento psicológico tem por objetivo auxiliar a mulher vítima de agressão a enfrentar e superar o trauma sofrido Quanto ao agressor os atendimentos buscam a ressignificação no modo como agiu e como lidar com frustrações e inseguranças Suas crenças limitantes construídas pela educação e modelo de casal que recebeu também são observadas na medida em que se busca um novo olhar para suas atitudes e o modo de se relacionar Registrase por oportuno que a mulher que sofre algum tipo de violência geralmente apresenta algum comprometimento psicológico como a dificuldade de mudar sua realidade insegurança sentimento de culpa ilusório e angústia Por essa razão o Conselho da Comunidade de Braço do Norte entendeu ser importante disponibilizar aos envolvidos nos conflitos que envolvam atos de violência doméstica e familiar atendimento psicológico que representa uma ajuda externa que auxilia a criação de um mecanismo de mudança Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 212 Após o primeiro atendimento psicológico a profissional verifica a necessidade ou não da participação na Constelação Familiar e em caso positivo encaminha para a consteladora que agenda diretamente com as partes as datas e os horários Ao final da participação na constelação que poderá ocorrer com outros membros da família serão convidados a participar as partes são encaminhadas novamente ao atendimento psicológico para o fechamento Com o fechamento as vítimas são ouvidas na audiência de ratificação O projeto foi apresentado ao Conselho em abril de 2019 e implantado em junho do mesmo ano Ainda que se trate de um projeto relativamente recente que inclusive depende de novas pesquisas e estudos a respeito dos ganhos ou perdas da utilização dessas práticas restaurativas não se pode negar que a Comarca de Braço do Norte tem se preocupado em atuar além do sistema penal tradicional no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher CONSIDERAÇÕES FINAIS Não se pretende com o presente artigo exaurir ou mitigar a função primordial do Poder Judiciário na resolução de conflitos especialmente quando se pensa no sistema penal e na violência doméstica e familiar contra a mulher Ademais sabese que há a necessidade de enfrentar a violência contra a mulher em âmbito doméstico e familiar não apenas na esfera individual mas sim entendêla como uma violação de direitos sistêmica e endêmica que exige a atuação em eixos preventivos e protetivos além de punitivos bem como a participação de toda a sociedade Há de fato uma onda que propaga mudanças de paradigmas nos papeis desenvolvidos pelo Poder Judiciário e especialmente em razão dos estímulos realizados pelo Conselho Nacional de Justiça as resoluções de conflitos tem se valido de técnicas não adversariais como a mediação e a conciliação bem como no âmbito penal de práticas restaurativas Não há consenso sobre a possibilidade de aplicação de métodos de autocomposição aos conflitos decorrentes de violências descritas na Lei n 113402006 Há receio quanto a um possível retrocesso aos avanços obtidos com a vigência da Lei Maria da Penha Dentre as práticas restaurativas está a Constelação Familiar Sistêmica técnica psicoterapêutica desenvolvida por Bert Hellinger a partir da reconstituição da genealogia dos ancestrais regida por três princípios chamados de ordens do amor A Lei do Pertencimento A Lei da Hierarquia e A Lei do Equilíbrio Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 213 Na Comarca de Braço do Norte Santa Catarina há poucos meses foi implantado o Projeto Metendo a colher reconhecer o bom lugar de quem faz parte em razão de uma proposta aprovada pelo Conselho da Comunidade local Referido projeto tem garantido atendimento psicológico aos envolvidos em atos de violência doméstica e familiar o que se alinha às propostas de apoio multidisciplinar previstas na Lei Maria da Penha Além dos atendimentos psicológicos o projeto possibilita o encaminhamento de adesão voluntária à Constelação Familiar Sistêmica Em suma o Projeto Metendo a colher reconhecer o bom lugar de quem faz parte não pode ser ignorado por pesquisa acadêmicas e por organismos públicos e sociais bem como pelos operadores de Direito em geral e outras áreas multidisciplinares Por ser recente há a necessidade de aferir a efetividade e ainda legitimidade no problema social que é o enfrentamento de combate à violência contra a mulher REFERÊNCIAS BAGGENSTOSS Grazielly Alessandra FIEGENBAUM Magda A eficácia das constelações sistêmicas como método de pacificação dos conflitos familiares In BRAGA Romulo Rhemo Palitot MARQUES Jacyra Farias Souza MOURA Francivaldo Gomes coordenadores Formas consensuais de solução de conflitos Florianópolis CONPEDI 2017 BECKER Nadya Niehues WESSLER Daniella Wiggers Projeto metendo a colher reconhecer o bom lugar de quem faz parte Braço do Norte 2019 Trabalho não publicado BRASIL Conselho Nacional de Justiça Relatório analítico propositivo Justiça pesquisa direitos e garantias fundamentais Pilotando a Justiça Restaurativa o papel do Poder Judiciário Coordenação de Vera Regina Pereira de Andrade Brasília CNJ 2018 BRASIL Conselho Nacional de Justiça Resolução n 125 de 29 de novembro de 2010 Dispõe sobre a Política Judiciária Nacional de tratamento adequado dos conflitos de interesses no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências Disponível em httpwwwcnjjusbrbuscaatosadmdocumento2579 Acesso em 22 ago 2019 BRASIL Conselho Nacional de Justiça Resolução n 225 de 31 de maio de 2016 Dispõe sobre a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário e dá outras providências Disponível em httpwwwcnjjusbrbuscaatosadmdocumento3127 Acesso em 22 ago 2019 BRASIL Lei n 11340 de 7 de agosto de 2006 Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos do 8o do art 226 da Constituição Federal da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher altera o Código de Processo Penal o Código Penal e a Lei de Execução Penal e dá outras Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 214 providências Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Ato2004 20062006LeiL11340htm Acesso em 22 ago 2019 BRASIL Lei n 13105 de 16 de março de 2015a Código de Processo Civil Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato201520182015leil13105htm Acesso em 09 set 2019 BRASIL Lei n 13140 de 26 de junho de 2015b Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública altera a Lei no 9469 de 10 de julho de 1997 e o Decreto no 70235 de 6 de março de 1972 e revoga o 2o do art 6o da Lei no 9469 de 10 de julho de 1997 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato2015 20182015LeiL13140htm Acesso em 09 set 2019 BRASIL Lei n 7210 de julho de 1984 Institui a lei de execução penal Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03LEISL7210htm Acesso em 22 ago 2019 CAPPELLETTI Mauro GARTH Bryant Acesso à justiça Tradução de Ellen Gracie Northfleet Porto Alegre Fabris 1988 CUNHA Rogério Sanches PINTO Ronaldo Batista A Lei Maria da Penha e a nãoaplicação dos institutos despenalizadores dos juizados especiais criminais Revista Jus Navigandi ISSN 15184862 Teresina ano 12 n 1517 27 ago 2007 Disponível em httpsjuscombrartigos10328 Acesso em 8 ago 2019 DIAS Maria Berenice A Lei Maria da Penha na Justiça 5 ed rev ampl e atual Salvador JusPodivm 2018 FERNANDES Valéria Diez Scarance Lei Maria da Penha o processo penal no caminho da efetividade abordagem jurídica e multidisciplinar São Paulo Atlas 2015 GOULART Juliana Ribeiro Concretização do acesso à justiça a mediação judicial e o reconhecimento do ofício do mediador judicial no Brasil 2018 Disponível em httpsrepositorioufscbrhandle123456789192800 Acesso em 01 ago 2019 HELLINGER Bert HOVEL Gabriele Ten Constelações familiares o reconhecimento das ordens do amor Editora Cultrix São Paulo 2006 HELLINGER Bert HOVEL Gabriele Ten Constelação Familiar de Bert Hellinger um novo olhar para problemas antigos 2016 Disponível em httpsiperoxocomconstelacao sistemicaefamiliar Acesso em 09 de julho de 2019 HELLINGER Bert Ordens do Amor Editora Cultrix São Paulo 2004 MACHADO Isadora Vier SANTOS Cecília MacDowell Punir restaurar ou transformar Por uma justiça emancipatória em casos de violência doméstica Revista Brasileira de Ciências Criminais Vol 126 Ano 26 p 241271 São Paulo RT 2018 ONU Organização das Nações Unidas Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres Recomendação Geral n 33 sobre o acesso das Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 215 mulheres à justiça Tradução Valéria Pandjiarjiam Revisão Silvia Pimentel 2015 Disponível em httpsassetscompromissoeatitude ipgsfo2digitaloceanspacescom201602RecomendacaoGeraln33ComiteCEDAWpdf Acesso em 23 ago 2019 SEVERI Fabiana Cristina org É possível mediar casos de violência de gênero 2017 Ribeirão Preto Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo Disponível em httpswwwforumjusticacombrwp contentuploads201808IWorkShopLMPeJR03agostopdf Acesso em 22 ago 2019 VASCONCELOS Carlos Eduardo de Mediação de conflitos e práticas restaurativas 6 ed rev atual e ampl São Paulo Método 2018 ZEHR Howard Justiça Restaurativa São Paulo Palas Athena 2015 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 216 NAS ASAS DO ASSUM PRETO PRÁTICAS RESTAURATIVAS NO COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E ALCANCE DA CIDADANIA NO ESTADO DA PARAÍBA Ana Beatriz Eufrauzino de Araújo1 Larissa Emília Guilherme Ribeiro2 RESUMO A violência doméstica é uma das maiores problemáticas que ainda afetam a vida de mulheres no Brasil e apesar de haver uma lei especial que observa repreende e previne casos de violência contra a mulher em âmbito familiar ainda se pode observar um grande número de casos que se enquadram nessa triste realidade Na busca para solucionar essa discrepância entre a aplicação da lei e a realidade fática da vida cotidiana a criminologia aparece com o que pode ser a chave para adequar o uso da norma especial aos números de casos diminuindo os notórios índices de violência doméstica as práticas de justiça restaurativa A metodologia adotada foi a pesquisa descritiva qualitativa com método de abordagem hipotético dedutivo Já no que diz respeito à técnica da pesquisa foi empregado o procedimento técnico de pesquisa bibliográfica e estudo de campo Assim essa reflexão teórica teve como objetivo analisar a questão da aplicação de práticas de justiça restaurativa em prevenção à violência doméstica e através de um recorte entre dois projetos desenvolvidos dentro do Estado da Paraíba observar a efetividade dessas práticas junto às comunidades Concluise que o uso das práticas restaurativas é meio propício a ser utilizado na prevenção e combate à violência doméstica através da reestruturação comunitária e individual dos integrantes da relação conflituosa e a busca da composição entre as partes a quebra do estigma social machista e o alcance da paz social e equilíbrio entre os seres Palavraschave Lei Maria da Penha Práticas restaurativas Criminologia Violência doméstica INTRODUÇÃO Entoada na voz do inconfundível Luiz Gonzaga a canção Assum Preto retrata de forma atemporal não apenas a Lenda do pássaro também conhecido como Anum Preto e Graúna como também o cotidiano do nordestino com melodias que remetem ao Sertão O Assum Preto ave comum no Nordeste brasileiro e que se tornou nacionalmente conhecida através da canção composta por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira tem um canto 1Pósgraduanda em Direito Penal Processo Penal e Perícias Criminais pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado da Paraíba FESMIP Membro da Comissão de Combate à Violência e Impunidade contra a Mulher OABPB AdvogadaEmail anabeatrizeufrauzinoaraujogmailcom 2Acadêmica de Direito Pesquisadora em Direito Internacional e Direitos Humanos Extensionista na UFPB do projeto Construindo Mapas Sociais subsídios para o Plano de Gestão territorial e ambiental Potiguara Email larissabribeiro2gmailcom Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 217 alto e melodioso entretanto por só cantar à noite tinha seus olhos furados com espinhos de laranjeira para que assim pudessem cantar sem parar Dessa forma seu belo canto retrata a tristeza de um pássaro que em razão da vaidade dos homens e não apenas engaiolado não pode contemplar a beleza das coisas nem a imensidão do céu retratado nos versos Tudo em vorta é só beleza sol de abril e a mata em flor mas Assum Preto cego dos óio não vendo a luz ai canta de dor Expressando assim no seu canto a tristeza por sua eterna escuridão Assum Preto veve sorto mas num pode avuá mil vez a sina de uma gaiola desde que o céu ai pudesse oiá Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira expressam e agonia de um eu lírico que não consegue se livrar das chagas de um amor perdido Mas dentro das possíveis interpretações desses tristes versos temos o retrato do ciclo vicioso de um quadro de violência Embora a Mulher tenha liberdades não pode exercer pois o agressor na maioria das vezes condiciona o próprio comportamento da vítima Na Paraíba dados da Secretaria de Segurança e Defesa Social do Estado referentes à violência contra a mulher apontam uma redução sistêmica Apenas nos últimos sete meses houve uma redução de 24 nos indicadores de violência Sendo portanto a Paraíba um dos estados que mais reduziu seus índices já que a média nacional não supera os 10 É correto afirmar que as estatísticas positivas são oriundas de uma política que preza a parceria e ao fortalecimento de redes de apoio Essa rede de apoio auxilia na prevenção bem como minimiza as consequências dolorosas decorrentes da violência trabalhando a autonomia financeira e o resgate da autoestima dessas mulheres Antes do fortalecimento dessas redes de apoio que vão desde o Litoral paraibano ao Alto Sertão essas mulheres eram submetidas à longas procuras em busca de apoio das instituições públicas tendo assim a continuação de seus sofrimentos ocasionando por vezes o silenciamento quando o ciclo da violência continuava a se repetir Isso porque os agressores são na maioria das vezes pessoas com as quais as mulheres tem convívio e uma relação de afeto Sendo necessário portanto apoio integral para que consigam sair dessa situação Assum Preto o meu cantar é tão triste como o teu também roubaro o meu amor que era a luz ai dos óios meus O ciclo da violência alimentado pelos discursos machistas destrói relações que na maioria das vezes foram construídas através do afeto Então a partir do acolhimento do resgate do bemestar e da autoestima dessas mulheres além da reinserção laboral elas passam a viver de forma autônoma Quebrando assim o ciclo da violência e tornandoa cada vez menos comum a partir da ampliação dessa política e de uma efetiva estruturação e articulação dos envolvidos Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 218 A metodologia adotada no presente trabalho foi a pesquisa descritiva qualitativa com método de abordagem hipotético dedutivo Quanto à técnica da pesquisa utilizouse o procedimento técnico de pesquisa bibliográfica e estudo de campo Tendo portanto o trabalho o escopo analisar a questão da aplicação de práticas de justiça restaurativa em prevenção à violência doméstica e através de um recorte entre dois projetos desenvolvidos dentro do Estado da Paraíba observar a efetividade dessas práticas junto às comunidades 1 A JUSTIÇA RESTAURATIVA E A SOLUÇÃO DE CONFLITOS O aumento da criminalidade e a dificuldade de diminuição dessas taxas pelas instâncias de controle formais têm criado mundialmente a noção da necessidade de desenvolvimento de outros mecanismos de combate a conflitos de ordem criminal que os tradicionalmente aplicados A ideia de combate repressivo ao crime e a lesão de direitos vem sendo cada vez mais criticada muitos doutrinadores propriamente acreditam e defendem que a política de Law and Order fortemente disseminada a partir da década de 1980 como sendo ineficaz e inadequada para o alcance do fim ou diminuição da criminalidade O Direito Penal quanto prática e ciência jurídica é visto com ultima ratio para a solução de qualquer conflito que venha a lesionar os bens jurídicos tido como essenciais à ordem social e humana característica de nossa organização social Contudo as práticas de combate a toda e qualquer violação de direitos se sustentam cada vez mais no uso da lei penal A aplicação do Direito Penal para a solução de conflitos é enxergada como a mais eficaz por aqueles que a defendem no entanto tal visão encontra suas amarras no entendimento da norma penal como mecanismo de vingança seja estatal ou privada contra aquele que veio a causar determinado mal ou perda gerando assim a ideia de um Direito Penal puramente retributivo que busca restituir de forma hábil os prejuízos causados a outrem usando da perda de direitos através das penas previstas na lei sob a ilusão de que a punição do agressor virá a reconstituir a incolumidade pública e o bemestar das vítimas Todavia notase que apesar da aplicação de inúmeras práticas repressivas para controle de violência esta continua a atingir níveis alarmantes o que denota o total fracasso do uso de um sistema criminal que possui enfoque maior na punição do agressor do que na reconstrução das relações sociais e a plenitude e garantia da dignidade da pessoa humana Observado isso se passou a buscar dentro da comunidade jurídica e sociológica em especial na criminologia Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 219 métodos mais apropriados para a solução de conflitos entre vítima e agressor quando possível na tentativa de tornar mais eficaz a recomposição das organizações sociais A partir daí desenvolvese a ideia de uma justiça criminal não apenas retributiva mas restaurativa com o objetivo de reconstruir as relações que tenham sofrido algum desgaste anterior em detrimento de uma conduta delituosa eou agressiva buscando manter ao máximo a incolumidade da vítima e o respeito às garantias fundamentais do infrator A justiça restaurativa se baseia em um procedimento totalmente voluntário relativamente informal que deverá acontecer preferencialmente em ambientes comunitários entre as partes vítima e infrator sempre que possível e quando apropriado com a participação de outras pessoas e membros comunitários afetados pela conduta delituosa onde deverá imperar o consenso entre as partes que participam ativamente do procedimento buscando alcançar soluções que sejam capazes de reconstruir a anterior relação comunitária e diminuir as perdas e traumas causados pela conduta infracional Podese entender a Justiça Restaurativa a partir da perspectiva de que são necessários mais do que violência e retributividade para solução de conflitos sendo para Zehr 2012 é um processo que parte da compreensão de que o sistema institucional de justiça tradicional é apenas o reflexo de um padrão cultural historicamente consensual com bases na crença da legitimidade do emprego da violência como instrumento compensatório das injustiças e na eficácia pedagógicas das estratégias punitivas retributivas Ao se realizar o procedimento dentro do meio comunitário buscase tornar a conquista da reparação pelos danos menos formal longe do endurecimento forense característico das Ações Penais da justiça convencional e mais próxima da realidade da vítima que durante o trâmite possui o controle da situação não dependendo necessariamente da intervenção do Estado para atingir a recomposição de seus bens e de seu bemestar Para o infrator a justiça restaurativa possui o condão de reintegrálo de forma mais eficiente no meio social não através de uma pena baseada na sua reclusão mas em um processo de reeducação e autocrítica mediada através de agentes capacitados para instigar essa autoanálise através da participação ativa do infrator na tentativa de composição entre ele e a vítima e quando necessário a comunidade Sob a ótica criminológica a justiça restaurativa opera como o fim para a ineficiência das práticas de uma justiça criminal que nada mais oferece que não um sistema permanentemente violento de maneira institucionalizada e que produz efeitos totalmente inversos aos buscados de maneira retórica pelo mesmo sistema que justifica o uso de práticas Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 220 inadequadas no controle a violência como único meio de alcançar a reintegração do infrator e a incolumidade da vítima O modelo restaurativo de justiça se baseia na participação de ambas as partes interessadas na solução do conflito Essa participação no programa restaurativo deverá ser voluntária para que haja a reconstrução plena da relação entre vítima infrator e sociedade Enquanto a justiça contributiva foca na penalização do indivíduo como retribuição a um delito cometido a justiça restaurativa se volta para o que aquele infrator pode fazer para eficientemente restituir os danos causados quando possível É característica inerente ao procedimento restaurativo também a participação plena da vítima que se torna ente totalmente participativo no processo com vez e voz que tem os holofotes do procedimento podendo estar ciente e ter o controle de tudo que se passa sendo inclusive dignamente restituída pelas perdas e danos materiais sofridos recebendo assistência e afeto suprindo suas necessidades individuais na relação A idealização de uma justiça restaurativa tem como propulsor as críticas trazidas pela criminologia crítica aos conceitos trabalhados à época pela criminologia tradicional que focava seus esforços na figura do infrator esquecendose completamente da constituição social ao qual o mesmo estava inserido e também da vítima que figurava como coadjuvante frente às violações de seus direitos Para Alessandro Baratta distinto autor das ciências criminológicas o controle da violência 63 Deve ser um controle efetivo e não simbólico Isso implica pelo menos três consequências 631 Aborda as causas e não apenas as manifestações de conflitos e violência 632 Sua finalidade são as situações e não apenas os comportamentos dos atores envolvidos nelas 633 Sem negar formas de compensação e restituição contra vítimas quando possível e necessário o controle social alternativo da violência deve ser acima de tudo um controle social que não é ativo ou contextual à agressão Isto corresponde a um princípio geral de prevenção 634 Você deve considerar o infrator em sua identidade atual e não em sua identidade passada BARATTA 1990 p25 Referidas críticas serviram como parâmetro para a idealização de um modelo de justiça restaurativa com enfoque não apenas no agressor mas também na vítima e em toda a sociedade como forma de diminuir a incidência das taxas de crimes de uma forma efetiva onde há a reintegração do infrator através da responsabilização instantânea por parte do mesmo com ganhos positivos para a vítima prioritária e quando necessário a participação da comunidade como forma de garantir a justiça social Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 221 Sob o prisma da justiça restaurativa o crime como sendo uma violação das relações entre vítima e infrator deve ser tratado pela justiça através de uma nova ótica sendo dever do sistema judicial restaurativo identificar as necessidades e obrigações causadas pela violação anterior ao conflito bem como os traumas oportunizando e encorajando as pessoas e a comunidade através do diálogo chegar a um consenso com a responsabilização do infrator de maneira a se respeitar suas garantias constitucionais e sua integridade bem como com a restituição da vítima tratando de suas necessidades de maneira pontual e objetiva considerando seu papel ativo no acordo realizado Vale frisar que a justiça restaurativa prioriza os direitos humanos e a necessidade do reconhecimento das causas sociais das violações às relações entre vítima e infrator crime não só identificando essas causas mas também buscando uma forma de resolver o problema não apenas punindo o agressor esquecendo completamente da realidade a qual o mesmo está inserido nem esquecendo a vítima colocando o Estado como protagonista da relação processual mas integralizando ambos infrator e ofendido considerando todas as suas necessidades e obrigações A justiça restaurativa também enfatiza os direitos humanos e a necessidade de reconhecer o impacto de injustiças sociais ou substantivas e de alguma forma resolver esses problemas ao invés de simplesmente oferecer aos infratores uma justiça formal ou positivada e às vítimas justiça alguma Dessa forma seu objetivo é a restituir à vítima a segurança o autorespeito a dignidade e mais importante o senso de controle Objetiva além disso restituir aos infratores a responsabilidade por seu crime e respectivas consequências restaurar o sentimento de que eles podem corrigir aquilo que fizeram e restaurar a crença de que o processo e seus resultados foram leais e justos MORRIS 2005 p441 É urgente a necessidade de tratar atos atentatórios contra a integridade das relações sociais de forma mais prática e integrativa visando à solução de conflitos frutos dessas violações bem como a restituição da vítima a reintegração do infrator e a reestruturação da sociedade com a participação ativa desses três entes Atos punitivistas retributivos como forma de alcance da justiça claramente não produzem os efeitos desejados como a erradicação de crimes e violações e a paz social não conseguirá ser atingida enquanto não houver o comprometimento com a reeducação daqueles que delinquem a compreensão das necessidades daqueles que têm direitos violados e a transformação social de conceitos inerentes a interesses comuns e à justiça social não se falando em vingança para aplacar clamores mas idealizando a composição como forma de integração social Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 222 2 PRÁTICAS RESTAURATIVAS E LEI MARIA DA PENHA Ainda dentro do conceito de Justiça Restaurativa desenvolvese o que chamamos de Práticas Restaurativas contudo embora haja uma relação simbiótica entre os dois institutos importante se faz diferenciálos para uma melhor compreensão A Justiça Restaurativa quando aplicada viria a atuar quando já houvesse um conflito instaurado e que precisasse de uma facilitação adequada as Práticas Restaurativas no entanto atuam anteriormente ao conflito no máximo caráter preventivo das práticas de Justiça Restaurativa atuando na educação comunitária na conscientização e desenvolvimento do sentimento de coletividade e corresponsabilidade entre os indivíduos da comunidade De acordo com Ted Wachtel fundador do Instituto Internacional de Práticas Restaurativas La justicia restaurativa proporciona una prevención terciaria que se introduce después de que el problema ha ocurrido con la intención de evitar la recurrencia Las prácticas restaurativas amplían ese esfuerzo con la prevención primaria que se introduce antes de que el problema ocurra WACHTEL 2013 p2 As práticas restaurativas por possuírem o foco na responsabilização e não na punição acabaram por virar centro de diversas discussões acerca de sua aplicabilidade em âmbito de casos que incorram na Nº 113402006 intitulada Lei Maria da Penha Referido instituto legal foi sancionado com o objetivo de contemplar e garantir a prevenção e a punição em casos de violência contra a mulher em âmbito doméstico buscando reduzir o número de casos de mulheres vítimas de violência praticadas por seus companheiros excompanheiros pais irmãos e qualquer outro indivíduo que com elas compartilhem sentimentos afetivos e convivam em ambiente familiar A Lei Maria da Penha foi dispositivo idealizado para a proteção da incolumidade da vítima em situação de violência doméstica é considerada pelo Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas UNIFEM como uma das três leis mais avançadas do mundo pois dentro de seu corpo normativo suporta tanto o caráter punitivo quanto o caráter preventivo buscando tornar mais eficiente todos os mecanismos de proteção à mulher em situação de violência doméstica Contudo por possuir esse caráter protetor em favor da vítima o que de forma alguma deve ser objeto de crítica a Lei Maria da Penha acaba por se encontrar intimamente ligada à visão punitivista e retributiva da aplicação da Lei onde no processo de apenas punir os agressores esquece de outro importante papel seu o da prevenção Seja pela disparidade com os órgãos de aplicação da Lei seja por não adequação à realidade fática dos casos de violência Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 223 pela falta de estrutura ou despreparo dos agentes públicos a Lei Maria da Penha encontra ainda forte resistência em pontuais partes do país para sua aplicação plena em todas as suas modalidades principalmente a preventiva que perde vez diante da sede de punição em relação aos agressores No processo de punição daqueles que incorrem em práticas de sua natureza a Lei Maria da Penha acaba por praticamente inutilizar uma de suas características que seria em primeira mão a mais importante a de prevenir casos de violência doméstica Segundo Castañeda 2006 o machismo é uma forma de relação manifestandose em contextos interpessoais Assim a sociedade é quem constrói indivíduos machistas não sendo portanto um traço de caráter Levando então a dimensão social do problema do machismo Ao focar na vingança contra o infrator os aplicadores do Direito ao usarem a Lei Maria da Penha esquecem que o mesmo embora integre o quadro de violência de maneira ativa como perpetrador do ato o faz por estar inserido neste ciclo como produto de uma sociedade machista misógina e patriarcal que culturalmente perpetua a ideia de superioridade do masculino formando assim no imaginário social a ideia de que em uma relação o homem tem poder e força sobre a mulher Nesse cenário os casos de violência doméstica encontram campo perfeito para continuarem acontecendo apesar da aplicação da Lei criada para combatêla Como explica Marina Castañeda Por outro lado as mulheres não são as únicas vítimas do machismo Os homens também estão inseridos ou aprisionados num sistema de valores que já não cumpre sua função As antigas características da virilidade entre elas a força física a autoridade moral a liderança familiar já não são tão respeitadas quanto antes Atualmente o pai autoritário encontra oposição dos filhos que zombam dele da esposa que também trabalha e ganha dinheiro dos empregados que questionam suas ordens As formas do machismo persistem não mais seu poder real em muitos casos perdeu sua substância e não passa de uma aparência extenuante sem perceber que a guerra já terminou CASTAÑEDA 2016 p20 Esse panorama infelizmente mostrase mais realista do que se imagina Embora existam diversos programas que usam novas tecnologias no combate à violência doméstica como patrulhas e dispositivos eletrônicos chamados de botão do pânico estes são utilizados quando já existe um ciclo de violência com medidas protetivas aplicadas e até mesmo procedimentos judiciais em andamento Essas medidas mesmo que existentes por vezes não conseguem acompanhar o aumento dos números de violência doméstica que encontra sua problemática não apenas nas atitudes do agressor mas em toda uma cultura machista e patriarcal que o antecede Sendo assim é possível ainda se verificar no Brasil um grave painel Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 224 de preocupantes casos de violência contra a mulher muitos chegando a se concretizar como o máximo da violência dentro de um ciclo de violência doméstica o feminicídio Sendo a prevenção um dos principais aspectos das Práticas Restaurativas as mesmas aparecem neste quadro de tribulações entre aplicação da Lei Maria da Penha e diminuição de casos de violência doméstica como uma saída para alcançar uma efetividade no emprego da Lei Nº 113402006 justamente por possuir o caráter educativo e de autorresponsabilização necessários para o processo de conscientização entre os agressores bem como vítimas e a quebra dos parâmetros preconceituosos acerca dos papéis de gênero dentro das relações afetivas e dentro das relações com a comunidade É possível dizer que as práticas restaurativas conseguem ir além das atuais medidas preventivas aplicadas em situações de violência doméstica pois o caráter educacional comunitário das Práticas Restaurativas vem como um mecanismo de superação da violência doméstica e familiar através do engajamento da comunidade a partir de trabalhos que envolvam todos os indivíduos que a integram desde exposições em escolas a fim de atingir o público jovem até círculos de construção de paz onde os indivíduos podem descrever o mundo através de suas perspectivas e compreender outros pontos de vistas e impressões bem como passar a entender o seu lugar como cidadão e componente de uma sociedade estruturada onde todos são detentores de direitos e garantias que devam ser respeitadas Através das Práticas Restaurativas com o empoderamento dos sujeitos fomentase a força de grupos comunitários onde se abrindo uma discussão acerca de gênero e cidadania podese mudar a mentalidade daqueles entes que integram aquela comunidade A esse ponto embora possa parecer falácia as práticas de Justiça Restaurativa já possuem recomendações de serem utilizadas em casos de violência doméstica Magistrados e outros atores do sistema de Justiça ao se reunirem para a XI Jornada Maria da Penha3 verificaram a importância e eficiência que as práticas de Justiça Restaurativa representam e recomendam que os tribunais de Justiça devam adotar práticas da Justiça Restaurativa nos casos que envolverem violência contra a mulher quando cabíveis independentemente de condenações criminais A aplicação das técnicas de Justiça Restaurativa não tem o condão de substituir a prestação jurisdicional mas sim de contribuir para a responsabilização dos atos pelos próprios agressores de maneira permanente visando à pacificação do conflito 3 Conforme carta da XI Jornada da Lei Maria da Penha publicada pelo Conselho Nacional de Justiça no ano de 2017 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 225 A ideia é buscar através da autocrítica e da compreensão do outro por parte do infrator a composição de conflitos que venham a surgir em um cenário de violência doméstica quando possível a fim de constituir no agressor a percepção de que a vítima é um ser de direitos e possui um lugar quanto ser social não podendo de forma alguma ser objetificada e que não está passível de sofrer violações de quem quer que seja ou de qualquer natureza Ainda os objetivos vão além do infrator atingindo também a vítima e a comunidade pois através da construção dessa percepção esperase que a vítima compreenda sua voz e seu lugar de fala e espaço dentro da sociedade e a nível comunitário atingir o patamar de informação e educação necessárias para a desconstrução do imaginário machista e opressor que ainda se perpetua onde só assim será possível romper a realidade de violência de gênero em que a sociedade ainda está inserida 3 PRÁTICAS RESTAURATIVAS NA PARAÍBA SPA EMPREENDER E UNIDADE DE POLÍCIA SOLIDÁRIA MARIO ANDREAZZA A fim de desenvolver os potenciais das vítimas de violência doméstica setores públicos e privados unem esforços e proporcionam às mulheres ingresso no mercado de trabalho Assim conquistam a autonomia financeira uma das formas mais eficazes na prevenção e no combate à violência contra a mulher ajudandoas a romper com o ciclo da violência Além disso art 3º da Lei Maria da Penha nº Lei 1134006 visa garantir às vítimas o acesso ao trabalho e à educação No Estado da Paraíba foi identificada a realização de práticas restaurativas no âmbito da Lei Maria da Penha e de Solução de Conflitos Tais práticas podem ser encontradas tanto no Alto Sertão paraibano quanto na Região Metropolitana da Capital4 No Alto Sertão da Paraíba uma iniciativa premiada visou capacitação profissional de mulheres da zona rural que sofriam violência em âmbito familiar É importante ressaltar que as campesinas sempre tiveram importantes participações na busca da efetivação de direitos entretanto essa participação foi obscurecida em face da estrutura patriarcal e machista que permeiam toda a sociedade Apesar de todos os progressos até agora conquistados à duras penas essas mulheres ainda enfrentam situações que envolvem a marginalização pobreza extrema e outras violências de ordem econômica sexual física e psicológica Sem contar as altas taxas de suicídio 4 Dados obtidos in loco Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 226 Na necessidade de ter suas demandas atendidas e seus direitos efetivados surgiram os diversos movimentos das mulheres camponesas e redes de apoio às mulheres do campo no intuito de ajudálas na luta pela efetivação dos direitos humanos e pela libertação do jugo do patriarcado fomentando a transformação social através sobretudo do trabalho e da emancipação econômica política e social A partir de então as mulheres passam a perceber que as suas tarefas no campo não são ajuda e obrigação dada a sua condição de mulher e sim trabalho Com essa consciência feminista passaram a criar e multiplicar as redes de apoio para que pudessem ser ajudadas na melhoria de suas condições ante essa realidade que lhes é imposta Um dos exemplos dessa luta e superação encontrase na cidade de Pombal localizada na zona rural da Paraíba 370 km da Capital Um grupo de mulheres que sofriam abusos e violências econômica psicológica sexual e física vivendo em estado de vulnerabilidade e com medo que a partir de uma política pública municipal para inclusão dessas mulheres no desenvolvimento econômico da cidade e pela emancipação do patriarcado que as impunha tanta violência criaram o SPA Empreender O projeto consistiu na capacitação através do Poder Público Municipal das mulheres vítimas de abusos durante três meses onde tem aulas de empoderamento empreendedorismo e capacitação profissional na área da estética e após esse período passam a trabalhar no SPA e conquistar a própria renda O projeto foi vencedor no ano de 2016 da 9ª edição do Prêmio SEBRAE Prefeito Empreendedor na categoria Melhor Projeto Como resultado houve a diminuição em 272 dos índices de famílias elencadas como pobres ou em extrema pobreza além da formalização de 30 das mulheres participantes do projeto Resultando assim em mais de 800 devoluções dos cartões Bolsa Família em razão da independência financeira das beneficiárias Essa rede de apoio é extremamente importante para a emancipação da mulher camponesa que muitas vezes sequer tem noção da dimensão dos abusos que sofre em uma sociedade sobretudo nas regiões mais distantes da capital extremamente machista e opressora Entretanto autonomia financeira de per si não é suficiente para acabar com a violência doméstica Isto porque estas mulheres precisam de resgate em suas autoestimas para que assim consigam sair da violência física psicológica patrimonial moral ou sexual as quais são sujeitas Sendo essencial portanto que estas mulheres tenham autonomia emocional Para tanto é necessário que seja feito um trabalho que vise aumentar a autoestima dessas mulheres Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 227 E é esse trabalho de autonomia emocional e resgate da autoestima que é realizado na UPS Mario Andreazza na periferia da cidade de Bayeux região metropolitana da Capital João Pessoa no Estado da Paraíba O Projeto Social intitulado De Mãos Dadas com a Comunidade idealizado pelos moradores é realizado pela Polícia Militar e conta com uma extensa rede de apoios Tudo teve início quando em uma audiência pública a comunidade reivindicou junto ao Poder Público uma maior atuação da polícia na região A ideia até então era a presença da polícia para essencialmente patrulhar a área Mas a iniciativa de um grupo de policiais com o apoio da ONG Serviço Pastoral dos Migrantes do Nordeste que atua junto à comunidade desde 2009 decidiu criar um espaço que fosse muito além do policiamento ostensivo Após remodelar um espaço já existente e romper com a resistência da comunidade a Unidade de Policiamento Solidária policiais com formação em diversas áreas tais como educação física música e psicologia passaram a dar aulas para jovens e crianças que ali moravam São ministradas aulas de violão teatro incentivo à leitura PréEnem além de uma rede de apoio bem estabelecida Estão em contato direto com escolas com Centro de Acolhimento à Mulher com a delegacia e o Centro de Referência de Assistência Social CRAS Ali funciona também o Núcleo de Mediação Comunitária onde os próprios moradores atuam na mediação e que também é um auxílio na prevenção contra a violência doméstica O núcleo é replicado na escola da comunidade onde os alunos desde cedo são estimulados à prática da mediação com auxílio do Ministério Público Entretanto os policiais sentiram a necessidade de incluir as mulheres nas atividades de modo abarcar toda a família que muitas vezes vivem silenciosamente diversas formas de violência Passaram então a oferecer aulas de educação física e dança para mães e idosos além de acompanhamento de psicólogo Nas escolas passou a haver programas de conscientização acerca da identificação do que é a violência doméstica e meios para combatêla e denunciála Todas as atividades são ministradas por policiais o que gera junto à comunidade um vínculo comunitário Através das atividades realizadas a Polícia consegue estreitar laços conscientizar a comunidade acerca da questão da violência doméstica quebrando o seu ciclo tão enraizado e naturalizado Assim com a criação de vínculos oficinas e medidas preventivas há notoriamente mudanças de comportamentos e estreitamento de laços entre casa escola e comunidade As mulheres assistidas pelo projeto relatam sentir bemestar emocional e recuperação da confiança e da autoestima Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 228 A UPS na comunidade auxilia não apenas na prevenção à violência doméstica e na devolução da autoestima das mulheres como é um importante fator na repressão à violência Isto porque em comunidades carentes com falta de infraestrutura adequada muitas das denúncias que chegam através do 190 no Centro Integrado de Operações CIOP não são averiguadas Na maioria dos casos os policiais não conseguem achar a casa onde está ocorrendo a agressão Fazendo com que cresça o sentimento de impunidade Entretanto com a instalação da UPS e de atuarem sempre os mesmos policiais que são os mesmos que realizam as atividades esses lugares passam a ser conhecidos Os policiais conhecem a comunidade e as pessoas Assim eles filtram dentre as ocorrências atendidas aquelas que dizem respeito à violência doméstica e vão a cada uma dessas localidades cerca de 48 horas depois da ocorrência ter sido registrada procurar os agressores para conversar com eles e essa atuação tem mostrado resultados Afinal não esperam que dias depois do flagrante a Polícia apareça para conversar com a vítima e com o agressor Esse trabalho de acompanhamento com o agressor após os episódios de conflito geralmente agressões dentro de uma escala menos brutal no ciclo de violência como violações patrimoniais e psicológicas que se não trabalhadas e prevenidas a tempo podem evoluir para níveis mais graves de violência como por exemplo a física reflete a natureza reeducacional das ações realizadas pelos policiais atuantes na Unidade de Polícia Solidária que buscam conscientizar o infrator sobre a gravidade de seus atos buscando a auto responsabilização do mesmo mas sem que aconteça uma persecução penal que venha a desgastar ainda mais as relações já maculadas por um conflito Entretanto falta investimento para que haja uma ampliação de espaço e atividades e assim possam realizar medidas de reintegração social em relação aos agressores Pois estes acabam excluídos das atividades O que é um dos importantes mecanismos para que a prevenção seja mais ampla e que venha a surtir melhores efeitos no trabalho contra a cultura da agressão CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante das exposições feitas no decorrer do presente estudo foi possível perceber que as práticas restaurativas se configuram como uma alternativa a ser utilizada na prevenção e combate à violência doméstica através da ressignificação comunitária e individual dos integrantes da relação conflituosa e a busca da solução entre as partes a quebra do estigma social machista e o alcance da paz social e equilíbrio entre os seres Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 229 Onde ao colocar a vítima em papel de protagonismo nas ações que objetivam retomar o equilíbrio das relações quando possível restabelece a posição de controle e poder e decisão que a vítima deve possuir Em casos de violência doméstica há a reintegração dessa mulher na comunidade como ente de direitos através de atividades realizadas com a ajuda de equipes especializadas para reconstruir naquela mulher o sentido de humanidade Na posição de trabalho com o agressor as práticas restaurativas o tratam não como um inimigo mas também como uma vítima do ciclo de violência de gênero alimentada pela visão patriarcal e misógina culturalmente propagada em nossa sociedade Através das práticas de justiça restaurativa além da responsabilização do indivíduo com a participação voluntária do mesmo nesse processo há a sua reeducação onde se trabalha o sentido de enxergar a mulher como ser de direitos e dignidade não podendo que suas práticas violem a integridade individual e social da mesma Evidenciouse que os trabalhos realizados SPA Empreender e pela Unidade de Polícia Pacificadora embora operem ainda de forma limitada demonstram de forma explícita como o investimento em políticas de prevenção com base nas práticas restaurativas surte efeitos em relação à conscientização a educação e a reintegração de indivíduos inseridos dentro de um ciclo de violência doméstica Restou comprovado que o uso de práticas restaurativas possui fundamento suficiente para que se apliquem a casos de violência doméstica havendo inclusive recomendações de profissionais do campo jurídico o que mostra que a eficiência da lei nem sempre está em seu lado repressivo mas sim em seu lado restruturativo através da prevenção como forma de diminuir os índices de violência doméstica no Brasil REFERÊNCIAS BARATTA Alessandro Derechoshumanos entre violencia estructural y violencia penal Por la pacificación de los conflictos violentos In Revista UDH instituto Interamericano de Derechos Humanos Nº1l enero junio 1990 San José CR El Instituto 1990 CASTAÑEDA Marina O machismo invisível São Paulo A Girafa Editora Ltda 2006 CONJUR Justiça restaurativa deve ser usada em caso de violência doméstica Disponível em httpswwwconjurcombr2017ago25justicarestaurativausadaviolenciadomestica Acesso em 10 set 2019 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA XI Jornada lei maria da penha Carta da XI Jornada da Lei Maria da Penha Disponível em Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 230 httpwwwcnjjusbrfilesconteudoarquivo201708706fdfd1d015b74a169c11d9b56810cb pdf Acesso em 20 ago 2019 COUTO Bruna Dados da violência doméstica na paraíba JORNAL DA PARAÍBA João Pessoa 07 de Ago de 2019 Disponível em httpwwwjornaldaparaibacombrvidaurbanaleimariadapenha32mulheresforam mortasdeformaviolentanaparaibaem2019html Acesso em 21 ago 2019 INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO DE FAMÍLIA Lei Maria Da Penha uma década de lutas e conquistas Disponível em httpwwwibdfamorgbrnoticias6076LeiMariadaPenha3AumadC3A9cadad elutaseconquistas Acesso em 10 set 2019 INSTITUTO TERRA TRABALHO E CIDADANIAJustiça restaurativa e violência doméstica Disponível em httpittcorgbrjusticarestaurativaeviolenciadomestica Acesso em 20 ago 2019 MORRIS Alisson Criticando os críticos Uma breve resposta aos críticos da Justiça Restaurativa In Slakmon C R De Vitto e R Gomes Pinto org 2005 Justiça Restaurativa Brasília DF Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento PNUD 2005 WACHTEL Ted Definiendo qué es restaurativo Instituto Internacional de Prácticas Restaurativas Uma Escuela de Posgrado 2013 ZEHR Howard Justiça restaurativa Tradução Tônia Van Acker São Paulo Palas Athena 2012 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 231 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER UMA ANÁLISE DA NORMA PENAL FRENTE AO BEM JURÍDICO TUTELADO E OS DESAFIOS DA IMPLEMENTAÇÃO DE MEDIDAS DE JUSTIÇA RESTAURATIVA EM SANTA CATARINA Márcia Aline Pacheco de Medeiros1 Kelly Cristina Schäfer Batistella2 Christiane Heloisa Kalb3 Denise Maria Nunes4 RESUMO O presente estudo pretende analisar como vem sendo implementadas algumas medidas de Justiça Restaurativa no Estado de Santa Catarina frente os casos de violência doméstica contra a mulher nos últimos 5 anos Algumas das medidas são os atendimentos multidisciplinares os grupos reflexivos dentre outros métodos que possuem a difícil meta de buscar uma igualdade de gênero para a mulher dentro da sociedade Nesse estudo em primeiro lugar buscouse apresentar historicamente e conceitualmente os aspectos legislativos mais relevantes ao assunto Logo após buscou se fazer uma análise crítica sobre sua real eficácia normativa tendo em vista os números alarmantes deste tipo de violência Ademais com a finalidade de assegurar os aspectos positivos da reeducaçãoressocialização do agressor visando o atendimento multidisciplinar não apenas o punindo fisicamente com a reclusão carcerária fezse necessário nesse sentido uma abordagem do tema pelo direito alternativo e pela justiça restaurativa Para elaboração da pesquisa foi utilizado o método de pesquisa de revisão bibliográfica bem como análise de dados disponibilizados nos sítios eletrônicos do tribunal de justiça catarinense Em consoante disto por ora o que se conclui é que seria possível coibir a violência doméstica por meio de um olhar crítico ao rever o importante tema da reeducaçãoressocialização do agressor visando evitar a propagação da violência contra a mulher e dar maior efetividade da lei penal Palavraschave Agressor Mulher Ressocialização Santa Catarina 1 Professora pelo Instituto Estadual Educacional do Rio Grande do Sul IEE DR CARLOS VIDAL DE OLIVEIRA 2004 Graduanda em Direito pela Faculdade CESUSC mantida pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina CESUSC 2015 Membro do Grupo de Pesquisa GPE Virtú CESUSC 2019 2 Internacionalista Policial Civil da Coordenadoria das Delegacias de Proteção à Criança ao Adolescente à Mulher e ao Idoso de Santa Catarina CDPCAMIs Especialista em Gestão e Desenvolvimento de Negócios Internacionais pela Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL 2012 Graduanda em Direito CESUSC 2016 Membro do Grupo de Pesquisa GPE Virtú CESUSC 2019 3 Advogada Professora de Direito nas disciplinas atreladas às Ciências Criminais da Faculdade CESUSC mantida pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina Doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC 2017 Coordenadora Grupo de Pesquisa GPE Virtú CESUSC 2019 4 Cientista Social Professora dos Cursos de Direito Administração e Análise e Desenvolvimento de Sistemas da Faculdade CESUSC mantida pelo Complexo de Ensino Superior de Santa Catarina CESUSC 2019 Doutora em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC 2016 Coordenadora Grupo de Pesquisa GPE Virtú CESUSC 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 232 INTRODUÇÃO A partir de análises no atual contexto social mesmo apesar de inúmeros avanços no empoderamento feminino a independência feminina esbarra no grande número de atos preconceituosos e de violência física psicológica patrimonial e moral em consoante disto seria possível a partir desta afirmativa definir se as atuais Leis Maria da Penha 1134006 que trata da violência doméstica e da Lei 1310415 que traz a complementação do art 121 com o inciso VI do Código Penal e a inclusão do crime de homicídio qualificado pelo feminicídio BRASIL 1940 são ineficazes a longo prazo para coibir tais práticas de violação de direitos humanos contra a mulher e mudar o paradigma social A análise dos alarmantes números que retratam a violência doméstica e a propagação dos casos de feminicídios frente às estatísticas no Estado de Santa Catarina irão mostrar a dificuldade de atingirse a meta de uma igualdade de gênero Apesar de existirem Leis para coibir tais crimes suas punições e atuais políticas públicas por vezes são insuficientes e não conseguem ressocializarreeducar o agressor através do encarceramento e o crime acaba se repetindo até mesmo consumando o feminicídio tendo sua ineficácia também na proteção maior ao bem jurídico tutelado que é o bem da vida Conforme preceitos que fundamentam a teoria da pena esta tem a função de ressocialização não apenas como um direito do agressor mas também como um direito da mulher vítima que vive com medo de uma nova represália fato esse do âmbito das relações familiares todavia que acaba repercutindo em toda a sociedade Deste modo se busca analisar como principal objetivo se apenas uma proteção à vítima seria capaz de desestimular a violência sofrida por ela ou se um atendimento multidisciplinar também ao agressor no âmbito das relações domésticas como psicólogos antropólogos sociólogos assistentes sociais atendimento ambulatorial quando existirem casos de dependência química como álcool e drogas ou frequentar grupos de apoio como forma de reeducação seria viável para a pacificação familiar visando suplantar a lógica da criminalização apenas como alternativa ao enfrentamento da violência A hipótese que funda este estudo é que a Lei 1134006 pode ter sido falha neste sentido e deixou de criar uma poderosa ferramenta Afinal o art 29 deixa a critério de cada Vara de violência doméstica se o agressor vai ter atendimento multidisciplinar ou não deixando vaga de forma não compulsória e facultando a sua obrigatoriedade Acreditamos que se este fosse um requisito objetivo como por exemplo de uma medida cautelar poderia ser capaz de criar mecanismos para quebrar o ciclo vicioso de uma sociedade que está impregnada de preconceitos e subestimação das mulheres Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 233 A metodologia utilizada neste estudo teve enfoque primordial numa pesquisa teórica a partir da análise multidisciplinar e interdependente necessária para compreender o fenômeno da desigualdade de gênero presente nas relações familiares e sociais causada pela violência doméstica Procurou se fugir de respostas padrões e dogmáticas para o enfrentamento do problema Além disso se buscou trazer dados qualitativos e quantitativos de pesquisas empíricas no Estado de Santa Catarina em especial sobre o tema proposto quais impactos na área jurídica e em especial na justiça criminal buscando uma reflexão do tema sobre a atual realidade social 20142019 De acordo com a hermenêutica jurídica e sob o enfoque do método interpretativo histórico fazse uma análise crítica para a aplicação das normas Com o rápido avanço da sociedade aliado ao surgimento das novas relações sociais sujeitas muitas vezes ainda que previstas são ineficazes pois a legislação está sempre um passo atrás das relações sociais tendo em vista que muitas vezes o Estado não acompanha e não há um pareamento com o que realmente aquela demanda ou grupo social necessita MAXIMILIANO 2013 p112 Neste sentido vale destacar que a trajetória da mulher é uma luta histórica pela sua emancipação independência e autonomia em todos os sentidos embora havendo inúmeros avanços pelo empoderamento feminino ela esbarra todos os dias no grande número de atos preconceituosos de violência moral psicológica física e patrimonial contra as mulheres É verdade que a Lei Maria da Penha foi um grande marco para a proteção dos direitos das mulheres mas por si só não consegue ser plenamente eficaz pois apenas atinge seu objetivo qual seja de proteção à mulher muitas vezes por curto prazo ou nem isso no momento da agressão Por outro lado a longo prazo muitas vezes tornase ineficaz pois negligencia a ressocializaçãoreeducação do agressor e sua ineficácia perpetua a violência o machismo e a subestimação às mulheres no contexto social Além disso existem muitos casos em que a violência doméstica atinge seu ápice com a consumação do feminicídio Destarte importante para a vítima e para toda a sociedade é que o agressor também receba a ajuda por meio de um atendimento multidisciplinar como o atendimento ambulatorial para dependentes químicos alcoólatras assistentes sociais psicólogos psiquiatras A Lei Maria da Penha poderia ter ido além e criado mecanismos para este agressor se ressocializar de maneira mais objetiva Os arts 29 e 30 desta lei tratam do assunto muito superficialmente deixando a vontade de cada Vara de violência doméstica a sua aplicação ou não de um atendimento para a reeducaçãoressocialização ao agressor Desta forma aplicando a pena do punir por vingança estatal o ciclo vicioso da violência contra a Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 234 mulher dificilmente irá se dissipar romper e sempre estará contaminando toda a sociedade com o preconceito e a subestimação da mulher Vale destacar que muitos agressores possivelmente foram filhos de mães vítimas e pais agressores cresceram em lares conturbados e o sofrimento se perpetua e se repassa às futuras gerações Por isso este ciclo deve ser rompido por intermédio de ações e políticas públicas para reeducarressocializar o agressor Este é um tema que está na fronteira do Direito Penal e do Direito das Famílias mas que afeta todas as mulheres e a sociedade qual mulher nunca sofreu preconceito ou foi tratada como incapaz para um trabalho ou subestimaram seu talento por conta de sua imagem e gênero Desse modo para tratar do problema especificamente quando uma ação de violência contra a mulher é protocolada no Juizado da violência doméstica deveria haver um filtro de alerta para aquela região ou grupo social onde estaria se manifestando números relevantes de demanda necessitandose da elaboração de políticas públicas e de projetos para aquela localidade Outrossim o agressor da violência no âmbito das relações familiares pode ser o mesmo que trata com preconceito e agressividade outras mulheres pois se não há respeito nas relações afetivas não será pelas estranhas ao seu convívio que ele terá Não obstante ao sofrimento psicológico físico e moral muitas mulheres deixam de fazer a denúncia porque temem a morosidade do processo judicial e de uma resposta ineficaz e que por muitas vezes não resolverá o problema Ainda cativando mais a fúria do agressor De outro modo se existisse um mecanismo que conforme o caso específico do agressor de menor potencial ofensivo passasse por uma triagem e acolhimento para uma mediação e sua ressocialização frequentar grupo de apoio tratamento nos casos indicados atendimento psicológico e social como se fosse uma medida cautelar mas tratada de maneira objetiva e não como uma mera opção conforme está na lei quem sabe poderíamos estar à frente de evitar possíveis mortes Além disso verificase poucos meios de divulgação e acesso à estudos sobre uma justiça que vise a reeducaçãoressocialização do agressor familiar trabalhos acadêmicos ou teóricos que estude essa possível relação a grande maioria aborda a importância da punição A Teoria da Pena pune como uma vingança estatal e não ressocializa o que torna a presente proposta importante para a tentativa de resolução deste problema complexo aprofundando assim a sua relevância para o âmbito geral de estudos no Direito Penal por intermédio de uma perspectiva interdependente e complementar do Direito Alternativo e da Justiça Restaurativa Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 235 O presente estudo está também intimamente ligado às recentes recomendações da ONU para a conquista da igualdade de gênero onde o combate da Violência contra a Mulher entre outros é um dos requisitos essenciais para que se atinja a meta de haver uma sociedade com menos desigualdades e preconceitos contra às mulheres ONU 2014 Recentemente esta também é uma recomendação dada pelo Conselho Nacional de Justiça CNJ por intermédio da Resolução nº 225 de 2016 aos demais Tribunais Superiores de todos os estados da Federação no âmbito da Política Nacional de Justiça Restaurativa do Poder Judiciário CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA 2016 Ademais o presente estudo aborda paralelamente os assuntos possíveis de serem levados a resolução pela Justiça Restaurativa tema que tem tido grande destaque no âmbito contemporâneo do Direito como forma de prevenção de outros crimes mais graves 1 BREVE HISTORIOGRAFIA LEGISLATIVA À PROTEÇÃO DAS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA Historicamente no Brasil os avanços legais para a defesa das mulheres contra a violência foram tímidos com a criação dos juizados especiais Lei 909995 através da Constituição Federal de 1988 houve certa celeridade aos julgamentos de crimes de menor potencial ofensivo Contudo o legislador deixou de se preocupar com a punição de quem cometia infrações como lesão corporal leve neste caso os delitos de violência familiar Nesta ânsia de resolver os conflitos o legislador esquece que existe uma relação de desequilíbrio entre a vítima e o agressor em grande parte das situações apesar da Constituição Federal ressaltar a igualdade formal entre os gêneros não se pode olvidar que existem grandes diferenças materiais de força física econômica social que prevalecem de muitos séculos que e não podem ser esquecidas Deste modo era injustificável a ação penal ser condicionada a representação da vítima Com isto a Lei dos juizados especiais não foi eficaz para combater a violência doméstica pelo contrário pois dava a possibilidade de impunidade pois na audiência preliminar a conciliação era praticamente imposta para que a mulher retirasse a queixa e o casal se reconciliasse não desempenhando um papel pedagógico ao agressor dando a sensação de impunidade O Ministério Público podia fazer uma proposta de transação penal que faria com que o crime desaparecesse não ensejando reincidência nem certidão de antecedentes nem efeitos civis A Lei 1045502 trouxe uma importante medida cautelar ao admitir que o juiz poderia decretar o afastamento do agressor do lar na hipótese de violência doméstica Não obstante Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 236 o legislador criou a Lei 1088604 que acrescentou um subtópico para lesão corporal de natureza leve aumentando a pena mínima de 3 meses para 6 meses Contudo apesar destas alterações legislativas os casos de violência doméstica continuaram a crescer ou ao menos a sua divulgação nas mídias e nas estatísticas policiais e judiciais Apesar do aumento do número de ações não havia perspectiva de mudança deste cenário pois muitos casos eram absolvidos sistematicamente para preservar a família A mulher era considerada propriedade do marido nesse viés consagrando a impunidade por muito tempo tratando a violência doméstica como invisível 2 LEI 1134006 LEI MARIA DA PENHA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER Maria da Penha é uma personagem importantíssima dentro da historiografia das leis que protegem as mulheres pois sua tragédia pessoal serviu como um Marco divisor para o endurecimento das leis que combatem a violência contra a mulher em especial no âmbito das relações familiares Conforme nos relata Maria Berenice Dias 2008 talvez muitos não saibam o por que a Lei tem o nome de Maria da Penha A justificativa é dolorosa e triste a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes assim como diversas mulheres no Brasil e no mundo foi uma vítima contumaz de violência doméstica e familiar apesar das inúmeras denúncias à justiça e nada ser feito chegou a pensar que o agressor poderia ter razão Maria da Penha sofreu duas tentativas de homicídio pelo seu marido o professor universitário e economista MAHV A primeira vez ele simulou um assalto deu lhe um tiro de espingarda e a deixou paraplégica na segunda tentativa ele tentou matar com um choque elétrico Maria da Penha enquanto ela tomava banho Estes fatos aconteceram em Fortaleza no estado do Ceará no ano de 1983 mas somente no ano de 1991 o réu foi julgado e condenado pelo Tribunal do Júri a 8 anos de prisão além de não ter sido preso após a condenação pois entrou com recurso para recorrer em liberdade teve o seu julgamento anulado e somente ocorreu um novo julgamento em 1996 novamente recorreu em liberdade até o ano de 2002 Somente após 19 anos e seis meses foi preso e ficou apenas dois anos na prisão Esta história repercutiu internacionalmente quando então ocorreu a denúncia por Maria à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos O Brasil foi condenado internacionalmente pela Corte Interamericana de Direitos Humanos CIDH da Organização dos Estados Americanos OEA que em seu relatório ordenou o pagamento de uma indenização à Maria da Penha no valor de vinte mil Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 237 dólares e responsabilização do Estado brasileiro por negligência e omissão para que cumprisse os acordos de erradicação da violência no âmbito doméstico e familiar A Lei em resposta às recomendações da Comissão de Direitos Humanos foi criada no ano de 2006 nacionalmente reconhecida como Lei Maria da Penha a qual visa criar mecanismos para prevenir e combater a violência a discriminação e o abuso contra a mulher Contudo seu contexto histórico antecede a Lei 1134006 esta é uma luta histórica das mulheres que vem há séculos em busca de direitos iguais Um dos fundamentos da Lei 1134006 está pautada no Art 226 parágrafo oitavo da Constituição federal segundo o qual o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações Ditados populares repetidos de forma jocosa absolveram a violência doméstica em briga de marido e mulher ninguém mete a colher ele pode não saber porque bate mas ela sabe por que apanha Esses entre outros ditos repetidos como brincadeiras sempre esconderam uma certa conveniência da sociedade para com a violência doméstica Talvez o mais terrível entre eles seja mulher gosta de apanhar engano gerado pela dificuldade que elas têm de denunciar o agressor Seja por medo vergonha por não ter para onde ir por receio de não conseguir manter se sozinha e sustentar os filhos o fato é que a mulher resiste em buscar a punição de quem ama ou um dia amou DIAS 2008 p 15 E continua afirmando com a visão que somente uma pesquisadora ciente da relação entre a mulher o agressor e a sociedade que ninguém duvida que a violência sofrida pela mulher não é so exclusivamente de responsabilidade do agressor intrinsecamente a propria sociedade é de grande influência para o comportamento violento contra as mulheres DIAS 2008 p16 Após um episódio de agressões vem o arrependimento e a reconciliação com pedidos de perdão cenas de ciúmes e o casal vive uma nova lua de mel e a mulher acredita que ele vai mudar até iniciar um novo ciclo de agressões cada vez mais violentas estabelecendose um verdadeiro círculo vicioso dando margem a feridas no corpo e na alma como a depressão podendo chegar inclusive à forma mais grave de violência contra a mulher o feminicídio Lei 131042015 Grande mudança se esperou com a Lei Maria da Penha que entrou em vigor no dia 22 de setembro de 2006 contudo pouca coisa teve o efeito benéfico esperado pelas mulheres Diante disto os índices de casos de violência doméstica continuam assustadores Conforme o 12 anuário de brasileiro de segurança pública 2017 no ano de 2017 foram registrados 221238 mil casos violência doméstica em consoante disto o número de feminicídios Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 238 aumentou 61 no ano de 2017 com 4539 mil mortes de mulheres no país Atualmente o Brasil tem mais de um milhão duzentos e setenta e três mil trezentos e noventa e oito 1237398 processos de violência doméstica tramitando nos Tribunais de todo o País FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2017 3 DA RELATIVA EFICÁCIA DAS LEIS PARA PROTEGER AS MULHERES DA VIOLÊNCIA Conforme dados atualizados do Conselho Nacional de Justiça CNJ no documento O Poder Judiciário na Aplicação da Lei Maria da Penha 2017 a violência sofrida pelas mulheres apesar de todas as leis criadas para punir os agressores não têm sua efetividade esperada como se pode perceber pelos números alarmantes dos registros de violência no Brasil e especificamente na abordagem do trabalho no Estado de Santa Catarina No Estado de Santa Catarina na esfera préprocessual existiam até o início do ano de 2017 6544 inquéritos policiais ativos 7385 inquéritos policiais pendentes CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA 2017 Já na esfera processual ativamente o Tribunal de Justiça de Santa Catarina TJSC até o início do ano de 2017 foi o Tribunal que apresentou a maior média de processos tramitando por vara ou juizado especializada com 46965 processos isso porque o TJSC declarou ter apenas uma vara especializada O que diverge de outros dados de pesquisa realizada no CNJ Santa Catarina possui 295 municípios uma população total de 6910553 habitantes dentre eles 3465566 homens e 3444987 mulheres A justiça catarinense conta com 363 juizados em todo o estado sendo 4 varas exclusivas para o atendimento da violência doméstica e familiar As quatro varas estão situadas nas cidades de Florianópolis São José Tubarão e Chapecó CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA 2017 Como podemos observar falta muito para o estado de Santa Catarina atingir o ideal de ter uma vara especializada para o atendimento da mulher vítima de violência doméstica em cada cidade catarinense além é claro da falta das delegacias especializadas nos respectivos municípios pois há apenas 31 delegacias de proteção à mulher em todo o estado 4 MEDIDAS ORIENTADAS PARA A RESSOCIALIZAÇÃOREEDUCAÇÃO DO AGRESSOR Em relevante análise do fenômeno da violência contra a mulher muitos autores de grande saber jurídico omitem ou tratam de modo muito superficial a importância da Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 239 ressocialização do agressor Fernandes 2015 p229 afirma que um dos erros fundamentais ao se interpretar a Lei Maria da Penha é deixar de dar importância ao disposto nos Arts 29 e 30 EQUIPE DE ATENDIMENTO MULTIDISCIPLINAR Art 29 Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que vierem a ser criados poderão contar com uma equipe de atendimento multidisciplinar a ser integrada por profissionais especializados nas áreas psicossocial jurídica e de saúde Art 30 Compete à equipe de atendimento multidisciplinar entre outras atribuições que lhe forem reservadas pela legislação local fornecer subsídios por escrito ao juiz ao Ministério Público e à Defensoria Pública mediante laudos ou verbalmente em audiência e desenvolver trabalhos de orientação encaminhamento prevenção e outras medidas voltados para a ofendida o agressor e os familiares com especial atenção às crianças e aos adolescentes BRASIL 2006 A partir de uma visão eminentemente jurídica a autora afirma que esse dispositivo é um demonstrativo de caráter inovador do processo criminal por violência contra a mulher A equipe multidisciplinar além de atuar no processo criminal tem por finalidade recuperar os envolvidos no ciclo da violência Além da atuação processual a equipe deve desenvolver programas para a vítima o agressor e família Sabese que o processo não rompe a violência apenas a descortina para que o Estado intervinha FERNANDES 2015 p 228 Conforme pesquisas e relatórios elaborados pelo CNJ a princípio as mulheres e em última análise a magistratura não abrem mão de uma resposta punitiva do Estado para com os agressores mas ambos têm o consenso de que as medidas punitivas são ineficazes e insuficientes para estes crimes Por tais razões fazse necessária a inclusão da Justiça Restaurativa um meio alternativo para a resolução de conflitos nas sábias palavras de Pinho de grande importância para a toda aquela comunidade onde ocorreu o delito contra a mulher à justiça restaurativa é um processo que envolve as partes interessadas principais na decisão de como reparar o dano causado por um delito As partes interessadas secundárias atuam no apoio e na colaboração do processo restaurativo sem intervir nas decisões As três partes interessadas são as vítimas os acusados e suas comunidades de assistência cujas necessidades e objetivos são respectivamente a reparação do dano a conscientização da responsabilidade e a reconciliação PINHO 2009 p 258 No ano de 2016 foi realizada uma reunião com os Coordenadores Estaduais da Mulher em situação de violência doméstica com a presença da presidente do CNJ e a presidente do STF naquela época a ministra Carmen Lúcia que sugeriu a inclusão da prática Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 240 da justiça Restaurativa no Combate a Violência doméstica contra a mulher ao ressocializar o agressor os maiores beneficiados são a vítima a sociedade e o agressor Conforme dados do CNJ pouquíssimos estados utilizam a técnica desta área restaurativa uma destas exceções é o estado do Paraná e existem elevados níveis de satisfação nas lides conforme as palavras da ministra Carmen Lúcia O projeto não tem o intuito de substituir a prestação jurisdicional da justiça tradicional nem semear a ideia de impunidade ao agressor mas possibilitar um método com base no diálogo para o reconhecimento e a responsabilização dos atos praticados Mais do que ter violado uma lei queremos que esta pessoa entenda que causou dano a alguém e que esse dano precisa ser reparado ainda que simbolicamente CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA 2016 p 1 A prática da justiça restaurativa é incentivada pelo CNJ por intermédio de diversas reuniões que chegaram ao Protocolo de cooperação para a difusão da Justiça Restaurativa e sua utilização nos casos de violência doméstica e está prevista na Resolução 2252016 que descreve como se organizará a Política Nacional de Justiça Restaurativa no âmbito do Poder Judiciário Deste modo deve haver uma atenção especial ao grande número de mulheres que ainda são vítimas deste modo tão vil de violência que é a violência doméstica e o poder público necessita olhar com mais atenção para este problema que além de ser cruel e infringir a dignidade da pessoa humana propaga o ódio o preconceito a baixa autoestima das vítimas e que também traz grandes custos ao Estado e a sociedade Em derradeiro de extrema necessidade é a implementação dos Juizados da Violência Doméstica e Familiar e das Delegacias da Mulher nas cidades que ainda não contam com estas modalidades Apesar de a Lei Maria da Penha já ter completado 13 anos ainda faltam muitas ações a serem feitas para se conseguir uma equidade de gêneros Nas palavras de Barroso A igualdade formal é um ponto obrigatório de passagem na construção de uma sociedade democrática e justa Porém notadamente em países como o Brasil ela é necessária mas insuficiente A linguagem universal da lei formal nem sempre é sensível aos desequilíbrios verificáveis na realidade material BARROSO 2014 p 4 De outro modo importante lembrar que muitas das leis que são criadas para a proteção das mulheres não são criadas por elas mas sim pelos homens tendo em vista que a grande maioria do Congresso Nacional é composta por homens Nem mesmo as mulheres na hora de exercer o seu direito de cidadania ao votar deixam de perpetuar a sua própria não Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 241 representatividade seus anseios não são representados na política muito menos no legislativo ou poder executivo deixando o direito a igualdade cada vez mais aquém Neste mesmo sentido Barroso leciona que A afirmação da condição feminina com autonomia e igualdade em sociedades patriarcais como a brasileira tem sido uma luta histórica e complexa Protegida por estruturas sociais e jurídicas criadas por homens é relativamente recente o processo de conscientização e reação a uma visão estereotipada do seu papel social que combinava submissão maternidade e prendas do lar Até a década de 60 as mulheres eram consideradas relativamente incapazes dependendo do consentimento do marido para trabalhar e para praticar atos da vida civil como assinar cheques e celebrar contratos A histórica posição de subordinação das mulheres em relação aos homens institucionalizou a desigualdade socioeconômica entre os gêneros e promoveu visões excludentes discriminatórias e estereotipadas da identidade feminina Além disso estimulou a formação de uma perniciosa cultura de violência física e moral contra a mulher BARROSO 2014 p 19 Importante salientar que atualmente apenas 15 das cadeiras na Câmara dos deputados em Brasília é ocupada por mulheres partindo da premissa que somos representados por meio de nosso voto e apesar de o eleitorado feminino ser de 52 de acordo com dados de 2019 do Tribunal Superior Eleitoral TSE Neste sentido se questiona por que o número de representantes do eleitorado feminino é tão baixo Algumas mulheres ainda não perceberam a importância desta representatividade para que tenham voz ativa e que possa realmente haver uma mudança no contexto social e ter seus direitos como da igualdade de gênero reconhecidos algumas vezes o preconceito e o machismo estão enraizados até mesmo nas próprias mulheres 5 AÇÕES REALIZADAS NO ESTADO DE SANTA CATARINA PARA COMBATER A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA POR MEIO DA JUSTIÇA RESTAURATIVA Inicialmente iremos pontuar não exaustivamente alguns municípios que estão realizando práticas diferenciadas como a justiça restaurativa por meio de grupos reflexivos a exemplo do Projeto REFLETIR do Poder Judiciário de Santa Catarina TJSC iniciativa das Centrais de Penas e Medidas Alternativas CPMA das cidades de São José Itajaí Criciúma e Chapecó órgão da Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania SJC voltados para agressores encaminhados pela Vara ou Juizado às CPMAs conforme expõe o sítio eletrônico do TJSC 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 242 Para melhor delimitar este estudo visouse fazer esta pesquisa no intento de verificar quais Comarcas já utilizam de um modelo diferente da atual punição física através do encarceramento na busca da ressocialização do agressor trazendo para o presente estudo a divulgação das boas práticas realizadas pela Justiça Pública Catarinense através de convênios com delegacias universidades e demais órgãos públicos tanto de medidas compulsórias alternativas à pena cominadas como sanções penais como é o caso do Projeto Refletir bem como as não compulsórias como no caso da Capital do Projeto Ágora que será a seguir exposto As Delegacias especializadas em violência doméstica e as Varas de violência doméstica e familiar são consideradas as fontes primárias no enfrentamento à violência contra mulher e que podem auxiliar numa tentativa de reeducaçãoressocialização dos agressores No entanto uma forma de grande valia seria ampliar esses lugares por meio da criação de centros ou grupos para homens agressores denominados tecnicamente pela rede socioassistencial de grupos de homens em situação de violência doméstica Em consoante a isto o parágrafo quinto do Art 35 da Lei 1134006 prevê que estes Centros de educação e reabilitação devem ser criados juntamente com esforços da União dos Estados e dos Municípios BRASIL 2006 Nesse intuito no âmbito de abrangência do Programa Polícia Civil por Elas fruto do trabalho conjunto da Coordenadoria das Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher Criança Adolescente e Idoso e de Políticas Públicas voltadas ao Atendimento de Lésbicas Gays Bissexuais Travestis e Transexuais do Estado de Santa Catarina CDPCAMI e da Delegacia de Proteção à Criança ao Adolescente à Mulher e ao Idoso DPCAMI da grande Florianópolis estará sendo implementado o Grupo Reflexivo de Gênero ainda em fase de projeto objetivando a replicação do que já acontece em outros municípios como a DPCAMI de São José especificamente de homens em situação de violência uma atividade alinhada à construção de um atendimento que visa suplantar a lógica da criminalização A Delegacia de Proteção à Criança ao Adolescente à Mulher e ao Idoso da Capital localizada no bairro Agronômica conta com uma equipe multidisciplinar de atendimento composta por Psicólogos Agentes de Polícia e Escrivães que promove acolhimento e humanização primeiramente às mulheres em situação de violência desde o registro da ocorrência e posteriormente junto ao Centro de Referência à Mulher em Situação de Violência CREMV realizando reuniões e secundariamente Grupos Reflexivos de Gênero dentro do Programa Polícia Civil por Elas de mulheres e especificamente de homens ambos Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 243 com vistas à reflexão sobre a situação de violência neste último objeto do recorte deste estudo promover juntamente com eles à reflexão sobre as questões relacionadas à masculinidade agressividade e conjugalidade A metodologia a ser replicada na DPCAMI da Capital conta com o apoio do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC o qual juntamente com a Polícia Civil está procurando dinamizar estratégias de intervenção alinhadas à ótica da moderna proposta da Justiça Restaurativa para efetiva promoção de ações que visem a reeducação ressocialização e reabilitação de homens em situação de violência Os grupos são montados por ocasião da concessão de medida protetiva à mulher vítima de violência doméstica na capital catarinense são de forma não compulsória ou seja sem demanda judicial onde a convite da Vara da Violência Doméstica grupo de homens em situação de violência são encorajados a refletir sobre o enfrentamento das questões relacionadas às situações de vulnerabilidade Hodiernamente o Poder Judiciário tem atuado neste sentido firmando o Convênio n 10819 entre o Tribunal de Justiça de Santa Catarina e a Universidade Federal de Santa Catarina no intitulado projeto ÁGORA Grupo Reflexivo para homens autores de violência doméstica contra mulheres a ser replicado e implementado nas demais comarcas de Santa Catarina inicialmente em parceria com o Juizado da Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da Capital catarinense O objetivo deste convênio é propiciar por meio dos grupos reflexivos a responsabilização do agressor e representar um espaço de diálogo aberto para que os homens possam repensar seus papéis de gênero e as relações cotidianas que são criadas a partir destes Entre os resultados que podem ser alcançados estão os que visam a prevenção de novos episódios da mesma natureza desnaturalizando a vinculação entre masculinidade e violência assim criando uma rede de atendimento para homens De acordo com o convênio o local das atividades será na Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar CEVID do Tribunal de Justiça do Poder Judiciário e o departamento de Psicologia da UFSC Na prática o grupo reflexivo para homens em situação de violência se dará da seguinte maneira a mulher que vai ou é encaminhada até a delegacia A delegacia envia a medida protetiva ao juízo o magistrado recebe o pedido se for deferido no despacho será marcada uma data para o homem comparecer ao Setor Psicossocial o cartório elabora o mandado através do oficial de justiça o homem agressor será intimado que poderá escolher Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 244 se vai comparecer Se o homem comparecer ao Setor Psicossocial a equipe multidisciplinar realiza a avaliação em conjunto com os profissionais da UFSC pelo Serviço de Atendimento Psicológico a Comunidade SAPSI que avaliará se o homem deve ser encaminhado para o Centro de Atendimento Psicossocial do Sistema Único de Saúde CAPSSUS Assistência Social Assessoria Jurídica e conjuntamente a Carta convite para os grupos reflexivos Nas Comarcas de São José Joinville Itajaí Criciúma e Chapecó foram realizadas as práticas em grupo de homens tendo o início de seu funcionamento em 2014 O responsável pela sua implementação foi o Programa das Centrais de Penas e Medidas Alternativas do Estado de Santa Catarina CPMA que é um órgão implementado pela Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania SJC De acordo com a sua metodologia são abordadas as seguintes temáticas Lei Maria da Penha gênero machismo aspectos sociais históricos culturais comunicação controle da ira igualdade respeito empatia e justiça social As temáticas são divididas em seis encontros os quais ocorrem na periodicidade semanal ou quinzenal conforme dinâmica em cada CPMA A metodologia de trabalho aplicada é decidida através da construção da perspectiva de atuação das áreas de Psicologia e Serviço Social bem como pautadas em referenciais teóricos das áreas que debatem a temática da Violência Doméstica contra a Mulher Os profissionais que trabalham nos grupos que compõem as CPMAS tem sua formação nas áreas da Psicologia e Assistência Social Os critérios para o homem ser aceito nos grupos do Projeto Refletir têm como seu público alvo os homens que são autores de violência doméstica contra a mulher em cumprimento de alternativa penal determinada em juízo e encaminhado pela Vara ou Juizado as CPMAS Em consoante disto foram encaminhados 590 homens autores de violência doméstica contra a mulher nos anos de 2014 a 2018 para as CPMAs que executam o Projeto Refletir no Estado de Santa Catarina O número de homens que cumpriram integralmente a proposta e compareceram aos encontros determinados em juízo foi de 70 Por outro lado aos homens que não cumpriram faltando às reuniões primeiramente é solicitada uma justificativa documental atestado médico ou do trabalho Não havendo justificativa é encaminhado o descumprimento parcial ou integral da penamedida a Vara ou Juizado de Origem O controle é efetuado individualmente através de ficha de frequência a respeito da participação nos grupos documento que deve ser assinado nas datas agendadas para os encontros do Projeto Refletir pelo próprio beneficiário TJSC 2019 De acordo com as afirmações do Projeto Refletir TJSC 2019 a medida para análise se houve a ressocialização do homem que participou do grupo reflexivo se faz através de um Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 245 dado tabulado que é a respeito da reincidência no delito quando há novamente o encaminhamento de outro processo desse homem para cumprimento de alternativa penal nas CPMAs sendo que de acordo com dados não chega a 2 no programa considerando também as unidades do programa que atendem também ao regime aberto Nos municípios de Blumenau e Gaspar houveram algumas diferenças destes dados Por exemplo em Blumenau o órgão responsável pela implementação dos grupos reflexivos foi a Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social SEMUDES por intermédio dos Centros de Referência de Assistência Social CREAS A metodologia utilizada acontece semi dirigida ou seja utilizandose de dinâmicas vivências atividades de expressão corporal textos e vídeos além do debate aberto que permite a compreensão do fenômeno da violência e suas consequências a fim de fortalecer os indivíduos a romperem com o ciclo de violência que vivenciam Como estratégia de vinculação é importante o processo de mobilização onde os homens mesmo tendo sido encaminhados judicialmente são contatados para reforçar o convite à participação As ações socioeducativas com grupos de homens são realizadas quinzenalmente Os encontros são estabelecidos em no mínimo doze temas para contemplar a aplicação da medida de prazo determinado judicialmente de seis meses de participação nos encontros quinzenais O número de homens encaminhados judicialmente ultrapassa 300 homens destes 50 cumpriram a participação por no mínimo 6 meses SANTA CATARINA 2019 No município de Gaspar os atendimentos nesta perspectiva reflexiva só iniciaram a partir de 2016 e os atendimentos são realizados individualmente O trabalho é realizado por terceiros em parceria com o Poder Judiciário O trabalho de atendimento psicológico individualizado do homem apontado como agressor a teor da Lei Maria da Penha é realizado pela psicóloga Alana Bodanese Wouters psicóloga do Conselho da Comunidade de Gaspar SANTA CATARINA 2019 A Comarca de Lages foi adiante criando a Lei Complementar Municipal de nº 5332018 que institui o Programa de Justiça Restaurativa no Município de Lages e dá outras providências Esta lei se baseia na resolução de conflitos por meio do diálogo transformação e conscientização destinadas a assistência social a mulher a educação saúde em colaboração com diferentes setores institucionais com o objetivo de promover a paz e minimizar a complexidade do fenômeno da violência De acordo com o Art 2º desta Lei III interconexão das pessoas envolvidas direta ou indiretamente no conflito compartilhando responsabilidades lidando a partir da escuta ativa e compreensão mútua na transformação e superação do ato em questão Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 246 IV abordagem metodológica empática não persecutória no intuito de assegurar espaços que permitam o enfrentamento de questões conflitantes por meio do diálogo com a reparação do dano e na auto responsabilização LAGES 2018 p 1 Neste mesmo viés o Poder Judiciário da cidade de Dionísio Cerqueira busca por intermédio da justiça restaurativa dar uma solução ao complexo problema da violência doméstica e familiar contra a mulher com o Projeto Oportunizar que tem como objetivo proporcionar aos envolvidos local adequado e seguro para esclarecimentos de direitos e deveres inerentes a relação parental Em audiência as partes em conflito são intimados a comparecer ao Centro de Referência para Atendimentos de Vítimas de Violência CREAS sendo obrigatório um atendimento ao casal envolvido SANTA CATARINA 2019 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do estudo apresentado entendese que historicamente o Estado tem dificuldades no que concerne a garantia da proteção dos vulneráveis entre elas as mulheres que sofrem violência no seio de sua família direito este fundamental garantido na Constituição Federal nas leis especiais e nas recomendações internacionais Apesar de existirem as leis formais materialmente a igualdade de gênero e o combate a violência doméstica caminha a passos lentos em ações pulverizadas pelo Estado de Santa Catarina mesmo após 13 anos completos da promulgação da Lei Maria da Penha Muitas ações perfeitas são descritas nas leis mas poucas delas são efetivadas não por falta de punição aos seus agressores mas porque são relativamente eficazes pois o crime persiste se repetindo na sociedade Além disso a lei prevê um tratamento diferenciado a estas vítimas em delegacias especializadas e juizados contudo são poucos os municípios que contam com estes preciosos recursos e iniciativas como é o caso da grande maioria dos municípios catarinenses que ainda não têm Juizados da Violência Doméstica e Familiar bem como Delegacias Especializadas Atualmente em Florianópolis estão sendo implementando projetos pilotos a serem replicados pelo estado com vistas à promoção de uma justiça restaurativa com um olhar focado em auxiliar não apenas a vítima mas também para combater o problema na sua origem ou seja na responsabilização e conscientização dos agressores e suas condutas por intermédio da viabilização de centros de reeducaçãoreabilitação para homens em situação de violência realizando encontros e promovendo grupos reflexivos de gênero sendo este um possível caminho para a mudança de comportamento e promoção da diminuição dos índices de violência contra a mulher Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 247 A cultura do machismo e insuficiência de educação para uma igualdade de gênero perpetua a violência contra a mulher para promover a paz social o Estado deve partir da premissa na qual a punição sem ressocialização e uma reeducação não surtirá efeitos futuros fazendo com que a violência não seja superada deste modo perpetuase o círculo vicioso da violência e da punição impregnado com obsoletas práticas baseadas em leis que muitas vezes não são eficazes apenas promovendo a cultura do vitimismo feminino do homem violento e o encarceramento que não bastam para mudar uma cultura Cultura se muda com educação e pacificação social Deste modo é de grande importância a criação destes Centros de reabilitaçãoressocialização e grupos reflexivos para homens em situação de violência nos municípios catarinenses apesar de a lei citar a delegação de sua criação para os entes federativos nada impede que as Universidades públicas e particulares o Terceiro Setor façam este estudo de criação dentro de suas instituições Por fim uma eficaz articulação intersetorial da Rede de Acolhimento e Atendimento à Mulher em situação de violência qual seja Poder Judiciário Poder Executivo Polícia Saúde Assistência Social promoveria a cooperação o fortalecimento e a universalização dos serviços socioassistenciais interligando efetivamente todos os atores na prevenção e no combate à violência a partir de uma perspectiva holística multidisciplinar e interdependente alinhada às modernas práticas da Justiça Restaurativa objetivando a mudança do paradigma social REFERÊNCIAS BARROSO Roberto Palestra Igualdade 2014 Disponível em httpwwwluisrobertobarrosocombrwp contentuploads201709SELAYalepalestraigualdadeversaofinapdf Acesso em 12 out 2018 BRASIL lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 Brasília DF Presidência da República 2019 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato2004 20062006leil11340htm Acesso em 12 out 2018 BRASIL CNJ Justiça Restaurativa Justiça restaurativa é utilizada em casos de Violência Doméstica 2017 Disponível em httpwwwcnjjusbrnoticiascnj85041 justicarestaurativaeaplicadaemcasosdeviolenciadomestica Acesso em 13 out 2018 BRASIL CNJ O Poder Judiciário na Aplicação da Lei Maria da PenhaDisponível em httpwwwcnjjusbrfilespublicacoesarquivo5f271e3f54a853da92749ed051cf305918ea d26dd2ab9cb18f8cb59165b61f27pdf Acesso em 12 out 2018 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 248 BRASIL CNJ Resolução 2252016 Justiça Restaurativa 2016 Disponível em httpwwwcnjjusbratosnormativosdocumento2289 Acesso em 12 out 2018 BRASIL Código Penal 1940 DecretoLei 2848 de 07 de dezembro de 1940 Brasília DF Presidência da República 2019 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03decretoleidel2848htm Acesso em 12 out 2018 BRASIL Constituição 1988 Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 Brasília DF Presidência da República 2019 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ConstituicaoConstituiçaohtm Acesso em 12 out 2018 BRASIL Lei 13104 de 9 de março de 2015 Altera o art 121 do DecretoLei 2848 de 7 de dezembro de 1940 Código Penal para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio e o art 1º da Lei 8072 de 25 de julho de 1990 para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos Brasília DF Presidência da República 2019 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Ato2015 20182015leiL13104htm Acesso em 12 out 2018 BRASIL lei nº 10886 de 17 de junho de 2004 Brasília DF Presidência da República Disponível em httpwwwplanaltogovbrcCivil03Ato200420062004leiL10886htm Acesso em 12 out 2018 BRASIL lei nº 9099 de 26 de setembro de 1995 Brasília DF Presidência da República 2019 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03LEISL9099htm Acesso em 12 out 2018 BRASIL LEI 10455 Brasília DF Presidência da República 2019 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03LEIS2002L10455htm Acesso em 12 out 2018 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA Justiça restaurativa aplicada em casos de violência doméstica Disponível em httpwwwcnjjusbrnoticiascnj85041justica restaurativaeaplicadaemcasosdeviolenciadomestica Acesso em 21 de maio de 2019 DIAS Maria Berenice A Lei Maria da Penha na Justiça A efetividade da Lei 11340 2006 de combate a violência doméstica e familiar contra a mulher São Paulo Editora Revista dos Tribunais 2008 FERNANDES Valéria Diez Scarance Maria da Penha O processo penal a caminho da efetividade 2015 Disponível em httpsintegradaminhabibliotecacombrbooks9788597000429pageid239 Acesso em 12 out 2018 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2017 Disponível em httpwwwforumsegurancaorgbrwp contentuploads201712ANUARIO112017pdf Acesso em 12 out 2018 LAGES Prefeitura Municipal Lei complementar n 5332018 Lages SC Prefeitura Municipal 2018 Disponível em httpsleismunicipaiscombrascllageslei Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 249 complementar201853533leicomplementarn5332018instituioprogramadejustica restaurativanomunicipiodelagesedaoutrasprovidencias Acesso em jul 2019 LIMA Renato Brasileiro Legislação Criminal Especial Comentada Bahia Editora Jus Podium 2015 MAXIMILIANO Carlos Hermenêutica e aplicação do direito Rio de Janeiro Editora Forense 2013 ONU Fim da violência contra a mulher 2014 Disponível em httpwwwonumulheresorgbrareastematicasfimdaviolenciacontraasmulheres Acesso em 21 de maio de 2019 PINHO Rafael Gonçalves Justiça Restaurativa Sistema alternativo de resolução de conflitos Revista Eletrônica de Direito Processual REDPD 2009 Disponível em httpwwwepublicacoesuerjbrindexphpredparticleview22177 Acesso em 12 jul 2019 ROCHA Carmen Lúcia Antunes Recomendação da utilização da justiça restaurativa nos casos de Violência Doméstica e Familiar 2019 Disponível em httpwwwcnjjusbrnoticiascnj85293justicarestaurativadeveserusadapararesolver casosdeviolenciadomestica Acesso em 12 jul 2019 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA Violência contra a mulher 2019 Disponível em httpswwwtjscjusbrwebviolenciacontraamulher Acesso em 21 de maio de 2019 VASCONCELOS Maria C Violência contra a mulher e suas consequências 2014 Disponível em httpwwwscielobrpdfapev27n5pt19820194ape0270050458pdf Acesso em 18 out 2018 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 250 METE A COLHER NEWSGAME COMO AGENTE DE CONSCIENTIZAÇÃO NO COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES Mariane Pires Ventura1 Ana Paula Bourscheid2 Paulo José Mueller3 RESUMO Verificados os crescentes índices de violência contra as mulheres e considerando o papel do jornalismo como disseminador de informação o presente artigo discute o papel da imprensa na cobertura desse tipo de violência e apresenta uma iniciativa inovadora o newsgame Mete a colher O objetivo do game é promover a reflexão sobre a questão da violência contra as mulheres trazendo a realidade catarinense como plano de fundo O produto classificado como newsgame de letramento desafia o leitorjogador a escolher qual seria a melhor forma de intervir meter a colher nas situações de violência apresentadas no jogo e a conquistar o maior número de colheres possível Palavraschave Violência contra as mulheres Jornalismo Newsgame Letramento INTRODUÇÃO Em Santa Catarina os índices de violência contra as mulheres são alarmantes O primeiro semestre de 2019 foi marcado pelo registro de mais de um feminicídio por semana nas delegacias do Estado SANTA CATARINA 2019a Partindo da relevância dessa temática e da premissa de que o jornalismo exerce papel de importância no agendamento público assim como é defendido pela teoria da agenda setting MCCOMBS SHAW 1972 objetivase discutir neste artigo como a imprensa catarinense tem tratado o tema por meio da metodologia de pesquisa exploratória GERHARDT SILVEIRA 2009 bem como registrar a proposta de um newsgame de letramento como agente de conscientização a respeito da importância de combater a violência contra a mulher A iniciativa inovadora foi desenvolvida por alunos do Programa de Pósgraduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina PPGJORUFSC intitulada de Mete a colher4 tem como propósito 1 Doutoranda em Jornalismo pelo PPGJorUFSC Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Capes email mariventura2gmailcom O presente trabalho foi realizado com apoio da Capes Código de Financiamento 001 Orientadora Rita Paulino 2 Doutoranda em Comunicação Social pelo PPGComPUCRS Bolsista do Programa de Suporte à Pós Graduação de Instituições Comunitárias de Ensino Superior PROSUCCapes email bourscheidanagmailcom 3 Mestrando em Jornalismo pelo PPGJORUFSC Membro do Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Telejornalismo GPI Tele emailpaulomuellergmailcom 4 O jogo é gratuito e está disponível no site bitlyjogometeacolher Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 251 trazer para o debate público a necessidade de estimular o público a denunciar e a identificar diferentes tipos de violência Ainda em fase experimental o Mete a colher foi desenvolvido com base na metodologia proposta por Marciano 2017 denominada Game Design Document GDD para newsgames em conjunto com o método da pesquisa aplicada descrita por Renó 2014 como a técnica que envolve a experimentação e a observação durante o processo de aplicação prática De modo a explanar sobre o objetivo proposto este artigo está dividido da seguinte forma A imprensa na cobertura da violência contra mulheres uma verificação do cenário atual dessa questão trazendo dados e exemplos de matérias publicadas pela imprensa catarinense a parte seguinte Sobre newsgames na qual trazemos conceitos sobre esse tipo de jogo e defendemos a classificação do Mete a colher como um newsgame de letramento O projeto Mete a colher seção que traz um relato sobre o processo produtivo do newsgame e por último Resultados dos testes parte na qual destacamos como foi feita avaliação do jogo e os feedbacks recebidos Por fim esperase que o relato dessa experiência possa contribuir para o surgimento de novas iniciativas no campo da inovação das narrativas jornalísticas assim como conscientizar em relação a importância de denunciar qualquer tipo de violência contra a mulher 1 A IMPRENSA NA COBERTURA DA VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES O Boletim Semanal de Indicadores da Segurança Pública de Santa Catarina nº 34 publicado no dia 2 de setembro de 2019 revelou que o número de feminicídios registrados durante os nove meses desse ano é 52 maior do que o do mesmo período de 2018 Essa comparação registra um salto de 25 para 38 vítimas mantendo a média do primeiro semestre de mais de uma ocorrência semanal Enquanto que as ocorrências de outros tipos de crimes como homicídios latrocínios roubo seguido de morte e mortes em confronto com a Polícia Militar caíram respectivamente 25 26 e 4 SANTA CATARINA 2019b A SSPSC divulgou um estudo sobre os crimes de feminicídio registrados no estado em 2019 Os casos se concentram em área urbana 79 na residência das vítimas 75 e os criminosos usam geralmente arma de fogo 35 para cometer os assassinatos As vítimas têm em média 36 anos e a maioria delas 69 foi assassinada pelo ex ou atual companheiro Além disso 62 delas tinham registro de boletim de ocorrência por violência doméstica Com relação aos autores 73 tinham passagem pela polícia e 46 respondiam por violência doméstica SILVA 2019 As ocorrências em grande número fizeram as instituições de Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 252 segurança pública intensificar as ações de programas como a Rede Catarina a Polícia Civil Por Elas e os Protetores do Lar para barrar esse crescimento nos índices de assassinatos de mulheres Esses dados levaram a imprensa catarinense a direcionar o olhar para uma cobertura mais abrangente sobre a temática Um mapeamento realizado pelos autores nos principais portais de notícias5 catarinenses tendo como base de busca as palavraschave feminicídio e violência contra a mulher revela que no primeiro semestre de 2019 foram publicados mais de 150 conteúdos sobre o assunto As produções são classificadas no campo acadêmico em gêneros jornalísticos que são um agrupamento dos formatos de produção da notícia A classificação mais difundida no Brasil de gênero jornalístico é a de Marques de Melo 2008 que é dividida em cinco grandes eixos informativo opinativo interpretativo diversional e utilitário Cada eixo é subdividido em formatos que são como uma forma de construção e circulação da informação Fazendo uma análise da imprensa brasileira Marques de Melo 2008 destaca no gênero informativo os formatos nota notícia reportagem e entrevista no gênero opinativo elenca o comentário editorial artigo entre outros no interpretativo enquadra a análise enquete cronologia o perfil e o dossiê o diversional engloba a história de interesse humano e no utilitário destacamse o roteiro serviço indicador e a cotação Com base no levantamento feito nesta pesquisa entre conteúdos publicados pela imprensa catarinense nos portais ND MAIS G1 SC e NSC Total observase a predominância dos gêneros dos eixos informativo A notícia apenas o relato do fatoacontecimento e a reportagem com uma discussão mais ampla do assunto são os formatos mais empregados pelos veículos Em uma análise das manchetes títulos das matérias é possível aferir que a maioria das pautas tem como foco as estatísticas divulgadas pelo próprio Governo A simples reprodução de dados sem um aprofundamento é uma realidade constatada em boa parte dos textos publicados pelos veículos analisados que em geral repetem o enquadramento e as pautas Nas notícias em que isso acontece não há confrontação entre informações sendo os relatos oficiais a única base A pouca diversidade de pessoas entrevistadas ou ainda o uso das mesmas fontes em diferentes reportagens sem mudança na abordagem representa certa fragilidade na cobertura jornalística Outro aspecto verificado é que a temática da violência contra a mulher se torna 5 Dados coletados entre os dias primeiro de janeiro e 30 de junho de 2019 nos portais ND MAIS G1 SC e NSC Total O número é fruto de um levantamento empírico das matérias publicadas nesses sites e compilado manualmente pelos autores Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 253 assunto por conta de destaques negativos como o aumento nos índices desse crime A imprensa poderia ser protagonista na discussão social no que tange os números causas consequências e reflexões sobre essa realidade mas acaba sendo levada pelas informações divulgadas pelos órgãos oficiais para pautar as equipes de reportagem Essa problemática não é atual e também não se restringe aos portais catarinenses Em 2010 um estudo realizado pela ANDI Comunicação e Direitos e pelo Instituto Patrícia Galvão vinculado à Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República monitorou a produção editorial de 16 jornais brasileiros de 1º de janeiro a 31 de dezembro de 2010 Ao todo 1506 textos fizeram parte da amostra Ao final das análises a pesquisa chegou a cinco conclusões principais os noticiários se concentram em casos individuais em detrimento de um debate mais amplo sobre o fenômeno fontes oficiais representam grande maioria nas reportagens geralmente vinculadas à Polícia mais de 20 das notícias envolvendo a temática ganharam algum destaque na capa pouco se aborda a questão de conflitos e contradições na aplicação da Lei Maria da Penha6 assim como a questão de políticas públicas voltadas para o tema BRASIL 2011 A Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher realizada em 1994 estabeleceu medidas e ações que devem ser adotadas pelo Governo para combater a violência contra a mulher As diretrizes foram promulgadas pelo Decreto n 19731996 que trata no Artigo 8 alínea g da necessidade de os Estados incentivarem os meios de comunicação a que formulem diretrizes adequadas de divulgação que contribuam para a erradicação da violência contra a mulher em todas as suas formas e enalteçam o respeito pela dignidade da mulher BRASIL 1996 online Esse dispositivo reitera a importância do papel da mídia como já discutido anteriormente Para fazer um contraponto a todas as limitações da cobertura apresentadas e mostrar casos em que a imprensa se adequa ao proposto pela Convenção é preciso reconhecer o esforço de algumas iniciativas dos meios de comunicação de Santa Catarina para tratar do assunto Nos exemplos destacados a seguir a imprensa cumpre um papel fundamental na divulgação da temática sendo uma importante ferramenta de educação conscientização e problematização do tema Ao dar visibilidade aos casos a imprensa chama a atenção da sociedade para um problema crônico que tem se agravado no estado sem perspectiva de uma política pública mais eficaz e eficiente para garantir a proteção das mulheres 6 Maria da Penha foi vítima de duas tentativas de assassinato pelo marido e lutou por 19 anos na Justiça para que seu agressor fosse condenado fato que ocorreu em 2002 Seu nome é utilizado para se referir à Lei nº 113402006 que estabelece mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 254 Esse empenho da imprensa em tratar da temática com mais profundidade é percebido em anos anteriores Em 2017 o Diário Catarinense publicou uma reportagem com o título Falsa Proteção de autoria da jornalista Gabriele Duarte disponível também na versão online A produção jornalística aborda com profundidade os problemas no amparo às mulheres vítimas de violência intrafamiliar ou seja agredidas ou mortas dentro da própria casa Ao trazer orientações relatos de vítimas relembrar casos marcantes ampliar a discussão por meio de entrevistas com fontes especialistas oficiais e da sociedade civil a reportagem evidencia as falhas do sistema de proteção às vítimas no âmbito legislativo e judicial Outro fator que merece destaque é o uso da infografia para esclarecer como funciona o processo de proteção as mulheres e apontar onde estão as falhas No mesmo ano a jornalista Ângela Bastos conduziu no Diário Catarinense uma série de reportagens multimídia chamada Sozinhas que abordava a violência contra as mulheres que vivem no campo Além da publicação impressa o conteúdo ganhou uma versão multimídia para a internet A navegação é feita por um menu no qual o internauta tem acesso a textos vídeos e bastidores da produção As reportagens evidenciam como a imprensa pode fomentar a discussão da violência contra a mulher de forma humanizada criativa e abrangente Para abrir os textos a jornalista usa falas como estuprada e massacrada fui recebida com uma paulada como ir embora se eu tinha três crianças sozinha não dá para se libertar As frases foram ditas durante as entrevistas de mulheres que sofreram nas mãos dos agressores A série retrata um fenômeno invisível que é uma realidade nos campos catarinenses e também fora deles e faz com que o leitor ainda que chocado com os depoimentos reflita sobre esse problema Em 2018 o jornal Notícias do Dia trouxe a reportagem Reconhecendo a Violência conduzida pelas jornalistas Marina Simões e Schirlei Alves que debateu o ciclo da violência doméstica a partir da perspectiva de uma vítima descrita na publicação como uma sobrevivente O texto faz o leitor mergulhar em uma cena contada pela mulher que fora de casa era obrigada a atuar como se vivesse um verdadeiro conto de fadas mas a realidade estava bem distante dos livros de romance com um final feliz A humanização da reportagem que apresenta o depoimento da vítima na linguagem escrita e oral conta também com imagens em vídeo infográficos entrevistas em profundidade com especialistas Toda essa combinação proporciona para o leitor uma reflexão mais ampla sobre os dados apresentados e o aproxima dos fatos Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 255 Esses exemplos nos levam a pensar como a imprensa pode utilizar recursos existentes de forma criativa para construir pautas que despertem o interesse do público A continuidade desse esforço para levar informações de temas delicados e que precisam ser debatidos pela sociedade exige uma reinvenção da imprensa tradicional O perfil do consumidor de notícia tem mudado nos últimos anos Os jovens por exemplo têm uma relação mais próxima com as redes sociais do que com os meios impressos televisivos ou radiofônicos ANDRION 2019 O uso de novas tecnologias e a expansão da produção jornalística em plataformas digitais ainda é um desafio para os veículos de comunicação mas pode ser uma saída para ampliar a visibilidade de temáticas como a violência contra a mulher Algumas iniciativas buscam novas formas para a construção de um fluxo de informação mais agradável e que atinja outros nichos do público Uma delas é a transformação dos conteúdos convencionais em produções multimídias interativas em forma de jogo Como é o caso do modelo conhecido como Newsgame que é basicamente um jogo produzido a partir de um conteúdo noticioso e voltado para informação 2 NEWSGAME A NOTÍCIA JOGADA Newsgame em tradução livre significa jogo de notícia Como apontam Bogost et al 2010 esse termo dá nome a junção entre jornalismo e videogames e passou a ser conhecido a partir de 2003 com o newsgame September 12th 2010 O jogo foi criado por equipe uruguaia de desenvolvedores de jogos liderados pelo exjornalista da CNN Gonzalo Frasca A proposta segundo a sinopse do jogo é usar a linguagem dos jogos digitais para descrever a guerra contra o terror e transmitir uma máxima atemporal a violência gera mais violência O jogador controla o que parece ser um alvo de uma arma que quando clicado lança mísseis As bombas não apenas matam os terroristas mas também geram os chamados danos colaterais Quando civis choram pelos mortos inocentes se transformam em terroristas na sequência O newsgame teve repercussão mundial e em 2009 seis anos após a criação e publicação do September 12th Gonzalo Frasca foi premiado pela Fundação Knight pela iniciativa No cenário brasileiro os newsgames começaram a ser adotados nas redações entre os anos de 2006 e 2007 Neste período o portal de notícias G1 lançou em seu site o jogo Nanopops 2007 que tinha como temática central a política internacional Bogost et al 2010 categorizam newsgames em seis modalidades A primeira se refere aos newsgames de atualidades produções que têm total proximidade temporal com o Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 256 conteúdo jornalístico ao qual está vinculado Bogost et al 2010 subdividem essa modalidade em editorial games jogos editoriais caracterizados pelo caráter opinativo e tem como marca principal persuadir o leitorjogador em relação à temática central apresentada no game tabloid games jogos tabloides categoria que aborda fatos noticiosos que não possuem muita repercussão entre o público e reportage games jogos reportagem produtos que têm como essência fatos atuais A segunda modalidade é apresentada por Bogost et al 2010 como newsgames infográficos O recurso da infografia não é novo para jornalismo mas nesse caso os infográficos se tornam interativos Essa categoria está subdividida em newsgames infográficos explicativos em que o leitorjogador visualiza a informação sem a necessidade de operar o infográfico newsgames infográficos exploratórios que possibilitam ao consumidor da narrativa a escolha de quais caminhos irá seguir ao longo do game e newsgames infográficos direcionados ao contrário da modalidade anterior neste newsgame o leitorjogador não tem a liberdade de explorar o jogo uma vez que precisa seguir o caminho definido pelo programador da narrativa A terceira modalidade newsgames documentários consiste em produções que evidenciam eventos históricos e trazem como aspecto central a ligação deste fato com o contexto atual A quarta categoria se refere aos newsgames de raciocínio classificados por Bogost et al 2010 como uma adaptação dos jogos de raciocínio O diferencial dessa narrativa é que o leitorjogador precisa estar atualizado em relação aos últimos acontecimentos divulgados pela mídia caso contrário dificilmente conseguirá chegar até a última fase A quinta categoria definida pelos autores são os newsgames de letramento compreendidos como aqueles que visam promover a prática jornalística Bogost et al 2010 esclarecem que essa categoria não quer formar jornalistas a partir de um jogo mas abordar as regras e os valores que norteiam o exercício da profissão Já a última modalidade são os newsgames de comunidade caracterizados como produções que visam a formação de comunidades colaborativas de jogadores a partir do engajamento e da mobilização dos leitoresjogadores por meio da temática proposta no newsgame Nessa pesquisa assim como em Bourscheid et al 2019 defendese uma atualização das modalidades propostas por Bogost et al 2010 no caso da categoria de newsgames de letramento Compreendese que o termo letramento pode ser ampliado para além da conceituação criada pelos autores visto que letrar conforme o dicionário é sinônimo de ensinar DICIO 2019 Deste modo defendese que um newsgame de letramento pode ser Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 257 classificado como produção que visa instruir e educar sobre determinada questão Neste caso o newsgame Mete a colher objetiva o letramento em relação à educação e conscientização do combate à violência contra a mulher temática central do newsgame prototipado e que será apresentado na próxima seção deste trabalho 3 O PROJETO METE A COLHER O Mete a colher é resultado de um trabalho final desenvolvido para a disciplina Questões Empíricas e Aplicadas da Pesquisa em Jornalismo Metodologias de Estudo em Newsgames do PPGJORUFSC ministrada no segundo semestre de 2018 pela professora doutora Rita Paulino em parceria com o doutorando Carlos Marciano Os alunos da disciplina tiveram contato com softwares de desenvolvimento de games assim como o conhecimento teórico a respeito de como pensar e estruturar um Game Design Document GDD para newsgames MARCIANO 2017 O GDD é uma espécie de projeto escrito do jogo no qual é relatado passo a passo tudo o que será feito todas ações e opções oferecidas em cada uma das telas Segundo Marciano 2017 o GDD é um documento oficial de extrema importância no desenvolvimento de jogos sendo requisito obrigatório em casos de captação de recursos para financiar o projeto é de crucial importância se pensar o GDD antes de iniciar o desenvolvimento de um projeto minimizando assim possíveis problemas como falta de recursos financeiros e humanos perda de tempo ou mesmo a execução de uma ideia que não é viável por demais problemas técnicos MARCIANO 2017 p1300 A partir disso a turma mista que tinha na sua composição alunos de pósgraduação graduação e profissionais do mercado foi dividida em quatro equipes Cada uma delas estabeleceu papéis de atuação para cada membro bem como definiu uma pauta para produzir uma reportagem e um newsgame para complementála O grupo do newsgame Mete a colher foi composto por jornalistas já formados alunos do curso de pósgraduação e também por profissionais ativos na área Dessa forma cada membro do grupo ficou responsável pela área em que tinha mais afinidade e a equipe se organizou da seguinte forma designer gráfico Frederico S M de Carvalho responsável pela parte de ilustração do jogo programação Mariane Pires Ventura encarregada de montar o jogo e fazêlo funcionar conforme o GGD produção de conteúdo Ana Paula Bourscheid Ânderson Silva e Paulo José Mueller responsáveis por apurar e produzir a matéria vinculada ao Mete a colher e checar as informações que iriam constar como resposta certa no quiz do jogo Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 258 O processo produtivo do game ocorreu de forma concomitante enquanto a matéria era apurada e escrita o jogo era programado com imagens que depois seriam substituídas pelas ilustrações finais Foram feitos dois testes de ilustração um com avatar em preto e branco sem caracterização e o segundo com personagens coloridos de diferentes estilos Debateuse sobre como um tema grave como a violência contra as mulheres poderia ser tratado de uma forma lúdica mas sem perder a seriedade Por fim optouse pela utilização de cores para deixar o jogo mais atrativo e a criação de personagens com semblantes sisudos conforme a Figura 1 Figura 1 Avatares criados para compor o newsgame Fonte elaborado pelos autores Como plano de fundo foi escolhida a Avenida Beira Mar Norte em FlorianópolisSC uma das avenidas mais movimentadas da capital catarinense e também local onde já se registrou uma tentativa de estupro OLIVEIRA 2015 A imagem da avenida foi reproduzida de forma gráfica para compor o cenário do newsgame vide Figura 2 Figura 2 Representação da Avenida Beira Mar Norte como cenário da narrativa Fonte elaborado pelos autores A trilha sonora do jogo também foi escolhida considerando o mesmo aspecto dos personagens um som que remetesse ao universo dos games e que ao mesmo tempo despertasse no leitorjogador uma sensação de tensão Ainda em relação a trilha para evitar problemas de indisponibilidade de conteúdo por conta de direitos autorais escolheuse uma Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 259 música instrumental composta por Spazz Cardigan chamada Ive Just Had an Apostrophe e que faz parte da biblioteca de músicas gratuitas da plataforma Youtube Vale ressaltar que antes da escolha definitiva do tema que iria ser a base para produção do newsgame realizouse uma pesquisa sobre o assunto e se constataram cinco violências contra a mulher mais recorrentes agressão verbal violência psicológica violência física estupro e feminicídio A partir da observação de exemplos como Gringo Hero 2018 optouse pela criação de um newsgame com uma dinâmica que consiste na união dos formatos plataforma7 e quiz Ao todo são quatro questões cada uma relacionada a uma das tipificações de violência acima citadas A primeira relacionada a violência verbal na qual o avatar se depara com um homem xingando uma mulher a segunda explora a questão da violência psicológica por meio da personagem que relata ser impedida pelo companheiro de sair sozinha a terceira traz um homem puxando uma mulher remetendo à situação de tentativa de estupro e a última trata do feminicídio e traz a imagem de um casal visto brigando pela janela de uma casa Em cada fase do game o leitorjogador deve escolher se Mete a colher ou seja interfere na situação Caso a escolha seja por interferir o leitorjogador é desafiado a optar por uma unica forma de interferência Se o leitorjogador optar por ignorar aparece uma informação referente ao número de mulheres que são vítimas de violência naquela situação Já se o jogador optar por interferir na situação e erra a resposta em relação a qual a maneira adequada de agir diante da situação apresentada ele é advertido sobre qual seria a opção correta Já no caso de o leitorjogador escolher interferir da maneira mais adequada diante da cena apresentada ele ganha uma colher O número total de colheres coletadas durante o jogo definirá a classificação final do leitorjogador Para ilustrar o funcionamento do jogo na Figura 3 destacamse algumas telas que integram o newsgame 7 Nome dado ao gênero de jogos nos quais o jogador se movimenta corre pula entre plataformas e obstáculos coletando objetos e enfrentando inimigos Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 260 Figura 3 Imagens do newsgame Mete a colher Fonte elaborado pelos autores Ao ingressar no newsgame é preciso escolher entre um avatar homem e um avatar mulher Há uma informação diferente que aparece na escolha de cada um dos avatares porém o jogo se desenvolve da mesma forma para ambos O personagem masculino está seguido do texto Você sabia que o agressor nos casos de violência contra a mulher é conhecido por 61 das vítimas e o feminino Você sabia que a cada dez minutos uma mulher é vítima de violência em Santa Catarina Huizinga 2010 pontua que sempre jogamos ou competimos por alguma coisa HUIZINGA 2010 p58 Fator que faz com que todo jogo tenha a necessidade de possuir algum significado para seus jogadores O significado pode vir por exemplo com um objetivo a ser atingido ou um vilão a ser derrotado Marciano 2017 explica que uma das características dos jogos é o combate a um inimigo O inimigo do jogador é tudo aquilo que lhe dificulte vencer o jogo ou concluílo Os desafios apresentados podem ter formatos como um numero de vidas tentativas limitadas tempo estipulado para cumprir tarefas obstáculos para transpor No caso do Mete a colher devido ao fato de classificarmos o newsgame de letramento que se propõe a conscientizar em relação a problemática da violência contra as mulheres optouse por não utilizar um inimigo padrão mas estabelecer um ranking com uma premiação ao final do jogo baseada no número de respostas certas que o jogador atingir Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 261 conforme a Figura 4 A pontuação adquirida ao longo de cada etapa do newsgame aparece no canto superior da tela Figura 4 Classificação de pontuação ao final do jogo Fonte elaborado pelos autores 4 RESULTADOS DOS TESTES Como forma de verificar a usabilidade do game além de investigar a existência de possíveis falhas em relação a jogabilidade para a partir disso apontar e implementar melhorias o newsgame Mete a colher foi testado com 37 alunos do curso de Jornalismo da UFSC com idades entre 17 e 25 anos sendo a maioria com a faixa etária entre 20 e 25 anos Os alunos jogaram de forma autônoma não sendo induzidos ou apresentados sobre as regras ou ordem de navegação estando assim livres para clicar e acessar o conteúdo da forma como quisessem Ao final da utilização foi encaminhado para o email de cada participante um questionário elaborado no Google Forms A maioria das perguntas estava direcionada à usabilidade do newsgame Por conta disso essa pesquisa utiliza como base os estudos de Jakob Nielsen que asseguram que com testes em cinco usuários seria possível detectar 80 dos problemas de uma interface Barnum et al 2003 Devido ao fato de os pesquisadores compreenderem como baixo o número obrigatório de participantes para essa primeira rodada de testes de usabilidade optouse pela amostragem não probabilística por conveniência Nesse método as unidades amostrais são escolhidas conforme a preferência do pesquisador e a amostra é regida pela disponibilidade dos Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 262 elementos ou pelo atendimento às necessidades da pesquisa Os indivíduos selecionados para a pesquisa são aqueles que estão imediatamente disponíveis não há um critério estatístico para a escolha Neste caso a amostra é denominada como de representatividade social e os métodos para o tratamento dos dados são qualitativos LOPES 2005 MALHOTRA 2006 OCHOA 2015 As questões foram elaboradas visando identificar a Experiência do UsuárioUser experience UX no uso do Newsgame e foram organizadas seguindo os critérios sobre o respondente referenciação localização agilidade eficiência interface gráfica gerenciamento de erros documentação jogabilidade controlabilidade e eficácia O método utilizado se baseia nos estudos de Carvalho 2017 que estabelece oito abordagens que estariam representadas em ao menos um tópico ou subgrupo localização referenciação agilidade eficiência interface gráfica controlabilidade gerenciamento de erros e eficácia O conjunto de categorias de Carvalho 2017 é denominado como Abordagens Trianguladas de Usabilidade ATU devido à utilização de triangulação de métodos classificada como uma metodologia que permite ao pesquisador combinar três ou mais ferramentas metodológicas para desenvolver sua pesquisa CARVALHO 2017 Na primeira etapa do questionário classificada como Referenciação procurase traçar a relação da experiência do usuário com jogos assim como o esforço dedicado para a compreensão da mecânica do jogo Nessa primeira seção temos um equilíbrio entre usuários que costumam utilizar jogos digitais 19 e os que não costumam 17 Apesar de metade dizer não ter o hábito de jogar 100 dos usuários disseram ter compreendido o objetivo do jogo e apenas dois 54 disseram ter encontrado dificuldade para começar a jogar Na próxima etapa de investigação compreendida como Localização verificouse como o usuário consegue localizarse no newsgame bem como quais os e os conhecimentos que o leitorjogador possuí das funções existentes Os resultados obtidos no teste indicaram que em média 90 dos usuários não teve problemas em localizar botões e informações Além disso também não ou sentiram a necessidade de mais algum comando para o jogo A questão seguinte relacionada à Agilidade e eficiência visou reconhecer o quanto o design do jogo colaborou para a experiência de jogabilidade 100 dos usuários disseram ter acessado os recursos com facilidade e 94 disseram que o jogo respondeu aos seus comandos e que conseguiram navegar pelos espaços desejados dentro do newsgame Essas respostas indicam que a maioria dos usuários não encontrou falhas no jogo Ainda neste quesito foi inserida uma questão aberta para sugestões e melhorias para possíveis novas Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 263 versões Entre os comentários verificouse aspectos como o jogo está muito bem planejado e o assunto é muito importante de ser discutido poderia trazer uma interação diferente um ângulo diferente quando o personagem chega ao casal e o jogo é bom divertido e conscientizador Destacase que a partir dessas observações apontadas pelos leitoresjogadores que participaram da pesquisa é possível verificar que os objetivos que motivaram a produção do newsgame Mete a colher foram alcançados Uma vez que os usuários refletiram sobre as situações apresentadas em cada uma das fases do game e quando interagem com a narrativa estão atentos aos desafios propostos inclusive sugerem caminhos diferentes que podem ser construídos em uma nova versão do newsgame Em relação à Interface gráfica que aborda o conforto visual proporcionado pelo jogo e a carga de informação a qual na qual o usuário está submetido a média de respostas positivas é menor e variada em comparação às obtidas nos critérios avaliados anteriormente Quando questionados se gostaram do visual do newsgame as respostas se concentraram em sim 62 e mais ou menos 35 Sobre a caracterização dos personagens 64 disseram gostar e 35 responderam que não gostaram Apesar de um índice menor todas as questões relacionadas à interface tiveram mais de 60 de aceitação Acreditase que isso também se deva ao curto período de tempo em que o jogo foi desenvolvido não sendo possível fazer ilustrações mais elaboradas e oferecer mais opções de personalização Na questão aberta os comentários abordam questões como As cores do cenário e botões e acho que o visual do jogo poderia ser mais bem desenvolvido Quanto ao quesito Gerenciamento de erros que aborda como o jogo previne e reage a possíveis erros ocasionados pelo próprio sistema ou por execução errada de ações 973 dos participantes afirmaram não ter encontrado problemas para jogar Já no item Documentação que avalia as informações disponibilizadas pelo próprio jogo a maioria dos usuários disse ter encontrado facilmente o tutorial do jogo Quando questionados se sabiam onde encontrar esse recurso no game mais de 90 disse que não saberia ou que não sentiu falta dessa informação O que indica que o jogo pode funcionar de forma bastante intuitiva sem a necessidade de uma explicação prévia Nas questões sobre JogabilidadeControlabilidade que dizem respeito sobre como o jogador é capaz de controlar ações realizadas no sistema 100 respondeu achar simples os comandos e 64 disse que gostaria de controlar mais características do cenário e do personagem Entre os argumentos para essa resposta alguns disseram que se sentiriam mais representados se pudessem escolher mais detalhes Esta questão indica que a personalização Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 264 de cenários e personagens em um jogo atrai os usuários portanto poderia ser um recurso a ser implementado em uma nova versão do Mete a colher Na última seção Eficácia que avalia se o jogo cumpre com aquilo que se propõe 85 disse ter se divertido com o newsgame 51 afirmou ter lido a matéria relacionada ao jogo 91 respondeu ter obtido por meio do jogo maiores esclarecimentos sobre o tema e 97 gostaria de ver outras matérias representadas por meio de newsgames Na pergunta relacionada a leitura da matéria temse como hipótese o fato de que alguns dos alunos que participaram da pesquisa podem não ter lido a matéria pois não encontraram o botão que possibilita o acesso desse conteúdo no newsgame CONSIDERAÇÕES FINAIS É ponto pacífico que o jornalismo exerce importantes papéis como propulsor de informações agente de transformação e também como um instrumento pedagógico Dito isso vêse a sua notoriedade reafirmada na própria Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher De modo a verificar como a imprensa tem exercido a sua função o presente artigo explanou sobre a cobertura da violência contra a mulher nos principais portais de Santa Catarina e se deparou com dois aspectos o primeiro que dá pouco aprofundamento para a temática e fica limitado ao registro de estatísticas de fontes oficiais assim como os dados revelados por Brasil 2011 e o segundo que mostra iniciativas ainda que poucas de reportagens que de fato conseguiram discutir e tratar o tema de forma aprofundada Numa tentativa e trazer um novo formato de abordagem da temática o artigo relata o processo de criação do newsgame Mete a colher No qual destacase que além da concepção teórica desenvolvida para a produção do newsgame que busca entender as categorias propostas por Bogost et al 2010 e classificar produto apresentado neste artigo como um newsgame de letramento da modalidade exploratória visto que para chegar às informações apresentadas em cada fase do jogo o leitorjogador precisa compreender o desafio proposto bem como explorar cada fase A realização dos testes de ATU também são um aferidor da qualidade do trabalho desenvolvido na qual podemos verificar acertos erros e possíveis melhorias Reforçase que o Mete e a colher é um protótipo portanto há aspectos que podem vir a ser desenvolvidos e aprimorados Entendese que não há como reduzir e simplificar a grave questão que envolve as situações de violência contra as mulheres à apenas quatro situações apresentadas no jogo Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 265 Porém esperase que essa iniciativa possa instigar o surgimento de outras narrativas jornalísticas sobre o tema como forma de reforçar o debate público em torno deste problema que infelizmente só tem crescido e colocado o Brasil em um cenário de epidemia de violência contra as mulheres Compreendese que é fundamental ressaltar as possibilidades que o jornalismo possui à sua disposição para criar narrativas inovadoras e diferenciadas estão em constante evolução e aperfeiçoamento Exemplo disso é o newsgame Uma vez que ao aliar os recursos tradicionais do cenário do entretenimento com a prática de noticiar fatos elemento central do trabalho do jornalista é possível ampliar a compreensão do público em relação a diferentes temáticas No caso do newsgame isso se deve ao seu potencial de informar educar e despertar o interesse do leitorjogador por meio da ludicidade aspecto que caracteriza o universo dos games Contudo para que essa modalidade de narrativa possa ser produzida e por fim consumida pelo público é necessário que os profissionais jornalistas aprendam a trabalhar com esse universo de constante evolução tecnológica A formação profissional com conhecimento diversificado com alguma noção sobre questões de programação design e planejamento gráfico e visual também é um fator preponderante no desenvolvimento de narrativas inovadoras Como no exemplo apresentado do Mete a colher a sua produção necessitou do envolvimento de uma equipe além de recursos técnicos e tecnológicos como software de programação e membros que tinham alguma prática ou engajamento na área em que escolheram atuar Fatores estes que retomam a importância do trabalho em equipes multidisciplinares para produção de narrativas jornalísticas inovadoras REFERÊNCIAS ALVES Schirlei SIMÕES Marina CARRASCO Beatriz SANTIAGO Marco OLIVEIRA Cristina de Reconhecendo a violência Notícias do Dia Florianópolis ago 2018 Disponível em httpsndmaiscombrreportagemespecialdepoimentodeuma sobreviventeentendaociclodaviolenciadomestica Acesso em 08 set 2019 ANDRION Roseli Pesquisa aponta sete em cada dez brasileiros se informam pelas redes sociais 2019 Olhar Digital Disponível em httpsolhardigitalcombrnoticiapesquisa apontaseteemcadadezbrasileirosseinformampelasredessociais82274 Acesso em 08 set 2019 BASTOS Ângela CARNEIRO Felipe PITTHAN Julia DUARTE Chico SANTOS Maiara FIALHO Aline WOLFFENBÜTTEL Ricardo Sozinhas Diário Catarinense Florianópolis 1 jul 2017 Disponível em Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 266 httpwwwclicrbscombrsitesswfviolenciacontramulheresdocamposozinhashtml Acesso em 08 set 2019 BARNUM Carol et al The Magic Number 5 Is It Enough for Web Testing In CHI 03 Extended Abstracts On Human Factors In Computing Systems Chi 03 sl v 1 n 1 p698699 mai 2003 Association for Computing Machinery ACM httpdxdoiorg101145765891765936 Disponível em httpswwwresearchgatenetpublication200553097Themagicnumber5isitenough forwebtesting Acesso em 08 set 2019 BOGOST Ian FERRARI Simon SCHWEIZER Bobby Newsgame Journalism at a play Hancover The MIT Press 2010 BOURSCHEID Ana Paula et al Mete a Colher Newsgame de Letramento Sobre a Violência Contra a Mulher In Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul 20 2019 Porto Alegre Anais Porto Alegre Intercom 2019 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práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 268 SANTA CATARINA Estado Secretaria de Estado de Segurança Pública Colegiado Superior de Segurança Pública Boletim Semanal de Indicadores da Segurança Pública de Santa Catarina 23 Santa Catarina Secretaria de Estado de Segurança Pública 2019a 7p Disponível em httpwwwsspscgovbrfilesdinidocsBoletimSemanaln23 17062019pdf Acesso em 08 set 2019 SANTA CATARINA Estado Secretaria de Estado de Segurança Pública Colegiado Superior de Segurança Pública Boletim Semanal de Indicadores da Segurança Pública de Santa Catarina 34 Santa Catarina Secretaria de Estado de Segurança Pública 2019b 8p Disponível em httpwwwsspscgovbrfilesdinidocsBoletimSemanaln34 02092019pdf Acesso em 08 set 2019 SEPTEMBER 12th A Toy World Nova York Games for Change 2010 Jogo eletrônico Disponível em httpwwwgamesforchangeorggameseptember12thatoyworld Acesso em Acesso em 08 set 2019 SILVA Ânderson O perfil do feminicídio em Santa Catarina NSC Total Florianópolis 14 maio 2019 Disponível em httpswwwnsctotalcombrcolunistasandersonsilvao perfildofeminicidioemsantacatarina Acesso em 08 set 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 269 VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES O EDUCATIVO FORMATIVO DAS MATÉRIAS JORNALÍSTICAS DO WEBSITE G1 Íris de Carvalho1 RESUMO O presente artigo tem o objetivo de apresentar os resultados do estudo que analisou de que forma as matérias jornalísticas do website de notícias G1 abordaram o tema da violência contra a mulher durante o ano de 2016 o ano de celebração dos dez anos da Lei Maria da Penha a fim de identificar o conteúdo educativoformativo das notícias Pesquisa qualitativa com estudo empírico exploratório O método utilizado no estudo foi a análise textual discursiva Também utilizouse da hermenêutica feminista para interpretar os fenômenos e discursos a partir da leitura de mundo das mulheres Dentre as 762 matérias jornalísticas coletadas foram analisadas 20 notícias com diferentes enfoques sobre a violência contra as mulheres A partir da análise das matérias jornalísticas de 2016 podese identificar que o medo e a solidão são aspectos desencorajadores das mulheres que pretendem fazer a denúncia e que todo lugar é um lugar de violência para as mulheres sendo o espaço doméstico o principal espaço de agressão e violência Os resultados do estudo sugerem que a mídia escrita digital se constitui em um assunto de interesse geral e desenvolve uma importante função educativa apresentandose como um agente de socialização funcionando como construtora de comportamentos valores e padrões Palavraschave Violência contra a mulher Mídia Educação Patriarcado INTRODUÇÃO As conquistas sociais das mulheres brasileiras e a redução de algumas desigualdades são inegáveis Contudo a violência contra as mulheres ainda é uma questão social muito grave e com consequências diretas nas suas vidas e na sua saúde Constituída a partir da supremacia masculina para demonstrar poder controle e dominação a violência de gênero perpetrada contra as mulheres tem se revelado uma constante cultural Embora a violência doméstica seja a experiência mais vivida pelas mulheres e uma das principais bandeiras do movimento feminista outras manifestações da violência também fazem parte do cotidiano das mulheres como por exemplo a desigualdade salarial a desigualdade do trabalho doméstico o papel obrigatório e quase punitivo da maternidade e de toda uma lógica do casamento como submissão da mulher ao homem Todas essas manifestações têm muito de uma forma de violência a chamada violência simbólica TIBURI 2018 1 Professora de história da rede pública de ensino no Rio Grande do Sul Mestra em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Email decarvalhoiris84gmailcom Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 270 Segundo dados do Mapa da Violência BRASIL 2015 o país atingiu uma taxa média de 48 feminicídios a cada 100 mil mulheres um número 23 vezes maior que a taxa média observada em um ranking de 83 nações que é de 2 assassinatos a cada 100 mil Dessa forma o Brasil passou para a 5ª posição mundial em assassinatos de mulheres Isso significa que a violência sofrida por mulheres é exercida majoritariamente por homens e também por toda uma sociedade que educa esses mesmos homens como seres de privilégios contra outros seres que não sendo homens não teriam privilégios TIBURI 2018 p 105106 A forma mais comum de violência contra as mulheres é o abuso cometido pelo parceiro ou exparceiro que envolve desde agressão moral psicológica e física até a relação sexual forçada Conforme Saffioti 2015 a violência aparece como um método de controle centrado na ideologia patriarcal que atravessa instituições sejam elas a escola ou a família Pensando neste contexto o presente estudo foi realizado com o objetivo de refletir sobre o papel educativoformativo da mídia a respeito da violência contra as mulheres Para desenvolver o estudo foram analisadas as matérias jornalísticas do website de notícias G1 durante o ano de 2016 Esse recorte temporal justificouse pelo fato de que em 2016 celebraram se os dez anos da Lei Maria Penha e o recorte da localização das notícias no website G1 justificouse em virtude do seu alcance Segundo o site Alexa que divulga anualmente o ranking dos websites do mundo o portal de notícias G1 é o sexto site mais acessado no Brasil A partir da promulgação da Lei Maria da Penha Lei 113402006 se passou a reconhecer a situação de fragilidade e de extremo perigo em que a vítima de violência doméstica e familiar se encontrava passando ao Estado a responsabilidade de prevenir essa violência proteger as mulheres agredidas ajudar na reconstrução da vida da mulher e punir os agressores Esta lei também passou a prever políticas públicas integradas entre os órgãos responsáveis e a apresentar diretrizes para essas políticas como a promoção de estudos e pesquisas com perspectiva de gênero o respeito nos meios de comunicação social aos valores éticos e sociais da pessoa e da família a promoção e realização de campanhas educativas de prevenção à violência doméstica e familiar a difusão da própria lei a capacitação dos profissionais que trabalham com o tema a inclusão nos currículos escolares e a disseminação dos valores éticos de respeito à dignidade da pessoa humana com perspectiva de gênero raça e etnia Neste cenário a presente pesquisa de mestrado concluída no Programa de Pós Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul analisou o seguinte problema como operam as matérias jornalísticas do website G1 sobre a violência contra as mulheres e de que forma essas matérias promovem um processo educativoformativo à sociedade No estudo buscouse problematizar sobre essa temática a partir do seguinte Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 271 objetivo analisar de que forma o website de notícias G1 divulga um processo educativo formativo ao publicar matérias jornalísticas sobre a violência contra as mulheres No estudo compreendese que o educativoformativo jornalístico é mais do que um serviço de divulgação de notícias Ele passa a ser um forte influenciador na sociedade pois a notícia ao ser veiculada em forma de utilidade passa a ter um componente pedagógico que não consiste simplesmente em repassar informações mas também participar do processo de constituição dos sujeitos ao retratar um contexto cultural e social construído e transformado por esses mesmos sujeitos De acordo com Setton 2010 são os valores expressos sistematicamente pela mídia que a torna uma educadora da modernidade pois ela transmite mensagens que contribuem para a formação das identidades de todos Segundo a autora assim como a escola a mídia como todas as outras instituições que promovem socialização procura valorizar ou condenar certos comportamentos bem como transmite padrões e normas e desta maneira assume seu papel educativoformativo no mundo Neste sentido é possível observar um constante desenvolvimento e uma intensa complexificação da mídia e das tecnologias de informação tendo essas um papel estratégico na atividade de comunicação Segundo Guareschi 2005 não há instâncias em nossa sociedade que não estejam relacionadas com a informação e com a comunicação como a economia a educação a política e até mesmo a religião Conforme Kellner 2001 os meios de comunicação junto com outros instrumentos da cultura da mídia como por exemplo a publicidade e a propaganda desempenham um papel fundamental na reorganização do modo de ser contemporâneo e na conformação de pensamentos e comportamentos Thompson 2012 considera que o uso dos meios de comunicação de massa implica a criação de novas formas de interação e ação no mundo social novos tipos de relações sociais e novas formas de relacionamentos entre indivíduos inclusive consigo mesmo De acordo com Setton 2010 a mídia é uma matriz de cultura que produz significados que veicula sentidos morais e sociais ao oferecer uma carga informativa Para a autora o conceito de mídia é abrangente e se refere aos meios de comunicação massivos dedicados em geral ao entretenimento lazer e informaçãorádio televisão jornal revista livro fotografia e cinema Além disso engloba as mercadorias culturais com a divulgação de produtos e imagens e os meios eletrônicos de comunicação ou seja jogos eletrônicos celulares DVDs CDs TV a cabo ou via satélite e por último os sistemas que agrupam a informática a TV e as telecomunicaçõescomputadores e redes de comunicação SETTON 2010 p 14 O consumo dos meios de comunicação de massa ao ser analisado e contextualizado nos grandes centros urbanos é caracterizado pela rapidez e pela necessidade de informação sobre o Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 272 ambiente social econômico e político Além disso a mídia propicia conotação valorativa e são nessas instâncias que são legitimados determinados valores que acabam impulsionando os indivíduos a agir Considerando as contribuições teóricas de Scott 1995 de que as identidades de gênero são construídas tendo como base os discursos culturais temos que os discursos midiáticos atuam como uma importante ferramenta na produção das subjetividades e reiteram relações de poder que não se esgotam nas diferenças de classe ou de ordem econômica mas se estendem a toda relação assimétrica entre os indivíduos Sendo assim buscar uma análise que relacione a violência contra as mulheres e a mídia apresentase como pertinente uma vez que se pode conhecer e refletir melhor acerca dos conteúdos que educam sobre os assuntos divulgados na mídia A análise e a interpretação no processo de pesquisa qualitativa com conteúdo empírico exploratório utilizou o método da análise textual discursiva processo que se realiza a partir de um corpus em forma de textos Conforme Moraes e Galiazzi 2007 o método da análise textual discursiva pode ser entendido como um processo de autoorganização de construção de compreensão em que novos entendimentos emergem a partir de uma sequência recursiva de componentes a desconstrução dos textos do corpus a unitarização e o estabelecimento de relações entre os elementos unitários a categorização e o captar o emergente em que uma nova compreensão é comunicada Dessa maneira a pesquisa também se utilizou da hermenêutica feminista para interpretar os fenômenos e discursos a partir da leitura de mundo das mulheres sobre sua história Segundo Paixão e Eggert 2011 a hermenêutica feminista valoriza a fala e quem fala fazendo necessário darse conta das relações sociais do nosso tempo e espaço para recuperar a vida e o bemestar das pessoas O procedimento metodológico deste estudo baseouse na análise das matérias jornalísticas do website G1 sobre a violência contra as mulheres durante o ano de 2016 Para isso foram realizadas cinco buscas no website a fim de identificar matérias jornalísticas para análise Nesse momento foram usados os seguintes descritores violência contra a mulher G1 2016 violência de gênero G1 2016 e assédio G1 2016 Nesse procedimento identificou se que nem toda notícia a respeito da violência contra a mulher usa em sua abordagem jornalística o enquadramento no tema violência contra a mulher e sim as tipologias de violências sofridas pelas mulheres Por isso foi realizada uma sexta busca com os seguintes descritores estupro agressão feminicídio Ao final das buscas o resultado foi expressivo pois foram coletadas 762 notícias jornalísticas a respeito da violência contra as mulheres com Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 273 diferentes e variadas abordagens Ademais constatouse que as matérias jornalísticas a respeito da violência contra as mulheres se encontravam em variadas seções2 do website G1 a citar Policial Educação Política Bem Estar e Notícias Gerais No movimento seguinte dentre as 762 notícias jornalísticas coletadas foram selecionadas para a análise 20 matérias que abordavam a violência contra as mulheres com diferentes enfoques Nesta seleção as vítimas eram exclusivamente mulheres e maiores de 18 anos Uma das matérias jornalísticas selecionada tinha como abordagem as redações do Enem 2015 Essas redações dissertavam sobre a persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira A matéria jornalística foi analisada com atenção especial e as dez redações abordadas na notícia foram igualmente analisadas e incorporadas ao corpus O corpus constituído a partir do agrupamento das matérias jornalísticas foi organizado em quatro categorias a saber 1 todo lugar é um lugar de violência 2 força atitude e desabafo a denúncia 3 o machismo e 4 o educativo 1 PARA A MULHER TODO LUGAR É UM LUGAR DE VIOLÊNCIA No presente estudo compreendese a violência contra as mulheres como um processo desigual das relações de poder naturalizado e tolerado pela sociedade que contribui para a manutenção da dominação masculina dentro da hierarquia sexista do papel dos sexos Desse modo a imersão em nosso corpus documental reconheceu que a violência está presente na vida de todas as mulheres independente da idade classe social ou raça e se manifesta de várias formas e em diferentes lugares como em casa na rua e nos espaços públicos bem como nos espaços virtuais como as redes sociais da internet À medida que avançam as lutas sociais e a conscientização sobre esse processo diferentes expressões da violência vão se desvendando A partir do estudo das matérias jornalísticas do portal de notícias G1 podese constatar que todo lugar é um lugar de violência no qual as mulheres correm o risco de perderem suas vidas serem agredidas ou violadas A violência doméstica ou familiar é uma das manifestações de violência mais comuns sofridas pelas mulheres Ela acontece no espaço da casa e é praticada por pessoas próximas da vítima podendo se expressar de diversas formas incluindo a violência simbólica física psicológica ou sexual bem como os assassinatos 2 Atualmente no website de notícias G1 o menu principal disponibiliza dezesseis seções de conteúdos aonde os mais variados temas estão acessíveis aos leitores em formato de matérias jornalísticas digitais São elas agro carros ciência e saúde concursos economia educação fato ou fake monitor da violência mundo natureza olha que legal planeta bizarro política poparte tecnologia e turismo e viagem Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 274 Na primeira vez que meu exmarido tentou me matar eu tinha 17 anos e estava grávida do nosso segundo filho Ele me agredia muito me xingava me empurrava na parede TRECHO NOTÍCIA G1 MARIA DA PENHA 10 ANOS EM 10 HISTÓRIAS 01082016 Tanto eu quanto a minha mãe e o meu irmão sofremos muito na mão dele Ele era violento batia muito e sem motivo Qualquer coisa que tivesse na frente ele usava para bater Era espancamento mesmo Ele também batia muito nos nossos bichos Chegou a jogar oleo quente no cachorro TRECHO NOTÍCIA G1 MARIA DA PENHA 10 ANOS EM 10 HISTÓRIAS 01082016 As narrativas de violência apresentadas pelas vítimas nos fragmentos acima evidenciam uma dura realidade brasileira Invariavelmente as violências cometidas por parceiros ou familiares não são ataques únicos mas resultados de abusos domésticos anteriores como por exemplo a agressão aos animais domésticos com grande valor afetivo à vítima o controle exercido pelo homem sobre a maneira de a mulher se vestir a imposição de proibições como ir trabalhar sair de casa ou visitar as amigas ou a família e a destruição dos seus objetos e documentos Durante muito tempo na história do Brasil a violência contra a mulher não foi considerada um problema social que exigisse a intervenção do Estado Isso porque ao ocorrer no espaço doméstico e nas relações conjugais e familiares era considerada uma questão de ordem privada Segundo Lage e Nader 2018 a ideologia patriarcal que estruturava as relações conjugais e familiares desde o período colonial no Brasil conferia aos homens um grande poder sobre as mulheres justificando atos de violência cometidos por pais e maridos contra filhas e esposas Conforme Lage e Nader 2018 Nascida do estilo de vida das minorias dominantes essa ideologia acabou influenciando todas as outras camadas da sociedade disseminando entre os homens um sentimento de posse sobre o corpo feminino e atrelando a honra masculina ao comportamento das mulheres sob sua tutela LAGE NADER 2018 p 287 A dominação masculina legitimada pela ideologia patriarcal fez do espaço do lar um espaço privilegiado para a violência contra a mulher tida como necessária para a manutenção da família e o bom funcionamento da sociedade Assim cabia aos homens disciplinar e controlar as mulheres da família sendo legítimo para isso o uso da força Os espaços públicos como por exemplo os meios de transportes onde as mulheres sofrem esfregões passadas de mão e também acabam se tornando vítimas do estupro se constituem em espaços de medo e violência para as mulheres Eu sempre coloco ela bolsa de lado e procuro ficar sempre de lado pra ninguém ficar encostando Se eu vejo algum homem próximo eu tento sair de Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 275 perto com medo de assédio Depois que aconteceu isso casos de assédio tipo assim a gente fica com medo de acontecer com a gente porque às vezes a gente não tem coragem de falar de virar A gente acaba aguentando por vergonha TRECHO NOTÍCIA G1 CASOS DE ASSÉDIO SEXUAL EM TRENS DO METRÔ E CPTM DOBRAM EM 4 ANOS 17032016 O fragmento acima expõe a violência sofrida constantemente pelas mulheres nos transportes3 coletivos do país e nos permite refletir sobre a imposição de limites à livre circulação das mulheres em espaços públicos ou seja se constitui em um mecanismo perverso de controle da presença das mulheres nesses lugares e em outros como as ruas das cidades regulam onde elas podem estar e não podem estar definem a que locais podem ter acesso e o horário em que podem gozar de alguma segurança Caso contrário estarão vulneráveis Nas universidades as mulheres também são vítimas da violência que se expressa nos trotes violentos e degradantes bem como na própria cultura universitária machista através das festas e eventos repletos de conteúdos sexistas e por vezes racistas Aprofundada pela desqualificação intelectual que é uma violência moral e simbólica Contudo é o assédio sexual por parte dos professores colegas e nos arredores das Universidades que tem se expressado nas matérias jornalísticas analisadas demonstrando que os corpos das mulheres continuam sendo alvo de violência e desrespeito até mesmo nos espaços considerados mais informados Alunas denunciam uma onda de assédios no entorno das universidades e até dentro das salas de aula em São Paulo Elas se organizaram para alertar outras estudantes e chamar atenção para o problema TRECHO NOTÍCIA G1 UNIVERSITÁRIAS DE SP DENUNCIAM ASSÉDIO DENTRO E FORA DA SALA DE AULA 17052016 Em outubro uma aluna ouvida pela reportagem que não quis se identificar disse que o professor propôs fazer sexo com ela por meio das redes sociais Outra aluna diz que se sentiu constrangida quando pegou carona com ele e o professor não parou de falar sobre sexo TRECHO NOTÍCIA G1 COMISSÃO OUVE DENÚNCIAS DE ASSÉDIO CONTRA PROFESSOR DA UNEB 20122016 As denúncias apresentadas pelas estudantes nos fragmentos jornalísticos explicitam que a violência nas Universidades marca muito a trajetória da vida estudantil das mulheres Especialmente o assédio sexual que muitas vezes a partir do senso comum aparece como parte de um 3O vagão rosa foi criado como uma medida para combater o assédio sexual que as mulheres sofrem no metrô Estes vagões já estão sendo usados em cidades como São Paulo Rio de Janeiro e Belo Horizonte A medida em questão gerou muitos debates polêmicos e despertou diferentes opiniões De um lado os movimentos feministas e de mulheres criticaram a medida entendendo que o projeto não enfrentava a situação da violência e ainda condensava as usuárias a um local que teoricamente não podem ser abusadas Enquanto que em outros vagões continuariam sofrendo o abuso Por outro lado as usuárias que já testemunharam ou sofreram assédios dentro dos trens e metrôs acharam o projeto útil e necessário Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 276 comportamento masculino valorizado e aceito pela cultura machista e patriarcal enquanto a recusa por parte das mulheres é interpretada como se fizesse parte do processo de sedução Segundo Saffioti 2015 o consentimento social para que homens convertam sua agressividade em agressão se sustenta na organização social de gênero a qual se estrutura na virilidade masculina como força potência dominação Nesta organização social inscrita nas relações desiguais de gênero as mulheres estão sujeitas a todos os tipos de agressões masculinas funcionando como um mecanismo de sujeição e submissão aos homens A naturalização dessas construções está expressa por exemplo quando o término de um relacionamento ou uma traição é apontado por quem cometeu um feminicídio pela sociedade ou até pelo sistema de justiça como uma justificativa razoável para se cometer um crime contra a vida de uma mulher É nesse contexto de naturalização e tolerância que as vítimas precisam juntar forças para desabafar ter atitude e coragem de superar o medo e a culpa para realizar a denúncia das agressões que sofrem Um grande feito diante de uma sociedade e de um Estado negligentes para com a condição historicamente desigual das mulheres em relação aos homens 2 FORÇA ATITUDE E DESABAFO A DENÚNCIA Em geral a análise das matérias jornalísticas do portal de notícias G1 possibilita compreender que a trajetória das mulheres que sofrem a violência até o caminho da realização da denúncia é muito doloroso sofrido e solitário As mulheres que praticam a denúncia usam toda sua força e necessidade de atitude E além disso elas precisam desabafar seu sofrimento A vítima de violência doméstica a mulher às vezes ela vem mais para desabafar Não é fazer o BO sair daqui com um papel na mão O papel não é escudo entendeu E muitas sabem que o papel não é escudo e que se vier aqui quando voltar pra casa vai ser pior E elas têm muita vergonha TRECHO NOTÍCIA G1 MARIA DA PENHA 10 ANOS EM 10 HISTÓRIAS 01082016 O trecho acima evidencia que diante da violência os sentimentos das mulheres são vergonha humilhação culpa e muitas vezes medo e solidão Nestes momentos fica evidente que a rede de serviços especializados para atender e proteger as mulheres vítima de violência é essencial para que elas consigam reiniciar suas vidas em melhores condições sem violência e fortalecendo sua autoestima Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada IPEA no início de 2015 o Brasil contava com 77 casas de abrigo em 70 municípios e 214 centros especializados de atendimento à mulher em 191 cidades a maioria localizada nas regiões Sudeste e Nordeste O estudo apontou que existem 470 delegacias especializadas de Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 277 Atendimento à Mulher e núcleos de atendimento em delegacias comuns com maior concentração no Sudeste e no Sul Essa realidade agrava a situação de muitas mulheres pois se sabe que deixar o tempo passar não acaba nem diminui a violência ao contrário quando o homem dá o primeiro grito faz a primeira ameaça é muito possível que ele irá aumentar seu controle e dominação sobre ela aumentando a violência Mulheres vítimas de violência em seus relacionamentos podem levar mais de 10 anos para denunciar o crime apontou uma análise feita pelo núcleo de gênero do Ministério Público de São Paulo MPSP De acordo com a pesquisa cerca de 37 das denúncias foram feitas por mulheres que estavam em relacionamentos com uma década ou mais de duração TRECHO NOTÍCIA G1 MULHER PODE LEVAR MAIS DE 10 ANOS PARA DENUNCIAR VIOLÊNCIA DIZ PESQUISA 10072016 A falta de apoio da família traz para as mulheres um sentimento de solidão e desamparo visto que reiteradamente as mulheres não executam a denúncia pelos filhos pois sentem medo de não conseguir criálos longe do pai Quando cheguei estava no fundo do poço Me ajudaram muito e pensei que precisava tomar uma atitude antes que acontecesse o mal Eu fui e denunciei Fiz o boletim de ocorrência sem ele saber Ninguém sabia Quando a denúncia chegou no fórum me deram a medida protetiva Quando o oficial de justiça chegou pra entregar o documento pra ele teve que chamar até a polícia pra ele sair de casa Meu filho falou mãe a senhora não devia ter feito isso E eu não Devia ter esperado ele me matar E meu filho mas a senhora não morreu TRECHO NOTÍCIA G1 MARIA DA PENHA 10 ANOS EM 10 HISTÓRIAS 01082016 Quando não se tem os equipamentos suficientes para receber as denúncias não se tem uma família uma comunidade ou amigas que apoiem aceitar o sofrimento calada é a maneira que muitas mulheres encontram para poder se preservar e de alguma forma abrigar a dignidade que ainda lhes resta A repetição do sofrimento ou a repetição da dor ativam no cérebro da mulher o mecanismo inibidor da reação É por isso que as vítimas muitas vezes sofrem caladas morrem caladas ou demoram tanto tempo até noticiar uma violência TRECHO NOTÍCIA G1 MULHER PODE LEVAR MAIS DE 10 ANOS PARA DENUNCIAR VIOLÊNCIA DIZ PESQUISA 10072016 A família sabia todo mundo sabia Falei pro meu irmão tomar cuidado com ele Eu não tinha saída Na minha mente eu não tinha pra onde correr TRECHO NOTÍCIA G1 MARIA DA PENHA 10 ANOS EM 10 HISTÓRIAS 01082016 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 278 Outro fato doloroso é a mulher ter que repetir a mesma história de violência que ela sofreu em vários lugares e para vários profissionais E isso muitas vezes ocorre em situações em que a mulher está ferida fisicamente abalada psicologicamente depois de ter vencido as barreiras internas e ter optado pela denúncia É um caminho muito difícil O caminho na delegacia é difícil o caminho na Justiça é difícil o caminho no plantão é difícil o caminho na Defensoria Publica é difícil no Ministério Publico Tudo é difícil O caminho da repetição é difícil quando volta para casa é difícil TRECHO NOTÍCIA G1 MARIA DA PENHA 10 ANOS EM 10 HISTÓRIAS 01082016 A Lei Maria da Penha impactou muito as instituições que compõem o sistema de justiça uma vez que a nova lei previa a criação de novas estruturas especializadas para o processamento de crimes que envolviam a violência doméstica e familiar contra mulher As varas e juizados especiais que foram criadas representaram um avanço no tratamento sociojurídico da questão uma vez que partem do reconhecimento de um tipo específico de crime que age contra a mulher dentro das relações afetivas Peguei aquele começo que achavam que a Lei Maria da Penha era inconstitucional O tribunal pensava assim ah será que é necessário instalar uma vara Então fizemos as contas Há nove anos tínhamos 37 processos Hoje nesse mesmo fórum temos 30 mil processos Esse número comprovou que havia uma demanda represada pois as mulheres os familiares e as pessoas próximas não sabiam que existia uma lei eficiente uma lei moderna uma lei protetiva uma lei com características fortes e com possibilidades amplas TRECHO NOTÍCIA G1 MARIA DA PENHA 10 ANOS EM 10 HISTÓRIAS 01082016 Através desse trecho da juíza podese compreender que com a promulgação da Lei Maria da Penha em agosto de 2006 criamse mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher Definiuse a violência doméstica e identificaramse suas diferentes formas Trouxe tais conceitos uma vez que havia na sociedade uma falta de consciência geral sobre o que era violência doméstica razão pela qual por muitos anos esse crime esteve marcado pela invisibilidade Dessa maneira as denúncias das situações de violência que as mulheres vivenciam são fundamentais para se conhecer a realidade e garantir o fim da impunidade dos agressores Não apenas procurar as delegacias mas tornar pública a situação de violência é também uma maneira de reagir As denúncias coletivas e públicas realizadas pelo movimento de mulheres feministas e vítimas são essenciais para alertar a sociedade da magnitude da violência e também encorajar outras mulheres a denunciarem e saberem que não estão sós Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 279 Ativistas dos grupos Minha Sampa e Mulheres Mobilizadas protestaram na tarde deste domingo 7 na Avenida Paulista em São Paulo pelo fim da violência contra as mulheres O ato lembra os dez anos da Lei Maria da Penha completados neste dia Com maquiagem que simulava hematomas no rosto e nos braços o grupo de mulheres caminhou pela avenida com a boca amordaçada As manifestantes pediam que as Delegacias de Defesa da Mulher DDM unidades da Polícia Civil especializadas em atender mulheres vítimas de violência passassem a funcionar ininterruptamente 24 horas por dia TRECHO NOTÍCIA G1 AMORDAÇADAS MULHERES PROTESTAM NA PAULISTA CONTRA VIOLÊNCIA 07082016 As mobilizações sociais como as mencionadas acima que buscam romper com o silêncio e promover denúncias incentivam as mulheres a procurar os serviços de proteção e cobram das autoridades públicas respostas pela omissão Estas manifestações são fundamentais para fortalecer a ideia de que o fenômeno violência contra a mulher é uma responsabilidade pública e política em que todos devem se envolver Organizar as manifestações públicas de denúncia também ajuda a exigir a punição dos criminosos Com isso as mulheres demonstram a sua força coletiva e chamam a atenção da mídia podendo atingir resultados bastante positivos 3 O MACHISMO O machismo define quais são os papeis sociais de homens e mulheres de modo que pareçam naturais e universais gerando estereótipos que definem o que são as coisas e os comportamentos estabelecidos para cada sexo Segundo Moreno 2017 o impacto da exaustiva repetição dos estereótipos influencia e limita a percepção tanto de homens quanto de mulheres sobre as possibilidades de ambos a complementaridade e similaridades nos seus papéis sociais e fundamentalmente na valorização de si e da diversidade Através dos trechos das notícias selecionados abaixo podemos perceber a lógica do casamento como submissão da mulher ao homem Meu pai que arranjou meu casamento Eu não queria mas ele me obrigou a casar Eu tinha 14 anos e meu exmarido 21 Meu pai chegou a mentir a minha idade pra que eu pudesse casar legalmente TRECHO NOTÍCIA G1 MARIA DA PENHA 10 ANOS EM 10 HISTÓRIAS 01082016 Minha mãe ficou uns 18 anos casada com ele Antigamente as pessoas casavam para sempre a família da minha mãe sempre cobrou isso casou tinha que ficar casado e pronto Mas claro ninguém frequentava nossa casa TRECHO NOTÍCIA G1 MARIA DA PENHA 10 ANOS EM 10 HISTÓRIAS 01082016 Os excertos destacados mostram que o casamento ainda é um destino quase obrigatório às mulheres Ainda é comum ouvir que os homens têm mais capacidades intelectuais enquanto as mulheres têm mais capacidades afetivas e por isso seu destino inevitável seria o cuidado Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 280 o afeto o casamento as tarefas domésticas e a maternidade Além disso a ideia da fragilidade das mulheres ainda é muito presente E a mulher é frágil por mais que ela seja independente E o homem pela postura fragiliza a mulher São poucas as que vêm aqui e falam eu não quero mais TRECHO NOTÍCIA G1 MARIA DA PENHA 10 ANOS EM 10 HISTÓRIAS 01082016 O fragmento acima permite compreender o machismo como um modo de ser que privilegia os machos enquanto subestima todos os demais Ele é autoritário e insidioso está presente na macroestrutura e nas microestruturas cotidianas Está na objetividade e na subjetividade e é introjetado em muitas pessoas inclusive nas mulheres como é o caso da delegada entrevistada que reproduz a ideia da fragilidade feminina Segundo Tiburi 2018 isto porque o machismo faz parte de um modo orgânico de pensar de sentir e de agir é tão difícil modificálo O machismo é um sistema de crença que se aceita a superioridade dos homens devido à sua masculinidade TIBURI 2018 p 63 Para mim o que mudou mesmo foi eu ter tido uma filha menina Se fosse menino ia crescer outro menino machista E agora eu quero dar um mundo melhor para ela Já ouvi minha esposa falando uma vez com a nossa filha não quero que você namore um cara igual seu pai que grita com você te chama de palavrão TRECHO NOTÍCIA G1 MARIA DA PENHA 10 ANOS EM 10 HISTÓRIAS 01082016 O agressor nesse fragmento sinaliza que as mudanças foram possíveis a partir do nascimento da filha pois não deseja que ela seja agredida e oprimida assim como a mãe Entretanto naturaliza que se nascesse um menino ele seria machista persistindo uma naturalização e uma aceitação social da masculinidade vinculada ao comportamento machista e violento Para Pisano 2017 a masculinidade constrói a civilização pela exclusão exploração e pela violência baseadas em seu sistema de domínio onde A feminilidade não é um espaço autônomo com possibilidades de igualdade de autogestão ou de independência é uma construção simbólica e de valores desenhada pela masculinidade e contida nela como parte integrante PISANO 2017 p6 Isso ajuda a explicar o porquê de o juiz anular a medida protetiva garantida pela Lei Maria da Penha no excerto abaixo mediante carta escrita pela vítima de violência doméstica Edna Amaralia da Silveira assassinada com quatro tiros pelo exmarido no sábado 12 também tinha uma medida protetiva Três dias antes do crime a medida foi revogada com base numa carta que ela assinou pedindo a retirada da proteção O juiz que autorizou disse que a carta era suficiente É um Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 281 documento formalizado e com firma reconhecida em cartório Ela podia muito bem ter entrado em contato conosco e dito Assinei esse documento e fui coagida Não tem validade Por não expressar a minha vontade isso não aconteceu destaca o juiz André de Novaes TRECHO NOTÍCIA G1 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CRESCE NÚMERO DE MEDIDAS PROTETIVAS A MULHERES 24112016 O parecer do juiz e os valores patriarcais contidos na sua avaliação jurídica da condução da mulher que foi assassinada ficam nítidos quando ele a culpabiliza e não suspeita da ameaça que essa mulher poderia estar sofrendo Ao longo desse estudo viemos constatando a dificuldade das mulheres em realizar a denúncia a omissão e a má formação dos representantes dos órgãos públicos para tratar com o tema da violência contra a mulher bem como com as vítimas Em situações como essa a supremacia masculina se legitima produzindo uma lógica de dominação que controla vigia e mata com a autorização do Estado As situações de violência são uma demonstração extrema do poder de dominação dos homens sobre as mulheres e geralmente são justificadas por argumentos relacionados ao que deveria ser o jeito certo das mulheres se comportarem Em grande medida isso acontece pela disseminação das ideias machistas de que o valor da mulher está ligado as suas condutas morais e sexuais e o valor do homem não 4 O EDUCATIVO A escola e a família já não são mais as instituições que exclusivamente se encarregam da educação uma vez que a mídia vem desenvolvendo este papel Pensar uma educação através dos meios de comunicação que prepare sujeitos críticos conscientes e capazes de estabelecer uma relação de diálogo com essas mídias tornase indispensável De acordo com Setton 2010 as mídias são vistas como espaços educativos na medida em que são responsáveis pela produção de uma série de informações e valores que ajudam os indivíduos a organizar suas vidas e suas ideias auxiliando na formação da opinião sobre as coisas e ajudando na organização de uma forma de compreender e se adaptar ao mundo Nesta perspectiva Fantin 2011 considera que a comunicação é imprescindível para a educação pois toda prática educativa é também uma prática comunicativa a comunicação faz parte da educação Da mesma maneira qualquer assunto na sociedade diz respeito à questão educacional uma vez que tudo pode ser objeto de ensinoaprendizagem Sendo assim nenhum tema pode estar alheio às interações sociais que fazem parte da comunicação e de seus processos simbólicos e práticos presentes na sociedade Conforme Setton Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 282 A prática de transmitir conhecimento e valores que as mídias se propõem é um ato pedagógico e portanto também comunicativo A comunicação de sentidos e valores faz parte da educação Nesse sentido tanto as mídias como a prática pedagogica não viveriam sem o intercâmbio de sentidos SETTON 2010 p 6 Para Freire a educação deve estar intimamente ligada às ideias de liberdade democracia e justiça ideias essas que se constroem através de uma permanente atividade crítica levando os sujeitos a buscar o não ajustamento a padrões e normas bem como ideais impostos pela sociedade Tratase do sujeito que transcende a posição de simples espectador e receptor do processo histórico e que emerge no processo de busca como cidadão crítico A educação na perspectiva crítica deve portanto estimular a força criadora do ser humano combatendo o seu acomodamento Neste sentido a tarefa do educador consiste em desafiar o educando estimulando o debate e a interpretação crítica da realidade motivando um movimento de busca permanente pelo conhecimento FREIRE 2007 Sendo assim pensar o significado da comunicação também se faz relevante visto que pode tornarse uma prática de transmissão de informação na qual predomina o papel do emissor em contraponto ao receptor prevalecendo um processo de difusão que aplica aos receptores um papel desigual em relação aos transmissores Segundo Thompson 2012 p35 comparados com os indivíduos envolvidos no processo de produção e transmissão os receptores de mensagens mediadas pouco podem fazer para determinar os tópicos ou conteúdos da comunicação Assim ao se refletir sobre a mídia e o seu papel educativo devese levar em conta qual o tipo de comunicação e educação que se busca Tal reflexão nessa pesquisa é contemplada pela ideia de Guareschi 2005 ao dizer que Na comunicação um composto de condições objetivas e subjetivas é essencial à interpretação Aí entra o fator subjetivo que conduz à compreensão ao observarmos o contexto as entrelinhas o não dito o silêncio Nem sempre o falar coincide com dar a conhecer A postura crítica do receptor deve localizar as contradições os interesses que seus proprietários defendem a busca da totalidade o conhecimento é eliminado uma vez que há sempre mais para ser descoberto Em termos de educação por conseguinte é preciso desmistificar a ideia de uma educação neutra técnica desenraizada da atividade política GUARESCHI 2005 p32 Esse entendimento de comunicação e educação compreende uma interface estruturada em uma proposta democrática e dialógica e com intervenção social em detrimento do uso tecnicista dos meios de comunicação como suporte pedagógico Desta maneira as matérias jornalísticas de caráter educativoformativo podem atingir grandes proporções pois as notícias divulgadas em grandes meios de comunicação como por Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 283 exemplo o website G1 que atinge a todas as classes sociais e localidades do país são facilmente inseridas dentro de qualquer comunidade Portanto passam a ser um fator de grande contribuição na construção das subjetividades coletivas e individuais Assim a mídia se constitui em um instrumento de mediação que ao mesmo tempo participa do processo de constituição dos sujeitos buscando retratar um contexto cultural e social construído e transformado por esses mesmos sujeitos Assim excertos jornalísticos que valorizam o papel da educação como um aspecto importante na desconstrução da cultura machista vigente é essencial para fomentar uma abordagem jornalística que desnaturalize a violência contra as mulheres CONSIDERAÇÕES FINAIS A maioria dos atos violentos ocorre no ambiente doméstico e a vítima geralmente conhece o agressor Por isso o grande número de denúncias e manifestações coletivas ocorridas em vários países nas últimas décadas desencadeou um processo que tirou a violência contra a mulher do âmbito doméstico tornandoa pública Considerouse nesse trabalho que o tema da violência contra a mulher na mídia é fundamental para alterar a realidade dos altos índices de violência e de violação dos direitos das mulheres Também se julgou que a mídia tem a responsabilidade social e política de sensibilizar a população a respeito da gravidade do problema da violência de gênero bem como contextualizar a problemática e cobrar dos órgãos responsáveis a qualidade e a abrangência dos serviços prestados Como agente de socialização e construtora de comportamentos e valores a mídia deve contribuir para a promoção de debates mais aprofundados sobre as raízes da violência contra as mulheres e a importância de uma educação referenciada na igualdade de gênero e no respeito à diversidade e aos direitos humanos Entendese que a mídia tem um importante papel social que é o de levar informação relevante para a população e promover um processo educativoformativo capaz de divulgar os recursos disponíveis para as mulheres em situação de violência apresentando os mecanismos estatais ou da sociedade civil aos quais elas podem ter acesso e as redes que podem ser acionadas pelas vítimas Mas também possui a responsabilidade política e social de contribuir com a desconstrução de estereótipos de gênero que naturalizam a violência contra as mulheres e a desigualdade entre os sexos produzindo reiteradas vezes o desrespeito ao ser mulher REFERÊNCIAS Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 284 FREIRE Paulo Pedagogia da autonomia saberes necessários à prática educativa Rio de Janeiro Paz e Terra 2007 FREIRE Paulo Educação como Prática da Liberdade Rio de Janeiro Paz e Terra 2011 BRASIL Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Estatísticas de Gênero uma análise dos resultados do Censo Demográfico 2010 Disponível em httpsbibliotecaibgegovbrptbibliotecacatalogoviewdetalhesid288941 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categoria útil de análise histórica Educação e Realidade v20 n2 p7199 juldez1995 TIBURI Marcia Feminismo em Comum para todas todes e todos Rio de Janeiro Rosa dos Tempos 2018 THOMPSON J B A mídia e a modernidade uma teoria social da mídia Petrópolis Ed Vozes 2012 WAISELFISZ J J Mapa da violência 2015 homicídio de mulheres no Brasil 1 ed Brasília Ministério da Justiça 2015 Disponível emhttpwwwmapadaviolenciaorgbrmapa2015mulheresphp Acesso em 12 dez 2018 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 286 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER UM OLHAR DA MÍDIA E DAS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA Ana Paula Machado1 Ivone Maria Mendes Silva2 RESUMO Este artigo teve como objetivo apresentar uma evidência da dissertação de Mestrado da autora principal pesquisa que disserta sobre os significados da violência contra a mulher em narrativas de mulheres em situação de violência de profissionais especializados e nos discursos oficiais das políticas públicas Este destaque versa sobre a percepção de um caso de feminicídio por parte das mulheres em situação de violência ocorrido em uma cidade do oeste catarinense E ainda de como os casos de violência contra a mulher são transmitidos pela mídia local A metodologia segue o caráter qualitativo sobre a análise da transcrição do diálogo do encontro do grupo de mulheres que foi mencionado sobre o feminicídio ocorrido na cidade Bem como contempla cinco notícias vinculadas à mídia local acerca da violência praticada contra mulheres no mesmo município Na análise ficou identificado à percepção das mulheres em situação de violência quanto à insegurança o medo de novas agressões a característica bidimensional e relacional que a violência de gênero possui Tanto quanto a diferença de tratamento entre os gêneros pela mídia de como essa diferenciação contribui para realimentar a visão estereotipada da figura da mulher envolvida por crenças sociais históricas e culturais limitadoras Portanto o artigo ao refletir sobre a linguagem utilizada pela mídia local ao noticiar casos de violências e agressões contra mulher eou conjugais atenta para a utilização da mídia e meios de comunicação como uma ferramenta social com a possibilidade de contribuir para a não perpetuação da violência contra a mulher no Brasil Palavraschave Violência contra a mulher Feminicídio Mídia INTRODUÇÃO O presente artigo corresponde a um destaque encontrado durante a realização da dissertação de Mestrado da autora que envolveu a pesquisa dos significados da violência contra a mulher em narrativas de mulheres em situação de violência de profissionais especializados e nos discursos oficiais das políticas públicas O destaque referese durante a análise das narrativas do grupo de mulheres em situação de violência em uma cidade do oeste catarinense Durante a execução do grupo uma notícia 1 Psicóloga do Programa de Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos PAEFI no Centro de Referência Especializado da Assistência Social CREAS unidade I na cidade de ChapecóSC Mestranda do Programa de PósGraduação Interdisciplinar em Ciências Humanas PPGICH da Universidade Federal da Fronteira Sul UFFS campus Erechim psicologaanapgmailcom Lattes httplattescnpqbr3070173738857694 2 Professora Adjunta do Programa de PósGraduação Interdisciplinar em Ciências Humanas PPGICH e do Programa de PósGraduação Profissional em Educação ambos na Universidade Federal da Fronteira Sul UFFS campus Erechim Doutora em Ciências área Psicologia pela Universidade de São Paulo USP ivonemmdsgmailcom Lattes httplattescnpqbr4239723760023529 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 287 mobilizou um dos encontros o feminicídio de uma mulher na cidade que mesmo não participando do grupo repercutiu de forma significativa para as participantes Assim como levantou uma indagação que norteia este texto como a mídia local noticia o fenômeno da violência contra a mulher Quais as possíveis identificações sobre o gênero feminino podem ser percebidas na linguagem jornalística Será que essa linguagem reflete os estereótipos sociais históricos e culturais dispensadas a imagem da mulher que sofre violência Nesse sentido o principal objetivo deste artigo referese a uma análise crítica e breve sobre a repercussão da notícia de um feminicídio a um grupo de mulheres em situação de violência E ainda 1 identificar que possíveis significados podem ser levantados para as mulheres do grupo a respeito desse fato e 2 analisar como a mídia local noticia sobre o fenômeno da violência contra a mulher e destacar possíveis implicações sobre essa transmissão de informação Para tanto algumas considerações prévias se fazem necessárias Por isso na sequência do texto são apresentadas definições sobre a caracterização da violência contra a mulher sobre a violência simbólica e a dominação masculina de como esses conceitos reproduzem um discurso social dominante que reflete na concepção da mídia ao noticiar casos de feminicídio e violências praticadas contra as mulheres Além disso para visualização da forma como é noticiada são apresentadas 5 cinco notícias de dois sites jornalísticos da cidade do oeste catarinense Dessa forma podese fomentar a discussão sobre o conteúdo e a abordagem utilizada Assim como a transcrição das falas do grupo de mulheres em situação de violência e os desdobramentos suscitado nas participantes sobre um feminicídio e a percepção desse tipo extremo de violência Quanto à metodologia utilizada para elaboração deste trabalho será contemplada no decorrer do texto mas podese indicar sobre um caráter teórico reflexivo e qualitativo que o artigo possui Além disso o subtítulo metodológico caracteriza o grupo de mulheres em situação de violência apresentando informações de como este se desenvolveu qual o seu objetivo e o funcionamento dos encontros assim como os critérios para a seleção das matérias sobre a violência contra a mulher A motivação para escrever esse artigo envolve entre outras publicizar e partilhar um achado dentro da dissertação realizada pela autora bem como atentar para um fenômeno complexo multifatorial e grave presente na sociedade a violência contra a mulher em especial quando alcança seu nível mais alto como o feminicídio Além disso o fato do texto apontar como a mídia catarinense aborda a violência contra a mulher poderá auxiliar uma reconstrução Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 288 da importância e responsabilidade social que as mídias possuem atentando para o auxílio na transformação da percepção social e cultural do tema 1 METODOLOGIA Vale destacar que a autora principal é psicóloga de uma unidade do Centro de Referencia Especializado da Assistência Social CREAS de uma cidade do oeste catarinense Assim no ano de 2016 realizou um grupo de acompanhamento psicossocial com mulheres encaminhadas ao Programa de Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos PAEFI frente à expedição de Medida Protetiva eou encaminhamentos realizados pela rede de proteção da cidade O período em que se desenvolveu o grupo psicossocial ocorreu no intervalo de 020516 até 050916 em encontros semanais nas segundasfeiras Totalizando assim três meses consecutivos com um montante de dezoito encontros realizados Todos eles ocorriam nas dependências do CREAS I em uma sala reservada privativa e própria para abrigar grande número de pessoas de forma ao encontro não ser interrompido durante sua realização O grupo iniciouse com 17 participantes terminando com 7 mulheres que concluíram todos os encontros Os motivos de desistência das participantes não podem ser apontados com precisão mas especulase que podem estar atrelados as participantes não estarem preparadas para repensar sobre a violência vivida pois os sentimentos que envolvem essa dinâmica podem estar vívidos e atuantes sobre si Neste espaço as cadeiras foram dispostas em formato circular e independente de onde se sentassem as participantes do grupo poderiam interagir no encontro captando o que estava ocorrendo bem como para a palavra e escuta circulassem livremente Antes do primeiro encontro de grupo cada participante foi acolhida no serviço de forma individual sendo explicado como este funciona orientada quanto aos seus direitos frente à violação e ainda informada sobre estruturação de grupo de atendimento e qual seu objetivo sendo convidada a participar Aquelas que visualizaram a necessidade em receber atendimento especializado confirmaram presença e receberam a data programada do primeiro encontro A coordenação deste grupo não seguiu os parâmetros tradicionais de CREAS normalmente cada unidade realiza os acompanhamentos seguindo os respectivos territórios de abrangência mas neste grupo realizouse uma experiência conjunta para coordenação dos encontros pela autora principal que atua no CREAS I em parceria com duas psicólogas atuantes na unidade CREAS II da cidade do oeste catarinense No primeiro encontro as participantes apresentaramse descrevendo seus nomes idades com quem moravam se tinham filhos e a idade destes se trabalhavam e o motivo que Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 289 foram encaminhadas ao CREAS Neste encontro e no posterior o objetivo principal era formar um acolhimento e estabelecimento de como funcionaria o grupo contando com a participação das mulheres para indicar os acordos grupais sobre o sigilo número de faltas tolerâncias para atrasos e entrada no grupo a inclusão sobre novas participantes e o fechamento do grupo no terceiro encontro A faixa etária das participantes do grupo estava disposta de 21 anos até 52 anos a média de filhos era de dois ou três sendo estes em sua maioria maiores de idade Apenas uma participante tinha nove filhos e seis participantes possuíam filhos adolescentes eou pequenos Todas elas eram moradoras na cidade distribuídas nos bairros e loteamentos do território mas duas das mulheres haviam se mudado recentemente pois residiam em linhas no interior do município Uma em especial havia se mudado após a denúncia e prisão do companheiro A escolaridade das participantes em sua maioria se configurou com o ensino fundamental completo apenas uma participante possuía formação acadêmica Esta não efetivou sua participação ao longo dos encontros Referente à configuração dos relacionamentos 7 participantes se nomearam separadas 5 casadas e 1 namorando Sobre as participantes separadas a desvinculação variava de anos a meses do último relacionamento enquanto que as casadas mesmo com a Medida Protetiva algumas ainda coabitavam e conviviam com os companheiros apenas duas dessas mulheres estavam afastadas dos maridos pelo fato destes se encontrarem presos O motivo da prisão era devido um dos esposos ter cometido incesto e engravidado a filha mais velha e o outro marido ter resistido à prisão e a polícia ter identificado uma arma ilegal em sua posse o que agravou as ameaças de morte cometidas por este companheiro Durante o processo de desenvolvimento dos encontros do grupo podemse identificar aspectos que se correlacionam com os estudos voltados ao tema como a naturalização da violência por parte de quem a sofre Pois as participantes ao descrever suas convivências e relações familiares indicaram presenciar e viver a violência doméstica na família de origem afirmando que acreditavam que viver desse modo era normal Ao mesmo tempo em que não possuíam conhecimento sobre seus direitos ou mesmo quando possuíam não os exerciam Essas concepções sobre a naturalidade da violência também foram identificadas pelas construções sociais e familiares descritas pelas participantes As descrições sobre as relações de gênero dos pais destes com os filhos sobre as ideias de casamento do papel e imagem da mulher e de como essa construção feminina continha amarras sociais familiares e aprisionavam as participantes na situação violenta Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 290 Outra questão descrita nas narrativas das participantes sobre o entendimento da violência vivida referese que o significado desta estaria mais voltado para a violência física Foi com a participação no grupo que esclarecimentos dos seus direitos e o acesso a eles as mulheres puderam ampliar o entendimento da violência para além das marcas físicas englobando a violência psicológica e patrimonial mesmo que estas fizessem parte de suas experiências não tinham uma dimensão relevante Esses breves apontamentos sobre o significado da violência contra a mulher narrado pelas participantes indica a necessidade em oferecer um espaço de escuta e conversa As próprias mulheres indicaram o grupo como de grande importância para a construção e lugar da palavra As percepções que as participantes obtiveram em realizar o grupo psicossocial foi encontrar uma acolhida que os demais serviços e profissionais da rede de proteção não oferecem Vale destacar que para utilização dos relatos durante o grupo de mulheres esta seguiu os preceitos éticos para a elaboração de uma pesquisa com pessoas conforme apontam as Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisa envolvendo Seres Humanos Resolução do Conselho Nacional de Saúde nº19696 e a submissão da pesquisa de dissertação ao Comitê de Ética da Universidade Federal da Fronteira Sul UFFS campus Chapecó3 Portanto vale relembrar que este artigo tratase de um recorte pontual da dissertação da autora principal bem como utilizou apenas o diálogo correspondente do contexto sobre o feminicídio ocorrido na cidade na época em que o grupo de mulheres estava acontecendo Dessa forma o uso dos dados é restrito apenas ao fato correspondente e como este foi debatido e percebido sobre as mulheres que sofreram violênciaReferente ao uso das notícias sobre o feminicídio será mantido o anonimato da vítima ou de qualquer outro dado que possa identificála assim como identificação dos veículos de comunicação Por isso as imagens apresentamse editadas pela autora principal sendo suprimidas algumas informações tais como nomes localidades imagens ou logomarcas dos veículos de comunicação etc Pois a intenção do artigo é de identificar a forma como a notícia sobre o tema da violência contra a mulher é transmitido atentandose ao conteúdo do noticiado da linguagem utilizada e da transmissão da informação Ainda sim a escolha para a classificação das notícias ocorreu respeitando alguns critérios 1 a consulta em dois sites o de uma rádio local e o outro de jornal televisivo de amplitude estadual 2 a quantidade de notícias visou a saturar dados que correspondessem ao 3A submissão do projeto seguiu as normas e critérios estabelecidos por este Comitê obtendo a aprovação em 04092017 inscrito sob o CAAE 70092117200005564 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 291 pesquisado com isso acreditouse que as cinco matérias jornalísticas preencheram esse quesito 3 respeitouse apenas utilizar de notícias de violência contra a mulher ou que envolvessem o tema de violência doméstica da mesma cidade em que se desenvolveu o grupo psicossocial e ainda 4 as notícias correspondessem a uma época não muito distante do desenvolvimento do grupo entre os anos de 2016 e 2017 2 DESENVOLVIMENTO Dentro da revisão de literatura para compor a conceituação sobre o que se entende por violência contra a mulher os autores BENETTI et al sd MACHADO MAGALHÃES 1998 NARVAZ KOLLER 2006 SAFFIOTI 1999 SCHRAIBER et al 2003 consideram que o entendimento sobre violência de gênero é amplo mas se aproxima dos conceitos sobre violência contra mulher criançasadolescentes violência doméstica e violência intrafamiliar Os limites entre um conceito e outro são muito próximos e às vezes são usados até como sinônimos SAFFIOTI 1999 Assim se considerarmos o gênero no entendimento sobre a violência contra mulher esse se aproxima às demais considerações sobre quando a violência ocorre no ambiente doméstico envolvendo relações familiares eou conjugais Mas o que este artigo considera como violência contra mulher Esse conceito é complementado pelas descrições feitas anteriormente e ainda acrescidas de outras formas de violências não restritas apenas às mulheres tais como violência física psicológica sexual patrimonial moral Narvaz e Koller 2006 consideram que a violência contra a mulher não é apenas uma questão privada mas de preocupação social uma vez que tem sido concebida como toda relação em que há abuso de poder manifestada de diferentes formas por diferentes agressores independentemente do local ou do grau de parentesco e da relação que os envolvidos mantenham Sendo assim as formas mais comuns de expressões da violência contra a mulher podem ser consideradas através da violência no ambiente doméstico na violência intrafamiliar pai filha entre irmãos e demais graus de parentescos violência entre casais cometida pelo parceiro no contexto de uma relação afetiva sexual independentemente da relação ser legalizada ou estável Um grande avanço não apenas como marco legal mas para a conceituação da violência contra a mulher foi o estabelecimento da Lei Maria da Penha BRASIL 113402006 Esta considera a complexidade do contexto social relacional e de gênero descrito anteriormente para compreender a violência contra a mulher de maneira abrangente e multifacetada Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 292 Mas foi apenas em 2015 que o crime de feminicídio foi incluído na legislação alterando o art 121 do Código Penal Brasileiro DecretoLei nº 28481940 com a Lei do Feminicídio nº 131042015 decretando assim o crime como condição qualificada ao homicídio quando a causa está associada a razões eou motivada pela condição do sexo feminino condição respaldada e reforçada pela Lei Maria da Penha MARCO ZERO 2107 Um caso de feminicídio ocorreu na cidade durante o período das reuniões do grupo de mulheres repercutindo na mídia na população e sendo mencionado pelas participantes Estas conversaram sobre a insegurança o medo e a possibilidade de uma nova reincidência de violência dos companheiros Essas constatações apresentaramse principalmente quando uma mulher foi assassinada pelo excompanheiro a facadas dentro de casa em um bairro da região sul onde algumas das participantes também moravam Esse fato foi discutido na reunião do grupo seguinte ao ocorrido mobilizando as participantes a pensar sobre e refletir em função da relação existente entre as partes e a repercussão da violência para si Vale ressaltar que a discussão sobre o assassinato não ocorreu logo no início do grupo O debate começou enquanto Violeta4 descrevia como havia sido a audiência sobre o processo judicial pela agressão do excompanheiro O recorte do diálogo do 15º encontro do grupo é apresentado na íntegra incluindo as intervenções das profissionais Violeta A juíza e as pessoas que estavam lá conversaram e me perguntaram o que eu queria e eu respondi como é mesmo a palavra que eu disse Assim de ficar segura Eu disse que queria me sentir segura que eu queria uma segurança pra mim Profissional 1 Mas Violeta como assim isso de se sentir segura Não entendi o que quer dizer segurança Violeta Assim que a gente se sinta segura onde a gente estiver que não se incomode mais Margarida A gente não se sente segura quando que a gente vai se sentir segura Eu digo isso porque quando nós mulheres vamos estar seguras Olha o que aconteceu na sextafeira Como que pode isso Quando que nós vamos poder sair sem ter medo Profissional 2 Mas o que aconteceu na sexta feira Margarida Aquela mulher que morreu a facadas dentro de casa O cara entrou na casa no Bairro X e matou a mãe na frente das filhas Dália Nada justifica uma pessoa matar a outra mas a minha menina viu no Face que eles já vinham brigados que ela tinha postado que ia matar ele e ele tinha registrado ocorrência no mesmo dia mas ela escreveu que não importava papel nenhum que ia matar ele igual Quem coage também é coagido Profissional 1 Mas Dália isso que tu falou Tu acha que ela buscou a própria morte 4 Para manter o sigilo das participantes do grupo foram usados nomes fictícios para as 17 participantes estes foram escolhidos indicando flores com o intuito de diferenciar as mulheres durante a transcrição dos diálogos No trecho apresentado apenas três nomes são indicados Violeta Margarida e Dália Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 293 Dália Eu acho por mais que nada justificasse ele matar ela ela também ameaçava muito ele Eles terminavam e voltavam Margarida Nada justifica Por que nós mulheres somos ameaçadas andamos sempre com medo E até quando vai ser assim Esses dias eu tive que perder um compromisso que eu tinha por medo Violeta Eu também era muito ameaçada pelo meu exmarido e a gente tem esse medo essa insegurança em pensar que vai acontecer alguma coisa pra gente 15º grupo Na fala da participante Dália sobre quem coage também é coagido e ela também ameaçava muito ele podese inferir a respeito da maneira com que homens e mulheres se relacionam durante os episódios de violência O que vai ao encontro com o que Falke Wagner e Mosmann 2013 apontaram como uma bidirecionalidade da violência contra a mulher ou seja onde tanto o homem quanto a mulher tornamse agressores e vítimas mesmo havendo agressões graves de forma dessimétrica mas sempre mútua entre o casal As autoras ainda complementam que o padrão de interação desses cônjuges tolera uma série de atos violentos que não seriam aceitos se exercidos por pessoas estranhas à relação As descrições de Margarida e Violeta sobre os sentimentos gerados pela violência contra a mulher são corroboradas por Terra DOliveira e Schraiber 2015 que acrescentam a sensação de vergonha associada à violência vivida Entre os sentimentos descritos pelas autoras há o medo e o amor pelo agressor além da vergonha elementos esses que dificultam o progresso para a ruptura do ciclo da violência doméstica As falas das participantes Margarida e Violeta nomeiam as sensações de medo e de insegurança contidas na violência contra a mulher e em suas conotações parecem generalizar essas nomeações à condição feminina Sobre isso podese inferir que a insegurança e o temor são significações que descrevem não apenas sobre o feminicídio mas uma parcela do sentimento de ser mulher Ao papel da mulher estaria subentendido o julgo e obediência à sociedade masculina que lhes impõe sua vontade e o respeito pela força e por intermédio de ameaças como ambas descreveram a respeito da perseguição e das intimidações dos ex maridos No tocante ao papel da mulher dentro da sociedade e como este é transmitido e compreendido o artigo inspirase na compreensão de Bourdieu 2012 sobre a violência simbólica quando considera que esta se inscreve nas relações sociais na adoção de crenças dominantes e incorporadas através de esquemas de pensamentos e valores socioculturais das figuras de homens e mulheres Essa relação social é baseada na lógica da dominação que se reproduz de maneira natural suave quase invisível por se propagar através de vias simbólicas de comunicação e conhecimento Ou seja a diminuição da mulher é apresentada de forma Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 294 natural pela cultura produzindo relações hierarquizadas entre os gêneros embebidas pela violência simbólica Nesse sentido as notícias elencadas pelo texto corroboram não apenas o entendimento de Bourdieu 2012 mas também concretiza essa violência simbólica dirigida a figura da mulher além de reproduzir o pensamento dominante do gênero masculino sobre o feminino O que pode ser observado nas figuras a seguir Figura 1 Notícia sobre esfaqueamento Fonte Fonte Rádio Chapecó 2016 Figura 2 Notícia sobre morte Fonte Debona 2017 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 295 Figura 3 Notícia sobre prisão Fonte Debona 2017 Figura 4 notícia sobre ameaça Fonte Rádio Chapecó 2016 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 296 Figura 5 notícia sobre pedrada Fonte Rádio Chapecó 2016 Ao descreverem o caso de feminicídio como crime passional Figura 2 e mais um caso de violência doméstica Figura 4 a mídia suaviza a violência ocorrida transmitindo uma naturalização do crime cometido bem como reproduz e fortalece as engrenagens invisíveis da violência simbólica que neste caso se propaga pelos meios de comunicação e são incorporados pela sociedade como informações e conhecimento Além disso as expressões utilizadas para nomear o gênero masculino vítima marido suspeito contrapõemse com a linguagem utilizada na nomeação do gênero feminino exesposa mulher autora das lesões Sobre isso a jornalista Carolina Monteiro do site Marco Zero MARCO ZERO 2017 apontou que o desrespeito contra as mulheres é histórico principalmente na mídia tradicional e confirmou a existência de diferenças gritantes na forma como os gêneros são retratados Os homens são apresentados como ciumentos ou atormentados de amor mesmo em casos de traição abuso sexual agressões e assassinatos enquanto as mulheres são intituladas como adjetivos remetidos aos homens apresentadas como suas propriedades eou desqualificadas por seu comportamento como se merecessem a violência que sofreram sendo ainda muito comum que a mídia trate o feminicídio como um crime passional Vale ressaltar uma indicação feita pela advogada Tereza Mansi MARCO ZERO 2017 ao descrever que a mídia é regulada pelo Código de Ética da profissão e que isso dificulta o controle de eventuais excessos cometidos pela imprensa Com isso os veículos de comunicação Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 297 alegam seu direito à liberdade de expressão tornandose difícil penalizar alguma violação que for cometida nesse sentido Ainda sim Monteiro 2014 acredita que a mídia possa ser uma poderosa educadora informal contribuindo para o esclarecimento dos estereótipos de gênero e dos préconceitos culturais referentes a eles A autora ainda complementa que a mídia pode ser uma ferramenta acessível para a mudança da cultura que retroalimenta a violência contra a mulher a discriminação e a exclusão social que envolve os gêneros facilitando o acesso as políticas públicas conquistadas inclusive ampliando seu alcance CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente artigo buscou discutir brevemente sobre um achado encontrado durante a realização da dissertação de Mestrado da autora principal que envolveu a pesquisa dos significados da violência contra a mulher em narrativas de mulheres em situação de violência de profissionais especializados e nos discursos oficiais das políticas públicas de uma cidade do oeste catarinense Ao refletir sobre esse recorte este artigo buscou promover um debate sobre como um caso de feminicídio foi percebido por um grupo de mulheres em situação de violência e de como a mídia local noticia os casos de violência contra a mulher na cidade Ressaltase que este artigo não possuía a intenção de apresentar nenhum novo estudo apenas objetivouse em fomentar uma discussão sobre e atentar para uma reflexão que se faz necessária na sociedade a violência praticada contra as mulheres ao ponto extremo de episódios de feminicídios Por fim o artigo ainda destacou a forma como a mídia local noticia os casos de violências e agressões contra mulher eou conjugais justamente para que os meios de comunicação sejam uma ferramenta social para auxiliar as mudanças das representações de gênero na sociedade sob a possibilidade de contribuir para a não perpetuação da violência contra a mulher no Brasil REFERÊNCIAS BENETTI L SOLIVO E DEMARCO A BONAMIGO I S Violência e gênero no oeste catarinense sd Disponível em httpswwwunochapecoedubrstaticdataportaldownloads1564pdf Acesso em 19 nov 2018 BRASIL Ministério Nacional da Saúde Conselho Nacional de Saúde Resolução 19696 sobre pesquisa envolvendo seres humanos Bioética 42 1525 1996 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 298 BRASIL Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos LEI MARIA DA PENHA n 11340 de 7 de agosto de 2006 Disponível em httpswwwcairubrbibliotecaarquivosDireitoleimariapenhapdf Acesso em 1 dez 2018 BOURDIEU P A dominação masculina 11 ed Trad De Maria Helena Kühner Rio de Janeiro Bertrand Brasil 2012 Disponível em httpsedisciplinasuspbrpluginfilephp4300332modresourcecontent1BOURDIEU2C 20Pierre20A20dominaC3A7C3A3o20masculinapdf Acesso em 13 dez 2018 DEBONA D Crime passional é uma hipótese diz delegado sobre mulher morta achada dentro de armário Gaúcha ZH Segurança Publicado em 06 de julho de 2017 Disponível em httpsgauchazhclicrbscombrsegurancanoticia201707crimepassionaleuma hipotesedizdelegadosobremulherachadamortaemarmarioemchapeco9834466html Acessado em 25 agos 2019 DEBONA D Marido de mulher encontrada morta dentro de armário é preso em Chapecó Gaúcha ZH Segurança Publicado em 07 de julho de 2017 Disponível em httpsgauchazhclicrbscombrsegurancanoticia201707maridodemulherencontrada mortadentrodearmarioepresoemchapeco9835360html Acessado em 25 agos 2019 FALKE D WAGNER A MOSMANN C Estratégias de resolução de conflito e violência conjugal In FÉRESCARNEIRO T Org Casal e Família transmissão conflito e violência São Paulo Casa do Psicólogo 2013 p 159176 MARCO ZERO 2017 Qual é o papel da mídia na naturalização da violência contra a mulher Disponível em 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e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 299 RÁDIO Chapecó AM 1330 Homem ameaça mulher de morte e é detido Publicado em 05 de agosto de 2017 Disponível em httpswwwradiochapecocombr20190805homem ameacamulherdemorteeedetido Acessado em 25 agos 2019 RÁDIO Chapecó AM 1330 Mulher agride marido com pedrada Publicado em 21 de outubro de 2016 Disponível em httpswwwradiochapecocombr20161121mulher agridemaridocompedrada Acessado em 25 agos 2019 SAFFIOTI H I B Já se mete a colher em briga de marido e mulher São Paulo Perspec São Paulo v 13 n 4 p 8291 1999 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS010288391999000400009lngen nrmiso Acessado em 25 agos 2019 SCHRAIBER L B et al Violência vivida a dor que não tem nome Interface Botucatu Botucatu v 7 n 12 p 4154 fev 2003 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1414 32832003000100004lngennrmiso Acessado em 25 agos 2019 TERRA M F DOLIVEIRA A F P L SCHRAIBER L B Medo e vergonha como barreiras para superar a violência doméstica de gênero Athena Digital Revista de pensamiento e investigación social Sl v 15 n 3 p 109125 nov 2015 Disponible en httpsatheneadigitalnetarticleviewv15n3terradoliveiraschraiber Fecha de acceso 25 feb 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 300 VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES NO CAMPO A PARTIR DO MUNICÍPIO DE ANITÁPOLISSC UMA HISTÓRIA SILENCIADA Cristiane Floriano Rieg1 Carolina Orquiza Cherfem2 RESUMO O presente artigo é fruto de uma pesquisa que analisou as relações sociais de gênero que de alguma forma perpetuam os vários tipos de violência contra a mulher tendo como foco o município de AnitápolisSC A metodologia utilizada pautouse em revisão bibliográfica e entrevistas semiestruturadas na tentativa de conhecer a realidade acerca deste tema com ênfase na condição da Rede de Atendimento à mulher em situação de violência Com base nas entrevistas e na estrutura descrita na Lei Maria da Penha foi possível averiguar que esta Rede é precária no município uma vez que não conta com um Centro de Referência em Assistência Social CRAS para medidas de prevenção informação e acolhimento das vítimas tampouco conta com outros recursos de proteção necessários como uma delegacia especializada Notou se ainda a inexistência de uma integração profissional entre os setores de saúde segurança pública e assistência social no município Somado a isto foi possível analisar que os vários tipos de violência identificados vêm sendo silenciados pelas condições de vida das mulheres do campo onde não se entende violência psicológica ou patrimonial como formas de violência bem como onde o sistema familiar patriarcal impede um movimento de transgressão de situações de violência contra as mulheres PALAVRASCHAVE Violências Mulheres Campo Anitápolis INTRODUÇÃO Este artigo é fruto de uma pesquisa realizada para a elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso defendido no ano de 2019 no âmbito da Licenciatura em Educação do Campo na Universidade Federal de Santa Catarina UFSC A pesquisa buscou compreender as relações sociais de gênero que de alguma forma perpetuam os tipos de violência existentes no campo por meio da investigação da situação da violência contra a mulher no município de AnitápolisSC A permanência da máquina do patriarcado SAFIOTTI 2004 a divisão sexual do trabalho KERGOAT 2009 e as relações de gênero SCOTT 1989 LOURO 2014 que se pautam em desigualdades entre os sexos constroem uma relação de hierarquia dos homens 1 Professora da Educação Básica Licenciatura em Educação do Campo Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Escola do Campo e Agroecologia GECAUFSC crisflorianorieggmailcom 2 Professora Doutora do Curso de Licenciatura em Educação do Campo Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Educação Escola do Campo e Agroecologia GECAUFSC carolinacherfemufscbr Lattes httplattescnpqbr5433973477773892 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 301 sobre as mulheres que as tem como propriedade privada Tal cenário faz com que a violência contra a mulher se torne uma dura realidade que acomete inúmeras vítimas por todo o planeta Os desafios para superar tais condições que agridem o corpo e a alma das mulheres são ainda maiores quando tal situação se dá nas áreas rurais A literatura recente acerca do tema indica que as mulheres rurais são mais vulneráveis às circunstâncias que as violam como seres humanos pois se encontram afastadas de toda a assistência básica necessária para o enfrentamento desta situação LORENZONI 2007 DARON 2008 COSTA et al 2017 GROSSI 2015 Cabe destacar que a literatura em torno da violência contra a mulher do campo está em composição e não é um tema amplamente pesquisado pelo contrário o tema vem recentemente saindo de seu silenciamento o que justifica inclusive o título deste artigo e a relevância acadêmica e social da investigação realizada A metodologia utilizada para a realização da pesquisa é de natureza qualitativa pautada em revisão bibliográfica e entrevistas semiestruturadas Primeiramente buscouse realizar um levantamento na Rede de Apoio para as mulheres vítimas de violência por meio dos seguintes locais Centro de Referência em Assistência Social CRAS Secretaria de Saúde Hospital e Delegacia já que não existe uma delegacia da mulher no município Também foram realizadas entrevistas com moradoras de Anitápolis a fim de compreender a realidade da violência contra a mulher no campo bem como investigar como essa questão se apresenta no município O artigo que segue apresentará os principais resultados da pesquisa com ênfase em quatro aspectos i a Rede de Apoio e Assistência para as mulheres vítimas de violência ii a noção que o município apresenta em torno da Lei Maria da Penha iii o medo e o ciclo da violência iv as relações de gênero que perpetuam a violência no município pesquisado 1 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO CAMPO A REALIDADE DE ANITÁPOLIS O município de Anitápolis localizase geograficamente no Vale do Braço do Norte pertencendo à relação de municípios que fazem parte da Encosta da Serra Geral e politicamente é parte da região da Grande Florianópolis A cidade possui cerca de 3214 habitantes espalhados em um território de 5424 km² IBGE 2017 Com essa característica territorial muitos moradores vivem relativamente longe da área central do município dependendo de veículos próprios para fazer este deslocamento quando necessário No centro se concentra todo o aparato social como delegacia prefeitura serviços em geral mercado sindicato e hospital logo o deslocamento é necessário para acessar qualquer serviço público e social Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 302 Esta já é uma das primeiras questões a serem analisadas sobre a violência contra a mulher no campo visto que uma mulher que mora em regiões distantes dos centros urbanos e sofre de violência precisa se deslocar para buscar assistência Muitas vezes não há transporte público facilmente disponível entre essas áreas como é o caso de Anitápolis onde a única linha de ônibus existente no município é a linha escolar Somado a isto a maior parte das mulheres não dirige tendo que recorrer ao próprio agressor para se deslocar Sobre isso Costa et al 2017 descrevem A frequência com que as mulheres rurais em situação de violência procuram os serviços de apoio pode ser reduzida pela questão geográfica pela dificuldade de acesso ao transporte coletivo e pela dependência do companheiro COSTA et al 2017 p 5 Essa situação so contribui ainda mais para a invisibilidade do tema no campo Para mapear essa realidade foram realizadas oito entrevistas de carácter semiestruturado com perguntas a respeito das formas de violência contra a mulher questões sobre a Lei Maria da Penha entre outras que se fizeram pertinentes no contexto de cada entrevista O roteiro foi elaborado a partir do referencial teórico e literatura sobre o tema bem como a partir do conhecimento da própria pesquisadora sobre o seu município de origem de vida e de trabalho Na tabela abaixo constam as pessoas entrevistadas com numeração e com a razão social a qual elas pertencem Tabela 1 Nomeação e razão social das pessoas entrevistadas para a pesquisa Entrevistads Razão Social Entrevistad nº1 Assistência Social Entrevistad nº2 Secretaria da Saúde Entrevistad nº3 Enfermagem do Posto de Saúde Entrevistad nº4 Diretoria da escola estadualmorador Entrevistad nº5 Morador Entrevistad nº6 Delegacia Entrevistad nº7 Enfermagem do Hospital Entrevistad nº8 Diretoria do Hospital Orientador UFSC Pesquisador UFSC Fonte Elaborado pelas autoras 11 A rede de assistência à mulher vítima de violência Em um primeiro momento notouse a precariedade e fragilidade na integração da Rede de Assistência visto que o município não possui o CRAS interligado com serviços de Saúde Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 303 Especializados para o Atendimento dos casos de violência contra a mulher tampouco possui delegacia especializada no tema Casa Abrigo e outros aparatos necessários Como afirma entrevistad nº2 da secretaria de saúde nós temos integração sim ah isso sim mas com a delegacia não Nós e a assistente social estamos integradas mas ainda falta o CRAS O CRAS a gente fez na verdade um concurso para abrir o CRAS e nós não conseguimos O CRAS vai trabalhar muito nessa parte preventiva né Ali nós só temos uma assistência social uma assistente 20 horas ela não dá conta E ela faz mais gestão então essa outra equipe no CRAS vai ajudar muito isso nesse trabalho ENTREVISTAD nº2 Além de demonstrar a fragilidade já apontada notase a importância do CRAS para trabalhar na parte de acolhimento e orientação da mulher e na prevenção da violência assim como melhorar a assistência com a contratação de mais uma psicóloga e uma assistente social para que o serviço público tenha um aparato maior e mais específico para trabalhar os casos de violência doméstica e familiar de Anitápolis Nessa direção a fala d entrevistad nº8 responsável pelo Hospital São Sebastião de Anitápolis demonstra como essa integração se dá no município Na verdade a gente tem assim os contatos direto das pessoas Por exemplo se a gente precisa de alguma coisa da secretaria de saúde já encaminho direto com a fulana que eu tenho o contato entendesse Também propriamente com o pessoal da criança e do adolescente A gente também tem o contato direto se tem alguma suspeita alguma questão a gente já liga para elas ou pede para eles virem A gente faz uma reunião encaminha já nesse sentido né Então a única rede que a gente tem é essa Essa primeira que é a boca a boca a gente chama conversa liga A gente sempre tem esse costume e o veículo a gente na verdade vai utilizar o que tiver chama para conversar liga e avisa o que está acontecendo né ENTREVISTAD nº8 Portanto segundo a entrevista a integração entre os serviços de assistência social se dá de uma maneira informal o que só é viável em um município de pequeno porte onde as pessoas se conhecem Como afirmam Costa et al 2017 o vínculo estabelecido entre o profissional e a mulher rural pode gerar o apoio que muitas mulheres precisam para enfrentar a situação sócio familiar que vivem COSTA et al 2017 p 05 Contudo se por um lado o contato informal é benéfico para facilitar a comunicação e para chegar até a mulher vítima de violência de outro pode implicar em desconforto para a mulher A literatura indica que a mulher vítima de violência sente vergonha e não quer se expor para a comunidade Nestes casos a informalidade somada ao fato de todos se conhecerem pode atrapalhar sendo mais adequado um atendimento formal e especializado Nessa direção é importante que a mulher se sinta segura e amparada para conseguir expor a violência sofrida Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 304 O estabelecimento do diálogo guarda relação com as condições de estrutura física que o espaço disponibiliza tendo em vista que as formas de violência vividas pelas mulheres no campo estão atravessadas por experiências de insegurança e medo o que exige dos equipamentos públicos espaços sigilosos Não somente o espaço mas a possibilidade de estabelecimentos de vínculos entre profissionais e usuárias de modo que a mulher que acesse o serviço encontre no mesmo condições que possam subsidiar suas necessidades no que se refere ao enfrentamento e conhecimento das violações sofridas GROSSI et al 2015 p 09 Deste modo além de se sentirem seguras para falar com um profissional competente elas precisam de um espaço físico formal Em alguns casos a questão do aspecto pessoal se misturar com o profissional pode ser um agravante para que estas mulheres não procurem a assistência básica quando sofrem de violência Por isso é tão importante que a Rede de Apoio esteja devidamente estruturada com profissionais preparados para lidar com tais situações e em ambientes próprios para isso Como Anitápolis não apresenta a estrutura necessária a orientação é que as vítimas de violência procurem um parente ou amigo para serem acolhidas como revela entrevistad nº6 Como aqui a gente não tem essas casas de acolhimento a gente orienta essa vítima procura um parente ou um amigo né Nos primeiros dias até que seja efetivada todo o processo da Maria da Penha ENTREVISTAD nº6 A casa de acolhimento que entrevistad se refere são as casas abrigos que acolhem mulheres em situação de violência que tiveram de deixar suas residências Tal aparato é previsto na Lei Maria da Penha e faz parte da Rede de apoio à mulher vítima de violência Sobre os serviços prestados pela delegacia responsável pela segurança pública entrevistad garante que os policiais têm conhecimento a respeito da lei e estão devidamente preparados para agir e orientar as vítimas em situações de violência Orientador E o senhor acha que os policiais também tem esse conhecimento da lei para poder dar essas orientações Entrevistad Nº6 Tem Tanto é que tanto depois que essas medidas são homologadas pelo juiz nós recebemos tudo o que foi deferido né Se foi afastamento se foie a polícia militar também recebe um outro documento sendo informada também caso haja um descumprimento das medidas ENTREVISTAD nº6 entrevitad não cita conhecimentos específicos da lei O fato de as delegacias civil e militar receberem um documento com o resultado deferido pelo juiz do caso não significa que a mulher estará protegida e amparada caso o agressor a encontre novamente Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 305 Alguns estudos demonstram que a delegacia tem sido um dos impedimentos para as mulheres denunciarem as violências que sofrem uma vez que é um meio dominado por homens e estes muitas vezes perpetuam o próprio patriarcado e machismo ao lidarem com a complexidade dos casos Como afirma a literatura Os resultados mostram concordância com estudo que diz que os trabalhadores da polícia não estão comprometidos de capacitação para atender a violência contra a mulher e compreendêla como um fenômeno complexo A noção de que a violência se ancora nas desigualdades de gênero não está presente nas práticas dos trabalhadores da polícia ao contrário eles reforçam as iniquidades justificando que as mulheres são responsáveis pelas violências sofridas por não apresentarem um comportamento adequado COSTA et al 2017 p 6 Os estudos indicam que se a mulher não percebe uma relação amigável e de confiança não se sente segura para denunciar exatamente por isso a Lei aponta a necessidade de construção de Delegacias da Mulher especializadas no assunto Neste aspecto Costa et al 2017 apontam que devido a não compreensão das desigualdades de gênero os próprios profissionais da Rede de Assistência acabam reproduzindo ações que geram uma violência institucional e não a adesão da mulher aos serviços necessários para resolver sua situação Percebese portanto que quando se trata da violência contra a mulher do campo a questão da Rede de Assistência é um tema fundamental que acaba perpetuando o silenciamento dos casos existentes e o sofrimento das mulheres vítimas de violência 12 Conhecimento da Lei Maria da Penha Para além da ausência de uma Rede de Apoio no campo outro aspecto identificado pela literatura e também encontrado em Anitápolis é a falta de informações em torno da Lei Maria da Penha Segundo pesquisa realizada pelo Instituto DataSenado 2017 a maioria das pessoas entrevistadas possui pouco conhecimento sobre a Lei 77 e nenhum entrevistado citou elementos específicos da mesma tal como a descrição dos diversos tipos de violência ou os aparatos legais de prevenção e de proteção das mulheres vítimas de violência Tal questão pode ser observada no depoimento do entrevistad nº7 sobre a ausência desse conhecimento da Lei Maria da Penha para a orientação de possíveis vítimas Olha para falar a verdade a Lei Maria da Penha hoje eu não tenho contato não cheguei nem a ler essa Lei Maria da Penha Mas a orientação seria procurar pessoas especializadas para esse fim de violências para poder orientar A mesma questão foi perguntada em outras entrevistas realizadas a saber Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 306 É a Lei que foi criada em defesa da mulher né Que é o que ampara na verdade né ENTREVISTAD nº4 Pesquisador Mas o senhor acha que as pessoas conhecem a Lei Maria da Penha ou só ouviram falar Entrevistad nº 6 Conhecem conhecem é bem difundida né E a gente vê todo instante né Nos meios de comunicação As mulheres estão bem se acordando para isso ENTREVISTAD nº 6 De modo geral as pessoas sabem da existência da Lei e que ela trata das questões da violência contra a mulher mas desconhecem as suas especificidades Esta compreensão é importante pois caso uma mulher necessite de amparo ela sabe que existe uma Lei para recorrer Mas por outro lado se não possui um conhecimento mais aprofundado ela pode estar sofrendo de todos os outros tipos de violência não apenas a violência física e não saber que está vivendo uma situação que viola seus direitos humanos Considerase que o conhecimento da Lei é relevante devido a sua amplitude uma vez que ela esclarece os diferentes tipos de violência esclarece sobre o trabalho preventivo e de proteção da vítima bem como explica as formas de punição do agressor Além disso a Lei apresenta efeito criminalizador e punitivo sendo que a ação penal é incondicionada isto é não depende da vítima querer terminar o processo legal instaurado contra o agressor GROSSI et al 2015 p 8 Como descreve a Lei Maria da Penha em seu Capítulo I Art 5º configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte lesão sofrimento físico sexual ou psicologico e dano moral ou patrimonial BRASIL 2016 p 16 Além disto define como violência não apenas a violência física o que é inclusive considerada pelos órgãos internacionais como a sua grande contribuição e inovação mas também outras formas de violência as quais estão descritas no Capítulo II Art 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher entre outras I a violência física entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal II a violência psicológica entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações comportamentos crenças e decisões mediante ameaça constrangimento humilhação manipulação isolamento vigilância constante perseguição contumaz insulto chantagem ridicularização exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação III a violência sexual entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar a manter ou a participar de relação sexual não desejada mediante intimidação ameaça coação ou uso da força que a induza a comercializar ou a utilizar de qualquer modo a sua sexualidade que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio à gravidez ao aborto ou Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 307 à prostituição mediante coação chantagem suborno ou manipulação ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos IV a violência patrimonial entendida como qualquer conduta que configure retenção subtração destruição parcial ou total de seus objetos instrumentos de trabalho documentos pessoais bens valores e direitos ou recursos econômicos incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades V a violência moral entendida como qualquer conduta que configure calúnia difamação ou injúria BRASIL 2016 p 1617 Contudo apesar deste detalhamento nem sempre o que está previsto na Lei é o que acontece na prática sobretudo no meio rural em que as políticas públicas não são priorizadas e o acesso à informação é mais restrito A Lei prevê por exemplo uma rede de proteção para a mulher como abrigos centros de referência especializados da mulher Instituto Médico Legal entre outros que não estão disponíveis em localidades rurais GROSSI et al 2015 p 8 A próxima fala aponta este desconhecimento por parte da comunidade mas sugere um meio para falar sobre o assunto com as mulheres do município Orientador Você acha que aqui no município as mulheres têm conhecimento que existe uma Lei Entrevistad nº4 Que existe sim mas bem pouco do que é do que aconteceu Nesse trabalho do terceiro ano eles falaram bastante da Lei porque ela foi criada os alunos falaram mas em questão de comunidade assim eu acredito que muito pouco Deveria ser um tema de repente para o próximo dia da mulher né Que é feito todo ano e de repente a gente conseguiria abranger mais mulheres para ouvir ENTREVISTAD nº4 Um aspecto que entrevistad traz de importante é o papel da escola como um agente de disseminar o assunto colaborando com a conscientização prevenção e até mesmo na informação sobre os encaminhamentos necessários em uma situação de violência Tal ação é prevista na Lei Maria da Penha a qual destaca no artigo IX a necessidade de os currículos escolares de todos os níveis de ensino abordarem os conteudos relativos aos direitos humanos à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher BRASIL 2006 p 17 Sobre o assunto cabe destacar que a escola possui a tarefa árdua de conscientizar homens e mulheres na luta pelo respeito mútuo e pela valorização do ser humano pois ao mostrar que as diferenças entre o masculino e feminino são construções culturais de cada sociedade o conceito de gênero derruba uma velha compreensão de que homens e mulheres têm funções sociais diferentes já que são biologicamente ou naturalmente diferentes MOTA et al 2012 p 72 Desta forma se a escola abordar tais questões de gênero trabalharia para avançar nas questões da violência pois derrubaria preceitos construídos e pautados no regime patriarcal Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 308 em que homens e mulheres são desiguais em direitos e por isso legitima a divisão sexual do trabalho e das funções de cada qual perante a sociedade A fala d entrevistad também nos remete ao dia da mulher que é organizado todos os anos pela prefeitura municipal a partir de um tema diferente para um debate Este evento pode ser considerado como uma ação anual em prol de temas voltados para as mulheres como ressalta entrevistad nº1 No ano passado o ônibus lilás veio para cá teve palestras a mulherada pode tirar dúvida com advogado e tudo E esse ano era até para ter vindo também mas não deu certo né Foi feito o dia da mulher faz umas duas semanas dia municipal da mulher que é feito todo ano aqui Teve palestras também as mulheres que quiseram puderam tirar dúvidas também com o advogado com a palestrante tudo né ENTREVISTAD nº1 O dia da mulher realizado pela prefeitura aconteceu no dia 9 de outubro de 2018 e contou com a palestra da professora Elizete Lanzoni Alves que falou sobre o empoderamento feminino Por meio deste tema a professora dialogou sobre a violência psicológica e moral tratou de situações que acometem as mulheres e que não são tidas como violência tal como o ato do maridonamoradocompanheiro questionar a vestimenta da mulher Às vezes são comentários negativos e às vezes pode chegar à proibição de a mulher usar determinada peça de roupa Por meio de exemplos como este a professora explicou sobre uma série de atitudes e falas interpretadas como normal mas que também são formas de agredir as mulheres Desta forma temos exemplos positivos de como o município vem trabalhando questões pertinentes ao tema tanto no primeiro caso em que a escola trabalha a conscientização dos estudantes do ensino médio como neste segundo caso com uma palestra para a comunidade No entanto pensando em mais ações preventivas que poderiam ser colocadas em prática no município entrevistad nº1 expõe a dificuldade de abordagem do tema devido ao impacto que gera a pauta violência contra mulher e começar de outro modo né Até porque nesse ônibus lilás que teve que na verdade a pauta foi realmente a violência da mulher teve muito pouca participação tanto pela mulher sentir vergonha da parte dela ou talvez pelo companheiro não querer deixar ela ver né Então eu acho que a gente teria que começar aos poucos e ir agregando esses temas assim de violência ENTREVISTAD nº1 A entrevistada comentou sobre a necessidade de buscar os melhores meios para abordar este tema na comunidade buscando formas em que os homens não vejam essas ações como uma ameaça à sua masculinidade bem como buscando que e as mulheres se sintam mais seguras para participar das atividades ENTREVISTAD nº1 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 309 Notase portanto de um lado o desconhecimento da Lei Maria da Penha em Anitápolis e de todas as formas de violência que as mulheres podem estar submetidas Esse desconhecimento tanto das pessoas que trabalham em setores fundamentais como das próprias mulheres acaba contribuindo para a reprodução de um ciclo de violência no campo que não tem fim De outro lado a divulgação da Lei pelos setores públicos movimentos sociais e canais de comunicação contribui para que as pessoas saibam da existência de uma proteção para as mulheres vítimas de violência Aos poucos o tema vem ganhando cada vez mais visibilidade em Anitápolis 13 O medo e o ciclo de violências Reportandonos ao título deste trabalho que se refere ao silenciamento do debate de gênero e da violência contra a mulher do campo a fala abaixo expressa a questão do medo que as mulheres têm em fazer os debates a respeito do tema assim como de denunciar os agressores A fala também aborda as questões de dependência das mulheres e destaca as dificuldades que as mulheres do campo enfrentam para sair de uma situação de violência Eu na verdade acho o tema importante apesar de que não se fala tanto nisso Assim enquanto moradora daqui eu penso que isso acontece bastante não só no interior pelo interior mas aqui no centro também mas as mulheres não tem essa prática da denúncia por vários motivos né Por medo do parceiro por ir lá denunciar e saber que não vai mais ter ele ou de apanhar ou de começar de novo ou pelos filhos ou pela família ou pela sociedade Enfim cada uma deve ter o seu motivo que deveria ser mais fácil deveria enfrentar e ir a frente disso mas eu ainda penso que isso é um trabalho há muito longo prazo principalmente essas mulheres que são mais velhas Assim a nossa geração já é mais fácil e nem é tanto imagina para essas mulheres que viveram a vida inteira na roça não estudaram a maioria delas que tá principalmente no interior não trabalha como que elas vão enfrentar uma situação dessas ah eu vou lá vou denunciar o meu marido e daí o que vai acontecer comigo depois o que que eu vou fazer ah eu tenho um filho para criar eu não estudei eu não consigo um emprego então eu penso que é um tema que a gente deveria trabalhar e falar mais sobre ele né Até para que as pessoas se sintam seguras assim de denunciar e de não ficar se sujeitando a uma vida dessas até sabe Deus quando né ENTREVISTAD nº4 Tal como encontrado na literatura acerca do tema da violência contra as mulheres entrevistad cita a relação entre a prática da denúncia e as condições que as mulheres se encontram Ela destaca os sentimentos de amor e afeto pelo agressor assim como a dependência financeira dificultando a vítima de tomar a decisão por denunciar Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 310 Estes aspectos de dependência e afeto relacionados descrevem algumas das dificuldades que levam muitas mulheres a se manterem nestas situações conhecido como ciclo da violência apos um período de lua de mel quando o casal se entende às mil maravilhas por alguma circunstância ciúme sentimento de posse associado ou não a situação econômica alcoolismo por exemplo começa a haver tensão Qualquer situação que desagrade o homem é motivo de reprimendas e após espancamentos sempre um crescendo em relação ao episódio anterior Vem a fase da tensão que vai se acumulando e se manifestando por meio de atritos cheios de insultos e ameaças muitas vezes recíprocos Em seguida vem a fase da agressão ou episódio violento com uma forte descarga descontrolada de toda aquela tensão acumulada O agressor atinge a vítima fisicamente com empurrões socos tapas e pontapés ou às vezes usa objetos como pau ferro e outros Depois disso ainda há um sentimento de culpa e vem a fase da reconciliação em que o agressor pede perdão e promete mudar de comportamento diz que não vai fazer mais ou finge que não houve nada mas fica mais carinhoso bonzinho traz presente fazendo a mulher acreditar que aquilo não vai mais acontecer LORENZONI 2007 p 10 Observase que esse ciclo da violência em que depois da agressão o agressor se mostra arrependido e pede perdão a vítima encontra uma esperança de que a violência deixe de acontecer e o casal passe a vivenciar a fase de reconciliação por tempo permanente Porém a violência volta a acontecer e a mulher que tem sentimentos e afeto não sabe como se movimentar Depois da nova agressão novamente vem o tempo de reconciliação e esse ciclo vai dificultando o despertar da vítima para se livrar desta situação Tal contexto se agrava em situações de dependência financeira em que a mulher não tem autonomia para administrar a sua vida pessoal ou não possui muitos anos de estudos realidade ainda verificada em muitos lares no meio rural Como apontam os estudos a mulher pode até ter a intenção e vontade de denunciar o agressor devido o sentimento de raiva a mágoa oue pela gravidade dos ferimentos físicos mas devido uma série de dificuldades como a falta de integração da Rede de apoio o despreparo dos profissionais da Rede a dificuldade de mobilidade pública etc ela acaba por não denunciar o agressor e permanecer na situação de violência COSTA et al 2017 Outro fator decisivo é o social em que a mulher teme ser julgada e culpabilizada pela situação sofrida o que tem um peso considerado nas áreas rurais devido às práticas históricas de fofocas e difamações bem como pelos ambientes pequenos e restritos em que todas as pessoas se conhecem De acordo com Daron 2008 inumeros profissionais de áreas estratégicas para o acolhimento e atendimento à mulher em situação de violência acabam Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 311 muitas vezes culpabilizando a própria mulher pela forma como agem em função da força hegemônica da discriminação de gênero naturalizada na sociedade DARON 2008 p 16 O senso comum habitualmente culpa a mulher pela violência da qual ela foi vítima Se o marido bateu nela é porque ela mereceu se um homem mata uma mulher é comum ouvir discursos se perguntando o que ela fez para o homem chegar a esse extremo Isso vem de uma construção social arraigada legitimada pelo regime patriarcal sendo muitas vezes a propria casa o espaço privilegiado para a violência contra a mulher GROSSI et al 2015 p 10 Percebese que as situações citadas pel entrevistad nº4 acometem tanto mulheres na cidade quanto no campo mas a pesquisa indicou que no campo as violências que sofrem as mulheres possuem outros agravantes muitas vezes não identificados nas cidades como à distância para buscar uma ajuda a dependência financeira do agressor o fato de não dirigir e não ter transporte público para chegar até uma Rede de apoio a visão de senso comum que envolve o julgamento das pessoas a vergonha sentida em locais em que todo mundo se conhece a falta de assistência básica no município que não se possui uma Rede integrada eficiente não possui casa de abrigo entre tantos outros fatores 14 Relações de gênero e as formas de violências Sobre a situação das mulheres do município pesquisado destacase o relato d entrevistad nº5 Pesquisador mas você acredita realmente que pelo fato de não ter denúncias em Anitápolis não existe nenhum caso de marido que bate na mulher Entrevistad nº5 Existe mas só que eu não sei quem Mas eu sei que tem bastante Pesquisador E esse dizer eu sei que tem é de uma intuição ou de uma experiência Entrevistad nº5 Tá eu sei que tem bastante Tá então eu sei por que têm vários casos né um caso o outro é causo diferente mas tem e mata mulher bate na mulher né E trai a mulher e briga Ah é uma coisa muito séria e isso eu sei que tem aí na praça que a gente fica escutando ouvindo às vezes quando enquanto eu tava com meu marido no hospital a gente escutava comentários Às vezes a gente via o aquela que fez isso e isso ah eu digo meu Deus pra que é porque a gente não faz então a gente não quer se envolver ENTREVISTAD nº5 A visão d entrevistad é de que a violência contra a mulher existe em Anitápolis mas é um problema do homem e da mulher e deve ser resolvido entre as pessoas diretamente envolvidas Porém os comentários e fofocas a respeito da situação de violência existem e se espalham por todo o município de boca em boca Não foram encontrados muitos casos de Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 312 denúncias formais na delegacia mas no cotidiano do município as pessoas sabem de alguns casos Os comentários geralmente vêm acompanhados de uma desconfiança da mulher Essa situação é exposta por Grossi 2015 ao discorrer sobre a perpetuação do patriarcado pelas próprias mulheres de forma que elas reproduzem ideais machistas quando existem situações em que outras mulheres não se submetem ao modelo patriarcal de vida Como afirma a autora é nesse contexto que a violência física passa a ser legitimada e exercida não só pelo homem mas pelas outras mulheres que conservam tais valores ao ponto de exercerem violência psicologica GROSSI et al 2015 p 10 Tal situação foi revelada nas entrevistas realizadas Nessa direção entrevistad nº5 fala também sobre o casamento e sobre as crenças pautadas nas relações sociais de gênero ou seja na construção social do que é ser homem e do que é ser mulher Porque homem é tudo igual não tem um que é diferente do outro Tem assim um tem um vício outro tem outro outro gosta de sair de casa outro não gosta outro gosta de beber outro gosta de jogar outro gosta daquilo Então é esse tipo que às vezes as pessoas não entendem Às vezes eu falo para minhas filhas oiá vocês tem um marido visto o da mãe que era o pai de vocês ele queria sair ele queria tá livre né Agora e eu tava livre Eu tinha que cuidar da mãe dele que nem eu cuidei da minha sogra 17 anos depois mesmo que ele faleceu eu cuidei até que ela faleceu dentro da minha casa ENTREVISTAD nº5 Segundo o seu relato ela sempre esteve presa às tarefas de casa de cuidado dos filhos e até mesmo de sua sogra enquanto seu marido queria sair beber jogar ou como nas palavras d entrevistd estar livre Livre dos afazeres domésticos de suas responsabilidades de cuidado com as filhas enfim livre da divisão do trabalho doméstico e de cuidado No entanto entrevistad acredita que tinha que manter o casamento independente das desigualdades vivenciadas Ao mesmo tempo ela aconselha as filhas a suportarem o casamento já que os homens são todos iguais De acordo com Daron 2008 a mulher foi educada para ser responsável e manter a honra da família por isso é obrigada a aguentar o casamento DARON 2008 p 29 Durante a entrevista observouse diferentes situações de violência psicológica e subjetiva que não são percebidas pela entrevistada o que é comum na situação de muitas mulheres do campo Para que o homem consiga a sua liberdade as mulheres são submetidas a uma série de humilhações e obrigações não entendidas como violência Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 313 Como acima descrito a entrevistada entende que os homens são todos iguais e que cabe à mulher aceitar e cumprir com suas responsabilidades seguindo a sua obrigação patriarcal Essas questões são explicitadas por Daron 2008 A cultura masculinopatriarcal historicamente construída impõe determinados papéis para as mulheres e outros papéis para os homens e assim justificase ainda a divisão sexual e intelectual do trabalho As mulheres passam a ocupar funções na área de serviços e de representação cujos espaços de decisão ainda prevalecem como lógica prioritária dos homens eou do poder patriarcal e de dominação DARON 2008 p 12 Nesta lógica a vida e os desejos da mulher encontramse em segundo plano cumprindo o seu dever de cuidar da casa dos filhos da alimentação da higiene e de ajudar o companheiro no campo COSTA et al 2017 p 2 No outro extremo o homem detém o controle do trabalho organiza e administra a produção familiar e financeira o que o coloca em uma posição superior e de poder na família ibid Cabe destacar que historicamente o trabalho da mulher do campo foi invisibilizado sendo interpretado como ajuda ou como secundário mesmo quando a sua principal dedicação e única fonte de economia provém da agricultura Conforme descreve Paulilo 2016 os movimentos sociais das mulheres camponesas iniciaram a luta para que as esposas fossem consideradas produtoras rurais e não do lar Ou seja buscaram a valorização do trabalho da mulher que era invisibilizado no campo não sendo consideradas como profissionais da agricultura Nesse contexto lutaram por pautas como direito a aposentadoria e salário e pelos mesmos direitos trabalhistas dos homens trabalhadores rurais Com o passar do tempo as mulheres tiveram que ampliar as suas reivindicações iniciais para o âmbito mais amplo da categoria de gênero na medida em que organizadas elas observaram que a opressão que sofriam estava pautada em toda a base do patriarcado no campo Elas não possuíam por exemplo o acesso à terra conquistado ou pelo casamento ou pela herança No primeiro caso elas eram invisibilizadas como agricultoras sem ter autonomia nas terras do marido no segundo caso acabavam vendendo suas terras para os irmãos ou dividindo as com os maridos o que novamente as levavam para o primeiro caso Deste modo as mulheres camponesas passaram a questionar o proprio conceito de agricultura familiar se a terra é da família tratase de uma decisão a ser resolvida no âmbito privado da família contudo essa família é patriarcal o que significa que é uma família que garante os direitos de dominação masculina Logo tratavase de questões a serem resolvidas no amplo aspecto da estrutura social dominante masculina questionada pelo conceito de gênero PAULILO 2016 Como explica Lorenzoni 2007 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 314 Se o patriarcado é o sistema que cria justifica e legitima a opressão e exploração das mulheres a agricultura familiar ao se organizar a partir desse sistema reproduz e perpetua tal exploração e opressão Isto vem demonstrar que o patriarcado continua criando justificando e legitimando a opressão e exploração das mulheres camponesa O trabalho da mulher camponesa além de ser pouco valorizado é um trabalho pesado penoso e difícil Por exemplo quando a produção de leite é pequena normalmente para o consumo trabalhada de forma manual é tarefa da mulher Pois o que sobra para a venda é pouca coisa Mas quando a produção de leite aumenta se usa a tecnologia o leite é tirado com a ordenhadeira na maioria das vezes o homem assume este trabalho e a comercialização do leite Ao mesmo tempo ele recebe e controla o dinheiro Mais uma vez prevalece à cultura de que a mulher fica com as coisas pequenas A partir do momento em que a atividade cresce o homem passa a coordenar LORENZONI 2007 p 88 Todas essas questões no entanto são reforçadas pelo modelo patriarcal de agricultura familiar e pelo casamento compreendido pela entrevistad nº5 como sagrado seguindo um ideal religioso em que o fim de um casamento é algo inaceitável Algumas mulheres tendem a recorrer à fé religiosa e ao silenciamento para suportar as diversas formas de violências que vivem Então tem que ter fé não adianta dizer assim ai eu não posso viver com aquele casamento porque aquilo não dá não sei o que porque antigamente as pessoas ficavam caladas hoje elas não ficam caladas hoje elas são estouradas Como dizem a mulher tem direito mesma coisa que o homem Então aí já fecha o pau Não são que nem eu Eu já fico quieta se é para tá brigando fico quieta depois passa Ou senta e conversa né Porque eu acho assim um casal ele tem que ter muita conversa eles tem que sentar e conversar e não começar brigar eu acho Ou que nem o meu marido tomava e aí brigava e eu ficava quieta Quando ele tava são aí a gente tinha conversa sério às vezes ele chegava a chorar e se ajoelhar na frente mas não adiantava pois pegava aquele vício pegava beber de novo até que acabou caindo da ponte né e lá foi a morte dele Muita coisa acontece às vezes o ciúme a briga e a bebida começa a violência Começa querer se matar por causa de uma conversinha às vezes se destrói a vida e podia sentar ali e conversar né ENTREVISTAD nº5 Em sua fala a entrevistada aponta que por falta de conversa as violências acontecem A sua visão demonstra que violências podem ser dialogadas mas ela mesma relata que o marido bebia e tinha ciúmes e brigava com ela mas ela ficava calada e esperava até que ele estivesse são para conversar Ele chegava a chorar de arrependimento mas depois voltava a beber e fazia tudo de novo demonstrando que o diálogo não era superior ao vício que o fazia seguir violento Tanto na história relatada quanto na fala da assistente social a bebida alcoólica tem sido um agravante na situação de violência no campo Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 315 Uma das situações mais comuns é a violência exercida pelo companheiro em estado alcoolizado ou sob efeito de drogas ou entorpecentes A maioria dos agressores e mesmo das mulheres afirma que a agressão se deu como um efeito da droga o que não deixa de ser verdade No entanto acaba se escondendo o fato de a cultura machista e patriarcal predominante é que permite ou incentiva a agressão na medida em que sua expressão se dá pela violência contra a mulher e não contra um amigo colega ou companheiro com quem compartilha o consumo do álcool ou outras drogas DARON 2008 p16 Outro aspecto a ser destacado da entrevista é que a entrevistada não se via envolta a uma situação de violência já que ela não apanhava de seu marido Novamente identificouse que as diferentes formas de violências vivenciadas não são reconhecidas por não chegarem à violência física A humilhação a privação do ir e vir por conta das tarefas de cuidado o controle de suas ações mediante o constrangimento o isolamento entre outras formas de violência psicológica sofrida por conta do vício do marido não são reconhecidas como violência Sim isso sim eu já fui eu já fui humilhada já fui Ai meu Deus do céu Envergonhada meu Deus do céu quantas coisas a gente passou na vida né O primeiro marido mesmo meu Deus tinha ciúmes né Ciúmes faz coisas vê coisa que às vezes não existe mas é isso que eles coloca Isso aí foi uma coisa que eu sofri e bastante Tomava e por fim a gente não saía de casa Tinha que ficar em casa cuidar dos filhos Passar trabalho que nem eu passei bastante trabalho na minha vida eu passei ENTREVISTAD nº5 Segundo entrevistad2 nº1 da assistente social a violência que mais acomete as mulheres em Anitápolis é realmente a psicologica Maioria das vezes violência psicologica e algumas vezes violência física também mas a maioria das vezes é psicologica ENTREVISTAD nº1 Deste modo uma questão que foi predominante na pesquisa é que as diferentes formas de violência são pouco difundidas no campo As mulheres podem estar sofrendo a violência patrimonial e o assédio sexual e não perceberem que estão tendo seus direitos violados dentro de suas próprias casas sobre tutela de uma cultura machista No caso de Anitápolis o silenciamento da violência psicológica é quebrado no atendimento das mulheres pela Assistência Social As mulheres buscam a assistência para cuidar de diversos serviços sociais como o beneficio do programa Bolsa Família e outros auxílios financeiros Por estar mais próxima destes casos e tendo a sensibilidade de perceber algumas situações de violência a profissional tenta fazer um acompanhamento nos casos identificados buscando encaminhar as mulheres para a psicóloga Orientador E que casos são esses Como é que elas chegam te procuram Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 316 Entrevistad nº1 Geralmente elas não tem a violência psicológica como violência Para elas é só violência física elas chegam na verdade para reclamar da situação habitacional da família né Aí elas começam a falar da situação do marido Geralmente o marido bebe né Acaba sobrando tudo para ela em casa tudo para fazer filhos comida casa tudo e quando a gente pode a gente encaminha pra psicóloga Aí a gente continua fazendo acompanhamento com a família ENTREVISTAD nº1 Como evidenciado na investigação realizada as mulheres do campo vivenciam várias formas de violência caladas e entendem que precisam enfrentar essa realidade por ser a sua obrigação no casamento Tal situação é reflexo da construção social de gênero e do patriarcado ainda muito presente no campo que culpabiliza as mulheres e justifica a violência dos homens perpetuando um ciclo difícil de romper enquanto essas questões não ganharem voz tal como tentou fazer esta pesquisa ao provocar este debate no município de Anitápolis CONSIDERAÇÕES FINAIS A pesquisa narrada neste artigo teve por objetivo analisar as relações sociais de gênero que perpetuam as violências contra as mulheres assim como averiguar esta realidade no município de AnitápolisSC Uma vez que o município em questão é considerado camporural o tema central deste trabalho se estabeleceu a partir da literatura em torno do silenciamento da violência contra as mulheres no campo Averiguouse que o regime patriarcal é predominante nas famílias do campo e na agricultura familiar o que se agrava no modo de produção capitalista onde o homem desempenha papel produtivo fundamental ao capital e à mulher cabe o papel de submissa Submissa ao homem submissa ao patriarcado submissa ao capitalismo ao uso de agrotóxicos onde seu dever sagrado é para com a família e o matrimônio Tal pensamento ainda é predominante nas relações de gênero presentes no campo Especificamente como resultados da pesquisa obtevese a confirmação da presença de diversos tipos de violência contra as mulheres em Anitápolis Contudo as mulheres acabam naturalizando os comportamentos violadores e não se dão conta de que estão sofrendo abusos e que são vítimas de diversos tipos de violência Deste modo foi possível verificar que os vários tipos de violência identificados vêm sendo silenciados pelas condições de vida das mulheres do campo onde não se entende violência psicológica moral ou patrimonial como formas de violência bem como onde o sistema familiar patriarcal impede um movimento de transgressão de situações de violência contra as mulheres Concluise que estas violências sofridas são silenciadas seja pelo sistema patriarcal seja pela falta de informação ou até mesmo pela dificuldade que as mulheres encontram para Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 317 denunciar pela vergonha que sentem pelo medo de sofrer nas mãos do agressor novamente ou medo de ficar mal falada e do julgamento dos outros Há ainda a falta de amparo seja da família seja dos órgãos competentes uma vez que a pesquisa mostrou que a Rede de Assistência à mulher em situação de violência não funciona corretamente no município sobretudo considerando as necessárias medidas de prevenção punição do agressor e proteção da mulher vítima de violência A pesquisa elaborada verificou a precariedade desta Rede na medida em que o município não conta com um Centro de Referência em Assistência Social CRAS para medidas de prevenção informação e acolhimento das vítimas nem com outros recursos de proteção necessários como uma delegacia especializada Notouse que não existe uma integração profissional formalizada entre os setores de saúde segurança pública e assistência social no município Por fim cabe destacar que esta pesquisa foi apenas uma amostra sobre a Rede de Atendimento e a percepção de um município de pequeno porte considerado rural sobre a temática da violência contra a mulher do campo O trabalho realizado revelou a carência de estudos sobre a temática que ainda é pouco conhecida no meio acadêmico Pretendese avançar nesta pesquisa a fim de investigar a disponibilização de estrutura de atendimento e acolhimento às mulheres vítimas de violência em outras regiões rurais do Estado de Santa Catarina A pesquisa deverá ser aprofundada devido a sua relevância e contribuições para ampliar o debate científico acerca da violência silenciada contra a mulher do campo REFERÊNCIAS ANITÁPOLIS Prefeitura Municipal de Dados municipais Disponível em httpswwwanitapolisscgovbr Acesso em 05 de nov de 2018 BRASIL Instituto de Pesquisa Datasenado Senado Federal Relatório de violência doméstica e familiar contra a mulher 2017 Disponível em httpswww12senadolegbrinstitucionaldatasenadoarquivosaumentanumerode mulheresquedeclaramtersofridoviolencia Acesso em 17 dez 2018 BRASIL Lei Maria da Penha nº 113402006 de 7 de agosto de 2006 Brasília 2006 COSTA Marta Cocco da et al Mulheres rurais e situações de violência fatores que limitam o acesso e a acessibilidade à rede de atenção à saúde Revista Gaúcha de Enfermagem online 2017 vol38 n2 DARON Vanderléia Laodete Pulga Um grito lilás cartografia da violência às mulheres do campo e da floresta 2008 Disponível em httpswwwgooglecomurlsatsourcewebrctjurlhttpwwwspmgovbrarquivos Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 318 diversosenfrentamentoaviolenciacontraasmulheresdocampoedaflorestadocumentos Acesso em 17 de dezembro de 2018 GROSSI Patricia Krieger et al A rede de proteção à mulher em situação de violência doméstica avanços e desafios Athenea Digital 2008 n 14 IBGE 2017 Disponível em httpscidadesibgegovbrbrasilscanitapolispanorama Acesso em 13 de agosto de 2018 KERGOAT Daniele Divisão sexual do trabalho e relações sociais de sexo In Dicionário Crítico do Feminismo HIRATA Helena et al orgs São Paulo editora UNESP 2009 LORENZONI Carmen Violência nas relações de gênero e classe uma interpretação a partir das mulheres camponesas do rio grande do sul Juiz de fora Libertas 2007 MOTA Maria Eleusa da A questão de gênero no MST e a educação do campo Disponível em httpwwwseerufubrindexphpreveducpoparticleview20288 Acesso em 17 de dezembro de 2018 PAULILO Maria Ignês Mulheres Rurais Quatro décadas de diálogos Editora UFSC Florianopolis 2016 SAFFIOTI Heleieth Iara Bongiovani Gênero patriarcado violência São Paulo editora Fundação Perseu Abramo 2004 SCOTT Joan Gênero uma categoria útil para análise histórica New York Columbia University Press 1989 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 319 AS LUTAS DO MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS DO BRASIL NO ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA MULHERES RURAIS Daiane dos Santos Possamai1 Giovana Ilka Jacinto Salvaro2 RESUMO Formas diversas de opressões estão ainda presentes no meio rural brasileiro produzindo desigualdades de classe gênero e raça Neste cenário as mulheres do campo são atingidas por muitas violências mas também podem articular resistências O Movimento de Mulheres Camponesas MMC do Brasil emerge nessa conjuntura visando alcançar por meio da luta organizada mudanças profundas na sociedade Assim o objetivo do presente trabalho consiste em apresentar uma análise sobre a atuação do Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil nas lutas de enfrentamento à violência de gênero contra mulheres rurais Tratase de 3uma pesquisa de natureza dedutiva teórica e qualitativa realizada a partir do diálogo com outros estudos produzidos sobre a temática além da análise de materiais elaborados e publicados pelo MMC É possível observar que o movimento articula suas lutas estrategicamente a partir de distintas formas de ação dialogando e tensionando as estruturas estatais e impulsionando a efetivação do direito humano das mulheres à vida sem violência Inicialmente é apresentado o Movimento de Mulheres Camponesas a partir de sua construção histórica formas de organização e bandeiras de luta Em um segundo momento são analisadas as estratégias articuladas pelo movimento nas lutas de enfrentamento à violência de gênero contra as mulheres rurais Palavraschave Gênero Mulheres camponesas Violência INTRODUÇÃO A sociedade brasileira contemporânea se estrutura sobre relações desiguais no que se refere a categorias como gênero raça e classe Tais relações interferem diretamente na vida das mulheres fazendo com que sofram ao longo de suas trajetórias formas diversas de opressões É no interior de sociedades desiguais que surge a violência de gênero contra as mulheres um grande problema presente ainda na atualidade No entanto a história dos movimentos feministas brasileiros demonstra que as mulheres nem sempre apresentam um comportamento passivo frente às opressões mas pelo contrário possuem capacidade para resistir e lutar pela construção de relações sociais igualitárias 1Graduanda em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense UNESC Email daianespossamaioutlookcom Lattes httplattescnpqbr6309294395485386 2Doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Professora na Universidade do Extremo Sul Catarinense Email giovanasalvarounescnet Lattes httplattescnpqbr3804218623310980 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 320 De fato as lutas feministas estão em constante diálogo com as instâncias estatais influenciando a criação e efetivação de direitos como ocorreu na oportunidade da criação da Lei 113402006 BRASIL 2006 popularmente conhecida como Lei Maria da Penha um marco no ordenamento jurídico brasileiro no que se refere ao enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres As lutas feministas não influenciaram apenas o ordenamento jurídico brasileiro e remontam a um processo de internacionalização dos direitos das mulheres com destaque para a criação da Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher CEDAW em 1979 e em âmbito regional para a criação da Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher conhecida como Convenção de Belém do Pará em 1994 Todavia ao falar de feminismo é imprescindível o uso do plural haja vista que as diferenças existentes entre as mulheres precisam ser consideradas vez que muitas não são afetadas apenas pela opressão proveniente da cultura patriarcal mas também pelo racismo pela desigualdade de classe e outras formas de opressão Neste cenário em 2004 foi criado o Movimento de Mulheres Camponesas MMC do Brasil formado por movimentos autônomos de mulheres rurais iniciados ainda na década de 1980 em diversos estados brasileiros O MMC se declara feminista e constrói seu próprio modo de atuação feminista através do Feminismo Camponês e Popular Podese dizer que esse feminismo possui lutas próprias o que o difere de outros feminismos Destacase o fato de ser profundamente produzido pelo trabalho desenvolvido por suas militantes no meio rural Neste sentido surge a luta contra o agronegócio os latifúndios e a destruição do meio ambiente Em contrapartida o movimento luta em defesa da agroecologia da soberania e segurança alimentar da preservação da cultura e identidade campesina e da participação política das mulheres do campo em movimentos sociais partidos e sindicatos MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2018a Como explica Maria Ignez Paulilo o feminismo do MMC parte da sua vivência cotidiana criticando principalmente as opressões de gênero e classe Por suas características não pode ser interpretado como superior ou inferior aos feminismos urbanos apenas como diferente PAULILO 2016 A luta pela superação da violência de gênero contra as mulheres rurais portanto é uma das bandeiras do MMC Para entender essa luta é preciso falar sobre gênero que para Joan Scott 1995 p 86 pode ser conceituado da seguinte forma O núcleo da definição repousa numa conexão integral entre duas proposições 1 o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 321 diferenças percebidas entre os sexos e 2 o gênero é uma forma primária de dar significado às relações de poder De acordo com Scott 1995 gênero e poder se relacionam nas sociedades e isso pode gerar desigualdade entre mulheres e homens A violência de gênero é fruto dessa desigualdade construída e é um conceito amplo podendo incluir várias formas de violências inclusive a violência contra a mulher SAFFIOTI 2001 Em relação à violência contra a mulher é importante destacar as cinco formas de violência previstas na Lei 1134006 moral psicológica sexual patrimonial e física BRASIL 2006 Além dessas o MMC aborda o conceito de violência do agronegócio denunciando que as mulheres do campo são as mais atingidas por esse modo de produção que destrói a cultura e a identidade dos povos camponeses causa danos à saúde devido ao uso de agrotóxicos precariza o trabalho e leva muitas pessoas ao êxodo rural em busca de melhores condições de vida ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE MULHERES CAMPONESAS 2008 Neste cenário as mulheres camponesas são atingidas por variados tipos de violências Algumas características podem dificultar a denúncia das violências sofridas como a dependência econômica e a distância dos centros urbanos onde geralmente estão os órgãos públicos que poderiam ajudar Ademais o machismo ainda está muito presente no meio rural e isso pode levar à naturalização de violências tornandose outro obstáculo para as mulheres em situação de violência que vivem no campo MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2014a Assim para compreender a violência de gênero contra as mulheres do campo é necessário ponderar sobre as particularidades que envolvem o ser mulher no contexto da ruralidade Por isso o movimento parte da realidade das suas militantes para buscar a efetivação do direito humano das mulheres à vida sem violência Diante dessa compreensão surge o problema o MMC contribui com as lutas de enfrentamento à violência de gênero contra mulheres rurais Assim o objetivo do presente trabalho reside em analisar a atuação do Movimento de Mulheres Camponesas no enfrentamento à violência de gênero contra as mulheres que vivem em contextos rurais O estudo integra um trabalho de conclusão de curso de Direito defendido em julho de 2019 e sua importância reside em evidenciar as particularidades da violência de gênero sofrida pelas mulheres do campo bem como demonstrar a força das mesmas a partir da luta organizada Tratase de uma pesquisa de natureza dedutiva teórica e qualitativa realizada a partir do diálogo com outros estudos produzidos sobre a temática além da análise de materiais elaborados e publicados pelo MMC Visando atingir o objetivo proposto no primeiro tópico será observada a construção histórica do Movimento de Mulheres Camponesas bem como sua Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 322 organização e principais bandeiras de luta e em seguida serão analisadas as estratégias de enfrentamento à violência de gênero contra as mulheres rurais que partem do MMC 1 O MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS DO BRASIL A desigualdade de classes está presente no meio rural brasileiro sendo responsável por grande parte do sofrimento de homens e mulheres que vivem em contextos rurais No entanto além da opressão de classe as mulheres experimentam a discriminação baseada no sexo Portanto no meio rural em relação aos homens as mulheres estão mais expostas a diferentes formas de opressão Essas estruturas classistas e patriarcais estão muito presentes no contexto agrário e são constantemente legitimadas e reforçadas em diversos âmbitos e instituições LASSAK 2012 Cientes da necessidade de mudar essa realidade as mulheres se engajaram nas lutas camponesas no entanto com o passar do tempo perceberam que o debate estava centralizado nas opressões de classe e muitos dos seus companheiros apresentavam resistência em enxergar a desigualdade de gênero tão presente na sociedade LASSAK 2012 Assim conforme explica Carmen Diana Deere 2004 essa percepção e a crescente participação das mulheres nos sindicatos de trabalhadores rurais impulsionou o surgimento na década de 1980 do Movimento Autônomo de Mulheres Rurais MMTR em diferentes regiões do Brasil Como resultado das organizações que nasciam nos estados o primeiro encontro nacional de mulheres rurais autônomas foi realizado na cidade de Barueri São Paulo em 1986 e contou com a expressiva participação de mulheres provenientes de 16 estados DEERE 2004 Com o passar do tempo como afirma Valdete Boni 2012 os movimentos estaduais perceberam que a organização mais ampla em âmbito nacional seria positiva e por isso foi criada a Articulação Nacional de Mulheres Trabalhadoras Rurais ANMTR em 1995 Sobre a formação da ANMTR Maria Clara de Ataídes 2018 p 26 ressalta que tal articulação contou com a participação de diversos movimentos ligados à Via Campesina3 tais como Comissão Pastoral da Terra CPT Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra MST Pastoral da Juventude Rural PJR Movimento dos Atingidos pelas Barragens MAB alguns Sindicatos de Trabalhadores Rurais e o Movimento dos Pequenos Agricultores MPA 3A Via Campesina é um movimento internacional que reunia em 2016 164 movimentos camponeses de 73 países Opõese ao agronegócio defendendo a reforma agrária a agricultura camponesa e agroecológica e a soberania alimentar No entanto também luta pela igualdade de gênero e pela superação da violência contra as mulheres VIA CAMPESINA 2016 tradução nossa Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 323 Depois de alguns anos outro processo se iniciou culminando com a fundação do Movimento de Mulheres Camponesas em 2004 Tal mudança não aconteceu de forma instantânea mas foi precedida de intensos debates no interior dos movimentos estaduais de mulheres do campo entre os anos de 2002 e 2004 CALAÇA CONTE CINELLI 2018 Em relação à necessidade desse novo passo Sandra Lassak 2012 p 95 explica que de uma articulação que principalmente cooperava em ações pontuais e campanhas era preciso dar um passo rumo a um movimento que fosse comparável a outros movimentos rurais nacionais O período de preparação para a mudança que ocorreria foi de extrema importância para o amadurecimento das ideias inclusive quanto ao nome pelo qual seria conhecido o movimento Após isso as mulheres decidiram em um curso nacional realizado no ano de 2003 resgatar o conceito de camponesa que passou a figurar no nome do movimento ATAÍDES 2018 O processo que culminou com a adoção do nome foi considerado importante visto que outras denominações como trabalhadoras rurais poderiam ser excludentes e incompatíveis com a pretendida nacionalização do movimento representando algo maior do que a rede de articulação nacional que existia anteriormente ademais o termo escolhido carrega um significado político e reforça o posicionamento ideológico afirmado pelo Movimento de Mulheres Camponesas LASSAK 2012 Assim no que se refere à abrangência do nome Sandra Lassak 2012 p 95 destaca que inclui a pequena agricultora a pescadora artesanal a quebradeira de coco as extrativistas arrendatárias meeiras ribeirinhas posseiras boiasfrias diaristas parceiras sem terra acampadas e assentadas assalariadas rurais e indígenas Calaça Conte e Cinelli 2018 lembram que foi também nesse período que o MMC começou a se considerar um movimento feminista e percebeu que era preciso ampliar os momentos de formação e debate sobre a questão com os grupos de base Portanto o feminismo não parte apenas de mulheres que vivem em contextos urbanos e integram as classes mais altas pois se pensarmos o feminismo mais amplamente especialmente no que se refere à participação da mulher fora do espaço doméstico poderemos falar do Movimento de Mulheres Camponesas como feminista desde seu início BONI 2012 p 76 Deste modo a partir da construção histórica do movimento e de sua identidade classista e feminista é perceptível que nascido de muitas formas e com muitos nomes o atual Movimento de Mulheres Camponesas foi capaz de criar um espaço de trocas e debates entre mulheres de diversas realidades regionais fortalecendo e organizando as lutas comuns e firmandose como o maior movimento de mulheres do campo no Brasil ATAÍDES 2018 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 324 A história do Movimento de Mulheres Camponesas aponta para um aspecto extremamente importante para o movimento que também demonstra sua autonomia as formas internas de organização criadas pelas mulheres que o integram O movimento inicia a partir de grupos de mulheres conhecidos como grupos de base e apresenta ainda outras instâncias de organização com coordenações municipais regionais e estaduais até chegar ao âmbito nacional com a coordenação nacional a direção executiva e a Assembleia ou Congresso Nacional que ocorre periodicamente e é a instância máxima de decisão Para tanto o MMC conta com duas estruturas de apoio a secretaria nacional cuja sede está construída em Passo Fundo Rio Grande do Sul e o escritório nacional localizado em Brasília Distrito Federal MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2010a Além de sua organização interna Catiane Cinelli 2016 expõe que a luta do movimento não ocorre de forma isolada pois o mesmo procura estabelecer diálogos com outros movimentos nacionais e internacionais É possível destacar que a parceria citada se dá com movimentos como a Articulação de Mulheres Brasileiras a Marcha Mundial de Mulheres e organizações camponesas ligadas à Via Campesina Até o ano de 2018 cabe ressaltar que de acordo com estudo realizado por Eliane Barros 2018 o Movimento de Mulheres Camponesas estava organizado em 23 estados brasileiros A forma de organização pretendida pelo MMC visa possibilitar a construção de um movimento democrático e popular que busca organizar a luta contra o patriarcado e o capitalismo através da atuação na sociedade em defesa das bandeiras de luta assumidas pelo Movimento de Mulheres Camponesas Sendo assim conforme disponibilizado no portal eletrônico do movimento ao estabelecer como objetivo a libertação das mulheres campesinas das muitas formas de opressões sofridas por elas o MMC reconhece que tal meta só será alcançada através da luta organizada MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2010b A unificação dos diversos movimentos estaduais pela criação do Movimento de Mulheres Camponesas serviu para fortalecer a luta e tornar a atuação das militantes ainda mais combativa ousada e transgressora PAULILO BONI 2017 Atualmente em seu portal eletrônico o MMC divide as pautas reivindicatórias em quatro pontos quais sejam projeto popular de agricultura camponesa projeto popular para o Brasil ampliação dos direitos sociais e participação política da mulher na sociedade MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2010c Em relação aos quatro grandes eixos mencionados Salvaro 2010 p 66 observa que em uma primeira leitura das lutas do MMC é possível destacar demandas por reconhecimento e por redistribuição pelo fato de que a viabilização de políticas e direitos sociais passa pela nomeação dos sujeitos que reivindicam Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 325 No que se refere ao tema do presente texto destacase o eixo relacionado à participação política da mulher na sociedade que inclui a luta contra todos os tipos de violência contra as mulheres MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2010c que será detalhada no tópico a seguir 2 O ENFRENTAMENTO À VIOLÊNCIA DE GÊNERO CONTRA AS MULHERES RURAIS A PARTIR DO MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS DO BRASIL A trajetória dos movimentos feministas brasileiros demonstra que mesmo com suas diferenças as mulheres lutam contra todo tipo de opressão e contribuem para mudanças na sociedade inclusive no ordenamento jurídico BARSTED 2011 De outro ponto a observação da realidade agrária brasileira demonstra que muitos direitos humanos foram e continuam sendo violados visto que é marcada por diversas formas de discriminação fazendo com que o sofrimento esteja presente no cotidiano e seja muitas vezes naturalizado Assim nessas localidades as mulheres sofrem opressão por pertencerem à classe trabalhadora por serem mulheres DARON 2009 e muitas vezes por serem negras O resultado disso é a experimentação de várias formas de violência durante a vida É a partir da percepção dessa realidade que o Movimento de Mulheres Camponesas compreende o enfrentamento à violência contra as mulheres como uma luta extremamente importante que está presente desde o surgimento dos primeiros movimentos autônomos de mulheres rurais que nasceram nos estados na década de 1980 DARON 2009 Contudo é possível afirmar que tal luta ganhou mais força recentemente pois conforme Scott Rodrigues e Saraiva 2010 p 66 nos ultimos cinco anos a violência contra a mulher vem sendo reivindicada como pauta de discussão nos movimentos de mulheres trabalhadoras rurais Em relação à abordagem do assunto no MMC Diana Pereira 2015 p 146 expõe que não é tratado diretamente como se costuma fazer nos espaços urbanos mas relacionado a essa condição de ser camponesa A questão econômica e a divisão sexual do trabalho são os motes portanto do processo de questionamento de toda uma ordem da qual as violências física psicológica patrimonial e sexual são apenas a exacerbação desse controle sobre o corpo e a vida das mulheres Assim percebese que as especificidades encontradas no meio rural envolvendo por exemplo as condições de trabalho e os modos de vida que são diferentes daqueles encontrados em centros urbanos orientam o debate sobre violência contra as mulheres feito pelo movimento PEREIRA 2015 Neste sentido o MMC traça um caminho para falar sobre a temática pois faz Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 326 em uma primeira linha um intenso debate sobre a importância do trabalho das mulheres e a importância da participação política delas em todas as decisões relacionadas à produção questiona em seguida as relações privadas a partir da divisão sexual do trabalho e finalmente toca em todas as restrições e os obstáculos das mulheres para a participação política o que implica de antemão que elas sejam donas das próprias vidas O debate sobre violência e restrição ao espaço doméstico aparece aí o que tem aberto espaço por sua vez para questionamento de tudo que envolva o controle das mulheres PEREIRA 2015 p 147 A partir disso o MMC não se limita ao debate mas elabora também outras formas de ação Para entender como ocorrem essas lutas foram analisadas ações coletivas organizadas a partir de 2004 ano de unificação e criação do movimento nacional relacionadas à luta de enfrentamento à violência de gênero contra as mulheres rurais As ações estão principalmente divididas em três frentes materiais elaborados e publicados pelo MMC como subsídios para a formação política e teórica das militantes eventos públicos como marchas e manifestações um encontro nacional e seminários e uma campanha específica4 A formação teórica e política orientada para a educação das mulheres é uma das preocupações centrais no que se refere à superação da violência de gênero contra as mulheres rurais visto que a construção de novos saberes pode transformar as relações de poder que produzem esse tipo de violência TÁBOAS 2014 Paulo Freire em sua obra Pedagogia do Oprimido 2005 p 29 afirma que ninguém liberta ninguém ninguém se liberta sozinho os homens se libertam em comunhão É possível perceber que tal afirmação também se aplica ao processo de formação organizado e vivenciado pelas mulheres do MMC desde a base até as instâncias nacionais de coordenação que pode dar outros sentidos às vidas das mesmas pois o que acontece é uma educação libertadora que transforma seu ser seu jeito de ver a vida e com isso transforma suas famílias e a comunidade onde vivem pois suas ações já são outras CINELLI 2016 p 169 Então para que essa transformação realmente aconteça o movimento elabora e publica materiais como cartilhas de formação que de acordo com Giovana Salvaro 2010 p 28 podem ser consideradas como ferramentas de organização e luta Uma das cartilhas localizadas intitulada Mulheres camponesas rompendo o silêncio e lutando pela não violência foi publicada no ano de 2005 com o objetivo de contribuir nos grupos de base do MMC e outras organizações no debate das raízes da violência praticada contra as mulheres MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2005 p 3 4 Cabe esclarecer que foram selecionados materiais disponíveis em formatos digitalizado e impresso o que implica considerar a abrangência e o limite do corpus de análise Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 327 A cartilha citada propõe três roteiros para encontros de grupos de base do MMC No primeiro encontro entre poemas e canções as mulheres são convidadas à reflexão sobre as causas das violências que sofrem Assim o texto base critica principalmente a violência que as mulheres sofrem enquanto trabalhadoras rurais em uma sociedade capitalista dividida em classes sociais e também a violência produzida pelo patriarcado que muitas vezes é naturalizada e silenciada Ademais em que pesem as críticas ao patriarcado e ao capitalismo como reflexão central do encontro o roteiro também reconhece a existência da desigualdade racial MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2005 Entre importantes autoras e campos teóricos feministas a interpretação apresentada sugere uma forma de diálogo com Angela Davis que argumenta que há profundo vínculo ideologico entre racismo viés de classe e supremacia masculina DAVIS 2016 p 81 Na proposta elaborada para o segundo encontro as participantes são convidadas a dialogar sobre ensinamentos valores e imposições que foram recebendo durante a vida como por exemplo a ideia de que são inferiores aos homens que devem ser submissas a eles e que no trabalho familiar as tarefas realizadas pelas mulheres são menos importantes e aquelas consideradas mais importantes devem ficar sob responsabilidade dos homens sobre as violências e como são uma forma de controlar as mulheres na sociedade assim como a desnaturalização das violências e a promoção da igualdade de gênero podem ser estratégias para desconstrução dessa realidade MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2005 Sequencialmente na última proposta de encontro destacase que a culpa pela violência nunca é da mulher que a sofre mas da sociedade capitalista e patriarcal que a produz Por fim aponta que a superação da violência contra as mulheres se dará com a organização das mulheres passando pelo estudo do tema nos grupos de base e chegando ao enfrentamento do problema de forma coletiva MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2005 De igual modo sobre a temática da violência contra as mulheres no ano de 2008 a Associação Nacional de Mulheres Camponesas ligada ao MMC produziu e publicou a cartilha intitulada Mulheres camponesas caminhando rumo à superação da violência que contém uma série de textos que podem ser usados em discussões No primeiro texto o movimento reconhece que a violência decorre de uma relação de poder e que as violências sofridas pelas mulheres ocorrem majoritariamente em ambientes domésticos e relações familiares Ainda ressalta que a condição socioeconômica da mulher em situação de violência é um fator extremamente importante que pode influenciar em sua decisão de sair ou não da situação em que se encontra ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE MULHERES CAMPONESAS 2008 Por isso a questão econômica também é considerada quando o Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 328 movimento estrutura suas ações para o enfrentamento à violência visto que conforme Ísis Táboas 2014 p 71 a Coordenação Nacional do MMC desenvolve ações de formação e divulgação de conhecimento sobre o fenômeno da violência e seus instrumentos de enfrentamento além do fortalecimento da autonomia econômica A mesma cartilha também apresenta definições sobre diversos tipos de violências visando fomentar o debate e a ampliação do conhecimento das mulheres Baseandose na Lei Maria da Penha o texto traz conceitos e exemplos de violências física psicológica sexual patrimonial e moral Contudo são apresentadas na cartilha também outras formas de violência como por exemplo a violência do agronegócio O conteúdo do texto denuncia que as mulheres são as maiores atingidas pelos prejuízos causados por tal forma de produção entre estes a destruição do modo de vida camponês da agricultura camponesa e do meio ambiente o êxodo rural o uso massivo de agrotóxicos que afeta a saúde da população camponesa a precarização do trabalho e até mesmo o trabalho escravo ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE MULHERES CAMPONESAS 2008 O material portanto demonstra a forma como o movimento entende a violência de gênero contra as mulheres que parte da realidade das camponesas e está muito relacionada ao trabalho realizado por elas Em seguida a cartilha traz um texto sobre a Lei Maria Penha com o objetivo de difundir o conhecimento acerca do referido instrumento destacando a importância do mesmo no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres os principais pontos e como a mulher pode proceder para denunciar uma situação de violência e destaca que a violência contra as mulheres é uma violação aos direitos humanos ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE MULHERES CAMPONESAS 2008 assim como foi reconhecido na Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos em 1993 BARSTED 2011 A partir dessa cartilha é possível perceber que ao mesmo tempo em que o movimento valoriza e procura difundir o conhecimento sobre os instrumentos legais entre as mulheres também chama atenção para a necessidade de lutas pela superação da desigualdade de gênero que causa as violências Neste cenário é importante destacar a cartilha As camponesas e os camponeses da Via Campesina dizem basta de violência contra as mulheres produzida pela Via Campesina em 2012 que aponta a importância dos movimentos feministas para o aumento da visibilidade da violência contra as mulheres VIA CAMPESINA 2012 Partindo disso a cartilha menciona a Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher Convenção de Belém do Pará de 1994 e reconhece a importância dos instrumentos legais nas lutas de enfrentamento à violência contra as mulheres No entanto afirma que o desafio urgente que se apresenta é o de construir estratégias de ação Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 329 mobilização e lutas para a garantia de efetivação dos direitos em todos os âmbitos e espaços da vida humana VIA CAMPESINA 2012 p 11 Nos anos seguintes a bandeira da superação da violência de gênero contra as mulheres continuou presente na agenda política do MMC como é possível visualizar no folder intitulado Mulheres camponesas na luta contra a violência Neste material ressaltase que ao falar sobre violência contra as mulheres camponesas é preciso considerar as particularidades referentes ao meio em que elas vivem Com isso mencionase que as mulheres do campo possuem mais dificuldade para denunciar a violência por motivos que vão desde a dependência econômica até a impossibilidade de acessar as instituições públicas responsáveis pelo atendimento visto que muitas vezes residem em localidades afastadas dos centros os municípios Ainda destacase que o machismo está muito presente no contexto agrário levando as mulheres à submissão ao silenciamento e naturalização das violências MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2014a De fato a partir da análise dos materiais utilizados pelo Movimento de Mulheres Camponesas em suas atividades de formação teórica e política é possível identificar o esforço realizado no sentido de divulgar os instrumentos legais que podem ser usados para o enfrentamento à violência de gênero contra as mulheres rurais contribuindo para a efetivação do direito humano das mulheres à vida sem violência O MMC também identifica desafios para sua luta pela superação da violência contra as mulheres apontando que é preciso denunciar as violências discutir o problema no grupo de base e no cotidiano construir um enfrentamento coletivo e organizado e reivindicar políticas públicas específicas MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2014a Não obstante o movimento também reconhece que já está rompendo o silêncio isto é está articulado para o enfrentamento à violência através do intenso trabalho de formação realizado em todas as regiões do Brasil além de outras ações como eventos e campanhas A organização de eventos públicos também é uma das estratégias do Movimento de Mulheres Camponesas em sua luta pelo fim da violência de gênero que costuma acontecer em datas específicas como o Dia Internacional da Mulher em 8 de março e o Dia Internacional da Não Violência Contra as Mulheres em 25 de novembro MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2014a No entanto isso não impede que ações sejam realizadas em outras datas Embora as estratégias de ativismo público articuladas pelo Movimento de Mulheres Camponesas aconteçam há muito tempo em seu portal eletrônico é possível encontrar registros de mobilizações e outros eventos a partir de 2013 principalmente visto que esse ano ficou Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 330 marcado com a realização do I Encontro Nacional do MMC De acordo com a Declaração do I Encontro Nacional do Movimento de Mulheres Camponesas o evento aprofundou o tema e os desafios que envolvem a luta pelo fim da violência contra a mulher entendendo que a violência é resultado do sistema capitalista da cultura patriarcal e machista que perpassa todas as dimensões da sociedade MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2013a p 1 O encontro também contou com a presença da então presidenta Dilma Rousseff PT que fez uma fala no dia 19 Na oportunidade as mulheres do MMC entregaram a ela uma carta com diversas reivindicações inclusive em relação ao enfrentamento à violência contra as mulheres rurais MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2013b Como encerramento do encontro nacional no dia 21 de fevereiro de 2013 aproximadamente três mil mulheres caminharam até o Congresso Nacional em BrasíliaDF Na marcha as militantes lembraram nomes de mulheres camponesas vítimas de violência e reivindicaram políticas públicas específicas para o enfrentamento à violência contra as mulheres rurais MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2013c No mesmo ano milhares de mulheres do MMC realizaram diversas manifestações no Dia Internacional da Mulher em estados como Pernambuco Espírito Santo Santa Catarina Bahia Rio Grande do Sul Paraná Acre Roraima e também no Distrito Federal MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2013d Os anos posteriores foram marcados por mais manifestações principalmente nas duas datas mencionadas em vários estados MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2014b Já no ano de 2015 além das atividades que são costumeiramente realizadas ocorreu em Luziânia estado de Goiás o I Seminário Internacional Feminismo Camponês e Popular com o objetivo de discutir temas que se relacionam com o feminismo construído diariamente pelas mulheres camponesas inclusive a questão da violência contra as mesmas Na oportunidade apontouse a necessidade de dar continuidade a esta luta construindo caminhos de solidariedade de denúncia e de jamais calarse frente a qualquer forma de violência opressão e descriminação contra as mulheres MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2015 p 1 Para dar continuidade ao trabalho realizado no primeiro seminário o MMC organizou o II Seminário Internacional Feminismo Camponês e Popular em março de 2017 em Luziânia Goiás O III Seminário Internacional Feminismo Camponês e Popular foi realizado ainda em 2017 no mesmo local nos dias 28 e 29 de setembro com o intuito de sistematizar as informações e reflexões sobre esse feminismo que está sendo construído no decorrer da história do MMC A questão da violência contra as mulheres esteve muito presente no seminário pois Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 331 todas as falas trouxeram o tema da violência como um dos grandes entraves à vida das mulheres camponesas violência essa que se transfigura em nossas vidas de diversas formas e que não se difere entre os países MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2017 p 1 Em 2016 os atos realizados em vários estados pautaram principalmente a defesa da previdência pública e o enfrentamento à violência contra as mulheres MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2016 O ano de 2018 ficou marcado com encontros que abordaram a questão da violência contra as mulheres com destaque para as celebrações de 35 anos do MMC de Santa Catarina em novembro MEDEIROS 2018 e de 30 anos do MMC do Acre MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS 2018b que contaram com a participação de centenas de mulheres Por fim no ano de 2019 as mulheres do MMC participaram das manifestações realizadas em todo o país no dia 8 de março que tiveram como lema a frase Pela vida das mulheres somos todas Marielle5 As principais pautas das mobilizações foram contra a reforma da previdência o aumento da violência contra as mulheres e as medidas tomadas pelo governo de Jair Bolsonaro PSL consideradas retrocessos SUDRÉ GUIMARÃES 2019 p 1 Por meio das ações analisadas e de outras tantas mobilizações nacionais estaduais e municipais que não puderam ser mencionadas é possível perceber que o Movimento de Mulheres Camponesas não se comporta de forma inerte ao problema da violência de gênero que ocorre no meio rural mas pelo contrário luta pela criação e efetivação de direitos que garantam uma vida sem violência às mulheres rurais interferindo nas estruturas estatais ATAÍDES 2018 por meio de campanhas materiais de formação manifestações públicas e outros eventos No que se refere às campanhas específicas merece destaque a Campanha Mundial pelo Fim da Violência Contra as Mulheres lançada pela Via Campesina em outubro de 2008 em Moçambique durante sua V Conferência Internacional VIA CAMPESINA 2012 No Brasil a referida campanha foi oficialmente lançada em janeiro de 2010 durante a II Plenária Nacional da Via Campesina Brasil oportunidade em que movimentos sociais camponeses ligados à Via Campesina se fizeram presentes e assumiram o compromisso de implementar a campanha inclusive o Movimento de Mulheres Camponesas MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR 5 Marielle Franco foi uma mulher negra feminista e militante em defesa dos direitos humanos eleita vereadora pelo PSOL para a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro em 2016 Foi assassinada em 14 de março de 2018 ROCHA 2018 p 274277 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 332 BARRAGENS 2010 De acordo com Ândrea Batista 2013 p 114 as campanhas articuladas pela Via Campesina possuem a característica de estimular o diálogo e a sensibilização dos indivíduos quanto à problemática apontada tanto dentro de suas organizações quanto com a sociedade de modo geral As campanhas são permanentes e estão direcionadas para a busca de transformações profundas nas relações sociais apontando soluções para a superação do problema Nesta esteira a Campanha Mundial pelo Fim da Violência Contra as Mulheres visa chamar atenção para as muitas formas de violências sofridas pelas mulheres trabalhadoras que muitas vezes seguem invisibilizadas ainda mais no caso das mulheres do meio rural Com o reconhecimento do problema a campanha também se propõe à luta de enfrentamento à violência contra as mulheres através da reivindicação de políticas públicas específicas BATISTA 2013 p 115 Assim é possível observar que a Campanha Mundial pretende influenciar o ordenamento jurídico e contribuir para a efetivação do direito humano das mulheres à vida sem violência pois através de suas ações de formação busca levar conhecimento às mulheres rurais acerca dos instrumentos legais Deste modo o Movimento de Mulheres Camponesas expõe suas pautas específicas e organiza suas próprias ações de enfrentamento à violência de gênero contra as mulheres mas também se articula em conjunto com outras organizações como movimentos camponeses ligados à Via Campesina e movimentos feministas CINELLI 2016 formando uma rede de enfrentamento à violência de gênero contra as mulheres rurais CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho teve como objetivo analisar a contribuição do Movimento de Mulheres Camponesas para as lutas de enfrentamento à violência de gênero contra mulheres que vivem em contextos rurais Inicialmente foi possível constatar a identidade própria construída pelo Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil que se identifica como um movimento social autônomo feminista e pertencente à classe trabalhadora O MMC reivindica melhorias nas condições de vida das mulheres e de todos os demais membros da classe trabalhadora e especialmente das populações camponesas As desiguais relações de gênero vivenciadas por mulheres rurais e as violências sofridas de igual modo são temáticas discutidas pelo movimento que busca enfrentálas napela articulação de diferentes lutas e ações No entanto o movimento possui uma forma própria e ampla de compreender e discutir as violências visto que relaciona as opressões resultantes do sistema patriarcal e às do sistema capitalista apontando para tipos específicos como a violência do agronegócio Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 333 No que se refere às ações práticas do Movimento de Mulheres Camponesas em suas lutas pelo fim da violência de gênero contra as mulheres do campo verificase que a formação teórica e política é uma das estratégias principais Os materiais elaborados e publicados pelo movimento que foram analisados demonstraram o esforço em difundir conhecimentos sobre tratados internacionais importantes como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e a Convenção Interamericana Para Prevenir Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher Convenção de Belém do Pará além da Lei Maria da Penha Outras ações também são organizadas como eventos públicos incluindo manifestações encontros estaduais e nacional que mobilizam milhares de camponesas de todo o país O I Encontro Nacional do Movimento de Mulheres Camponesas realizado no ano de 2013 pode ser considerado um marco em sua trajetória de luta contra a violência contra as mulheres haja vista que este foi o tema central do encontro Tal fato demonstra a caminhada percorrida pelo movimento em relação ao tema que já vinha sendo trabalhado pelas militantes e ganhou força com alguns acontecimentos como a sanção da Lei Maria da Penha em 2006 e a criação da Campanha Mundial Pelo Fim da Violência Contra as Mulheres em conjunto com a Via Campesina no ano de 2008 Em relação às campanhas percebese que indicam a articulação do movimento com outras organizações e podem ser atemporais como a Campanha Mundial Pelo Fim da Violência Contra as Mulheres e abranger diversas atividades inclusive no âmbito da formação e dos eventos públicos Constatase portanto que o Movimento de Mulheres Camponesas contribui para a efetivação do direito humano das mulheres à vida sem violência por meio de suas reflexões teóricas e práticas políticas pois propõe um processo de educação libertadora fazendo com que as mulheres construam conhecimentos críticos sobre seus direitos possibilitando um maior acesso aos mesmos É certo que o movimento não cria direitos ou políticas públicas no entanto dialoga e tensiona as esferas estatais influenciando o ordenamento jurídico brasileiro assim como ocorreu na criação da Lei 113402006 quando os movimentos feministas participaram ativamente do processo articulando uma estratégia de advocacy Deste modo evidenciase o importante trabalho realizado pelo Movimento de Mulheres Camponesas do Brasil nas lutas de enfrentamento à violência de gênero contra as mulheres rurais na medida em que a partir de sua identidade feminista camponesa e popular ousa lutar por mudanças profundas e estruturais na sociedade compreendendo que as mulheres que vivem ou viveram em situação de violência Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 334 não podem ser vistas apenas como vítimas mas principalmente como protagonistas de suas histórias REFERÊNCIAS ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE MULHERES CAMPONESAS Mulheres camponesas caminhando rumo à superação da violência Passo Fundo Associação Nacional de Mulheres Camponesas 2008 ATAÍDES Maria Clara Capel de A atuação do Movimento de Mulheres Camponesas MMC uma perspectiva de suas estratégias e especificidades 2018 Dissertação Mestrado em Direito Agrário Faculdade de Direito Universidade Federal de Goiás Goiânia 2018 Disponível em httpsrepositoriobcufgbrtedehandletede8639 Acesso em 07 mar 2019 BARROS Eliane Aparecida de Almeida Mulheres camponesas e seus quintais agroecológicos 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Valdete De agricultoras a camponesas o movimento de mulheres camponesas de Santa Catarina e suas práticas 2012 Tese Doutorado em Sociologia Política Centro de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 2012 Disponível em httpsrepositorioufscbrxmluibitstreamhandle123456789100720310923pdfsequence1 isAllowedy Acesso em 07 mar 2019 BRASIL Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 Dispõe sobre a criação de mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e dá outras providências Brasília DF Presidência da República 2019 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato200420062006leil11340htm Acesso em 10 set 2019 CALAÇA Michela Katiuscia Alves dos Santos CONTE Isaura Isabel CINELLI Catiane Feminismo Camponês e Popular uma história de construções coletivas Revista Brasileira de Educação do Campo Tocantinópolis v 3 n 4 p11581183 28 dez 2018 Disponível Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 335 em httpssistemasuftedubrperiodicosindexphpcampoarticleview499314547 Acesso em 07 mar 2019 CINELLI Catiane O educativo na experiência do movimento de mulheres camponesas resistência enfrentamento e libertação 2016 Tese Doutorado em Educação Faculdade de Educação Universidade Federal do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2016 Disponível em httpslumeufrgsbrhandle10183149118 Acesso em 16 mar 2019 DARON Vanderléia Leodete Pulga Um grito lilás cartografia da violência às mulheres do campo e da floresta Brasília s n 2009 DAVIS Angela Mulheres raça e classe 1 ed São Paulo Boitempo 2016 DEERE Carmen Diana Os direitos da mulher à terra e os movimentos sociais rurais na reforma agrária brasileira Revista Estudos Feministas Florianópolis v 12 n 1 p 175204 abr 2004 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0104 026X2004000100010lngennrmiso Acesso em 07 mar 2019 FREIRE Paulo Pedagogia do oprimido 41 ed São Paulo Paz e Terra 2005 LASSAK Sandra Comunidades de Resistência e Libertação a Influência da Teologia feminista da Libertação no Movimento de Mulheres Camponesas Revista Caminhos Goiânia v 10 n 2 p 90109 mar 2012 Disponível em httpseerpucgoiasedubrindexphpcaminhosarticleview2456 Acesso em 06 mar 2019 MOVIMENTO DOS ATINGIDOS POR BARRAGENS Via Campesina Brasil lança campanha pelo fim da violência contra as mulheres São Paulo 20 jan 2010 Disponível em httpwwwmabnacionalorgbrnoticiacampesinabrasillancampanhapelofimdaviol nciacontramulheres Acesso em 23 abr 2019 MEDEIROS Silvia A resistência que vem das mulheres camponesas de Santa Catarina Brasil de Fato s l 16 dez 2018 Direitos Humanos Disponível em httpswwwbrasildefatocombr20181216aresistenciaquevemdasmulheres camponesasdesantacatarina Acesso em 14 abr 2019 MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS Camponesas fazem ato pelo fim da violência contra a mulher em frente ao Congresso Nacional em Brasília no encerramento do I Encontro Nacional do MMC S l 2013c Disponível em 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CAMPONESAS Lutas S l 2010c Disponível em httpwwwmmcbrasilcombrsitenode47 Acesso em 23 mar 2019 MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS Missão S l 2010b Disponível em httpwwwmmcbrasilcombrsitenode45 Acesso em 23 mar 2019 MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS MMC BuajariAC programa atividades para celebrar o 8 de março S l 2014b Disponível em httpwwwmmcbrasilcombrsitenode161 Acesso em 14 abr 2019 MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS Mulheres Camponesas construindo o Feminismo Camponês e Popular S l 2015 Disponível em httpwwwmmcbrasilcombrsitenode292 Acesso em 14 abr 2019 MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS Mulheres camponesas na luta contra a violência Passo Fundo s n 2014a Disponível em httpwwwmmcbrasilcombrsitemateriaisdownloadfolderviolenciacontramulher 2014pdf Acesso em 9 abr 2019 MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS Mulheres camponesas no Acre 30 anos de organização e lutas S l 2018b Disponível em httpwwwmmcbrasilcombrsitenode403 Acesso em 15 abr 2019 MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS Mulheres Camponesas se mobilizam no Dia Internacional da Mulher 08 de março S l 2013d Disponível em httpwwwmmcbrasilcombrsitenode96 Acesso em 14 abr 2019 MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS Mulheres camponesas rompendo o silêncio e lutando pela não violência 2 ed Passo Fundo s n 2005 MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS O Brasil precisa muito da força e da inteligência da mulher camponesa afirma a Presidenta Dilma Rousseff Brasília 19 fev 2013b Disponível em httpwwwmmcbrasilcombrsitenode56 Acesso em 21 abr 2019 MOVIMENTO DE MULHERES CAMPONESAS Organização S l 2010a Disponível em httpwwwmmcbrasilcombrsitenode46 Acesso em 21 Mar 2019 PAULILO Maria Ignez Silveira BONI Valdete Movimentos de mulheres agricultoras e ecologia In DELGADO G C BERGAMASCO S M P P org Agricultura Familiar Brasileira Desafios e Perspectivas de Futuro Brasília Ministério do Desenvolvimento Agrário 2017 p 400419 Disponível em Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 337 httpwwwmdagovbrsitemdasitessitemdafilesuserimg1756Agricultura20Familiar WEBLEVEpdf Acesso em 24 mar 2019 PAULILO Maria Ignez Silveira Que feminismo é esse que nasce na horta Política Sociedade Florianópolis v 15 p 296316 2016 Edição Especial Disponível em httpsperiodicosufscbrindexphppoliticaarticleview2175 79842016v15nesp1p29633805 Acesso em 28 mar 2019 PEREIRA Diana Melo Sem portavoz na rua sem dono em casa as lutas do Movimento de Mulheres Camponesas MMC Brasil pelo direito a uma vida sem violência 2015 Dissertação Mestrado em Direito Faculdade de Direito Universidade de Brasília Brasília 2015 Disponível em httprepositoriounbbrhandle1048218885 Acesso em 27 mar 2019 ROCHA Lia de Mattos A vida e as lutas de Marielle Franco Em Pauta revista da Faculdade de Serviço Social da UERJ Rio de Janeiro v 16 n 46 p 274280 juldez 2018 Disponível em httpswwwe publicacoesuerjbrindexphprevistaempautaarticleviewFile3943927898 Acesso em 14 abr 2019 SAFFIOTI Heleieth I B Contribuições feministas 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Editora Mulheres 2010 p 6393 Disponível em httpswwwufpebrdocuments10163031020379generoegeraoemcontextosruraispd f171b01b82ded48dc96398e7e34c7bbcc Acesso em 09 abr 2019 SUDRÉ Lu GUIMARÃES Juca No 8 de março mulheres de todo o Brasil enaltecem Marielle e criticam Bolsonaro Brasil de Fato São Paulo 8 mar 2019 Política Disponível httpswwwbrasildefatocombr20190308no8demarcomulheresdetodoobrasil enaltecemmarielleecriticambolsonaro Acesso em 14 abr 2019 TÁBOAS Ísis Dantas Menezes Zornoff Viver sem violência doméstica e familiar a práxis feminista do Movimento de Mulheres Camponesas 2014 Dissertação Mestrado em Direitos Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 338 Humanos e Cidadania Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares Universidade de Brasília Brasília 2014 Disponível em httprepositoriounbbrbitstream104821821912014IsisDantasMenezesZornoffTaboaspd f Acesso em 16 mar 2019 VIA CAMPESINA As camponesas e os camponeses da Via Campesina dizem basta de violência contra as mulheres Brasília Via Campesina 2012 Disponível em httpwwwmmcbrasilcombrsitemateriaiscartilhavcsudamericapdf Acesso em 23 abr 2019 VIA CAMPESINA Informe anual 2015 Harare Via Campesina 2016 Disponível em httpsviacampesinaorgeswpcontentuploadssites3201606ESannualreport2015pdf Acesso em 28 mar 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 339 VIOLÊNCIA PATRIMONIAL AS MULHERES RURAIS EXCLUÍDAS DA HERANÇA DA TERRA NO SUL DO BRASIL Karolyna Marin Herrera1 Flavia Soares Ramos2 RESUMO As mulheres rurais do sul do Brasil são costumeiramente alijadas do seu direito à herança da terra Isso repercute diretamente na divisão sexual do trabalho na falta de autoridade e no não reconhecimento social do trabalho realizado por elas Neste artigo refletimos tal questão a partir da perspectiva da violência patrimonial pois embora este tema seja abordado em diferentes ordenamentos jurídicos brasileiros os mesmos parecem ignorar a realidade do meio rural Assim práticas baseadas no costume permanecem prejudicando as mulheres devido a transmissão enviesada do patrimônio Para embasar nossa análise utilizamos dados empíricos coletados em nossas pesquisas e em pesquisas realizadas por outrasos pesquisadorases especialmente da área de sociologia Concluímos que a violência patrimonial nesse contexto assume formas diferenciadas daquelas usualmente relatadas uma vez que extrapola o âmbito conjugal sendo que é uma prática comum nas famílias camponesas legitimada pela comunidade em que estão inseridas Neste sentido a violência patrimonial sofrida pelas agricultoras ocorre tanto no momento da partilha da herança de sua família de origem como após o matrimônio com um herdeiro sucessor A violência patrimonial é percebida como uma das diversas formas de violências a que estão submetidas as mulheres no meio rural Palavraschave Mulheres rurais Herança da terra Violência patrimonial INTRODUÇÃO Quando tratamos sobre violência contra as mulheres pensamos principalmente em violência física eou sexual são as suas faces mais visíveis Além disso também tendemos a relacionar os exmaridos ou excompanheiros como os autores desses crimes visto que de fato são os principais autores No entanto a Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 conhecida como Lei Maria da Penha evidenciou outras formas de violências a que são submetidas comumente as mulheres como a psicológica a moral e a patrimonial bem como enfatizou outros autores como membros da família de modo mais amplo Outros ordenamentos jurídicos anteriores a Lei Maria da Penha já tratavam desses casos mas encontravamse dispersos e não 1 Professora Departamento de Zootecnia e Desenvolvimento RuralUFSC Doutora em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Agricultura Familiar NAFUFSC Email karolynaherrerayahoocombr Currículo lattes httplattescnpqbr2077231526283325 2 Doutoranda no Programa de Pós Graduação Interdisciplinar em Ciências HumanasUFSC Mestra em Sociologia Política Universidade Federal de Santa Catarina Pesquisadora do Núcleo de Estudos sobre Agricultura Familiar NAFUFSC e do Laboratório de Imigração Migração e História Ambiental LABIMHAUFSC Email flaviasoaresramosgmailcom Currículo lattes httplattescnpqbr1708966295395646 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 340 garantiam de fato o tratamento diferenciado e protetivo das mulheres ou seja não consideravam as diferenças de gênero estruturadas em nossa sociedade Apesar da ampliação das possibilidades legais oferecidas por esse dispositivo neste trabalho iremos discutir as estratégias empregadas para a manutenção de certos costumes que alijam as mulheres dos seus direitos patrimoniais incorrendo portanto na violência patrimonial Trataremos especificamente do acesso à herança da terra por mulheres rurais no sul do Brasil Tenhamos em conta que anterior à Lei Maria da Penha a Constituição Federal de 1988 afirma a igualdade entre homens e mulheres e o Novo Código Civil de 2002 determina que todos os filhos independente do sexogênero têm o mesmo direito à herança podendo ser afastados da sucessão apenas nos casos tipologizados como ingratidão o que veremos situação esta muito distinta da atitude adotada por essas mulheres uma vez que dedicam suas vidas ao cuidado das pessoas e à manutenção do estabelecimento familiar Tamanho envolvimento e dedicação das mulheres rurais com a família a sua e a do marido e também o isolamento a falta de orientações legais e apoio prático as coloca numa posição delicada para denúncia da violência patrimonial que sofrem no processo de herança PAULILO 2004 embora muitas vezes tenham clareza sobre as injustiças que sofrem Como ir contra a vontade da família e a autoridade do pai Essas considerações iniciais permitem antever que a violência patrimonial é normalmente combinada à outras modalidades de violência especialmente a psicológica e a moral CUNHA PINTO 2008 Nosso embasamento teórico é constituído através dos campos da sociologia rural com diálogos com as contribuições feministas para a sociologia do trabalho Já nossas experiências como pesquisadoras de campo nos fornecem os dados empíricos complementados por outras pesquisas As considerações sobre a herança da terra que apresentamos neste artigo partem de nossa reflexão sobre pesquisas empíricas realizadas na região oeste HERRERA 2015 2019 e litoral catarinense RAMOS 20163 em diálogo com a bibliografia especializada da área Para compreender como as relações de gênero são engendradas no meio rural utilizamos da análise de entrevistas em profundidade seguido por roteiros de entrevista Nosso intuito foi compreender o cotidiano das mulheres rurais suas participações nas atividades reprodutivas e produtivas e as relações estabelecidas no contexto onde vivem Na primeira parte iremos abordar alguns aspectos da violência patrimonial a partir da legislação brasileira e da sociologia ampliando as considerações para além da relação conjugal 3 As pesquisas das autoras foram realizadas sob orientação da Prof Dra Maria Ignez S Paulilo do Programa de PósGraduação em Sociologia Política UFSC Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 341 a qual normalmente aparece vinculada Na segunda parte nos voltamos para a especificidade da herança da terra por mulheres rurais no sul do país incluindo revisões teóricas em diálogo com dados empíricos A terceira e última parte será dedicada a observação de algumas consequências da restrição à herança para essas mulheres especialmente no âmbito da sobrecarga de trabalho e da falta de reconhecimento do papel desempenhado pelas mulheres Nosso destaque às mulheres rurais alijadas do seu direito à herança da terra não visa simplesmente a denúncia muito menos o reforço de preconceitos relativos a um suposto atraso do campo em relação à cidade Propomos essa reflexão devido à sua complexidade uma vez que a restrição patrimonial afeta consequentemente o reconhecimento das mulheres rurais como trabalhadoras e cidadãs além de estar diretamente vinculada ao movimento migratório feminino do campo para a cidade Além disso há mais de 14 milhões de mulheres no meio rural IBGE 2010 o que reforça a importância de incluílas em estudos de gênero que são fortemente pautados em realidades urbanas 1 VIOLÊNCIA PATRIMONIAL UMA FORMA DE VIOLÊNCIA POUCO ABORDADA A Lei Maria da Penha enfatizou diversas formas de violência doméstica a que são submetidas as mulheres dentre as quais a patrimonial De acordo com a lei essa modalidade referese a qualquer conduta que configure retenção subtração destruição parcial ou total de seus objetos instrumentos de trabalho documentos pessoais bens valores e direitos ou recursos econômicos incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades BRASIL 2006 Em nossa busca sobre o tema encontramos principalmente pesquisas realizadas por órgãos governamentais e institutos privados as quais não são direcionadas especificamente para a análise da violência patrimonial mas que sugerem caminhos Dentre estes destacamos alguns resultados Na pesquisa Percepções sobre violência doméstica contra a mulher no Brasil INSTITUTO AVON 2011 realizada com 1800 pessoas homens e mulheres com mais de 16 anos nas 27 capitais brasileiras ficou demonstrada que essa modalidade é pouco reconhecida pelo público pois quando questionados sobre o que entendiam por violência doméstica contra a mulher a violência patrimonial não foi citada de forma espontânea Já o Relatório de Pesquisa sobre Violência Doméstica contra a Mulher da Subsecretaria de Pesquisa e Opinião Pública de 2005 indicou que 1 das 815 entrevistadas afirmaram ser a violência patrimonial a modalidade mais grave A análise fornecida nesse documento afirma que esse tipo de violência é percebida mais intensamente por mulheres com rendimentos de até 2 salários mínimos SEPO 2005 para quem certamente qualquer subtração causa um impacto Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 342 maior nas suas condições de vida Em 2015 de acordo com o balanço realizado pelos serviços de denúncia 180 organizado pela Secretaria de Políticas para as Mulheres SPMPR foram realizados 749024 atendimentos dentre os quais 210 referiamse especificamente a violência patrimonial SENADO FEDERAL 2016 A pesquisa do Instituto de Pesquisa Data Senado em parceria com o Observatório da Mulher contra a violência de 2017 indica que 8 das 1116 mulheres entrevistadas por amostra representativa da população feminina sofreram violência patrimonial SENADO FEDERAL 2017 No âmbito acadêmico encontramos poucas pesquisas que abordam o tema não havendo nem mesmo a ocorrência do termo violência patrimonial na biblioteca digital da Scielo Em outras bases de pesquisa porém encontramos o estudo realizado por Pereira et all 2013 em Viçosa MG que apresenta as percepções desse tipo de violência para mulheres jovens e idosas bem como alguns exemplos Dentre eles constam diversas estratégias para evitar o pagamento de pensão alimentícia à ex cônjuge e descendentes eou para a divisão do patrimônio comum após a separação pressões psicológicas para que a mulher sustentasse o companheiro apto mas não disposto ao trabalho destruição de bens materiais roubo de animais domésticos e contração de dívidas Notamos que a discussão sobre a violência patrimonial é mais recorrente em fóruns de discussão jurídica com ênfase maior senão exclusiva àquelas acometidas no âmbito do divórcio Alguns juristas argumentam porém que a dificuldade para a aplicação da Lei Maria da Penha especialmente quanto às medidas protetivas nesses casos decorre de interpretações conservadoras que consideram especialmente as imunidades previstas no Código Penal e à falta de ambiência em relação à Lei indicada Nosso objetivo porém não corresponde exatamente a esses tipos de casos envolvendo relações maritais mas uma situação mais ampla de violência patrimonial que envolve a família estendida através de relações tradicionais Estamos enquadrando nesses termos as estratégias utilizadas para negar às mulheres rurais o direito de herança à terra pertencente às suas famílias de origem Nesse contexto é preciso coadunar especialmente a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil Retemos do primeiro documento em seu artigo 5º a afirmação da igualdade entre homens e mulheres o que deve ser observado em todo e qualquer outro dispositivo jurídico Já o Código Civil estabelece os direitos de herança informando como herdeiros necessários no Artigo 1845 os descendentes os ascendentes e o cônjuge Assim entendese que todos os filhos independente do sexogênero têm o direito às cotas iguais da parte herança Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 343 Não sendo porém nossa área de estudos o Direito vamos nos limitar a fazer uma análise sociológica do tema Nesse sentido e não desprezando as conexões que frequentemente são estabelecidas entre violência patrimonial e outras modalidades como a violência moral e psicológica mas também física em alguns casos recorremos ao referencial da violência simbólica tal como teorizado por Pierre Bourdieu Essa violência invisível mas efetiva para a dominação de uma classe ou fração de classe sobre outras é ocasionada pela criação imposição e legitimação de sistemas simbólicos de conhecimento e comunicação BOURDIEU 1989 Como veremos na próxima sessão não é incomum o reconhecimento pelas famílias rurais e até mesmo por parte das mulheres das injustiças que sofrem quando lhes é negado o direito à herança mas o respeito e a submissão à instituição familiar calcada muitas vezes em crenças religiosas e no costume as leva mais facilmente a aceitar tal situação sem confronto e até reproduzila Na mesma linha proposta por Soler 2017 consideramos interessante e produtivo trabalhar em paralelo com a ideia do triângulo da violência de Johan Galtung A explicação gráfica da violência feita por esse sociólogo e matemático é curiosamente simples mas eficaz para pensarmos a violência em suas diversas manifestações e sempre de modo relacional entre si Assim o vértice superior do triângulo referese às violências visíveis eou diretas ou seja aquelas a que se pratica através do comportamento contra o corpo ou negação das necessidades básicas dos outros e que não por acaso são os tipos de violência mais evidenciados quando a temática é abordada Já na base estão as violências estruturais e culturais mais invisíveis porém não menos reais O vértice que corresponde à violência estrutural diz respeito à incorporação dos insultos diretos eou negações em suas estruturas sociais ordenamentos jurídicos organização estatal entre outros No terceiro vértice está a violência cultural compreendendo aspectos da cultura como religião e linguagem que legitimam as formas anteriores de violência Esse quadro geral sobre a problemática da violência indica que compreender e explicar a violência não é algo simples Há discretas nuances e infinitas combinações de fatores que favorecem a sua prática e dificultam a sua identificação A violência patrimonial neste sentido estaria na base do triângulo pois a prática cultural de transmissão de herança da terra é legitimada pela estrutura social patriarcal situação na qual a decisão do chefe de família não é questionada 2 A HERANÇA DA TERRA NO SUL DO PAÍS Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 344 Estudos como o de Bourdieu 2004 sobre camponeses franceses e de Woortman 1995 sobre o meio rural brasileiro destacam a relação entre as estratégias matrimoniais e o modelo de partilha de herança nas famílias camponesas Em ambos os casos o objetivo central é passar de uma geração a outra o patrimônio familiar de modo a salvaguardálo garantindo a sua reprodução para as gerações futuras Nesta decisão os pais levam em consideração a ordem de nascimento dos filhos o tamanho das famílias tanto da família proveniente como da família do futuro cônjuge e a posição econômica das famílias Na estratégia de conservação do patrimônio o bom funcionamento do sistema de herança é crucial Carneiro 2001 p23 ao interpretar a obra de Bourdieu afirma que o objetivo dos chefes de família é maximizar os lucros eou minimizar os custos econômicos e simbólicos do casamento as famílias realizam alianças em condições diferenciadas segundo as restrições impostas tanto pelo capital simbólicocultural quanto pelo capital econômico à disposição de uma delas Para a preservação do patrimônio a escolha da família da futura esposa era de extrema importância pois significava a manutenção de sua posição social Na prática apesar do chefe de família levar em consideração as disposições da família do futuro cônjuge a decisão sobre quem receberia a herança já estava estabelecida seria o primogênito é a ele que o patrimônio será transmitido Os outros filhos na linhagem sucessória ou seja os não primogênitos e filhas recebiam dependendo da posição econômica da família o dote no momento do casamento Porém como resultado do recebimento do dote oa filhoa ficava desligado da propriedade rural No caso de algum problema de sucessão sempre cabia ao pai decidir o destino do patrimônio o que era feito comumente em benefício dos filhos homens consolidando as relações desiguais na hierarquia interna das famílias e reforçando as posições diferenciadas entre os gêneros No sul do Brasil observase uma prática semelhante à realidade estudada por Bourdieu 20044 no processo de transmissão da terra Woortman 1995 relaciona tal tradição às práticas trazidas no final do século XIX e início do século XX pelo movimento migratório de alemães e italianos5 para quem a transmissão da terra era indivisa ou seja apenas um filho era escolhido 4 Nesta obra Bourdieu trata principalmente da problemática dos celibatários O celibato afetava principalmente os filhos homens que vinham depois dos primogênitos sobretudo nas famílias numerosas e mais pobres O celibato destes filhos era visto como necessário para a manutenção da propriedade camponesa BOURDIEU 2004 Com o alargamento do espaço social e em alguns casos a perda da centralidade dos pais na decisão dos casamentos o celibato também atingia os filhos primogênitos Por estes motivos Bourdieu considera que o celibato aparece nesta sociedade como o sinal mais claro da crise que a afeta a ordem social camponesa 5 Além de partes da Alemanha e Itália essa tradição era compartilhada também por camponeses do Sul da França e Áustria Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 345 como herdeirosucessor ficando o restante com uma parte insignificante ou sem absolutamente nada Assim o chefe de família centrado em sua autoridade privilegiava o filho primogênito na divisão da herança No entanto as formas de transmissão do patrimônio mudam de acordo com o contexto histórico econômico geográfico e institucional conforme aponta o estudo realizado por Carneiro 2001 Observase neste sentido que no sul do Brasil especialmente em regiões onde há predominância de descendentes de italianos e alemães com o passar dos anos as práticas culturais de transmissão de patrimônio foram sendo modificadas seja pelo protesto dos filhos sobre a rígida postura dos pais ou pela oportunidade de aquisição de terras A ideia de terra indivisa foi substituída portanto pela possibilidade de divisão da propriedade e pela ampliação do patrimônio para beneficiar mais filhos na transmissão patrimonial Os pais passaram não só a considerar a terra da família na transmissão mas também ponderam a divisão da terra da família ou aquisição de terras para doar aos filhos garantindo assim o sustento de todos os filhos homens após o casamento Nesta situação os filhos mais velhos no momento do casamento recebem propriedades adquiridas pelos pais e transmitidas por eles antes da morte e a propriedade da família passava a ser considerada herança do filho mais novo considerado como sucessor Ou seja o princípio da primogenitura às vezes pode ser substituído pela ultimogenitura na sucessão da propriedade familiar No processo de herança da ultimogenitura o filho mais novo é escolhido como sucessor para administrar a propriedade até a morte dos pais Após a morte dos pais há duas possibilidades os demais herdeiros doam a parte deles para o irmão mais novo ou o escolhido como sucessor compra a parte da herança dos irmãos a um preço inferior ao do mercado Além da flexibilização no sistema de transmissão de patrimônio também ocorreu uma mudança nas decisões sobre o matrimônio Até meados do século XX na região sul do Brasil podiase observar outra prática semelhante à estudada por Bourdieu 2004 na França qual seja o casamento se constituía como um problema de família cabendo ao pai a decisão do casamento de seus filhos pois entre os camponeses o casamento ocorria quando duas famílias entravam em acordo Atualmente o sistema de vigilância dos pais é menos rígido fazendo com que o casamento passe a ser uma escolha individual embora a aprovação da família e da comunidade ocorra de forma simbólica Os casamentos socialmente autorizados são os ocorridos entre pessoas de uma mesma origem étnica e de mesma condição econômica Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 346 Os homens então herdam as terras como apoio para levar adiante as atividades produtivas no meio rural e para elaborar projetos de vida que se apresentam como alternativas em relação à migração para a cidade O contrário acontece com as mulheres que encontram no casamento a forma de se manterem na agricultura familiar ou lhes resta a cidade a única opção para levar adiante os seus projetos de vida BRUMER 2004 CARNEIRO 2001 PAULILO 2004 No entanto nem todo homem herda quando a terra é pequena ou quando os pais têm restrições financeiras para adquirir outros terrenos mas a prioridade é deles Nesses casos os pais tentam pelo menos dar um comecinho de vida para o filho ou seja um caminhão para trabalhar um lote urbano para a casa ajudam a iniciar um pequeno negócio entre outras Diante do grande número de herdeiros e da pouca terra para distribuir a estratégia mais simples é a de excluir as mulheres da herança reservandolhes o dote Fato é que as mulheres são constantemente excluídas do processo de herança da terra mesmo com a conquista do direito a este bem determinado por lei6 que não significou uma possibilidade concreta de filhas de agricultores partilharem a herança em pé de igualdade com seus irmãos homens PAULILO 2004 p 233 Mesmo com o direito adquirido as famílias baseadas no costume7 excluem as mulheres e priorizam os filhos homens no momento da partilha das terras8 CARNEIRO 2001 BRUMER ANJOS 2008 PAULILO 2004 Devido a este costume elas ficam sem herdar o patrimônio familiar de suas linhagens de origem participando apenas indiretamente da herança dos maridos e sogros As regras de transmissão de herança e a destinação do dote ganham legitimidade social e a família segundo Carneiro 2001 acaba por ser impor como uma instituição acima da lei cujas regras do mundo privado são consideradas particulares e assim sendo não se submetem às regras do mundo exterior marcadas por regulamentações legais 6 No Brasil o direto à terra é baseado nas leis que garantem o direito de propriedade do direito civil já que não existe um direito agrário como existe na França por exemplo 7 Weber 1999 considera o costume como uma prática que se baseia no hábito inveterado encontrandose em contraposição à convenção e ao direito 8Importante mencionar que estamos tratando aqui de famílias consideradas proprietárias de terra porém não incluímos situações nas quais se configuram a posse o arrendamento o assentamento dentre outras formas de ocupação da terra A questão agrária brasileira é constitutiva da conformação dos espaços rurais brasileiros e suas características marcam profundamente a estrutura produtiva agropecuária sua desigualdade e insustentabilidade Não iremos abordar o tema da estrutura fundiária brasileira para esta discussão sugerimos a leitura de Sauer 2016 Objetivamos apenas registrar que não desconsideramos a complexa e excludente situação da posse e uso de terras no Brasil que estão relacionadas às grandes concentrações de terra às exclusões de acesso às questionáveis limitações entre as concepções dos espaços rurais e urbanos às questões sobre os territórios indígenas e quilombolas à luta pela terra os usos da terra das águas e das florestas para a exploração dentre outras complexidades Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 347 O termo ganhar a sua parte usado pelas mulheres rurais e citado por Paulilo 2004 exemplifica os casos de transmissão do patrimônio e a compensação fornecida pela família na sua falta Esta ação é a contraparte simbólica em função do merecimento pelo trabalho realizado em prol da propriedade rural No entanto por ser muito distinto do recebido pelos irmãos fica evidente que as atividades das mulheres nas lidas domésticas e nos cuidados na roça e na propriedade não têm o mesmo valor que o dos irmãos e mais que isso não são considerados como trabalhos Assim mais uma vez o processo sucessório é enviesado contra a mulher As implicações indiretas da falta de reconhecimento social relacionamse ao fato de que as mulheres apesar de ocuparem papéis centrais na produção agrícola da unidade familiar têm a sua importância marginalmente reconhecida Sendo que muitas vezes não são nem sequer consideradas como agricultoras Como consequência desse processo de alijamento são histórica e sistematicamente excluídas do acesso à terra em função de aspectos culturais que reservam tal privilégio ao filho homem beneficiado pela herança da família Neste sentido conforme aponta Carneiro 2001 o acesso da mulher à terra por herança depende tanto de sua posição específica no processo produtivo quanto dos valores que sustentam esta posição A exceção ocorre apenas nas situações em que não sobram herdeiros homens na família quando nenhuma pessoa do sexo masculino demonstra interesse por permanecer na terra ou quando uma filha se mantém na propriedade na condição de solteira para cuidar dos pais na velhice Mesmo quando são as mulheres que herdam a terra há um entendimento comum que elas ficam na propriedade para cuidar seja dos pais idosos ou da própria terra Nunca lhes é atribuída socialmente a condição de utilização da terra para a exploração agrícola e pecuária A alternativa à falta de herança e de contribuição dos pais por meio do dote quando as mulheres não se casam configurase na migração para a cidade Contudo quando a mulher migra usualmente o faz com o intuito de realizar um trabalho remunerado geralmente não recebendo nenhuma ajuda financeira de sua família Paulilo 2004 afirma que nestas situações a própria mulher no geral ainda jovem tem a responsabilidade de custear a sua mudança e o seu novo estilo de vida O contrário acontece com o filho homem que quando se muda para a cidade usualmente recebe uma contribuição equivalente ao valor da terra que lhe caberia no caso de permanecer no campo materializado na ajuda para os estudos na construção de uma casa etc Paulilo 2004 p 234 comenta adicionalmente que este tema é um tabu entre as mulheres As situações de partilha dos bens a escolha do sucessor e as escolhas da família do cônjuge escamoteiam a violência os sentimentos e dramas individuais que afetam a estrutura dos laços afetivos nas famílias As mulheres muitas vezes se dizem conformadas com a Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 348 situação da herança e a legitimam sustentadas pela noção do valor família CARNEIRO 2001 que é a forma como o processo decisório é forjado Mas em algumas ocasiões expressam um sentimento de revolta com a violência sofrida apesar de não se sentirem legitimadas a enfrentar os seus pais sobre o tema ou mesmo de realizarem uma denúncia Assim o que é estabelecido para as mulheres pela família representada pela autoridade do pai deve ser respeitado e acatado por todos os membros familiares Deere e Léon 2003 ao tratarem sobre os direitos à terra e à desigualdade nas relações de gênero ressaltam as limitações das mulheres em relação à posse da terra As autoras apontam os fatores para a diferença de gênero no acesso à terra na América Latina além dos já comentados preferência dada aos homens na herança e o privilégio masculino na transmissão de terras adquiridas pela família no momento do casamento há também o viés de gênero na distribuição de terras por programas do governo9 e o viés de gênero no mercado fundiário Nesta última situação os homens tradicionalmente os gestores dos recursos financeiros no meio rural praticam outra forma de violência patrimonial ao adquirir terras de modo que a titularidade da escritura permaneça em seus nomes excluindo as esposas da titularidade As autoras adicionalmente destacam a falta de dados estatísticos oficiais que possibilitem uma análise mais apurada sobre o tema e analisam os problemas metodológicos envolvidos na medição da distribuição da propriedade de terras por gênero que contribuem para a falta de evidência do acesso desigual a este bem Deere 2018 em um recente artigo10 comenta sobre a problemática Desde 1970 pesquisadores apontam essa lacuna para fins de análises de gênero dos censos agropecuários Deere León 2001 Doss 2014 Em primeiro lugar ignorar quem especificamente dentre os membros do domicílio é o proprietário da terra significa que a questão central da distribuição equitativa em termos de gênero dos recursos produtivos propriedade da terra não pode ser abordada Em segundo lugar essa lacuna também prejudica avaliações do impacto de políticas elaboradas para promover igualdade de gênero dado que uma linha de base rigorosa não pode ser estabelecida Em terceiro lugar uma questão importante de pesquisa relacionada ao objetivo da segurança alimentar é saber se os proprietários no setor de pequeno porte dirigem suas próprias fazendas e caso contrário por que não É importante saber por exemplo se é menos provável que proprietárias dirijam suas próprias parcelas do que proprietários devido à 9 No Brasil os programas da Reforma Agrária desde 2003 instituíram a titularidade conjunta da terra que deve incluir obrigatoriamente o nome da mulher e do homem nos lotes de assentamento constituídos por um casal em situação de casamento ou união estável A partir de 2007 as mulheres chefes de família passaram a ter direito preferencial à terra A titularidade conjunta e o direito preferencial pela titularidade para as mulheres chefe de família se deu pela reivindicação das mulheres organizadas em movimentos sociais A partir destas modificações notase um aumento significativo do número de mulheres assentadas 10 Deere 2018 faz um levantamento dos dados existentes sobre a posse da terra na América Latina destacando a insuficiência de dados que reflitam a desigualdade de gênero na posse da terra Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 349 discriminação no mercado de crédito ou no acesso a assistência técnica ou a mercados de produtos Uma análise desse tipo não poderia ser realizada apenas com base na informação sobre o sexo do produtor agropecuário é essencial saber quem é o proprietário da terra DEERE 2018 p 910 A evidência mais imediata sobre a falta de titularidade da terra para as mulheres recai sobre o não reconhecimento social de seus papéis como trabalhadoras rurais o que expressa além de uma violência patrimonial uma violência simbólica e moral Por este motivo a alternativa historicamente cristalizada em nossa sociedade é materializada pela via do matrimônio Ou seja as mulheres têm acesso à terra apenas com o casamento Brumer 2004 corrobora esta assertiva ao afirmar que as mulheres não herdam terra a não ser que seu marido seja agricultor11 As regras de transmissão do patrimônio familiar entre os agricultores familiares permitem compreender as dinâmicas de reprodução social das famílias e o lugar reservado para os homens e as mulheres em nossa sociedade A terra além do valor econômico expressa um valor simbólico BRANDÃO 1999 e a posse da propriedade pode ser uma précondição para a participação das mulheres no processo decisório agrícola ou na alocação da renda domiciliar DEERE 2018 Neste sentido sem a possibilidade de herança as mulheres que permanecem no meio rural ficam sujeitas a autoridade dos maridos e dos sogros 3 A TERRA E O TRABALHO DAS MULHERES Em nossa incursão no campo empírico em regiões do meio rural catarinense pudemos perceber que a forma como a herança da terra ocorreu na vida dos cônjuges afeta diretamente a intensividade e a extensividade12 da jornada de trabalho cotidiana das agricultoras Nestes casos a jornada cotidiana de trabalho é agravada quando as mulheres se casam com o herdeiro sucessor da propriedade familiar Quando o herdeiro sucessor é escolhido pelos pais representado geralmente em um contexto histórico mais recente pelo filho mais novo nos casos em que os filhos mais velhos já receberam as suas partes em forma de terras adquiridas e doadas pelos pais ele permanece 11 No contexto empírico desta pesquisa observase uma diferença entre as gerações de mulheres Às mulheres da primeira geração lhes é reservado o dote no momento do casamento representado por roupas de cama toalhas máquinas de coser e novilhas O número de itens depende da condição financeira da família Com as mulheres da segunda geração observase uma tendência a outra prática de compensação Elas têm nos estudos a recompensa por não serem consideradas na herança da terra O incentivo para os estudos é praticado principalmente pelas mães que ao desejarem um futuro diferente do que tiveram para as filhas se esforçam para que elas possam dedicar o maior tempo possível aos estudos assumindo inclusive tarefas cotidianas no estabelecimento rural que poderiam ser realizadas pelas filhas Existe assim uma menor pressão social pelo casamento 12 A extensividade resulta em um grande número de horas de trabalho em geral 13 a 14 horas diárias A intensividade por sua vez resulta na simultaneidade das tarefas ÁVILA 2009 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 350 morando na propriedade exercendo o trabalho agrícola e como contrapartida se responsabiliza por cuidar dos pais na velhice e no caso de doenças Quando o herdeiro sucessor se casa geralmente quando está com cerca de 20 anos de idade as esposas ingressam na família do marido e passam a conviver com os seus maridos em um espaço sob autoridade dos sogros Devido à divisão sexual do trabalho apesar dos filhos sucessores serem responsáveis pelos cuidados dos pais não são eles que assumem tal tarefa e sim as suas esposas A subordinação dos filhos e das noras à autoridade do pai persiste enquanto permanecem morando sob o mesmo teto que acaba por configurar em divergências entre os indivíduos da estrutura familiar Neste sentido além das mulheres sofrerem violência patrimonial ao serem excluídas do processo de herança de suas famílias de origem elas estão sujeitas à violência física psicológica e moral de seus maridos e sogros Nesse contexto o ritmo de trabalho cotidiano é ditado pelos sogros e as agricultoras usualmente não tem nenhuma autonomia para decidir sobre a dedicação de seu tempo para as atividades cotidianas e quanto menos de tempo para si Algumas agricultoras relatam inclusive sobre a dificuldade para realizar a higiene pessoal com tranquilidade e também para se comunicar com os seus maridos Ao passar a fazer parte da família do marido há o entendimento de que a mulher deva fazer valer a parte que lhe coube naquela propriedade ou seja o direito de conviver naquele espaço e de estar apta a usufruir do patrimônio familiar do marido O merecimento por estes direitos em função daquilo que lhes cabe no futuro deve ser reafirmado cotidianamente a partir da disponibilidade para o trabalho produtivo e reprodutivo13 Entendemos esta situação como uma forma de violência patrimonial mesmo que as agricultoras não tenham sido excluídas do direito de conviver na propriedade da família do marido Enquanto os sogros têm saúde suficiente para executar sem dificuldades as atividades cotidianas tanto no âmbito produtivo quanto no reprodutivo os membros da família residentes na propriedade compartilham as obrigações entre si Quando os sogros passam a ter limitações físicas eou intelectuais devido a problemas de saúde ou devido ao processo de envelhecimento que os impedem de assumir determinados afazeres o casal passa sozinho a realizar as atividades do estabelecimento Neste caso o marido dedicase exclusivamente ao trabalho de 13 O termo trabalho reprodutivo referese aos trabalhos doméstico e de cuidados e é utilizado em oposição ao trabalho que produz renda conhecido como produtivo Fazemos uso desta dicotomia por ela ser largamente aceita no debate acadêmico porém compreendemos as limitações que esta dicotomia representa sobre isso ver Carrasco 2013 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 351 fora e a esposa desdobrase entre o trabalho de fora e o de dentro14 agora com a carga adicional de cuidado com os sogros Essa experiência é compartilhada por todas as mulheres em condições semelhantes de casamento Em nossas incursões empíricas não houve nenhum relato de mulheres que não passaram pela situação de sobrecarga ainda mais intensa de trabalho incluindo o cuidado com os sogros quando casadas com o sucessor familiar A responsabilidade pelo cuidado não passava somente pelos sogros pois as mulheres nestes contextos se encarregam por tudo que vinha junto com a propriedade expressão utilizada por elas para se referirem às demais pessoas que viviam na propriedade da família do marido É comum que elas sejam responsabilizadas pelos cuidados de cunhados ou cunhadas com deficiências seja física ou intelectual ou qualquer outro parente do marido que tenha dificuldades de exercer suas capacidades com autonomia e que viva no estabelecimento HERRERA 2019 Quando os sogros falecem geralmente elas continuam convivendo sob a tutela da sogra contudo os relatos confirmam que a qualidade de vida melhora depois que deixam de viver sob a autoridade patriarcal do sogro Apesar das sogras representarem a nova autoridade naquele espaço elas são consideradas menos rígidas que os sogros Após a morte dos proprietários uma nova configuração entra em jogo Os herdeiros legais entram em acordo para transferir a parte da herança que lhes cabe ao filho sucessor Nestes casos as transferências podem ocorrer por doação ou por venda geralmente a preço abaixo do mercado conforme mencionamos anteriormente O desejo do pai de que o filho escolhido assegure a continuidade da atividade agrícola costuma ser respeitado e a propriedade da terra da família tende a ser transmitida ao sucessor sem conflitos Quando algum pacto se quebra como por exemplo no caso do filho sucessor e sua esposa não terem assumido integralmente os cuidados do sogro ou da sogra os filhos herdeiros que já saíram da propriedade penalizam o filho sucessor e sua família com regras menos amigáveis de transmissão de patrimônio conhecida também como terra da família Isso se materializada pela venda da parte dos herdeiros a preço de mercado a expulsão do filho sucessor e sua família daquela propriedade ou até mesmo deixando a cargo da família 14 A experiência das mulheres na vida cotidiana rompe com as categorias analíticas dicotômicas expressas nos termos produtivo e reprodutivo as próprias agricultoras se referem ao tipo de trabalho que realizam como trabalho de fora da casa e trabalho de dentro da casa como referência espacial ao trabalho que realizam em seu cotidiano Herrera 2019 apresenta esta discussão em sua tese de doutorado Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 352 sucessora os cuidados de membros familiares que permaneceram na propriedade como o irmão ou irmã do sucessor Isso revela que as regras de transmissão da terra baseadas em costumes comumente são respeitadas mesmo após a morte do patriarca A família passa a ser a guardiã do patrimônio no caso da morte do pai e a forma de transmissão da terra e a configuração do trabalho reprodutivo tal como os cuidados com os familiares com deficiência que permanecem na propriedade é definida a partir dos arranjos acordados na família do marido mesmo que estas atividades recaiam sobre a esposa Como bem definem as agricultoras nestas situações viver na terra da família dele significa ganhar o pacote todo Esta experiência é legitimada em muitas ocasiões pelas próprias mulheres Ainda sobre o trabalho é necessário tecer algumas considerações sobre suas relações com a origem étnica da mulher pois é comum observar atitudes racistas quando a esposa é de uma origem étnica diferente da família do marido principalmente no caso de descendentes europeus nãoibéricos se casarem com caboclas Conforme nos esclarece Renk 1995 os caboclos e indígenas do meio rural catarinense são estigmatizados pelos descendentes de italianos e alemães como menos afeitos ao trabalho Entre os agricultores familiares descendentes de imigrantes italianos e alemães está arraigada a ideia de que o trabalho deve ser contínuo metódico e organizado O trabalho para este grupo social é pensado na lógica do ganho ou da perda e constituise como um dos elementos estruturadores da organização interna dos grupos e da distribuição de tarefas RENK 1997 Neste sentido a situação de vida dos caboclos muitas vezes marcada pela pobreza aparece na forma de indolência e de não aproveitamento do tempo Assim como pela ausência de espírito de investimento adequado de boa poupança e de preocupação com o futuro Contudo a postura racista de agricultores de ascendência europeia em relação aos caboclos desconsidera que a falta de recursos deste grupo social é resultado da forma como se configurou a colonização no oeste catarinense que beneficiou com terras os imigrantes de origem europeia em detrimento da população local formada por brasileiros e indígenas15 Desse modo nessa região é comum considerar que as mulheres de famílias sem ascendência europeia não ibérica que casam com alguém com essa origem devam provar ser afeitas ao trabalho para merecer a sua estadia naquela propriedade Isso revela a complexidade 15 A história da colonização no oeste catarinense é mais complexa do que a distribuição das terras entre os descendentes de europeus não ibéricos e a população autóctone Ao mencionar esta relação não desconsidero os conflitos presentes na região Contudo não irei aprofundar este tema nesta tese Os excelentes trabalhos de Renk 1995 1997 2009 são elucidativos do processo histórico da colonização e da experiência dos caboclos e indígenas da região Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 353 da experiência das mulheres imbricadas nas relações sociais onde as categorias de classe raça e gênero operam de forma consubstanciada KERGOAT 2016 Ou seja se para seguir com um projeto na agricultura as mulheres rurais de modo geral devem recorrer ao casamento para ter acesso à terra submetendose às regras da família do marido as mulheres de origem cabocla ainda correm o risco de sofrer tratamento discriminatório e opressivo por sua origem Dessa forma o casamento com um sucessor lhes proporciona usualmente uma experiência mais árdua não apenas em relação à sobrecarga de trabalho cotidiano mas também psicológica e moral CONSIDERAÇÕES FINAIS Observamos que o tema da herança da terra no sul do Brasil é um tabu como mencionado por Paulilo 2004 o qual favorece o poder de legitimar a violência patrimonial As configurações da divisão sexual do trabalho e a falta de autoridade das mulheres representada pela ausência do direito de posse da terra e a consequente falta de reconhecimento da profissão de agricultora limita o poder de barganha potencial que a propriedade da terra poderia lhes conferir tanto dentro dos domicílios quanto no próprio espaço rural As mulheres ao não terem controle dos meios de produção ficam ainda mais vulneráveis às violências patrimonial moral e simbólica ao estarem sujeitas às decisões de seus familiares que possuem a propriedade da terra Nosso objetivo porém não visou reduzir a problemática da violência patrimonial a questão da transmissão da herança da terra em si mas chamar atenção para o fato de que essa questão quando abordada nunca o é sob a ótica da violência mas sim do costume Talvez a dificuldade em identificar tal prática como violência ocorra porque não se trata de uma ação realizada por um indivíduo contra outro como no caso do marido ou exmarido contra a esposa como é mais comum especialmente no âmbito de divórcio No contexto apresentado a violência patrimonial é levada a cabo pelo conjunto das famílias a dela e a dele e legitimado historicamente pela comunidade da qual fazem parte Compreendemos portanto que as relações sociais engendradas no cotidiano da agricultura familiar são marcadas pela interdependência entre os indivíduos ELIAS 1970 e a estrutura social em que as pessoas estão inseridas Com isso ressaltamos que as atitudes como as dos proprietários de terra que observamos em nossas pesquisas empíricas não podem ser entendidas puramente como motivações pessoais pois os indivíduos como parte integrante das estruturas sociais agem motivados por questões culturais políticas econômicas e históricas que conformam as suas experiências de vida No entanto essa questão demanda estudos mais profundos bem como previsto na Lei Maria da Penha e especialmente comprometidos com o Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 354 meio rural para que se construam formas mais efetivas de coibir tais práticas que operam em detrimento das mulheres É preciso ter clareza que a violência patrimonial muitas vezes está na raiz de diversas outras formas de violências a que são submetidas as mulheres no meio rural REFERÊNCIAS BOURDIEU Pierre O Poder Simbólico Rio de Janeiro Ed Bertrand Brasil 1989 BOURDIEU Pierre El baile de los solteros Barcelona Editorial Anagrama 2004 BRANDÃO Carlos Rodrigues O afeto da terra Campinas Educamp 1999 BRASIL Lei nº 11340 Lei Maria da Penha Brasília DF Presidência da República 2006 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Ato2004 20062006LeiL11340htm Acesso em 11 set 2019 BRUMER Anita Gênero e agricultura a situação da mulher na agricultura do Rio Grande do Sul Revista Estudos Feministas Florianópolis v 12 n 1 jan 2004 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0104 026X2004000100011lngennrmisotlngpt Acesso em 24022019 BRUMER Anita ANJOS Gabriele dos Gênero e reprodução social na agricultura familiar Revista Nera São Paulo v11 n12 p617 janjun 2008 Disponível em httpwwwmstemdadosorgsitesdefaultfiles139640201PBpdf Acesso em 24022019 CARNEIRO Maria José Herança e gênero entre agricultores familiares Revista Estudos Feministas Florianópolis v 9 n 1 2001 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0104 026X2001000100003lngennrmisotlngpt Acesso em 24022019 CARRASCO Cristina El cuidado como eje vertebrador de una nueva economía Cuadernos de Relaciones Laborales Madrid v 31 n 1 p 39 56 abr 2013 Disponível em httprevistasucmesindexphpCRLAarticleview4162739688 Acesso em 24022019 CUNHA Rogério Sanches PINTO Ronaldo Batista Violência doméstica Lei Maria da Penha Lei 113402006 comentadaartigo por artigo 2 ed rev atual e ampl São Paulo Revista dos Tribunais 2008 DEERE Carmen LEON Magdalena The gender asset gap land in Latin America World Development Montreal v31 n 6 p925 947 2003 Disponível em httpswwwamherstedumediaview92212originalgender20asset20gappdf Acesso em 24022019 DEERE Carmen Objetivos de desenvolvimento sustentável igualdade de gênero e a distribuição de terra na América Latina Cadernos Pagu Campinas n 52 nov 2018Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0104 83332018000100206lngptnrmisotlngpt Acesso em 24022019 ELIAS Norbert Introdução a Sociologia Lisboa Edições 70 1970 204 p Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 355 HERRERA Karolyna Da invisibilidade ao reconhecimento uma análise do papel da mulher rural a partir da perspectiva da multifuncionalidade agrícola Dissertação Mestrado em Sociologia Política Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 2015133 p HERRERA Karolyna A jornada interminável a experiência no trabalho reprodutivo no cotidiano das mulheres rurais Tese Doutorado em Sociologia Política Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 2019 227p IBGE Censo demográfico de 2010 Consulta realizada em httpssidraibgegovbr INSTITUTO AVON Percepções sobre violência doméstica contra a mulher no Brasil 2011 KERGOAT Danièle O cuidado e a imbricação das relações sociais In ABREU Alice Rangel de Paiva HIRATA Helena LOMBARDI Maria Rosa Gênero e trabalho no Brasil e na França perspectivas interseccionais São Paulo Boitempo 2016 p1726 LOSADA SOLER Elena Representações da violência em A guerra dos bastardos de Ana Paula Maia Estud Lit Bras Contemp Brasília n 50 p 138156 Abr 2017 Disponóvel em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS231640182017000100138B3 Acessado em 22 de agosto de 2019 PEREIRA Rita de Cássia Bhering Ramos LORETO Maria das Dores Saraiva de TEIXEIRA Karla Maria Damiano SOUSA Junia Marise Matos de O fenômeno da violência patrimonial contra a mulher percepções das vítimas Oikos Revista Brasileira de Economia Doméstica Viçosa v 24 n1 p207236 2013 httpswwwlocusufvbrbitstreamhandle12345678913801896742 PBpdfsequence1isAllowedy PAULILO Maria Ignez S Trabalho familiar uma categoria esquecida de análise Revista de Estudos Feministas Florianópolis v 12 n1 p 229252 janabr 2004 RAMOS Flavia Soares Entre a teoria e a prática agroecológica onde e como estão as mulheres rurais Um estudo de caso na região da Grande Florianópolis SC Dissertação Mestrado em Sociologia Política Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 2016 RENK Arlene A colonização do oeste catarinense Cadernos do CEOM Chapecó v 10 n1 a 8 p 221258 1995 Disponível em httpbellunochapecoedubrrevistasindexphprccarticleview23111389 Acesso em 24022019 RENK Arlene A luta da erva um ofício étnico da nação brasileira no Oeste Catarinense Chapecó Grifos 1997 RENK Arlene Expropriação do campesinato caboclo no oeste catarinense In GODOI Emilia Pietrafesa de MENEZES Marilda Aparecida de MARIN Rosa Acevedo Org Diversidade do campesinato expressões e categorias construções identitárias e Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 356 sociabilidades v1 São Paulo Editora UNESP Brasília DF Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural 2009 SAUER Sérgio Terra no século XXI desafios e perspectivas da questão agrária Retratos de Assentamentos v 19 p 6997 2016 Disponível em httpretratosdeassentamentoscomindexphpretratosarticleview239214 Acesso em 24022019 SENADO FEDERAL Panorama da violência contra as mulheres no Brasil recurso eletrônico indicadores nacionais e estaduais N 1 2016 Brasília Senado Federal Observatório da Mulher Contra a Violência 2016 httpwwwsenadogovbrinstitucionaldatasenadoomvindicadoresrelatoriosBR2018pdf SENADO FEDERAL Violência doméstica e familiar contra a mulher Pesquisa DataSenado Brasília Senado Federal Junho 2017 httpswww12senadolegbrinstitucionaldatasenadoarquivosaumentanumerode mulheresquedeclaramtersofridoviolencia SEPO Relatório de Pesquisa Violência Doméstica Contra a Mulher Brasília Subsecretaria de Pesquisa e Opinião Pública 2005 httpswwwsenadogovbrsenadodatasenadopdfdatasenadoDataSenadoPesquisa ViolenciaDomesticacontraaMulher2005pdf WEBER Max Economia e sociedade Brasília UnB 1999 WOORTMANN Ellen F Herdeiros parentes e compadres colonos do sul e sitiantes do nordeste São Paulo Hucitec Brasília UnB 1995 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 357 A VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL CONTRA A MULHER ASPECTOS DESTACADOS SOBRE O DEGRADANTE TRATAMENTO FEMININO NO SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO Hellen Lopes Dutra Mazzola1 Luciana Bittencourt Gomes Silva2 RESUMO A crescente progressão do encarceramento feminino e a invisibilidade de gênero no sistema prisional brasileiro trazem consigo um cenário de graves violações aos direitos fundamentais O presente artigo possui como contexto a violência institucional contra a mulher e o degradante tratamento penitenciário em face da não contemplação pelo Estado das peculiaridades e especificidades do gênero feminino Objetivase verificar a condição de aprisionamento das mulheres traçando um paralelo entre as causas de aumento da população carcerária feminina e as dificuldades enfrentadas por este grupo no que tange à acessibilidade do direito à saúde à assistência judiciária e à maternidade Nesse cenário destacamse as legislações no âmbito nacional e internacional que asseguram às mulheres em cárcere um tratamento embasado em um viés mais humanizado Na fase de investigação adotouse uma postura metodológica dedutiva utilizandose as técnicas da categoria do conceito operacional e da pesquisa bibliográfica Palavraschave Violência institucional Sistema prisional Mulheres encarceradas INTRODUÇÃO Desde a época do suplício da chibata do tronco da fogueira e da guilhotina consoante elucidava Focault 1999 verificase a necessidade histórica de punir sujeitos que tivessem praticados condutas não permitidas e em ofensa à conservação da ordem pública Com o advento da idade moderna a humanidade buscou novos mecanismos para o controle da criminalidade dentre eles o sistema prisional cuja ideia intrínseca consubstanciase numa dinâmica capaz de reprimir o ato delitivo e promover a reinserção social do indivíduo infrator Conforme leciona Chaves Junior 2018 p 91 hoje como regra a vingança sacrificial não opera pelos meios informais como nas antigas civilizações É o Sistema Penal que reafirma nos dias atuais por meio da Violência Legítima a vingança pública ao tempo em que condena a vingança 1 Assessora Jurídica no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina Mestranda em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí UNIVALI Graduada em Direito pela mesma instituição de ensino 2017 Hellendutraahotmailcom Lattes httplattescnpqbr8108154644415229 2 Técnica Judiciária Auxiliar no Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina Mestranda em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí UNIVALI Especialista em Ciências Penais pela Universidade Anhanguera UNIDERP 2011 Aperfeiçoamento pela Escola do Ministério Público do Estado do Paraná 2007 Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa UEPG 2005 Lucianabghotmailcom Lattes httplattescnpqbr6687062101760929 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 358 privada Mesmo após todos os avanços civilizatórios na atualidade o sistema prisional brasileiro manifesta graves violações aos direitos fundamentais da população carcerária seja pela superlotação dos estabelecimentos prisionais somada à escassa assistência jurídica e social seja pela pouca eficiência das políticas de ressocialização e os altos índices de reincidência criminal O cenário revelase ainda mais alarmante quando se depara com as transgressões às especificidades do gênero feminino como a maternidade a amamentação a saúde ginecológica e a higiene características estas que não encontram albergue num sistema concebido para custódia da população masculina É sob esse enfoque que se insere o presente artigo cujo objetivo é aferir se as especificidades do gênero feminino são observadas pelo Estado no desempenho da administração penitenciária Para desenvolver a presente pesquisa foi utilizado o método dedutivo As técnicas utilizadas nesse estudo foram a da Pesquisa Bibliográfica da Categoria e do Conceito Operacional Pasold 2015 1 DESENVOLVIMENTO 11 O aumento da população carcerária feminina números e causas Estatísticas e pesquisas demonstram um expressivo aumento no número de prisões de mulheres nas últimas décadas O Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN criado em 2004 com o objetivo de compilar informações do sistema penitenciário brasileiro especializouse na análise da inserção das mulheres no sistema prisional visibilizando uma população que historicamente esteve relegada ao segundo plano em análises sobre o sistema de justiça criminal BRASIL 2018 p 06 Na 2ª edição da pesquisa divulgada em 2018 verificase que dos 12 países que mais encarceram mulheres no mundo o Brasil encontrase na 4ª posição mundial ficando atrás apenas dos Estados Unidos da China e da Rússia se considerada a taxa de aprisionamento3 o Brasil figura na 3ª posição seguida apenas pelos Estados Unidos e Tailândia Entre 2000 e 2016 a taxa de aprisionamento de mulheres aumentou em 455 no Brasil Brasil 2018 O Conselho Nacional de Justiça por sua vez implantou o Banco Nacional de Monitoramento de Prisões BNMP com o propósito de realizar o cadastro de reclusos no país A primeira divulgação dos resultados foi incompleta tendo em vista que o Estado de São Paulo que em 2016 concentrava 331 de toda a população prisional do país Brasil 2016 não terminou de alimentar seus cadastros a tempo e o Estado do Rio Grande do Sul à época sequer havia iniciado a implantação do sistema 3 Referese ao número de mulheres presas para cada grupo de 100 cem mil mulheres Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 359 Mesmo com a infidelidade de dados na ocasião o BNMP apontou que a população carcerária brasileira contava com 602217 pessoas privadas de liberdade destas 29453 são mulheres Conselho Nacional de Justiça 2018 Dados estatísticos revelam que à medida que há maior inserção das mulheres no mercado e trabalho e consequentemente maior responsabilidade quanto ao sustento familiar a participação feminina nas estatísticas criminais também aumenta Isso porque consoante registros de Spíndola 2016 p 08 A prática do crime pela mulher no contexto atual do país está quase sempre relacionado à busca de prover condições de subsistência para seus filhos Situação comum ainda a de que a mulher se incline à prática infratora predominantemente com o narcotráfico para favorecer o seu companheiro realizando o cumprimento do seu papel de abnegação culturalmente e historicamente imposto pelo patriarcado Pois como conclui Lemgruber 1999 p 06 à medida que as disparidades socioeconômicas entre sexos diminuem há um aumento recíproco da criminalidade feminina Outrossim conforme perfil delineado a partir do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias do Ministério da Justiça INFOPEN Mulheres o grupo de prisioneiras é constituído por jovens de baixa renda com filhos que dependem economicamente delas e a sua tipificação criminal ocorreu por envolvimento com o narcotráfico e em conduta não relacionada às organizações criminosas ou gerência do tráfico de entorpecentes Brasil 2018 Nesse cenário temse que 3 três em cada 5 cinco mulheres que se encontram segregadas no sistema prisional respondem por crimes relativos ao tráfico de drogas Desse levantamento extraise ainda que 50 da população prisional feminina é formada por jovens até 29 anos e 66 ainda não chegou a cursar o ensino médio Brasil 2018 No que tange às condições socioeconômicas dessas mulheres apesar da falta de colheita de dados especificamente quanto à renda por ocasião das prisões outras informações obtidas como a escolaridade raça ocupação e local de residência permitem concluir a existência de um perfil de vulnerabilidade socioeconômica entre as mulheres segregadas Da Fonseca et al 2017 Referida vulnerabilidade quando somada às precárias condições sociais e financeiras em que as apenadas se encontram inseridas também resultam num menor acesso ao auxílio técnico jurídico Tal cenário revelase latente pela precariedade da assistência judiciária gratuita e da ainda embrionária implantação das Defensorias Públicas dos Estados 12 Normas internas e internacionais que tratam da mulher presa Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 360 No âmbito normativo interno são poucas as menções na legislação para assegurar um tratamento diferenciado à mulher O Código de Processo Penal nos arts 318 inciso IV e 318A trata da possibilidade de substituição da prisão preventiva pela prisão domiciliar à gestante à mãe ou à responsável por crianças Por seu turno a Lei de Execução Penal LEP especifica a necessidade de haver estabelecimentos próprios e adequados para cumprimento de pena por mulheres art 82 1º inclusive dotados de berçário para que elas possam cuidar de seus filhos e amamentálos no mínimo até os 6 meses de idade art 83 2º e de creches para crianças entre 6 meses e 7 anos nos termos do art 89 da LEP Referido preceito também se encontra no Estatuto da Criança e do Adolescente Lei n 80691990 e nas Regras Mínimas para o Tratamento do Preso no Brasil Da mesma forma a LEP também alude nos arts 77 2º e 83 3º à admissão exclusiva de agentes de segurança do sexo feminino nas instituições femininas Nesse trilhar a Lei nº 137692018 trouxe inovações ao texto da LEP ao inserir a possibilidade de progressão de regime exclusiva para mulheres gestantes mães ou responsáveis por crianças ou pessoas com deficiência nos termos do art 112 3º da referida Lei de Execuções Penais Apesar de extremamente importantes constatase que os dispositivos legais fazem referência à mulher mãe ou gestante demonstrando que a real intenção do legislador foi de amparar os filhos ou dependentes das mulheres reclusas sem considerar o bemestar e tratamento digno das próprias apenadas Na contramão do preceito dito alhures a Lei n 137152018 inseriu alteração ao Estatuto da Criança e do Adolescente a fim de assegurar a convivência da criança e do adolescente com os pais privados de liberdades além de estabelecer no parágrafo 2º do art 23 que a condenação criminal dos genitores não implicará a destituição do poder familiar salvo na hipótese de condenação por crime doloso sujeito à pena de reclusão contra outrem igualmente titular do mesmo poder familiar ou contra filho filha ou outro descendente No que concerne ao cenário normativo internacional verificase que as condições de vida das mulheres em cárcere encontramse contempladas em normas específicas Assim é que na 65ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas ONU realizada em dezembro de 2010 com o objetivo de complementar as Regras Mínimas para o tratamento de pessoas em situação de reclusão bem como as Regras Mínimas das Nações Unidas sobre medidas não privativas de liberdade Regras de Tóquio houve a aprovação das Regras das Nações Unidas para o Tratamento das Mulheres Presas e Medidas não Privativas de Liberdade para Mulheres Infratoras denominadas Regras de Bangkok Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 361 Referida documentação traz consigo novos paradigmas tratando de forma especial da higiene pessoal Regra 5 e da saúde da mulher Regras 6 a 13 além de prever recomendações para a adoção de medidas alternativas ao aprisionamento feminino notadamente voltadas à problemática da gestação e dos cuidados com os filhos Regras 48 a 52 Nas Regras de Bangkok objetivase que seja priorizada a aplicação de medidas cautelares e não privativas de liberdade à gestante ou àquela pessoa que seja a principal ou a única responsável por um infante além de que a imposição de penas privativas de liberdade seja relegada tão somente para casos de crimes graves ou violentos Entretanto ao cotejar o aparato legislativo existente e a realidade vivenciada no interior das prisões brasileiras concluise que a positivação de normas não foi suficiente para acompanhar a mudança do cenário prisional feminino ocorrido nas últimas décadas 13 Invisibilidade de gênero no sistema prisional brasileiro Extraise do Levantamento INFOPEN Mulheres que 74 das unidades prisionais destinam se aos homens 7 exclusivamente ao público feminino e outros 16 são caracterizados como mistos ou seja com alascelas específicas para o aprisionamento de mulheres dentro de um estabelecimento originalmente masculino Brasil 2018 A estrutura prisional no Brasil foi originalmente arquitetada com a finalidade de abrigar homens Contudo com o aumento da população carcerária feminina várias instalações foram indevidamente adaptadas às mulheres A título de exemplo mencionase a antiga Penitenciária Estadual de São Paulo reformada no ano de 2005 e reinaugurada sob o nome de Penitenciária Feminina de Santana O descaso com as especificidades femininas nas suas instalações foi observado no Relatório sobre as Mulheres Encarceradas que assim descreveu No local do vaso sanitário e do chuveiro há uma parede que teria a função de propiciar certa privacidade no banho ou no uso do toalete mas que tem altura suficiente apenas para cobrir a visão até a cintura Essa mureta é cortada no meio por uma porta cujo centro é vazado e sua frente dá justamente para o vaso sanitário inviabilizando por conseguinte qualquer privacidade quando necessária A mesma parede que pretende conferir certa privacidade foi construída na época em que a Penitenciária abrigava apenas homens e não tem altura suficiente para esconder os seios CENTRO PELA JUSTIÇA E PELO DIREITO INTERNACIONAL et al 2007 p 22 Segundo informações divulgadas pela Pastoral Carcerária em junho de 2015 no Presídio de Governador Valadares em Minas Gerais onde funciona uma unidade mista de atendimento houve Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 362 um motim alavancado por detentos ocasião em que várias reclusas foram estupradas por outros presos que ficaram soltos dentro das alas do presídio durante a rebelião Cunha 2017 As estruturas físicas das unidades prisionais deveriam ser aptas às condições femininas observandose as diferenças entre os gêneros É sob esse enfoque que Queiroz 2016 p 19 pontua Assim ignoramos as transgressões de mulheres como se pudéssemos manter isso em segredo a fim de controlar aquelas que ainda não se rebelaram contra o ideal da feminilidade pacífica Ou não crescemos ouvindo que a violência faz parte da natureza do homem mas não da mulher É fácil esquecer que mulheres são mulheres sob a desculpa de que todos os criminosos devem ser tratados de maneira idêntica Mas igualdade é desigual quando se esquecem das diferenças É pelas gestantes os bebês nascidos no chão das cadeias e as lésbicas que não podem receber visitar de suas esposas e filhos que temos de lembrar que alguns desses presos sim menstruam Em audiência pública na Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados em abril de 2017 a coordenadora nacional para a questão da Mulher Presa da Pastoral Carcerária Petra Silva Pfaller exibiu fotos que mostravam picadas de baratas em braços e pernas de presas nos Estados de Mato Grosso do Sul Rio Grande do Norte e Maranhão Na oportunidade asseverou As celas das mulheres são pintadas de corderosa são enfeitadas e até bonitas em comparação com a dos homens Mas é so por fora Infelizmente pelas fotos não dá para sentir o cheiro das prisões CUNHA 2017 p 01 As recorrentes violações a direitos humanos das mulheres reclusas ainda são tidas como meros acessórios da pena A aplicação de flagelo físico e psicológico é aceita por parcela significativa dos cidadãos brasileiros como integrante da sanção penal Ainda impera o entendimento de que a punição prisional deve ir além do isolamento social e familiar consequências consideradas muito brandas para um efetivo castigo E sob esse viés destacamse as conclusões de Maria Palma Wolff mencionados na obra de Chaves Junior a postura de que quem fez tem que pagar é postura correspondente entre presos e técnicos Até mesmo os maustratos e o descumprimento de direitos estabelecidos são avaliados como decorrentes do cumprimento da pena WOLFF 2005 apud Chaves Junior 2018 Somado a isso perdura o estigma sobre a pessoa apenada ou egressa do sistema penal e nesse ponto o tratamento discriminatório é mais gravoso quando se trata de mulheres às quais não se concede a possibilidade de falha estendendose o erro praticado a outros aspectos de sua vida social imputandolhe inclusive a incapacidade para exercer a maternidade Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 363 O relato de um membro da administração penitenciária exposto na obra O Cemitério dos Vivos análise sociológica de uma prisão de mulheres reflete essa forma de pensamento recorrente na sociedade brasileira mulher pra mim que delinquisse pela segunda vez eu mandava esterilizar não devia ter direito a ser mãe porque não teria as mínimas condições de educar uma criança LEMGRUBER 1999 p 65 A propósito como bem exposto por Priori 2011 p 195 Cometer crimes ser violenta infringir a lei e as normas sociais não parecem ser papéis compatíveis ao gênero feminino pois a cristalização de discursos e representações acerca da passividade delicadeza modelos de virtude e dos bons costumes foram muito recorrentes ao longo da história no que tange à identidade atribuída às mulheres Não bastasse verificase que não são raros os casos de abandono das mulheres reclusas por parte de seus familiares e companheiros deixando de receber visitas nas instituições prisionais situação muito diversa da verificada com os detentos homens Sob esse cenário o Relatório sobre Mulheres Encarceradas no Brasil relatou à Comissão Interamericana de Direitos Humanos o abandono que as mulheres sofrem após suas prisões Para o estudo um dos maiores fatores é a distância entre as prisões e a cidade de seus familiares visto que diante das poucas prisões femininas no Brasil muitas dessas apenadas são forçadas a cumprirem suas penas distantes de seus lares e de suas famílias Ainda de acordo com o referido Relatório 47 das mulheres não recebem visitas ou as recebem menos de uma vez por mês Centro pela Justiça e pelo Direito Internacional et al 2007 E é justamente no que pertine às relações sociais e familiares que a privação de liberdade assume seu caráter mais perverso 131 Prisão e maternidade O aprisionamento feminino traz consigo uma especificidade de grande relevância a maternidade Nada obstante como já observado no presente trabalho a legislação quando trata de estrutura especial para abrigar mulheres faz referência a questões relativas à maternidade ou a crianças e bebês deixando de abranger a totalidade das apenadas Dados do INFOPEN Mulheres Brasil 2018 demonstram que 74 das mulheres privadas de liberdade têm filhos cuja segregação vem também a penalizar todos aqueles afastados do convívio com as suas genitoras Os filhos nascidos durante o cumprimento da pena restritiva de liberdade são inseridos prematuramente em um ambiente de segregação para posteriormente terem suas guardas direcionadas a familiares ou até mesmo a instituições voltadas para a promoção da adoção Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 364 Entretanto essa parte da população feminina que depende das instalações físicas para exercer a maternidade não conta com a estrutura necessária Conforme o Levantamento INFOPEN Mulheres apenas 55 cinquenta e cinco estabelecimentos penais contam com celadormitório adequado para gestantes enquanto apenas 14 das unidades femininas ou mistas contam com berçário eou centro de referência maternoinfantil que compreendem os espaços destinados a bebês com até 2 dois anos de idade Brasil 2018 O exercício da maternidade no ambiente carcerário tornase um desafio para estas mulheres representando uma experiência potencialmente dramática transformandose em uma outra espécie de punição Nesse diapasão esclarece Gregol 2016 p 08 Apesar de os diplomas legais assegurarem a estas mulheres a reclusão em estabelecimento compatível o direito à amamentação à convivência familiar e comunitária bem como à saúde educação trabalho e assistência jurídica dentre outros tantos a realidade vivida por estas mães e filhos é completamente distinta Creches e enfermarias são quase sempre celas adaptadas O ambiente insalubre contribui com a proliferação de doenças enquanto a escassez de funcionários e a falta de profissionais da saúde equipamentos e medicamentos tornam a assistência médica tanto física quanto psicológica quase que nula A maternidade no cárcere é acompanhada pela dor e descaso por parte do Estado onde a maior parte destas mulheres passam por esta sem receber os devidos cuidados acompanhamento especializado ou sequer realizar o prénatal Em relação ao parto há relatos de casos em que o atendimento médico é adiado até que se torne um caso de urgência Angustiante manifestase o relato da apenada Vilma descrito no relatório Mulheres em Prisão Tive meu bebê quando estava de 41 semanas Não queriam me levar para o hospital eu passei toda a madrugada tendo contrações eu vomitava muitas vezes eu sentia que meu filho iria sair eu sangrava muito Eu já estava há três dias sangrando Elas viam que eu estava sangrando e nada não me tiraram de lá mas como não estava em trabalho de parto não me deixaram ser internada Senhoras não aguento mais não aguento mais Nesse momento eu já estava desmaiando estava morrendo já pensava que meu filho não ia sair meu bebê ficou seis sete horas na incubadora por falta de oxigênio pelo tempo em que ele ficou em minha barriga DA FONSECA Anderson Lobo et al2017 p 137 Esse é o contexto suportado pelas mulheres encarceradas especialmente aquelas que vivenciam a gravidez e o nascimento de seus filhos no ambiente prisional O sistema penitenciário foi pensado por homens e para homens sendo a maternidade no cárcere escoltada pelo descaso estatal 132 Acesso à saúde da mulher nas unidades prisionais Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 365 A falta de acesso à saúde preventiva da mulher como consulta ginecológica disponibilidade de anticoncepcionais mamografia e exame prénatal é outro grave problema enfrentado pelas apenadas Pequena parte da população carcerária feminina encontrase alocada em unidades constituídas por setores de assistência médica e promoção da saúde razão pela qual muitos dos atendimentos quando realizados são promovidos pelas unidades básicas de saúde da cidade onde está localizada a instituição Conforme elucida Gregol 2016 a precária estrutura a ausência de profissionais e a falta de equipamento médico são as principais causas para o abandono vivido pela maior parte das mulheres Isso porque na maioria dos presídios inexistem dependências destinadas aos cuidados relacionados à saúde e as enfermeiras se resumem a celas improvisadas em que não são observadas as condições sanitárias adequadas GREGOL 2016 p 3233 Muitas das mulheres segregadas não realizam os exames de rotina femininos e não possuem acesso a medicamentos ou a equipes técnicas especializadas na saúde da mulher Por vezes quando atendidas são tratadas de forma discriminatória em razão da condição de apenadas É o que se conclui do relato da apenada Joana sobre uma consulta ginecológica extraído do relatório Mulheres em Prisão ela a enfermeira abriu a vagina de uma forma que saiu sangue Aí menina eu falava Está doendo Ela arrancou a roupa toda Falou tira a roupa toda E o médico falou tira a parte debaixo abre as pernas O médico foi examinou arrancou o que tinha que arrancar Deu nada graças a Deus Não tenho nada só deu um corrimento Deu uma pomada eu cuidei certo Ela me chamou de novo aí eu vim ela arreganhou aí meteu com força mesmo com ódio DA FONSECA Anderson Lobo et al 2017 p 138 Relatos como estes não são exceção Iara dos Anjos Santana expresidiária da Penitenciária Feminina do Distrito Federal descreveu um episódio de quando esteve presa e acordou com baratas dentro dos ouvidos por duas vezes foram as presas que me ajudaram a tirar porque não tem médico A gente já sabe tem que botar óleo ou leite aí elas saem Na cadeira só tem paracetamol quando tem CUNHA 2017 p 01 Nesse enfoque destacamse as observações realizados pela Irmã Petra Silvia Pfaller das Pastoral Carcerária CNBB e que há mais de 20 anos realiza visitas aos presídios brasileiros Veja se Além da falta de assistência jurídica superlotação ausência de energia elétrica e de material de higiene íntima São três absorventes íntimos por mês para cada presa Apenas Em São Paulo por exemplo há relatos de que presas usam miolo de pão amassado por falta de absorvente Ainda mais grave que as condições de higiene é a saúde A complexidade do corpo feminino é um dos motivos Em Pelotas RS as presas mesmo com nódulos Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 366 nas mamas e hemorragias esperam meses para receber atendimento médico Já em Ponta Porã MS o atendimento que deveria ser feito por ginecologistas era feito por um ortopedista Sem falar na falta de dermatologistas são muitos os problemas de pele CUNHA 2017 p 01 O descaso com a saúde mental das apenadas também é fato grave e facilmente constatado pela grande ocorrência de suicídio no cárcere Segundo levantamento do INFOPEN Mulheres Brasil 2018 a chance de uma mulher cometer suicídio é até 20 vezes maior entre a população prisional se comparada à população brasileira total Entre a população total foram registrados 23 suicídios para cada grupo de 100 mil mulheres em 2015 enquanto entre a população prisional foram registradas 482 mortes autoprovocadas para cada 100 mil mulheres CONSIDERAÇÕES FINAIS O Estado como detentor exclusivo do poder punitivo deve exercer seu múnus com responsabilidade quanto à forma e as consequências advindas da sua prestação Sendo o exercício jurisdicional uma atividade que ainda conta com o resultado prisão qualquer desvio ocorrido no cumprimento da sanção seja pela falta de fiscalização ou pela aparente omissão deve ser atribuída ao Poder Público O tratamento destinado às mulheres nas prisões brasileiras afronta a dignidade humana e os direitos fundamentais como o direito à saúde à convivência familiar e o direito à vida constituindo se além de uma espécie de violência um verdadeiro apenamento dúplice Timidamente abordada no meio acadêmico e quase nula na pauta das políticas públicas a violência estatal é vivenciada diariamente por diversas apenadas no país O desrespeito às especificidades do gênero feminino no sistema prisional inicia com o desatendimento de espaços físicos próprios perpassa a falta de acesso à saúde física e mental e a impossibilidade do exercício da maternidade e culmina com a exposição que por vezes propicia abusos sexuais As mulheres apenadas integram um grupo de extrema vulnerabilidade no Brasil sem espaço e sem voz as quais se veem alentadas pelo trabalho de ONGs e instituições fiscalizadoras do sistema carcerário que ao menos trazem a lume a situação deplorável a que são submetidas Caminhase a passos lentos para a solução da questão as já existentes alternativas constituem se em políticas de desencarceramento feminino que apesar de previstas na legislação dependem para a sua implementação da assistência judiciária a que muitas não possuem acesso Concluise por fim que para o alcance de resultados efetivos além da quebra de paradigmas do encarceramento tornase essencial que ocorra a mudança de mentalidade da sociedade decorrente Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 367 do acesso à informação que supere a ignorância e cegueira deliberada sobre as péssimas condições que as mulheres cumprem suas penas conscientizandose de que o castigo por elas suportado hoje é muito mais gravoso e cruel que o previsto no ordenamento jurídico pátrio REFERÊNCIAS BRASIL Lei nº 7210 de 11 de julho de 1984 Institui a Lei de Execução Penal Brasília DF Presidência da República 1984 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03leisl7210htm Acesso em 07 de set 2019 BRASIL DecretoLei nº 3689 de 3 de outubro de 1941 Código de Processo Penal Brasília DF Presidência da República 1941 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03decretoleidel3689htm Acesso em 07 de set 2019 BRASIL Lei nº 8069 de 13 de julho de 1990 Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências DF Presidência da República 1990 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03leisl8069htm Acesso em 07 de set 2019 BRASIL Ministério da Justiça e Segurança Pública Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN Brasília DF Ministério da Justiça e Segurança Pública 2017 65 p Disponível em httpdepengovbrDEPENnoticias1noticiasinfopen levantamentonacionaldeinformacoespenitenciarias2016relatorio201622111pdf Acesso em 20 jul 2019 BRASIL Ministério da Justiça e Segurança Pública Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN Mulheres Brasília DF Ministério da Justiça e Segurança Pública 2018 79 p Disponível em httpdepengovbrDEPENdepensisdepeninfopenmulheresinfopenmulheresarte0703 18pdf Acesso em 20 jul 2019 CENTRO PELA JUSTIÇA E PELO DIREITO INTERNACIONAL et al Relatório sobre mulheres encarceradas no Brasil São Paulo 2007 61 p Disponível em httpscarcerariaorgbrwpcontentuploads201302RelatoCC81rioparaOEAsobre MulheresEncarceradasnoBrasil2007pdf Acesso em 13 ago 2019 CHAVES JUNIOR AIRTO Além das grades a paralaxe da violência nas prisões brasileiras Florianópolis Tirant to Blanch 2018 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA Banco Nacional de Monitoramento de Prisões BNMP Brasília DF Conselho Nacional de Justiça 2018 100 p Disponível em httpwwwcnjjusbrfilesconteudoarquivo20180857412abdb54eba909b3e1819fc4c3ef4p df Acesso em 06 ago 2019 CUNHA Fernanda Além das Grades Uma leitura do sistema prisional feminino no Brasil Huffpost Brasil 15 jul 2017 Disponível em httpswwwhuffpostbrasilcom20170715alemdasgradesumaleituradosistema prisionalfemininonobra23030605 Acesso em 19 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 368 DA FONSECA Anderson Lobo et al MulhereSemPrisão Desafios e possibilidades para reduzir a prisão provisória de mulheres São Paulo Instituto Terra Trabalho e Cidadania ITTC 2017 313 p Disponível em httpittcorgbrwp contentuploads201703ITTCMSPVersaoDigitalpdf Acesso em 13 ago 2019 FOUCAULT Michel Vigiar e Punir nascimento da prisão Petrópolis Vozes 1999 LEMGRUBER Julita Cemitério dos vivos análise sociológica de uma prisão de mulheres Rio de Janeiro Forense 1999 PASOLD Cesar Luiz Metodologia da Pesquisa Jurídica Teoria e Prática Florianópolis Conceito Editorial 2015 PRIORI Claudia A construção social da identidade de gênero e as mulheres na prisão Revista Nupem Campo Mourão v 3 n 4 janjul 2011 Disponível em httpwwwfecilcambrrevistaindexphpnupemarticleviewFile8964 Acesso em 13 ago 2019 QUEIROZ Nana Presos que Menstruam Rio de Janeiro Record 2016 SPINDOLA Luciana Soares A mulher encarcerada no sistema penal brasileiro a busca de soluções para as especificidades do gênero feminino no tocante à maternidade 2016 Artigo Especialização em Direito Penal e Processo Penal Instituto Brasiliense de Direito Público IDP Brasília 2016 Disponível em httpdspaceidpedubr8080xmluihandle1234567892274 Acesso em 10 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 369 AUTOVIOLÊNCIA FEMININA O PARADOXO DO SUICÍDIO NO CÁRCERE Fernanda Moreira Ballaris1 Ismê Catureba Santos2 Antônio José Ledo Alves da Cunha3 RESUMO O objetivo deste estudo foi comparar as taxas de suicídio em estabelecimentos penais brasileiros e na população brasileira em geral e analisar possíveis associações entre as taxas de suicídio feminino no cárcere e características prisionais de risco Método Informações demográficas e de mortalidade foram coletadas do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde DATASUS e comparadas com dados secundários sobre estabelecimentos penais brasileiros disponibilizados pelo Departamento Penitenciário Nacional DEPEN para o ano de 2015 Testes nãoparamétricos foram empregados para analisar associações entre as taxas de suicídio na prisão e na população geral e para comparar estabelecimentos que relataram e não relataram suicídio feminino para as seguintes variáveis número de profissionais de saúde mental presença de atividades educacionais presença de atividades de laborterapia grau de violência e superlotação Resultado Foram analisados 1389 estabelecimentos penais As taxas de suicídio foram maiores no ambiente prisional que na população geral especialmente para o sexo feminino Mulheres encarceradas se suicidaram 18 vezes mais que mulheres da população geral e 2 vezes mais que homens encarcerados Foram encontradas associações positivas porém fracas entre o suicídio feminino e o número de profissionais de saúde mental presença de laborterapia e presença de atividades educacionais Conclusão a elevada taxa de suicídio feminino no cárcere evidencia a existência de uma lógica própria gêneroespecífica relacionada às vivências psicológicas das mulheres privadas de liberdade dentro do ambiente prisional Investigações futuras sobre fatores individuais de risco são necessárias e urgentes para melhor compreensão deste fenômeno Palavraschave Saúde mental Suicídio Mulheres Prisões INTRODUÇÃO Suspeitase que o primeiro uso da palavra suicídio se deu no livro Religio medici 1642 de Sir Thomas Browne 16051682 médico e filósofo inglês O termo foi baseado nas palavras latinas sui de si próprio e caedere matar KRUG et al 2002 250 anos depois Émile Durkheim 18581917 sociólogo francês publicou Le Suicide 1897 em que buscou evidenciar padrões nas taxas de suicídio francesas do século XIX O autor definiu o suicídio 1Graduanda em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ Bolsista de iniciação científica pelo CNPq ferballarisgmailcom Lattes httplattescnpqbr5075697392569858 2Mestranda pelo Programa de Mestrado Profissional em Saúde Perinatal da MaternidadeEscola da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ ismecaturebagmailcom Lattes httplattescnpqbr9321364571292244 3Médico Pósdoutorado pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca Fio Cruz Coordenador do Laboratório Multidisciplinar de Epidemiologia e Saúde LAMPES da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ acunhahucffufrjbr Lattes httplattescnpqbr3092151856113795 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 370 como todo o caso de morte que resulta direta ou indiretamente de um ato positivo ou negativo realizado pela propria vítima e que ela sabia que produziria esse resultado DURKHEIM 2000 p14 Para o autor o ato não é apenas um ato individual que depende exclusivamente de fatores pessoais mas um evento eminentemente social GONÇALVES GONÇALVES OLIVEIRA JÚNIOR 2011 p 286 Segundo a World Health Organization 2018 mais de 800000 pessoas se suicidam anualmente sendo as taxas de suicídio maiores na faixa etária acima de 70 anos Países de baixa a média renda concentram 75 dos casos e estes apresentam perfis distintos daqueles ocorridos em países de alta renda enquanto a prevalência de suicídio é maior em jovens adultos e mulheres idosas no primeiro caso homens de meia idade se suicidam mais no segundo Além disso a razão homemmulher chega a 3 nos países de alta renda enquanto em países de baixa e média este valor costuma atingir a marca de 15 De maneira geral acreditase que estes numeros sejam subestimados possivelmente devido a estigma criminalização em alguns países e sistemas de vigilância ineficientes WORLD HEALTH ORGANIZATION 2018 p 01 tradução nossa As diferenças de gênero nas prevalências de suicídio entre diferentes países e em uma mesma nação podem ser explicadas pela Teoria da Socialização Segundo esta teoria as narrativas culturais influenciam diretamente o comportamento suicida ao produzirem expectativas de gênero que servem de script para a escolha do método e sua letalidade procura de ajuda especializada e adoção de comportamentos de risco como abuso de álcool e outras substâncias comumente adotado por homens em alguns países Mais do que isso tais expectativas afetam a decisão das autoridades em notificar tentativas prévias e em classificar óbitos femininos como suicídios alterando ainda que sutilmente as estatísticas vitais CANETTO SAKINOFSKY 1998 Os significados atribuídos ao suicídio e portanto às expectativas de gênero ligadas a ele são diversos e mutáveis conforme a sociedade e tempo histórico em que está inserido sendo ora condenado ora tolerado GONÇALVES GONÇALVES OLIVEIRA JÚNIOR 2011 Na Grécia Antiga o suicídio era sinônimo de degradação social e desonra A morte louvável estava na guerra em idade jovem sendo o suicídio considerado comportamento feminino São raros os relatos de suicídios de homens mas quando aconteciam os métodos e locais escolhidos remetiam às expectativas deste gênero normalmente utilizavamse de espadas e morriam em locais públicos As mulheres por outro lado escolhiam se enforcar em nós feitos com seus mantos e véus em seus quartos tálamos mais especificamente nas cumeeiras que simbolicamente representavam o marido MARQUETTI MARQUETTI 2017 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 371 No Ocidente em especial nas sociedades industriais o suicídio progressivamente perdeu o status de ignomínia tornandose uma questão de desrazão loucura e portanto um tema médico MARQUETTI MARQUETTI 2017 p 08 A prevalência de suicídio entre homens aumentou a ponto de superar a taxa de suicídio de mulheres no entanto outras características permaneceram as mesmas da Antiguidade grega os homens continuam usando métodos mais violentos e locais públicos enquanto as mulheres elegem métodos menos desfigurativos e locais mais reclusos MARQUETTI MARQUETTI 2017 No que diz respeito aos métodos AjdacicGross et al 2008 apontaram como preferidos por homens o uso de armas de fogo e enforcamento e por mulheres envenenamento e afogamento com variação importante entre países Dentre estes ressaltase o enforcamento que antes elegível pelas mulheres tornouse mais prevalente entre os homens Canetto e Sakinofsky 1998 p 18 tradução nossa afirmam que estes comportamentos suicidários adotados conforme a cultura local são influenciados não somente por experiências de socialização de gênero passadas como também experiências atuais Isto pode explicar porque pessoas que residem em locais diferentes de onde foram criadas podem assumir comportamentos diferentes do esperado para sua criação Um exemplo disto são os comportamentos assumidos dentro dos estabelecimentos penais que costumam diferir substancialmente de suas realidades nacionais De maneira geral as taxas de suicídio são maiores dentro dos estabelecimentos penais que fora deles especialmente no sexo feminino em que os valores podem ser até vinte vezes maiores FAZEL et al 2011 Além disso em alguns países como Bélgica Inglaterra País de Gales Nova Zelândia Noruega Escócia Suécia e Estados Unidos a razão de suicídio homemmulher encontrase invertida isto é mulheres encarceradas se suicidam mais que homens encarcerados FAZEL et al 2011 DYE 2011 Os estudos parecem oscilar entre atribuir ao ambiente prisional e às características individuais dos prisioneiros a explicação para as elevadas taxas de suicídio na prisão Um estudo conduzido em 12 países não encontrou associação entre as taxas de suicídio na prisão e na população em geral sugerindo que variações nas taxas de suicídio prisionais refletem diferenças nos sistemas de justiça criminais incluindo possivelmente prestação de atenção psiquiátrica na prisão FAZEL et al 2011 p 191 tradução nossa Dois anos antes em uma revisão sistemática de 34 estudos Diversos fatores demográficos criminais e clínicos se mostraram associados com suicídio em prisioneiros sendo os mais importantes a ocupação de celas individuais ideação suicida recente história de tentativa de suicídio e Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 372 presença de diagnóstico psiquiátrico ou história de problemas com uso de álcool FAZEL et al 2008 p 1 tradução nossa Estes fatores encontramse presentes em ambos os sexos mas parecem especialmente pronunciados na população prisional feminina Mulheres encarceradas apresentam maiores prevalências de abuso físico pregresso abuso sexual precoce e doenças mentais especialmente doenças severas que homens encarcerados CANAZARO ARGIMON 2010 ANDREOLI et al 2014 CONSTANTINO ASSIS PINTO 2016 Além disso apresentam níveis mais elevados de sofrimento emocional e alta prevalência de mau uso de substâncias MacDONALD 2013 Para Liebling 1999 estes fatores representam vulnerabilidades que distinguem mulheres presas da população feminina geral aumentando o risco de suicídio Efeitos gêneroespecíficos do encarceramento agravam a situação podendo atuar sozinhos ou em conjunto com fatores de risco importados de fora da prisão para promover as diferenças de gênero e os contrastes com a população geral encontrados nas taxas de suicídio É o que Dye 2011 chama de paradoxo de gênero No Brasil estudos sobre saúde mental na prisão são numerosos especialmente na população prisional masculina No entanto quase não existem estudos sobre suicídios no cárcere e estes em sua maioria focaram em homens COELHO 2006 NEGRELLI 2006 FARINA 2009 De fato há uma longa história de predominância deste sexo nos estabelecimentos penais do Ocidente não somente na ocupação do ambiente como também no seu planejamento e construção Segundo dados do World Prison Brief 2017 as mulheres representam apenas 69 de toda a população prisional global todavia notase aumento significativo desta representação desde os anos 2000 Em território nacional entre 2000 e 2016 a população carcerária feminina aumentou em 635 e a taxa de encarceramento feminino em 406 BRASIL 2018 Apesar destas mudanças nos cenários carcerários nacionais e internacionais as prisões ainda são vistas como ambientes masculinos e as especificidades de gênero das mulheres que as ocupam são minimizadas e ignoradas incluindo aquelas envolvidas na materialização do suicídio Em algumas prisões as mulheres recebem exatamente o mesmo tratamento destinado aos homens inclusive usando uniformes iguais como se a primeira coisa a fazer com a presa fosse a sua desconstrução como mulher PASTORAL CARCERÁRIA CONECTAS DIREITOS HUMANOS INSTITUTO SOU DA PAZ 2019 p1 O estudo das taxas de suicídio e sua associação com fatores de risco especialmente para o sexo feminino pode orientar intervenções e a formulação de políticas de atenção à saúde efetivas na prevenção ao suicídio além de contribuir para a diminuição da Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 373 inequidade de gênero no cárcere em particular na área de saúde mental Desta forma conduziu se este estudo com o objetivo de comparar as taxas de suicídio em estabelecimentos penais brasileiros e na população brasileira em geral e analisar possíveis associações entre as taxas de suicídio feminino no cárcere e características prisionais de risco Hipotetizamos que assim como internacionalmente as taxas de suicídios femininos no cárcere são mais elevadas que na população em geral bem como maiores que no sexo masculino e que fatores relacionados a superlotação violência assistência especializada em saúde e acesso à educação e ao trabalho estão diretamente associados ao comportamento destas taxas 1 DESENVOLVIMENTO 11 Metodologia 111 Fonte de dados Para responder os objetivos do estudo foram utilizados dados secundários obtidos da segunda edição do Levantamento Oficial de Informações Penitenciárias INFOPEN Mulheres coletados em 2015 De responsabilidade do Departamento Penitenciário Nacional o INFOPEN é um sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário brasileiro que contém dados sobre infraestrutura e gestão prisional servidores população prisional quantitativo e qualitativo e movimentação ações de reintegração social e assistências mortalidade e visitação É hoje a fonte mais completa de dados sobre estabelecimentos penais brasileiros disponível livremente Na primeira parte deste estudo foram incluídos todos os estabelecimentos que responderam o número total de pessoas encarceradas n 1389 Na segunda parte foram utilizados apenas os estabelecimentos que abrigavam mulheres exclusivamente ou não no momento da coleta de dados n 459 O ano escolhido para estudo foi 2015 por ser o primeiro ano após a reformulação da metodologia utilizada pelo INFOPEN De fato no ano de reformulação 2014 335 estabelecimentos penais não responderam o questionário ou computaram 0 no número total de presos No ano seguinte apenas 59 apresentaram este perfil Um estabelecimento penal localizado em Minas Gerias foi excluído por inconsistência nas informações tendo relatado 1 suicídio feminino e 0 mulheres encarceradas Informações sobre população residente número total de óbitos e número total de óbitos por suicídio CID10 X60X84 Lesões autoprovocadas intencionalmente da população brasileira geral foram obtidas do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde DATASUS e utilizadas para cálculo das taxas de suicídio e razão proporcional de mortalidade Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 374 por suicídio da população em geral acima de 18 anos para o ano de 2015 O recorte etário foi aplicado em correspondência à idade mínima considerada no INFOPEN 112 Variáveis Os estabelecimentos penais foram utilizados como unidade de análise do estudo e a taxa de suicídio como variável dependente calculada através da divisão do número de óbitos por suicídio pela população prisional e multiplicação do resultado por 100000 para cada sexo em separado masculino e feminino As taxas foram então agrupadas por estado para fins de comparação com as taxas estaduais da população em geral brasileira Foram também calculadas as razões proporcionais de mortalidade por suicídio nos estabelecimentos penais e na população brasileira em geral por sexo através da divisão entre o número de óbitos por suicídio pelo número de óbitos total com posterior multiplicação por 100 Estabelecimentos que apresentaram um ou mais suicídios femininos foram codificados com 1 enquanto estabelecimentos que não apresentaram suicídio feminino foram codificados com 0 Foram escolhidas seis variáveis relacionadas às características prisionais de risco com base na literatura internacional sobre suicídio no ambiente prisional e em especial no modelo de importação e deprivação de Dye 2011 superlotação grau de violência presença de atividade laborterápica presença de atividade educacional razão entre o número de médicos psiquiatras e a população prisional total e razão entre o número de psicólogos e terapeutas ocupacionais e a população prisional total As variáveis superlotação presença de atividade laborterápica e presença de atividade educacional foram operacionalizadas como indicadores dicotômicos 0 negativo 1 positivo Para o cálculo de superlotação realizouse a divisão entre a população prisional e o número de vagas com diferenciação entre os gêneros Estabelecimentos que apresentaram valores superiores a 1 foram classificados como superlotados e codificados com 1 O cálculo do grau de violência por sua vez se deu pela divisão entre o número de óbitos criminais e a população prisional total com posterior multiplicação por 100 Finalmente as razões entre o número de profissionais de saúde mental e a população prisional total foram calculadas por meio de divisão simples com posterior multiplicação por 100000 113 Estratégia de análise O software IBM SPSS Statistics 20 foi utilizado para as análises estatísticas Inicialmente foram realizados testes de normalidade para definição do tipo de testes estatísticos a serem empregados As taxas de suicídio feminino e masculino na prisão apresentaram Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 375 distribuição anormal p 05 de modo que se optou pela utilização de testes nãoparamétricos Diferenças interestaduais nas taxas foram examinadas através do teste de KruskalWallis para amostras independentes e comparações entre as taxas entre sexos para os estabelecimentos penais e entre os estabelecimentos penais e a população geral foram realizadas através do teste de Wilcoxon Os testes de MannWhitney e chiquadrado de independência foram utilizados para comparar estabelecimentos que apresentaram suicídios femininos com aqueles que não apresentaram para as variáveis escolhidas supracitadas Por fim associações entre as taxas de suicídio e entre a taxa de suicídio feminino e as variáveis escolhidas foram examinadas através do teste de correlação de Spearman 12 Resultados Em 2015 o suicídio foi responsável por 088 de todas as mortes ocorridas em território brasileiro totalizando 11178 pessoas Destas 2396 ou 2145 eram mulheres No mesmo ano em 108 estabelecimentos penais localizados em 22 estados 135 pessoas se suicidaram sendo 16 ou 1185 destas mulheres A porcentagem de estabelecimentos exclusivamente femininos que relataram suicídios foi maior que a de estabelecimentos exclusivamente masculinos ou mistos 882 vs 784 e 728 respectivamente O suicídio feminino foi relatado em 12 estabelecimentos 9 exclusivamente femininos e 3 mistos de 5 estados Alagoas Amazonas Minas Gerais Mato Grosso do Sul e São Paulo e representou 163 dos óbitos femininos e 095 do total de óbitos ocorridos no cárcere neste período As taxas de suicídio feminino no cárcere e na população geral para estados que relataram a ocorrência de um ou mais suicídios femininos nas prisões encontramse resumidas na tabela 1 Tabela 1 Comparação estadual entre as taxas de suicídio feminino no cárcere e na população geral considerando somente estados que apresentaram um ou mais suicídio no cárcere em território nacional para o ano de 2015 Estado Taxa de suicídio feminino nos estabelecimentos penais por 100000 presas Taxa de suicídio feminino na população geral por 100000 mulheres Alagoas 28409 014 Amazonas 5640 026 Mato Grosso do Sul 7587 037 Minas Gerais 12686 028 São Paulo 6982 021 Fonte Elaborado pelos autores A análise comparativa das taxas de suicídios nos estabelecimentos penais e na população geral revelou disparidades importantes especialmente sob a óptica de gênero Não Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 376 somente pessoas privadas de liberdade se suicidaram mais que a população geral 2276 vs 546 por 100000 como essa diferença foi maior no sexo feminino que no sexo masculino Enquanto homens encarcerados se suicidaram 218 vezes mais que homens livres 1902 vs 869 por 100000 mulheres privadas de liberdade se suicidaram 1852 vezes mais que mulheres não encarceradas 428 vs 231 por 100000 Desta forma quando comparada com a população geral a razão de suicídios homemmulher nos estabelecimentos penais mostrouse invertida Contudo esta proporção foi menor dentro dos estabelecimentos penais 1225 que fora deles 3761 Os dados encontramse resumidos na tabela 2 Tabela 2 Comparação por sexo das taxas de suicídio e razões de mortalidade proporcional nos estabelecimentos penais e na população geral em território nacional no ano de 2015 Sexo Número de suicídios Porcentagem de estabelecimen tos que relataram suicídio Taxa de suicídio nos estabelecim entos penais por 100000 presos Razão de mortalidade proporciona l nos estabelecim entos penais Taxa de suicídio na população geral por 100000 habitantes Razão de mortalidade proporciona l na população geral Feminino 16 882 428 1633 231 043 Masculino 19 784 1902 756 869 124 Ambos 135 728 2276 8 546 088 Fonte Elaborado pelos autores Testes nãoparamétricos KruskalWallis para amostras independentes Wilcoxon e correlação de Spearman foram utilizados para avaliar a significância estatística das diferenças observadas nas taxas de suicídios nos estabelecimentos penais e na população geral Os resultados mostraram distribuição estadual similar das taxas de suicídio tanto nos estabelecimentos penais quanto na população geral para ambos os sexos p 05 Não houve diferença estatística significante entre as taxas de suicídio feminino e masculino nos estabelecimentos penais p 05 nem entre as taxas de suicídio feminino nos estabelecimentos penais e na população geral Por fim houve correlação positiva ρ 853 p 001 entre as taxas de suicídio feminino e masculino na população geral mas não nos estabelecimentos penais ou entre os estabelecimentos penais e a população geral para ambos os sexos Dado o comportamento único das taxas de suicídio feminino nos estabelecimentos penais testes nãoparamétricos adicionais MannWhitney teste chiquadrado de independência e correlação de Spearman foram empregados com o objetivo de avaliar diferenças entre estabelecimentos femininos e mistos que relataram e não relataram suicídios femininos bem como indicar possíveis associações entre o suicídio feminino e as variáveis de interesse contribuindo assim para a discussão da realidade observada Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 377 O teste de MannWhitney mostrou que as razões entre o número de psiquiatras e a população prisional total U 1963500 p 001 e entre o número de psicólogos e terapeutas ocupacionais e a população prisional total U 1749000 p 05 foram maiores nos estabelecimentos com suicídios femininos que nos estabelecimentos sem O mesmo teste não relatou diferenças no grau de violência entre estabelecimentos com e sem suicídios femininos U 2931000 p 05 O chiquadrado de independência relatou diferença entre os dois grupos para presença de atividades laborterápicas χ² 502 p05 e atividades educacionais χ² 511 p05 sendo estas presentes principalmente em estabelecimentos que relataram suicídios femininos No entanto este teste não encontrou diferença entre os dois grupos em relação a superlotação χ² 017 p05 Dentre as seis variáveis estudadas quatro apresentaram correlação significativa mas fraca com a taxa de suicídio feminino nos estabelecimentos penais razão entre o número de psiquiatras e a população prisional total ρ163 p 001 razão entre o numero de psicologos e terapeutas ocupacionais e a população prisional total ρ104 p 05 presença de atividades laborterápicas ρ104 p 05 e presença de atividades educacionais ρ105 p 05 Não foram encontradas correlações significativas entre as taxas de suicídio feminino nos estabelecimentos penais e as variáveis superlotação e grau de violência 13 Discussão O aumento mundial da população carcerária feminina tem fomentado discussões sobre as inequidades de gênero no sistema penitenciário em particular na área da saúde Estudos sobre exposição destas mulheres à insalubridade física e psicológica do cárcere têm se diversificado todavia a literatura sobre o suicídio feminino neste ambiente ainda é insuficiente No Brasil esta ainda é uma área de lacuna científica não tendo sido encontrados estudos científicos de abrangência nacional sobre este tema Tendo em vista a alta prevalência e importante representatividade do ato no sistema penal especialmente para o sexo feminino propôsse estudar o suicídio feminino neste meio em território nacional através da comparação de taxas de suicídio prisionais e da população geral bem como por meio da análise da associação do ato com fatores de risco documentados Os dados utilizados concernem o ano de 2015 e foram obtidos através de base online disponibilizada pelo Departamento Nacional Penitenciário Ao todo foram estudados 1389 estabelecimentos 663155 homens e 37380 mulheres As taxas de suicídios foram maiores nos estabelecimentos penais que na população geral para ambos os sexos no entanto a diferença entre a taxa de suicídio masculino e a taxa de suicídio feminino foi menor no cárcere que fora Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 378 dele Estes resultados estão em parte de acordo com a literatura internacional e reforçam o argumento de que prisioneiros são grupo de alto risco para suicídio O risco elevado para este desfecho pode ser explicado tanto por características individuais das vítimas como abuso de substâncias distúrbios psiquiátricos história prévia de tentativas de suicídio entre outros quanto pelas características ambientais dos estabelecimentos prisionais como superlotação privações de toda ordem violência falta de profissionais capacitados falta de investimentos Enquanto os fatores ambientais não costumam diferir entre os sexos os fatores individuais têm estreita relação com o gênero sendo alguns deles histórico de doenças psiquiátricas sofrimento mental mau uso de substâncias mais prevalentes no sexo feminino e especialmente em mulheres encarceradas Isto pode explicar parcialmente a diferença reduzida entre a taxa de suicídio feminino e a taxa de suicídio masculino no cárcere quando comparada com a diferença entre sexos na população geral Em números totais o suicídio feminino apresentouse como um evento raro no cárcere 16 vs 96 suicídios masculinos no entanto quando consideradas as razões entre o suicídio e o número de presos taxa de suicídio a prevalência deste desfecho em mulheres encarceradas foi notadamente maior que em homens encarcerados e na população geral independente do sexo Segundo a World Health Organization 2000 p 07 tradução nossa mulheres encarceradas tentam suicídio cinco vezes mais que suas contrapartes femininas na comunidade e duas vezes mais que suas contrapartes masculinas encarceradas O elevado número de tentativas de suicídio por estas mulheres pode ser responsável em parte pela importante diferença entre as taxas de suicídio feminino no cárcere e na população geral contudo não é suficiente para esclarecer as diferenças de gênero mesmo quando associado a alta prevalência neste grupo dos fatores de risco supracitados Em especial não responde satisfatoriamente a principal questão sobre o comportamento suicidário feminino no cárcere por que estas mulheres se suicidam tanto Apesar de estudos na área do suicídio no cárcere serem escassos tornando complexa a generalização dos achados as comparações realizadas no presente estudo permitiram a observação de certas tendências Razões aumentadas entre o número de profissionais de saúde mental psiquiatras psicólogos e terapeutas ocupacionais e a população prisional estiveram positivamente associadas com o suicídio feminino diferente do esperado se considerada a população geral em que ajuda especializada costuma ser fator protetivo para o suicídio Cramer et al 2017 apontou que o despreparo de profissionais de saúde e da segurança associado ao excesso de trabalho muitas vezes sintomatizado como burnout dentro do cárcere podem levar a falhas nas decisões tomadas por falta de concentração ou de identificação de sinais de alerta Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 379 De fato em 2015 a média de psiquiatras por 100000 presas foi de 59 A média do número de psicólogos e terapeutas ocupacionais por 100000 presas foi consideravelmente maior girando em torno de 486 no entanto este ainda é um valor insuficiente para satisfazer as complexas necessidades psicológicas desta população Fora do ambiente prisional educação e trabalho estão inversamente ligados ao maior risco de suicídio atuando como fatores protetivos importantes McLEAN et al 2008 No cárcere mulheres que trabalham apresentam menos sintomas depressivos e estresse CANAZARO ARGIMON 2010 CONSTANTINO ASSIS PINTO 2016 Estar em atividade educacional não parece influenciar a sintomatologia depressiva CANAZARO ARGIMON 2010 no entanto baixa escolaridade permanece como um dos principais fatores de risco demográfico para o suicídio no ambiente prisional ECK et al 2019 Neste estudo tanto as atividades laborterápicas quanto as atividades educacionais mostraramse positivamente associadas com o suicídio feminino no cárcere Estes achados devem ser examinados com cautela na medida em que não consideram a satisfação nem o número de mulheres envolvidas nestas atividades De fato enquanto um estudo nacional apontou satisfação das presas com a atividade laboral CANAZARO ARGIMON 2010 outro LEMOS MAZZILLI KLERING 1998 apud CONSTANTINO ASSIS PINTO 2016 relatou ressentimento dos presos pela inexistência de critérios de seleção para o trabalho e pela inércia da instituição em buscar uma tarefa em que possam encontrar significado além do uso do trabalho como forma de diminuir custos operacionais ou de manter o preso ocupado ao invés de fomentálo como uma atividade educativa produtiva e terapêutica CONSTANTINO ASSIS PINTO 2016 p 2096 Não foram encontradas associações significativas entre o grau de violência definido pela razão entre o número de óbitos criminais e a população prisional total por 100 presos e o suicídio feminino e estabelecimentos que relataram este desfecho não diferiram daqueles que não o relataram em relação a esta variável Estes achados destoam de estudos internacionais em que conflitos interpessoais apresentaramse como fatores de risco para o suicídio no ambiente prisional CRAMER et al 2017 DYE 2011 SHARKEY 2010 No entanto é importante ressaltar que o óbito criminal aqui considerado como único preditor da violência no cárcere é o desfecho máximo de situações conflituosas e que outros desfechos como bullying ameaças ataques físicos e rebeliões além da morte política a expulsão e a rejeição FOUCAULT 2010 apud CHIES ALMEIDA 2018 p 68 representadas pela negligência e pelas privações também são resultados da violência constitutiva do sistema prisional Estes dados não se encontram disponíveis livremente com exceção do número de motins que em Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 380 um período de 30 anos 19872017 levou à morte mais de 367 presos CHIES ALMEIDA 2018 No ano estudado 819 dos presídios que abrigavam mulheres estavam superlotados Sabese que alta densidade prisional é um importante fator de estresse para os presos no entanto não parece haver consenso na literatura internacional sobre a relação entre superlotação e risco de suicídio feminino Enquanto a alta densidade prisional pode apresentar papel protetor contra o suicídio ao reduzir sentimentos de isolamento ou impedir concretamente uma passagem para o ato suicida ECK et al 2019 p 50 tradução nossa ela também limita a acessibilidade dos presos à serviços básicos incluindo atenção à saúde mental que tem papel fundamental na prevenção deste desfecho Em estudo realizado em uma prisão feminina inglesa de regime fechado Sharkey 2010 p 117 tradução nossa relata que quando perguntadas diretamente nove das dez presas achavam que a superlotação aumentava seus riscos de suicídio No presente estudo no entanto não foram encontradas associações entre suicídio feminino e superlotação e estabelecimentos penais que relataram suicídios femininos não diferiram de estabelecimentos que não os relataram em relação a esta variável A análise da associação de fatores de risco com o suicídio feminino no cárcere apresentou perfil ambíguo em relação a literatura internacional sendo ora similar a outros achados ora divergente Assim como em outros países o suicídio feminino na prisão foi um evento raro em território brasileiro condição que afetou diretamente a significância estatística dos testes conduzidos Além disso o uso de dados secundários limitou o número de variáveis estudadas bem como o total de estabelecimentos incluídos no estudo em parte pela reduzida informação disponível em parte pela inconsistência dos dados relatados dentro de um mesmo estabelecimento penal Por fim a falta de informações sobre as vítimas de suicídio inviabilizou o estudo da associação entre o ato e características individuais Recomendase cautela quanto a generalização do fenômeno apresentado e estudos adicionais são necessários Contudo os achados reforçam a urgência de trazer à luz da ciência as especificidades de gênero no ambiente prisional especialmente no que concerne a saúde mental das mulheres encarceradas incluindo questões sobre o suicídio na medida em que esta população se mostrou particularmente vulnerável e de alto risco para este desfecho CONSIDERAÇÕES FINAIS Não foram encontrados outros estudos de abrangência nacional sobre o suicídio feminino nos estabelecimentos penais brasileiros A elevada taxa de suicídio feminino no cárcere encontrada reforça a urgência por outros produções que possam aprofundar a Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 381 investigação desta realidade Em especial a diferença importante entre a taxa de suicídio feminino e a taxa de suicídio masculino no cárcere bem como entre as taxas de suicídio feminino no cárcere e na população geral evidenciam a existência de uma lógica própria gêneroespecífica relacionada a experiência destas mulheres na prisão Características ambientais relacionadas a atenção à saúde mental e a atividades laborais e educacionais mostraramse positivamente associadas com o suicídio feminino no entanto investigações futuras sobre fatores individuais de risco são necessárias para melhor compreensão deste fenômeno REFERÊNCIAS AJDACICGROSS V et al Methods of suicide international suicide patterns derived from the WHO mortality database Bulletin of the World Health Organization New York v 86 n 9 p 657736 sept 2008 Disponível em httpswwwwhointbulletinvolumes86907 043489en Acesso em 27 jul 2019 ANDREOLI S B et al Prevalence of mental disorders among prisoners in the state of Sao Paulo Brazil PLoS One San Francisco v 9 n 2 p 17 feb 2014 DOI 101371journalpone0088836 Disponível em httpsjournalsplosorgplosonearticleid101371journalpone0088836 Acesso em 17 jul 2019 BRASIL Ministério da Justiça e Segurança Pública Departamento Penitenciário Nacional Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN Mulheres 2 ed Brasília Ministério da Justiça 2018 79 p Disponível em httpdepengovbrDEPENdepensisdepeninfopeninfopen Acesso em 17 jul 2019 BRASIL Ministério da Justiça e Segurança Pública Departamento Penitenciário Nacional Infopen bases de dados 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fonte oral por meio de entrevistas realizadas no ano de 2017 na cidade de Curitiba nas dependências do Escritório Social antigo semiaberto por mulheres que cumpriam pena usando o monitoramento eletrônico e exerciam atividade laborativa no Escritório Foram entrevistadas três mulheres e a identidade delas será preservada sendo denominadas de Encarcerada 1 Encarcerada 2 e Encarcerada 3 Para auxiliar na discussão proposta foram utilizados os pesquisadores Erving Goffman e Michelle Perrot que auxiliam na compreensão das questões penitenciárias e de gênero e também Paul Thompson e Verena Alberti auxiliando na metodologia da história oral O resultado da pesquisa é o reconhecimento delas próprias como invisíveis de falas carregadas de sentimentos e do reconhecimento de suas privações Compreendendo portanto que são seres humanos independente do ato praticado há de se levar em consideração o quanto o sistema prisional nas condições em que se encontra consegue contribuir ou não para a reinserção dessas mulheres na sociedade Palavraschave Mulheres Sistema Penitenciário Prisão Invisibilidade INTRODUÇÃO Nem louca nem bruxa nem santa nem puta Você é mulher e é sua essa luta Thais C S Gomes O sistema penitenciário do Brasil aliado às questões que envolvem as mulheres privadas de liberdade em estabelecimentos penais são temas que geram poucos debates na sociedade e quando ganham alguma repercussão o debate gira em torno do aprisionamento masculino deixando as mulheres encarceradas esquecidas no breu No campo da História é uma temática pouco abordada e explorada e refletindo sobre isso surgiu o interesse em trabalhar com tal temática Os resultados dessa investigação serão apresentados nas próximas páginas 1 Pósgraduada em Metodologia do Ensino da História e Geografia Uninter Pósgraduanda em Sociologia Política UFPR Graduada em História TUIUTI Graduada em Pedagogia Uninter Professora da rede pública de educação do Paraná Email profepamelapaivahotmailcom phanngpgmailcom Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 386 O intervalo de dez anos escolhido entre 2004 e 2014 se deu por serem nesses anos que as principais fontes foram elaboradas sendo as cartas e os prontuários que estavam disponíveis na instituição para pesquisa Acerca do recorte espacial a escolha se deu pela possibilidade de haver melhor acesso às fontes orais que serão utilizadas para fomentar a pesquisa possibilitando assim uma história regional das mulheres encarceradas Dito isso o objetivo proposto visa analisar a invisibilidade e o abandono das mulheres privadas de liberdade na cidade de Curitiba Para encaminhar este trabalho no sentido de atingir ao objetivo proposto utilizarseá cartas e entrevistas orais que foram concedidas por mulheres que estavam cumprindo pena no sistema prisional além de dados coletados na própria unidade prisional sobre o perfil da presa do semiaberto Ressaltase que sobre as entrevistas orais o nome das mulheres será ocultado e serão tratadas como Encarcerada 1 Encarcerada 2 e Encarcerada 3 Promoverseá a discussão sobre as subjetividades2 que acompanham o aprisionamento feminino como a invisibilidade das mulheres que sobrevivem nesses espaços assim como o abandono sobretudo por parte dos parceiros e familiares a que são submetidas tornandose invisíveis para uma grande parcela da sociedade O artigo trará em seu primeiro subitem uma breve discussão acerca do aprisionamento de mulheres e algumas violações sofridas dentro do cárcere Em seguida abordará a historiografia a respeito do sistema prisional do Paraná para então discorrer acerca do perfil e da invisibilidade das mulheres encarceradas e que foram para o regime semiaberto momento em que serão usados dados das entrevistas orais realizadas com as três mulheres e cartas conseguidas a partir de visitas diárias ao Escritório Social do Departamento Penitenciário do Paraná DEPENPR localizado no bairro Atuba na cidade de Curitiba As entrevistas tiveram como objetivo ser um espaço de escuta para essas mulheres quanto ao seu abandono e da invisibilidade a que estão sujeitas Nesse sentido se revelaram importantes elementos de análise juntamente com as cartas Dessa forma serão pautadas questões que envolvem a percepção que elas têm de si mesmas e das sentimentalidades envolvidas numa situação de privação de liberdade ou de liberdade restrita 2 Subjetividade é algo que pode variar de acordo com o julgamento de cada indivíduo pois cada um pode interpretar à sua maneira algo que ocorreu diz respeito ao sentimento de cada pessoa sua opinião sobre determinado assunto opinião essa que pode ser formada por uma série de fatores tais como crenças suas experiências e histórias de vida Tal conceito é amplo e debatido em áreas como a Psicologia e a História Dessa forma para saber sobre o conceito consultar o artigo de Elis Bertozzi Aita e Marilda Gonçalvez Dias Facci Subjetividade uma análise pautada na Psicologia históricocultural em que elas analisaram diversos artigos que abordam a questão da subjetividade Destacando que para o presente artigo o conceito de subjetividade se fundamentará em Michel Foucault pensando nas relações de poder e nos modos de subjetivação das mulheres encarceradas Disponível em httppepsicbvsaludorgpdfperv17n1v17n1a05pdf Acesso em 10 set 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 387 1 MULHERES ENCARCERADAS SUJEITAS MARGINAIS Antes de começarmos a discorrer sobre a temática é necessário conceituar o que era ou ainda é o espaço prisional No século XVII Hobbes conceituou o que era a prisão para aquele período citandoo a prisão ocorre quando alguém é privado de liberdade pela autoridade pública e pode ser imposta tendo em vista dois fins diferentes sendo um deles a segura custódia do acusado e outro a aplicação de uma penalidade ao condenado HOBBES 2017 1651 p 106 Continuando a definição de Hobbes A palavra prisão abrange toda restrição de movimentos causada por um obstáculo exterior seja uma casa a que se dá o nome geral de prisão seja uma ilha caso em que se diz que as pessoas lá ficam confinadas seja um lugar onde as pessoas são obrigadas a trabalhar como antigamente se condenavam as pessoas às pedreiras e atualmente se condenam às galés seja mediante correntes ou qualquer outro impedimento HOBBES 2017 1651 p 106 Alguns séculos depois o professor de direito Orlando Soares coloca que em sentido lato a prisão consiste em medida privativa de liberdade individual Ela pode decorrer de pena imposta por condenação ou constituir custódia provisória autorizada pela lei medida contrária ao status libertatis estado de liberdade do indivíduo SOARES 1979 p 45 É possível notar que os dois conceitos não diferem entre si a grosso modo a prisão é um local que o indivíduo é privado de sua liberdade Não havendo num espaço penitenciário relações de autonomia e liberdade de escolhas pois as pessoas privadas de liberdade estão sujeitas aos códigos normativos que irão formar a sua subjetividade no espaço punitivo porém mesmo dentro destas normas algumas buscam resistir havendo dentro de tais espaços relações de poder e relações de dominação um jogo entre dominantes e dominados É importante também pensar a sociedade pelos seus desvios pelas fugas e pelas resistências e não apenas se debruçar em estudos sobre a disciplinarização dos corpos e da normalidade que é esperada na sociedade Não há portanto um sujeito universal não havendo um sujeito universal a delinquência é também uma forma de se colocar no mundo Dessa forma serão analisados dados e documentos referentes a criminalidade feminina e como esses sujeitos são construídos subjetivamente Não negando a existência da criminalidade e reconhecendo a falta de humanidade no trato com essas pessoas Para Michel Foucault as prisões cumpririam com excelência o papel de fabricar criminalidade pois há dois séculos se diz a prisão fracassa já que ela fabrica delinquentes Eu diria de preferência Ela é bemsucedida pois é isso que lhe pedem FOUCAULT 2012 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 388 p 33 E ainda longe de transformar os criminosos em gente honesta serve apenas para fabricar novos criminosos ou para afundálos ainda mais na criminalidade FOUCAULT 2015 p 216 Dessa forma alguns grupos sociais seriam colocados neste espaço para serem isolados do restante da população sendo controlados e vigiados e também disciplinados a terem um comportamento que vá de encontro ao aceitável socialmente Para as questões que envolvem as mulheres a disciplina e o poder andam de mãos dadas pois é neste espaço de reclusão que se tentará disciplinar esta mulher delinquente para que após cumprida a sua pena de reclusão ela possa voltar a conviver em sociedade sendo mais dóceis e sociáveis e cumpridoras das leis das normas das regras e dos costumes A disciplina é portanto uma forma de controle e poder do Estado para com as mulheres é utilizada como uma forma de organização daquelas consideradas confusas e perigosas pois a detenção penal deveria então ter por função essencial à transformação do comportamento do indivíduo FOUCAULT 2014 p 264 Essa diciplinarização poderia ser colocada da seguinte maneira o corpo humano feminino entraria numa maquinaria de poder que o esquadrinha o desarticula e o recompõe FOUCAULT 2014 p 135 Essa recomposição permitiria a volta da mulher domesticada à sociedade Para Michelle Perrot a prisão assumiria três papéis punir isolar e corrigir para integrálo à sociedade no nível social que lhe é próprio 1988 p 262 Complementando a colocação da historiadora Foucault 2014 p 223 situa que ao fazer a detenção a pena por excelência ela introduz processos de dominação característicos de um tipo particular de poder Seria portanto um espaço de poder elaborado por homens e que tem a finalidade de controlar o tempo e os atos das pessoas encarceradas para que estas voltem a ocupar os seus papéis de origem que no caso das mulheres seriam o da vida privada do cuidado do lar e dos filhos docilizando aquelas que transgrediram É necessário também pensar nesses espaços que são majoritariamente masculinos espaços que foram construídos para abrigar os homens delinquentes e quando não conseguem mais atender a este público são usados para abrigar as mulheres que delinquiram sem considerar suas especificidades como a gravidez a parto o puerpério entre outras características do feminino biológico Não havendo também espaço destinado a população de mulheres transexuais e travestis que delinquiram e são muitas vezes alocadas com homens e como homens Ou seja não há espaço para o feminino considerando neste ponto que há violência de gênero não respeitando em alguns casos o que expõe a Lei de Execução Penal LEP em seu artigo 82 1 A mulher e o maior de sessenta anos separadamente serão Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 389 recolhidos a estabelecimento próprio e adequado à sua condição pessoal BRASIL 1984 p irreg Ainda em que pese a alocação dessas mulheres e ao tipo de estabelecimento penal em que deverão cumprir sua pena há 7 107 destinados apenas às mulheres 17 244 são estabelecimentos mistos e 74 1067 estabelecimentos masculinos Ou seja não é raro que elas tenham que se separar da família cumprindo a pena nas capitais Esse fato faz com que elas percam vínculos familiares e laços de afetividade Foucault aponta que enfim e talvez principalmente o isolamento dos condenados garante que se possa exercer sobre eles com o máximo de intensidade um poder que não será abalado por nenhuma outra influência a solidão é a condição primeira da submissão total FOUCAULT 2014 p 230 Sendo este um ponto importante de se analisar pois com a quebra dos laços e vínculos afetivos essas mulheres encarceradas passam anos sem recebe visitas de familiares e principalmente dos cônjuges que se encontram privados de liberdade também ou abandonam essas mulheres no cárcere e reconstroem suas vidas com outras parceiras Sobre a saúde das mulheres encarceradas e a falta de assistência há o livro de Nana Queiroz 2015 que denuncia diversas violações neste sentido e que também podem ser observadas em denúncias feitas pela Comissão Parlamentar de Inquérito CPI do sistema carcerário Nas cadeias femininas nem mesmo absorvente higiênico ou remédios para cólicas estão disponíveis Se a menstruação for acompanhada de dor não há remédio a não ser reclamar Quanto aos absorventes quando são distribuídos são em quantidade muito pequena dois ou três por mulher o que não é suficiente para o ciclo menstrual A solução As mulheres pegam o miolo do pão servido na cadeia e os usam como absorvente BRASIL 2008 p 204 205 Em relação a consultas médicas na CPI consta que O DEPEN informa em seu relatorio Mulheres Encarceradas Diagnóstico nacional que 9216 das presas são submetidas a exames preventivos de câncer ginecológico Tal dado porém é facilmente desmentido pela visita às prisões e conversas com as presas em menos de um quarto dos estabelecimentos que visitamos elas declararam fazer exames do tipo Papanicolau na maioria dos casos o dito encaminhamento ao SUS nunca vem especialmente com a desculpa da falta de escoltas para levar as prisioneiras aos hospitais BRASIL 2008 p 284 Tal informação vai de acordo com o que expressou a pesquisadora Talita Ranpin em sua pesquisa acerca do sistema penitenciário do Estado de São Paulo Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 390 Uma observação pontual há de ser considerada os dados do InfoPen referência dezembro2010 revelam que dos 220 médicos contratados apenas um é ginecologista Para atender ao menos uma vez ao ano todas as 8491 mulheres custodiadas no sistema penitenciário esse médico ginecologista deverá consultar aproximadamente 23 mulheres por dia durante 365 dias consecutivos Ocorre que durante o ano há cerca de 240 dias úteis e considerando a jornada de oito horas diárias de trabalho da categoria dos médicos Brasil 1997 referido médico teria à disposição dessas mulheres aproximadamente 1920 horas anuais Revelando o fato de que o mesmo goza de férias e de que existem feriados nacionais poderíamos especular que cada mulher encarcerada poderia fruir cerca de 13 minutos anuais de consulta médica seja referida consulta preventiva rotineira ou para tratamento específico Treze minutos totais neles computados o tempo gasto pelo paciente para conversar com o médico fazer exames necessários receber o diagnóstico e fazer o retorno Treze minutos entre o primeiro e o derradeiro contato com o médico RANPIN 2011 p 38 Fica claro que o mais importante dentro desta lógica carcerária é manter o bemestar da sociedade que está fora dos muros penitenciários protegidas daqueles que foram contra as leis e as regras de convívio social o criminoso se tornaria o inimigo dessa sociedade como colocado por Foucault constituise assim um formidável direito de punir pois o infrator se torna o inimigo comum Até mesmo pior que um inimigo é um traidor pois ele desfere seus golpes dentro da sociedade FOUCAULT 2014 p 89 E ainda o criminoso é aquele que danifica perturba a sociedade O criminoso é o inimigo social é aquele que rompeu o pacto social FOUCAULT 1996 p 81 Para essas mulheres além da pena jurídica existem as penas sociais que lhes cortam os laços de afetividade e o seu desenvolvimento enquanto ser humano Privadas do ir e vir da convivência familiar do desenvolvimento profissional pois a reclusão seria uma forma de impedir que voltassem a transgredir afastar os indivíduos que são nocivos à sociedade ou impedilos de recomeçar por meio de uma reforma psicológica e moral das atitudes e do comportamento dos indivíduos FOUCAULT 1996 p 8485 A mulher enquanto transgressora de delitos é invisibilizada dentro do cárcere mais ainda se ela é pobre e negra há um recorte de classe e raça que o aparato jurídico realiza elas não ganham as mídias e pouco ou quase nada se sabe delas sabese que delinquiram mas não se sabe como o feminino é tratado dentro do sistema prisional brasileiro 2 SISTEMA PRISIONAL DO PARANÁ BREVE HISTÓRICO E PERFIL DAS MULHERES QUE PASSARAM PELO REGIME SEMIABERTO ENTRE 20042014 A primeira penitenciária do Estado do Paraná foi criada em 1909 e era conhecida como Presídio do Ahu também era uma prisão pequena com cerca de 52 vagas que eram ocupadas Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 391 por 55 detentosas já revelando naquela época um déficit de espaços sendo que homens e mulheres ficavam presos nesse mesmo estabelecimento apenas em alas separadas Outras prisões foram surgindo e podem ser citadas como a Colônia Penal Agrícola em 1940 e a Penitenciária Central do Estado PCE em 1954 E em 1960 as mulheres foram separadas dos homens e transferidas para um distrito policial no centro da cidade de Curitiba No final dos anos de 1960 no Município de Piraquara iniciouse a construção de uma penitenciária feminina porém de acordo com o modelo masculino ou seja não estava adequada às necessidades femininas Tal espaço foi inaugurado em 1970 com o nome de Penitenciária de Mulheres ou Presídio de Mulheres Em 1980 foi renomeado para Penitenciária Feminina do Estado PFE e em 1993 foi alterado para Penitenciária Feminina no Paraná PFP nome que permanece até os dias de hoje Ainda sobre as penitenciárias do Estado do Paraná após a aprovação da LEP em 1984 foi necessário a criação de uma unidade para atender as presas do regime semiaberto e em 1985 funcionando no mesmo complexo da Penitenciária Feminina do Paraná PFP foi criada a Unidade de Regime SemiAberto Feminino URSAF que abrigava em torno de 18 presas Já em 1991 a URSAF passou a ter o nome de Penitenciária Feminina de Regime Semi Aberto do Paraná PFA e em 2007 teve sua identificação modificada mais uma vez e passou a se chamar Centro de Regime SemiAberto de Curitiba CRAF nome atual com capacidade para atender 106 mulheres presas Porém em 2017 o semiaberto de Curitiba foi desativado e as mulheres que lá estavam foram todas colocas em liberdade com o uso do monitoramento eletrônico3 atualmente no prédio que servia ao CRAF está localizado o Escritório Social que visa o atendimento de mulheres monitoradas eletronicamente em Curitiba Tal escritório também auxilia na reinserção delas no mercado de trabalho oferece cursos e também é responsável por refazer os documentos pessoais que por ventura tenham sido extraviados De acordo com pesquisa realizada dentro da instituição o que possibilitou o contato com prontuários de presas cerca de 256 prontuários e destes 177 foram usados para compor a amostra pois eram de mulheres presas entre os anos de 2004 a 2014 recorte temporal da pesquisa Foi possível constatar o perfil das mulheres que lá estavam cumprindo pena as mulheres negras e pardas correspondiam a 29 e mulheres brancas a 47 entretanto haviam 3 É uma forma de pena que substitui a privação de liberdade e que pode ser utilizado durante o processo de sociabilização do preso no regime aberto Como o semiaberto feminino temporariamente fechado todas elas utilizam o monitoramento eletrônico Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 392 prontuários que não continham tal informação em nenhum documento que correspondem a 24 em outros a informação sobre a cor da cutis não correspondia a foto apresentada mostrando que essa é uma informação frágil e subjetiva Sobre a escolaridade 84 delas possuem pouca ou nenhuma escolaridade sendo encontrado apenas 1 prontuário de uma mulher com ensino superior completo e 3 prontuários de mulheres com ensino superior incompleto Essa baixa escolaridade se reflete na atividade laboral que elas exerciam até o momento em que foram presas doméstica ajudante geral auxiliar de cozinha pescadora costureira manicure garota de programa desempregada entre outras ocupações que formaram essa amostra Em grande parte mulheres solteiras e católicas jovens em sua maioria 63 entre os 18 e os 30 anos de idade Presas por tráfico de drogas ou associação ao tráfico cerca de 130 prontuários constavam tal crime normalmente associado a porte ilegal de arma desacato roubo ou furto No que se refere a quantidade de drogas apreendida há uma variedade imensa porém é possível observar que quando a mulher é pega com crack mesmo que em quantidade bem pequena a pena é maior do que as que foram presas com maconha ou cocaína evidenciando a estigmatização que essa droga carrega consigo Tais prontuários trazem diversas informações sobre a história daquelas mulheres e são compostos pelos seguintes documentos documentos pessoais ficha de identificação pessoal e social fotografias do rosto cicatrizes tatuagens e qualquer marca que possa identificálas4 histórico de registro policial ficha de triagem pedagógica e psicológica processo relatório da situação processual executória mandato de monitoramento5 atas de concelho disciplinar quando cometem alguma falta na instituição penitenciária histórico de medicalização certificados de cursos leituras e comprovantes de horas trabalhadas para ajudar na remissão de pena entre outros a prisão e os prontuários são formas de observar e conhecer as pessoas encarceradas o conhecimento de cada detento de seu comportamento de suas disposições profundas de sua progressiva melhora as prisões devem ser concebidas como um local de formação para um saber clínico sobre os condenados FOUCAULT 2014 p 242 4 São relatórios bem detalhados que contam também com campos como formato do rosto cor dos cabelos como são as sobrancelhas a testa o nariz as orelhas e os olhos Se há deformidades ou amputações sexualidade sendo um documento bem completo para descrever fisicamente as apenadas 5 Quando ela sai com o monitoramento eletrônico pois há uma série de deveres que devem ser obedecidos Podem ficar na rua entre 5 horas da manhã até as 23 horas da noite devem evitar atividades físicas que possam danificar o equipamento de monitoração eletrônica e não devem deixála submersa por muito tempo não sair da área permitida ou se mudar sem a autorização do juiz zelar pelo equipamento e comparecer aos órgãos competentes sempre que solicitada a sua presença Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 393 Além do acesso a essa documentação foram entrevistadas três 3 presas que cumpriam pena com o uso do monitoramento eletrônico elas relataram um pouco das suas experiências dentro da prisão no regime fechado e no semiaberto alguns fragmentos dessas entrevistas serão usados no segundo item deste artigo 3 RELATOS CARTAS E ENTREVISTAS DE MULHERES ENCARCERADAS O trabalho com fontes orais exige alguns cuidados segundo Venera Alberti 2008 p 165 é bom ter claro que a opção pela história oral responde apenas a determinadas questões e não é solução para todos os problemas E ainda para Paul Thompson 1992 p 260 é possível apontar que a riqueza da história oral está evidentemente relacionada ao fato de ela permitir o conhecimento de experiências e modos de vida de diferentes grupos sociais que muitas vezes não correspondem com a realidade do pesquisador sendo assim as perguntas devem ser sempre tão simples e diretas quanto possível em linguagem comum ALBERTI 2008 p 166 Juntamente com a história oral será tratada também a memória visto que as entrevistadas recordaram situações já vividas quando estavam em regime fechado pois citando Venera Alberti 2008 p 167 a memoria é essencial a um grupo porque está atrelada à construção de sua identidade e ainda as entrevistas como todo testemunho contêm afirmações que podem ser avaliadas THOMPSON 1992 p 315 A partir desse ponto serão usados alguns fragmentos das entrevistas realizadas contudo com seus nomes ocultados sendo identificadas como Encarcerada 1 Encarcerada 2 e Encarcerada 3 Elas foram receptivas em contar um pouco sobre suas experiências dentro das penitenciárias de regime fechado e semiaberto A mulher identificada como Encarcerada 1 se limitou a responder o que lhe era perguntado enquanto a mulher identificada como Encarcerada 2 contou suas experiências de forma mais aberta falando muito do companheiro das amizades e do tratamento diferente das gestões do presídio A Encarcerada 3 também foi receptiva ao responder o questionamento e se mostrou bem descontraída com a situação Ainda houve a tentativa de entrevistar outra mulher porém ela não se sentiu à vontade para continuar e relembrar o que havia passado dentro do cárcere dizendo apenas que tinha sofrido muito lá Todas demostraram emoção ao lembrarse dessa fase do cumprimento de pena Elas foram detidas em decorrência do tráfico de drogas artigo 33 do Código Penal CP Encarcerada 2 contou que foi presa graças a operação do Contestado6 que visava desarticular 6 Saiba mais em Operação Rota do Contestado II desarticula rede de tráfico de drogas Disponível em httpsmpscmpbr Acesso em 25 de abr 2017 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 394 uma rede de tráfico de drogas ela confirmou ser esse o crime que praticava e que era faccionada ao Primeiro Comando da Capital PCC7 ela comentou que E2 Na Operação do Contestado eu levei 3 anos pra ser condenada PESQUISADORA Como assim Operação do Contestado E2 É uma operação que teve de escuta eu levei 3 anos e daí me condenaram e mandaram minha condenação bem no dia do Ano Novo que eu estava com minha mãe Tem muito conhecido que corre com PCC né no caso daí o que aconteceu eles acharam que ele rasgou a camisa pra ficar comigo porque eu estava envolvida com o PCC então meu marido paga hoje meu marido saiu da galeria que ele estava porque estavam querendo matar ele ele levou uma estocada apanhou muito lá dentro ENCARCERADA 2 Curitiba 2017 p irreg A Encarcerada 1 relata o seguinte sobre a sua prisão Na rua eu vendia droga era moradora de rua desde os 11 anos daí eu comecei a me envolver nas coisa errada fui parar na cadeia fiquei 4 anos na primeira vez daí saí aprontei de novo fiquei 1 mês na rua daí fui condenada por tráfico de drogas 5 anos e 10 meses daí eu saí em setembro do ano passado de tornozeleira ENCARCERADA 1 Curitiba 2017 p irreg Aos 11 anos de idade a Encarcerada 1 já estava morando na rua tal afirmativa demonstra a vulnerabilidade social e violência a qual esteve exposta desde a infância sendo reincidente no crime com mais de uma condenação passou parte significativa de sua vida entre a rua e a prisão Sobre a prisão da Encarcerada 3 Antes de eu entrar no sistema em 2009 foi quando eu cai presa a primeira vez já era difícil né era mãe e separei do meu marido e fui vender droga só que eu vendia na minha área ali ali na minha casa na minha vila daí apareceu alguém ali e me ofereceu pra ir pro Centro e eu fui a primeira vez só que eu fiquei muito pouco tempo e 2009 cai e fui condenada a 8 anos e 6 meses que eu puxei 4 anos e saí em 2014 daí eu fiquei 10 meses na rua procurei serviço né Fiquei 10 meses daí na rua fui presa saí em janeiro de 2014 em novembro eu já fui presa de novo de 2014 Daí peguei uma condena de 5 só que como eu era reincidente peguei 35 fiquei 2 e 10 agora Era pra mim ficar mais tempo só que teve mutirão e eles me deram a tonozeleira senão era pra mim ficar mais 4 anos ENCARCERADA 3 Curitiba 2017 p irreg Também reincidente no crime evidenciando o sistema falho de encarceramento do país na sua fala ela expressa a preocupação em suprir as necessidades de seu filho visando melhores ganhos financeiros ela decidiu vender drogas no Centro de Curitiba ocasião em que foi presa ao cumprir parte de sua primeira condenação voltou para a rua para a venda de drogas e 7 Organização criminosa do Brasil que comanda assaltos rebeliões sequestros entre outros crimes Atua principalmente em São Paulo mas esta presente em mais 22 Estados do país Disponível emhttpspaulabigolijusbrasilcombr Acesso em 25 de abr 2017 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 395 novamente caiu presa Comenta também que buscou outras formas de se sustentar mas que não obteve êxito sendo uma possível justificativa para voltar a delinquir A questão que norteia a pesquisa visa identificar o abandono e a invisibilidade que as mulheres encarceradas enfrentam por isso foi perguntado às três entrevistadas se recebiam visitas de seus familiares enquanto estavam no regime fechado visto que o semiaberto proporciona uma liberdade maior para elas tais respostas serão descritas a seguir PESQUISADORA É quem que ia te visitar E1 Minha mãe PESQUISADORA Sua mãe Você é casada tem filhos E1 Eu tenho um filho de 11 anos que vive com a minha mãe desde nenezinho PESQUISADORA Ele foi te visitar E1 Foi duas vezes só que eu não gostava que ele fosselá não é um lugar bom pra ele ir ENCARCERADA 1 Curitiba 2017 p irreg PESQUISADORA Mas e a tua família é de Santa Catarina E2 Santa Catarina Moro com uma amiga sabe que não é fácil morar na casa dos outros mas melhor que estar presa conforme o dia vai passando as coisas vão melhorando PESQUISADORA Então a tua família nunca veio te ver E2 Não quem veio me ver foi essa amiga PESQUISADORA Mas eles sabiam E2 Sabiam só que eles também não têm condições eu não julgo eles também sim é outro Estado né Outro Estado gasta muito minha mãe teve aquele negócio na perna que tem que amputar Trombose isso então ela gasta muito em remédio tem que usar fralda então jamais eu culpo minha mãe minha família ENCARCERADA 2 Curitiba 2017 p irreg Insistindo mais um pouco com a 2 PESQUISADORA Mas ninguém nunca foi te visitar E2 Um tempo depois foi a minha família primeiro me deu um castigo mas depois eles foram me visitar depois de três anos presa PESQUISADORA Você esperava esse dia Esperava que alguém fosse E2 Esperava sempre me arrumava e ficava lá esperando aí depois PESQUISADORA Depois de quanto tempo que você parou de esperar E2 Depois de um ano aí eu desisti PESQUISADORA Qual era o dia de visita E2 Domingo Mas sabe o que é legal o legal é que a C também não tinha visita e tipo a gente acaba se apegando as que não tinham visita a gente se apegava bastante eu e ela acredito que eu sou igual uma mãe pra ela essa menina eu até gostaria que fizesse parte da minha família ela me ajudou bastante na cadeia ela chegou numa parte assim da minha vida Como eu te contei que tive começo de leucemia aí quando eu voltava ela deixava shampoo sabonete pra mim Querendo ou não ela fez parte da minha vida Ela é a parte principal da minha vida ENCARCERADA 2 Curitiba 2017 p irreg Como pode ser observado nessa fala a Encarcerada 2 revela ter grande apreço pela presa C considerandoa de sua família na entrevista foi possível notar que ela evitava falar de seus Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 396 familiares num primeiro momento focando muito no seu marido e no medo que ela tem de algo acontecer com ele dentro da prisão pois na entrevista ela afirmou que sabe o que o diretor de onde meu marido tá falou pra advogada Que lá é o lixo dos lixos não estão nem aí querem que eles se matem eles esquecem que tem família ENCARCERADA 2 Curitiba 2017 p irreg E num segundo momento falando da sua companheira de cárcere consultando seu prontuário foi constatado que ela tem uma filha porém em nenhum momento falou sobre isso Para Goffman 1974 p 58 há tendências de solidariedade e formação de panelinhas8 em grupos que habitam em instituições totais mesmo que essa solidariedade seja limitada pelo receio de algum ataque Ainda sobre a questão do abandono a Encarcerada 3 relatou o seguinte Sempre tive a minha mãe e nesses 4 anos a minha mãe nunca faltou minha mãe minha irmã meu pai e meu filho mas depois né eles cansam minha mãe nunca deixou de me levar a sacola e depois desses 4 anos agora nessa última condena ela só ia uma vez por mês daí só ia ela Minha irmã e meu pai desistiram no meio do caminho mas minha mãe sempre permaneceu do meu lado Você não tem nada pra comer você não tem ninguém da sua família ali pra trocar uma ideia e falar o que você tá passando Muitas são oprimidas lá dentro tipo pega castigo absurdo e isso atrasa a sua cadeia então tem várias situações que tem preconceito ali dentro mesmo existe sabe a voz mais alterada nesse momento entre as guarda ali entre a direção porque se você não tem uma pessoa que te segue como um advogado alguma coisa é mais fácil de você ser humilhada é mais fácil de você pegar um castigo de ter que fazer um adianto ali pra conseguir alguma coisa dentro da cadeia então é bem difícil ENCARCERADA 3 Curitiba 2017 p irreg A primeira encarcerada via o filho poucas vezes enquanto estava em regime fechado já a segunda não recebeu em nenhum momento a visita da família apenas de uma amiga como foi exposto a terceira recebia visitas regulares na primeira vez que foi presa mas na segunda condenação apenas a mãe continuou visitando mesmo que poucas vezes Sobre o abandono a Encarcerada 2 ainda relatou que muitas vezes não tinha sacola pelo motivo de não ter familiares próximos e que muitas vezes comi comida com bicho senti fome a vida lá é sobreviver longe da família saudade da minha mãe saudade de tudo ENCARCERADA 2 Curitiba 2017 p irreg Já a Encarcerada 3 relatou que Agora na minha segunda mão me senti muito Vamos dizer assim meio que esquecida de vez em quando que eu fui pra Ponta Grossa minha mãe me fortaleceu lá chegou a ir mas assim minha irmã as coisas que eu mais precisava e não tinha porque eles se cansam entende e isso pra mim já é uma questão de esquecimento e é uma coisa que machuca né uma coisinha mínima deixou de levar ali alguma coisa você já se sente esquecida as vezes 8 Um grupo restrito composto por pessoas que possuem afinidades Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 397 não é as melhores coisas você se sente que tá meio que sendo tirada da vida porque né porque não trouxe o que eu pedi porque que não pôde tá tão difícil assim Eu não acredito que tá tão difícil Então assim são pensamentos que debatem com você mas já me senti já dessa forma não sei te explicar exatamente o porquê como foi a forma mas já me senti invisível De você reclamar pra sua família de como tá lá dentro e tipo você saber que a pessoa podia ir lá e sei lá fazer alguma coisa ou simplesmente falar com a chefe de segurança E não fazem nada porque Porque tá lá dentro e tem que pagar por aquilo que fez e pá E não é bem assim Nessa questão já me senti invisível ENCARCERADA 3 Curitiba 2017 p irreg Na fala acima a Encarcerada 3 é emblemática na medida em que demonstra o esquecimento da família e o quanto ela se sentiu invisível e sozinha por diversos momentos sem ninguém para conversar e poder solicitar alguma ajuda estar em outra cidade pode ter contribuído para a sua solidão pois o deslocamento da família era mais difícil e caro visto que muitas delas são oriundas de famílias com poucos recursos financeiros e já estavam colocadas à margem da sociedade antes mesmo de cair na criminalidade Há também o fato da reincidência da presa que acabou cansando seus familiares em que a própria encarcerada propaga o discurso punitivo em uma frase dita por ela tem que pagar por aquilo que fez reforçando o argumento de muitos elas devem pagar por sua falta num silêncio eterno PERROT 2013 p 17 E ainda segundo Joan Scott 1999 há um silêncio público e sancionado em relação a transgressão feminina ela existe mas deve ser reprimida ou esquecida Sobre o regime fechado a Encarcerada 1 relata que para sobreviver foi preciso se fechar em seu mundo Lá tem dia que cê levante nervosa injuriada altas vezes eu discuti com as agentesic lá mas é porque cê levanta tipo oito ano da tua vida que cê perdeu lá dentro então tem hora que cê fica louca Mas lá dentro eu fechava meu mundo lá tipo não pensava muito aqui fora fechava meu mundo lá dentro lá que cê pensar aqui fora pesa mais ainda ENCARCERADA 1 Curitiba 2017 p irreg As pesquisadoras da educação Araci AsinelliLuz e Ires Falcade entrevistaram mulheres encarceradas para a dissertação de mestrado no material recolhido por elas também é possível notar o abandono dessas mulheres elas não identificam as presas por nome apelido ou número apenas com as letras GF que correspondem ao Grupo Focal tais mulheres comentaram sobre a falta de visitas não temos visita íntima nem visita direito eles complicam tanto que as pessoas desistem de vir visitar ASINELLILUZ FALCADE 2016 p 23 E ainda Porque as trouxas das mulheres vão pras portas do presídio Na porta do presídio dos homens é sempre cheio de visita e aqui na porta do nosso sabe Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 398 quanta visita tem 5 no máximo Tudo da família nenhum marido As esposas 99 vem visitar o marido e os homens tão lá fora numa boa e nós aqui dentro se ferrando ASINELLILUZ FALCADE 2016 p 23 Outro relato é da presa FSS em carta endereçada ao juiz que cuidava de seu caso a carta estava anexada em seu prontuário no escritório social ela pediu por uma portaria especial em seu regime semiaberto para cuidar da filha de 4 anos Estou cumprindo pena desde 16 de dezembro de 2013 durante todo esse período nunca recebi visita dos meus familiares tenho uma filha que se encontra hoje com 4 anos e 10 meses asic 3 meses estou no regime semiaberto só assim quando tive o benefício da portaria reencontrei minha filha sic F S S Carta 2016 p irreg Há também o trecho de outra carta enviada de fora da prisão por uma amiga de uma detenta de iniciais PNC em que DAV pede para visitar sua amiga que está presa e não recebe visitas de outras pessoas Ela é minha amiga a muitos anos e todas as pessoas da família dela a abandonou e outras foram detidas Se não corri atrazsic disso antes é porque a vó dela ia nas visitas e por isso eu não podia entrar mas agora ela também foi presa e agora a P ficou totalmente abandonada gostaria de ajudar minha amiga podendo levar as sacolas semanais D A V Carta 2013 p irreg Em resposta à presa em questão enviou uma carta para a amiga em que relata estar com saudades e preocupada com a avó que não dava mais notícias há uma sequência de correspondências entre elas que foram trocadas no ano de 2013 e algumas partes serão descritas abaixo O T não teve coragem nem de fazer a carterinha esperou a 1º oportunidades e me abandonou aqui aposto que tá com aquela coisa mas fazer o que né Eu tô presa mas quando eu sair vou resolver bem certinho essas coisas Saudades de você amiga Vou ficando por aqui e espero resposta sua até mais te amo Beijos P N C Carta 2013a p irreg Bom recebi essa semana sua carta fiquei feliz por saber que pelo menos você não esqueceu de mim sabe amiga já faz um mês que não tenho notícias de ninguém da minha família to preocupada com minha vó Sinto como se eu tivesse morrido sabe todos me abandonaram nem uma carta pra dizer que estão bem P N C Carta 2013b p irreg Oi minha amiga espero que você esteja bem recebi sua carta você sabe que nunca vou te esquecer estou bem na medida do possível Sabe amiga fico triste por estar abandonada por pessoas que eu tanto amo e que tanto ajudei mas fazer o que né amiga um dia eu saio daqui P N C Carta 2013c p irreg Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 399 Só me resta você amiga Sei que a batalha é grande mas vitória certa Bom amiga já chega de te encher me escreve para dizer como tá você e a M tô com tanta saudade de vocês Dá um abraço na sua família e fique com Deus Logo estarei aí para te dar um abraço P N C Carta 2013d p irreg São quatro fragmentos de datas diferentes porém revelam o sentimento de abandono em todas elas e ainda é possível notar a relação de apego da presa para com sua amiga em uma delas ela até comenta que é como se estivesse morta pois não recebia visitas ou cartas de pessoas da sua família Esse sentimento também foi possível ser notado nas entrevistas Não é apenas o abandono emocional que as fragiliza dentro do ambiente penitenciário é também o abandono financeiro Nas entrevistas duas presas revelaram a importância da sacola ou jumbo sendo que a alimentação delas vem do que os familiares ou amigos levam e também itens de higiene e até mesmo roupas íntimas Tais necessidades também evidenciam que o sistema não consegue atender suas demandas Erving Goffman 1974 p 50 observa que no mundo externo por exemplo o internado provavelmente podia decidir sem pensar muito como desejava o seu café na instituição tais direitos podem tornarse problemáticos Nos relatos a seguir é perceptível a importância que as encarceradas davam às visitas e principalmente à sacola Amiga eu queria pedir pra você vê se tem como você ver se não tem lá nas minhas coisas uma calça cinza M sabe do pano mole tipo saruel e umas calcinha que não seja fio tem que ser meio grandinha e uns sutiã ou top eu tô sem na verdade só tenho 1 sutiã porque não pode ter de bojo sabe como é né e calcinha só tenho 2 essas coisas só entra de 3 em 3 meses então só vai entrar em dezembro P N C Carta 2013c p irreg Lá dentro a gente sofre pra caramba de saudade quando você tá com vontade de comer alguma coisa você não pode comer porque você não tá na rua lá dentro não entra o que você quer comer agora eu tô feliz como o que eu quero bebo o que eu quero tô perto das pessoa que eu amo ENCARCERADA 1 Curitiba 2017 p irreg Não tinha sacola muitas vezsic lavei roupa limpei X pra ganhar uma bolacha alguma coisa aí depois que eu consegui trabalhar consegui tirar meu salário fazer minha sacola ENCARCERADA 2 Curitiba 2017 p irreg Sacola no sistema é uma coisa importante pro preso é uma forma de você não passar fome então é bem difícil você encontrar pessoa que vão até o final da caminhada pode chegar um tempo e ficar mas é bem difícil bem precário as meninas passam em condições sofrida mesmo que se você não tiver uma sacola numa visita o que você vai comer Entendeu ENCARCERADA 3 Curitiba 2017 p irreg Os quatro relatos acima demonstram as privações que existem dentro do sistema carcerário desde vestuário roupas íntimas que devem ter um modelo específico até a Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 400 alimentação pois elas costumam receber três refeições diárias sendo o jantar servido entre 1718 horas após esse período se tiverem fome as que recebem sacola podem se alimentar novamente e as que não recebem ou comerão apenas no dia seguinte ou trabalharão para outras detentas que recebem sacolas e comercializam os itens dentro da prisão É importante frisar que no que tange ao vestuário o Estado do Paraná é um dos poucos que disponibiliza uniforme para os encarcerados Ainda foi perguntada a elas como era a questão de ser uma mulher presa como eram enxergadas as duas falas revelam que o homem encarcerado impõe respeito enquanto elas sofrem violências diversas É complicado né diferente do homem que impõe respeito com a mulher não é tipo nossa você passou pela cadeia uma coisa bem chata Faz 8 anos atrás que eu puxava cadeia a mulher presa era esquecida Hoje digamos que o sistema judiciário dá uma atenção maior mas tipo tem uma atenção maior mais ainda existe o machismo entre os homens ENCARCERADA 2 Curitiba 2017 p irreg Sim total uma que homem tem mais respeito eu acho pelo menos que os guardas mesmo em si eles respeitam mais Agora mulher não muito barulho muita confusão muita inveja ENCARCERADA 3 Curitiba 2017 p irreg Novamente neste ponto e na fala delas fica explícito que a violência e a criminalidade quando praticada por mulheres é duplamente julgada pela sociedade pois elas desempenharam um papel que não é feminino os homens criminosos impõe respeito pois a violência é tida como inerente a masculinidade e que historicamente os papéis sociais atribuídos às mulheres foram de submissão recato matrimônio e maternidade ocupando o âmbito privado doméstico e familiar PAIVA 2019 p 427428 Esses são alguns fragmentos sobre a experiência carcerária de mulheres a fim de proporcionar informações acerca do sistema penitenciário É importante contar as experiências delas para que os vestígios femininos sejam deixados à disposição e suas vozes sejam ouvidas e os estereotipos sejam quebrados como colocado por Perrot 2013 p 22 no teatro da memoria as mulheres são uma leve sombra Sobre a questão posta referente à invisibilidade e o abandono das mulheres presas foi possível constatar por meio das cartas e também das entrevistas orais que ele de fato existe e que elas conseguem se perceber como invisíveis e que esse abandono possivelmente seja imposto a elas por serem mulheres que não corresponderam ao papel que normalmente é esperado Algumas colocaram isso de forma explícita e outras deixaram subentendido ao nem Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 401 mencionarem filhos e outros familiares Há sim o sentimento de abandono e uma necessidade em serem ouvidas já que por tanto tempo foram silenciadas Elas devem portanto sair da sombra e da marginalidade e no que se refere às mulheres encarceradas não apenas falar por elas mas sim falar com elas pois elas além de estarem privadas de liberdade normalmente são privadas de fala E elas querem ser ouvidas porque presidiário tem um problema sabe E ele quer conversar quer falar quer ouvidos ENCARCERADA 3 Curitiba 2017 p irreg CONSIDERAÇÕES FINAIS Pesquisar sobre mulheres desviantes num recorte temporal tão próximo foi algo desafiador e por vezes perturbador O questionamento feito acerca das causas da invisibilidade e do abandono como formas de punir as mulheres que cometeram algum ato criminoso foi em grande parte respondido no segundo item deste artigo As entrevistas orais contribuíram muito para chegar ao resultado de que sim elas são esquecidas e abandonadas por seus familiares e também pela sociedade por terem se comportado de maneira diferente do que é tradicionalmente esperado para uma mulher Os teóricos utilizados na pesquisa ajudaram na reflexão e discussão do tema Apesar da imagem tradicionalmente perpetuada no decorrer dos séculos de mulheres dóceis passivas esposas virtuosas e mães amorosas elas delinquiram e continuam transgredindo as regras Hoje talvez mais do que em outras épocas elas têm furtado roubado traficado e cometido assassinatos indo contra tudo o que foi e é concebido para a figura feminina As razões pelas quais as mulheres enveredaram pelo caminho da criminalidade não foram exploradas nesta pesquisa podendo ser pensadas para trabalhos futuros Mas ficou claro que há um preconceito ou estigma maior quando a mulher comete um crime e que estes estão presentes inclusive entre familiares que acabam abandonandoa no cárcere rompendo laços de afetividade As fontes orais foram de máxima importância para poder enxergálas já que em relatorios elas aparecem como dados estatísticos No entanto no olho no olho foi diferente Eram são pessoas MULHERES com sonhos planos e sorrisos interrompidos As que se encontram em regime semiaberto são monitoradas já passaram pelo pior que a vida reclusa poderia lhes oferecer e sabem que podem voltar para tal espaço se se desviarem minimamente do caminho que lhes foi imposto Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 402 Foram diversos dias passados com elas diversos dias olhando prontuários histórias de mulheres que foram presas pelos mais variados crimes pelas mais variadas quantidades de drogas e pelos mais variados tempos de pena a ser cumprida De senhoras a jovens de estudante de medicina ou professora universitária a analfabetas desempregadas de negras de brancas solteiras ou casadas católicas ou budista nenhuma delas nenhuma de nós está imune a cometer ser acusada de algum delito e ser privada de liberdade Para tanto é necessário que mais pesquisas sejam feitas que pesquisadoresas de diversas áreas possam ir aos espaços prisionais e conversar com essas pessoas escutar suas histórias e reclamações propor relatórios que possam de alguma forma contribuir para que este cenário de miséria abandono e colapso prisional possa ser minimizado É tarefa da sociedade exigir políticas públicas nas mais diversas áreas cobrar dos nossos governantes melhorias para toda a população pois essas mulheres contempladas pela pesquisa e tantas outras e homens que também estão privados de liberdade voltarão um dia para a sociedade podendo ter uma nova chance de se integrar a ela ou sendo novamente marginalizados REFERÊNCIAS ALBERTI Verena Fontes orais histórias dentro da história In PINSKY Carla Bassanezi org Fontes históricas São Paulo Contexto 2008 ASINELLILUZ Araci FALCADE Ires Aparecida Discriminação de gênero no sistema penitenciário implicações vividas In FALCADE Ires Aparecida org Mulheres invisíveis por entre muros e grades Curitiba JM Editora e Livraria Jurídica 2016 BRASIL Lei de Execução Penal LEP Lei nº 7210 de 11 de julho de 1984 Disponível em httpwwwplanaltogovbr Acesso em 09 ago 2019 BRASIL Câmara dos Deputados Biblioteca Digital Comissão Parlamentar de Inquérito CPI do sistema carcerário 2009 Disponível em httpbdcamaragovbr Acesso em 03 ago 2019 CENTRO DE REGIME SEMIABERTO FEMININO DE CURITIBA CRAF Departamento Penitenciário do Paraná DEPENPR Disponível em httpwwwdepenprgovbr Acesso em 24 de mar 2019 D A V Carta Piraquara 2013 ENCARCERADA 1 Entrevista concedida à Pamela de Gracia Paiva Curitiba 19 de abr 2017 ENCARCERADA 2 Entrevista concedida à Pamela de Gracia Paiva Curitiba 19 de abr 2017 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 403 ENCARCERADA 3 Entrevista concedida à Pamela de Gracia Paiva Curitiba 15 de mai 2017 FOUCAULT Michel A verdade e as formas jurídicas Rio de Janeiro Nau Ed 1996 FOUCAULT Michel Dos Suplícios às Celas 1975 MOTTA Manoel Barros da org Ditos e Escritos VIII Segurança penalidade e prisão Rio de Janeiro Forense Universitária 2012 p 3236 FOUCAULT Michel Vigia e Punir Nascimento da prisão Petrópolis RJ Vozes 2014 FOUCAULT Michel Sobre prisão In FOUCAULT Michel A microfísica do poder Rio de Janeiro Paz e Terra 2015 p 213233 F S S Carta Curitiba 04 de ago 2016 GOFFMAN Erving As características das instituições totais In GOFFMAN Erving Manicômios prisões e conventos Tradução Dante Moreira Leite São Paulo Perspectiva 1974 GOMES Thais Candido Stutz Dossiê as mulheres e o sistema penal Disponível em httpwwwoabprorgbr Acesso em 22 de mar 2019 HOBBES Thomas Leviatã matéria forma e poder de um Estado eclesiástico e civil Disponível em httpwwwdhnetorgbr Acesso em 23 ago 2019 1651 SCOTT Joan Experiência In SILVA Alcione Leite da LAGO Mara Coelho de Souza RAMOS Tânia Regina Oliveira orgs Falas de gênero Florianópolis Editora Mulheres 1999 p 2155 PENITENCIÁRIA FEMININA DO PARANÁ PFP Departamento Penitenciário do Paraná DEPENPR Disponível em httpwwwdepenprgovbr Acesso em 24 de mar 2019 PAIVA Valdemir PRIORI Claudia Mulheres no mundo da violência e do crime algo fora de lugar Comarca de GuarapuavaPR 19651980 DILEMAS Revista de Estudos de Conflito e Controle SocialRio de Janeiro Vol 12no 2MAIAGO2019 pp427449 Disponível em httpsrevistasufrjbrindexphpdilemasarticleview15873 Acesso em 10 ago 2019 PERROT Michelle Minha história das mulheres São Paulo Contexto 2013 P N C Carta Piraquara 17 de ago 2013 a P N C Carta Piraquara 25 de ago 2013 b P N C Carta Piraquara 14 de nov 2013 c P N C Carta Piraquara 23 de nov 2013 d Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 404 RANPIN Talita Tatiana Dias Mulher e sistema penitenciário a institucionalização da violência de gênero In BORGES Paulo César Corrêa Org Sistema Penal e Gênero tópicos para a emancipação feminina São Paulo Cultura Acadêmica 2011 SOARES Orlando A extinção das prisões e dos hospitais psiquiátricos Rio de Janeiro Editora Científica LTDA 1979 THOMPSON Paul A voz do passado história oral Rio de Janeiro Paz e Terra 1992 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 405 PRESOS FEMININOS SOB A TUTELA DE GESTORES MASCULINOS REPRESENTATIVIDADE IMPORTA Sabrina Nerón Balthazar1 RESUMO O presente artigo é uma pesquisa de natureza teórica histórica e bibliográfica que tem por objetivo analisar o substancial crescimento do número de mulheres em cárcere trouxe novas demandas jurídicas quais são elas e como a atuação dos gestores do sistema prisional impacta suas vidas para além das grades Dessa forma pretendese verificar se i as demandas de mulheres presas são as mesmas dos homens encarcerados ii são uniformes ou há especificidades de classes raça e gênero iii a legislação relativa à realidade carcerária é efetivamente aplicada e cumprida Apoiase nas ideias de T H Marshall EspingAndersen e Sônia Draibe sobre o âmbito de atuação estatal no contexto de um Estado de bemestar Ante a premissa de que no caso do Brasil o Estado tem por dever conferir requisitos mínimos de preservação da dignidade da pessoa humana atento às desigualdades inerentes aos grupos oprimidos buscarseá analisar a situação e o perfil da mulher encarcerada e como a falta de representatividade no pensar da política de encarceramento afeta a vida das mulheres O ponto de partida é o de que o Estado deve levar em conta as logicas de gênero ao pensar a tripla base da provisão social Estado mercado e família uma vez que esse tripé é duramente impactado pelo aumento do encarceramento feminino Observouse que não existe diálogo entre os aplicadores do direito e demais atores do arranjo institucional Juízes membros do Poder Executivo etc e aqueles que executam a pena Palavraschave Políticas públicas Igualdade Gênero Raça Representatividade INTRODUÇÃO O presente estudo utilizou análise de dados fornecidos pelo Governo Federal com a finalidade de verificar ao final se as políticas voltadas ao encarceramento são suficientes a atender à realidade das mulheres encarceradas Buscouse verificar se o Estado tem conhecimento das demandas dessas pessoas se sabe quem são e em que condições vivem Bem por isso traz como reflexão inicial a indagação sobre a real importância de que os representantes sejam de fato um reflexo de seus representados No contexto do Estado de bem estar social questionase também se há necessidade de que governantes levem em consideração as chamadas lógicas de gênero quando da aplicação de políticas públicas A presunção de que homens e mulheres encarcerados vivem realidades similares seria suficiente para conferir aos tutelados pelo Estado uma vida digna 1 Advogada Mestranda em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo USP Educação Executiva em Compliance pelo INSPERSP Graduada em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC e em Ciências Econômicas pela Universidade do Estado de Santa Catarina UDESC Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 406 Em seguida foi feita uma breve análise da legislação aplicável à população carcerária feminina com considerações sobre os níveis de eficiência da aplicação da lei e sua relação com a crise carcerária brasileira no momento presente Posteriormente foi feita análise de como vivem de fato as mulheres encarceradas tanto sob a ótica dos números apresentados por pesquisas de órgãos do governo IPEA e INFOPEN bem como pelos relatos coletados na obra jornalística Presos que menstruam de Nana Queiroz Ao final foi feito um balanço do contexto histórico e político em que os estudos governamentais se voltaram para o público feminino com o necessário enfoque de gênero classe etnia Além disso e sem a pretensão de esgotar o assunto foram considerados aspectos inerentes à identificação da representatividade entre governantes e governados 1 CIDADANIA E REPRESENTATIVIDADE ISSO É IMPORTANTE Em estudo intitulado Cidadania classe e status o sociólogo T H Marshall 1949 examinou a faceta do problema da igualdade social sob o ângulo do custo econômico atravessando o territorio da sociologia Afirmou que a desigualdade do sistema de classes sociais pode ser aceitável desde que a igualdade de cidadania seja reconhecida p 62 Ao analisar os direitos no século XIX afirma que o direito de liberdade ganhava contornos mais amplos ainda que limitado aos homens2 Os direitos políticos eram tidos como secundários decorrentes dos civis Já no século seguinte associaramse os direitos políticos diretamente à cidadania saindo da esfera econômica para ganhar status pessoal O autor demonstrou como a cidadania além de outras influências alterou o padrão da desigualdade social e mesmo atuou sobre as estruturas de classes sociais A escala de distribuição de renda aliada à extensão da cultura e experiências dos homens possibilitaram o enriquecimento do chamado status universal da cidadania combinado com a evolução dos conceitos de educação e ocupação trabalho Marshall defende que certo grau de desigualdade é aceitável numa sociedade democrática desde que isso não corresponda ao que ele chama de expressão de privilégio hereditário Marshall tem na educação a chave para a consciência do exercício da cidadania Nesse sentido a ignorância de sua condição faz com que o homem não possa exercer plenamente sua cidadania MARSHALL 1949 p 67 Fica evidente portanto que aquele que não tem consciência da construção histórica dos direitos sociais de que existe toda uma luta para a sua construção formação e 2 A palavra homem indica necessariamente pessoa do sexo masculino Tratase de escolha semântica em não se utilizar da recorrente pretensão de uso do termo no sentido de ser humano ou de corresponder a toda a humanidade em função da finalidade deste estudo científico Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 407 estabilização em flagrante oposição à defesa do mercado puro e simples não saberá do poder que tem nas mãos com algo tão simples como um voto O sociólogo Gosta EspingAndersen 1991 por outro lado ao discorrer sobre como se deu a instituição dos sistemas previdenciários em diversos países evidencia que o objetivo estatal não é apenas mercadológico mas muitas vezes assumidamente preconceituoso uma vez que visa a manutenção dos status da sociedade A dificuldade se dá justamente quando surgem novas classes sociais que deixam de se contentar com o mínimo ou o básico concedido pela previdência pública Esse seria o principal problema dos sistemas universais Na busca de encontrar caracterizar e conceituar um Estado de bemestar Esping Andersen traz uma tipologia dos três regimes de bemestar sob os quais teria se manifestado o welfare state nos países desenvolvidos o regime liberal o regime conservadorcorporativo e o regime socialdemocrata Discorda de Marshall ao afirmar que não basta a existência de cidadania social é preciso ter a garantia dos direitos sociais que eles sejam invioláveis assegurados com base na cidadania e não no desempenho 1991 p 101 ou seja não devem estar vinculados ao mercado ou ao trabalho Tampouco deveria estar atrelada ao status social é dizer à classe É preciso considerar de que forma as atividades estatais se entrelaçam com o papel do mercado e da família em termos de provisão social trazendo por fim o que chamou de desmercadorização a desmercadorização ocorre quando a prestação de um serviço é vista como uma questão de direito ou quando uma pessoa pode manterse sem depender do mercado 1991 p 102 Como afirma que todos os sistemas de previdência foram pensados para fortalecer o mercado não há um exemplo sequer de local ou país em que exista essa opção ao trabalho e que tenha funcionado propriamente Os escandinavos tendem a ser os mais desmercadorizantes os anglosaxões os menos 1991 p 102 Conclui que uma definição mínima de Estado de bemestar social deve envolver a liberdade dos cidadãos e sem perda potencial de trabalho rendimentos ou benefícios sociais 1991 p 102 Em síntese EspingAndersen utilizouse de três critérios para identificar os regimes aos quais outros foram sendo agregados após sua obra DRAIBE 2007 i a relação público privado na provisão social ii o grau de desmercadorização dos bens e serviços e seus efeitos na estratificação social e iii o grau de desfamiliarização Este último critério em especial expressa o grau de redução da dependência do indivíduo em relação à família ou inversamente o aumento da capacidade de comando do indivíduo sobre recursos econômicos independentemente das reciprocidades familiares ou conjugais É nesse aspecto que o debate de gênero ganha relevância ante a recorrente constatação não só no Brasil de que cada vez mais são as mulheres as chefes de suas famílias Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 408 A cidadania assim como os valores sociais do trabalho além da dignidade da pessoa humana constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito da república brasileira Mas ela é conferida a toda e qualquer pessoa Quem define a quem será conferido o status de cidadão brasileiro e de quem será tirado Por trás das instituições governamentais estão pessoas E elas têm características próprias de caráter políticoeconômicosocial de raça de classe de gênero E que sem dúvida alguma influenciam a tomada das decisões que definem os rumos de um país Nesse contexto é inevitável questionar como são escolhidas as pessoas que pensam os contornos do Brasil Estarão elas aptas a pensar nas demandas de toda a população que representam Assim como as demais estruturas da esfera pública a ótica masculina é a fonte criadora e norteadora do sistema penal e carcerário no Brasil e no mundo Não poderia ser diferente já que somente pessoas do sexo masculino podiam ocupar os espaços públicos e de decisão no Brasil há pouco menos de um século nesse aspecto vale observar que foi somente em 3 de maio de 1933 na eleição para a Assembleia Nacional Constituinte que a mulher brasileira pela primeira vez em âmbito nacional votou e foi votada TELES 1999 Sobre a distribuição entre homens e mulheres na ocupação das esferas pública e privada Nancy Fraser coloca que a primeira é o local onde ocorre a reprodução material das sociedades o trabalho social por exemplo enquanto na segunda há a reprodução simbólica compreendendo a atividade de criação dos filhos realizada pelas mulheres FRASER 1985 Muito embora a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891 não trouxesse qualquer impedimento ao exercício dos direitos políticos por mulheres também não era explícita quanto à possibilidade desse exercício que foi introduzido com a aprovação do Código Eleitoral de 1932 Fica evidente o tratamento desigual e a exclusão vivida pela mulher que sequer é mencionada expressamente como não apta a votar pelo texto constitucional Ela não era vista como um indivíduo dotado de direitos pelos constituintes e muito menos era considerada cidadã para exercer direitos políticos pela sociedade patriarcal SILVA PAULA ZIMMERMANN 2017 p 54 É o que mostra a redação do artigo 70 da referida Constituição Art 70 São eleitores os cidadãos maiores de 21 anos que se alistarem na forma da lei 1º Não podem alistarse eleitores para as eleições federais ou para as dos Estados 1º os mendigos 2º os analfabetos 3º as praças de pré excetuados os alunos das escolas militares de ensino superior 4º os religiosos de ordens monásticas companhias congregações ou comunidades de qualquer denominação sujeitas a voto de obediência regra ou estatuto que importe a renúncia da liberdade individual Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 409 A exigência de que os eleitores fossem homens ante a exclusão implícita do voto das mulheres e alfabetizados excluía a maioria absoluta da população do processo político eleitoral Forçoso concluir no ponto que os rumos de tão grande e tão diversa população como o é a brasileira necessariamente eram definidos tão somente por homens seguramente brancos e no mínimo de classe média eis que alfabetizados Se os grupos ditos oprimidos sejam eles mulheres negros indígenas deficientes físicos homossexuais não são ou não se sentem efetivamente representados pelas pessoas que estão a cargo dos papéis de decisão o exercício da empatia destes que são o padrão de referência homem branco cisgênero3 heterossexual e de classe média parece ser tudo o que lhes resta A doutrina feminista há muito aborda a questão das barreiras histórica e culturalmente impostas à mulher quando da ocupação dos espaços públicos A sua exclusão desse espaço público é em grande parte resultado da pretensa universalidade dos direitos e garantias fundamentais que atribui uma falsa ideia de igualdade SILVA PAULA ZIMMERMANN 2017 p 45 Os valores universais positivados como não poderia deixar de ser são o reflexo das perspectivas do legislador que pode ser personificado em apenas alguns indivíduos que são masculinos brancos e proprietários o que dá ensejo a um sem número de críticas à democracia O feminismo ressalta em parte importante de suas abordagens que os valores universais correspondem na realidade aos valores daqueles que estão em posição privilegiada na sociedade BIROLI MIGUEL 2013 Sobre a ocupação do espaço público pela mulher são oportunas as seguintes considerações que trazem a reflexão dos recortes necessários ao presente estudo As mulheres não estão totalmente excluídas da vida pública tampouco a ocupação dos espaços públicos das mulheres se dá de maneira universal sendo necessário um recorte de classe etnia e sexualidade a fim de não tomar como ponto de referência apenas o padrão da mulher cis4 branca heterossexual e de classe média Ocorre que tanto a crença de que a mulher deve ocupar o espaço doméstico e o homem o público quanto o papel que se acredita que a mulher deve desempenhar em ambos os espaços são marcados pela dominação masculina SILVA PAULA ZIMMERMANN 2017 p 45 É o homem que pensa e que executa o Direito pois historicamente ele habita os locais de poder e de tomada de decisão Há menos de um século as mulheres sequer tinham direito ao voto no Brasil que dirá ao de se inserirem no ambiente em que ocorre o ato de legislar 3 Cisgênero pessoa que se identifica com o gênero que lhe foi designado no seu nascimento 4 Abreviação de cisgênero Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 410 E se o mundo fosse moldado por outra perspectiva O que acontece quando é a mulher que decide o curso da História Ao observar a trajetória da luta feminista no mundo ocidental Carla Cristina Garcia 2011 p 110 constata que há muito ela é contada tão somente pela ótica masculina de modo que a conclusão não poderia ser outra quando são os olhos de uma mulher que olham para a história esta não se parece nada com a oficial Quando são os olhos de uma mulher que estudam antropologia as culturas mudam de sentido e de cor Quando são os olhos de uma mulher que refazem as contas a economia deixa de ser uma ciência exata e se assemelha a uma política de interesses Quando são os olhos de uma mulher que rezam a fé não se converte em véus ou mordaças Quando as mulheres são as protagonistas o mundo que cremos conhecer é outro O mesmo raciocínio se aplica se trocado o termo mulher por qualquer outro grupo oprimido tendo em vista seu lugar de fala e de dor É essa inquietação que motiva o presente estudo A possibilidade de votar e de ser votada ou o mero acesso a cargos de direção contudo não é suficiente para garantir uma mudança efetiva no rumo da História É preciso que a pessoa representante de parcela da população tenha também meios concretos de efetivamente implementar as medidas pleiteadas por seus representados Da leitura do último Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias INFOPEN Mulheres 2018 com dados de 2017 surge o seguinte questionamento é possível pensar e administrar um organismo estatal sem incluir representantes reais daqueles que são afetados por tal organismo É dizer pode um homem saber pensar em todas as demandas inerentes à condição de uma mulher e ainda agir em seu interesse Da mesma forma o homem branco com relação às demandas específicas do negro Essas indagações para os fins deste artigo culminam em saber se o princípio da universalidade normalmente associado a políticas públicas abarca de fato a universalidade de pessoas a que visa tutelar A importância dessa abordagem é observada uma vez constatado que gênero e família são dimensões constitutivas das sociedades pelo menos desde a modernidade logo também são dimensões a serem consideradas no Estado de bemestar a esfera doméstica da reprodução social e a divisão social que a fundamenta com relação aos sistemas de políticas sociais A cientista política Sônia Draibe 2007 ao discorrer sobre que futuro projetam nossos sistemas de políticas sociais indaga sobre a função estatal nesse debate indicando a necessidade de sob um ponto de vista dinâmico reconhecer que mudanças nas estruturas das famílias e na situação social da mulher acompanham de perto as mudanças nas estruturas e dinâmicas do Estado de bemestar p 46 Bem por isso para que seja possível integrar Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 411 categorias de gênero aos tipos de regimes de bemestar indica a orientação de Ann Schola Orloff 1996 apud DRAIBE 2007 p 52 Considerando de início a tripla base da provisão social o Estado o mercado e a família a autora propõe quatro critérios para a identificação das logicas de gênero nos distintos regimes de bemestar a situação do trabalho não remunerado a diferenciação e a desigualdade de gênero na estratificação social gerada por diferenças no plano dos direitos o acesso ao mercado de trabalho remunerado e a capacidade de formar e manter autonomamente a família As lógicas de gênero suscitadas trazem novamente a reflexão do grau de independência do chefe da família com relação ao mercado e ao proprio Estado A não inclusão da perspectiva de gênero como elemento essencial a ser considerado na estruturação e nas variações dos regimes de bem estar sobretudo pelos graus de desfamiliarização foi o um dos equívocos de EspingAndersen Pensar uma política pública hoje implica pensar no papel do Estado atrelado a essas demandas De acordo com estudo realizado pelo IPEA os lares brasileiros cada vez mais estão sendo chefiados por mulheres Em 1995 23 dos domicílios tinham mulheres como pessoas de referência Vinte anos depois esse número chegou a 40 Cabe ressaltar que as famílias chefiadas por mulheres não são exclusivamente aquelas nas quais não há a presença masculina em 34 delas havia a presença de um cônjuge Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça 1995 a 2015 Nessa seara portanto é imperioso que uma política de encarceramento efetiva leve em conta a realidade feminina que se mostra cada vez mais inserida no contexto público com os necessários recortes de gênero etnia classe Essa efetividade somente será possível se os gestores da coisa pública estiverem munidos de informações corretas sobre a realidade dos seus representados É preciso que se conheçam as especificidades das reais demandas da população Do contrário não será possível pensar nas nuances de uma política pública uma vez que se a realidade não é nomeada ela não existe Se não há problema aparente não há política a ser aplicada É preciso assim voltarse ao debate da representatividade A questão pode referirse a um sem número de exemplos do atual contexto brasileiro Por ora importa observar que desde o impeachment da Presidente Dilma Rousseff o número de mulheres em cargos de poder na Administração Pública Federal vem diminuindo Durante o primeiro mandato do Governo Dilma 20102014 das 37 pastas secretarias ou órgãos com status ministerial as mulheres Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 412 ocuparam nove postos G1 2010 dos quais vale destacar que o Ministério da Igualdade Racial hoje extinto foi ocupado nas duas gestões por mulheres negras Quando do breve mandato de Michel Temer 20162018 o Brasil contava com 29 pastas ministeriais 23 ministérios duas secretarias e quatro órgãos que são equivalentes a ministérios Após mais de 60 nomeações houve apenas duas mulheres à frente de um ministério a ministra da AdvocaciaGeral da União Grace Mendonça e a ministra dos Direitos Humanos Luislinda Valois nomeadas em momentos distintos e por breves períodos sendo ambas brancas Todos os demais ministros eram homens também brancos BBC 2018 Por fim no atual governo Bolsonaro iniciado em 2019 o número de ministérios foi reduzido para 22 e mais uma vez somente duas mulheres foram nomeadas Damares Alves para a pasta Mulher Família e Direitos Humanos e Tereza Cristina para o Ministério da Agricultura E todos e todas são brancos Seria mera coincidência que somente quando o país teve uma mulher como Chefe de Estado que o número de mulheres em cargos de direção foi mais significativo Além disso curiosamente foi somente nesse período que houve levantamento de dados penitenciários sobre mulheres encarceradas5 Dessa forma o recorte deste estudo se dá com o cenário penitenciário com enfoque nas questões de gênero e etnia Com a finalidade de saber se efetivamente essas mulheres possuem demandas distintas das masculinas e em caso positivo se seriam relevantes a justificar os esforços na instituição de uma política pública voltada unicamente a uma parcela tão minoritária da população carcerária Assim buscase verificar se a falta de representatividade no pensar da política de encarceramento contribui para a manutenção do statuos quo Será levado em conta ainda o contexto político quando da divulgação dos estudos sobre a população carcerária feminina 2 COMO DEVE SER O QUE DIZ A LEGISLAÇÃO A cada quatro anos o Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária CNPCP elabora o Plano Nacional de Política Criminal que fixa as diretrizes para essa política em atendimento ao contido no artigo 64 incisos I e II da Lei nº 72101984 Lei de Execução Penal LEP A LEP assegura às mulheres estabelecimentos próprios e adequados à sua condição pessoal Art 82 1º o que inclui a existência de berçário Art 83 2º de seção para gestante 5 O Levantamento de Informações Penitenciárias INFOPEN Mulheres possui apenas duas edições uma de 2014 e outra de 2016 Esta última teve sua atualização publicada em 2018 durante o governo Temer Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 413 e parturiente e de creche para abrigar crianças maiores de 6 seis meses e menores de 7 sete anos com a finalidade de assistir a criança desamparada cuja responsável estiver presa Art 89 bem como o acompanhamento médico à mulher principalmente no prénatal e no pós parto extensivo ao recémnascido art 14 3º incluído pela Lei 1194209 Prevê ainda que os agentes penitenciários em suas dependências internas sejam exclusivamente do sexo feminino bem como que no estabelecimento para mulheres somente se permitirá o trabalho de pessoal do sexo feminino salvo quando se tratar de pessoal técnico especializado Art 83 3º incluído pela Lei 1212109 e Art 772º Independentemente do gênero todo condenadoa deve ser alojado em cela individual que conterá dormitório aparelho sanitário e lavatório Art 88 Em 2009 as Leis 11942 e 12121 trouxeram significativas conquistas no campo da humanização do sistema carcerário feminino incorporando à LEP alguns dos direitos ora citados É pertinente citar ainda a Lei Federal no 132572016 conhecido como o Marco Legal de Atenção à Primeira Infância Sancionada por Dilma Rousseff a norma expande possibilidades de substituição da prisão preventiva para a domiciliar para mulheresmãe encarceradas Recentemente foi aprovada a Lei Federal nº 137692018 que estabeleceu a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar da mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência disciplinando ainda o regime de cumprimento de pena privativa de liberdade de condenadas na mesma situação6 Muito embora a Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional tenha sido formalmente instituída pela Portaria Interministerial nº 210 de 2014 ainda há poucos dados sobre sua implementação prática bem como da fiscalização no cumprimento das metas O decreto que dispõe sobre seu Comitê Gestor de nº 9871 é extremamente recente data de 27062019 Por isso o enfoque deste artigo é analisar a necessidade da instituição dessa política pública voltada para a condição feminina A legislação brasileira tem avançado na tentativa de garantir direitos fundamentais aos seres humanos sob tutela do Estado quando em privação da liberdade A História brasileira 6 Nesse caso em específico a norma foi criticada em razão de se por um lado as alterações promovidas na LEP são positivas ao diminuírem a fração de tempo a ser cumprida para alcançar mais cedo a progressão de regime por outro impuseram novos critérios que além de serem extremamente desproporcionais aparentemente tornam a aplicação da lei inócua Três requisitos seriam especialmente prejudiciais a comprovação da primariedade a comprovação de bom comportamento carcerário pelo diretor do estabelecimento e a comprovação de não integração a organização criminosa Não serão aprofundados os apontamentos em razão da limitação do número de páginas deste artigo Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 414 contudo já mostrou que a existência de normas assegurando direitos básicos fundamentais do ser humano não significa que elas sejam respeitadas na prática pelas instituições públicas Tendo isso em vista farseá a seguir uma análise da situação das penitenciárias brasileiras com o enfoque da realidade da mulher encarcerada Levando em conta as garantias legislativas supramencionadas procurase saber se efetivamente essas mulheres possuem demandas distintas das masculinas ou se o simples aperfeiçoamento da Política Criminal e Penitenciária seria suficiente para a garantia dos direitos propostos Nesse aspecto buscase verificar se as demandas femininas seriam relevantes a justificar os esforços na instituição de uma política pública voltada unicamente a essa parcela que é minoritária da população carcerária 3 COMO É A REALIDADE DO ENCARCERAMENTO FEMININO A primeira penitenciária brasileira foi fundada por mulheres sem qualquer iniciativa estatal Foram freiras da Igreja Católica que em 1937 fundaram a Penitenciária Madre Pelletier no Rio Grande do Sul Antes disso as mulheres condenadas por todo o País cumpriam pena em cadeias mistas onde frequentemente dividiam celas com homens eram estupradas pelos detentos e forçadas à prostituição para sobreviver Em 1981 a administração passou para as mãos do Estado Depois de muitas denuncias e discussões de penitenciaristas o Brasil tardiamente passou a construir presídios apenas para mulheres começando pelo Rio Grande do Sul e espalhandose pelo resto do país QUEIROZ 2015 p 73 No Estado do Rio Grande do Sul ante a constatação de um aumento de 600 no efetivo carcerário em 2011 foram realizados os primeiros estudos para descobrir quem eram as mulheres detidas naquele Estado Para tanto foi criada a primeira coordenadoria penitenciária da mulher do País Contatouse que os presídios mistos ainda são uma realidade nacional Que implicações pode haver no dia a dia da mulher quando encarcerada em conjunto com outros homens A reportagem de Nana Queiroz no livro Presos que menstruam traz relatos que materializam o que a frieza dos números não mostra O que eles chamam de presídios mistos são na verdade presídios masculinamente mistos opina Diniz Se não tem onde colocar mulheres as botam no castigo ou seja o pior lugar da cadeia Até a estrutura dos prédios é feita para homens Os banheiros por exemplo são os chamados bois ou seja buracos no chão Imagine uma grávida se agachando num lugar destes Num presídio com trezentos homens e dez mulheres quem você acha que vai trabalhar e estudar Quem vai ter horário de banho de sol A minoria Os espelhos são uma lâmina onde elas se veem completamente deformadas Imagine passar cinco ou seis anos se vendo assim e sem nunca observar seu corpo inteiro Como você vai se imaginar Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 415 Não havia exames médicos o kit de higiene era insuficiente Naturalmente a penitenciária ainda tem muitos problemas como celas abafadas sujas e sem ventilação um ambiente dominado por ratos e as horríveis revistas vexatórias Mas sentese ali um clima de evolução que infelizmente separa o Madre Pelletier neste momento da história do resto do Brasil QUEIROZ 2015 pp 7475 Para além da manutenção de presídios mistos descobriuse que apenas uma penitenciária do Rio Grande do Sul RS a pioneira Madre Pelletier tinha unidade materno infantil Isso obrigava presas de diversas partes daquele Estado a terem que deixar seus filhos mais velhos de modo a poderem amamentar oa caçula em Porto Alegre Quanto aos motivos da prisão um dado interessante foi o de que 40 das mulheres eram vítimas de violência doméstica antes de serem encarceradas Algumas delas inclusive eram obrigadas pelo marido a traficar Esses dados não destoam da atual realidade nacional A última atualização do INFOPEN Mulheres divulgado em 2018 traz números ainda mais alarmantes A começar pela própria falta de dados boa parte das recomendações do levantamento é pela necessidade de que os gestores tomem o cuidado de preencher corretamente as informações pessoais dos ingressantes o que já havia sido recomendado no INFOPEN Mulheres de 2014 digase de passagem Constatase nesse aspecto não apenas uma ausência de estudos na área mas de falha na coleta de dados por aqueles que detêm essa obrigação o que dificulta a análise dos cadastros e pesquisas sociodemográficos do País7 A população feminina encarcerada aumentou 656 entre 2000 e 2016 enquanto no mesmo período a população masculina cresceu 293 Ademais dentre as presas 45 são provisórias ou seja não foram ainda julgadas O perfil da mulher detenta no Brasil de acordo com o INFOPEN Mulheres de 2018 é o seguinte elas são jovens 50 tem até 29 anos de idade negras 62 solteiras 62 e contam no máximo com ensino fundamental completo 66 Essa proporção coincide com o grupo mais vulnerável do mercado de trabalho De acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPEA mulheres negras estão 50 mais suscetíveis ao desemprego do que outros grupos têm maiores taxas de desemprego informalidade e menores médias salariais Nos presídios a realidade é parecida Atualmente 7 As razões disso não são objeto deste estudo No entanto as hipóteses vão desde o fato de os agentes penitenciários entenderem desnecessário por não crer que fará diferença ou mesmo e muito provavelmente pela impossibilidade fática de realizar todo o questionário necessário da maneira devida em razão da sobrecarga de trabalho Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 416 apenas 87 equivalente a apenas 185 mulheres presas têm algum trabalho remunerado na prisão Quanto às informações relacionadas ao número de filhos a amostra coletada pelo INFOPEN Mulheres 2018 é de apenas 7 2689 pessoas da totalidade das mulheres aprisionadas Entre estas 74 delas são mães Nos Estados do Rio de Janeiro Sergipe e no Distrito Federal não existiam quaisquer informações acerca da quantidade de filhos entre as pessoas privadas de liberdade homens ou mulheres Os Estados do Rio Grande do Sul e Amapá por sua vez tinham informações disponíveis para mais de 40 da população prisional A baixa representatividade entretanto não destoa da experiência sentida por quem tem contato com o sistema prisional a maioria das mulheres que cometem delitos o fazem para o sustento mínimo de seus filhos Ainda assim sendo a maioria das mulheres mães ou não é estarrecedora a amostragem apontando que em oito Estados brasileiros as unidades prisionais femininas não possuem nenhum local específico para visitação De todas as 26 unidades da federação e o Distrito Federal apenas seis afirmam ter estabelecimentos penais com salas de visitas Ao analisarmos os dados referentes aos homens para o mesmo período temos que 53 dos homens que se encontram no sistema prisional declararam não ter filhos Em que pesem as desigualdades persistentes na sociedade quanto à distribuição da responsabilidade sobre a execução do trabalho de cuidados domésticos e com os filhos especialmente entre homens e mulheres que podem influenciar a declaração sobre filhos junto aos cadastros sociodemográficos é preciso aprofundar a análise sugerida pelos dados do Infopen que apontam para uma importante desigualdade na distribuição de filhos entre homens e mulheres no sistema prisional e demandam assim a formulação de serviços e estruturas penais capazes de responder por um lado à possibilidade de institucionalização da criança e por outro aos efeitos da separação da mãe na vida das crianças e comunidades INFOPEN Mulheres 2018 GN Quanto ao cumprimento do artigo 83 da LEP os dados do INFOPEN Mulheres 2018 informam que apenas 14 das unidades femininas ou mistas contam com berçário ou centro de referência materno infantil que compreendem os espaços destinados a bebês com até 2 anos de idade O número cai para 3 no caso de unidades femininas ou mistas que têm espaços de creche destinados a receber crianças acima de 2 anos Nesse ponto os dados sobre a infraestrutura carcerária evidenciam que 84 das unidades não possui cela ou dormitório adequado para gestantes Ainda 60 das mulheres com deficiência não estão em unidades adaptadas e apenas seis estados possuem unidades prisionais com locais específicos para visitas os quais somam apenas nove unidades quatro delas em São Paulo INFOPEN Mulheres 2018 p 33 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 417 O respeito à individualidade de celas tampouco parece ser respeitado uma vez que a taxa de ocupação no sistema prisional brasileiro em relação às mulheres é de 1567 Isso significa dizer que em um espaço destinado a 10 mulheres encontramse custodiadas 16 mulheres no sistema prisional O quadro é ainda pior no caso de unidades mistas é a maior taxa de ocupação global com 25 pessoas custodiadas em um espaço destinado a receber 10 pessoas O levantamento faz a ressalva de que se considerado o déficit total de vagas no País que chega a 368 mil vagas verseá que as unidades masculinas respondem por 80 deste déficit enquanto as unidades femininas somam apenas 2 do déficit total no sistema prisional Na prática em 37 das unidades prisionais femininas não há uma situação de superlotação e encarcerase até o limite de uma pessoa por vaga disponibilizada Já nas unidades mistas em 48 delas encarcerase entre uma e duas pessoas por vaga disponível e em 11 das unidades existem mais de quatro pessoas privadas de liberdade para cada vaga No caso das unidades masculinas 28 delas não têm superlotação e em 31 dos estabelecimentos há a gritante taxa de ocupação acima de 200 No que tange aos motivos que levaram as mulheres à prisão temse a esmagadora maioria por tráfico de drogas Entre as unidades prisionais que dispunham de informação sobre o tipo penal foram computadas 33861 incidências penais nos registros de mulheres distribuídas entre os grupos do Código Penal e de legislações específicas De modo geral podemos afirmar que os crimes relacionados ao tráfico de drogas correspondem a 62 das incidências penais pelas quais as mulheres privadas de liberdade foram condenadas ou aguardam julgamento em 2016 o que significa dizer que 3 em cada 5 mulheres que se encontram no sistema prisional respondem por crimes ligados ao tráfico Entre as tipificações relacionadas ao tráfico de drogas o crime de Associação para o tráfico corresponde a 16 das incidências e o crime de Tráfico internacional de drogas responde por 2 sendo que o restante das incidências referem se à tipificação de Tráfico de drogas propriamente dita INFOPEN Mulheres 2018 p 59 Chama a atenção o fato de que o percentual relativo ao tráfico de drogas no ano de 2006 era de apenas 45 o que torna evidente a expansão do encarceramento de mulheres pelos crimes ligados ao tráfico de drogas em detrimento dos crimes praticados contra a vida homicídios simples e qualificado A realidade das mulheres mostrase bem diferente quando comparada à masculina cuja parcela do tráfico se restringe a menos da metade da feminina com 26 Além disso os homens têm maiores índices também de roubo furto homicídio e receptação INFOPEN Mulheres 2018 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 418 Os dados trazidos pelo INFOPEN Mulheres 2018 não permitem concluir se o direito à exclusividade de agentes femininos internamente é respeitado Traz somente a informação de que os profissionais homens correspondem a 58 do total em atividade nos estabelecimentos femininos e mistos enquanto as profissionais mulheres são 42 do quadro nestas unidades Sobre a gestão das unidades prisionais o relatório traz que entre os 24122 funcionários que compõem estas unidades 70 são servidores voltados às atividades de custódia agentes penitenciários agentes de cadeia pública etc Dentre estes do quadro efetivo 6491 são homens enquanto 4605 são mulheres Já nos cargos de cunho estritamente administrativo o número de mulheres é mais alto que o de homens 761 contra 511 Por fim os profissionais ligados às atividades de saúde somam 8 do quadro à educação são 3 e os profissionais de assistência social e advogados somam 1 cada No que tange aos estudos apenas 25 da população prisional feminina está envolvida em algum tipo de atividade educacional entre aquelas de ensino escolar e atividades complementares e 4 encontrase envolvida em atividades de remição pela leitura ou pelo esporte e demais atividades educacionais complementares Ainda 24 das mulheres encarceradas está envolvida em atividades laborais sejam internas ou externas aos estabelecimentos penais 4 O CONTEXTO POLÍTICO DOS REPRESENTANTES E DAS REPRESENTADAS Vejase por fim como a alocação daqueles que exercem cargos de direção e têm efetivo poder de decisão sobre a vida das mulheres encarceradas ocorre no contexto político em que se deu o levantamento de dados adotado Nesse ponto é importante destacar que o primeiro levantamento de informações penitenciárias com destaque de gênero INFOPEN Mulheres realizado no País ocorreu em 2014 durante a gestão do Governo Dilma Rousseff Por oportuno observase que foi nessa gestão desde a redemocratização que os estudos da Administração Pública Federal ganharam um viés específico para o campo da situação da mulher nas mais diversas esferas em que ela se insere a exemplo do próprio INFOPEN Mulheres e em especial do Relatório Anual Socioeconômico da Mulher8 Essa iniciativa visava fazer uma varredura inicial de modo a obter dados para se ter um panorama das 8 A autora teve acesso ao referido relatório em outra ocasião em diretório que hoje não está disponível por razões desconhecidas BRASIL Presidência da República Secretaria de Políticas para as Mulheres Relatório Anual Socioeconômico da Mulher 1a Impressão Brasília Secretaria de Políticas para as Mulheres março de 2015 181p Disponível em httpwwwspmgovbrcentraldeconteudospublicacoespublicacoes2015livro raseamcompletopdfview Acesso em 12092018 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 419 condições da mulher no País de modo a poder avaliar com base em dados concretos a necessidade ou não de políticas públicas específicas a esse grupo A composição da gestão era a seguinte i Ministro de Estado da Justiça José Eduardo Cardozo ii Secretário Executivo Marivaldo De Castro Pereira iii Departamento Penitenciário Nacional DiretorGeral Renato Campos Pinto De Vitto iv Diretora de Políticas Penitenciárias Valdirene Daufemback Nesse momento foi constatada grande deficiência de dados e indicadores sobre o perfil de mulheres em privação de liberdade nos bancos de dados oficiais dos governos o que contribui para a invisibilidade das necessidades dessas pessoas No que tange à destinação dos estabelecimentos apenas por força da publicação do lançamento do INFOPEN de junho de 2014 foi possível quantificar os tipos de estabelecimentos prisionais brasileiros Os dados levantados mostram que havia 1070 unidades masculinas o que configura um percentual de 75 Nas outras destinações há o indicativo de 238 estabelecimentos mistos 17 e 103 estabelecimentos femininos 7 significando assim que a maior parte das mulheres estão de fato em estruturas mistas Em geral o perfil das mulheres submetidas ao cárcere em 2014 não sofreu mudança significativa com relação a 2017 eram jovens com filhos responsáveis pela provisão do sustento familiar baixa escolaridade oriundas de extratos sociais desfavorecidos economicamente e exerciam atividades de trabalho informal em período anterior ao aprisionamento Em torno de 68 dessas mulheres possuem vinculação penal por envolvimento com o tráfico de drogas não relacionado às maiores redes de organizações criminosas percentual que caiu 5 pontos no levantamento seguinte A maioria dessas mulheres ocupava uma posição coadjuvante no crime realizando serviços de transporte de drogas e pequeno comércio muitas são usuárias sendo poucas as que exercem atividades de gerência do tráfico Em sua segunda edição o INFOPEN Mulheres 2018 objetivou explorar uma gama mais abrangente de dados sobre as mulheres encarceradas no Brasil e os estabelecimentos penais em que se encontram com uma seção específica sobre a infraestrutura e a garantia de direitos que incluiu dados sobre os estabelecimentos femininos e mistos além de uma análise sobre a evolução histórica da distribuição de tipos penais pelos quais as mulheres foram condenadas ou aguardam julgamento O contexto da divulgação desse levantamento foi conturbado Após o impeachment de Dilma Roussef o então vice Michel Temer assumiu a presidência em 2016 conferindo como já mencionado todas as pastas ministeriais a homens todos brancos e de classe média a alta Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 420 Notícias informaram renúncia de conselheiros em razão de discordância com suas medidas de atuação na crise carcerária BENITES 2017 Nesse aspecto destacase a edição da Medida Provisória 8212018 que criou o Ministério da Segurança Pública posteriormente convertida em Lei Com a aprovação o Ministério que foi criado como pasta extraordinária e temporária à época da intervenção militar no Rio de Janeiro se tornou permanente A nova pasta absorveu algumas atribuições antes vinculadas ao Ministério da Justiça Entre as competências do novo ministério está a de exercer planejar coordenar e administrar a política penitenciária nacional Uma das razões de insatisfação com as mudanças trazidas pela MP 8212018 foi que no mesmo texto aprovase que o IPEA um dos mais relevantes institutos de pesquisa do País deverá ser desmembrado para a criação do INESP Instituto Nacional de Estudos sobre Segurança Pública que será diretamente subordinado ao novo Ministério de Segurança Pública Em função da subordinação dos estudos sobre segurança ao novo Ministério a idoneidade das pesquisas e dos dados coletados pode vir a ser prejudicada Além disso houve uma guinada crescente para a militarização do setor marcada por diversas medidas como a Medida Provisória que transfere mais de 1 bilhão de verbas da Esporte para a Segurança Pública o decreto de Garantia da Lei e da Ordem GLO a intervenção federal no Rio de Janeiro a lei que transfere para a Justiça Militar o julgamento de militares que cometerem crimes contra civis Lei 134912017 e a efetivação do general Joaquim Silva e Luna para o cargo de Ministro da Defesa primeiro militar a assumir o cargo desde 1999 Nesse contexto tinhase a seguinte composição na Administração Pública pertencente à gestão do Governo de Michel Temer para o setor de segurança pública i Ministro da Justiça e Segurança Pública Torquato Jardim ii Secretário Executivo José Levi Mello do Amaral Junior iii Departamento Penitenciário Nacional DiretorGeral Carlos Felipe Alencastro de Carvalho O governo seguinte de Jair Bolsonaro unificou o Ministério da Segurança Pública com o da Justiça escolhendo i o Ministro Sérgio Moro para comandar a pasta Temse ainda ii Secretário Nacional de Segurança Pública Guilherme Cals Theophilo e iii Coordenador Geral de Estratégia em Segurança Pública Luis Claudio Laviano Como dito no tópico anterior não há dados disponíveis sobre a quantidade de homens e mulheres que atuam nas penitenciárias Bem por isso mostrase relevante observar quem estava nos cargos de poder em cada contexto Dada a discricionariedade característica da Administração para escolha dos ocupantes dos cargos de direção é coerente presumir que a representatividade feminina diminuiu no âmbito da segurança pública Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 421 Observase nesse aspecto o afastamento de uma identificação mínima entre representantes e representados Bem por isso a questão da mulher oprimida neste caso negra pobre e encarcerada parece estar sendo cada vez mais relegada ao fim da lista de prioridades Nesse ponto é certeira a observação da escritora Juliana Borges em seu livro intitulado Encarceramento em Massa ao denunciar a decisiva falta de uma perspectiva interseccional na formulação de políticas públicas Na grande parte dos estudos e ativismos em torno da pauta do sistema de justiça criminal pouca é a atenção dada ao debate de gênero Muitos utilizam como argumento que os números que demonstram um contingente maior de homens encarcerados são o principal fator para essa negligência Mas o sistema de justiça criminal em seu braço penal teve apenas modulaçoes e ações diferenciadas em se tratando de homens e mulheres para aplicar punições além de termos de levar em conta o Patriarcado como estrutura que determinou essas diferenciações tanto no encarceramento como até mesmo na definição do que seria crime para ambos A situação das mulheres encarceradas sofre uma dupla invisibilidade tanto pela invisibilidade da prisão quanto pelo fato de serem mulheres Ninguém quer saber ou discutir o sistema prisional BORGES 2019 p 58 A autora traça um paralelo histórico entre as punições femininas e as punições dos anteriormente escravizados visto que em ambos os casos elas eram realizadas no âmbito privado É dizer durante séculos a punição às mulheres era determinada e executada por seus maridos caso identificassem qualquer elemento que os incomodasse Uma relação intensa de proprietário e propriedade assim como na relação entre senhores e escravizados principalmente até o século XVIII BORGES 2019 p 59 Nessa linha Angela Davis 2003 afirma que os sistema punitivos têm sido marcadamente masculinos dado que são o reflexo da estrutura legal política e econômica negada às mulheres Enquanto as prisões emergiam ironicamente como espaços de humanização da punição transformandose a privação de liberdade em punição as mulheres permaneciam subjugadas no ambiente privado inclusive com leis que garantiam castigos físicos Mas um dado importante na historia punitiva sobre as mulheres é de que ao passo que homens começaram a ser penalizado em prisões foram utilizados contra as mulheres os hospitais psiquiátricos as instituições mentais os conventos e os espaços religiosos Então aos homens a criminalidade era considerada algo da normalidade uma quebra de contrato e portanto em se tratando de crime de algo da esgera de um sistema de justiça público a punição se exercia também no âmbito público BORGES 2019 p 59 O mesmo paralelo se dá entre as mulheres brancas e negras ou indígenas evidentemente Mesmo na logica dos presídios há uma forte diferença de tratamento oportunidades para remissão de pena e de punições BORGES 2019 p 60 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 422 CONSIDERAÇÕES FINAIS Historicamente a ótica masculina tem se potencializado no contexto prisional com reprodução de serviços penais direcionados para homens deixando em segundo plano as diversidades que compõem o universo das mulheres que se relacionam com sua etnia idade deficiência orientação sexual identidade de gênero nacionalidade situação de gestação e maternidade entre tantas outras nuances Do estudo realizado observouse que não existe diálogo entre os aplicadores do direito e demais atores do arranjo institucional Juízes membros do Poder Executivo etc e aqueles que executam a pena As peculiaridades das demandas femininas enquanto encarceradas basilares para uma vivência com um mínimo de dignidade perpassam desde itens básicos de higiene e saneamento tendo em vista os relatos de que convivem com ratos passando pelos cuidados específicos e inerentes à qualidade de gestantes mães chefes de família É preciso que o Estado considere a existência de crianças num ambiente foi pensado tão somente para promover a exclusão de homens da sociedade Há ineficiência na coleta de dados Ainda assim é possível diagnosticar que a política de encarceramento do país trabalha no achismo uma vez que não tem elementos suficientes que reflitam a realidade das detentas do país Nesse aspecto observase nítido descompasso entre o imperativo da lei e a realidade vivenciada pelas mulheres encarceradas O tipo penal predominantemente cometido pelas mulheres é o tráfico de drogas Os homens encarcerados por tráfico de drogas correspondem a quase metade do percentual feminino para o mesmo delito Além disso a motivação da mulher é em sua esmagadora maioria uma só o sustento da família Nesse ponto Juliana Borges 2019 faz outro paralelo certeiro Se pensarmos o tráfico como uma indústria a estrutura espelha a do mercado formal de trabalho Em outras palavras cabe às mulheres posições mais vulneráveis e precarizadas e com mais diferenças se adicionarmos o quesito cor Além disso várias prisões de mulheres são realizadas em operações cujo foco eram os parceiros ou familiares dessas mulheres que acabam sendo detidas por associação ao tráfico Quanto aos representantes pensadores e aplicadores diretos no pensar da política de encarceramentos é notório que tivemos apenas um presidente comprometido com conhecer a realidade feminina sob seu governo Dilma Rousseff É incontestável que foi durante seus anos de governo que estudos com enfoque de gênero tiveram significativo impulso o que possibilitou inclusive a pesquisa ora apresentada Os dois governos que se seguiram ainda que por breves períodos dão sinais de que as políticas públicas voltadas às especificidades da Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 423 mulher não são prioridade do Estado Além disso conferiram uma maior militarização do Poder Executivo Nesse aspecto há significativa relação entre a atenção recebida por grupos oprimidos notadamente mulheres negras pobres quando os representantes do governo refletem ainda que parcialmente uma identificação com esse público Com mais mulheres no Poder Executivo mais estudos sobre mulheres foram realizados e consequentemente mais políticas públicas voltadas a elas foram iniciadas Seus resultados concretos contudo ainda não são passíveis de mensuração em razão da ausência de continuidade após as alternâncias no Poder Serão sentidos tão somente por quem os vivencia na prática Dessa forma cumpre notar que para que os números aqui apresentados passem a mostrar redução na desigualdade social é dizer demonstrem significativa melhora na vida das mulheres encarceradas é preciso que o Estado brasileiro se preocupe em fazer valer uma realidade que se impõe cada dia mais a de que as mulheres que são privadas de liberdade deixam de prover o sustento de seus filhos o que necessariamente se reflete na sociedade Não é por acaso que a maior parte das mulheres encarceradas seja também aquela considerada mais vulnerável no mercado de trabalho Elas são jovens são negras são mães Esse fato precisa ser sentido eis que traz demandas específicas para a atuação estatal dentro e fora das grades das penitenciárias A manutenção do Estado de bemestar pressupõe que o acesso ao mercado de trabalho remunerado e a capacidade de formar e manter autonomamente a família sejam adequadamente atingidos também pelas mulheres pelo que é determinante e urgente que o representante A administração pública o Poder Executivo e o Judiciário tenham isso em conta A representatividade não só importa ela define os rumos de vidas E vidas importam REFERÊNCIAS BBC Brasil Você sabe quem são esses ministros do governo Michel Temer BBC Sl sn 11 outubro 2018 Disponível em httpswwwbbccomportuguesebrasil4581231 Acesso em 08072019 BORGES Juliana Encarceramento em massa São Paulo Sueli Carneiro Pólen 2019 BENITES Afonso Especialistas discordam das medidas de Temer para solucionar a crise carcerária El País 27 Jan 2017 Disponível em httpsbrasilelpaiscombrasil20170125politica1485379248483461html Acesso em 08 jul 2019 BRASIL Lei nº 7210 de 11 de julho de 1984 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03leisl7210htm Acesso em 10 set 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 424 BRASIL Lei nº 11942 de 28 de maio de 2009 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Ato200720102009LeiL11942htm Acesso em 10 set 2019 BRASIL Lei nº 12121 de 15 de dezembro de 2009 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Ato200720102009LeiL12121htm Acesso em 10 set 2019 BRASIL Lei no 13257 de 8 de março de 2016 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Ato201520182016LeiL13257htm Acesso em 10 set 2019 BRASIL Lei nº 13769 de 19 de dezembro de 2018 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Ato201520182018LeiL13769htm Acesso em 10 set 2019 BRASIL Decreto nº 9871 de 27 de junho de 2019 Dispõe sobre o Comitê Gestor da Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato2019 20222019DecretoD9871htm Acesso em 10 set 2019 BRASIL Medida Provisória nº 821 de 26 de fevereiro de 2018 Disponível em httpwwwplanaltogovbr Acesso em 10 set 2019 DAVIS Angela Are prisons obsolete New York Sevens Stories Press 2003 DEPARTAMENTO PENITENCIÁRIO NACIONAL DEPEN Plano Nacional de Política Criminal e Penitenciária 2015 Disponível em httpdepengovbrDEPENdepencnpcpplanonacional 1PlanoNacionaldePolticaCriminalePenitenciria2015pdf Acesso em 10 Jul 2019 FRASER Nancy Whats critical about critical theory The case of Habermas and gender New Critique n 35 Special Issue on Jurgen Habermas spring Summer 1985 DRAIBE Sônia M Estado de bemestar desenvolvimento econômico e cidadania algumas lições da literatura contemporânea In Políticas públicas no Brasil Gilberto Hochman Marta Arretche e Eduardo Marques orgs Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2007 ESPINGANDERSEN Gosta As três economias políticas do welfare state Lua Nova São Paulo n 24 p 85116 Sept 1991 G1 Com 9 mulheres Dilma supera cota de Lula FHC Collor Itamar e Sarney Disponível em httpg1globocompoliticanoticia201012com9mulheresdilmasupera cotadelulafhccolloritamaresarneyhtml Acesso em 05072019 GARCIA Carla Cristina Breve história do feminismo São Paulo Claridade 2011 HUMAN RIGHTS WATCH World report events of 2018 2019 Disponível em httpswwwhrworgptworldreport2019countrychapters326447 Acesso em 07072019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 425 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA IPEA Mercado de trabalho conjuntura e análise nº 65 Ministério do Trabalho Brasília Ipea 2018 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA IPEA Retrato das desigualdades de gênero e raça 1995 a 2015 Disponível em httpwwwipeagovbrportalimagesstoriesPDFs170306retratodasdesigualdadesdege neroracapdf Acesso em 10072019 JUSTIFICANDO Com nova lei política penitenciária vira caso de polícia 22 Jun 2018 Disponível em httpwwwjustificandocom20180622comnovaleipoliticapenitenciaria viracasodepolicianaomaisdejustica Acesso em 06072019 MARSHALL TH 1967 Cidadania classe social e status Tradução de Meton Porto Gadelha Rio de Janeiro Zahar Editores cap 3 Cidadania e classe social MIGUEL Luis Felipe Biroli Flávia org Teoria política feminista textos centrais Vinhedo Editora Horizonte 2013 QUEIROZ Nana Presos que menstruam São Paulo Record 2015 SANTOS Thandara org DA ROSA Malene Inês et al Levantamento Nacional de informações penitenciárias INFOPEN Mulheres 2ª Edição Brasília Ministério da Justiça e Segurança Pública Departamento Penitenciário Nacional 2017 SANTOS Thandara org DA ROSA Malene Inês et al Levantamento Nacional de informações penitenciárias INFOPEN Atualização Brasília Ministério da Justiça e Segurança Pública Departamento Penitenciário Nacional 2017 SILVA Fernanda Donadel da PAULA Isis Regina de ZIMMERMANN Aline Amábile Da cidade à cidadania a ocupação dos espaços públicos pelas mulheres In BAGGENTSTOSS Grazielly Alessandra Direitos das mulheres Rio de Janeiro Lumen Juris 2017 TELES Maria Amélia de Almeida Breve historia do feminismo no Brasil São Paulo Brasiliense 1999 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 426 VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NAS CIDADES PERCEPÇÃO DE SEGURANÇA NOS ESPAÇOS URBANOS Bettieli Barboza da Silveira 1 Adria de Lima Sousa 2 Charlene Fernanda Thurow 3 Poliana Ribeiro dos Santos 4 RESUMO Instigadas pelos questionamentos sobre a violência sofrida pelas mulheres nas cidades assim como as concepções de urbanidade relacionadas à violência de gênero buscamos problematizar os espaços públicos urbanos e as possibilidades de circulação apropriação e expressão das mulheres em tais ambientes Em uma revisão narrativa recorreuse aos principais alicerces teóricos da área para debater as diferentes formas de vivenciar as cidades além da análise sobre os riscos de tal experimentação Constatouse que a existência feminina nos espaços públicos urbanos demarca um ato de resistência sobretudo ao considerar os frequentes e necessários movimentos de afirmação de visibilidade e de não objetificação frente a uma sociedade que ainda perpetua uma lógica patriarcal Desse modo observouse que o debate sobre a existência da mulher nos cenários urbanos contempla diferentes aspectos sociais com funções diferenciadas e formas peculiares de viver o cotidiano com destaque ao palco dos encontros aqui percebido como espaço no qual as pessoas desenvolvem seu modo de vida e potencializam afetividades e transformações sociais Palavraschave Violência Mulheres Cidades Segurança Espaços urbanos INTRODUÇÃO Em 1976 Oscar Newman publicou um manual intitulado Diretrizes de design para criação de espaços defensáveis em parceria com o Instituto Nacional de Aplicação da Lei e Justiça Criminal dos Estados Unidos da América O documento de caráter instrumental emplacou o termo defensible space no cenário científico convertendoo em pressuposto sustentado por base teórica da Arquitetura e Urbanismo mas que se expandiu e hoje percorre outras áreas do saber Newman 1972 assim como Jacobs 1961 investiram esforços desde as décadas de 1950 e 1960 para buscar alterativas de espaços físicos que auxiliem na prevenção 1 Psicóloga Mestre e doutoranda em Psicologiapela Universidade Federal de Santa Catarina Bolsista CAPES E mail bettielibsgmailcom Lattes httplattescnpqbr6085081583148344 2 Psicóloga Mestre e doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina Bolsista CAPES E mail adriapsiquegmailcom Lattes httplattescnpqbr2255133603023472 3 Psicóloga Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina Bolsista CAPES Email cfthurowgmailcom Lattes httplattescnpqbr2482748032191511 4 Advogada Especialista em Direito Penal e Processual Penal Mestranda em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina Email polianaaribeirogmailcom Lattes httplattescnpqbr2149540920056487 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 427 da criminalidade e na promoção de percepção de segurança nos espaços públicos urbanos assim como no ambiente residencial Manipular o espaço físico com vistas à redução de crimes nas cidades desafia a lógica até então perpetrada sem grandes inclinações destinadas à sensação de proteção de seus transeuntes sobretudo no que concerne à segurança de pessoas em vulnerabilidade KUHNEN SILVEIRA 2018 A tipologia das edificações e tecidos urbanos possui potencial de permitir a pessoa sentir um senso de apropriação conhecido nos Estudos PessoaAmbiente pelo modo como nos identificamos e responsabilizamos por um lugar assim como desperta a identificação com o lugar processo que percorre níveis de afetividade positiva Nesse sentido destacamse aquelas que percorrem cotidianamente o cenário urbano entre idas e vindas diurnas e noturnas Ao problematizar a violência sofrida pelas mulheres nas cidades questionamonos nosso espaço urbano é masculinizado A violência urbana sofrida pelas mulheres produz a violência de gênero Lourenço 2012 esclarece que grupos minoritários como as mulheres e idosos constroem uma leitura da realidade situacional em que a percepção de medo pode até ser desproporcional à subjugação que sofrem Macedo 2002 converge com tal discussão na medida em que nomeia como experiência de gênero o fato de que homens e mulheres podem compartilhar de uma mesma condição socioeconômica étnica entre outras porém vivenciam de diferentes maneiras as relações sociais do e no espaço urbano e as múltiplas dinâmicas opressoras Ao ponderar a criação de espaços defensáveis nas cidades Newman 1976 destaca que quatro importantes fatores precedem tal qualificação são eles a territorialidade noção de que a casa da pessoa é seu porto seguro b vigilância natural capacidade de visualizar a olho nu o que acontece em sua volta c imagem atributos físicos que facilitam a autoproteção e d entorno criar uma localização estratégica que permita maximizar lugares que possam prevenir crimes Nesse sentido se destaca a dimensão socioambiental como uma perspectiva que aloca o espaço enquanto matriz da existência tornandoo também um espaço social FISCHER 1994 Viver na cidade pode ser percebido como um desafio especialmente quando se considera quem é oa autora protagonista de tal ação Ao refletir sobre uma existência feminina nos espaços públicos urbanos costumeiramente se nota a associação ao termo sobreviver demarcando um ato de resistência e de reexistência Para Butler 2018 a mera possibilidade da organização de corpos em alianças nas ruas em movimentos que buscam por Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 428 seus direitos e ocupam espaços comumente não ocupados na lógica do sistema dominante é uma forma de resistência Simone de Beauvoir 2016 abordará a problemática da condição feminina e contextualizará como historicamente a mulher tem sido subjugada e tratada em segundo plano e de fato como o segundo sexo secundário no valor e secundário para se pensar nas suas peculiaridades e demandas Tais contribuições permitem questionar a respeito de que cidades têm sido pensadas para mulheres Que vulnerabilidades precisam ser consideradas nesses espaços para que as cidades promovam bemestar e segurança Para Simone a vida constitui se como uma relação com o mundo é escolhendose através do mundo que o indivíduo se define é para o mundo que nos devemos voltar a fim de responder as questões que nos preocupam BEAUVOIR 2016 p78 Portanto considerando a perspectiva existencialista da filósofa que faz uma leitura do mundo a partir de fenômenos singulares e universais de forma dialética e não dicotômicas é preciso que o olhar seja direcionado aos espaços de vida que abrigam a existência das mulheres e nesse caso em nível macro as cidades A cidade como macro ambiente tem sido palco principal das ações e indeterminações da existência De acordo com dados apresentados pelas Nações Unidas5 estimase que até 2030 seis em cada dez pessoas viverão em áreas urbanas Viver na cidade aparece como um fenômeno urbano a ser investigado e requer como diria Lefebvre 2008 uma ciência que tome a cidade como objeto e discuta o direito a cidade como direito a própria vida Nesse sentido explorase também o conceito de territorialidade como importante alicerce para pensar a cidade de modo mais seguro às mulheres na medida em que o compreendemos como elemento que permite à pessoa dimensionar o espaço integrando fatores pessoais socioculturais e contextuais na sua relação com o meio THEODORIVITZ HIGUCHI 2018 A territorialidade possui uma função de organização para a pessoa permitindo antecipar certos comportamentos em espaços delimitados Tais espaços constituem territórios que por sua vez possuem características físicas visíveis e que tornam possível a privacidade e liberdade de escolha de comportamento MOSER 2018 Trânsito intenso congestionamento filas passos apressados ônibus multidões construções irregulares e ruas diversamente ocupadas demonstram a densidade populacional dos grandes centros urbanos e caracterizam de forma predominante o viver na cidade Nesse cenário as atividades cotidianas acontecem alicerçadas em uma constante interação pessoaambiente SOCZKA 2005 Destacase nesta perspectiva a relevância de se questionar sobre a ocupação de tais espaços pelas mulheres nos diferentes 5 NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL ONU BR 17 Objetivos para transformar o mundo 2015 Disponível em httpsnacoesunidasorgpos2015 Acessado em 18 de jul 2019 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 429 momentos do dia Desse modo questionamonos sobre a percepção de segurança de uma mulher ao pegar um ônibus lotado ao final da jornada de trabalho ao translado de outra ao caminhar à noite por uma rua pouco iluminada ou daquela que tem que atravessar uma praça com árvores não podadas para chegar à sua casa A noção de espaço sobretudo o público possibilita a discussão sobre os trajetos realizados pelas mulheres no cenário urbano No entanto o que se busca discutir e defender é o direito de ir e vir em segurança transcendendo aos discursos culturalmente estigmatizantes e reducionistas que questionam o que uma mulher pode ou não fazer e em quais horários momentos e lugares Portanto a luta por equidade de gênero também passa pela luta do direito de ir e vir com segurança para todos os cidadãos pois para todos aqueles que buscam a construção de uma nova estrutura societária que reconhece a existência de diferenças sem abrir mão da luta política pela igualdade passam inequivocamente pela mobilização em torno das questões que envolvem as relações de gênero MACEDO 2002 p74 No intuito de problematizar a ocupação e o direito ao livre transitar das mulheres nos mais diversos espaços assim como o direito de fazêlo perpassase pelo diálogo sobre a construção de espaços mais inclusivos que consideram as mulheres como protagonistas de territórios como características físicas visíveis e que tornam possível a privacidade e liberdade de escolha de comportamento MOSER 2018 Desse modo com finalidade de embasar teoricamente o debate proposto uma revisão narrativa foi realizada percorrendo livros especializados artigos científicos nacionais e internacionais pesquisados nas principais bases de dados da Psicologia assim como em documentos oficiais e sites institucionais sem recorte temporal específico Revisões narrativas costuma ser utilizadas para apresentar discussões iniciais sobre o estado da arte de determinado fenômeno sem uma sistematização rigorosa ROTHER 2007 pois visam explorar aspectos amplos principalmente fenômenos que tem sido pouco explorado como a temática aqui proposta 1 DESENVOLVIMENTO Atualmente uma das grandes problemáticas sociais que permeiam o cotidiano das pessoas é a falta de segurança nas cidades Há certo tempo que os déficits na qualidade de vida das pessoas são percebidos enfatizandose estudos sobre estratégias que visem contribuir com o enfrentamento da criminalidade TAVARES 2011 As cidades como produtoras de estresse e como ambientes urbanos precisam ser considerados por diferentes perspectivas que compreendam tantos seus aspectos físicos quanto psicossociais MOSER 2018 FISCHER 1994 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 430 Os problemas urbanos e especialmente o estresse e a sobrecarga psíquica gerada concentramse principalmente nas grandes metrópoles e tem impactos negativos na saúde e no bemestar Contudo justamente as grandes cidades oferecem uma grande variedade de escolhas culturais educativas e de lazer MOSER 2018 p 129 Sockza 2005 apresenta a cidade como um mosaico cultural que abarca diferentes aspectos sociais com funções diferenciadas e formas peculiares de viver o cotidiano conforme crenças ideologias valores costumes e representações sociais E por isso entendese que o meio urbano é particularmente fértil na geração de estimulações e experiências extremamente diversificadas SOCKZA 2005 p 94 Portanto é imprescindível considerar a dimensão cultural no contexto das relações urbanas MOSER 2018 A expressão de fenômenos culturais permite dar voz as pessoas na cidade e permite sociabilidades urbanas capazes de gerar uma relação afetiva com a cidade que promove cidadania MOSER 2018 A cidadania diz respeito exatamente ao espaço no qual as pessoas desenvolvem seu modo de vida e potencializam afetividades encontros e transformações com e na cidade BOMFIM 2010 O debate e os estudos sobre as problemáticas vivenciadas no contexto urbano especificamente nas grandes metrópoles tem dado conta da necessidade de reconhecer suas mazelas para poder promover possibilidades saudáveis nesses espaços SOCKZA 2005 Reconhecese entretanto que as mazelas se apresentam de forma naturalizada e por isso mesmo difíceis de serem reconhecidas assim como superadas Para Simmel 1973 a cidade é produtora do que seria uma atitude blasé isto é uma atitude de indiferença e embotamento das pessoas que vivem constantemente diante de diversos estímulos das grandes metrópoles Assim tanto aspectos positivos quanto negativos das vivencias na cidade passam a ser tratados com tamanha naturalidade que pouco se questiona sobre sua construção seu modus operandi e a lógica de uma cidade que tem sido feita por e para públicos específicos que inclui e exclui e que gera sobrecargas diversas A sobrecarga na experiência urbana tem gerado certa incapacidade nas pessoas ao tentar assimilar todas as informações e estímulos sociais vivenciados em suas interações com as cidades Nesse sentido Milgram 1970 defende a tese de que as pessoas passam a filtrar as estimulações as quais são expostas na intenção de permitir ser afetado apenas pelo que consideram mais significantes selecionando suas interações e utilizando comumente a apatia como recurso Nessa perspectiva as cidades favorecem o isolamento a apatia o individualismo bem como relações sociais prejudicadas Tais modelos talvez sejam úteis para explicar porque as pessoas que habitam grandes cenários urbanos passam apressados por uma Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 431 multidão em uma estação de metrô ou nas ruas da cidade e não param para ajudar alguém ao ouvir um pedido de socorro ou mesmo para entender como a violência urbana e até mesmo violências simbólicas tenham sido tão naturalizadas a ponto de não causar mais surpresa e gerar mobilizações Conforme Gonzalez Luna 2013 as categorias cidade e a violência relacionamse de forma histórica e não podem ser analisadas individualmente uma vez que toda construção do espaço que deveria se dar de modo coletivo e para o coletivo acaba servindo a um modelo que especializa violências de ordens diversas Desse modo a violência está intimamente registrada no espaço urbano de alguma forma No que se refere à violência quanto às mulheres especificamente Fernández e colaboradores 2016 afirmam que esta pode ser considerada um fenômeno social e global presente nos mais diferentes contextos e sociedades Essa violência ocorre de várias formas tanto material quanto simbólica A violência simbólica revelase na medida em que as estruturas sociais evidenciam sistemas de dominação de um gênero no caso do masculino em detrimento de outro o feminino e promovem a inviabilização das mulheres ou mesmo sua objetificação a partir da reprodução de estereótipos que mantem uma sociedade patriarcal no qual o papel do homem é imperativo FERNÁNDEZ BEDÍA CERDÁ 2016 Tornase in conveniente questionar para quem as cidades têm sido pensadas e por quem tem sido abordada como tema de estudo Borghi 2015 evidencia que a análise do espaço deve acontecer a partir da interseccionalidade considerando aspectos como classe social gênero e raça mas ainda há limitações ao trabalhar aspectos quanto à sexualidade e gênero Costa e Vieira 2014 apresentam importantes questionamentos sobre a forma como as casas ruas e cidades são construídas e as ideologias por traz das propostas destas construções Apontam que o conhecimento de fato não é neutro e as teorias e prática sobre o urbanismo tem se imposto por e para homens de forma hegemônica Pensar nas cidades para as mulheres para as diferentes classes sociais e padrões culturais ainda parece ser um desafio para arquitetos e urbanistas geógrafos antropólogos e até mesmo psicólogos ambientais Macedo 2002 defende que mulheres não possuem as mesmas condições que os homens para enfrentar as demandas da vida no contexto urbano principalmente as mulheres da classe trabalhadora segundo a autora Essa relação assimétrica é complexa e multifatorial e tem um impacto em como esses dois papeis de gênero se relacionam com o mundo ao seu redor e constroem seus campos de possibilidades até em termos de mobilidade urbana na cidade Segundo Lourenço 2012 apenas a partir de 1970 que não só a problemática da segurança mas também a experimentação de insegurança elaboração subjetiva de representações sociais de inquietações ansiedade e medos sobre a perda de confiança no Estado Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 432 de assegurar a segurança a toda a população que pode estar associada à criminalidade passam a ocupar um espaço nas preocupações do discurso político e social Isto se dá pois a partir de 1960 é que se entende um aumento do processo de criminalidade devido ao crescimento da urbanização das cidades do padrão de consumo e por consequência a marginalização exclusão social e o sentimento de insegurança Segundo o autor esta associação crimecrise é complexa e passa por variáveis que vão da exclusão social à ausência de expectativas à quebra de mecanismos informais de controle social e particularmente à urbanização onde todos estes fatores convergem e se potenciam p 351 Esta experimentação de insegurança quase permanente que as mulheres sentem pode ser compreendida através do conceito de sofrimento ético político SAWAIA 1999 pois vivemos em uma sociedade machista patriarcal e misógina em que a mulher é entendida a todo o momento como frágil facilmente dominada pela fora bruta devido à esta relação de poder estrutural na nossa sociedade As mulheres assim como as demais minorias sentem medo por exemplo de caminhar na rua à noite simplesmente pela condição de ser mulher e estar vulnerável por isso Essa experimentação é confirmada a todo o momento com a violência de gênero e chega ao seu ápice toda vez que um feminicídio é noticiado na TV A disposição do ambiente urbano reforça esta insegurança na medida em que há uma precarização da iluminação e do transporte público falta de equipamentos de infraestrutura urbana por exemplo e a descredibilidade da segurança pública principalmente porque é representada pela figura masculina do policial que muitas vezes não compreende a violência de gênero sofrida pelas mulheres e em alguns casos experimentamse julgadas devido a uma postura moralizante construída social e culturalmente Estas demandas de acolhimento da mulher em situação de violência foram atenuadas com o desenvolvimento das delegacias da mulher por volta dos anos 80 porém as demais questões de segurança pública no espaço urbano ainda são uma demanda de luta para o movimento feminista SANTOS IZUMINO 2014 A identificação feminina como sujeitos sociais de direitos passa segundo Macedo 2002 pelo coletivo de mulheres que representa uma força contrahegemônica nos movimentos sociais urbanos e na luta sobre políticas públicas qualificadas Pensar nas mulheres enquanto protagonista da cena pública é pensar não só em demandas de gênero mas nas demais minorias sociais que podem se valer dessa equiparação sobre o direito a cidade ao desenvolver uma cidade segura e organizada para todos Por conseguinte ao produzir melhores condições de pertença da figura feminina no espaço público pode proporcionar alterações nas relações de poder na dimensão da vida privada entendendo que a luta das mulheres sobre a violência Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 433 sofrida no ambiente urbano e a sofrida dentro das fronteiras da casaprivado constituem facetas de um fenômeno amplo e concreto sobre gênero na nossa sociedade Sair da asfixia privada muitas vezes violenta e poder transitar no espaço urbano de maneira segura possibilita a construção de novas formas de sociabilidade e identidade ou seja diferentes representações sociais sobre si mesmas na relação com as pessoas espacialidades e coisas MACEDO 2002 O papel dos espaços urbanos na constituição de territórios de violência e como estes mesmos territórios violentos se retroalimentam da exclusão social e inércia espacial e produz o ambiente da criminalidade sustenta a insegurança ambígua da população vulnerabilizada FERREIRA PENNA 2005 A noção de cidade escassa isto é cidade pequena do ponto de vista político não demográfico revela a dificuldade em promover cidadania para a população e como consequência produz violência urbana principalmente às camadas mais vulneráveis da sociedade DE CARVALHO 1995 Demarcar a posição das mulheres e das organizações que potencializem sua força enquanto coletivo e movimento social no avanço da criação de espaços urbanos seguros se torna particularmente importante uma vez que quando um grupo de pessoas continua existindo ocupando espaço e vivendo obstinadamente já é uma ação expressiva um evento politicamente significativo BUTLER 2018 p24 Ações que buscam transformar o cenário através de movimentos coletivos podem possibilitar a transformação de cidades numa perspectiva que gera seguranças nas mulheres que vivem no ambiente urbano em cidades mais inclusivas mais sustentáveis e bem sucedidas socialmente Segundo Alexandres 2018 é a partir da emergência de movimentos coletivos que se aperfeiçoam as democracias pois há engajamento e protagonismo daquelas se apresentam como autoras de mudanças Nesse aspecto é possível destacar a iniciativa da Organização das Nações Unidas no encorajamento a políticas e programas que garantam espaços que promovam maior saúde e qualidade de vida no contexto urbano Um dos objetivos e metas do milênio das Nações Unidas para o desenvolvimento sustentável consiste em tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos seguros resilientes e sustentáveis ODS11 ONU 2015 Desse modo lutase para proporcionar o acesso universal a espaços públicos seguros inclusivos acessíveis e verdes até 2030 principalmente para públicos mais vulneráveis entre estes as mulheres ONU 2015 Reconhecer as mulheres como um público vulnerável assim como a demanda de que a cidade precisa ser pensada com e para elas de uma forma coerente é um ponto de partida que ainda denota o distanciamento de ações que de fato promovam tais espaços e a necessidade de Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 434 crialos Problematizar a percepção de segurança de mulheres no espaço urbano e sua relação com a cidade é um primeiro passo para se pensar em indicadores para cidades sustentáveis Giuliani e Scopelliti 2009 enfatizam a necessidade de se pensar na sustentabilidade como demarcador para os estudos sobre a relação pessoaambiente entendendo essa palavra não como modismo mas na amplitude que este conceito possibilita para pensar no ambiente como componente que interfere direta e indiretamente no bem estar e qualidade de vida É preciso considerar que o ambiente atua como um determinante social de saúde BUSS PELLEGRINI FILHO 2007 A cidade sendo considerada como um aspecto desse ambiente ao invés de violências diversas também pode ser promotora de saúde e bemestar Uma cidade saudável assentada na perspectiva de cidades sustentáveis da ONU 2015 pode ser considerada uma cidade que possibilita especialmente à mulheres vivenciar esse espaço de forma segura e livre para realizar suas ações enquanto coletivo enquanto projeto pessoal e enquanto própria expressão da existência que transforma e permite transformarse CONSIDERAÇÕES FINAIS Esse ensaio logrou uma reflexão a respeito das violências que emergem no contexto urbano especificamente para as mulheres Da violência física à simbólica contextualizando o ambiente macro essa reflexão perpassou pelo aporte teórico de estudos da relação pessoa ambiente que investigam percepção de segurança a partir de conceitos como espaço defensável e territorialidade A territorialidade como um elemento do espaço defensável é imprescindível na garantia do direito de ir e vir das mulheres e da percepção de espaços que possam ser considerados seguros e inclusivos para existir na cidade Questionase neste estudo para quem e por quem as cidades são construídas direcionando o debate em torno das questões de gênero para reflexões a respeito do quão a prática e a ciência da arquitetura das cidades e do planejamento urbano são enviesadas numa lógica que naturaliza a hegemonia masculina dentre tantas outras garantias para construção e manutenção de espaços hegemônicos REFERÊNCIAS ALEXANDRE Agripa Faria Sociologia da Ação coletiva Florianópolis Editora da UFSC 2018 BEAUVOIR Simone O segundo sexo Volume I e II Rio de janeiro Nova Fronteira 2016 BOMFIM Zulmira Áurea Cruz Cidade e afetividade estima e construção dos mapas afetivos de Barcelona e de São Paulo Fortaleza Editora UFC 2010 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 435 BORGHI Rachele O Espaço à época do queer contaminações queer na geografia francesa Revista Latinoamericana de Geografia e Gênero Ponta Grossa v 6 n 2 p 133146 2015 BUSS Paulo Marchiori Promoção da saúde e qualidade de vida Ciência saúde coletiva v 5 p 163177 2000 BUSS Paulo Marchiori PELLEGRINI FILHO Alberto A saúde e seus determinantes sociais Physis revista de saúde coletiva v 17 p 7793 2007 BUTLER Judith Corpos em aliança e a política das ruas notas para uma teoria performativa de assembleia Editora José Olympio 2018 COSTA Ana Alice VIEIRA Claudia Andrade Fronteiras de Gênero no Urbanismo Moderno Revista Feminismos v 2 n 1 2014 DE CARVALHO Maria Alice Rezende Cidade escassa e violência urbana Série estudos n 91 p 2 1995 FISCHER GustaveNicolas Psicologia Social do Ambiente Lisboa Instituto Piaget 1994 FERNÁNDEZ Emelina Galarza BEDÍA Rosa Cobo CERDÁ Mar Esquembre Medios y violencia simbólica contra las mujeres Revista Latina de Comunicación Social n 71 p 818 832 2016 FERREIRA Ignez Ferreira Costa Barbosa PENNA Nelba Azevedo Território da violência um olhar geográfico sobre a violência urbana GEOUSP Espaço e Tempo Online n 18 p 155168 2005 GIULIANI Maria Vittoria SCOPELLITI Massimiliano Empirical research in environmental psychology Past present and future Journal of Environmental Psychology v 29 n 3 p 375386 2009 GONZALEZ LUNA Fabián Spatialization of Violence in Latin American Cities A Theoretical Approach Cuad Geogr Rev Colomb Geogr Bogotá v 22 n 1 p 169186 Jan 2013 KUHNEN Ariane SILVEIRA Bettieli Barboza Espaço defensável defensible space In S Cavalcante G A Elali Org Psicologia ambiental conceitos para a leitura na relação pessoaambiente pp 114117 Petrópolis Rj Vozes 2018 JACOBS J 2000 Morte e vida de grandes cidades São Paulo Martins Fontes publicado originalmente em 1961 com o título Life and Death of Great American Cities KUO Frances E SULLIVAN William C Environment and crime in the inner city Does vegetation reduce crime Environment and behavior v 33 n 3 p 343367 2001 LOURENÇO Nelson Violência urbana e sentimento de insegurança 2012 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 436 LEFEBVRE Henri O Direito à Cidade São Paulo ed Centauro 5ª edição 2008 MACEDO Márcia Relações de gênero no contexto urbano um olhar sobre as mulheres Perspectivas de Gênero Debates e questões para as ONGs Recife GT Gênero Plataforma de Contrapartes NovibSOS CORPO Gênero e Cidadania p 5679 2002 MILGRAM Stanley The experience of living in cities Science v 167 n 3924 p 1461 1468 1970 MOSER Gabriel Introdução a Psicologia Ambiental pessoa e ambiente Campinas SP Alinea 2018 NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL ONU BR 17 Objetivos para transformar o mundo 2015 Disponível em httpsnacoesunidasorgpos2015 Acessado em 18 de jul 2019 NAÇÕES UNIDAS NO BRASIL ONU BR A Agenda 2030 2015 Disponível em httpsnacoesunidasorgpos2015agenda2030 Acesso em 18 de jul de 2019 NEWMAN Oscar Defensible space New York Macmillan 1972 NEWMAN Oscar Creating defensible space Washington DC Dept of Housing and Urban Development 1996 ROTHER Edna Terezinha Revisão sistemática X revisão narrativa Acta paul enferm São Paulo v 20 n 2 p vvi 2007 SANTOS Cecília MacDowell IZUMINO Wânia Pasinato Violência contra as mulheres e violência de gênero notas sobre estudos feministas no Brasil Estudios interdisciplinarios de América Latina y el Caribe v 16 n 1 2014 SAWAIA Bader Burihan O sofrimento éticopolítico como categoria de análise da dialética exclusãoinclusão As artimanhas da exclusão análise psicossocial e ética da desigualdade social v 2 p 97118 1999 SIMMEL George A metrópole e a vida mental In G O Velho Org O fenômeno urbano pp1125 Rio de Janeiro Zahar 1973 SOCZKA Luís Viver na cidade In L S Org Contextos Humanos e Psicologia Ambiental pp 91131 Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2005 TAVARES Gilead Marchezi O dispositivo da criminalidade e suas estratégias Fractal Revista de Psicologia v 23 n 1 p 123136 2011 THEODOROVIYS Igor José HIGUCHI Maria Inês Gasparetto Territorialidades In S Cavalcante G A Elali Org Psicologia ambiental conceitos para a leitura na relação pessoaambiente pp 228223 Petrópolis Rj Vozes 2018 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 437 GUARDA COMPARTILHADA UMA DAS FORMAS DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA FAMILIAR E À ALIENAÇÃO PARENTAL Hildemar Meneguzzi De Carvalho1 RESUMO A formação da família no Brasil e seu reconhecimento legal tem raízes no sistema de patriarcado e seu conceito evolutivo embora não tenha sido isento de percalços chega até o momento contemporâneo com o reconhecimento do afeto como fundamento básico e não mais engessado em figuras ou conceitos fechados No que concerne à guarda compartilhada seu conceito precisa ser adequadamente entendido por meio de um senso de cooperação juntamente com a superação de frustrações individuais que poderão auxiliar na construção de um sistema familiar e humano e social mais evoluído e pacífico A prevenção à violência familiar e à alienação parental são sinônimos de educação e mudança de postura de todos os envolvidos sistema jurídico família e sociedade Palavras Chave Guarda compartilhada Família Prevenção Alienação Parental Violência Familiar INTRODUÇÃO Comece fazendo o que é necessário depois o que é possível e de repente você estará fazendo o impossível São Francisco de Assis O presente artigo tem por objetivo discorrer sobre a guarda compartilhada com vistas a esclarecer e ampliar o entendimento sobre o assunto especialmente ao público leigo O referido tema justificase pelos frequentes debates entre profissionais do Direito da Psicologia e da própria Sociedade em si a respeito da guarda compartilhada e a resistência em aplicála Buscase demonstrar que a opção por essa modalidade de guarda pode ser uma forma eficiente de prevenção à alienação parental e à violência familiar Utilizandose do método de pesquisa qualitativa a construção do texto é oriunda da pesquisa acerca de diversos estudos sobre o assunto No que concerne à problemática esta gira em torno das resistências apresentadas pela sociedade para aplicação da guarda compartilhada O artigo traz três capítulos Um breve histórico sobre a formação da família no Brasil Uma digressão sobre a ruptura da relação conjugal e os efeitos da alienação parental na 1 Desembargadora do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade do Vale do Itajaí Univali 2017 Email hmc3772tjscjusbr Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 438 sequência se discorrerá sobre a guarda compartilhada como uma das formas de prevenção à violência familiar O primeiro tópico trará de forma sucinta a visão da evolução do conceito de família desde a família tradicional centrada na figura patriarcal até a revolução trazida pela promulgação da constituição de 1988 com o reconhecimento legal de formas diferentes de família onde o vínculo afetivo se sobrepõe ao sanguíneo Na sequência falarseá sobre os desdobramentos emocionais da ruptura conjugal como o sentimento de luto simbólico e as consequências da eventual prática de alienação parental Por fim tratarseá da guarda compartilhada como uma das alternativas de prevenção à violência familiar 1 FORMAÇÃO DA FAMÍLIA NO BRASIL BREVE HISTÓRICO No Brasil a história da formação da família pautouse pela forte influência do direito romano e canônico A figura do pater familias que emanava do matrimônio também mostrou se presente perdurando até a sua substituição pelo instituto do poder familiar Segundo Paulo Lôbo 2011 a derrocada da família patriarcal cujo modelo a legislação brasileira seguiu desde o período colonial até boa parte do século XX encontrou seu ápice após a promulgação da Constituição de 1988 O caminho da mudança todavia não foi leve e isento de percalços Algumas resistências persistem até os dias atuais principalmente no tocante aos novos arranjos familiares e ao compartilhamento do exercício parental Nesse contexto como dito a figura do pater familias foi substituída pela figura do poder familiar que é voltada ao interesse desenvolvimento e bemestar da criança e adolescente O direito à dignidade foi estendido aos filhos biológicos ou não A autoridade parental antes atribuída somente ao genitor agora é compartilhada entre os pais ou responsáveis no âmbito de uma família solidarista e afetiva É o que ressalta Ana Carolina Teixeira 2005 quando afirma que pelo poder familiar a autoridade é conjugada com o amor Assim pouco a pouco por extrema e palpável necessidade o conservadorismo o positivismo foram sobrepujados pelas novas concepções sobre a família Voltando a falar dos acontecimentos e mudanças na esfera familiar é importante destacar o papel da mulher antes submissa e a mercê do patriarca O marco legislativo da igualdade entre os gêneros sem dúvida foi a Constituição da República Federativa do Brasil Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 439 especificamente o inciso I do seu art 5º Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações nos termos desta Constituição Todavia antes disso a mulher já se viu obrigada a sair do âmbito doméstico para se inserir no mercado de trabalho e auxiliar na economia familiar Clarisse Ismério 1995 p 84 indica que a Revolução Farroupilha ocorrida em 1835 45 consistiu num longo período de conflitos fundamentais para a emancipação da mulher pois na ausência do homem teve que usar sua criatividade para lutar pela sobrevivência e sustento da família Posteriormente no período entre 185070 ocorreu a Revolução Industrial também intitulada Revolução CientíficoTecnológica na qual as mulheres passaram a ser empregadas em larga escala em razão da necessidade financeira Mas até que fosse possível à mulher dispor livremente de seu salário apenas no século XX o trabalho feminino revelou um cenário duplo de emancipação e exploração A história caminhou em direção à independência da mulher permitindolhe romper os laços de autoridade em relação ao seu pai e ao seu marido Para melhor vislumbre da transição vivenciada pelo gênero feminino é interessante o exemplo de Giselda Maria Hironaka 2008 das antigas fotografias do núcleo familiar em que a mulher sempre postavase atrás do seu cônjuge Para a autora a posterior independência feminina a fez erguerse na foto a fez sair de trás do patriarca postandose ao lado de seu parceiro de vida com olhar confiante de quem também organiza e administra a estrutura familiar Podese afirmar que a família nuclear contemporânea ainda é formada pela figura do pai mãe e filhos porém é permeada pela liberdade de escolha de seus membros David Richard Precht 2012 p 102 diz que ainda impera na família tradicional e em qualquer outro tipo familiar a busca pela excitação harmonia e paz de espírito nada diferente do amor romântico A dita família nuclear é também chamada de família tradicional elementar primária ou simples Bem mais recente passa a ser reconhecida a família homoafetiva que é caracterizada pela união entre duas pessoas do mesmo sexo e independe da estrutura restante O termo homoafetivo surgiu para expurgar o latente preconceito originado pela expressão homossexual Mesmo assim a modalidade é conhecida das duas formas No que diz respeito à parentalidade o reconhecimento do modelo homoafetivo devese também ao fato de que a competência moral e social para gerir a instituição familiar deixou de ser restrita ao casal homemmulher Houve portanto com a promulgação da Constituição Federal de 1988 uma aquiescência legislativa de que a família não era mais constituída apenas pelo casamento e que Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 440 a sua finalidade não se limitava às esferas patrimonial e procriativa Reconheceuse a necessidade de intervenção mínima do Estado e a possibilidade dos novos arranjos familiares permeados pelo afeto É o preceito do art 226 caput da Constituição Federal A família base da sociedade tem especial proteção do Estado bem como do art 1513 do Codigo Civil É defeso a qualquer pessoa de direito público ou privado interferir na comunhão de vida instituída pela família Foram eleitos novos valores sociais em que a dignidade da pessoa humana é valorizada em todas as relações jurídicas inclusive nas relações familiares Assim as relações familiares passaram portanto a ser funcionalizadas em razão da dignidade de cada partícipe Tradicionalmente à luz do sistema codificado de 1916 duas eram as fontes das relações de família de acordo com o Direito a aparente consanguinidade e a vontade conjunta de um homem e de uma mulher no sentido da união sexual formalizada No mundo contemporâneo no entanto o perfil consensual e o sentimento de afeição permanente e espontâneo devem ser considerados os alicerces das famílias jurídicas resgatando a afetividade emocionalidade nas relações privadas mais próximas e íntimas como são as relações familiares É merecedora de tutela a família que represente uma comunhão de vida e de sentimentos permitindo aos seus integrantes o melhor desenvolvimento de suas potencialidades e qualidades GAMA 2008 p122 Dessa forma podese considerar que a Constituição Federal de 1988 trouxe o resgate da emocionalidade nas relações jurídicas de Direito Civil como fenômeno jurídico inevitável necessário e em conformidade com as transformações que vêm ocorrendo no âmago da civilização humana e que envolvem além pessoa humana as comunidades a família a sociedade e o Estado DIAS 2006 É esse vínculo afetivo reconhecido inclusive juridicamente que permeando as relações deverá ser tratado nos próximos tópicos 2 O FIM DE UM RELACIONAMENTO E A EVENTUAL PRÁTICA DA ALIENAÇÃO PARENTAL O casal que decide romper a união pode optar por regularizar judicialmente a situação no tocante ao estado civil partilha do patrimônio guarda e plano de educação dos filhos pensão alimentícia direito de visitas etc Por isso as Varas de Família transitam entre o Direito Público e Privado tonandose multidisciplinares Observase todavia que o fim das relações familiares muitas vezes devese às frustradas expectativas do casal que pode nutrir um elevado nível de idealização Esse projetar de expectativas sobre o outro é considerado prejudicial ao desenvolvimento de uma forma satisfatória de amor e pode dar causa à separação Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 441 O fim da relação pode representar uma das tantas perdas da vida adulta de um ser humano Seu enfrentamento pode se dar de forma racionalizada ou extremamente emocional o que torna a ruptura dolorosa revestindose numa espécie de luto que não é um estado mas um processo de desajuste interno Especialmente no caso de uma separação conjugal que engloba tanto a dissolução da união estável quanto o divórcio o luto é comumente verificado em pessoas dominadas pelo desapontamento que não possuem a confiança básica desenvolvida na primeira infância Usualmente o luto é vivenciado por pessoas intolerantes a separações ou mudanças que se apegam ferrenhamente ao que têm PARKES 1998 Daí a tese de que relacionamentos carregados de ressentimentos são mais difíceis de serem elaborados Essencialmente o que diferencia as atitudes diante de uma ruptura de qualquer vínculo de afeto é a capacidade que o indivíduo tem de administrar seus sentimentos Independentemente do motivo pelo qual um casal decide pelo fim da relação no contexto dessa ruptura salvo exceções o ex casal pode iniciar um entrave de grandes proporções para regulamentar as questões atinentes ao patrimônio partilha e à prole guarda visitas e alimentos Na fragilidade da ruptura conjugal dos pais os filhos podem tornarse instrumentos de vingança e serem impedidos de conviver e até de amar o outro genitor ou outros membros da família ou seja são programados para odiar O genitor alienante planta a ideia de abandono e de desamor fazendo com que os filhos acreditem em fatos que não ocorreram e distanciemse espontaneamente do alienado A isso dáse o nome de alienação parental figura recorrente nos litígios familiares A alienação parental é uma das características mais cruéis das separações conflituosas pois é a obrigatoriedade de os filhos escolherem a um dos genitores para dispensar seu respeito lealdade e amor O genitor alienante subentende que somente pode ser um OU outro de maneira exclusiva Este genitor é frequentemente aquele de quem elas mais têm medo de ser rejeitadas GOUDARD 2008 p 46 Tal prática além de cruel é criminosa pois legalmente a Constituição Federal no já transcrito art 227 dispõe que é direito da criança e do adolescente conviver com seus familiares sendo evidente que os filhos vivenciadores do processo de alienação parental têm desrespeitado direta e intencionalmente esse direito Todavia em que pese a garantia constitucional até o ano 2010 era muito difícil a identificação e a eliminação das práticas alienadoras porquanto não havia norma específica sobre o assunto Tal panorama foi Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 442 gradualmente modificado com o advento da Lei 123182010 que com um caráter puramente pedagógico passou a recriminar a alienação parental Posto isso considerase a guarda compartilhada como um fator de prevenção da alienação parental porque os genitores antes em constante discordância precisam finalmente chegar a um consenso sobre as questões relacionadas aos filhos Justamente por isso a alteração da guarda da modalidade unilateral para a compartilhada é uma das medidas aplicáveis no caso da identificação do abuso alienativo Defendese que essa obrigatoriedade de compartilhamento de responsabilidades com relação à prole possa limitar a prática da alienação 3 GUARDA COMPARTILHADA UMA DAS FORMAS DE PREVENÇÃO À VIOLÊNCIA FAMILIAR No Brasil a guarda compartilhada foi instituída e disciplinada pela Lei n 116982008 e posteriormente pela Lei n 130582014 Referidas normas promoveram alterações significativas em alguns dispositivos do Código Civil para estabelecer o significado da guarda compartilhada bem como dispor sobre a sua aplicação Mister destacar que antes do advento da primeira lei a guarda compartilhada já era possível no país embora não regulamentada A Lei n 116982008 trouxe na verdade modificações aos arts 1583 e 1584 do Codigo Civil com a edição dessa lei não há mais espaço para se considerar a guarda unilateral como regra e a aguarda compartilhada exceção Ambas passaram a ter o mesmo status quanto à sua importância e a situação concreta passou a ser o norte para definir a aplicação de um dos dois modelos COLTRO e DELGADO 2015 p168 A Lei 1305814 veio para estabelecer o significado da expressão guarda compartilhada dispondo também sobre sua aplicação dessa forma modificou os arts 1583 1584 1585 e 1634 do Código Civil de 2002 A principal novidade sem duvida foi dar ênfase à guarda compartilhada como modelo prioritário ao atendimento aos interesses dos filhos comuns quando confrontados aos interesses de seus pais IDEM IBIDEM p 181 A guarda compartilhada surgiu num cenário de desequilíbrio dos direitos parentais de uma cultura que inicialmente atribuiu aos pais os poderes soberanos sobre os filhos e posteriormente às mães de forma exclusiva que em razão da maternagem teriam melhores condições para cuidar da prole Era necessário romper com a ideia de posse sobre a prole e plantar a perspectiva de ampla convivência familiar Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 443 Nessa esteira revelase a guarda de modalidade compartilhada que implica na corresponsabilização entre pai e mãe pai e pai ou mãe e mãe A autoridade parental é exercida de forma igualitária quase que da mesma maneira como os genitores faziam quando estavam unidos conjugalmente ainda que estejam separados Por meio da guarda compartilhada os filhos podem ser assistidos por ambos os genitores os quais têm uma paridade maior no cuidado da prole e efetiva autoridade legal para tomar decisões importantes relacionadas ao bemestar dos filhos Esse tipo de guarda almeja em síntese assegurar o melhor interesse das crianças e adolescentes a fim de protegêlos e de proporcionarlhes estabilidade emocional tão necessária ao desenvolvimento sadio de suas personalidades Salientase que é equivocada a ideia nutrida pela sociedade em geral até mesmo pela comunidade jurídica de que a guarda compartilhada afasta a fixação de um domicílio base para os filhos e a delimitação de visitas para o genitor não convivente já que no regime da guarda compartilhada não há o chamado trânsito livre dos ex cônjuges ou companheiros na residência do outro Não chamaria nem de direito de visita mas de direito de convivência que em primeiro lugar é garantido aos filhos art 227 da CF AZAMBUJA et al 2009 Assim não há alternância de residências fator prejudicial ao desenvolvimento da criança e do adolescente porquanto durante a infância e juventude devese evitar grandes alterações na rotina de vida do menor permanecendo inalterado e consequentemente em segurança tudo o que for imprescindível GRISARD 2014 p 70 A existência de uma residência de referência é fundamental no protótipo adequado de compartilhamento legal da custódia cujo domicílio os filhos identificam como base de sua atividade habitual e desenvolvimento integral que lhes fornece a estabilidade emocional da qual necessitam não obstante os pais repartam entre si por meio dos planos de parentalidade as tarefas com a quais cada um deles irá se ocupar MADALENO 2015 p 247 Importante dizer que a residência única onde a criança ou adolescente encontramse juridicamente domiciliados além de auxiliar na definição do espaço de atuação dos genitores no exercício de suas obrigações possibilita ao genitor não convivente o cumprimento do seu direitodever de visita que so pode ser regularmente exercido se o menor dispõe de um local permanente de referência GRISARD 2014 p71 Inexiste assim a obrigatoriedade de divisão de convívio porquanto não se está falando da guarda alternada A divisão do poder familiar não está e nunca esteve condicionada à divisão do tempo de convivência dos filhos com seus genitores NICK apud BARRETO 1997 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 444 Portanto é possível estabelecerse a guarda compartilhada aos genitores que residem na mesma cidade como é possível fixála quando residem em cidades diferentes ou ainda quando residem em países diferentes O que importa na realidade são as informações a comunicação efetiva entre os genitores que deve ocorrer com respeito de forma educada e consciente Não é certo ainda o pensamento de que a guarda compartilhada representa a isenção do pagamento de pensão alimentícia Repisase que a guarda compartilhada implica no compartilhamento das responsabilidades parentais e não no compartilhamento da criança como se objeto fosse Assim Douglas Phillips Freitas 2015 p 211 defende que em qualquer modalidade de custódia sempre existirá o dever dos genitores prestarem alimentos aos filhos fruto do indelegável exercício do poder familiar A expressão alimentos é plurívoca e abrange mais do que a mera alimentação Sob o referido vocábulo estão envolvidos os gastos relacionados ao sustento geral da pessoa alimentanda como educação habitação saúde vestuário transportes etc Não havendo alternância da guarda física dos filhos há de se considerar que a não cooperação material do outro pode onerar sobremaneira o genitor guardião Por isso a guarda compartilhada demanda auxílio que não diz respeito somente à educação mas ao sustento da prole Destacase outrossim que o valor da pensão alimentícia não está vinculado ao tempo que o filho permanece na companhia do genitor mas à renda de cada pai e o custo financeiro de criação dos filhos Do contrário se o valor dos alimentos tem como parâmetro apenas o tempo de permanência dos filhos com o genitor os interesses dos adultos são colocados à frente dos interesses da criança ou do adolescente Numa ruptura familiar a experiência profissional tem mostrado que o desejo de manter a guarda dos filhos a todo custo pode significar uma forma de vingança manipulação ou poder decorrente de ressentimentos ainda existentes entre os genitores e às vezes travestidos em gestos de puro zelo e amor Para Paschoal 2012 o ressentimento é um fenômeno do gênero do rancor ódio cólera e sede de vingança que envolve o homem quando este sentese incapaz de agir a uma ameaça inibindo e impossibilitandoo de assimilar um afeto Assim ressentimento e memória pesam representam toneladas de afeto que acorrentam o indivíduo às lembranças e sentimentos de dor Por tudo o que foi dito quando os genitores compreenderem que o filho é parte de ambos e que necessita do amor educação e sustento dos dois não criarão mais óbices ao compartilhamento da guarda na hipótese de uma ruptura familiar Pelo contrário incentivarão a modalidade da guarda compartilhada que na maioria das vezes vem em benefício da prole e de uma sociedade mais evoluída justa e equilibrada Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 445 Importante salientar que os litígios que se acumulam nas Varas de Família atestam que as partes envolvidas não se tornam pai ou mãe sabendo como exercer os respectivos papéis ninguém se encontra preparado para se tornar pai e portanto educador COUTINHO 2016 p 55 É percebido que muitas vezes a carência de informação sobre como lidar com a perda e a frustração por uma relação que não deu certo é o principal motivo causador de longas e desgastantes demandas Ressaltase que é imprescindível o amadurecimento dos genitores por meio do diálogo para possibilitar a tomada conjunta de decisões compreensão para entender as necessidades dos filhos e aceitar o agir do outro Além disso é fundamental o discernimento para cumprir com seu dever sem embaraços as medidas que a modalidade de guarda compartilhada propõe o que exige lucidez para colocar a parentalidade acima das desavenças entre cônjuges e por fim educação para evitar trocas de ofensas ou qualquer tipo de desqualificação mútua o que tornarão cada vez mais frequente e salutar a fixação da referida guarda Isso nada mais é do que amar e respeitar os filhos compreender que eles merecem ser tratados com dignidade e prevenir a violência familiar A violência é uma forma de controle do outro que está internalizada de maneira visceral na cultura humana No amor e no odio ela está presente Ao amar a nossa espécie tenta dominar a pessoa amada agarrála para si têla como propriedade ANDRADE 2007 p 19 Violentar o outro nem sempre representa uma agressão concreta A falta de auxílio material o abandono afetivo inclusive um discurso de amor sufocante para a vítima também são condutas violadoras à dignidade da pessoa humana IDEM IBIDEM Uma das formas de prevenir a violência e principalmente implementar mudanças comportamentais nas famílias que refletirão na sociedade em geral é incentivar o espírito de cooperação não só como fundamento educacional mas também no momento em que ocorre o rompimento conjugal a fim de buscar minimizar o conflito e chegar uma solução razoável Denise Maria P da Silva 2011 p 269 destaca sobre a cooperação ordenada A cooperação ordenada entre todos os intervenientes profissionais no conflito familiar advogados juízes conselheiros nos Tribunais Família InfânciaJuventude e ou serviços de aconselhamentos bem como os peritos eventualmente convocados psicólogosassistentes sociais devem participar do conflito familiar de uma maneira tenaz para que não se permitam processos contestáveis que agravam e prologam o lítigio familiar e que a responsabilidade parental seja reforçada sempre elaborando uma solução consensual Isso significa também que cada parceiro não pode de maneira alguma encontrar nos profissionais mencionados acima um eco quanto ao Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 446 modo de pensamento habitual GanhadorPerdedor e à sua atitude de destruição em relação ao outro Assim ao auxiliar as famílias a entenderem que o núcleo familiar é diferente do relacionamento entre cônjuges a decisão pela guarda compartilhada pode ser um caminho de prevenção à alienação parental e à violência mas pressupõe trabalho compartilhado e evolução de conceitos CONSIDERAÇÕES FINAIS O tema guarda compartilhada não se esgota Apesar de estar previsto em lei desde 2008 podese afirmar que é uma situação ainda nova que ainda precisa ser aprimorada porque faz parte do processo de evolução da família em que os filhos até então na maioria das vezes permaneciam sob a guarda unilateral de um dos pais quando ocorria uma ruptura conjugal Nesse viés com a mudança da lei e do entendimento buscase a conscientização de que os laços afetivos dos pais permaneçam imutáveis em relação ao filho a fim de dar continuidade ao sistema familiar A mudança de cultura normalmente enseja um longo caminho e encontra percalços resistências e estranheza Ocorre que apesar dos avanços a família contemporânea também enfrenta desafios porquanto as relações entre as pessoas continuam cada vez mais complexas lembrando que a afetividade e o respeito à dignidade de cada um é que deve prevalecer pois esse é também um princípio constitucional A família foi e continuará sendo o fundamento das relações e da construção da sociedade É a partir dela que são delineados valores políticossociais perfis econômicos e todos os demais norteadores da organização estatal Assim embora haja indivíduos que não cresceram em uma família conforme o entendimento comum eles necessariamente terão vivido em um ambiente familiar independentemente de quem exercia o papel de educador e protetor REFERÊNCIAS AZAMBUJA Maria Regina Fay LARRATÉA Roberta Vieira FILIPOUSKI Gabriela Ribeiro Guarda compartilhada a justiça pode ajudar os filhos a ter pai e mãe In SOUZA Ivone Maria Candido Coelho de Org Parentalidade análise psicojurídica 2009 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 447 ANDRADE Lédio Rosa de Violência psicanálise direito e cultura CampinasSP Millenium 2007 COLTRO A Carlos Mathias DELGADO Mario Luiz Guarda Compartilhada 2 ed rev e atual São Paulo Método 2016 COUTINHO Maria Teresa Brandão Apoio à família e formação parental Análise Psicológica v 22 n 1 2004 disponível em httppublicacoesispaptindexphpaparticleview129pdf Acessoem 13 jun 2019 DIAS Maria Berenice Guarda Compartilhada uma novidade muito bem vinda Conteúdo Jurídico BrasíliaDF set 2008 Disponível em httpwwwconteudojuridicocombrartigosver221208seo1 Acesso em 18 mai 2019 FREITAS Douglas Phillips A nova guarda compartilhada 2 ed Florianópolis Voxlegem 2015 GAMA Guilherme C Nogueirada Princípios Constitucionais do Direito de Família guarda compartilhada à luz da lei n 1169808 família criança adolescente e idoso São Paulo Atlas 2008 GRISARD FILHO Waldyr Guarda compartilhada um novo modelo de responsabilidade parental 2014 GOUDARD Bénedicte A síndrome da alienação parental Universidade Claude Bernard Lyon 1 2008 HIRONAKA Giselda Maria Fernandes Novaes A incessante travessia dos tempos e a renovação dos paradigmas a família seu status e seu enquadramento na pósmodernidade In BASTOS Eliene Ferreira DIAS Maria Berenice Coord A família além dos mitos Belo Horizonte Del Rey 2008 ISMÉRIO Clarisse Mulher a moral e o imaginário 18891930 Porto Alegre EDIPUCRS 1995 KOVÁCS Maria Julia Perdas e o processo de luto In DORA Incontri SANTOS Franklin Santana Orgs A arte de morrer visões plurais 2007 LÔBO Paulo Direito civil Famílias 4 ed São Paulo Saraiva 2011 MADALENO Rafael MADALENO Rolf Guarda compartilhada física e jurídica 2015 NICK Sérgio Eduardo Guarda compartilhada um novo enfoque nos cuidados aos filhos de pais separados ou divorciados In BARRETO Vicente Org A nova família problemas e perspectivas Rio de Janeiro Renovar 1977 PARKES Colin Murray Luto estudos sobre a perda na vida adulta 1998 PRECHT Richard David Amor um sentimento desordenado 2012 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 448 TEIXEIRA Ana Carolina Brochado Família guarda e autoridade parental Rio de Janeiro Editora Renovar 2005 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 449 PERFIL DAS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA INTERPESSOAL EM SANTA CATARINA BRASIL Carolina Young Yanes1 Fernanda Cornelius Lange2 RESUMO Objetivo Apresentar o perfil das mulheres residentes em Santa Catarina vítimas de violência interpessoal Métodos Estudo descritivo transversal e retrospectivo que utilizou a base de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação SINAN de 2008 a 2018 do Estado de Santa Catarina Resultados Foram registradas 36609 notificações de violência interpessoal contra mulheres em maiorias residentes da região da grande Florianópolis com faixa etária de 15 a 24 anos de idade com escolaridade de 5ª a 8ª série incompleta do ensino fundamental a agressão foi de natureza física em ambiente doméstico e perpetrada por parceiros íntimos Considerações finais Apesar dos avanços políticos as mulheres continuam sendo vítimas de violência Notase este fato devido ao constante aumento das notificações nos anos de 2008 a 2018 Palavraschave Violência Violência contra mulher Violência doméstica INTRODUÇÃO A violência é um grave problema de saúde pública contribuindo substancialmente no número de óbitos doenças agravos e incapacidades além de importante fator de risco para os problemas sociais e de saúde ao longo da vida WHO 2014a A Organização Mundial de Saude OMS define que a violência é uso intencional da força física ou do poder real ou em ameaça contra si próprio contra outra pessoa ou contra um grupo ou comunidade que possa resultar em ou tenha alta probabilidade de resultar em morte lesão dano psicologico problemas de desenvolvimento ou privação KRUG et al 2002 p05 A violência é um fenômeno multicausal e devido a isso encontrase uma certa dificuldade para a sua conceituação Esta dificuldade vem do fato de ela ser um fenômeno de 1 Enfermeira Especialista em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina no ano de 2018 Mestranda do Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Catarina Bolsista pela CAPES httplattescnpqbr6523445518140318 2 Fonoaudióloga Especialista em Saúde da FamíliaAtenção Básica pela Universidade do Vale do Itajaí no ano de 2018 Mestranda do Programa de PósGraduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal de Santa Catarina Bolsista pela CAPES httplattescnpqbr1894647305495025 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 450 ordem do vivido cujas manifestações provocam ou são provocadas por uma forte carga emocional de quem a comete de quem a sofre e de quem a presencia MINAYO 2006 Com relação à violência contra mulheres a Organização Mundial de Saúde aponta que globalmente uma em cada três mulheres aproximadamente vivenciou alguma violência física eou sexual em algum momento da sua vida Saúde WHO 2017 Os efeitos destas ocorrências apresentam repercussões imediatas e duradouras comprometendo a vida sexual reprodutiva física e mental da mulher além de ser uma questão de desigualdade de gênero e violação dos direitos humanos WHO 2014b As violências contra as mulheres podem ser consideradas um padrão de relacionamento assimétricohierárquico de poder Esse fenômeno pode ser observado sob dois ângulos como conversão da diferença e da assimetria em relação hierárquica de desigualdade com fins de dominação e como a ação que trata o ser humano não como sujeito mas como coisa CHAUI 1985 No Sistema de Informação de Agravos de Notificação SINAN a ficha de notificação de violências é unica para diversas naturezas e tipologias de violências BRASIL 2001 A tipologia da violência diz respeito às expressões sociais da violência que são definidas a partir de quem as comete em autoprovocadas suicídio tentativa de suicídio e autoagressão interpessoais violência intrafamiliar doméstica eou extrafamiliar comunitária e coletivas institucional grupos políticos organizações terroristas milícias KRUG et al 2002 E segundo a natureza as formas de abuso podem ser físicas psicológicas sexuais financeiras e as negligências entre outros KRUG et al 2002 Este estudo visa contribuir com a necessidade veemente de que o grito feminino das mulheres vitimadas pela violência ecoe na comunidade científica porque muitos alguéns femininos necessitam ter direito e acesso a uma vivência de qualidade sem o sobressalto do estado de alerta que a violência provoca E objetiva apresentar o perfil das mulheres vítimas de violência interpessoal residentes no estado de Santa Catarina Desta forma temse como problema de pesquisa Quais são as características sociodemográficas a natureza da lesão o local de ocorrência e provável autor das violências interpessoais contra mulheres residentes em Santa Catarina Para tal utilizouse método descritivo transversal e retrospectivo realizado com dados secundários provenientes do Sistema de Informação de Agravos de Notificação referente aos anos de 2008 a 2018 disponibilizado pela Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina por meio da Diretoria de Vigilância Epidemiológica Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 451 Seguindo os preceitos éticos por tratarse de dados secundários sem informações de identificação dos indivíduos este trabalho não foi encaminhado ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Santa Catarina respeitando as exigências éticas apresentadas na resolução nº 4662012 do Conselho Nacional de Saúde BRASIL 2012 1 DESENVOLVIMENTO Entre os sistemas de informação gerenciados pelo Ministério da Saúde destacase o Sistema de Vigilância de Violências e Acidentes VIVA que foi implantado em 2006 por meio da portaria nº 18762006 e está estruturado em dois componentes 1 Sentinela inquérito em serviços hospitalares de atendimento de urgência e emergência 2 Contínuo Iniciou em 2006 em serviços ou centros de referência para violências e Infecções Sexualmente Transmissíveis IST maternidades e ambulatórios especializados E a partir de 2009 foi incorporado ao SINAN o que colaborou com a expansão do VIVA e da notificação de violências BRASIL 2016 Cabe ressaltar que todo caso de violência contra mulher são agravos de notificação compulsória no SINAN Apesar da relevância dos dados estes apresentam limitações e principalmente subnotificação Destacase que a notificação de violência contra mulheres é uma exigência da Lei nº 107782003 que estabelece em todo território nacional a obrigatoriedade de notificação de todo caso de violência contra mulher atendida em serviços de saúde público ou privado BRASIL 2003 Outra importante conquista de direito e marco legal no Brasil é a Lei nº 113402006 conhecida como Lei Maria da Penha que é um reconhecido avanço na área da violência contra a mulher BRASIL2006 A conquista das políticas públicas para o combate da violência é um caminho percorrido em conjunto com o reconhecimento dos direitos das mulheres os quais por meio das declarações e conferências constituíram um importante instrumento de luta e organização das pautas dos movimentos feministas e de mulheres na América Latina e no Brasil SILVEIRA 2005 11 Resultados Estudo descritivo da violência sexual contra mulheres adolescentes e adultas no estado de Santa Catarina a partir dos dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação de 2008 a 2018 Durante este período foram notificados 36609 casos de violências interpessoais contra mulheres e 23755 contra homens totalizando 60364 números de registros de notificação Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 452 As variáveis da pesquisa foram estabelecidas com base nas informações previamente identificadas na Ficha de Notificação de Violência Interpessoal Autoprovocada São elas relacionadas à vítima Região de residência Faixa Etária Escolaridade e Situação Conjugal ao agressor grauvínculo de parentesco com a vítima e ao ato de violência local da agressão e natureza da violência Caso a pergunta não tenha sido respondida pela vítima ou preenchida pelo profissional notificador o item será registrado como Ignorado ou em branco e como Não se aplica quando a informação referente à determinada variável não é procedente à pessoa por exemplo escolaridade em recémnascidos Figura 1 Frequência de notificações de violência interpessoal segundo sexo masculino e feminino e ano 2008 a 2018 Santa Catarina Brasil Fonte DIVESUVSESSC A Figura 1 representa a distribuição destes registros segundo sexo e ano de ocorrência Observouse que 603 das vítimas notificadas de violência interpessoal são do sexo feminino e apresentou aumento nos anos estudados No entanto o sexo masculino apresenta redução do número de ocorrências de violência interpessoal Podese notar também que as mulheres ao longo de todo o período apresentaram maior número de registros quando comparado ao sexo masculino Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 453 As tabelas a seguir 1 2 3 e 4 representam apenas os registros onde as vítimas são mulheres de todas as idades residentes no estado de Santa Catarina no período de 2008 a 2018 Tabela 1 Notificação de violência interpessoal mulheres residentes em Santa Catarina por região de residência Frequência simples e porcentagem 2008 a 2018 Região de residência Frequência Grande Florianópolis 6075 1659 Nordeste 5200 142 Foz do Rio Itajaí 4550 1243 Médio Vale do Itajaí 4030 1101 Carbonífera 3144 859 Serra Catarinense 2581 705 Extremo Oeste 1998 546 Alto Vale do Rio do Peixe 1389 379 Xanxerê 1360 371 Laguna 1359 371 Oeste 1265 346 Alto Vale do Itajaí 976 267 Planalto Norte 893 244 Meio Oeste 801 219 Extremo Sul Catarinense 610 167 Alto Uruguai Catarinense 378 103 Total 36609 100 Fonte DIVESUVSESSC A configuração das Regiões de Saúde no estado de Santa Catarina é composta por 16 Regiões de Saúde CIB 348CIB12 sendo elas Grande Florianópolis Nordeste Foz do Rio Itajaí Médio Vale do Itajaí Carbonífera Serra Catarinense Extremo Oeste Alto Vale do Rio do Peixe Xanxerê Laguna Oeste Alto Vale do Itajaí Planalto Norte Meio Oeste Extremo Sul Catarinense e Alto Uruguai Catarinense Notase que a Grande Florianópolis apresentou o maior número de notificações Essa é a região mais populosa e sede da capital do estado Dada as diferenças interregionais destaca se a possível subnotificação em regiões com baixos registros como a região do Alto Uruguai e Extremo Oeste Catarinense com menos de dois por cento do número de registos Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 454 Tabela 2 Notificação de violência interpessoal mulheres residentes em Santa Catarina por faixa etária escolaridade e situação conjugal Frequência simples e porcentagem 2008 a 2018 Variáveis Frequência Faixa Etária 1 Ano 1780 486 01 04 2844 777 05 14 6087 1663 15 24 7810 2133 25 34 7087 1936 35 44 5075 1386 45 54 3131 855 55 64 1356 37 65 ou 1439 393 Total 36609 100 Escolaridade Ignorado ou em Branco 5396 1474 Analfabeta 449 123 1ª a 4ª série incompleta do EF 3217 879 4ª série completa do EF 1675 458 5ª a 8ª série incompleta do EF 7398 2021 Ensino fundamental completo 3199 874 Ensino médio incompleto 3604 984 Ensino médio completo 4439 1213 Educação superior incompleta 840 229 Educação superior completa 842 23 Não se aplica 5550 1516 Total 36609 100 Situação Conjugal Ignorado ou em Branco 1635 447 Solteira 11677 319 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 455 CasadaUnião Consensual 12096 3304 Viúva 1071 293 Separada 2622 716 Não se aplica 7508 2051 Total 36609 100 Fonte DIVESUVSESSC Mulheres vítimas de violência interpessoal apresentam em maioria faixa etária entre 14 a 24 anos 213 seguida de 25 a 34 anos 193 De modo geral observouse um incremento do número de notificações a partir dos 5 anos de idade estendendose até o fim da vida adulta significando uma violência de continuidade na vida das mulheres e presente em todas as faixas etárias inclusive nas mais precoces e tardias A escolaridade dessas mulheres com frequência é de 5ª a 8ª série do Ensino Fundamental Entretanto percebese um retrato da importância da qualidade da qualidade da informação e do preenchimento dos campos da ficha de notificação de violência interpessoal autoprovocada O excesso de preenchimento dos campos não se aplica e IgnoradoEm branco impossibilita a caracterização destas vítimas A baixa escolaridade é apontada por alguns autores como um dos fatores que favorecem a situação de violência visto que mulheres mais esclarecidas tendem a ter menor grau de tolerância à situação Isso não significa que mulheres de classes mais favorecidas e com mais anos de escolaridade também não enfrentam situações de violência A diferença é que essas mulheres podem dispor de recursos que as possibilitam encontrarem ajuda profissional de médicos psicólogos e advogados ADEODATO et al 2005 RABELLO CALDAS JUNIOR 2007 Quanto à situação conjugal 33 das mulheres vítimas de violência são casadas e 319 solteiras Tabela 3 Notificação de violência interpessoal mulheres residentes em Santa Catarina segundo natureza da violência e local de ocorrência Frequência simples e porcentagem 2008 a 2018 Variáveis Frequência Natureza da Violência Física 24420 667 Psicológicamoral 13250 362 Sexual 7664 209 NegligênciaAbandono 5922 162 Tortura 1912 52 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 456 FinanceiraEconômica 692 19 Total 53860 1000 Local de Ocorrência Residência 24961 7079 Habitação Coletiva 191 054 Escola 515 146 Local de prática esportiva 97 028 Bar ou Similar 831 236 Via pública 4731 1342 ComércioServiços 712 202 Indústriasconstrução 75 021 Outros 3146 892 Total 35259 100 Fonte DIVESUVSESSC A principal natureza da violência foi agressão física 667 seguida pela psicológicamoral 362 Neste campo da ficha de notificação é possível que o notificador selecione mais de um tipo de violência o que gera um incremento na violência física pois exceto a violência psicológica as demais são passíveis de que tenha havido uma violência física concomitante Quanto ao local de ocorrência das violências expressivamente o domicílio é onde acontecem os episódios de violência 707 o que demonstra uma relação com oa autora da agressão que é supostamente uma pessoa do convívio diário e familiar Outros estudos LAWRENZ et al 2018 ARAÚJO 2008 corroboram com os resultados encontrados referentes a violência ocorrer predominantemente no domicílio Tabela 4 Notificação de violência interpessoal mulheres residentes em Santa Catarina segundo provável autor da agressão Frequência simples e porcentagem 2008 a 2018 Provável Autora da Agressão Frequência Parceiro íntimo 13216 361 Amigos 4880 133 Mãe 4876 133 Desconhecidos 4041 110 Pai 3417 93 Filho 1447 40 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 457 Padrasto 1044 29 Irmão 1014 28 Cuidador 277 08 Patrão 135 04 Madrasta 118 03 Total 36609 100 Fonte DIVESUVSESSC Dados apontam que o provável autor da agressão foi o a parceiro a íntimo a 361 aqui agrupados os namorados as exnamorados as cônjuges e excônjuges E embora as manifestações violentas possam ser cometidas por diversos perpetradores estudos realizados em serviços de saúde indicam que há maior risco de agressão por parte dos parceiros íntimos do que por familiares amigos ou desconhecidos RODRIGUES et al 2014 BONFIM LOPES PERETTO 2010 Com base no exposto anteriormente o perfil de mulheres vítimas de violência interpessoal no estado de Santa Catarina é em geral de mulheres residentes na região da Grande Florianópolis com faixa etária entre 15 e 24 anos de idade com escolaridade de 5ª a 8ª série do ensino fundamental incompleto casadas vítimas de violência física no domicílio e tendo como provável autor o parceiro íntimo CONSIDERAÇÕES FINAIS No plano formal a legislação nacional e os tratados e convenções internacionais ratificadas pelo Brasil apresentam avanços quanto à institucionalização de direitos às mulheres pautandose nos princípios da equidade e universalidade Entretanto ainda é necessário que as ações e políticas públicas com vistas à prevenção e enfrentamentos sejam efetivas e que de fato impliquem na redução das violências contra as mulheres De acordo com os dados apresentados as notificações de violência contra as mulheres mantiveram aumento ao longo da década pesquisada Cabe destacar a importância da notificação como instrumento de informação sobre as violências contra mulheres e demais grupos populacionais com potencial para instrumentalizar pesquisas e politicas públicas para o pleno desenvolvimento social com acesso ao direito fundamental de todos os cidadãos de viver sem violência REFERÊNCIAS Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 458 ADEODATO Vanessa Gurgel et al Qualidade de vida e depressão em mulheres vítimas de seus parceiros Rev Saúde Pública São Paulo v 39 n 1 p 108113 Jan 2005 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0034 89102005000100014lngennrmiso Acesso em 09 ago 2019 httpdxdoiorg101590S003489102005000100014 ARAUJO Maria de Fátima Gênero e violência contra a mulher o perigoso jogo de poder e dominação Psicol Am Lat México n 14 out 2008 Disponível em httppepsicbvsaludorgscielophpscriptsciarttextpidS1870 350X2008000300012lngptnrmiso Acessos em 08 ago 2019 BONFIM Elisiane Gomes LOPES Marta Julia Marques PERETTO Marcele Os registros profissionais do atendimento prénatal e a in visibilidade da violência doméstica contra a mulher Esc Anna Nery Rev Enferm 2010Disponível em httpwwwufrgsbrrotascriticasartigosOS20REGISTROS20PROFISSIONAIS20DO 20ATENDIMENTO20PRÉNATAL20E20Apdf Acesso em 12 ago 2019 BORSOI Tatiana dos Santos BRANDÃO Elaine Reis CAVALCANTI Maria de Lourdes Tavares Ações para o enfrentamento da violência contra a mulher em duas unidades de atenção primária à saúde no município do Rio de Janeiro Interface Comunicação Saúde Educação v13 n28 p16574 2009 Disponível em httpbvsmssaudegovbrbvsisdigitalis0209pdfsIS292060pdf Acesso em 07 de ago 2019 BRASIL Ministério da Saúde Conselho Nacional de Saúde Resolução n 466 de 12 de dezembro de 2012 Aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Brasília Diário Oficial da União 12 dez 2012 BRASIL Lei n 11340 de 7 de agosto de 2006 Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos do 8º do art 226 da Constituição Federal Diário Oficial da União 2006 BRASIL Ministério da Saúde Portaria GMMS n 737 de 16 de maio de 2001 Aprova a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências Diário Oficial da União 18 maio 2001 BRASIL Lei n 10778 de 24 de novembro de 2003 Estabelece a notificação compulsória no território nacional do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados Diário Oficial da República Federativa do Brasil Brasília DF 2003 BRASIL Ministério da Saúde Viva Instrutivo Notificação de Violência Interpessoal e Autoprovocada Brasília 2ed 92p 2016 CHAUÍ Marilena Participando do debate sobre mulher e violência In CARDOSO Ruth CHAUÍ Marilena PAOLI Maria Celia Org Perspectivas Antropológicas da Mulher nº 4 Rio de Janeiro Zahar Editores 1985 pp2562 CIB Comissão Intergestora Bipartite Secretaria de Estado da Saúde Governo de Santa Catarina DELIBERAÇÃO 348CIB12 30 ago 2012 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 459 KRUG Etienne G et al World report on violence and health Geneva World Health Organization 2002 Disponível em httpportaldeboaspraticasifffiocruzbrwp contentuploads20190414142032relatoriomundialsobreviolenciaesaudepdf Acesso em 03 de ago 2019 LAWRENZ Priscila et al Violência contra Mulher Notificações dos Profissionais da Saúde no Rio Grande do Sul Psic Teor e Pesq Brasília v 34 e34428 2018 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0102 37722018000100527lngennrmiso Acesso em 19 ago 2019 MINAYO Maria Cecília de S Violência social sob a perspectiva da saúde pública Cad Saúde Pública Rio de Janeiro v 10 supl 1 p S7S18 1994 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0102 311X1994000500002lngennrmiso Acesso em 02 ago 2019 MINAYO MCS Violências e acidentes na pauta do setor saude In Violência e saúde online Rio de Janeiro Editora FIOCRUZ 2006 Temas em Saude collection pp 4451 ISBN 978857541380 7 Disponível em SciELO Books httpbooksscieloorgidy9sxcpdfminayo978857541380706pdf Acesso em 27 jul 2019 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buscou descrever as características da violência contra as mulheres idosas e do provável autor da agressão notificadas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação SINAN de Santa Catarina Realizouse um estudo transversal retrospectivo e descritivo com base nas notificações de casos de violência contra as mulheres idosas registradas no SINAN entre 2008 a 2014 As características investigadas foram relacionadas à idosa agredida a violência notificada e ao provável autor da agressão Foram calculadas as frequências absolutas e relativas com seus respectivos intervalos de 95 de confiança IC95 Analisouse 1077 notificações de violência contra idosas estratificadas por faixa etária 60 a 74 anos e 75 anos ou mais Dentre as idosas mais jovens 6074 anos predominaram mulheres casadasunião estável violência perpetrada por parceiros íntimos ou familiares do sexo masculino ocorridas nas residências A tipologia mais frequente foi a violência física 505 seguida pela psicológica 280 sendo que em 33 casos a agressão resultou em morte Entre aquelas com 75 anos ou mais a maioria era viúva ou separada os familiares e cuidadores os principais agressores tanto do sexo masculino como feminino com destaque para a violência física 311 e negligência 302 ocorrendo principalmente em âmbito domiciliar Em 701 das notificações os agressores não haviam consumido substâncias alcoólicas no ato da agressão Esperase que as informações possam contribuir para a visibilidade da grave situação reportada Palavraschave Maustratos ao Idoso Violência Idoso Mulheres INTRODUÇÃO A Organização Mundial da Saúde declarou que a população mundial com mais de 60 anos será em 2050 de 2 bilhões de pessoas WHO 2011 Desta forma o envelhecimento populacional passa a ser uma realidade mundial com crescimento acelerado revelandose uma questão importante com acordos internacionais ONU 2003 e políticas públicas nacionais ESTATUTO DO IDOSO 2003 que passam a desenvolver diretrizes no intuito de assegurar envelhecimento seguro digno e livre de violência 1 Mestre em Saúde Coletiva Universidade Federal de Santa Catarina 2018 2 Doutora em Saúde Coletiva Universidade Federal de Santa Catarina 2018 3 Doutora em Saúde Coletiva Universidade Federal de Santa Catarina 2017 4 Doutora em Saúde Coletiva 2013 Professora Ajunta Departamento de Saúde Pública UFSC Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 462 A violência contra a pessoa idosa é qualquer ação ou omissão cometida em ato único ou repetido causando morte dano ou sofrimentos KRUG 2002 Considerada um problema complexo com elevadas prevalências afetando principalmente as mulheres WHO 2011 RIBOT et al 2015 HUECKER SMOCK 2018 Na Espanha 776 das vítimas de maus tratos eram mulheres CASTILLA MORA et al 2014 e outros estudos apontam que quanto maior a idade maior a vulnerabilidade para as agressões de modo que a idade é considerada também fator de risco para os maus tratos em idosos GIL et al 2015 CARMONATORRES et al 2017 No Brasil em uma capital do sul do país Bolsoni e colaboradoras 2016 constataram que as mulheres idosas 638 sofreram mais violência quando em comparação com os homens 362 no nordeste Duque e colaboradores 2012 apontaram a violência contra as mulheres idosas em 239 enquanto no Distrito Federal chegou a 922 o número de idosas que sofreram violência no domicílio DE OLIVEIRA et al 2012 Quando estratificada por tipo de violência pesquisas demonstram a violência psicológica como a forma mais prevalente variando entre 46 nos Estados Unidos FAUSTINO et al 2014 e 400 no Peru ACIERNO et al 2010 A violência financeira foi apontada em 13 na Europa NAUGHTON et al 2011 e 531 na América do Sul ACIERNO et al 2010 Quanto ao sexo na população idosa estudos apontam as mulheres como as principais vítimas das violações RIBOT et al 2015 HUECKERSMOCK 2018 Dados da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde mostram que no ano de 2014 foram notificados 13 mil casos de violência contra idosos no Brasil com maior ocorrência da física 589 seguida da psicológica 267 e da negligência e abandono 249 Constituindose como uma das principais causas de adoecimento e morte APRATTO Jr 2010 a violência acarreta baixa qualidade de vida estresse psicológico falta de segurança lesões e traumas entre outros afetando a saúde do indivíduo de forma crônica CHAVARRIA MEJIA CALIXPINEDA VASQUEZBONILLA 2017 Além disso a chance de a pessoa idosa morrer nos primeiros três anos posteriores à agressão é três vezes maior comparado àquela que não vivenciou o problema DONG SIMON EVANS 2014 Na população idosa brasileira a violência doméstica é mais prevalente com 672 e taxa de reincidência de 415 para mulheres e 258 para homens evidenciando a mulher como a principal vítima das agressões em que dois segmentos particularmente fragilizados se encontram no perfil de gênero o sexo feminino e no etário e a vitimização das pessoas mais velhas convergem para a violência contra a mulher idosa ROCHA 2018 tendo como principais agressores os familiares BOLSONI et al 2016 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 463 Estudo de base populacional em Florianópolis SC com idosos estimou a prevalência da violência em 257 quando analisada entre os sexos apontou 279 entre homens e 244 para as mulheres BOLSONI 2017 Outro estudo de base populacional na mesma cidade apontou a violência por parceiro íntimo VPI em idosos elevada tanto em homens 483 como nas mulheres 464 WARMLING 2018 Desta forma esta pesquisa justificase por sua relevância temática e também pela escassez de estudos a nível nacional e estadual no contexto da violência notificada por profissionais de saúde contra mulheres idosas Com a abordagem da violência notificada contra as idosas em SC registradas por profissionais de saúde no Sistema de Informação de Agravos de Notificação SINAN será possível aprofundar o conhecimento sobre o fenômeno e obter resultados que subsidiem ações de enfrentamento contra a violência voltada para as mulheres idosas visto que a literatura apresenta vasto conhecimento acerca da violência contra as mulheres em idade reprodutiva mas poucos estudos com enfoque na violência contra as mulheres idosas Diante do exposto este estudo tem por objetivo descrever as características da violência contra as mulheres idosas e os prováveis autores da agressão notificadas no SINAN em Santa Catarina entre 2008 a 2014 1 DESENVOLVIMENTO Tratase de estudo descritivo retrospectivo com dados secundários notificados de violência contra mulheres idosas obtidos através do SINAN de Santa Catarina região sul do Brasil Composto por 295 municípios com população estimada de 6910553 habitantes para o ano de 2016 considerado um dos Estados brasileiros com melhor qualidade de vida e menor índice de desigualdade apresentando um dos melhores índices de IDH 0800 e maior expectativa de vida 787 anos para 2015 IBGE 2015 O SINAN foi desenvolvido no início da década de 90 com objetivo de fornecer informações para análise do perfil da morbidade em todo território nacional contribuindo para tomadas de decisões em níveis municipais estaduais e federal BRASIL 2016 É de preenchimento obrigatório nos serviços de saúde e demais fontes notificadoras e para fins de notificação no SINAN a violência é considerada como o uso intencional da força física ou do poder real ou em ameaça contra si próprio contra outra pessoa ou contra um grupo ou uma comunidade que resulte ou tenha possibilidade de resultar em lesão morte dano psicológico deficiência de desenvolvimento ou privação BRASIL 2016 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 464 Este estudo utilizou dados das notificações de violência contra mulheres de 60 anos ou mais residentes em Santa Catarina disponibilizados pela Secretaria de Estado da Saúde de Santa Catarina Diretoria de Vigilância Epidemiológica Setor de Sistemas de Informação Foram incluídas as notificações de violência contra mulheres a partir de 60 anos ou mais referentes ao período de 2008 a 2014 As variáveis utilizadas foram estabelecidas conforme a ficha de notificação do SINAN Estas consistiram em a características sociodemográficas das idosas escolaridade em anos de estudos 0 a 4 5 a 8 9 a 11 12 ou mais cor da pele autorreferidaetnia branca preta amarelaindígena as duas categorias foram unidas por apresentarem poucos casos notificados parda situação conjugal solteira casadaunião estável viúvaseparada b características da ocorrência tipos de violência sexual física psicológica tortura financeira e negligência meio de agressão força corporalespancamento ameaça objeto perfurocortante arma de fogo enforcamento envenenamento substânciaobjeto quente outros polivitimização um tipo dois tipos ou mais local da ocorrência residência residência ou habitação coletiva outros via pública e outros turno da ocorrência noitemadrugada 1800 as 2359h 0000 às 0559h manhãtarde 600 às 1159h 1200 às 1759h violência de repetição evento notificado ocorreu outras vezes sim não óbito por violência sim não Quanto às características do provável autor da agressão sexo masculino feminino ambos número de envolvidos um dois ou mais vínculograu de parentesco com a vítima parceiro íntimo cônjuge excônjuge namorado exnamorado relação familiar pai mãe padrasto filho irmão cunhado sogro cuidador secretária empregada doméstica cuidador a de Instituição de Longa Permanência para Idosos outros conhecido conhecidoamigo desconhecido suspeita de uso de álcool sim não Analisaramse as características das idosas estratificadas por faixa etária 60 a 74 anos e 75 anos ou mais da violência notificada e do provável autor da agressão e por meio da estatística descritiva foram calculadas as frequências absolutas e relativas com seus respectivos intervalos de 95 de confiança IC95 O teste quiquadrado e teste exato de Fisher foram aplicados para comparação entre as variáveis com nível de significância a 5 Utilizouse o programa estatístico Stata versão 140 para realização das análises 11 Resultados Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 465 Foram analisadas 1077 notificações de violência contra mulheres idosas inseridas no Sistema de Informação de Agravos de Notificação SINAN por profissionais de saúde entre os anos de 2008 a 2014 no estado de Santa Catarina Brasil A média de idade das mulheres foi de 71 anos DP878 IC95 a maioria relatou cor de pele branca 894 IC95 e ter até 4 anos de estudos 711 IC95 sendo a baixa escolaridade mais frequente entre idosas com 75 anos ou mais 827 IC95 Quanto à situação conjugal 46 IC95 das mais jovens 6074 anos eram casadasunião estável enquanto 688 IC95 das mais longevas 75 anos ou mais eram viúvas ou separadas p 0001 Informações detalhadas sobre as características sociodemográficas encontramse na Tabela 1 Tabela 1 Características sociodemográficas das notificações de violência contra mulheres idosas Santa Catarina 20082014 Características Total 6074 anos 75 anos ou mais N N IC 95 n IC95 Valor de p Escolaridade anos 0001 04 593 711 378 659 597 675 215 827 324 402 58 174 209 136 237 713 837 38 146 162 286 911 53 64 47 82 768 948 6 23 51 231 12 ou 14 17 13 23 610 990 1 04 09 389 Cor de peleetnia 0079 Branca 939 894 641 908 652 711 298 866 288 347 Preta 40 38 20 28 347 652 20 58 347 652 Amarelaindígena 9 09 5 07 236 834 4 12 135 763 Parda 62 59 40 57 518 754 22 64 245 481 Situação conjugal 0001 Solteira 85 86 60 89 600 793 25 79 206 399 Casadaunião estável 383 387 309 460 764 843 74 233 156 235 Viúvaseparada 521 527 303 451 538 623 218 688 376 461 Fonte SINANSESSC Valor de p do teste quiquadrado Valor de p do teste exato de Fisher os totais divergem devidos a dados faltantes ignorados e brancos Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 466 A tabela 2 descreve as características da violência sofrida pelas mulheres idosas A violência física foi o tipo mais prevalente 436 IC95 seguida da psicológica 265 IC95 e negligência 173 IC 95 É necessário destacar a diferença quanto ao tipo de violência sofrida segundo faixa etária Entre as idosas mais jovens a violência física foi responsável por mais da metade das agressões 505 IC95 seguida pela psicológica 280 IC95 e negligência 102 IC95 Enquanto entre as mais longevas a negligência 302 IC95 apresentou proporção semelhante à violência física 311 IC95 seguida pela psicológica 238IC 95 A força corporal representou o meio mais frequente 450 IC95 de agressões contra essas mulheres independente da faixa etária Destacase que entre as mais jovens os principais meios de agressão foram ameaças n182 220 IC95 envenenamento n49 59 IC95 uso de objetos perfurocortante n46 56 IC95 enforcamento n37 45 IC95 além de 14 casos 19 IC95 de agressão por meio de armas de fogo Dentre as idosas com 75 anos ou mais predominaram as ameaças n65 196 IC95 uso de objetos perfurocortante n14 42 IC95 envenenamento n9 27 IC95 enforcamento n7 21 IC95 e um caso 03 IC95 de uso de arma de fogo Chamase atenção para a ocorrência de polivitimização 388 IC95 e violência de repetição 569 IC95 registrada sendo que estas foram mais frequentes entre as mulheres com 75 anos ou mais As agressões ocorreram em maioria na residência das idosas 914 IC95 e no período da manhãtarde 579 IC95 Quanto ao desfecho da violência dados alarmantes mostram 41 óbitos decorrentes das agressões sendo 33 deles entre as idosas mais jovens Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 467 Tabela 2 Características da violência notificadas contra mulheres idosas Santa Catarina 20082014 Características Total 6074 anos 75 anos ou mais N N IC95 N IC95 Valor de p Tipos de violência Sexual 42 27 30 30 2959 12 21 1960 0566 Física 687 436 512 505 673740 175 311 450555 0001 Psicológica 418 265 284 280 359430 134 238 334436 0742 Tortura 46 29 31 31 3061 15 27 2670 0989 Financeira 110 70 54 53 5897 56 100 126205 0001 Negligência 273 173 103 102 120172 170 302 441547 0001 Meio de agressão Força corporal 522 450 389 470 511584 133 401 340444 0001 Ameaça 247 213 182 220 227291 65 196 153237 0018 Objeto perfurocortante 60 52 46 56 4986 14 42 2468 0119 Arma de fogo 15 13 14 19 1133 1 03 00420 0047 Enforcamento 44 38 37 45 3871 7 21 0942 0017 Envenenamento 58 50 49 59 5290 9 27 1350 0005 Sustânciaobjeto quente 9 08 5 06 0216 4 12 0431 0483 Outros meios 205 177 106 128 127181 99 298 247344 0001 Polivitimização 0235 Um tipo 622 612 427 624 587659 195 586 531637 Dois tipos ou mais 395 388 257 376 340412 138 414 362468 Local de ocorrência 0498 Residência 965 914 645 910 886928 320 922 888946 Outros 91 86 64 90 71113 27 78 53111 Turno da ocorrência 0005 Noitemadrugada 267 421 208 455 409501 59 333 267406 Manhãtarde 367 579 249 545 498590 118 667 593732 Violência de repetição 0014 Sim 520 569 342 542 502580 178 629 570683 Não 394 431 289 458 419497 105 371 316429 Óbito por violência 0100 Sim 41 43 33 50 3670 8 27 1353 Não 909 957 621 950 929963 288 973 946986 Fonte SINANSESSC Valor de p do teste quiquadrado Valor de p do teste de fisher Turno de ocorrência Manhã 600 as 1159 H Tarde 1200 as 1759 H Noite 1800 as 2359 H Madrugada 0000 as 0559 H Incluídos residência e residência coletiva os totais divergem devido a dados faltantes ignorados e brancos Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 468 As características do provável autor da agressão estão descritas na tabela 3 Dentre as idosas mais jovens os homens se destacam como prováveis autores de agressão 516 IC95 com destaque para familiares 395 IC95 e parceiros íntimos 341 IC95 Nas mais longevas a violência perpetrada por mulheres 368 IC95 316421 e homens 393 IC95 340447 é equivalente predominando os familiares 663 IC95 e os cuidadores 101 IC95 Não houve suspeita do uso de álcool para a maioria 701 IC95 dos autores de agressão Tabela 3 Tabela 3 Características do provável autor da agressão contra mulheres idosas Santa Catarina 2008 2014 Características Total 6074 anos 75 anos ou mais N n IC 95 N IC 95 Valor de p Sexo do agressor 0001 Masculino 517 516 391 574 536 610 126 393 340 447 Feminino 357 356 239 351 315 387 118 368 316 421 Ambos 128 128 51 75 5797 77 240 196 289 Número de agressores 0001 Um 736 718 555 797 765 825 181 550 495 603 Dois ou 289 282 141 203 174 234 148 450 396 504 Vínculo agressormulher Parceiro íntimo 189 257 163 341 207 271 26 101 53112 0001 Relação Familiar 360 489 189 395 243 310 171 663 456 563 0001 Cuidador 46 63 12 25 0930 34 132 73138 0001 Conhecido 68 92 59 123 66108 9 35 1350 0001 Desconhecido 73 99 55 115 61102 18 70 3484 0132 Suspeita do uso de álcool 0001 Sim 253 299 193 335 297 374 60 222 176 275 Não 593 701 383 665 625 702 210 778 724 823 Fonte SINANSESSC Valor de p do teste quiquadrado os totais divergem devidos a dados faltantes ignorados e brancos Vínculograu de parentesco do provável agressor Parceiro íntimo cônjuge excônjuge namorado a exnamorado a Relação Familiar pai mãe padrasto a filhoa irmão a cunhado a sogro a Cuidador babá secretária empregada doméstica cuidadora de Instituição de Longa Permanência para idosos ILPI outros Conhecido conhecidoamigo Desconhecido desconhecido Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 469 2 DISCUSSÃO Este estudo é inédito ao apresentar análises acerca dos casos de violência contra mulheres idosas notificadas por profissionais de saúde em Santa Catarina Destacamse como principais achados as diferentes características da violência identificada segundo faixa etária Dentre as idosas mais jovens 6074 anos predominaram mulheres casadas com companheiro que sofreram agressões perpetradas por parceiros íntimos ou familiares do sexo masculino ocorridas nas residências A tipologia mais frequente foi a violência física seguida pela psicológica sendo que em 33 casos a agressão resultou em morte Entre aquelas com 75 anos ou mais a maioria não possuia parceiro predominando as agressões cometidas por familiares e cuidadores no âmbito doméstico tanto do sexo masculino como feminino com destaque para a violência física e negligência Constatouse no presente estudo que as idosas em situação de violência apresentaram idade média de 71 anos DP878 e cor de pele branca 894 o que se relaciona à composição étnica de Santa Catarina onde 84 da população se autodeclara branca com elevada expectativa de vida entre as mulheres 821 anos IBGE 2015 Dados semelhantes foram encontrados em outros estados brasileiros MIZIARA et al 2015 MASCARENHAS et al 2010 As notificações de violência contra as idosas evidenciaram a violência física psicológica e negligência como as mais frequentes dados semelhantes são encontrados na literatura internacional MORA GARCÍA 2014 CARMONATORRES et al 2017 Dentre os meios de agressão o uso da força corporal ameaças objeto perfurocortante enforcamento e envenenamento foram os principais apontando atos de crueldade principalmente por serem familiares e parceiros os principais agressores A violência contra as mulheres idosas é muito preocupante e a gravidade das agressões cometidas contra elas é aterrorizante Urge por maior visibilidade necessitando de medidas preventivas e de proteção às idosas com intuito de assegurar um envelhecimento digno e saudável Verificouse que a violência contra mulheres mais jovens 6074 anos é predominantemente praticada por parceiros íntimos e familiares do sexo masculino ocorrida nas residências Este cenário remete a um continuum da violência doméstica Estudos mostram que cerca de 30 das mulheres sofreram violência por parceiros íntimos desde a vida adulta KRUG 2002 com impactos negativos sobre as condições de vida e saúde ao longo das gerações explicitando que os danos da violência sobre quem a vivencia são intergeracionais ROEPKEBUEHLER et al 2015 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 470 As mulheres em situação de violência são mais suscetíveis a permanecerem socialmente isoladas afastadas de amigos e familiares mantendose restritas ao ambiente doméstico e ao convívio com o autor das agressões DONG et al 2014 Segundo a OMS 2002 as consequências da VPI são profundas impactando na saúde e bem estar dos envolvidos estendendose e afetando o bemestar de famílias e até comunidades inteiras Nas idosas com 75 anos ou mais as agressões foram cometidas em maioria 795 por familiares 663 ou cuidadores 132 no âmbito doméstico com destaque para violência física 311 e negligência 302 sendo que em mais da metade dos casos 629 as agressões foram repetidas Tais fatos podem ser atribuídos aos conflitos geracionais que fragilizam as relações afetivas entre pessoas do convívio domiciliar e reforçam a perpetuação da violência familiar Ressaltase que a reincidência da violência aumenta de acordo com o grau de depedência da mulher intensificandose com a idade PARAÍBA MAIA 2015 BOLSONO 2017 Em relação aos autores de agressão das mulheres com 75 anos ou mais estudos corroboram que familiares e cuidadores são os principais perpetradores de violência contra o idoso ABDEL GAAFARY 2012 BOLSONI 2017 Embora esperase que a família seja um núcleo de segurança e proteção ressaltase que muitas tendem a ser violentas por estarem despreparadas para compreender administrar e tolerar seus conflitos inclusive aqueles relativos às incapacidades decorrentes do envelhecimento CAMACHO ALVES 2015 Laços de afeto situações de dependência medo de isolamento institucional são alguns fatores que contribuem para que os maus tratos permaneçam velados Portanto é preciso que profissionais de saúde e instituições estejam preparados para reconhecer e oferecer suporte aos envolvidos seja na condição de vítima ou de agressor enquanto estratégia de prevenção e enfrentamento da violência BOLSONI 2017 É importante destacar que de acordo as notificações a maioria 701 dos agressores não haviam consumido substâncias alcoólicas para efetivar as agressões o que pode revelar uma faceta bastante preocupante da violência que é praticada sem subterfúgios o que a torna ainda mais grave GARBIN et al 2016 Cabe destacar que 41 mulheres morreram em decorrência da violência sofrida sendo 33 obitos entre as mais jovens 6074 anos as quais foram predominantemente agredidas pelos parceiros Tratase portanto de casos de feminicídio sendo este o assassinato de mulheres pela condição de ser mulher BRASIL 2015 Em geral são crimes motivados pelo odio e desprezo Estas mortes não se tratam de casos isolados repentinos ou inesperados mas sim fazem parte de um processo contínuo de violências desde verbais físicas e sexuais que antecedem o obito Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 471 Os registros nacionais corroboram o resultado deste estudo mostrando que ocorrem 13 mortes violentas de mulheres por dia sendo o cenário mais comum os crimes cometidos por parceiro íntimo em contexto de violência doméstica WAISELFISZ 2015 Além das mortes notificadas como desfecho da violência contra idosas ressaltase que a violência impacta também sobre a mortalidade de forma indireta DORNELLES 2003 Por serem fisicamente mais frágeis e vulneráveis as consequências da violência podem ser mais sérias causando agravos como transtornos de estresse pos traumático alta frequência de disturbios de memoria sono e problemas de concentração comportamento agressivo e ideação suicida contribuindo para uma taxa de mortalidade elevada em comparação aos idosos que não sofreram abusos DÍAZ LÓPEZ LLERENA ÁLVAREZ 2010 DONG et al2014 Para romper com o silenciamento da violência fazse necessário à disseminação da informação sobre a problemática implementação das delegacias da mulher em todos os municípios fiscalização bem como a participação de toda a sociedade na identificação e reconhecimento dos casos Denunciar toda e qualquer situação de violência é um dever de todos especialmente contra as mulheres e idosos por constituirem grupos em maior vulnerabilidade ESTATUTO DO IDOSO 2003 A utilização de dados de notificação apresenta algumas limitações Há inconsistências resultantes de preenchimento inadequado da ficha campos em branco ou com informações ignoradas que comprometem a qualidade dos registros Ainda devese considerar a subnotificação existente devido às dificuldades e falta de sensibilização dos profissionais de saúde para o reconhecimento e atendimento das situações de violência o que não invalida as informações encontradas porém exige cautela na sua interpretação DELZIOVO et al 2018 CONSIDERAÇÕES FINAIS Ressaltase a relevância das informações deste trabalho sobre a violência sofrida por mulheres idosas com base nas notificações de abrangência estadual permitindo o reconhecimento das características das mulheres desta faixa etária em situação de violência das agressões sofridas e o perfil do suposto autor das agressões É importante destacar a estratificação por faixa etária como um diferencial deste estudo permitindo caracterizar as especificidades da violência nas idosas de 6074 anos e de 75 anos ou mais REFERÊNCIAS ABDEL RAHMAN Tomader T EL GAAFARY Maha M Elder mistreatment in a rural area in Egypt Geriatrics gerontology international v 12 n 3 p 532537 2012 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 472 Disponível em httpsonlinelibrarywileycomdoiabs101111j14470594201100780x Atualizado em 12 ago 2019 ACIERNO Ron et al Prevalence and correlates of emotional physical sexual and financial abuse and potential neglect in the United States The National Elder Mistreatment Study American journal 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dimensions of depression and elder abuse A cross sectional populationbased analysis of older adults in urban Chicago Journal of aging and health v 27 n 6 p 10031025 2015 Disponível em httpsjournalssagepubcomdoiabs1011770898264315571106 Atualizado em 12 ago2019 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da Violência 2015Homicídio de mulheres no Brasil 2015 Brasília Secretaria de Políticas para as Mulheres ONU Mulheres Organização PanAmericana da SaúdeOrganização Mundial da Saúde 2015 WARMLING D Violência por parceiro íntimo e qualidade de vida em idosos residentes em Florianópolis Santa Catarina Estudo de base populacional 2018 Disponível em httpsrepositorioufscbrhandle123456789198859 Atualizado em 12 ago 2019 WORLD HEALTH ORGANIZATION Global athas on cardiovascular disease prevention and control 2011 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 476 PREVENÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER IDOSA UMA PESQUISA AÇÃO ESTRATÉGICA Vanessa Martinhago Borges Fernandes1 Jeanine Dewes de Oliveira 2 Tainá Malinski 3 Anna Quialheiro Abreu da Silva4 RESUMO Ao observar o acelerado processo do envelhecimento da população a violência às pessoas da terceira idade propendese a manifestarse cada vez mais sendo inclusive considerado um sério problema de saúde pública A violência contra a mulher idosa não resulta no óbito em todos os casos porém devido ao impacto que causa à saúde reflete diretamente sob o perfil de morbidade da população Objetivo mobilizar idosas de um grupo para a prevenção da violência contra a mulher na terceira idade Método Este artigo é produto do Trabalho de Conclusão de Curso da Graduação de Enfermagem Teve abordagem qualitativa tipo pesquisaação estratégica realizado através de um grupo focal com 7 idosas captadas do projeto Oficina da Lembrança num total de 06 encontros com perguntas norteadoras disparadoras seguidas de construção de plano de ações pelas participantes no período de maio a outubro de 2018 Resultados Através da análise de discurso dos dados coletados delineouse quatro categorias tipos de violência vivenciadas presenciadas ou constatadas suscetibilidade dos idosos à violência circunstâncias favoráveis à violência e fragilidades dos idosos formas de prevençãocombate como evitar combater quem são os envolvidos e qual a gratificação e construção do plano de ação com 11 ações Considerações finais O estudo evidenciou a necessidade de ações que empoderem os idosos frente à problemática para que enfrentem os obstáculos decorrentes no dia a dia também que toda sociedade se envolva no combate à violência e que as equipes de saúde estejam capacitadas para identificar as ocorrências e agir para contêlas Palavraschave Violência Saúde Idosa INTRODUÇÃO Segundo a Organização Mundial de Saúde 2015 o aumento na expectativa de vida aliado às quedas evidentes de natalidade está levando a um rápido envelhecimento da 1 Enfermeira Doutoranda em Enfermagem pelo Programa de PósGraduação de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Docente do Curso de Enfermagem da Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL vambfernandesgmailcom Lattes httplattescnpqbr9959129544327104 2 Enfermeira Graduada pela Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL dewesjeaninegmailcom Lattes httplattescnpqbr6330046958774518 3 Enfermeira Graduada pela Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL tainamalinskihotmailcom Lattes httplattescnpqbr1625912738119636 4 Fisioterapeuta Doutoranda em Saúde Pública pelo Programa de PósGraduação em Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Docente do Curso de Fisioterapia da Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL annasilvaunisulbr Lattes httplattescnpqbr4874881297354282 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 477 população mundial Através das conquistas obtidas pela sociedade e do avanço de novas tecnologias o envelhecimento da população tende a ocupar uma posição destacada dentre os acontecimentos preditos para o século XXI CHAIMOWICZ 2013 Ao observar o acelerado processo do envelhecimento da população a violência às pessoas da terceira idade propendese a manifestarse cada vez mais sendo inclusive considerado um sério problema de saúde pública WINCK 2016 O Estatuto do Idoso considera violência qualquer ação que provoque óbito dano ou sofrimento seja ele físico ou psicológico BRASIL 2013 Segundo o Ministério da Saúde a violência é designada como um evento intencional e inclui abandono agressão violência psicológica violência sexual e negligência BRASIL 2015 De acordo com a Política Nacional de Redução da Morbimortalidade por Acidentes e Violências entendese por abandono a ausência ou renúncia dos cuidados necessários à vítima por parte do responsável o qual deveria dispor de proteção e zelo O abuso ou agressões físicas caracterizamse pela utilização de uma força física capaz de causar um dano O abuso psicológico por agressões verbais ou por gestos cujo objetivo é amedrontar humilhar e rejeitar A violência ou abuso sexual por atitudes que tem como pretensão estimular ou utilizar a vítima para práticas sexuais ou ato libidinoso seja através de ameaças suborno sedução ou violência física E a negligência relacionada à recusa de cuidados do responsável pela vítima BRASIL 2003a Foram registradas pelo Centro de Denúncias dos Direitos Humanos Disque 100 62563 denúncias de violência ao idoso sendo que a maior parcela de denúncias foi por negligência principalmente pelos seus familiares no qual o principal suspeito da violência foi o próprio filho representando 54 das denúncias as quais acontecem geralmente dentro da casa do idoso com um índice de 86 e na maior parte das vezes em mulheres A grande maioria das ocorrências de violência na terceira idade estão presentes na faixa etária entre 71 a 80 anos com 33 das vítimas sendo justificado principalmente pela vulnerabilidade do idoso BRASIL 2016 Diante do crescimento da população e com a finalidade de proteger a pessoa idosa inicialmente foi promulgada em 1994 a Lei nº 884294 responsável pela criação da Política Nacional do Idoso MOREIRA et al 2016a Por outro lado tal política não refere menções à violência muito provavelmente por se tratar de um documento da década anterior citando apenas sobre a assistência préhospitalar o que mais se aproxima acerca do tema da violência SOUZA MINAYO 2010 Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 478 Somente no século XXI o Estatuto do Idoso Lei nº 20741 de 1º de outubro de 2003 foi sancionado com o intuito de proteger a pessoa idosa garantindolhe proteção à vida e a saúde permitindo que o idoso desfrute de um envelhecimento saudável e digno BRASIL 2003b Em estudo sobre mulheres idosas vítimas de violência evidenciouse que o tipo de violência que elas mais sofrem se faz dentro dos próprios lares e que as equipes de saúde não estão instrumentalizadas para combater este tipo de situação com necessidade de desenvolver serviços que assistam estas mulheres e contemplem suas necessidades reais DAMACENO et al 2018 Apesar dos avanços obtidos através das políticas públicas voltadas ao enfrentamento da violência contra a pessoa idosa a população ainda se encontra aquém do ideal relativo à prevenção nesta temática Sendo assim este estudo buscou desenvolver de maneira eficiente uma sensibilização da própria população da terceira idade para tal fato em especial das mulheres idosas as quais são as maiores vítimas de violência neste período do ciclo de vida proporcionando um entendimento das medidas preventivas relacionadas ao tema para que assim seja propiciado um envelhecimento digno e saudável A partir desses propostos o estudo objetivou mobilizar idosas de um grupo para a prevenção da violência contra a mulher na terceira idade 1 MÉTODO Este artigo é produto do Trabalho de Conclusão de Curso da Graduação de Enfermagem apresentado e aprovado pela banca avaliadora em dezembro de 2018 Estudo de abordagem qualitativa do tipo pesquisaação estratégica desenvolvido com idosas da comunidade participantes da Oficina da Lembrança em sala adequada para realização da técnica na Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL Unidade Pedra Branca no município de Palhoça Santa Catarina O período de coleta de dados foi de maio a outubro de 2018 através de um grupo focal com encontros realizados 30 minutos antes do grupo Oficina da Lembrança o qual tem por objetivo promover a estimulação cognitiva dos idosos usando a inclusão digital com o estímulo preventivo à demência Ocorreram 06 encontros conforme roteiro préestabelecido com perguntas norteadoras que dispararam as discussões seguidas de construção de um plano de ações baseado na análise de dados e validação do plano pelos participantes Participaram da pesquisa 7 idosas sendo utilizados como critérios de inclusão idosas veteranas no projeto com idade igual ou superior a 60 anos moradoras do município de Palhoça Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 479 SC que puderam deslocarse à Universidade algum tempo antes da Oficina para o estudo do grupo focal sendo excluídas as participantes que possuíam qualquer tipo de parentesco no grupo e idosas que referiram mais de dez sintomas depressivos através do instrumento GDS Geriatric Depression Scale A análise dos dados coletados se deu por análise de discurso através das transcrições das gravações e dos registros em diários de campo feitos pelas pesquisadoras As idosas foram identificadas através de codinomes de flores escolhidos pelas próprias participantes Ao final a análise resultou em um plano de ação conforme objetivo da pesquisaação estratégica O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade do Sul de Santa Catarina com parecer consubstanciado CAAE 813906175000005369 e respeitou os aspectos éticos da resolução n 4662012 BRASIL 2012 2 RESULTADOS O grupo focal foi constituído por 07 idosas todas do sexo feminino com faixa etária média de 7014 anos de idade onde somente 06 delas aceitaram responder às questões sociodemográficas Referente a escolaridade 04 possuíam 1º grau incompleto e 02 não tinham instrução Quanto ao estado civil 03 eram viúvas 02 divorciadas e 01 casada A média de filhos foi de 433 e de netos 616 Relativo a moradia 03 moravam sozinhas 02 moravam com os filhos e 01 morava com o marido Quanto a renda 05 eram aposentadas e somente 01 era sustentada pelo filho Em relação à participação em outras atividades 04 delas participavam das atividades da igreja e 01 participava de ginástica em grupo A análise dos dados obtidos durante os encontros do Grupo Focal resultou no delineamento de 04 percepçõescategóricas tipos de violência suscetibilidade dos idosos à violência formas de prevençãocombate à violência plano de ação 21 Tipos de violências Esta categoria originou duas subcategorias tipos de violências vivenciadaspresenciadas pelas idosas e tipos de violências constatadas pelas idosas 211 Tipos de violências vivenciadaspresenciadas pelas idosas A partir da pergunta norteadora do primeiro encontro Qual o significado da violência contra o idoso e de que forma podese presenciála no cotidiano as participantes puderam expor suas vivências e conhecimentos referente ao tema Dentre os diversos tipos de violências existentes as idosas citaram a violência verbal e psicológica o abandono a falta de amor o Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 480 menosprezo de sofrimento a violência financeira a violência física ameaças e negligência conforme relatos a seguir Eu já tenho essa idade e essa noite eu vi que um dos filhos já está pensando antes de eu pensar Eles não podem pensar antes de eu pensar Se eu to dentro de uma casa a casa é minha Eu acho que é uma violência que foi uma violência comigo Minha filha morou comigo um mês na segunda feira passada já deixou um papelzinho escrito Mãe me desculpe eu não venho mais ficar aqui tá Obrigada beijo Jasmim violência psicológica abandono Olha hoje eu tenho a fibromialgia tem dia que eu estou na cama assim acho que as pessoas têm preconceito e acho que preconceito é uma violência também em achar que a gente não tem nada Tu tá doente Tu não tens nada Quantas vezes eu escuto isso Vai trabalhar Isso machuca machuca porque quem sofre a dor é a gente Margarida menosprezo de sofrimento Às vezes so pega o dinheiro do idoso porque o idoso é aposentado e é só interesse no dinheiro Orquídea violência financeira Ela também estava me contando que tem outro asilo pra lá desse onde eu fui que pra lá os idosos também apanham Lírio violência física e ameaças 212 Tipos de violências constatadas pelas idosas No quarto encontro do grupo utilizouse a técnica projetiva onde foram expostas imagens de violência psicológica sexual física negligência e abandono e as idosas expressaram quais violências percebiam a partir de imagens apresentadas As violências mencionadas por elas foram abandononegligência violência psicológica e violência física conforme relatos a seguir Olha isso aí está bem abandonado no chão e sem roupa Rosa abandono negligência Ameaçando querendo bater Rosa violência psicologica Essa aí está querendo bater está com a mão lá em cima Violeta violência física 22 Suscetibilidade dos idosos à violência Esta categoria também apresentou duas subcategorias circunstâncias favoráveis à violência e fragilidades da terceira idade 221 Circunstâncias favoráveis à violência Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 481 Durante os encontros além dos tipos de violências discutiuse também sobre a vulnerabilidade do idoso perante à violência Nessa subcategoria as participantes afirmaram que os idosos são indefesos e frágeis conforme relatado nas falas a seguir O idoso é muito sem defesa Ela tinha Alzheimer mãe não conhecia mais a gente não sabia quem a gente era ela trocava o nome Não conhecia mais dinheiro dava qualquer dinheiro na mão da gente e a gente tinha que pegar e guardar ou dar pro pai guardar qualquer coisa Rosa idoso indefesofragilizado 322 Fragilidades da terceira idade A subcategoria fragilidades da terceira idade resultou de sentimentos expostos pelas idosas durante os encontros Conforme citado abaixo os sentimentos mencionados por elas foram impotência medo e tristeza Porque se alguém colocar uma arma na cabeça a gente não vai poder fazer nada vamos levantar as mãos e entregar tudo Rosa impotência Quando a gente está andando e caminhando está tudo bem Mas quando a gente fica num estado desse o que é que a gente vai fazer Acha que os filhos vão cuidar Eu tenho só 2 filhos Eu sei que por enquanto sempre me darão muito apoio mas não sei quando eu estiver pior É isso aí é triste a gente vê e a gente não sabe o que que a gente vai passar na vida também Violeta medo tristeza 23 Formas de prevençãocombate à violência A categoria Formas de prevençãocombate à violência resultou de quatro questões levantadas e expostas durante os encontros Como evitar Como combater Quem são os envolvidos Quais são as gratificações em se ter um bom cuidado com o idoso 231 Como evitar Como forma de prevenção as idosas sugeriram o telefonema a fiscalização e reuniões conforme a seguir Não mas a gente se previne Eu me previno assim telefono pra casa Begônia telefonema Deveria ter uma fiscalização uma assistente social Rosa fiscalização Deveria ter reuniões para as pessoas terem mais informação Jasmim reuniões 232 Como combater As idosas mencionaram tais maneiras de combate a violência realizar denúncias e envolver pessoas no combate Se ver tem que denunciar fazer qualquer coisa Rosa denuncia Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 482 Chama alguém que possa ir lá e ajudar não pode deixar passar se eu vejo tomo uma providência Begônia envolver pessoas no combate 233 Quem são os envolvidos As idosas citaram as pessoas que poderiam de alguma maneira auxiliar os idosos frente à temática como um cidadão comum ou profissionais de saúde Qualquer pessoa pode ajudar uma pessoa em perigo quando vê se precisa de alguma coisa e está sofrendo qualquer pessoa pode ajudar Margarida cidadão comum Agora que tive a perda do meu marido a agente de saude a enfermeira do posto e o médico foram uns anjos que caíram na minha vida Eles me confortaram me ajudaram de todos os jeitos que eles podiam Margarida profissionais de saude 234 Quais são as gratificações em se ter um bom cuidado com o idoso As participantes expuseram fatos de suas vidas sobre algumas formas de gratidão relacionados aos cuidados das pessoas com algum idoso de seu convívio Eu tenho uma prima que cuidou de uma senhora a vida inteira uma senhora idosa A senhora foi ficando sem família ficou sozinha no mundo e a minha prima cuidando dela Minha prima era casada deixava os filhos em casa e cuidava da mulher da senhora O ano passado a senhora morreu e deixou tudo pra ela tudo para minha prima Rosa herança 24 Plano de ação O quinto e o sexto encontro do grupo focal foram dedicados ao plano de ação e sua validação Ações como reuniões na comunidade identificação dos idosos pertencentes à comunidade obtenção de informações de moradia vínculo familiar dos idosos divulgação e esclarecimentos sobre o Disque 100 foram algumas das intervenções propostas pelas participantes para a elaboração do plano Após as sugestões propostas pelas participantes e análise dos discursos gerados pelas questões norteadoras dos encontros anteriores buscouse elencar as intervenções demonstradas a seguir As mesmas foram validadas pelas participantes no último encontro compondo as seguintes ações 1 Capacitar as Equipes de Saúde da Família para a correta orientação apoio e atendimento das necessidades familiares decorrentes do envelhecimento 2 Identificar as idosas pertencentes à comunidade 3 Identificar as necessidades básicas das idosas alimentação ventilação locomoção medicação e idosas em situação de dependência através das Agentes Comunitárias de Saúde 4 Realizar reuniões nas Unidade Básicas de Saúde entre profissionais de saúde e idosas Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 483 5 Agendar consulta e encaminhar para psicólogo em caso de suspeita de violência psicológica conforme a necessidade 6 Divulgar o disque 100 central de direitos humanos para todas as idosas da comunidade através de cartazes informativos e redes sociais 7 Divulgar o disque 180 central de atendimento à mulher para todas as idosas da comunidade como outra opção de denúncia para violência contra a mulher 8 Orientar as idosas quanto a realizar telefonemas para familiares ou amigos ao necessitar de ajuda 9 Qualificar a equipe prestadora de assistência aos idosos institucionalizados através de treinamentos 10 Fiscalizar através de um representante da assistência social municipal o atendimento e assistência à idosa em instituições de longa permanência 11 Realizar campanhas com toda a comunidade com o objetivo de alertar os próprios idosos familiares vizinhos e amigos sobre a necessidade de prevenção e combate à violência O plano de ações foi encaminhado para Secretaria Municipal de Saúde porém não foi executado pelas alunas 3 DISCUSSÃO DOS DADOS Os tipos de violência vivenciadas eou presenciadas pelas idosas tais como a violência psicológica física financeira abandono negligência e menosprezo constatadas neste estudo vêm de encontro ao que referem alguns autores quando mencionam que a violência psicológica física e roubo enquadrada em tal estudo como violência financeira são as formas prevalentes de violências causadas aos idosos SANTANA et al 2016 Em estudo realizado por Gil et al 2015a as condutas como bater eou agredir gritar ameaçar ignorar e roubar também foram reportadas pelas participantes Em consonância a outro estudo em boletins de ocorrências registrados relativos à violência contra o idoso podese observar menções de mais de um tipo de violência relacionada ao mesmo idoso RODRIGUES et al 2017 A violência por vezes é gerada pela suscetibilidade dos idosos tal qual as participantes desta pesquisa que relataram perceber indefensibilidade e fragilidade por parte dos idosos autores trazem dentre os fatores de risco à violência determinantes de saúde como a autopercepção do estado de saúde doenças crônicas capacidade funcional depressão e capacidade cognitiva GIL et al 2015b Evidenciando as sensibilidades expressadas pelas participantes sentimentos como medo insegurança impotência impossibilidade vergonha e Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 484 culpa pelo fracasso são alguns relatos trazidos por estudos relativos ao tema ROCHA et al 2015 Como forma de prevenção da violência contra os idosos quando questionadas sobre o assunto as participantes não conseguiram expressar muitas estratégias acerca do que poderia ser feito ou do que gostariam que fosse realizado para prevenir a violência Tal ocorrência pode estar atrelada ao fato de muitos idosos não possuírem conhecimento sobre seus direitos mediante o Estatuto do Idoso além de carecerem de acesso às ferramentas passíveis de auxílio como por exemplo uma delegacia ou até mesmo uma Unidade de Saúde MOREIRA et al 2016b Medidas educativas e que efetivem uma mobilização da sociedade em geral devem ser exercidas como forma de esclarecimentos dos direitos bem como o fortalecimento da construção de uma rede de proteção ao idoso YAMAGUCHI et al 2016 Tal qual também a carência de informação relativo ao combate à violência apontando apenas duas formas de combate Segundo Garbin 2015 o Brasil é portador de vários instrumentos jurídicos que amparam vítimas de violência tendo o poder público um importante papel como zelador dos direitos da população inclusive os idosos no sentido de garantir os seus cumprimentos assim como os serviços de saúde que são porta de entrada para o atendimento do idoso no que diz respeito à Atenção à Saúde possuindo a obrigação de acolher e dar apoio às vítimas de violência como forma de combate Um estudo referente aos envolvidos no combate à violência em conformidade à menção de uma das participantes a qual relatou importante atuação dos profissionais da Unidade Básica de Saúde em um momento delicado de sua vida realça a magnitude da presença dos profissionais de saúde principalmente da Atenção Básica no cotidiano da população Conforme pesquisa realizada por Rocha et al 2015 os casos de pessoas idosas violentadas identificados pelos profissionais da Estratégia de Saúde da Família exigiram destes a elaboração de estratégias como visitas domiciliares diálogos e encaminhamentos como forma de enfrentamento e resolução do problema Em contrapartida destacase a necessidade e importância de capacitação específica à tais profissionais que ainda se encontram aquém no que se refere à temática para que estejam aptos a prestar auxílio ao idoso vitimado ou suscetível a tal ALENCAR et al 2014 Além disso Minayo et al 2015 evidencia que Centros Integrados de Atenção e Prevenção à Violência contra a Pessoa Idosa CIAPVI vêm sendo implantados e implementados em diversas regiões do Brasil tendo como um dos objetivos a sensibilização e conscientização de toda a população para com o assunto Por outro lado as idosas também revelaram que um bom cuidado para com o idoso pode ser gratificante emergindo reflexões vinculadas aos sentimentos das mesmas na amplitude do Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 485 quesito envelhecer As falas evidenciam relatos de recompensas acerca do carinho e amor propiciado aos idosos e por vezes até retribuição de forma financeira Em consonância Souza 2014 revela que cuidadores de idosos que trabalhavam em uma Instituição de Longa Permanência reconhecem a importância do idoso para a sociedade de tal forma que eles reconhecem à atenção recebida relatando que do mesmo modo que transmitem carinho recebemno de volta Consequentemente quando o cuidador se sente gratificado ele retorna a cuidar na busca de novo reconhecimento construindo assim um elo entre cuidador e o idoso Ademais evidenciase que o processo do cuidar ocasiona sentimentos de realização aos cuidadores em geral que mesmo passíveis de grande carga de estresse enfatizam que o cuidado se permeia por sentimentos de satisfação gratificação e bemestar LABEGALINI et al 2016 A partir dos aspectos levantados durante os encontros do grupo focal com o objetivo de mobilizar os idosos e prevenir os maustratos que acometem toda a população idosa compôs se o Plano de Ação segundo proposta do referencial metodológico de pesquisaação estratégica Em conformidade à proposta do estudo no dia 03 de abril de 2018 foi estabelecido o Decreto nº 9328 instituindo aEstratégia Brasil Amigo da Pessoa Idosa tendo com o objetivo a busca pelo envelhecimento ativo saudável cidadão e sustentável para toda a população BRASIL 2018 A pretensão pelo dito envelhecimento ativo e saudável pode ser associado constantemente à luta pela extinção da violência fazendose necessário a implementação e atualização de estratégias para prevenção e combate de tal circunstância Apesar do estudo apresentar algumas limitações em relação ao número de participantes devido a metodologia de grupo focal exigência de não aceitarse novos membros ao longo dos encontros e haver desistências por motivos pessoais os resultados foram confirmados pela literatura em sua maior parte trazendo à tona a importância do debate envolvimento da população e ação por parte dos profissionais de saúde governo e sociedade CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo que objetivou mobilizar idosas de um grupo para a prevenção da violência contra a mulher na terceira idade evidenciou primeiramente o que as idosas entendem percebem vivenciam ou presenciam sobre a violência na sua faixa etária oportunizando assim reflexões acerca da temática São inúmeros os tipos de violência que acometem a pessoa idosa dentre eles alguns foram vivenciados pelas mulheres e outros foram presenciados no entanto houveram tipos de violências que poderiam ser identificados e discutidos Contudo a violência psicológica foi a que mais se evidenciou quando consideramos que todos os tipos de violência mencionados Coleção Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres à luz da multidisciplinariedade V 2 486 Esta mobilização realizada através do grupo focal e por conseguinte a construção do plano de ação originou uma proposta composta por algumas intervenções sugeridas pelo grupo além de mediações de estratégias pelas pesquisadoras embasadas na avaliação e análise ao longo dos encontros Sendo assim se faz necessário ações que empoderem os idosos frente a problemática para que enfrentem os obstáculos decorrentes no diaadia também que toda sociedade se envolva no combate à violência e que as equipes de saúde estejam capacitadas para identificar as ocorrências e agir para contêlas Com isso esperase que a proposta seja empreendida favorecendo a transmissão de todas ações elaboradas mobilizando assim toda a comunidade para a prevenção e combate contra à violência ao idoso Sugerese que as idosas participantes da pesquisa realizem uma devolutiva às suas colegas da Oficina da Lembrança como forma de iniciarem o empoderamento dos idosos tornandose assim multiplicadoras das ações desenvolvidas Assim como a Secretaria Municipal de Saúde tomar conhecimento deste Plano de ações e posteriormente implementar junto aos seus profissionais de saúde no município em questão REFERÊNCIAS ALENCAR Kelly Cristina de Albuquerque et al Vivência de Situação de Violência Contra Idosos Revista de Enfermagem e Atenção à Saúde São Paulo v 1 n 3 p7384 2014 Disponível em httpseeruftmedubrrevistaeletronicaindexphpenferarticleviewFile932664 Acesso em 05 nov 2018 BRASIL Ministério da Saúde Secretaria de Assistência à Saúde Ed Política nacional de redução da morbimortalidade por acidentes violências Portaria MSGM nº 737 de 16501 publicada no DOU nº 96 seção 1E de 18501 Brasília MS 2003a 62 p Disponível em httpbvsmssaudegovbrbvspublicacoespoliticanacionalreducaomorbimortalidadepdf Acesso em 20 set 2018 BRASIL Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde Ed Estatuto do Idoso 3 ed Brasília MS 2013 71 p Disponível em httpbvsmssaudegovbrbvspublicacoesestatutoidoso3edicaopdf Acesso em 20 set 2018 BRASIL Dispõe sobre o Estatuto do Idoso e dá outras providências Lei nº 10741 de 1º de Outubro de 2003 Brasília 01 out 2003b Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03leis2003L10741htm Acesso em 20 set 2018 BRASIL Institui a Estratégia 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2018 YAMAGUCHI Blaís Ciribelli et al Violência velada Estratégia de conscientização e combate da violência contra o idoso em Governador Valadares Minas Gerais Journal of Management and Primary Health Care Minas Gerais v 7 n 1 p3838 2016 Disponível em httpwwwjmphccombrjmphcarticleview364Violencia20velada Acesso em 26 out 2018 C R É D I T O S ORGANIZADORAS GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS POLIANA RIBEIRO DOS SANTOS SALETE SILVA SOMMARIVA MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGLL CAPA ATHENA DE OLIVEIRA NOGUEIRA BASTOS ILUSTRAÇÃO DA CAPA BRUNA VETTORI PROJETO EDITORIAL E DESENVOLVIMENTO POLIANA RIBEIRO DOS SANTOS