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GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS POLIANA RIBEIRO DOS SANTOS SALETE SILVA SOMMARIVA MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGLL O R G A N I Z A D O R A S Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V O L U M E 4 I S B N o b r a 9 7 8 8 5 6 6 1 4 9 4 2 5 I S B N c o l e ç ã o 9 7 8 8 5 6 6 1 4 9 3 8 8 COLEÇÃO ORGANIZADORAS Grazielly Alessandra Baggenstoss Poliana Ribeiro dos Santos Salete Silva Sommariva Michelle de Souza Gomes Hugill Coleção NÃO HÁ LUGAR SEGURO Estudos e Práticas sobre Violências Contra as Mulheres nas Perspectivas dos Direitos Sexuais e Reprodutivos Volume 4 Edição Eletrônica Florianópolis 2019 Copyright 2019 by Editora Centro de Estudos Jurídicos CEJUR Diagramação Poliana Ribeiro dos Santos Capa Athena de Oliveira Nogueira Bastos Categoria Produção Editorial Editora Centro de Estudos Jurídicos CEJUR O conteúdo deste livro é de responsabilidade dos autores e não expressa posição técnica ou institucional do Poder Judiciário de Santa Catarina das Organizadoras e da Universidade Federal de Santa Catarina CONSELHO TÉCNICOCIENTÍFICO Desembargador Rodrigo Tolentino de Carvalho Collaço Desembargador Moacyr de Moraes Lima Filho Desembargador Henry Petry Junior Desembargador Luiz Cézar Medeiros Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Vânia Petermann Juiz de Direito Marcelo Pizolati Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta CONSELHO EDITORIAL Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta Juiz de Direito Fernando de Castro Faria Juiz de Direito João Batista da Cunha Ocampo Moré Juiz de Direito Antônio Zoldan da Veiga Os trabalhos que compõe esta coleção foram submetidos à dupla avaliação cega doubleblind review por pareceristas ad hoc pósgraduados CIPBRASIL CATALOGAÇÃONAFONTE B144c Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos Organizadoras Grazielly Alessandra Baggenstoss Poliana Ribeiro dos Santos Salete Silva Sommariva Michelle de Souza Gomes Hugill Florianópolis Editora Centro de Estudos Jurídicos CEJUR 2019 Volume 4 333 p fig tabs ISBN obra 9788566149425 ISBN coleção 9788566149388 1 Violências contra as mulheres 2 Feminismo 3 Direitos das mulheres 4 Mulheres Condições sociais I Baggenstoss Grazielly Alessandra II Santos Poliana Ribeiro dos III Sommariva Salete Silva IV Hugill Michelle de Souza Gomes V Título CDD 340 Ficha catalográfica elaborada por Deise Oliveira de Almeida CRB 113414ª Este livro está sob a licença Creative Commons que segue o princípio básico do acesso público à informação O livro pode ser compartilhado desde que atribuídos os devidos créditos de autoria Não é permitida nenhuma forma de alteração ou a sua utilização para fins comerciais brcreativecommonsorg CENTRO DE ESTUDOS JURÍDICOS CEJUR CONSELHO TÉCNICOCIENTÍFICO Desembargador Rodrigo Tolentino de Carvalho Collaço Desembargador Moacyr de Moraes Lima Filho Desembargador Henry Petry Junior Desembargador Luiz Cézar Medeiros Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Vânia Petermann Juiz de Direito Marcelo Pizolati Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta CONSELHO EDITORIAL Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta Juiz de Direito Fernando de Castro Faria Juiz de Direito João Batista da Cunha Ocampo Moré Juiz de Direito Antônio Zoldan da Veiga CEJUR Academia Judicial Rua Almirante Lamego 1386 Centro FlorianópolisSC 88015601 Fone 48 32872801 academiatjscjusbr wwwtjscjusbracademia PARECERISTAS DA COLEÇÃO Os trabalhos que compõe a coleção foram submetidos à dupla avaliação cega doubleblind review por pareceristas ad hoc pósgraduados Adaiana Fátima Almeida UFSC Adailson da Silva Moreira PUCSP Adriana Aparecida da Conceição Santos Sá UNIVALE Adriana De Toni UFSC Adriele Andreia Inacio UEL Alberth Alves Rodrigues UFSC Alessandra Knoll UFSC Alessandro Tonon Câmara Ávila UFSC Alexandre Botelho UFSC Aline Antunes Gomes UNIJUÍ Amanda Muniz Oliveira UFSC Amina Regina Silva UFSC Ana Cláudia Wendt dos Santos USP Ana Cristina Costa Lima UFSC Ana Lúcia Cintra UFSC Ana Maria Justo UFSC Ana Martina Baron Engerroff UFSC Ana Paula Araujo de Freitas UFSC Andréa Martini UFSC Andressa Kikuti Dancosky UEPG Angela Maria Moura Costa Prates UFSC Arisa Ribas Cardoso UFSC Athena de Oliveira Nogueira Bastos UFSC Bettieli Barboza da Silveira UFSC Bianca Bez Goulart UFSC Brune Camillo Bonassi UFSC Camila Damasceno de Andrade UFSC Carla Pires Vieira da Rocha UFSC Carolina Frescura Junges UFSC Charles Raimundo da Silva UFSC Chimelly Louise de Resenes Marcon UNIVALI Christiane Heloisa Kalb UFSC Cinthia Creatini da Rocha UFSC Clara Martins do Nascimento UFPE Clarindo Epaminondas de Sá Neto UFSC Claudia Regina Nichnig UFSC Cristiane Valéria da Silva UFSC Daniela Castamann UEL Daniela Lippstein UNISC Daniela Maysa de Souza UFSC Daniele Beatriz Manfrini UFSC Débora Diana da Rosa UFMG Deborah Cristina Amorim UFSC Diana Piroli UFSC Dnyelle Souza Silva UFSC Edivane de Jesus UFSC Eduardo de Carvalho Rêgo UFSC Elaine Cristina Novatzki Forte UFSC Elton Fogaça da Costa UFSC Emmanuelle Elise Campos de Moraes UFSC Eunice Maria Nazarethe Nonato UNISINOS Ezair José Meurer Junior UFSC Fabiani Cabral Lima UFSC Fernanda Ax Wilhelm UFSC Fernanda Cardozo UFSC Fernanda da Silva Lima UFSC Fernanda Martins UFSC Fernanda Nunes da Rosa Mangini UFSC Frederico Augusto Paschoal UFSC Frederico Ribeiro de Freitas Mendes UFSC Gabriel Silva Costa USP Gabriela Dal Forno Martins UFRGS Gerusa Morgana Bloss UFSC Giácomo Tenório Farias UNISC Giovana Dorneles Callegaro Higashi UFSC Giovana Ilka Jacinto Salvaro UFSC Gisele Garcia Lopes UFSC Henrique Franco Morita UFSC Iara Cristina Corrêa UFSC Idonézia Collodel Benetti UFSC Isabela Martins Nadal UEPG Isabele Bruna Barbieri PUCPR Isabele Soares Parente UFSC Isabella Cristina Lunelli UFSC Ivette Sonora Soto ISA Janaina de Fátima Zdebskyi UFSC Janaina Mayara Müller da Silva FURB Janine Gomes da Silva RENNES Jessica Gustafson Costa UFSC Jéssica Sbroglia da Silva UFSC Joana DArc Vaz UFSC Joanara Rozane da Fontoura Winters UFSC Josélia da Silveira Nogueira UFSC Josiele Bené Lahorgue UFSC Juliana Alice Fernandes Gonçalves UFSC Juliana Schumacker Lessa UFSC Karine Grassi UCS Karolyna Marin Herrera UFSC Katheri Maris Zamprogna UFSC Kathiuça Bertollo UFSC Kátia Maria Zgoda Parizotto UFSC Kênia Mara Gaedtke UFSC Lady Mara Lima de Brito UFAM Laila Priscila Graf Ornellas UFSC Larissa Antunes UFSC Leide Sayuri Ogasawara UFSC Lenna Eloisa Madureira Pereira UFPA Leticia Scartazzini UFSC Liamara Teresinha Fornari UFSC Libiana Carla Bez Machado UFSC Liendina Joaquim Chirindza UFSC Ligia Ribeiro Vieira UFSC Loren Marie Vituri Berbert UFSC Luana Loria UFSC Luana Michele da Silva Vilas Bôas UERJ Luceni Medeiros Hellebrandt UENF Lúcia Helena Fidelis Bahia UDESC Luciana de Fátima Leite Lourenço UFSC Luciana Martins Saraiva UFSC Luciana Ribeiro de Brito UFSC Luciano Jahnecka UFSC Luciany Alves Schlickmann UFSC Luis Irapuan Campelo Bessa Neto UFSC Luiz Eduardo Dias Cardoso UFSC Luiza Landerdahl Christmann UFSC Maiara Pereira Cunha UFSC Maíra Marchi Gomes UFSC Marcel Soares de Souza UFSC Marcia Regina Calderipe Farias Rufino UFSC Marcio Jose Rosa de Carvalho UFSC Mareli Eliane Graupe OSNABRUECK Margarete Maria de Lima UFSC Maria Aparecida Salci UFSC Maria Cecilia Olivio UFSC Maria de Jesus Hernnandez Rodriguez UFSC Maria Eduarda Ramos UFSC María Fernanda Vásquez Valencia UFSC Mariana Aquilante Policarpo UFSC Mariana Caroline Scholz UFSC Marilande Fátima Manfrin Leida UFSC Marília dos Santos Amaral UFSC Marília Nascimento de Sousa UFSC Marina da Silva Sanes FURG Maris Stela da Luz Stelmachuk UFSC Marluce Dias Fagundes UFRGS Maurício da Cunha Savino Filó UFSC Melina de la Barrera Ayres UFSC Mirian Carla Cruz UFSC Monica Ovinski de Camargo Cortina UFSC Morgani Guzzo UFSC Natalia Fonseca de Abreu Rangel UFSC Nayala Lirio Gomes Gazola UFSC Noa Cykman UFSC Odisséia Fátima Perão UFSC Paula Helena Lopes UFSC Paula Pinhal de Carlos UFSC Paulo Ricardo Maroso Pereira UFRGS Poliana Ribeiro dos Santos UFSC Priscila Schacht Cardozo UNESC Priscilla Stuart da Silva UFSC Rafael de Almeida Pujol UFSC Rafaela Luiza Trevisan UFSC Renata Andrade de Oliveira UEM Renata Guimarães Reynaldo UFSC Renata Nunes UFSC Rene Erick Sampar UEL Roberto Wöhlke UFSC Rosana Sousa de Moraes Sarmento UFSC Roselete Fagundes de Aviz UFSC Rudá Ryuiti Furukita Baptista UEL Sabrina Aparecida da Silva UFSC Sabrina Blasius Faust UFSC Samanta Rodrigues Michelin UFSC Samira de Moraes Maia Vigano UFSC Samuel Martins dos Santos UFSC Sandra Iris Sobrera Abella UFSC Sérgio Cabral dos Reis UFSC Sheila Cristina Silva Ferraz UFSC Silvana Marta Tumelero UFSC Silvia Araújo Dettmer PUCSP Silvia Cardoso Rocha UFSC Simone Lolatto UFSC Simone Vidal Santos UFSC Soraia Carolina de Mello UFSC Tânia Welter UFSC Tatiana Pires Escobar UFSC Thatiane Cristina Fontão Pires UFSC Valéria de Angelo Ghisi UFSC Valine Castaldelli Silva UNICESUMAR Vanessa Dorneles Schinke PUCRS Wellington Lima Amorim UFRJ Yasmim Pereira Yonekura UFSC Zuleica Pretto UFSC Autoresas da Coleção Adria de Lima Sousa UFSC Adriana Dutra Tholl UFSC Adriano Beiras UFSC Alessandra Guterres Deifeld UNIVALI Amanda Ferreira da Silva CESUSC Amanda Mauricio Alexandroni UFSC Amanda Muniz Oliveira UFSC Ana Beatriz Cruz Nunes UNESP Ana Beatriz Eufrauzino de Araújo UNIPE Ana Paula Bourscheid UFSC Ana Paula Machado UFFS André Demetrio Alexandre PUCPR Anna Quialheiro Abreu da Silva UDESC Antônio José Ledo Alves da Cunha ENSP Ariane Mattei Nunes UFSC Ariê Scherreier Ferneda PUCPR Athena de Oliveira Nogueira Bastos UFSC Athena de Oliveira Nogueira Bastos UFSC Beatriz Berg USP Beatriz de Almeida Coelho UFSC Beatriz Moreira Bezerra Vieira UEM Benhur Pinós da Costa UFRJ Betina Fontana Piovesan UNIVALI Bettieli Barboza da Silveira UFSC Bianca Louise Wagner UFSC Bruna Adames UNIFEBE Bruna Amato UGF Bruna Boldo Arruda UNIVALI Bruna Camila Schuhardt UNIASSELVI Bruna Carolina Bernhardt UFSC Bruna Luisa Macelai UNIVALI Bruna Luiza de Souza Pfiffer de Oliveira UFSC Bruna Marques da Silva UNISINOS Caio Henrique de Mendonça Chaves Incrocci UFSC Camila Maffioleti Cavaler UFSC Camila Trindade UFSC Carla Julia da Silva UFRN Carla Roberta Carnette UNOESC Carmen Leontina Ojeda Ocampo Moré ULISBOA Carolina Carvalho Bolsoni UFSC Carolina Carvalho Bolsoni UFSC Carolina Orquiza Cherfem UNICAMP Carolina Young Yanes UFSC Charlene Fernanda Thurow FURB Christiane Heloisa Kalb UFSC Clarete Trzcinski UFRGS Clarindo Epaminondas de Sá Neto UFSC Cláudio Macedo de Souza UFMG Cristiane Floriano Rieg UFSC Cristiane Tonezer UFRGS Dábine Caroene Capitanio UFSM Daiane dos Santos Possamai UNESC Daniela Queila dos Santos Bornin ITE Daniela Urtado PUCPR Danielle Alves da Cruz UFSC Deise Warmling UFSC Deisemara Turatti Langoski UFSC Denise Maria Nunes UFSC Edegar Fronza Junior UFSC Edna Wernke Niehues dos Reis UNISUL Eduardo Passold Reis AJTJSC Eliane Rodrigues UFSM Elizabeth Cristiane Mendonça Azevedo UNIPAMPA Elza Berger Salema Coelho UFSC Elza Berger Salema Coelho UFSC Emilly Marques Tenorio UFES Érika Costa da Silva UFBA Fábio Mattos FGV Fernanda Cornelius Lange UNIVALI Fernanda de Carvalho Rodrigues da Silva CEGSC Fernanda Marcela Torrentes Gomes UFSC Fernanda Miler Lima Pinto UFMA Fernanda Moreira Ballaris UFRJ Fernanda Moura Muniz PUC Fernanda Nunes da Rosa Mangini UFSC Flávia Rubiane Durgante UFSM Flavia Soares Ramos UFSC Franciele Volpato UFSC Francisco Pereira de Oliveira UFPA Gabriela Feldhaus de Souza UNIPLAC Gabriela Ferreira Dutra Birkbeck College Gabriele Aparecida de Souza e Souza UEA Gabriele Nigra Salgado UFSC Genilson Fernandes Monteiro UFPA Georgia Paula Martins Faust UNIASSELVI Giovana Ilka Jacinto Salvaro UFSC Grazielly Alessandra Baggenstoss UFSC Hellen Lopes Dutra Mazzola UNIVALI Heloisa Mondardo Cardoso UFSC Hildemar Meneguzzi de Carvalho UNIVALI Íris de Carvalho PUCRS Isabele Bruna Barbieri UEL Ísis de Jesus Garcia UFSC Ismê Catureba Santos UCAM Ivone Maria Mendes Silva USP Janice Merigo PUCRS Jeanine Dewes de Oliveira UNISUL Jéssica Janine Bernhardt Fuchs UFSC Jéssica Painkow Rosa Cavalcante UFG João Antonio da Cruz dos Santos UNIVALI João Fillipe Horr UFSC José Dias Santana UFPA José Elias Gabriel Neto FMPRS Josilaine Antunes Pereira UNISINOS Júlia Farah Scholz CATÓLICASC Júlia Sleifer Alonso UNIPAMPA Juliana Alice Fernandes Gonçalves UFSC Juliana Andrade da Silva PUCRS Karine Grassi UFSC Karine Kerkhoff UNOCHAPECÓ Karla Fernanda Pereira UFMA Karolyna Marin Herrera UFSC Karopy Ribeiro Noronha UFSM Kelly Cristina Schäfer Batistella UNISUL Kimberly Gianello Studer UFSC Laís Castro UEM Larissa Emília Guilherme Ribeiro IESP Larisse de Oliveira Rodrigues UERJ Lauriana Urquiza Nogueira UFSC Letícia de Cisne Branco CESUSC Lia Gabriela Pagoto UFFS Liandra Savanhago UFSC Lívia Dornelles Madrid URI Liziane da Silva Rodríguez PUCRS Luana Limberger Marques CESUSC Luana Marina dos Santos UNISINOS Lucas Francisco Neto DOCTUM Lucely Ginani Bordon UFRN Luciana Bittencourt Gomes Silva UNIDERP Luciele Mariel Franco UEM Lucienne Martins Borges UQÀM Luisa Chaves de la Rosa UNIPAMPA Luísa Neis Ribeiro UFSC Luiza Alano de Almeida UNESC Luiza Niehues Bonetti UNESC Maiara Leandro UFSC Mainara Gomes Cândida Coelho UFSC Maira Gabriela Anschau UNOCHAPECÓ Márcia Aline Pacheco de Medeiros CESUSC Márcia Cristiane NunesScardueli UNISUL Mareli Eliane Graupe UFSC Mareli Eliane Graupe UNIPLAC Mariana Silvino Paris CLACSO Mariane Pires Ventura UFSC Mariane Vanderlinde da Silva UFSC Mariella Kraus FURB Marília de Nardin Budó UFPR Marília dos Santos Amaral UFSC Marina Williamson Touro UFSC Marja Mangili Laurindo UFSC Mayara de Abreu Stuepp Cardoso FMP Mayara Zimmermann Gelsleichter UFSC Michelle de Souza Gomes Hugill UFSC Milena Barbi UFSC Miliane dos Santos Fantonelli UFSM Mirenchu Maitena dos Santos Rivas UNIPAMPA Miriam Olivia Knopik Ferraz PUCPR Monica Ovinski de Camargo Cortina UFSC Nádia Maria Gonçalves Krüger CEGSC Natália Aparecida Antunes UFSC Natielle Machado Santos UNIPLAC Nínive Degasperi Poffo UFSC Pamela de Gracia Paiva UNINTER Paola Dozoretz FURB Patrícia Backes UFSC Patrícia Borba Marchetto UB Paulo José Mueller UNIVALI Paulo Thiago Fernandes Dias PUCRS Paulo Thiago Fernandes Dias UNISINOS Poliana Ribeiro dos Santos UFSC Priscila Fernanda Santiago Ferreira UFMA Raul da Silveira Santos UFPA Regina Célia Costa Lima PUCGO Roberta Logobuco de Araujo Pereira PUC Sabrina Nerón Balthazar UFSC Sara Alacoque Guerra Zaghlout PUCRS Scheila Krenkel UFSC Sheila Rúbia Lindner UFSC Stella Scantamburlo de Mergár UCAM Sthefanie Aguiar da Silva UFSC Tainá Malinski UNISUL Thamyres Cristina da Silva Lima UFSC Thays Berger Conceição UFSC Vanessa Martinhago Borges Fernandes UFSC Vilma Pimentel Siqueira UFSM Wellington Lima Amorim UFRJ William Hamilton Leiria UFSC Vítimas sublimes projetos de sujeitos Não Sistema e sistemas Estrutura e estruturas Hierarquia e hierarquias Vários sub Subsistemas subestruturas Dentro disto sujeitOs Fora sujeitAs Há entrecruzamentos logo não há universalismo Num espaço como o Brasil seus contextos históricopolíticoeconômicocultural jurídico importam Invasão genocídio dos povos originários escravidão ditadura militar golpes políticos Poder descentralizado nas mãos dos que observados os períodos e cenários já o detinham e o detém Pequenos desvios dentro destes ciclos perpétuos Luta muita luta Contra o genocídio escravidão ditaduras golpes políticos retiradas de direitos Negação muita negação De todos estes eventos e características próprias No atravessamento as periferias Os territórios e corpos periféricos Ditos periféricos A marginalização do outrO Da outrA Sufocamento A construção de uma mentalidade social hierarquizada sob moldes coloniais na organização de mundo dividida entre Sul e Norte Global A trama do desenho do sujeito Do que é o sujeito Do sujeito de direito Quem tem direitos E do outrO Da outrA Que não o do direito Quem não tem direitos Nesta composição articulada secularmente sem descanso num território não recuperado de seus traumas a SujeitA boa é aquela que se mantém como a outrA sem direitos isto é a não sujeitO Ocorre que em vários pontos do globo dentre contextos sociais surgem reflexões e mobilizações destas sujeitAs mulheres Novamente luta muita luta e negação muita negação Se estrutura a sujeitA para que seja boa Uma boa vítima SujeitA vítimA A negação do gênero como arma feminicida Entrecruzamentos interseccionalidades descolonizações enfrentamentos Desconstruções morais e reconstruções de alianças políticas Desfazimento da desumanização dos projetos de sujeitos como vítimas sublimes Nem boa Nem vítima Sujeita de direito Sujeitas de direitos Em oposição às violências perpetradas contra as sujeitas mulheres as margens desde e para as margens ou seja desde os corpos periféricos para um país construído como periferia Brasil por teorias e práticas desde e para as periferias do mundo Disputas narrativas e materiais pelas e para as sujeitas mulheres Juliana Alice Fernandes Gonçalves APRESENTAÇÃO A violência contra as mulheres remonta dos tempos primitivos da humanidade cuja desigualdade entre os gêneros aqui no sentido das relações de poder entre homens e mulheres é observada em todo os campos da vida humana baseada nas diferenças biológicas e com isso na divisão do trabalho e funções em uma sociedade patriarcal Às mulheres era atribuído um papel secundário e de submissão ao domínio dos homens sob o argumento de serem seres frágeis física e intelectualmente como também da sociedade e da religião que lhes limitava as atribuições à esfera privada tais como a família reprodução e afazeres domésticos enquanto aos homens era permitida a atuação na esfera pública associada à liberdade à produção à política Tal situação foi sendo alterada por meio dos movimentos feministas e dos avanços normativos em especial a partir do século XX em que foram firmados Tratados e Convenções Internacionais assim como a promulgação da Constituição Cidadã de 1988 e das leis Maria da Penha e do Feminicídio os quais não só alçaram as mulheres à condição de sujeitos de direito e não mais de objeto como também reconheceram que as violações esses direitos são violações aos direitos humanos colocando as mulheres em patamar de igualdade com os homens Por outro lado temse que os avanços sociais não acompanharam a evolução formal uma vez que por conta da manutenção da desigualdade na divisão sexual do trabalho as mulheres passaram a assumir uma sobrecarga de responsabilidades Mesmo trabalhando fora de casa permanecem como as principais responsáveis pelos afazeres domésticos cuidados com os filhos e familiares Assim as limitações existentes para as mulheres no âmbito profissional contribuem para a manutenção das desigualdades e das violências sobre elas exercidas Como se vê o mundo atual ainda não é um lugar seguro para as mulheres pois as mulheres continuam a sofrer vários tipos de violências no âmbito doméstico e familiar no trabalho e na esfera pública Em pleno século XXI mulheres continuam sendo vitimadas subjugadas e morrendo pelas mãos de seus ex parceirosmaridosnamorados permanecem com medo de sair nas ruas à noite sendo julgadas pelo seu comportamento social ou pelas roupas que vestem Diante de tudo isso é que se denota da importância desta obra cujo título da Coleção Não há lugar seguro reflete a busca dosas pesquisadoresas de diversas áreas em trazer panoramas argumentos críticas e sugestões para possíveis caminhos e soluções para a problemática da violência de gênero Com toda a certeza as reflexões aqui apresentadas contribuirão para o desenvolvimento de ideias e ações sejam elas no âmbito público ou privado para o aprimoramento da Justiça e dos serviços públicos de proteção às mulheres E por que não dizer contribuirão para que se dê mais um passo rumo à efetivação dos direitos humanos das mulheres e para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária Boa leitura Salete Silva Sommariva Desembargadora do Tribunal de Justiça de Santa Catarina TJSC PREFÁCIO O presente livro integra a Coleção Não Há Lugar Seguro constituída por estudos científicos aprovados na I Mostra de Pesquisa Científica sobre Violências Contra as Mulheres Sendo uma parceria entre o Tribunal de Justiça de Santa Catarina e o Lilith Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos da Universidade Federal de Santa Catarina devidamente certificado pelo CNPq O presente volume contempla pesquisas sobre nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos A categoria direitos sexuais e reprodutivos na agenda estatal brasileira está intimamente ligada à saúde e ao planejamento familiar sendo assim também derivados dos direitos humanos e dependem da ação governamental para seu reconhecimento e efetivação no que diz respeito à assinatura de tratados na participação de conferências que discutem estas questões criação e implementação de políticas públicas pelo Poder Executivo promoção de leis que assegurem e normatizem instrumentos jurídicos Desse conjuntura frisase que a demarcação da relação entre Direitos Reprodutivos e Direito à Saúde no Estado brasileiro é conferida pela Lei nº 926396 chamada Lei do Planejamento Familiar que prima pela garantia conforme o parágrafo único do artigo 3º I a assistência à concepção e contracepção II o atendimento prénatal III a assistência ao parto ao puerpério e ao neonato IV o controle das doenças sexualmente transmissíveis V o controle e a prevenção dos cânceres cérvicouterino de mama de próstata e de pênis Ademais temse no campo das categorias jurídicas mencionadas ainda o acesso a contraceptivos no sistema público de saúde e à prática de esterilizações tocando especificadamente demanda por meios de controle da natalidade De tal ordem o planejamento familiar é definido no artigo 2º da lei como um conjunto de ações de regulação da fecundidade que garante direitos iguais de constituição limitação ou aumento da prole pela mulher pelo homem ou pelo casal Percebese assim os direitos sexuais e reprodutivos também condizem com a forma como o Direito e o Estado tratam as pautas que afetam as mulheres sua autonomia seus corpos e seus direitos Dessa forma na proposta de concretizar os direitos humanos das mulheres os direitos sexuais e reprodutivos também são entendidos como posicionamentos de um determinado tempo e espaço em que a reprodução humana é politizada normatizada e judicializada A proposta dos estudos aqui apresentados então é de promover a reflexão sobre tais direitos relacionados ao contexto contemporâneo brasileiro e em cotejo com os direitos fundamentais das mulheres de autonomia e de liberdade para o exercício responsável da reprodução humana Grazielly Alessandra Baggenstoss SUMÁRIO CARACTERIZAÇÃO DO ASSÉDIO SEXUAL LABORAL COMO VIOLÊNCIA DE GÊNERO E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS 17 Milena Barbi Clarindo Epaminondas de Sá Neto PROFISSIONAIS DO SEXO VÍTIMAS DO ASSÉDIO SEXUAL ENQUANTO DESENGAJAMENTO MORAL NO TRABALHO 34 Priscila Fernanda Santiago Ferreira Wellington Lima Amorim Karla Fernanda Pereira VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL NO QUOTIDIANO DO PROCESSO GRAVÍDICO PUERPERAL DE CADEIRANTES BARREIRAS ARQUITETÔNICAS E ATITUDINAIS 54 Thamyres Cristina da Silva Lima Danielle Alves da Cruz Natália Aparecida Antunes Adriana Dutra Tholl OS DESAFIOS DA CIÊNCIA JURÍDICA NO COMBATE À VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA CONTRA MULHERES INDÍGENAS 73 Ana Beatriz Cruz Nunes Patrícia Borba Marchetto VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA UMA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES 87 Mainara Gomes Cândida Coelho Poliana Ribeiro dos Santos O DIREITO DE ESCOLHER E DE BEM NASCER ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA 107 Isabele Bruna Barbieri Franciele Volpato O ENSINO DE SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO NAS AULAS DE CIÊNCIAS POSSIBILIDADES À DESNATURALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA 123 Gabriele Nigra Salgado Lívia Dornelles Madrid A PORNOGRAFIA DE VINGANÇA COMO VIOLÊNCIA GLOBAL E A ALTERNATIVA DE CONTENÇÃO APRESENTADA PELOS INTERMEDIÁRIOS 140 Gabriela Ferreira Dutra Liziane da Silva Rodríguez Paulo Thiago Fernandes Dias Sara Alacoque Guerra Zaghlout FEMINISMO E PORNOGRAFIA QUANDO A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER É EROTIZADA E CAPITALIZADA 157 Bruna Carolina Bernhardt Kimberly Gianello Studer Luísa Neis Ribeiro VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS A REGULAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL 175 Daniela Urtado Mariana Silvino Paris A INFLUÊNCIA DA MORAL RELIGIOSA NO DIREITO BRASILEIRO E AS CONSEQUÊNCIAS DA CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO 191 Julia Sleifer Alonso Deisemara Turatti Langoski A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL ADEQUAÇÃO DA TEORIA DE SILVIA FEDERICI À REALIDADE DO ESTADO BRASILEIRO 201 Grazielly Alessandra Baggenstoss Luciele Mariel Franco Betina Fontana Piovesan GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA E ESTUPRO DE VULNERÁVEL O TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL 221 Karopy Ribeiro Noronha Fernanda Nunes da Rosa Mangini Eliane Rodrigues UM OLHAR DA GESTALTTERAPIA SOBRE O TRAUMA DO ABUSO E VIOLÊNCIA SEXUAL NA INFÂNCIA DA MULHER 235 Fernanda de Carvalho Rodrigues da Silva Nádia Krüger ESTERILIZAÇÃO COMPULSÓRIA E O PLANEJAMENTO FAMILIAR O CONTROLE DE NATALIDADE E A VIOLAÇÃO DA AUTONOMIA INDIVIDUAL DA MULHER 247 Miriam Olivia Knopik Ferraz Ariê Scherreier Ferneda ESTERILIZAÇÕES FORÇADAS EM MULHERES UMA ANÁLISE ACERCA DA INGERÊNCIA DOS CORPOS NO CAMPO BIOPOLÍTICO 265 Luana Marina dos Santos Bruna Marques da Silva HOMICÍDIO CONJUGAL MASCULINO E FEMINICÍDIO ÍNTIMO DIÁLOGOS EPISTEMOLÓGICOS SOBRE AS VIOLÊNCIAS LETAIS NA INTIMIDADE 282 João Fillipe Horr Bruna Adames Lucienne Martins Borges FEMINICÍDIO DE GESTANTES NOTIFICADOS NO SINAN NA REGIÃO SUL DO BRASIL 303 Mariane Vanderlinde da Silva Elza Berger Salema Coelho Thays Berger Conceição Carolina Carvalho Bolsoni ESTUPRO COMO ARMA DE GUERRA ESTUDO SOBRE A GUERRA DA EX IUGOSLÁVIA 316 Fernanda Moura Muniz Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 17 CARACTERIZAÇÃO DO ASSÉDIO SEXUAL LABORAL COMO VIOLÊNCIA DE GÊNERO E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS Milena Barbi1 Clarindo Epaminondas de Sá Neto2 RESUMO Este estudo investiga o fenômeno do assédio sexual laboral e o problema que orientou seu desenvolvimento foi a prática de conduta caracterizadora de assédio sexual laboral é uma espécie de violência de gênero e uma violação de direitos humanos A hipótese que buscouse confirmar é a de que o assédio sexual laboral por gerar reflexos na saúde da trabalhadora constitui uma espécie de violência de gênero e consequentemente uma violação de direitos humanos Para tanto utilizouse o método de abordagem indutivo e a técnica de documentação indireta por meio do procedimento de pesquisa bibliográfica O objetivo geral do trabalho consistiu em demonstrar a relação entre gênero e o assédio sexual laboral cometido por homens contra mulheres Para atingir os objetivos específicos do trabalho foi apresentada a definição de violência de gênero identificandoa como violação de direitos humanos assim como foram abordados aspectos necessários à compreensão do fenômeno do assédio sexual laboral e sua caracterização como espécie de violência de gênero Ao final da pesquisa a hipótese foi confirmada concluindose pela caracterização do assédio sexual laboral enquanto violência de gênero e violação de direitos humanos Concluiuse ainda que o assédio sexual laboral apresentase como uma das formas mais comuns de violência contra a mulher na sociedade contemporaneamente constituindose enquanto instrumento de controle e subordinação das mulheres e provocando impactos diretos na saúde das trabalhadoras vítimas da conduta Palavraschave Assédio sexual laboral Violência de gênero Direitos humanos INTRODUÇÃO O assédio sexual laboral é compreendido como violência contra a mulher na Lei n 107782003 A despeito da referida lei o ordenamento jurídico brasileiro trata de forma escassa a temática do assédio sexual o Código Penal dedica apenas um artigo e a Consolidação das Leis Trabalhistas nem sequer menciona o tema de forma expressa Além disso constatase que o tratamento dado ao assunto pela doutrina penalista é superficial ao passo que o da doutrina trabalhista é exíguo Nesse sentido a temática abordada neste estudo assume caráter de maior relevância quando se considera a inexpressiva produção acadêmica confrontada com as estatísticas relativas ao assédio sexual laboral no Brasil 1 Técnica Universitária na Universidade do Estado de Santa Catarina Bacharela em Direito 2019 pela Universidade Federal de Santa Catarina milenabarbimbgmailcom 2 Professor efetivo do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina Doutor em Direito 2017 pela Universidade Federal de Santa Catarina clarindonetogmailcom Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 18 Esta pesquisa objetiva introduzir a investigação do fenômeno do assédio sexual laboral como espécie de violência de gênero A partir de uma abordagem interdisciplinar buscase evidenciar os aspectos que conferem à conduta tal caráter importando conceitos que amparem tal análise Verificase que a produção acadêmica sobre a temática além de insuficiente apenas ocasionalmente traça um recorte de gênero a partir do quadro de agressores e vítimas da conduta em comento razão pela qual este trabalho tornase ainda mais inédito e consequentemente necessário Por esse motivo é importante destacar que esta pesquisa não pretende realizar uma revisão sistemática da literatura produzida sobre assédio sexual laboral e sim descortinar as relações existentes entre assédio sexual no ambiente de trabalho e a questão de gênero Com isso não se objetiva ignorar que existe uma pequena parcela dos casos de assédio sexual laboral que possuem homens como vítima da conduta mas apenas fazer um recorte de gênero que possibilite o desenvolvimento de pontos para a compreensão do fenômeno a partir da ótica da indiscutível maioria das vítimas quais sejam mulheres3 Considerando a delimitação do tema da pesquisa o problema que orientou o desenvolvimento deste estudo foi o seguinte a prática de conduta caracterizadora de assédio sexual laboral é uma espécie de violência de gênero e uma violação de direitos humanos A hipótese que buscarseá confirmar é a de que o assédio sexual laboral por gerar reflexos na saúde da trabalhadora constitui uma espécie de violência de gênero e consequentemente uma violação de direitos humanos Para tanto utilizarseá o método de abordagem indutivo e a técnica de documentação indireta por meio do procedimento de pesquisa bibliográfica O objetivo geral do trabalho é demonstrar a relação entre gênero e o assédio sexual laboral cometido por homens contra mulheres Constituem objetivos específicos da pesquisa definir violência de gênero identificar a violência de gênero como violação de direitos humanos e compreender o fenômeno do assédio sexual laboral como espécie de violência de gênero Em um primeiro momento objetivouse caracterizar o fenômeno social da violência de gênero enquanto violação de direitos humanos a partir da compreensão dessa espécie de violência como um instrumento de controle social que impede as mulheres de acessar e fruir de sua cidadania plena Na sequência buscouse demonstrar a relação entre assédio sexual laboral 3 Este trabalho não tem como objetivo afirmar que homens não possam ser vítimas de assédio sexual laboral senão delimitar seu objeto de pesquisa relativamente à vitimação de mulheres Por essa razão este trabalho utilizará o termo assediada no gênero feminino e o termo assediador no gênero masculino em observância ao recorte de gênero da pesquisa às esmagadoras estatísticas relativas ao gênero das vítimas da conduta e como forma de reconhecimento simbólico da violência de gênero caracterizada pelo assédio sexual laboral Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 19 e violência de gênero considerando a percepção social da violência e compreendendo essa enquanto categoria historicamente construída 1 VIOLÊNCIA DE GÊNERO E VIOLAÇÃO DE DIREITOS HUMANOS Primeiramente fazse necessário esclarecer que para os fins dessa pesquisa compreendese como gênero o conceito estabelecido por Joan Wallach Scott 1995 p 86 cujo núcleo da definição constituise na conexão entre duas preposições A primeira preposição é de que o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e a segunda de que o gênero é uma forma primária significar as relações de poder SCOTT 1995 p 86 Silva Copetti e Borges 2009 p 15 elucidam que para a antropologia gênero tratase de uma categoria que diz respeito à construção cultural das diferenças entre homens e mulheres contrapondose à categoria sexo que trata das diferenças biológicas determinadas pela natureza Nesse sentido gênero traduz o papel de cada indivíduo na sociedade determinado pela construção social a partir de sua própria cultura SILVA COPETTI BORGES 2009 p 15 As relações de gênero são influenciadas por fatores históricos ideológicos religiosos econômicos e sociais e moldam a compreensão geral dos atributos e comportamentos socialmente compreendidos como femininos e masculinos e os valores a eles associados SILVA COPETTI BORGES 2009 p 16 Com isso temos que uma abordagem destacada pela perspectiva de gênero além de ocuparse com a condição feminina as experiências e percepções das mulheres busca trabalhar a atribuição de papeis sociais recursos responsabilidades e expectativas relativas a homens e mulheres Isso evidencia portanto a compreensão de gênero como categoria relacional SILVA COPETTI BORGES 2009 p 17 Compreendendo gênero como um conceito relacional e significante das relações de poder identificase a divisão sexual do trabalho como o locus de produção e manutenção da estratificação de gênero relativamente às diferenças de poder entre homens e mulheres Isso porque identifica as mulheres enquanto responsáveis pelo cuidado das crianças da família e das tarefas domésticas independentemente de ter ou não outro trabalho e atribui aos homens a responsabilidade por tarefas não domésticas na economia na política e outras instâncias sociais e culturais STREY 2001 p 52 Strey 2001 p 55 elucida que as pessoas não são conscientes do poder tipicamente legitimado como autoridade nos sistemas estáveis de desigualdade O conceito de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 20 autoridade nesse contexto referese ao consenso entre superiores e subordinados com relação ao dever de que alguns obedeçam a outros e esse consenso deriva de uma ideologia que justifica os direitos obrigações e recompensas de diferentes membros da sociedade STREY 2001 p 55 A ideologia de gênero nesse cenário legitima o poder masculino e justifica a supremacia masculina informando à sociedade as diferenças em direitos obrigações restrições e referências entre homens e mulheres Sendo assim são socialmente instituídas normas de gênero que possuem o condão de delimitar os comportamentos específicos e os atributos pessoais considerados socialmente desejáveis para homens e mulheres MACEDO 1988 DEL VALLE 1989 apud STREY 2001 p 56 No que se refere à violência Marlene Neves Strey 2001 p 4748 leciona que por definição a violência implica uma ação ou não ação de alguém de um grupo de uma situação ou instituição que fere maltrata ou submete alguém ou um grupo podendo ser explícita direta ou indireta Ainda que a violência possa assumir os mais variados contornos todos eles revestemse de algum tipo ou quantidade de poder que lhes permitam violentar em alguma extensão STREY 2001 p 4748 Nesse sentido e considerando que há uma prevalência histórica do sexo masculino sobre o sexo feminino ocorre uma manutenção do status de subordinação das mulheres em relação aos homens localizandoas majoritariamente no polo vitimado nas relações de gênero caracterizadas pela violência STREY 2001 p 51 A violência de gênero portanto não requer o dispêndio de grandes esforços na tarefa de conceituação na medida em que o conceito de gênero por si só já pressupõe uma pressão sobre os indivíduos para se conformarem às normas de gênero Além disso também pressupõe relações de poder nas quais expusemos que historicamente é legitimado o poder masculino sobre as mulheres STREY 2001 p 59 Sendo assim verificase a necessidade de estabelecer um acordo terminológico com o leitor para os fins desta pesquisa utilizarseão como sinônimas as expressões violência de gênero e violência contra a mulher Dessa forma também o faz Marlene Strey 2004 p 1316 apud SILVA COPETTI BORGES 2009 p 14 argumentando que embora a violência de gênero possa incidir sobre homens e mulheres demonstrouse que grande parte desta violência é cometida contra as mulheres por homens sendo suas consequências físicas e psicológicas muito mais graves severas e daninhas para as mulheres Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 21 Portanto a violência de gênero ou violência contra a mulher é caracterizada quando decorre da identidade de gênero da vítima mulher não havendo distinção de raça classe social religião idade ou outras condições ZANATTA SCHNEIDER 2017 p 75 A violência de gênero perpassa diversos âmbitos como a violência intrafamiliar doméstica física psicológica moral sexual econômica patrimonial e institucional ZANATTA SCHNEIDER 2017 p 78 Além disso o limiar entre tais formas de violência apresentase muito tenuemente de modo que não raras vezes os atos de agressão não ocorrem de maneira isolada e tampouco deixam de configurar outras formas de violência distintas daquela inicialmente cometida ZANATTA SCHNEIDER 2017 p 78 Saffioti 1994 p 443452 ao tratar da violência de gênero sublinha que a violência do homem contra a mulher é constitutiva da organização social de gênero no Brasil e que a violência já está contida nos homens em virtude das relações que construíram com as mulheres a partir da estruturação assimétrica da sociedade em gênero Nesse sentido o homem violento é gestado pelo ordenamento social patriarcal e nutre este tipo de relações de gênero através de suas práticas sociais Nesse contexto Strey e Winck 2008 p 116 assinalam que as agressões perpetradas por homens contra mulheres são culturalmente permitidas e a postura de autoimposição masculina é socialmente reificada e naturalizada Os papeis de gênero de acordo com os autores aprisionam homens e mulheres em modelos deterministas e são aprendidos transgeracionalmente STREY WINCK 2008 p 116 Sendo assim os autores destacam que quando um homem legitima o seu ato violento partindo de tais pressupostos também retransmite os discursos patriarcais e normalizadores próprios da história da masculinidade e das relações de gênero STREY WINCK 2008 p 116 Portanto quando um homem agride uma mulher não o faz de maneira isolada ainda que o faça no espaço privado uma vez que a sociedade permite a constituição de tal violência seja por convicção ou por negligência STREY WINCK 2008 p 121 Saffioti 1994 p 452 atribui ao processo de construção da identidade de gênero a constituição do que WelzerLang denomina masculinidade defensiva e Chodorow identifica como masculinidade problemática Em ambos conceitos conforme a autora reside a insegurança da masculinidade gerada no processo de sua construção a partir da negação do feminino SAFFIOTI 1994 p 452 Nesse contexto estabelecese a lógica de competição com outros homens e o desejo de dominar as mulheres negandose a condição de sujeito destas últimas a qual só pode ser atingida a partir da transmutação de gênero no imaginário masculino SAFFIOTI 1994 p 452 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 22 A partir disso Saffioti 1994 p 460 traduz a potencialidade de todo homem em ser violento à medida que é incentivado a ser valente e demonstrar que é macho compreendendo se aqui masculinidade como sinônimo de transformação da agressividade em agressão Na contramão as mulheres são ensinadas a suportar caladas maustratos a elas infligidos por seus companheiros Tal potencialidade masculina para a violência entretanto não deve ser considerada um traço indelével de personalidade Strey e Winck 2008 p 116 destacam que a violência de gênero não se constitui enquanto característica inerente aos homens de forma que não se configura como um estado permanente de propensão à utilização da violência quando arbitrariamente julguese adequado A violência contra a mulher portanto não assume contornos essencialistas mas localizase fundamentalmente nos papeis de gênero socialmente desempenhados Ademais os mesmos papeis de gênero que legitimam um poder implícito ao homem constituemse enquanto causa de um intenso sofrimento para eles De acordo com Saffioti 1999 apud STREY WINCK 2008 p 122123 Os próprios homens não conseguem evitar também prejudicaremse com a sua própria violência como o cachorro que morde o próprio rabo ou a pessoa que dá um tiro no pé à medida que aumenta a necessidade de reafirmação de todas as prerrogativas e expectativas concernentes à sua própria masculinidade maior também se torna o compromisso deste homem na manutenção e na preservação deste papel e isto é algo que às vezes também custa caro Demonstrar e exercer permanentemente fortaleza e auto suficiência é uma necessidade que não admite exceções ou momentos de fraqueza a frustração de verse impotente diante de situações nas quais deveria ser imponente honrando os pressupostos de seu papel de homem pode se mostrar tão intensa quanto a necessidade de manterse inabalavelmente correspondendo a este papel Vale dizer o homem também contribui para a perpetuação de um sofrimento autoinfligido em prol da manutenção da masculinidade hegemônica Isso ocorre na medida em que o homem não se aprofunda nos paradigmas que lhe outorgam autoridade e segue reproduzindo uma identidade historicamente constituída dentro de um sensocomum social e culturalmente constituído que comporta a dispensabilidade da autorreflexão STREY WINCK 2008 p 124 Saffioti 1994 p 460461 destaca que o núcleo duro da discussão sobre a violência perpetrada por homens contra mulheres portanto é a compreensão de que este fenômeno é consubstancial ao gênero e tratase de um meio de controle social cuja função precípua é a domesticação das mulheres Nesse cenário ressalta que a violência não existe apenas enquanto Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 23 fato concreto mas também como ameaça sendo existente nesta última versão para a totalidade das mulheres o que configura uma eficácia política gigantesca na medida em que se estabelece nas relações sociais de maneira permanente SAFFIOTI 1994 p 460461 Colette Gendron 1994 p 463 compartilha dessa perspectiva da violência de gênero enquanto instrumento de controle sobre as mulheres não só social como também físico sexual político e econômico Nesse contexto acrescenta que a violência não se caracteriza meramente como meio de controle de um indivíduo sobre outro mas como meio de controle de um grupo sobre outro e de uma sociedade sobre um dado grupo Isso porque para a autora se considerarmos a lentidão na tomada de medidas eficazes no combate à violência contra as mulheres podemos concluir que tais violências satisfazem até certo ponto estas sociedades fortemente dominadas por uma cultura masculina A autora afirma que a sociedade patriarcal está para as mulheres enquanto grupo como o homem está para a mulher enquanto indivíduos dentro de um contexto de relações de exploração e de dominação GENDRON 1994 p 463 Nessa esteira Zanatta e Schneider 2017 p 79 defendem que a violência contra as mulheres é além de uma manifestação da desigualdade sexual um instrumento para a manutenção de uma assimetria entre homens e mulheres Gendron 1994 p 463 da mesma forma assevera que as violências perpetradas contra as mulheres integram a estrutura social que perpetua a desigualdade A autora argumenta que as condições salariais medidas fiscais e legislações matrimoniais discriminatórias mantidas por sociedades presumidamente evoluídas constituem poderosos meios de controle sobre as mulheres enquanto grupo de pessoas GENDRON 1994 p 463 É nesse contexto que Saffioti 1994 p 445 afirma que as mulheres não só têm sido mantidas afastadas das políticas de direitos humanos como o Estado tem ratificado um ordenamento social de gênero através de um conjunto de leis que pretendemse objetivas e neutras porque partem da errônea premissa de que a desigualdade de fato entre homens e mulheres não existe na sociedade A autora assevera que o Estado normatiza o poder masculino sobre a mulher na medida em que proíbe e criminaliza apenas seus excessos Nesse sentido a punição dos excessos integra o poder disciplinador da dominação masculina sendo exercido pelo próprio Estado Dessa forma através de um aparato jurídico que caracteriza a dominação legalizada é ratificada a falocracia SAFFIOTI 1994 p 445 Nesse cenário temos que a violência de gênero apresentase enquanto instrumento de controle social e impede as mulheres enquanto grupo de acessar e fruir de sua cidadania plena Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 24 Não obstante Marlene Neves Strey 2001 p 60 destaca que a subjugação das mulheres é tão comum em nossas sociedades que não é amplamente aceita como uma questão de direitos humanos Nesse cenário a autora defende que a discussão sobre violência de gênero situase dentro da esfera de discussão do conceito de cidadania uma vez que os valores homem e masculino são os valores de referência para o pensamento e a conduta da humanidade STREY 2001 p 61 Silva Copetti e Borges 2009 p 15 informam que a violência contra as mulheres anteriormente vista como uma questão relativa à esfera privada a partir de meados da década de 80 Isso porque a violência contra a mulher passou a ser compreendida pelos movimentos feministas como uma questão que demandava do Estado o reconhecimento da necessidade da criação de órgãos especializados em atender às vítimas de violência e proporcionasse um tratamento legal ao assunto tendo em vista o caráter cultural social e público desse problema SILVA COPETTI BORGES 2009 p 15 Nesse sentido compreendese que deve haver o reconhecimento pleno e irrestrito da violência contra a mulher enquanto violação de direitos humanos uma vez que a violência de gênero manifestase na transgressão do princípio constitucional da dignidade humana na forma como obstaculiza a realização da democracia e no impedimento da realização dos direitos sociais SILVA COPETTI BORGES 2009 p 14 Além disso Silva Copetti e Borges 2009 p 14 esclarecem que a violência de gênero é muito mais complexa que a violência doméstica Isso porque extrapola o ambiente doméstico e fazse presente em todos os lugares caracterizandose enquanto um tipo específico de violência que vai além das agressões físicas e da fragilização moral limitando a ação feminina Portanto a violência de gênero apresentase como violência física moral psicológica sexual ou simbólica uma vez que carrega uma carga de preconceitos sociais disputas discriminação competições profissionais e uma herança cultural machista SILVA COPETTI BORGES 2009 p 14 Parecenos incontestável portanto que a violência de gênero constituise enquanto uma espécie de violação aos direitos humanos Isso decorre da observação de que a violência de gênero fazse presente em todos os lugares acomete a universalidade de indivíduos de determinado grupo seja concretamente ou através da ameaça permanente cerceia o exercício da cidadania plena e exerce o controle social físico sexual político e econômico sobre determinados sujeitos Grazielly Alessandra Baggenstoss 2017 p 37 identifica uma configuração normativo jurídica caracterizadora do conjunto de direitos humanos distinta para as mulheres Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 25 Historicamente na aplicação das normas jurídicas verificase que o status jurídico que subsidia a existência masculina diverge daquele que garante a dignidade da pessoa humana e o mínimo existencial às mulheres Tal diversidade conforme a autora justificase a partir de uma conformação cultural formatadora do papel social das mulheres como secundário em relação ao conjunto de atribuições relativas aos homens e não em razão de diferenças físicobiológicas BAGGENSTOSS 2017 p 37 Nesse contexto Zanatta e Schneider 2017 p 93 defendem a necessidade de repensar os fundamentos do Direito conforme rupturas paradigmáticas sociais Isso ocorreria a partir de uma releitura da violência contra a mulher a partir da ótica de seus direitos fundamentais e da dignidade da pessoa humana a qual pode ser efetivada a partir da abertura à desconstrução de signos tão naturalizados ZANATTA SCHNEIDER 2017 p 93 Compreendendo a necessidade de realizar uma releitura da violência contra a mulher a partir da referida ótica a presente pesquisa busca descortinar as relações estabelecidas entre a violência de gênero e o assédio sexual laboral Colette Gendron 1994 p 468 a respeito do tema argumenta que a sexualidade também é utilizada como instrumento de dominação e esclarece que o assédio sexual constitui se enquanto uma forma de violência cometida contra as mulheres Isso porque se configura enquanto uma manifestação de poder para o exercício do controle dos homens sobre as mulheres das quais os homens desejam dispor como estas fossem apenas objetos sexuais GENDRON 1994 p 468 É precisamente sobre demonstrar as relações estabelecidas entre assédio sexual laboral e violência de gênero que se estrutura a próxima seção desta pesquisa 2 ASSÉDIO SEXUAL LABORAL COMO ESPÉCIE DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO O assédio sexual no ordenamento jurídico pátrio é caracterizado pela conduta de constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual prevalecendo se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego cargo ou função BRASIL 1940 Tal definição constitui o caput do artigo 216A do Código Penal único dispositivo da legislação brasileira que trata da conduta de assédio sexual Rodolfo Pamplona Filho 2001 p 35 conceitua assédio sexual como toda conduta de natureza sexual não desejada que embora repelida pelo destinatário é continuadamente reiterada cerceandolhe a liberdade sexual Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 26 O bem jurídico tutelado pelo dispositivo que criminaliza a conduta de assédio sexual é a liberdade sexual na medida em que o assédio sexual constitui uma violação a tal liberdade tendo em vista que constitui um cerceamento do direito individual de livre disposição do próprio corpo PAMPLONA FILHO 2001 p 37 A respeito dessa tutela Pamplona Filho 2001 p 24 elucida que um preceito proibitivo não impede uma pessoa de no exercício da sua liberdade individual praticar condutas vedadas pelo Direito mas estabelece que a prática de tal conduta implica em determinada sanção pela violação da ordem jurídica Nesse sentido o autor sublinha que são opostas limitações ao exercício absoluto da liberdade com o objetivo de garantir a organização da sociedade e o exercício da própria liberdade PAMPLONA FILHO 2001 p 27 Sendo assim temos que o exercício da liberdade na sociedade moderna pressupõe a observância de alguns limites estabelecidos como uma garantia da liberdade Nesse cenário o conhecimento de tais limites no que se refere à liberdade sexual pode ser situado na observância do direito de liberdade sexual bem como de outros bens jurídicos que receberam proteção constitucional como a intimidade a vida privada a honra e a imagem das pessoas PAMPLONA FILHO 2001 p 29 Por essa razão o assédio sexual enquanto ilícito constitui uma violação ao postulado dogmático da liberdade sexual justificandose a sanção civil lato sensu dessa conduta ainda que não haja lei específica para todas as formas possíveis de assédio sexual visto que tal fenômeno não se restringe ao âmbito laboral PAMPLONA FILHO 2001 p 3537 Na maioria absoluta dos casos noticiados o sujeito ativo da conduta que configura assédio sexual é homem e as assediadas são predominantemente mulheres PAMPLONA FILHO 2001 p 40 Tal configuração de gênero do assediador e assediada apresentase desta forma desde a origem do desenvolvimento da figura jurídica do assédio sexual VIVOT 2002 p 28 É precisamente por essa razão que a abordagem deste trabalho orientase pela premissa de que os assediadores são majoritariamente homens e as assediadas majoritariamente mulheres Nesse sentido o assédio sexual encontra amparo no trinômio podersexualidade violência e guarda estreita relação com as desigualdades de gênero sendo indiscutível que as relações sociais de gênero são determinantes na perseguição moral no trabalho BEDOLLA et al apud TOVAR et al 2010 p 44 Além disso o assédio sexual no trabalho verificase como expressão da dominação dos homens sobre as mulheres e exercese diretamente sobre o corpo das afetadas pressupondo uma violência As trabalhadoras podem ser sujeitas a duas categorias de perseguição tendo em Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 27 vista que vivem uma dupla subordinação a de gênero e a laboral ACEVEDO apud TOVAR et al 2010 p 44 Rachel Franzan Fukuda 2012 p 121 aponta que existe uma dificuldade na caracterização de assédio fundada no padrão cultural que legitima comportamentos sexuais predatórios masculinos do que resulta o tratamento do assédio apenas como problema nas relações de trabalho e não como violência contra a mulher A autora destaca que os crimes de assédio sexual revelam a transposição das regras socialmente impostas à esfera privada para a esfera pública na medida em que há uma exigência de adequação ao papel social feminino no espaço público o que antes limitavase à esfera doméstica FUKUDA 2012 p 123 É nesse contexto que a ideia do espaço público como um ambiente masculino consolida se e perpetuase relegando ao feminino papel coadjuvante do qual se espera atuação espelhada àquele desempenhado no espaço doméstico qual seja o papel de mãe e de esposa FUKUDA 2012 p 123 As consequências mais graves do assédio sexual laboral dizem respeito à integridade física e mental da empregada assediada Nesse sentido Maria de Lourdes Leiria 2012 desenvolve a tese de que o assédio sexual laboral deve ser considerado agente causador de doença do trabalho e as doenças desencadeadas pela violência laboral devem ser consideradas doenças do trabalho entre as quais devem ser incluídas aquelas causadas pelo assédio sexual no ambiente de trabalho Conforme Leiria 2012 p 145 o assédio sexual é um dos principais ensejadores do estresse laboral o qual é responsável por desencadear nos trabalhadores uma série de malefícios para sua saúde De acordo com a autora o estresse decorre de condições psicossociais adversas e pode provocar insatisfação e desmotivação laboral afetando tanto a saúde quanto o bemestar do trabalhador LEIRIA 2012 p 145 De acordo com Leiria 2012 p 151 os transtornos psicológicos decorrentes do assédio sexual podem gerar incapacidade para o trabalho temporária ou permanente somada a reflexos na vida profissional familiar e social da vítima O quadro da vítima pode ser agravado pelo seu isolamento e falta de vontade de conviver com familiares e amigos reduzindo drasticamente sua qualidade de vida e bemestar LEIRIA 2012 p 151 O assédio sexual no ambiente de trabalho portanto tratase de um mecanismo de controle social gerado e mantido por uma sociedade que atribui características psicológicas condutas e papéis diferenciados a mulheres e homens desde seu nascimento e por toda a duração de suas vidas TOVAR et al 2010 p 46 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 28 Nesse contexto tais normas e expectativas culturais têm efeitos expressivos na promoção e configuração da violência contra as mulheres minimizando ou encobrindo seus efeitos negativos perpetuando a violência e negando assistência às vítimas KOSS et al apud TOVAR et al 2010 p 46 Corroborando essa perspectiva MarieFrance Hirigoyen 1999 p 76 assevera que o assédio sexual enquanto violência praticada majoritariamente por homens contra mulheres não se trata fundamentalmente de obter favores de natureza sexual mas sim de buscar uma afirmação de poder através da subjugação da mulher como objeto sexual Miriam Grossi 1994 p 482 sublinha que tanto violência quanto gênero são categorias historicamente construídas o que significa dizer que a percepção social da violência não é única nem universal assim como o significado de ser homem ou mulher é variável de acordo com a cultura e o momento histórico Nesse contexto verificase que inicialmente compreendiase como violência contra a mulher apenas os homicídios de mulheres perpetrados por seus maridos companheiros e amantes GROSSI 1994 p 483 Posteriormente essa violência passou a ser localizada nas situações de violência doméstica eou conjugal e nos anos 90 a problemática passa a abranger outras espécies de violência de gênero como o assédio sexual o abuso sexual infantil e as violências étnicas GROSSI 1994 p 483 Hodiernamente portanto não há que falarse em contestação da caracterização do assédio sexual laboral como espécie de violência de gênero na medida em que restam suficientemente preenchidos os pressupostos para a qualificação da conduta enquanto violência contra a mulher Não obstante o recente reconhecimento social da conduta enquanto violência de gênero já na década de 70 buscavase demonstrar a correlação entre assédio sexual laboral e desigualdade de gênero como fez a jurista estadunidense Catharine MacKinnon em seu livro Sexual harassment of working women a case of sex discrimination 1979 Na referida obra a autora argumenta que o assédio sexual de mulheres no ambiente de trabalho é uma forma de discriminação de gênero no emprego e defende que a estrutura dos trabalhos ocupados pelas mulheres torna estas vulneráveis a essa forma de abuso MACKINNON 1979 p 4 Nesse contexto temos que o assédio sexual é uma das dinâmicas que expressa e reforça o papel tradicional e inferiorizado assumido pelas mulheres no ambiente de trabalho MACKINNON 1979 p 4 MacKinnon defende de maneira vanguardista que o assédio sexual laboral obstaculiza a obtenção de igualdade social pelas mulheres argumentando que o trabalho é essencial para a Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 29 sobrevivência e independência das mulheres MACKINNON 1979 p 4 Nesse contexto o assédio sexual no ambiente de trabalho exerce um duplo papel no enfraquecimento da luta pela obtenção da equidade de gênero na medida em usa a posição empregatícia da mulher para promover uma coação sexual e usa a posição sexual da mulher para exercer uma coação econômica MACKINNON 1979 p 4 Sendo assim a autora defende que o rompimento do vínculo entre a sobrevivência material e a exploração sexual poderia ser facilitado pelo reconhecimento legal de que o assédio sexual é discriminação sexual MACKINNON 1979 p 4 A autora sublinha que o fato de o assédio sexual ser cometido contra uma grande e diversificada população de mulheres apoia a análise de que o assédio sexual ocorre por causa da característica compartilhada por esse grupo qual seja gênero MACKINNON 1979 p 27 Essa premissa é o que orienta a obra de MacKinnon na medida em que a autora considera que tal demonstração sustenta uma análise dessa violência como estrutural portanto capaz de ensejar seu reconhecimento enquanto discriminação de gênero e não apenas como injustiça entre dois indivíduos MACKINNON 1979 p 27 Nesse sentido assevera a autora As práticas que expressam e reforçam a desigualdade social das mulheres para os homens são casos claros de discriminação baseada no sexo na abordagem da desigualdade O assédio sexual de mulheres trabalhadoras é considerado discriminação no emprego baseada no gênero onde o gênero é definido como o significado social da biologia sexual As mulheres são assediadas sexualmente pelos homens porque são mulheres isto é por causa do significado social da sexualidade feminina aqui no contexto do emprego Três tipos de argumentos apoiam e ilustram essa posição primeiro a troca de sexo pela sobrevivência historicamente assegurou a dependência e inferioridade econômica das mulheres bem como a disponibilidade sexual para os homens Em segundo lugar o assédio sexual expressa o padrão de papel sexual masculino da iniciação sexual coercitiva em relação às mulheres muitas vezes de maneiras cruéis e indesejadas Em terceiro lugar a sexualidade das mulheres define em grande parte as mulheres como mulheres nesta sociedade por isso as violações dela são abusos de mulheres como mulheres MACKINNON 1979 p 174 tradução nossa A partir da premissa adotada pela autora de que essa prática contra as mulheres é estrutural verificamos que enquanto conduta que atinge a dignidade da pessoa humana o assédio sexual laboral constituise enquanto variante da violência de gênero Isso explicita a divisão sexual do trabalho e os mecanismos de dominação das mulheres por meio dos papeis sociais Apresentandose como verdadeiro instrumento de controle e subordinação das mulheres e provocando impactos diretos na saúde das trabalhadoras vítimas da conduta é inegável que o Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 30 assédio sexual laboral apresentase como uma das formas mais comuns de violência contra a mulher na sociedade contemporaneamente Nesse sentido e considerando que restou demonstrado na seção anterior deste estudo que a violência de gênero configurase enquanto violação de direitos humanos temos que o assédio sexual laboral caracteriza violência de gênero e consequentemente violação de direitos humanos CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta pesquisa orientada pela diminuta produção científica sobre a problemática do assédio sexual laboral objetivou analisar a referida temática a partir das relações guardadas com a questão de gênero Nesse sentido o problema que orientou a pesquisa foi a prática de conduta caracterizadora de assédio sexual laboral é uma espécie de violência de gênero e uma violação de direitos humanos A hipótese que foi confirmada era a de que o assédio sexual laboral por gerar reflexos na saúde da trabalhadora constitui uma espécie de violência de gênero e consequentemente uma violação de direitos humanos O objetivo geral do trabalho portanto consistiu em demonstrar a relação entre gênero e o assédio sexual laboral cometido por homens contra mulheres Os objetivos específicos da pesquisa tiveram seus desdobramentos abordados nas seções de desenvolvimento Na primeira seção foi apresentada a definição de violência de gênero e analisouse a efetivação dos direitos humanos para as mulheres identificando a violência de gênero como violação de direitos humanos Na segunda seção foram abordados os principais aspectos necessários à compreensão do fenômeno do assédio sexual laboral e sua caracterização como espécie de violência de gênero Nesse contexto o trabalho abordou o conceito de violência de gênero como um instrumento de controle social que impede as mulheres de acessar e fruir de sua cidadania plena a partir da compreensão da própria categoria gênero como um significante primário das relações de poder Dessa forma investigou a relação guardada entre a violência de gênero e violações de direitos humanos concluindo pela caracterização desta espécie de violência enquanto violação de direitos humanos Tal caracterização decorre da compreensão de que a violência de gênero cerceia o exercício da cidadania plena e exerce o controle social físico sexual político e econômico sobre determinados sujeitos A partir dessa compreensão foi estabelecida a correspondência entre o assédio sexual laboral e a violência de gênero Analisando os principais aspectos constituidores e as consequências da conduta que caracteriza o assédio sexual laboral concluiuse pela sua Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 31 identificação como espécie de violência de gênero Isso porque o fenômeno foi compreendido como expressão da dominação dos homens sobre as mulheres e sua constituição enquanto instrumento de controle e subordinação dessas Apoiandose na premissa de que a violência de gênero configurase enquanto violação de direitos humanos portanto concluiuse pela caracterização do assédio sexual laboral enquanto violência de gênero e consequentemente violação de direitos humanos Considerase portanto que além da comprovação de que o assédio sexual laboral constitui uma espécie de violência de gênero e consequentemente uma violação de direitos humanos esta pesquisa demonstrou que é imprescindível para a questão de gênero que ocorra a legitimação social de novas problemáticas de modo a impactar a formulação da construção das agendas públicas Considerase que esta pesquisa assim como o campo dos estudos de gênero em sentido lato configurase como uma contribuição para tal objetivo na medida em que oferece subsídio científico para a atuação dos sujeitos envolvidos na formulação das políticas públicas Isso pode ocorrer por meio de estímulo à pressão política que deve ser realizada pelos movimentos sociais ou pela orientação dos atores institucionais aptos a impactar na implementação dessa agenda pública Dessa forma apontase como proposta de desenvolvimento da temática abordada nessa pesquisa o estudo mais aprofundado de estratégias de atuação para a consolidação de uma agenda de políticas públicas de gênero ampla e geral Isso porque a proposta inicial de solução para a problemática enfrentada por esta pesquisa demonstrouse inexequível na medida em que erradicação do assédio sexual laboral pressupõe a igualdade nas relações de trabalho e o estabelecimento da igualdade nas relações de trabalho passa necessariamente por uma configuração social de gênero mais igualitária em sentido amplo Sendo assim orientase que trabalhos futuramente desenvolvidos nessa área comprometamse a investigar conjuntos de expedientes aptos a provocar a reorientação da formulação das agendas públicas de modo a compreender políticas públicas capazes de redirecionar a configuração social de gênero estabelecida REFERÊNCIAS BAGGENSTOSS Grazielly Alessandra Os direitos humanos na perspectiva de gênero o mínimo existencial para a garantia da dignidade das mulheres In BAGGENSTOSS Grazielly Alessandra Org Direito das Mulheres Rio de Janeiro Lumen Juris 2017 p 13 39 BRASIL Decreto Lei nº 2848 de 7 de dezembro de 1940 Código Penal Diário Oficial da União Rio de Janeiro RJ 31 dez 1940 p 2391 Disponível em Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 32 httpwwwplanaltogovbrccivil03decretoleiDel2848compiladohtm Acesso em 23 nov 2018 FUKUDA Rachel Franzan Assédio Sexual Uma releitura a partir das relações de gênero Simbiótica Vitória v n 1 p119135 jun 2012 Disponível em httpperiodicosufesbrsimbioticaarticleview45123516 Acesso em 23 nov 2018 GENDRON Colette Violência e Assédio Sexual Revista Estudos Feministas Florianópolis p462472 1994 Disponível em httpsperiodicosufscbrindexphprefarticleview1617814729 Acesso em 23 nov 2018 GROSSI Miriam Pillar NovasVelhas Violências contra a Mulher no Brasil Revista Estudos Feministas Florianópolis p473483 1994 Disponível em httpsperiodicosufscbrindexphprefarticleview1617914730 Acesso em 23 nov 2018 HIRIGOYEN MarieFrance Assédio coacção e violência no quotidiano Tradução de António Marques Lisboa Pergaminho 1999 223 p Série Ciências Sociais Título original Le harcèlement moral La violence perverse au quotidien LEIRIA Maria de Lourdes Assédio sexual laboral agente causador de doenças do trabalho reflexos na saúde do trabalhador São Paulo LTr 2012 214 p MACKINNON Catharine Alice Sexual harassment of working women a case of sex discrimination Sl Yale University Press 1979 PAMPLONA FILHO Rodolfo O assédio sexual na relação de emprego São Paulo LTr 2001 254 p SAFFIOTI Heleieth I B Violência de Gênero no Brasil Atual Revista Estudos Feministas Florianópolis p443461 1994 Disponível em httpsperiodicosufscbrindexphprefarticleview16177 Acesso em 23 nov 2018 SCOTT Joan Wallach Gênero uma categoria útil de análise histórica Educação Realidade Porto Alegre v 20 n 2 p7199 juldez 1995 SILVA Juliana Franchi da COPETTI Francieli Venturini BORGES Zulmira Newlands Uma discussão sobre os direitos humanos e a violência de gênero na sociedade contemporânea Revista Sociais e Humanas Santa Maria v 22 n 2 p97111 juldez 2009 Disponível em httpsperiodicosufsmbrsociaisehumanasarticleview1183 Acesso em 23 nov 2018 STREY Marlene Neves Violência e Gênero um casamento que tem tudo para dar certo In GROSSI Patricia Krieger WERBA Graziela C Org Violências e gênero coisas que a gente não gostaria de saber Porto Alegre Edipucrs 2001 p 4769 STREY Marlene Neves WINCK Gustavo Espíndola A Voz Mais alta Mas na Hora Certa a naturalização da violência de gênero enquanto recurso legitimado ao homem Revista Ártemis João Pessoa v 9 p113133 dez 2008 Disponível em httpwwwperiodicosufpbbrojsindexphpartemisarticleview118156870 Acesso em 23 nov 2018 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 33 TOVAR Ligia Sánchez et al Consideraciones psicosociales sobre el acoso sexual en el trabajo In PORTERO Maria Teresa Velasco Org Mobbing acoso laboral y acoso por razón de sexo guía para la empresa y las personas trabajadoras Madrid Tecnos 2010 Cap 2 p 4359 VIVOT Julio J Martínez Acoso sexual en las relaciones laborales Buenos Aires Astrea 1996 141 p ZANATTA Marília Cassol SCHNEIDER Valéria Magalhães Violência Contra as Mulheres a Submissão do Gênero do Corpo e de Alma In BAGGENSTOSS Grazielly Alessandra Org Direito das Mulheres Rio de Janeiro Lumen Juris 2017 p 7397 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 34 PROFISSIONAIS DO SEXO VÍTIMAS DO ASSÉDIO SEXUAL ENQUANTO DESENGAJAMENTO MORAL NO TRABALHO Priscila Fernanda Santiago Ferreira1 Wellington Lima Amorim2 Karla Fernanda Pereira3 RESUMO Há bastante tempo a humanidade convive com o comércio sexual e reflete a insatisfação com a existência de tal esforçandose em banilo ou submetêlo ao controle e exercício de poder Durante sua história muitas foram e são as depressões assim como momentos de alta mas a prostituição sempre foi um fenômeno que acompanhou e ainda acompanha o desenvolvimento humano Os dilemas sobre a profissão são muitos entre aqueles que a aceitam como trabalho e aqueles que não dentre estes prevalece a prática do desengajamento moral uma prática estudada pelo psicólogo Albert Bandura que mostra a capacidade do ser humano elaborar explicações para justificar atos antissociais de forma a eliminar ou minimizar a sensação de culpa ou censura Então este estudo tem por objetivo analisar a história de vida de uma ex profissional do sexo e identificar os mecanismos de desengajamento moral presentes nos casos de assédio sexual contra essas profissionais Sendo uma pesquisa pautada no método história de vida onde se relatou a história de vida de uma mulher que atuou como profissional do sexo e que é referência para o movimento de prostitutas no estado do Maranhão Este estudo torna se relevante porque acrescenta dados importantes à Rede Brasileira de Prostituição assim como à Associação das Profissionais do Sexo do Maranhão APROSMA e beneficiará as Ciências Humanas com informações que impulsionarão futuros estudos servindo de fonte de pesquisa Palavraschave Prostituição Desengajamento moral Assédio sexual INTRODUÇÃO A prostituição é considerada um dos trabalhos mais antigos na humanidade e de acordo com Sandra Azeredo 2002 desde a antiguidade essa atividade já era vista como a posição mais baixa desempenhada por uma mulher em especial aquelas sem estudo e qualificação profissional As profissionais do sexo já viviam marginalizadas socialmente por exercerem um trabalho cujo desprezo moral lhe cabia perfeitamente assim como a violação de seus direitos Entendese que além disso as profissionais do sexo estão expostas a diversos riscos físicos psicológicos infecções sexualmente transmissíveis IST exploração sexual e 1 Mestra em Psicologia Universidade Federal do Maranhão 2019 Email priscilasantiago92hotmailcom Link do lattes httplattescnpqbr6221267234920112 2 Pósdoutor em Filosofia Universidade do Contestado 2018 Pósdoutor em Desenvolvimento Regional Universidade Federal de Santa Catarina 2018 Doutor em Ciências Humanas Universidade Federal de Santa Catarina 2009 Email wellingtonamorimgmailcom Link do lattes httplattescnpqbr8435602742904295 3 Mestra em Psicologia Universidade Federal do Maranhão 2019 Email karlafernandakfphotmailcom Link do lattes httplattescnpqbr9361867430800607 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 35 violências como o assédio sexual que é comum nesse trabalho Dessa forma é importante estudar como o desengajamento moral é manifestado enquanto assédio sexual contra as profissionais do sexo por pessoas que praticam ações nocivas e buscam justificálas social e moralmente levando em consideração fatores culturais históricos sociais políticos entre outros e como é compreendido por elas qual o significado que atribuem a esses comportamentos Em Bandura Azzi e Polydoro 2008 o conceito de desengajamento moral é trazido como uma forma que as pessoas lançam mão para justificar atos antissociais sem que permitam cair sobre si a culpa ou censura por isso Como é o caso do assédio sexual que é uma forma corriqueira às vezes sutil e velada contra as mulheres de desengajamento abrangido no art 1º da Constituição Federal como violação aos direitos fundamentais de dignidade humana e valores sociais do trabalho indo de encontro à liberdade igualdade privacidade e intimidade Para Isabel Dias 2008 o assédio sexual consiste em uma atitude de cunho sexual não desejado pela pessoa a que foi destinado ofendendo a integridade física e moral da mesma Assim os agressores podem utilizar algum uns dos oito mecanismos de desengajamento moral que Albert Bandura definiu como Justificação Moral Linguagem Eufemística Comparação Vantajosa Deslocamento da Responsabilidade Difusão da Responsabilidade Distorção das Consequências Desumanização Atribuição da Culpa Muitos agressores utilizam o assédio sexual contra as profissionais do sexo tomando a essência sexual do trabalho como justificação E que no Brasil a cultura que ainda tem fortemente a figura masculina como dominante em relação à feminina dá espaços maiores para que o assédio sexual aconteça e seja tratado com normalidade e aceitável Ao compreender processos históricos pelos quais os brasileiros passaram é possível perceber a conservação e mudança dos padrões estabelecidos pela sociedade e como interferiram e interferem no exercício da prostituição em uma sociedade onde as mulheres ainda lutam para conseguir espaço e respeito pelos seus direitos Além de ser passível de percepção a maneira como o desengajamento moral tem sido utilizado e as diversas formas de uso dos oito mecanismos como violência àquelas que exercem o trabalho sexual O presente estudo é motivado pelo interesse em entender como ocorre o assédio sexual às profissionais do sexo através da identificação do uso de mecanismos de desengajamento moral com a finalidade de agredir física ou moralmente tais trabalhadoras Assim como compreender a manutenção e construção dos padrões morais culturais históricos sociais que embasam e ajudam a justificar as atitudes antissociais contra essas mulheres que além de satisfazerem os desejos sexuais de clientes suportam seus desejos imorais de vexar perseguir Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 36 e chantagear Visto que muitos são os estudos que tratam do perfil das profissionais do sexo mas poucos os que falam sobre a violência vivida no dia a dia do exercício laboral das mesmas como Costa et al 2006 fazem em seu estudo intitulado O Trabalho das Profissionais do Sexo No tangente ao desengajamento moral temse a oportunidade de contribuir com uma pesquisa inovadora na temática uma vez que são poucos os estudos realizados e em geral falam sobre trânsito tendo por exemplo o estudo Uma Medida de Justificativas de Motoristas para Infrações de Trânsito realizado por Neto Iglesias e Günther 2012 As contribuições do estudo também acrescentarão dados importantes à Rede Brasileira de Prostituição assim como à Associação das Profissionais do Sexo do Maranhão APROSMA E beneficiarão as Ciências Humanas com informações que impulsionarão futuros estudos servindo de fonte de pesquisa A partir do que foi supracitado o problema que implicou a pesquisa foi Como se manifestam os mecanismos de desengajamento moral presentes nos casos de assédio sexual contra as profissionais do sexo Dessa forma o estudo tomou por base o objetivo geral de Analisar a história de vida de uma prostituta não atuante e identificar os mecanismos de desengajamento moral presentes nos casos de assédio sexual contra essas profissionais E como metodologia a pesquisa teve por base uma investigação histórica e qualitativa visto que seu objetivo é entender a natureza social de um fato o mundo da prostituição na cidade de São Luís capital do estado do Maranhão dentro de um recorte temporal século XX e século XXI Usouse o método história de vida e a técnica recorte e colagem Spindola e Santos 2003 p121 ressaltam que não há necessidade de averiguar os fatos contados pois o importante é o ponto de vista de quem está narrando é compreender a história em conformidade com o relato e interpretação do próprio autor O uso de tal método permitiu conhecer aspectos subjetivos experiências e percepções pela própria voz da entrevistada que há trinta anos atuou como profissional e atualmente é presidente da Associação das Profissionais do Sexo do Maranhão APROSMA sobre o assédio sexual no exercício laboral de uma profissional do sexo entre outros aspectos vinculados com a sua vida profissional e enriquecer com detalhes o tema da pesquisa O método história de vida é um tipo de biografia e esta pesquisa não pretendeu focar apenas em aspectos relacionados ao assédio sexual mas relatar de fato a vida profissional de uma pessoa que exerceu a profissão do sexo e com esse relato os dados obtidos foram tratados e analisados Onde se buscou inferir a mensagem explorando seu sentindo com base em contextos sociais históricos políticos entre outros que modularam e ainda modulam aspectos sexuais e de violência como assédio sexual às profissionais do sexo Assim como se buscou Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 37 nas falas identificar e dar sentido aos mecanismos de desengajamento moral definidos por Albert Bandura 1 DESENVOLVIMENTO 11 Histórico do comércio sexual em São Luís Maranhão A prostituição no século XX em São Luís davase no Centro Histórico especificamente em uma área conhecida como Zona do Baixo Meretrício ZBM nas décadas de 40 a 80 fruto dos poderes ditatoriais do interventor federal Paulo Martins de Souza Ramos e do chefe de polícia Flávio Bezerra que juntos decidiram confinar as prostitutas em uma zona exclusiva na década de 40 REIS 2002 p 9 Um ponto de concentração para os homens da cidade visto existirem poucos lazeres em São Luís apenas alguns bares e clubes no centro e subúrbios As casas de prostituição tinham um expediente das 19 horas às duas da madrugada mas não era cumprido e se prolongava até o amanhecer Durante o horário de funcionamento predominavam músicas como samba sambacanção tango bolero foxtrote rumba mambo e guarachá um repertório de tristes histórias de amor Logo havia bons dançarinos que aprenderam a dançar com as profissionais do sexo que davam shows nos salões atraíam olhares dos homens e garantiam o consumo das bebidas A rotina noturna da prostituta era ficar no início da noite à porta ou esquina do casarão em que trabalhava esperando o primeiro cliente quando não conseguiam clientes nesse local iam às boates para uma nova tentativa Entretanto o passar dos anos trouxe a urbanização à cidade e comprometeu o exercício da atividade com a inauguração da Ponte José Sarney ligando a antiga São Luís com o crescente bairro São Francisco inauguração do Porto de Itaqui aterramento do Anel Viário e a vinda da UFMA para o Campus Bacanga povoando essas regiões com residências restaurantes boates e motéis de modo que os rapazes buscavam mulheres diferentes no outro lado da ponte Assim o comércio sexual ludovicense espalhouse de forma ampla e imensurável perdendo a característica boêmia e dando espaço à exploração sexual e a Zona foi deixando de existir Ruas quase que desertas prédios escorados ruínas Outros sobradões em uma transformação muito lenta e tímida são tomados pela atividade comercial outros tantos servem de habitações coletivas para famílias Pouquíssimos são os bares que ainda tentam negociar mesmo assim para os saudosistas ainda dá para ouvir músicas das décadas de 50 e 60 REIS 2002 p 144 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 38 No século XXI a prostituição continua situada no Centro Histórico e seus arredores mas se expandiu para outros bairros e constituise por mulheres pobres em sua maioria negras e marginalizadas socialmente sem a segurança e disciplina presente outrora na ZBM do século XX Com isso foi fundada e regularizada em 2003 a APROSMA Associação das Profissionais do Sexo do Maranhão visando a luta por leis saúde respeito e outras causas das profissionais do sexo do estado 12 Assédio Sexual Uma das características da humanidade desde sua existência é a manifestação de atitudes violentas com variados objetivos e tais atitudes são um dos instintos do homem Freud explica que o ser humano possui dois tipos de instintos os eróticos que em geral objetivam unir e preservar e o instinto agressivo ou destrutivo que visa destruir e até matar logo a violência é um instinto porque pode ser compreendida como agressividade proposta ou empregada com finalidade e desejo de destruir de aniquilar ou de dano à integridade do outro ou de si mesmo de intencionalidade consciente ou inconsciente Esse desejo de destruir a integridade do próximo provém da intolerância do prazer pessoal da incapacidade de compreender e aceitar a dor a frustação dando espaço para variadas vítimas e variadas formas de violência Dentre elas destacase o problema da violência masculina contra a mulher que é constante e crescente em toda sociedade carregando traços patriarcalistas que refletem a imposição de poder e domínio do homem sobre a mulher Uma relação que se tornou frequente não apenas na esfera familiar mas na social e trabalhista através de agressões humilhações abusos e assédio violências estas que podem ser manifestadas de forma direta ou indireta e multifacetada trazendo como elemento constituinte as diferenças entre os sexos Para Moreira e Monteiro 2012 p 2 essa relação estabelecida entre homens e mulheres tendo como mecanismo a desigualdade de poder constitui violação dos direitos humanos e gera problemas de ordem social de saúde pública e de saúde da mulher colocandoa à mercê de outros tipos de violência A violência contra mulher é algo cultural no Brasil e está inserida na questão de gênero cada dia mais assimétrica nas relações de trabalho independente do tipo de atividade laboral exercida e construindo cenários de desigualdade desvalorização discriminação e tentativa da superioridade masculina que interfere na saúde bemestar e motivação das vítimas Ao analisar um pouco da história brasileira é possível perceber a formação de um povo sob a égide da violência e uma violência que até hoje tem as mulheres como maiores vítimas e que em séculos passados foi manifestada pelas índias violentadas pelos colonizadores e pelas negras africanas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 39 e escravas que estavam sob a tirania de seus senhores períodos em que a violência contra a mulher era justificada pela necessidade de obediência aos homens Quando retrocedemos um pouco mais no passado e especialmente no passado escravagista brasileiro encontraremos o senhor dono não apenas do trabalho mas também do corpo e da alma da sua serva Não podemos dizer que a relação senhorescrava era da mesma natureza do assédio pois nela a imposição do domínio trazia implícita a noção de desobediência paga com a morte FREITAS 2001 p 14 Essa cultura de violência em ambiente doméstico ou profissional é mantida por estereótipos de inferioridade feminina e afronta a dignidade de trabalhadoras que se sentem lesadas traídas em uma situação intolerável e complexa Apesar da sociedade brasileira deixar claro que o machismo não é um pensamento único de homens mas também de mulheres percebese que nos últimos anos a inserção de mulheres no mundo profissional aumentou e consequentemente o acesso à renda direitos busca pela educação profissional Essa crescente presença feminina no ambiente laboral ajudou a modificar o perfil das organizações o que todavia não garantiu às mulheres segurança nos postos de trabalho pois com esse crescimento aumentou também a violência no âmbito trabalhista contudo predominante de forma velada e psicológica As trabalhadoras assujeitam se a essa situação pela necessidade de si manter financeiramente manter a família ou complementar o orçamento familiar e pela articulação do trabalho profissional com o doméstico o que lhes exige maior resiliência mas não evita as consequências das violências sofridas Uma das consequências mais comuns e que tem ganhado cada vez mais repercussão e atenção é o assédio sexual que conforme Dias 2008 p 20 tratase de um fenômeno que atenta contra a dignidade da pessoa humana constituindo ao mesmo tempo um obstáculo à produtividade e ao desenvolvimento econômico e social E que está fundamentado em um construto sociocultural a respeito da importância da dominação masculina ofuscando a equidade entre homens e mulheres como forma perniciosa de agressão às mulheres Além disso a cultura brasileira é rica em erotismo sensualidade malícia humor com duplo sentido manifestados nas músicas no modo de dançar em algumas vestimentas na informalidade entre outras formas o que dá espaço para que se pense atitudes como o assédio de modo ingênuo Para Barreto 2018 p 19 essa violência tratase de um crime contra os costumes especialmente contra a liberdade sexual considerado próprio e puro cuja consumação dá se por uma única conduta que constrange e é suficiente para produzir o resultado independentemente da obtenção do favor sexual Uma violência que acontece principalmente Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 40 quando o homem em posição hierárquica superior não aceita ser negado rejeitado pela mulher subordinada e assim insiste e pressiona com a finalidade de conseguir o que almeja O assédio sexual é um tipo de agressão comum e rotineira no comércio sexual que faz das mulheres vítimas constantes da violência praticada pelos clientes pois julgam que o fato de estarem pagando lhes dá o direito e poder para agir ultrapassando os limites e direitos básicos de ser humano a que as prostitutas têm assegurados como cidadãs e ser agressivo na busca da satisfação de seus desejos íntimos A relação prostitutacliente é expressa como encontro permeado de humilhação repulsa e aversão pois além de ser agredida é obrigada a fazer coisas contra sua vontade e aceitar qualquer cliente MOREIRA MONTEIRO 2012 p 04 É uma relação comercial pautada em medo visto que muitas prostitutas já foram agredidas ou presenciaram colegas de trabalho sofrendo agressões assim vivenciam e estão aprisionadas às ameaças contra a integridade física e psicológica E a um cotidiano de acusações preconceito vexame estigma e desprezo que coloca essas mulheres em lugar de vulnerabilidade As dificuldades vividas pelas prostitutas no contexto de trabalho e relacionadas ao assédio sexual revela a banalização delas como mulheres que podem ser vitimadas pela justificação da atividade que exercem E a rua apesar de ser o local de trabalho delas não é um ambiente agradável pois nela as humilhações são públicas diárias e não vêm somente dos clientes Outro ponto é que a rua é um local de exposição onde todos ficam cientes da atividade que praticam e reforçam a rejeição e marginalização social por serem essas mulheres consideradas uma ameaça à moral princípios e valores da família Logo as profissionais do sexo têm pouco amparo e apoio para combaterem a violência que sofrem ou escaparem dela porque mesmo com uma legislação começando a ser moldada a respeito do assédio sexual e a violência doméstica onde se considera a Lei Maria da Penha que visa coibir e punir os agressores de mulheres é possível notar que o sistema judiciário brasileiro ainda é ineficiente e inadequado que muito se tem para progredir no combate à violência contra as mulheres com ações voltadas para a educação social uma vez que a sociedade continua patriarcal em suas práticas com crimes contra as mulheres sendo comuns diários e seus agentes muitas vezes absolvidos sem qualquer impunidade 121 Assédio sexual como uma forma de desengajamento moral O assédio sexual sempre é uma forma de desengajamento moral visto que o agressor pode usar mecanismos psicossociais que tornam pessoal e socialmente aceitáveis atitudes que são prejudiciais desconsiderando e ainda fazendo com que outros desconsiderem a sua culpa Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 41 responsabilidade pelo mal que causa podendo também diminuir distorcer ou até questionar o dano causado por seus atos prejudiciais BANDURA AZZI POLYDORO 2008 p 28 Conforme Bandura Azzi e Tognetta 2015 o desengajamento é uma prática autorregulatória ligada à reestruturação cognitiva de comportamentos tidos como aversos aos padrões morais internalizados Um conceito proposto com o objetivo de mostrar a capacidade do ser humano elaborar explicações para justificar atos antissociais de forma a eliminar ou minimizar a sensação de culpa ou censura Tratase de um convencimento de si e do outro pautado em construções ideológicas morais Pode obscurecer a responsabilidade munindose da difusão e deslocamento de responsabilidade de forma que os agentes não se sintam responsáveis pelo mal que causam Ou ainda minimizar distorcer e até mesmo negar o mal resultante de atividades prejudiciais BANDURA AZZI TOGNETTA 2015 E para agir o agressor possui um leque de formas disponibilizadas pelos oito mecanismos de desengajamento moral propostos por Bandura Os mecanismos são divididos conforme alguns esquemas o primeiro esquema faz menção à transformação de uma conduta prejudicial em uma conduta boa O primeiro esquema de mecanismos funciona como uma forma de reconstrução e envolve os mecanismos de justificação moral linguagem eufemística e comparação vantajosa Ele se caracteriza basicamente pela transformação de uma conduta prejudicial em uma boa conduta e mostrase o mais efetivo no desengajamento moral BANDURA AZZI POLYDORO 2008 p 169 O primeiro mecanismo é a Justificação Moral que se baseia no dito os fins justificam os meios operando aquilo que é passível de culpa erro e pode se tornar aceitável em sociedade A probabilidade de autocensura é reduzida podendo ainda o ato analisado ser reconhecido e valorizado socialmente Exemplo praticar assédio moral para garantir a permanência no cargo e afastar a ameaça de ascensão de um colega para aquele cargo BANDURA AZZI POLYDORO 2008 Outro mecanismo é Comparação Vantajosa manifestado quando consequências de uma conduta repreensível são minimizadas quando comparadas com ações mais prejudiciais que ela buscando diminuir sua importância Exemplo considerar que não há mal em insultar um subordinado fazendo menção a uma dificuldade profissional porque demiti lo seria pior uma vez que não consegue fazer tarefas mais complexas BANDURA AZZI POLYDORO 2008 A Linguagem Eufemística também é um mecanismo no qual o agente tenta mascarar o erro através do modo como nomeia tal Exemplo Chamar um deficiente físico de cocho é normal é só um apelido BANDURA AZZI POLYDORO 2008 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 42 No segundo esquema temse um agente que distorce a relação de causa com a conduta antissocial e os efeitos da mesma Para Bandura Azzi e Polydoro 2008 p 170 esse esquema Funciona como uma distorção do agente da ação e envolve os mecanismos de difusão da responsabilidade e deslocamento da responsabilidade Ele opera obscurecendo ou distorcendo a relação causal entre a conduta e seus feitos já que a autocensura é mais forte quando a responsabilidade por um ato anti social é reconhecida O mecanismo Difusão da Responsabilidade baseiase na defesa de recorrer à ideia de que outras pessoas também estão praticando a mesma ação Exemplo Aqui é uma cervejaria todo mundo bebe só ela que não Precisa se adaptar ao grupo BANDURA AZZI POLYDORO 2008 Há o mecanismo de Deslocamento da Responsabilidade que é usado para mostrar que o ato antissocial é uma consequência de pressões sociais originárias de terceiros e assim tirando a responsabilidade da ação realizada Exemplo Eu estabeleci minutos para que ela use o banheiro pois precisa produzir mais perder menos tempo A chefia está cobrando resultados BANDURA AZZI TOGNETTA 2015 O terceiro esquema objetiva reduzir ou desconsiderar os efeitos prejudiciais dos atos O mecanismo de Distorção das Consequências manifestase quando se acredita em fazer o mal pelo bem Visa à minimização do mal causado Exemplo O assédio sexual não é nada demais para uma profissional do sexo pois demonstra interesse do cliente em relação a ela BANDURA AZZI POLYDORO 2008 O último esquema do desengajamento moral ajuda a distorcer a percepção que o infrator tem de sua vítima ou de si mesmo A Desumanização é um mecanismo que prima à retirada de qualidades das pessoas e no lugar atribuírem características não humanas Exemplo Já que ela é prostituta não merece ajuda da polícia por ter sido assediada sexualmente BANDURA AZZI POLYDORO 2008 O mecanismo da Atribuição da Culpa manifestase quando o indivíduo vitimizase sem culpa devida a pressão para responder de modo prejudicial a uma provocação Exemplo Não estou perseguindoa apenas faço com que cumpra suas obrigações BANDURA AZZI POLYDORO 2008 Mostrouse em cada mecanismo justificativas e exemplos práticos de como o indivíduo pode lançar mão ao desengajamento moral contudo é importante lembrar que independente do mecanismo utilizado o resultado poderá trazer consequências que se prolongam por gerações pela disseminação comportamental e a curto médio ou mesmo longo prazo trarão resultados como sofrimento prejuízo à saúde daqueles sobre os quais a atitude desengajada recai Em aspecto de assédio sexual o comportamento desengajado geralmente provém de homem contra mulher por influência cultural social em que o homem por muito foi tido Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 43 exclusivamente como superior à mulher em inúmeros fatores mas que hoje vêm sendo rompidos e amenizados 13 Análise de dados Apresentase neste tópico os resultados na pesquisa qualitativa através de entrevista para a construção da história de vida de uma exprofissional do sexo nesse trabalho exercido por ela O roteiro tomou por base o objetivo geral sem forma enrijecida mas fornecendo espaço para que entrevistador e entrevistada fizessem intervenções adaptações acréscimos ou omissões quando necessário A entrevista foi realizada na manhã do dia 28 de dezembro de 2018 com uso de gravador de voz digital MP3 para o registro das falas assim fiz anotações a punho de expressões tons de fala O referencial teórico deste estudo pautado no desengajamento moral na história da prostituição e nas violências vividas por essas mulheres através do assédio sexual permitiu a construção da história de vida da militante A seguir o resultado da análise onde se buscou identificar os mecanismos de desengajamento moral usados em violências como o assédio sexual Natural de Bequimão interior maranhense Maria de Jesus Costa ou Dona Djé como é conhecida solteira 61 anos com ensino médio completo mãe de três filhos e uma neta hoje é militante funcionária pública fundadora e presidente da Associação de Profissionais do Sexo do Maranhão APROSMA e representante no nordeste da Rede Brasileira de Prostitutas traz em sua história de vida relatos e vivências de uma mulher que sobreviveu a traumas que enfrentou grandes dificuldades em uma sociedade e século onde o machismo mais do que hoje parecia ser a base social do Brasil assim como viu mudanças em lidar reconhecer e construir aspectos morais que caracterizaram e caracterizam o Brasil das décadas de 60 70 80 90 e o atual milênio dois mil Dessa forma buscouse compreender a história de vida da entrevistada com foco em sua vida como profissional do sexo e a própria depoente trouxe à memória situações de sua infância que direta ou indiretamente contribuíram com seu trabalho na Zona do Baixo Meretrício na cidade de São Luís MA durante 30 anos Maria veio para São Luís aos 12 anos e ingressou na prostituição quando tinha 16 anos Informou que aos 12 anos perdeu a virgindade em uma relação sexual não consentida Na verdade eu eu cheguei do interior eu tinha 12 anos e Mas com 12 anos eu não comecei a me prostituir só com 16 mais ou menos isso Mas na verdade mesmo eu fui eu perdi minha virgindade com 12 anos falou com Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 44 tom de cuidado cautela que não foi uma relação uma primeira relação consentida foi uma primeira relação que hoje caracterizava estrupo né Mas naquela época não Durante a entrevista ao falar sobre a primeira relação sexual usou tom de cautela cuidado baixando um pouco a voz o que permitiu inferir aspectos morais ensinados em nossa sociedade às mulheres por muitas décadas e que são trazidos e guardados no século XXI No século XX o contexto cultural exigia que as mulheres casassem virgem ou seja sem nunca terem tido uma relação sexual antes do casamento Não seguir esse padrão caracterizava para a sociedade o que Albert Bandura chama de desengajamento moral e que Almeida 2017 conceitua como ações que impõem sofrimento a terceiros sem que o autor das ações se autocondene pela atitude danosa A figura do homem como dominante e a figura feminina às vezes oprimida inferiorizada e restrita sobremodo em aspectos sexuais entendia que o papel da mulher estava voltado para a geração de filhos educação dos mesmos e cuidados com o lar Apesar das mudanças sociais políticas econômicas ocorridas no século XX como o lançamento da pílula anticoncepcional movimento feminista ditadura militar entre outras a disciplina marcou esse tempo Os processos disciplinares foram a base geral de dominação exercida nas mais variadas instituições como escolas hospitais família a Igreja o Estado e no próprio comércio sexual As instituições eram como um controle social e controle moral sob o olhar vigilante que se impunha pelo cumprimento de regras e manutenção da ordem Notase na verdade que o corpo e o comportamento dos indivíduos são adestrados pela sociedade disciplinar Logo é possível perceber que Maria traz ensinamentos morais em sua fala e que tomou cuidado ao falar pois poderia fazerse entender como apoiadora de tal situação que fugia do padrão cometendo pois desengajamento moral Visto que os conceitos de perder a virgindade solteira e menor de idade estando atualmente menos enraizados continuam presentes Mas se considera o costume de algumas pessoas por serem adultas aproveitarem da ingenuidade de crianças e assim satisfazerem através delas os desejos sexuais Acerca de ter perdido a virgindade com 12 anos ela explica e aceita hoje que não há culpados mesmo tendo entendido ter sido vítima não culpa ninguém provavelmente por focar no contexto e costumes machistas da época em que a violência aconteceu apenas retorna à necessidade de apoio familiar como algo que a incomodou e ainda incomoda mesmo tendo encontrado na prostituição uma pessoa dona da casa de prostituição que a acolheu muito mais que a família Visto que ela veio morar em São Luís na casa de uma tia e a ligação sanguínea com a tia não a fazia se sentir acolhida não havia confiança aproximação Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 45 O lance da família é uma coisa é assim porque deixa eu te falar há quarenta anos atrás é vou falar 50 anos atrás Na verdade eu vou te falar 60 anos atrás nós não tínhamos nada que pudesse nos amparar em nada que a gente pudesse é ter essa coisa de apoio né É não por que a família era desestruturada é porque a família ela não tinha esse direcionamento essa coisa que tem hoje olha a mulher paria filho era pra casar o filho era pra casar não paria filho pra ser gay a filha pra ser prostituta Em sua fala a entrevistada reitera a importância do apoio familiar e influência dos costumes do século XX tais quais o conservadorismo a rigidez e os aspectos políticos da época onde podese citar a Ditadura Militar como um deslocamento da responsabilidade mecanismo da família sobre o abandono e violência sofrida onde ela atribui como causa de tais ações o contexto social político do momento Da mesma forma que refletiu lamento e incômodo por não ter sido entendida sobre a violência vivida uma vez que relatou ter sofrido discriminação dos parentes e por sua vida ter sido dirigida para a prostituição Fatos em que é possível perceber o mecanismo de desumanização em que se percebe a vítima como culpada e a desrespeita ou reduz o respeito sobre ela NETO IGLESIAS GÜNTHER 2012 Um indivíduo desengajado não é apenas aquele que pratica o ato comportamento mas aqueles que apoiam direta ou indiretamente veem o comportamento desengajado como normal adequado aceitável Situação observada na vida da depoente quando por exemplo ela se tornou gerente de boate casa de prostituição um cargo de confiança em relação aos donos das casas e que segundo Dona Djé era gostoso demais O desengajamento se faz presente nesse caso quando se considera que a prostituição abre espaço para ilegalidades como trabalho exploração apologia sexual infantil assédio sexual entre outros problemas uma vez que compartilhando a liderança de uma casa de prostituição está sendo complacente com tais erros O preconceito no século XX era tão enfático que Djé o tem como uma forma de rejeição por estar lutando com companheiras de causa em todo o Brasil para a redução e até desconstrução desses comportamentos contra as prostitutas conforme fala Sempre nesse patamar de anos tinha rejeição com certeza ênfase porque o que a gente vem trabalhando pra desconstruir o preconceito não é de hoje Esclarece que nos dias atuais as pessoas valem se do mecanismo linguagem eufemística para amenizar ou ocultar o preconceito transmitido em frases palavras encontradas ao longo da história para substituir a palavra prostituta tida como pejorativa Hoje o nome prostituição falou o nome com ênfase e pausadamente ainda é um entrave na sociedade e a sociedade somos nós mas se hoje é um entrave na sociedade prostituição e imagine antes aí você se vira pra um nome mais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 46 elegante profissional do sexo trabalhadora do sexo é secretária acompanhante então assim a gente também não questiona isso Além do preconceito as trabalhadoras do sexo são extremamente vulneráveis a qualquer outro tipo de risco por na maioria dos serviços prestados não escolherem os clientes e trabalharem à noite nas ruas riscos estes que são reconhecidos pela presidente da APROSMA contudo reconhece os riscos da profissão com naturalidade como algo comum normal e corriqueiro e mesmo aceitável nesse aspecto reiterase que o desengajamento moral não está apenas naquele que age mas também em quem o vê com normalidade pois lança mão dos mecanismos conforme a situação Todas as profissões elas são difíceis é difícil você ser médica e não ser uma boa médica você tá vulnerável a qualquer hora um paciente te esculhambar isso é notório então é se você é advogada você tá vulnerável a qualquer hora um cliente lhe meter a bala porque você não defendeu então todas as profissões elas são perigosas todas Algumas com número de vulnerabilidade maior que é nosso caso né Por que Porque a mulher tá na rua porque ela tá mais exposta porque ela tá fazendo um por acaso ela vai se prostituir e vai ficar com um cara que ela nunca viu ela tá mais vulnerável mas todas as profissões são perigosas cada uma tem o seu perigo constante E confessa que deve haver cautela por parte das trabalhadoras do sexo ao interpretar a atitude do cliente ou outras pessoas a fim de evitar desentendimentos ou interpretações erradas uma vez que cantadas e galanteios constituem o mundo da prostituição quando os clientes ou os prestadores de serviço querem atrair e dependendo da forma como são feitas essas práticas são diferentes do assédio sexual Claro que ele rola mas muitas vezes a mulher que tá trabalhando na prostituição ela tem que saber a forma com que ele está convidando pra não ser um assédio e como ele está aí é diferente Entretanto por defender não apenas as causas das prostitutas mas também das mulheres ela comenta que de modo geral a violência contra a mulher ela ocorre muito dentro de casa A violência contra a mulher ela é muito camuflada reforçando que a violência a qualquer mulher também é uma causa de luta a ser combatida Em relação ao assédio sexual na prostituição afirma que é praticado quando o cliente está a sós no quarto com a profissional que prestará o serviço quando não há quem veja testemunhas o seu ato desengajado ou defenda a vítima como um comportamento costumeiro que muitos homens em nossa sociedade aderem por terem noção de que violência é errado legal e socialmente Quando a violência é pública Djé entende como uma forma que o homem usa para chamar atenção se enaltecer com humilhações verbais ou físicas publicamente perante a mulher Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 47 Porque se é no cabaré ela tá no quarto Os homens deixa a mulher ficar sozinha e quando ela não tá sozinha e ele violenta é porque ele quer aparecer aí quando ele quer aparecer ele vai lá esculhamba no meio da rua e fala porque ele já quer aparecer e aí ele já fica violento Buscando entender mais como se dá a violência através do assédio sexual perguntou se se quem mais praticava assédio eram aqueles que já fizeram uso dos serviços de prostituição ou aqueles não usavam A representante nordestina do movimento desconsiderou tal comparação e enfatizou que o assédio sexual é um reflexo da educação daqueles que o praticam que é uma questão um problema social a ser trabalhado principalmente na instituição familiar Uma educação que em alguns casos é pautada no exemplo patriarcal do lar e o indivíduo que convive com isso pode ter uma aprendizagem por modelagem considerando como normal e adequado o comportamento através do mecanismo deslocamento da responsabilidade fazendo com que esta cai sobre o quesito educação familiar Não isso aí não tem muita lógica não Isso aí é Essa questão aí dessa violência Porque às vezes o cara é violento de casa por que ele ia deixar de violentar uma puta uma prostituta se ele já é violento em casa essa educação dele é de berço é de casa E justifica que se ele dá na mulher dele em casa evidentemente ele vai querer dar numa puta porque ele já tem essa coisa de eu vou dale bate porque é mulher porque é frágil porque tá no cabaré Então essas coisas são assim a gente tá tudo junto e misturado né Em situação de risco agressão o ser humano tem diversas reações de resposta sendo entre elas o silêncio ficar paralisado ou uma defesa ativa mesmo que em forma de reação instintiva Logo se sondou a entrevistada sobre como ela se defendia em relação ao assédio sexual durante o exercício da profissão e a mesma respondeu desconsiderando as particularidades de reação de cada um mas generalizou como algo em que todos conseguem e tem a obrigação de si defender aspecto que pode ser reflexo de ela se considerar muito forte e segura Qualquer mulher se defende Se a mulher vir dar um tapa na minha cara eu vou dar um na dela também não tenha dúvida É essa defesa que todo ser humano se defende da taca Na mesma moeda é de igual pra igual Não tem essa de esperar papai mamãe não Nem de levar pra dona da casa casa de prostituição Apesar de ter a reação de defesa como uma reação que qualquer um pode ter sem dificuldades ela chegou a sofrer agressões físicas e justificou como quem sofreu por ter merecido pelo fato de ser brigadeira Uma vez com esse pensamento tentase eximir o erro Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 48 do agressor e trazêlo para si onde mais uma vez usa o mecanismo de atribuição de culpa fazendo cair sobre si a culpada agressão sofrida pelos clientes Ah sofri sofri muitas Porque eu era muito braba então eu sofri muito a violência eu era brigadeira com quem errava com quem era da casa e com quem vinha pra casa errar esculhambar minhas colegas brigar fazer sexo e não pagar aí o pau fechava Aí a gente acabava levando umas bolachas É tão justificável para ela que a importância na fala dada às violências sofridas é pequena e parece não lhe causar dor sofrimento mas nada que a gente não tirasse de letra depois risos Entretanto em momento posterior ela admite que os assédios sexuais sofridos afetavam interferiam emocional e moralmente a integridade e dignidade não apenas dela mas com qualquer mulher que venha a ser vítima Violência emociona mexe emocionalmente com qualquer mulher né Porque só você lembrar que um homem te bateu que um homem te machucou claro que vai mexer no teu ego num tenha dúvida vai te deixar sequelas assim pô o cara me bateu e tal não nasci pra apanhar e tal É Assassinato de colegas minhas que foram assassinadas e isso fica pra sempre né É Mulheres que apanharam que sofreram Apesar dos abalos emocionais as agressões vividas não a desmotivaram no exercício da profissão e na luta contra a violência e a favor dos direitos daquelas que trabalham no comércio sexual Não não não não Tanto que eu tô aqui te dizendo que não tenho motivo pra ser triste A legislação brasileira recomenda que em casos de violência contra mulheres as mesmas registrem boletim de ocorrência contra quem as agrediu Contudo há cerca de 40 anos a polícia não dava suporte às prostitutas que eram violentadas e hoje esse suporte é falho e nem sempre existe E os próprios policiais agem preconceituosamente contra as prostitutas Não A polícia 40 anos atrás mais ou menos ela sempre agiu com poder maior também com preconceito né Tratavam muito mal O preconceito maior era da polícia até acabava sendo da parte deles não da nossa sociedade Os policiais lançavam mão do status social que possuíam e abusavam do poder que tinham E também com aquela questão do se apropriar do que ele já era entendeu Se era polícia tem que respeitar polícia a mulher tinha que respeitar polícia entre outras coisinhas mais Tratavam muito mal Praticavam pois desengajamento moral usando o mecanismo de comparação vantajosa já que os policiais agem com condutas repreensíveis comparando à uma ação que gera maior dano ou aversão social na tentativa de demonstrar insignificância ou diminuir sua importância BANDURA AZZI TOGNETTA 2015 p 204 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 49 No tangente à liderança na rede de prostituição Dona Djé reforça a liderança como uma obrigação de respeito e apoio às colegas de profissão e afirmação do orgulho que tem em servir a causa De tal modo que ao ser perguntada sobre quando deixou a profissão respondeu com ênfase e firmeza que Sair sair é Não Eu continuei porque até hoje eu sou eu me classifico como uma puta liderança no movimento né Então a gente nuca sai a gente sai de atuar como mas você nunca deixa você nuca sai ênfase porque você continua nas áreas continua O líder tem que passar a informação para a frente Por continuar acompanhando o desenrolar da profissão ao longo de sua vida pode ver conquistas sociais políticas assim como problemas que exigem solução trato tanto no trabalho das prostitutas como às mulheres que não exercem tal profissão De forma que afirmou Eu tenho revolta com a política que ainda não atingiu o que a gente queria que atingisse que era respeito às mulheres entendeu Esse cuidado cuidar das mulheres né Maria revela que sua luta por direitos não é apenas pela prostituição mas pelas mulheres e que isso a fez superar as lembranças sequelas de violência vividas ou vistas e cobrar o exercício de leis que protejam as mulheres da violência masculina e assume consigo uma responsabilidade de não permitir que o que lhe ocorreu ocorra com outras entendendo como importante CONSIDERAÇÕES FINAIS O desengajamento moral é um conceito que pode ser considerado uma estratégia cognitiva cujas pessoas utilizam para justificar comportamentos antissociais que vão de encontro ao que a sociedade espera e toma como base comportamental Essa estratégia é ativada quando se busca minimizar ou eliminar a auto reprovação auto sanção pelos atos imorais cometidos assim o autor não se sente responsável pela transgressão cometida Compreendese ainda ser possível que o transgressor faça cair sobre a vítima a culpa dele como merecedora do que sofreu Ao longo deste trabalho que tomou como questão norteadora Como se manifestam os mecanismos de desengajamento moral presentes nos casos de assédio sexual contra as profissionais do sexo apresentouse os principais fundamentos a base da Teoria de Desengajamento Moral de Albert Bandura em que seus conceitos foram relacionados com o assédio sexual não apenas teoricamente mas na prática por meio da história de vida de uma profissional do sexo não atuante de modo que os mecanismos de desengajamento moral foram Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 50 identificados exemplificados e na pesquisa analisados sendo eles Justificação Moral Linguagem Eufemística Comparação Vantajosa Deslocamento da Responsabilidade Difusão da Responsabilidade Distorção das Consequências Desumanização Atribuição da Culpa Apresentouse a concepção de uma mulher que por trinta anos viveu no comércio sexual acerca do assédio sexual laboral com profissionais do sexo através da história de vida da presidente da Associação das Profissionais do Sexo do Maranhão APROSMA de modo a conhecer sua história no mundo da prostituição aspirando depoimentos sobre assédio sexual durante o trabalho das profissionais do sexo Considerase que poucos foram os relatos de assédio sexual e até mesmo relatos indiretos presentes nas entrelinhas da fala da depoente Contudo obtevese falas que revelaram aspectos históricos políticos e sociais dos séculos XX e XXI que foram vividos influenciaram e influenciam o modo de pensar e comportarse da entrevistada em relação a situações de violência contra mulher onde a interdependência entre fatores pessoais e ambientais foi percebida A profissão do sexo desde suas primeiras manifestações foi combatida por associarse a uma forma de quebrar regras e prejudicar moralmente a sociedade indo de encontro aos bons costumes familiares e femininos Abrindo espaço para que a violência contra a mulher ganhasse novas formas novas justificativas e novos nomes para velhos problemas como assédio sexual que não é um fenômeno recente mas que a sua visibilidade social e política sim onde as discussões e preocupações sobre o assunto têm estado cada vez mais em pauta com ênfase na seriedade e gravidade às situações de agressão vividas por mulheres O assédio sexual é um comportamento de cunho sexual visto em contexto profissional constrangedor ofensivo contra outrem em que se objetiva vantagem ou favor privilégio sexual por meio da superioridade hierárquica de cargo ou função Assim caracterizandose como desengajamento moral e que atualmente tem sido causa de cobranças ao Estado sobre a garantia e certeza a todos do direito ao respeito honra dignidade humana e proteção à violência Entretanto a prostituição por não ser tida como um emprego somente um trabalho em que Costa et al 2006 p 1 conceituam como uma ação humana sobre a natureza que muda sua morfologia e constrói a identidade do sujeito realizado histórico e socialmente E mesmo assim não reconhecido socialmente permanecendo na clandestinidade ao longo de nossa construção histórica como trabalho informal mas que carrega o peso do preconceito e rejeição sobre aqueles que o exercem Em especial pela sociedade brasileira no século XX ter passado por um processo disciplinar em que o controle masculino predominava mais que hoje em que atitudes machistas eram mais frequentes aceitas e uma marca social por muito compreendida até como necessária A fim de que a mulher se mantivesse dedicada apenas ao lar ao marido e Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 51 aos filhos Aquelas que fugiam desse padrão eram desprezadas e pejorativamente consideradas prostitutas a posição mais baixa que uma mulher poderia assumir para a população Durante a entrevista com a presidente da APROSMA esses fatores citados foram percebidos em suas falas e aspirouse que a violência a profissionais do sexo através do assédio sexual trazida como uma justificação pautada na natureza do trabalho que exercem e desprezo foram tomadas por ela como naturais comuns no trabalho das profissionais do sexo no sentido de remeter transparecer aceitação como se o assédio sexual fosse algo aceitável porque o homem brasileiro tem uma personalidade de superioridade e muitas vezes agressiva pela educação que pode ter recebido por aspectos culturais políticos etc e o privado tornase público Não houve especificação nesse ponto de assédio sexual sobre trazer muitos relatos mas a naturalidade em lidar com essa violência foi percebida várias vezes quando por exemplo ela retira a culpa daquele que a abusou sexualmente na infância julgase forte para lidar com a violência comenta que qualquer mulher é capaz de se defender de uma agressão demonstra gratidão por ter sido aceita em uma casa de prostituição quando ainda era menor de idade entre outras falas Mas se ressalta que apesar da naturalidade com que trata o assunto ela não ignora os atos antissociais que cometeu e que foi vítima por falar em tom de cautela sobre a perda da virgindade por reconhecer ser criança quando começou a prostituirse falar dos comportamentos preconceituosos vindos da própria família quando souberam do abuso sexual e ter em sua posição de militante e líder comunitária a responsabilidade necessidade e mesmo obrigação em lutar para a violência contra qualquer mulher seja combatida denunciada e as prostitutas tenham direitos como qualquer profissão e respeito social Então fatores históricos subjetivos culturais sociais foram abstraídos em relação ao assédio sexual só que fazendo perceber o desengajamento moral na fala da depoente onde ela mesma traz posturas desengajadas e revelou a de outras pessoas Foi possível ainda entender como a cultura pode influenciar o desengajamento moral que busca justificar o assédio sexual com as profissionais do sexo por meio dos relatos de violência e percepção de Maria possibilitando identificar os mecanismos de desengajamento moral e atribuílos as aspectos culturais das décadas em que atuou como profissional do sexo e do seu momento atual como representante nordestina da rede de prostituição E assim objetivo geral cuja proposta é Analisar a história de vida de uma prostituta não atuante e identificar os mecanismos de desengajamento moral presentes nos casos de assédio sexual contra essas profissionais pode ser alcançado revelando aspectos não esperados quando se buscou trabalhar com a entrevistada a questão do assédio sexual Onde as respostas não esperadas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 52 pautadas na naturalidade em lidar e ver o assunto onde ela mesma deixou perceptível ser também desengajada moralmente porém foi justamente nesse ponto que os aspectos culturais da nossa sociedade foram inferidos Diante do apresentado em todo este trabalho as contribuições dãose como informações que acrescentam a estudos desenvolvidos sobre desengajamento moral com uma 0pesquisa de temática diferente e que dá espaço para que outras pesquisas tanto sobre desengajamento moral assédio sexual e prostituição possam ser realizadas complementadas com as informações trazidas Assim como se reforça a necessidade de compreender e tratar as profissionais do sexo como todo e qualquer ser humano a necessidade de entender que o teor de seu trabalho não justifica nenhum tipo de violência direcionada a tais REFERÊNCIAS AZEREDO Sandra A ânsia o sino e a transversalidade na relação entre empregadas e patroas Cadernos Pagu n19 Campinas 2002 BANDURA Albert AZZI Roberta Gurgel POLYDORO Soely Org Teoria Social Cognitiva conceitos básicos Porto Alegre Artmed 2008 BANDURA Albert AZZI Roberta Gurgel TOGNETTA Luciene R Org Desengajamento Moral teoria e pesquisa a partir da teoria social cognitiva Campinas Mercado de Letras 2015 BARRETO Marco Aurélio Aguiar Assédio sexual e os limites impostos pela tipificação penal e outras abordagens de apelo sexual no ambiente de trabalho São Paulo LTr 2018 DIAS Isabel Violência contra as mulheres no trabalho o caso do assédio sexual Sociologia Problemas e Práticas n 57 2008 COSTA Dayse Bezerra NASCIMENTO José Ulisses do Nascimento MELO Renally Xavier BISPO Morgana Bezerra FERNANDES Samkya SILVA Edil Ferreira da O trabalho das profissionais do sexo Universidade do Vale do Paraíba São Paulo 2006 FREITAS Maria Ester de Assédio moral e assédio sexual faces do poder perverso nas organizações Revista de Administração de Empresas São Paulo v 41 n 2 jun 2001 MOREIRA Isabel Cristina Cavalcante Carvalho MONTEIRO Claudete Ferreira de Souza A violência no cotidiano da prostituição invisibilidade e ambiguidades Revista LatinoAm Enfermagem São Paulo set 2012 NETO Ingrid Luiza IGLESIAS Fábio GÜNTHER Hartmut Uma medida de justificativas de motoristas para infrações de trânsito Psico Brasília v 43 n 1 mar 2012 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 53 REIS José Ribamar Sousa dos ZBM o reino encantado da boêmia São Luís Lithograf 2002 SANTOS Rosângela da Silva SPINDOLA Thelma Trabalhando com a história de vida percalços de uma pesquisadora Revista Escola de Enfermagem USP São Paulo v 37 n 2 jul 2003 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 54 VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL NO QUOTIDIANO DO PROCESSO GRAVÍDICO PUERPERAL DE CADEIRANTES BARREIRAS ARQUITETÔNICAS E ATITUDINAIS Thamyres Cristina da Silva Lima1 Danielle Alves da Cruz2 Natália Aparecida Antunes3 Adriana Dutra Tholl4 RESUMO O estudo tem como objetivo relatar a vivência de gestantes cadeirantes participantes de um grupo inclusivo e refletir sobre as barreiras atitudinais e arquitetônicas que envolvem o processo gravídicopuerperal e a forma como afetam seu quotidiano Método Tratase de um relato de experiência integrado ao Método de Pesquisa Cuidado em Grupo realizado em um grupo de gestantes usuárias de um Centro Especializado em Reabilitação no Sul do Brasil no período de abril a agosto de 2019 tendo a participação de duas mulheres cadeirantes e suas famílias Foram realizadas duas oficinas com duração de 04 horas cada quais sejam Oficina 1 Conectandose com o bebê e Oficina 2 Cuidados no período gravídicopuerperal e com o recémnascido Resultados Observouse que as gestantes cadeirantes puderam se apropriar de conhecimento sobre os seus direitos básicos constitucionalmente previstos bem como dos cuidados no processo gravídicopuerperal e com o recémnascido tornandose mais preparadas para os desafios da maternidade e com um olhar crítico frente às barreiras arquitetônicas e atitudinais Considerações finais De acordo com os resultados que emergiram no estudo faz se necessário repensar sobre a formação dos profissionais nos três níveis de atenção à saúde para que prestem assistência qualificada respeitando as individualidades das mulheres cadeirantes É preciso garantir a essas mulheres uma assistência livre das barreiras arquitetônicas e atitudinais garantindolhes os direitos básicos constitucionalmente previstos Palavraschave Gestação Lesão Medular Prénatal Profissionais da saúde 1 Acadêmica do Curso de Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Bolsista de Iniciação Científica PibicCNPq Projeto O quotidiano da pessoa com lesão medular pósprograma de reabilitação no estado de Santa Catarina Membro do Laboratório de Pesquisa Tecnologia e Inovação em Enfermagem Quotidiano Imaginário Saúde e Família de Santa Catarina NUPEQUISFAMSC Membro do laboratório de Pesquisa REHABILITAR Email thamyresc92gmailcom Lattes httplattescnpqbr0092605914409027 2 Acadêmica do Curso de Graduação em Enfermagem da UFSC Bolsista do Projeto de extensão intitulado GALEME Grupo de Apoio às Pessoas com Lesão Medular reabilitando e contribuindo para a inserção social no quotidiano Membro dos Grupos de Pesquisa NUPEQUISFAMSC e REHABILITAR Email daniellecruz2008gmailcom Lattes httplattescnpqbr9290806049399693 3 Acadêmica do Curso de Graduação em Enfermagem da UFSC Bolsista da Pesquisa intitulada Avaliação da continuidade do processo de reabilitação no quotidiano domiciliar de pessoas com lesão medular e de suas famílias Membro dos Grupos de Pesquisa NUPEQUISFAMSC e REHABILITAR Email nataliaaparecidaantuneshotmailcom Lattes httplattescnpqbr6284823259244078 4 Enfermeira Doutora em Enfermagem pelo Programa de PósGraduação em Enfermagem da UFSC PENUFSC Docente do Departamento de Enfermagem da UFSC ViceLíder e pesquisadora do NUPEQUISFAMSC Pesquisadora do REHABILITAR Email adrianadutrathollufscbr Lattes httplattescnpqbr1606741459027273 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 55 INTRODUÇÃO De acordo com o Relatório Mundial sobre Deficiência publicado pela Organização Mundial da Saúde 2011 mais de um bilhão de pessoas em todo o mundo convivem com alguma forma de deficiência dentre as quais cerca de 200 milhões experimentam dificuldades funcionais consideráveis Nos próximos anos a deficiência será uma preocupação ainda maior porque sua incidência tem aumentado Isto devese ao envelhecimento da população e ao risco maior de deficiência na população de mais idade bem como ao aumento global de doenças crônicas O Censo Demográfico de 2010 realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE aponta que aproximadamente 456 milhões de pessoas no Brasil ou seja 23 da população total apresentam algum tipo de incapacidade ou deficiência Incluemse nessa categoria as pessoas com ao menos alguma dificuldade de enxergar ouvir locomover se ou com alguma deficiência física ou mental IBGE 2010 Quanto à classificação de acordo com IBGE 2010 as deficiências se dividem em deficiência física tetraplegia paraplegia e outras deficiência intelectual deficiência auditiva total ou parcial deficiência visual cegueira total e visão reduzida e deficiência múltipla duas ou mais deficiências associadas No Estado de Santa Catarina cuja população é de 5248436 existiam 72216 pessoas que apresentavam deficiência intelectual 305809 deficiência auditiva 993180 deficiência visual 420545 deficiência motora ou seja 216 da população apresenta alguma deficiência conforme mostra o Censo Demográfico de 2010 IBGE 2010 O trauma raquimedular é definido pela American Spinal Injury Association ASIA como um dano de elementos neurais dentro do canal espinhal com consequente perda parcial ou total das funções motoras eou sensitivas abaixo do segmento da medula espinhal comprometido As respectivas sequelas não apenas limitam em decorrência de mudanças expressivas do domínio e da independência funcional como também exigem longo processo de reabilitação KENNEDY et al 2012 A Lesão medular pode ter causas de origens traumáticas ou não traumáticas Entre as causas de etiologia traumática as mais frequentes estão relacionadas a acidentes automobilísticos ferimentos por armas de fogo mergulho em águas rasas e quedas Já as causas das lesões não traumáticas podem estar relacionadas a tumores infecções alterações vasculares malformações e processos degenerativos ou compressivos CEREZETTI 2012 Atualmente nos Estados Unidos há cerca de 288000 indivíduos com LM e estimase que a cada ano mais 17700 novos casos são incluídos nesse grupo NATIONAL SPINAL CORD INJURY STATISTICAL CENTER 2018 No Brasil os dados sobre a incidência da Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 56 LM são vagos e relativamente antigos no ano 2000 a incidência de indivíduos com LM no país era de aproximadamente 11304 novos casos por ano com uma média de idade de 304 anos e prevalência estimada de 011 da população sendo observados predominantemente mais indivíduos do gênero masculino e com pouca escolaridade formal FRANÇA et al 2013 Ao sofrer uma lesão medular a pessoa tem o seu quotidiano modificado repentina e drasticamente resultando comumente em deficiência física mobilidade física reduzida déficit de sensibilidade alterações geniturinárias gastrointestinais circulatórias além de sequelas emocionais pois afeta diretamente a vida no âmbito social afetivo sexual e psicológico tornandoo vulnerável às complicações que limitam o processo de reabilitação e sua reinserção social A família por sua vez sofre paralelamente com esse processo de mudança tendo que alterar sua rotina para apoiar estimular e dar assistência adequada para o familiar com LM para que juntos enfrentem os desafios que envolvem o processo de reabilitação THOLL 2015 A gestação é um momento singular na vida da mulher e de seu círculo social para a mulher cadeirante a gestação traz sentimentos ambivalentes alegria pela vida que floresce e medo pelo enfrentamento das limitações físicas e da própria maternidade A gestação de uma mulher cadeirante requer cuidado extra visto que os principais problemas médicos associados à gravidez das mulheres com lesão medular são as infecções do trato urinário as dificuldades no manuseamento da bexiga e intestino neurogênicos a anemia o tromboembolismo venoso as úlceras de pressão a espasticidade a hipotensão o parto prematuro e em alguns casos a dificuldade respiratória e a disreflexia autonômica MATIAS SANTOS e CERQUEIRA 2014 Além das necessidades específicas de uma gestante cadeirante fazse necessário ressaltar as questões voltadas para a acessibilidade dessas mulheres aos serviços de saúde no período gravídicopuerperal bem como do preparo dos profissionais da saúde no atendimento dessas mulheres resultando por vezes numa violência institucional caracterizada por qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte dano ou sofrimento físico sexual ou psicológico à mulher tanto na esfera pública como na esfera privada art 1º caput da Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher Convenção Belém do Pará de 09 de junho de 1994 inserida na legislação brasileira através do Decreto 1973 de 1 de agosto de 1996 A Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência propõese a trabalhar os processos de acolhimento atenção referência e contrarreferência voltados às especificidades das pessoas com deficiência para que elas possam ter acesso às Unidades de Saúde em todo o País sem barreiras arquitetônicas eou atitudinais como todos os demais cidadãos brasileiros Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 57 BRASIL 2010 p 11 Entretanto observase ainda pouca expressividade no acesso aos direitos constitucionalmente adquiridos por essas pessoas A falta de acessibilidade não é uma particularidade nas unidades de saúde elas podem ser observadas na sociedade de uma forma geral o que reflete numa grave omissão do Estado em garantir e cumprir com o que se encontra legalizado comprometendo a qualidade de vida das pessoas com deficiência CRUZ et al 2019 As pessoas com deficiência enfrentam desafios cotidianos tais como circulação em calçadas e vias meios de transportes e locais públicos ou de trabalho sem infraestrutura adequada causando impedimentos à sua locomoção e constrangimentos em sua independência individual FREITAS 2019 Na rede de atenção à gestante a cadeirante enfrenta barreiras arquitetônicas e atitudinais ao buscarem atendimento nos Serviços de saúde caracterizando uma violência institucional fato este evidenciado pelas gestantes cadeirantes participantes do Grupo de Apoio às Pessoas com Lesão Medular GALEME surgindo assim a necessidade de inserir nas atividades do GALEME oficinas teóricopráticas para desenvolver temas relacionados ao período gravídicopuerperal em um Centro Especializado de Reabilitação visto que duas participantes do grupo estavam gestando seus primeiros filhos e não estavam inseridas em grupos de gestantes de suas unidades de referência Diante deste cenário o fortalecimento das redes de apoio tem grande importância e influência durante o período gravídicopuerperal da mulher cadeirante podendo facilitar o processo de autocuidado e cuidado com o recémnascido Os profissionais de saúde também possuem um papel fundamental durante o período gestacional dessas mulheres É durante o pré natal que surge a oportunidade do profissional de criar vínculo com a gestante e desta forma auxiliála a desenvolver os cuidados necessários para esse período Este estudo justificase pelo aumento crescente de pessoas em condições especiais especialmente com LM que se tornaram cadeirantes e as mudanças nas Políticas de Saúde principalmente na Assistência à Saúde da Mulher visando uma gestação segura e saudável Fazse necessário refletir sobre como as mulheres cadeirantes têm sido assistidas nas Instituições de saúde no período gravídicopuerperal Neste sentido o presente trabalho tem como objetivo relatar a vivência de gestantes cadeirantes participantes de um grupo inclusivo e refletir sobre as barreiras atitudinais e arquitetônicas que envolvem o processo gravídicopuerperal e a forma como afetam seu quotidiano Compreendese por quotidiano a maneira de viver dos seres humanos que se mostra no dia a dia por suas interações crenças valores significados cultura símbolos que vão Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 58 delineando seu processo de viver em um movimento de ser saudável e adoecer pontuando seu ciclo vital Esse percurso pelo ciclo vital tem uma determinada cadência que caracteriza a maneira de viver influenciada tanto pelo dever ser como pelas necessidades e desejos do dia a dia que se denomina como ritmo de vida e do viver NITSCHKE et al 2017 p 8 1 MÉTODO 11 Tipo de estudo Tratase de um relato de experiência integrado ao Método de Pesquisa Cuidado em Grupo MPCG cuja proposta é desenvolver pesquisa a partir da realização do cuidado em grupo o qual ocorre nas discussões e rodas de conversas que proporcionam a escuta sensível expressão de sentimentos verbalização das necessidades e socialização de ideias COSTENARO RANGEL e LACERDA 2012 O Método de Pesquisa Cuidado em Grupo é definido como um método de cuidado adjunto à pesquisa pois cuida e pesquisa simultaneamente e o cuidado se desenvolve em grupo Definese que toda ação deve ser refletida e questionada antes de sua realização bem como no momento da operacionalização da mesma e na sua conclusão Esse feedback constante permite retroalimentar esta ação e assim possibilita o alcance dos objetivos propostos COSTENARO e LACERDA 2016 12 Cenário do estudo O estudo foi realizado em um Centro Especializado em Reabilitação no sul do Brasil caracterizado pelo Ministério da Saúde como uma Instituição Pública referência em atendimentos e procedimentos de alta complexidade em medicina física e de reabilitação às pessoas com deficiência física e intelectual Os participantes do estudo estão vinculados ao Centro por meio do Programa de Reabilitação da qual o GALEME Grupo de Apoio às Pessoas com Lesão Medular se integra Ao se pensar em rede de apoio à pessoa com deficiência destacamos aqui a criação do GALEME que surgiu com o desenvolvimento da Tese de Doutorado em Enfermagem desenvolvida pela enfermeira Adriana Dutra Tholl apresentado ao Programa de Pós Graduação em Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina PENUFSC em fev2015 orientado pela Professora Dra Rosane Gonçalves Nitschke vinculado ao Laboratório de Pesquisa Tecnologia e Inovação em Enfermagem Quotidiano Imaginário Saúde e Família de Santa Catarina NUPEQUISFAMSC Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 59 Ao se compreender o quotidiano das pessoas com lesão medular LM e de suas famílias com seus limites e as potências na adesão à reabilitação observouse por meio das entrevistas individuais que um dos limites na adesão à reabilitação e ressocialização era a falta de um espaço de convivência para que estes pudessem trocar experiências e se fortalecerem na caminhada Ao se validar os dados com os participantes da pesquisa por meio de duas oficinas uma com as pessoas com LM e outra com as famílias sugeriuse que fosse dada continuidade às oficinas mantendo encontros mensais THOLL 2015 A Gerência do Centro de Reabilitação que ao reconhecer a importância desta atividade no processo de reabilitação e ressocialização dessas pessoas e famílias decidiu por integrar o GALEME ao Programa de Reabilitação da Instituição na qual é desenvolvido até a presente data e conduzido pelas autoras deste relato de experiência vinculados aos projetos Projeto de Extensão GALEME Grupo de Apoio às Pessoas com Lesão Medular reabilitando e contribuindo para a inserção social no quotidiano e ao Projeto de Iniciação Científica PIBICCNPq O quotidiano da pessoa com lesão medular pósprograma de reabilitação no estado de Santa Catarina O GALEME se apoia na premissa de que a convivência entre iguais por meio de atividades em grupo é uma expressão da Promoção da Saúde permite o encontro de diferentes pessoas crenças valores e culturas nos quais as pessoas se identificam na fala do outro em uma dinâmica que possibilita falar escutar refletir e aprender sobre viver em outro ritmo envolvendo aspectos ligados ao reconhecimento aceitação e adaptação ativa às novas condições de saúde à identificação de fatores de risco ao cultivo de hábitos e atitudes que promovam consciência para o autocuidado primando por melhor qualidade de vida THOLL et al 2016 Ao que se refere às ações de saúde contínuas às pessoas com lesão medular têmse como aliada as Diretrizes da Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência e a Portaria 7932012 que em parceria com o Ministério da Educação recomendam a inclusão de componentes curriculares nos cursos de graduação das profissões na área da Saúde enfocando a prevenção atenção e reabilitação às pessoas com deficiência o fomento de projetos de pesquisa e extensão nesta área do conhecimento a qualificação de recursos humanos e a reorganização dos serviços BRASIL 2012 13 Participantes da pesquisa Tendo em vista o objetivo da pesquisa foram incluídas 04 participantes sendo duas gestantes cadeirantes que experenciavam a primeira gestação e dois membros da família Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 60 esposo e amiga que frequentavam um Centro Especializado de Reabilitação entre os meses de abril e agosto de 2019 Tabela 1 Caracterização das participantes Codinome Idade Parentesco Escolaridade Estado civil Diagnóstic o Interrupção da gestaçãotipo parto G1 23 3 completo União estável Paraplegia sequela LM 38 semanasCesária G2 36 Ensino Médio Completo União estável Paraplegia sequela Mielomenin gocele 38 semanasCesária F1G1 24 Pai Ensino Médio Completo União estável F2G2 40 Amiga Ensino Fundamental Completo União estável Fonte Elaborado pelos autores 14 Coleta dos dados Inicialmente foi feito o planejamento de realizar quatro oficinas a partir das necessidades relatadas pelas gestantes além do acompanhamento no domicílio visando identificar possíveis necessidades de orientação nos cuidados com o recémnascido bem como adaptações domiciliares Entretanto em virtude do período avançado de gestação das cadeirantes e com a interrupção da gravidez por complicações gestacionais associadas à deficiência física foram realizadas duas oficinas com duração de quatro horas cada As oficinas foram baseadas em Nitschke pela possibilidade de integração e conjunção de estratégias sensíveis no processo de pesquisar e cuidar sendo constituídas por três momentos conforme Fernandes Alves e Nitschke 2008 Relaxamento de Acolhimento momento em que é preparado o ambiente buscando tornálo acolhedor sendo na sequência realizada uma técnica de relaxamento Atividade Central momento em que se apresenta a temática a ser trabalhada Relaxamento de Integração momento este que se abre espaço para que os participantes expressem seus sentimentos em relação à atividade desenvolvida Os dados foram registrados em Diário de Campo com reflexões acerca das falas das gestantes e suas famílias bem como das observações das pesquisadoras As oficinas também foram registradas com fotografias e filmagem com o consentimento dos participantes Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 61 141 Oficina 1 Conectandose com o bebê Nesta oficina participaram duas gestantes e dois membros da família pai F1G1 e amiga F2G2 Inicialmente foi realizada uma roda de apresentação pelo simbolismo dos ciclos dos movimentos de recomeços e renovações permitindo aos participantes expressar seus sentimentos e emoções No segundo momento os participantes foram convidados a se deitar em colchonetes em um ambiente acolhedor penumbra e aromaterapia ao som da música 9 meses oração do bebê sendo realizado uma técnica de relaxamento envolvendo a respiração e o toque estimulando as gestantes e os familiares a se conectarem com o seu bebê Realizou se massagem terapêutica no couro cabeludo No terceiro momento os participantes expressaram seus sentimentos em relação à técnica de relaxamento posteriormente o fechamento desta oficina se deu com um lanche integrativo 142 Oficina 2 Cuidados no período gravídicopuerperal e com o recémnascido Nesta oficina participou apenas uma das gestantes pois a outra gestante estava em repouso absoluto Os familiares não participaram desta oficina por não terem sido liberados das suas atividades laborais No primeiro momento abriuse espaço para a gestante relatar como estava seu quotidiano Posteriormente foi realizada uma exposição teórica sobre os cuidados no período gravídicopuerperal abordando as alterações físicas e emocionais na gestação e a rede de atenção à gestante conduzido por uma Fisioterapeuta do Centro de Reabilitação Na sequência realizamos uma oficina teóricoprática sobre os cuidados com o recémnascido abordando os aspectos de higiene conforto e adaptações no domicílio conduzido por uma Enfermeira No terceiro momento a participante expressou seus sentimentos expectativas e dúvidas sobre o momento vivido e foi encerrada a oficina com um lanche integrativo 15 ASPECTOS ÉTICOS O relato da experiência seguiu os preceitos éticos referente à pesquisa conforme a Resolução n 4662012 do Conselho Nacional de Saúde que dispõe sobre a Pesquisa com Seres Humanos e que preserva os princípios bioéticos da autonomia não maleficência beneficência e justiça Todos os participantes aceitaram participar da atividade e autorizaram o uso do material impresso das filmagens e fotografias registradas nas oficinas para fins acadêmicos e científicos Além das recomendações da Resolução n 4662012 buscamos expressar nosso compromisso social enquanto enfermeira pesquisadora estudantes e membros de uma sociedade ressaltando o respeito às diferenças nas relações humanas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 62 Os participantes tiveram seu anonimato garantido e são reconhecidos pela letra G de Gestante e F de família seguida do número cardinal na ordem em que aconteceram as falas 2 DESENVOLVIMENTO Neste momento buscouse refletir sobre o estigma da mulher cadeirante que se torna gestante seus sentimentos e enfrentamentos no processo gravídicopuerperal e a influência das barreiras atitudinais e arquitetônicas no quotidiano 21 Processo gravídicopuerperal da mulher cadeirante De acordo com os Arts 6 e 8 ambos da Lei n 13146 de 06 julho de 2015 Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência as pessoas com deficiência podem casar e construir uma união estável exercer direitos sexuais e reprodutivos ter o direito de decidir sobre o número de filhos e de ter acesso às informações adequadas sobre reprodução e planejamento familiar conservar sua fertilidade sendo vedada a esterilização compulsória E é dever do Estado da sociedade e da família assegurar à pessoa com deficiência com prioridade a efetivação dos direitos referentes à vida à saúde à sexualidade à paternidade e à maternidade No contexto Político Nacional de Saúde a pessoa com deficiência é um cidadão exposto às mesmas doenças e agravos comuns que acometem os demais necessitando portanto de outros tipos de serviços além daqueles estritamente ligados à sua deficiência A assistência à saúde da pessoa com deficiência deverá se estender para além das instituições específicas de reabilitação devendolhe ser assegurado o atendimento na rede de serviços nos diversos níveis de complexidade e de especialidades médicas BRASIL 2009 Mesmo diante de Leis que garantem o direito à reprodução das pessoas com LM a sociedade enxerga essas pessoas como incapazes para esta função A maioria das pessoas acredita que cadeirantes não tem vida sexual ativa e que tão pouco poderiam ser mães Além do tabu sobre a sexualidade das pessoas com deficiência física existe o desconhecimento sobre a capacidade dessas mulheres de gerar e criar ZAGO 2010 As mulheres deficientes enfrentam dificuldades na maternidade na medida em que habitam um corpo que destoa dos padrões estéticos vigentes e enfrentam a descrença da sociedade de que possa corresponder às expectativas de gênero como assumir os papéis de cuidadora esposa e mãe NICOLAU et al 2013 As mulheres com deficiência têm seus direitos violados principalmente os direitos sexuais e reprodutivos Tendo seus corpos controlados forçados à esterilização precoce à abusos sexuais e ao aborto Também tendo que Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 63 passar por situações onde os profissionais da saúde às estimulam ao aborto mesmo quando a gravidez é desejada STEFFEN 2017 Algumas famílias acreditam que as mulheres deficientes são dependentes e incapacitadas levandoas a desestimular suas potencialidades condicionandoas às atividades domésticas simples tidas como próprias do gênero feminino principalmente quando apresentam limitação de origem congênita ou adquirida nos primeiros anos de vida NICOLAU et al 2013 Entretanto podese dizer que a capacidade de gestar é considerada por qualquer mulher independente se esta é ou não uma deficiente um fato extremamente significativo tanto do ponto de vista físicofisiológico quanto do emocional e social CARVALHO et al 2010 Ao se buscar conhecer os sentimentos vivenciados pelos participantes deste estudo sobre a chegada do bebê observouse que os sentimentos são semelhantes aos vividos por mulheres e famílias que vivenciam o processo gravídicopuerperalCompaixão G1 Paixão F1G1 Alegria G2 Amor F2G2 A gestação normal inspira cuidados preventivos para garantir a boa saúde materno infantil entretanto quando se trata de uma mulher cadeirante esses cuidados devem contemplar os fatores de interferência que a deficiência pode exercer sobre a gestação CARVALHO et al 2010 A assistência ao prénatal é um importante componente de atenção à saúde das mulheres no período gravídicopuerperal uma vez que as práticas realizadas rotineiramente durante essa assistência estão associadas a melhores desfechos perinatais As gestantes cadeirantes participantes deste estudo referem que são bem acolhidas pelos profissionais de saúde têm prioridades nos atendimentos ambulatoriais nos exames de imagem e de rotina mas que as orientações específicas para sua condição são aquém das suas necessidades como se percebe nos relatos abaixo Eu fui bem tratada pelos profissionais sempre tive prioridade de atendimento principalmente nos exames mas não sabem orientar sobre os cuidados específicos da minha deficiência aí fica difícil G2 Construir vínculo é difícil as informações daqui atenção básica não batem com a de lá maternidade são queridos comigo mas não sabem me responder preciso vir buscar com vocês centro de reabilitação e isso não é bom G1 A falta de vínculo entre os serviços que prestam a assistência prénatal e ao parto é outro problema identificado resultando na peregrinação da gestante em trabalho de parto na busca de uma vaga para internação trazendo riscos adicionais à saúde da parturiente e do recémnato Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 64 Destacamos aqui a importância da atuação da enfermagem no cuidado à gestante nas orientações direcionadas que fortalecem a construção de vínculos no processo gravídico puerperal Independente do risco que a gestante possa apresentar o cuidado de enfermagem é ferramenta fundamental para a sua assistência de forma individualizada sob um olhar holístico e humanizado para a construção de um cuidado compartilhado com a equipe multi e interdisciplinar bem como com a mulher e sua família A enfermagem pode contribuir positivamente para a manutenção do vínculo maternofetal e a diminuição de sentimentos negativos estimulando a compreensão das alterações fisiológicas e emocionais que a gravidez proporciona LIMA 2014 Neste pensar o estudo de Ramos et al 2018 reitera que a participação do enfermeiro no processo gravídicopuerperal se faz necessária para o fortalecimento das ações realizadas durante o seguimento das consultas visando a promoção da saúde e contribuindo para a garantia dos direitos dessas mulheres Segundo recomendações do Ministério da Saúde a assistência ao prénatal deve ser realizada por meio do acolhimento que implica a responsabilização pela integralidade do cuidado a partir da recepção da gestante com uma escuta qualificada Realização de práticas educativas e preventiva abordando ao aleitamento materno importância do acompanhamento prénatal da consulta do puerpério do planejamento familiar direitos da gestante e do pai os riscos do consumo de álcool tabagismo e outras drogas Além da classificação do risco gestacional em toda consulta e encaminhamento quando necessário ao prénatal de alto risco BRASIL 2012 De acordo com Viellas et al 2014 estudos nacionais de abrangência local têm demonstrado a existência de falhas na assistência prénatal tais como dificuldades no acesso início tardio número inadequado de consultas e realização incompleta dos procedimentos preconizados afetando sua qualidade e efetividade Para as gestantes cadeirantes as barreiras atitudinais e arquitetônicas extrapolam as dificuldades de acesso são excludentes e ressaltam as limitações impostas pela deficiência Referem dificuldades de acesso ao prénatal pela inacessibilidade dos Centros de Saúde como a presença de degraus macas altas impossibilitando que a transferência seja realizada pela própria cadeirante consultórios sem balança para cadeirantes grupos de prénatal realizados em locais com escadas além do encaminhamento tardio ao médico obstetra de alto risco Nas maternidades as cadeirantes referem que o banheiro não é acessível as portas são estreitas e a cadeira de rodas de uso pessoal não entra a cadeira de banho encontrase em condições de uso e de higiene precária além da escassez de estacionamento Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 65 O centro de saúde não é acessível já na chegada encontro um degrau e não consigo chegar sozinha preciso da ajuda de alguém Não posso me pesar porque não tem balança Na maternidade a cadeira de banho não entra no banheiro é suja e em péssimas condições de uso tive que tomar banho na cama além de que não tem lugar para estacionar G1 As macas são altas nem que eu fosse a mulher maravilha em transferência eu conseguiria passar para a maca Ficamos na dependência de alguém nos ajudar E quando tem grupo de gestante tem escada Demoram muito para encaminhar para o prénatal de alto risco G2 As oficinas possibilitaram um processo educativo e reflexivo As gestantes cadeirantes puderam se apropriar de conhecimento sobre os seus direitos básicos constitucionalmente previstos tornandose mais críticas frentes às barreiras arquitetônicas e atitudinais bem como reaprender sobre os cuidados no período gravídicopuerperal e se familiarizar com os cuidados com o recémnascido por meio da oficina teóricoprática As gestantes trocaram experiências saíram dos encontros com solicitações a serem feitas aos profissionais que as assistiam As famílias por sua vez colocaramse como parte do processo sendo uma rede de apoio importante e principal para as gestantes Nota Reflexiva Já no domicílio após o nascimento dos bebês constatouse por meio de visita domiciliar que os primeiros quinze dias no domicílio foram muito difíceis devido às limitações impostas pela deficiência gerando a necessidade de que membros da família assumissem os cuidados com os bebês Todavia os ajustes internos e domiciliares foram realizados e o desejo do querer viver o processo de cuidar do filho fez com que as mesmas assumissem os cuidados com os bebês dentro das suas possibilidades É tudo novo mas a gente vai aprendendo adapta aqui e ali Preciso que alguém segure para eu lavar o Preciso de ajuda Mas consigo cuidar dele Não amamento porque tomo muitas medicações G2 Os primeiros 15 dias é uma provação muito difícil alguém tem que fazer tudo me sinto deficiente Depois que consegui chegar perto dele além de ter que adaptar a minha rotina e a casa para ele G1 O nascimento de um bebê é um acontecimento novo para a mulher e demanda competências para o cuidado Para a mulher cadeirante além da competência para o cuidado é preciso uma rede de apoio que esteja próxima e disponível para auxiliála no cuidado com o bebê As participantes do estudo relataram dificuldades no processo de cuidar todavia são as dificuldades associadas às implicações decorrentes da deficiência física que as tornam Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 66 deficientes no cuidado com o bebê Neste pensar ressaltase a importância de um efetivo acompanhamento da rede de atenção no domicílio dessas mulheres e famílias Para as pesquisadoras o acompanhamento dessas mulheres e famílias não se esgota com o desenvolvimento deste estudo temse a finalidade de apoiálas por meio do GALEME 22 O descuidado dos profissionais da saúde No Brasil a política desenvolvida pelo Sistema Único de Saúde SUS vem primando pela prevenção e promoção da saúde da população Em franco processo de consolidação o SUS vem se apoiando nos princípios doutrinários universalidade equidade integralidade e organizativos descentralização resolutividade regionalização hierarquização e participação popular BRASIL 2010 Contudo esse sistema apresenta fragilidades no que concerne àqueles segmentos sociais mais vulneráveis a exemplo daquele constituído pelas pessoas com deficiência Estudo recente que contou com a participação de 122 profissionais de saúde atuantes em 20 Unidades Básicas de Saúde revelou dificuldade em se conseguir concretizar os princípios preconizados pelas políticas de saúde voltadas às pessoas com deficiência Esses dados são preocupantes visto que a legislação brasileira direcionada a esta população entrou em vigor há sete anos poucas mudanças foram realizadas para atender as necessidades desses usuários Cabe ressaltar a importância do aprimoramento técnico e científico dos profissionais de saúde com o objetivo de fornecer medidas que apoiem os usuários e sua rede de apoio a alcançar o equilíbrio e bemestar e melhorar a qualidade de vida O número de pessoas com deficiência vem crescendo consideravelmente e o acesso dessas pessoas aos serviços de saúde é permeado por dificuldades apesar da existência de uma Política Nacional SILVA et al 2017 É possível constatar que as diretrizes dessa política não têm sido suficientes para garantir os direitos das pessoas com deficiências pois ainda podemos verificar o despreparo das equipes de saúde no acolhimento e assistência desses usuários e ainda problemas relacionados à infraestrutura inadequada O atual contexto social exige formar um profissional mais atento às necessidades dos grupos isolados que saiba como estabelecer um elo importante de comunicação entre ele e o grupo especial que também compõe a sociedade garantindo plenamente o atendimento de suas necessidades dentro do setor de saúde SILVA et al 2017 A falta de preparo dos profissionais no cuidado à pessoa com deficiência se apresenta nos diferentes contextos incluindo também a assistência à mulher cadeirante no processo gravídicopuerperal como se mostra nos relatos das participantes Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 67 É muita falta de informação não sabem esclarecer as dúvidas e reconhecem a falha deles e do serviço G1 É visível o despreparo deles isso gera insegurança minha sorte são vocês Quando preciso corro para cá Centro de Reabilitação G2 O estudo de Lima 2014 reforça este aspecto quando as gestantes cadeirantes participantes do estudo afirmam que para muitos profissionais de saúde foi uma surpresa constatar a falta de preparo para lidar com a gestação da mulher cadeirante e a falta de acesso adequado aos serviços A falta de formação dos profissionais de saúde frente à assistência às mulheres cadeirantes é preocupante e precisa ser mais discutido em sua formação acadêmica Esses profissionais com formações e concepções diversificadas podem depararse com uma gestante que tem necessidades de cuidados próprios à sua condição de cadeirante uma vez que os cuidados e as expectativas em relação à sua gestação precisam ser abordados de maneira adequada LIMA 2014 Neste sentido o atual cenário brasileiro nos indica que é preciso fomentar currículos que possibilitem abordar o tema deficiência e reabilitação possibilitando a reorganização e integração dos serviços de saúde sobretudo fortalecendo os princípios e diretrizes do SUS A temática deficiência e reabilitação envolve o domínio de um conhecimento pouco abordado em seus diversos níveis de formação profissional de forma a enfocar a orientação no autocuidado buscando a autonomia de decisão e de execução da pessoa com deficiência assim como envolver familiares no processo de cuidar nos diferentes níveis de atenção à saúde THOLL 2015 Preparar os profissionais da saúde para o cuidado às pessoas com deficiência confere um posicionamento frente às iniquidades em saúde de coresponsabilidade no processo educativo e emancipatório ampliando a consciência de cidadania das pessoas com deficiência sobretudo acrescentando qualidade de vida para estas pessoas SILVA 2011 THOLL et al 2016 A reabilitação enquanto processo de desenvolvimento de potencialidades das pessoas com incapacidades e deficiências é uma expressão da Promoção da Saúde busca o movimento pela vida caracterizado pela autonomia nas atividades da vida diária estimulando as pessoas pelas suas potencialidades identificando recursos próprios para seguir em frente despertando a importância para o autocuidado Ainda tem o intuito de minimizar as complicações e com isso diminuir reinternações aumentar a expectativa de vida póslesão facilitar a reinserção do Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 68 indivíduo na sociedade melhorando assim a qualidade de vida dessas pessoas primando pelo envelhecimento ativo Entretanto a incorporação das ações de reabilitação em rede está aquém do estabelecido pelas políticas de saúde do SUS VERA 2012 THOLL 2015 Este estudo apresenta como limitação uma amostragem intencional ao selecionar as gestantes cadeirantes vinculadas a um cenário que foi prédeterminado Outro fator limitante foi o fato de as gestantes já estarem com idade gestacional avançada e necessitarem interromper a gestação pelas complicações associadas à deficiência física comprometendo o desenvolvimento do planejamento inicial do grupo de gestante inclusivo CONSIDERAÇÕES FINAIS A vivência aqui apresentada constitui um desafio para os profissionais da saúde que prestam assistência prénatal sobretudo para os enfermeiros considerando que acolher as mulheres cadeirantes no processo gravídicopuerperal e proporcionar um cuidado que atenda às suas necessidades pode ser uma tarefa complexa uma vez que não está prevista nos currículos de graduação Por outro lado pode ser gratificante à medida que possibilite a reelaboração da prática profissional e que percebamos a sua aplicabilidade no quotidiano dessas pessoas por meio do seu envolvimento no processo de reabilitação Dessa forma verificase que as diretrizes das políticas não têm sido suficientes para garantir todos os direitos das pessoas com deficiências pois as barreiras arquitetônicas não possibilitam a acessibilidade das gestantes cadeirantes aos serviços de saúde influenciando no seu quotidiano A expectativa levantada pelos estudos buscados e pela vivência é que as diferentes áreas da saúde consigam ter um olhar voltado às suas ações em sincronia para um melhor atendimento das gestantes cadeirantes nos três níveis de atenção à saúde Fazse necessário possibilitar às mulheres cadeirantes no processo gravídicopuerperal uma assistência livre das barreiras arquitetônicas e atitudinais garantindolhes os direitos básicos constitucionalmente previstos Com relação aos profissionais da saúde é indispensável buscar novos paradigmas a fim de se promover uma assistência à saúde de maneira adequada e humanizada Somente assim será possível se falar de fato em inclusão social para esta parcela da população Neste sentido tornase premente uma sensibilização dos gestores e profissionais de saúde quanto às implicações das barreiras arquitetônicas e atitudinais no quotidiano das gestantes cadeirantes considerando que estas barreiras caracterizamse uma violência institucional pelo desrespeito a direitos básicos previstos na legislação brasileira Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 69 REFERÊNCIAS BRASIL Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Ações Programáticas Estratégicas Diretrizes de Atenção à Pessoa com Lesão Medular Brasília Ministério da Saúde 2012 BRASIL Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Ações Programáticas Estratégicas Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência Brasília Ministério da Saúde 2010 BRASIL Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Ações Programáticas Estratégicas Área Técnica Saúde da Pessoa com Deficiência Pessoa com deficiência Direitos Sexuais e Reprodutivos na Integralidade da Atenção à Saúde Brasília Ministério da Saúde 2009 BRASIL Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Atenção Básica Atenção ao pré natal de baixo risco Brasília Ministério da Saúde 2012 BRASIL Decreto nº 1973 de 01 de agosto de 1996 Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher Brasília DF 1 ago 1996 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03decreto1996D1973htm Acesso em 25 ago 2019 BRASIL Lei nº 13146 de 06 de junho de 2015 Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência Estatuto da Pessoa com Deficiência Brasília DF 06 jun 2015 Ministério da Saúde 2015 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato2015 20182015leil13146htm Acesso em 25 ago 2019 BRASIL Resolução nº 466 de 12 de dezembro de 2012 Aprova as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Brasília DF 12 dez 2012 Ministério da Saúde 2012 Disponível em httpbvsmssaudegovbrbvssaudelegiscns2013res046612122012html Acesso em 10 set 2019 CARVALHO A P F et al Gravidez em mulheres com trauma medular prévio Rev Femina v 38 n 1 2010 Disponível em httpfilesbvsbruploadS0100 72542010v38n1a003pdf Acesso em 09 set 2019 CEREZETTI C R N NUNES G R CORDEIRO D R C L Lesão Medular Traumática e estratégias de enfrentamento revisão crítica 2012 Disponível em httpbvsmssaudegovbrbvsartigosmundosaudelesaomedulartraumaticaestrategiase nfrentamentopdf Acesso em 09 set 2019 COSTENARO R G S RANGEL R F LACERDA M R Metodologia de pesquisa cuidado em grupo In COSTENARO R G S LACERDA M R Quem cuida de quem cuida Quem cuida do cuidador Teia de possibilidades de quem cuida Porto Alegre Moriá 2012 COSTENARO R G S LACERDA M R Pesquisa cuidado em grupo In LACERDA M R COSTENARO R G S Metodologias da pesquisa para a enfermagem e saúde da teoria à prática Porto Alegre Moriá 2016 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 70 CRUZ R P da Acessibilidade para pessoas com deficiência na atenção básica de saúde em Três Rios Centro Sul Fluminense Enfermagem Brasil v18 n1 p95104 2019 Disponível httprevistasmariliaunespbrindexphpsobamaarticleview7539 Acesso em 09 set 2019 FERNANDES J J V ALVES C NITSCHKE R G Ser bolsista de extensão relatando a experiência de promover saúde familiar no cotidiano de uma comunidade de Florianópolis Rev Bras Enferm v 61 n5 p6436 2008 Disponível em httpwwwscielobrpdfrebenv61n5a18v61n5pdf Acesso em 20 ago 2019 FRANÇA I S X et al Qualidade de vida em pacientes com lesão medular Rev Gaúcha Enferm v34 n1 p155163 2013 Disponível em httpwwwscielobrpdfrgenfv34n120pdf Aceso em 22 ago 2019 FREITAS F M A Acessibilidade para cadeirantes no espaço urbano 2019 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Complicações Revista da Sociedade Portuguesa de Medicina Física e de Reabilitação Braga v 26 n 2 p19 nov 2014 Disponível em httpspdfssemanticscholarorg24a2fc001623abc0e3fccbd9c3c108573c28bd67pdf Acesso em 10 set 2019 NATIONAL SPINAL CORD INJURY STATISTICAL CENTER Spinal cord injury facts and figures at a glance J Spinal Cord Med v37 n1 p1178 2018 Disponível em httpswwwnsciscuabeduPublicFacts20and20Figures20202018pdf Acesso em 09 set 2019 NICOLAU S M SCHRAIBER L B AYRES M C J R Mulheres com deficiência e sua dupla vulnerabilidade contribuições para a construção da integralidade em saúde Rev Ciência Saúde Coletiva v 18 p 863872 2013 Disponível Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 71 emhttphttpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS141381232013000300032 Acesso em 09 de set 2019 NITSCHKE R G et al Contributions of Michel Maffesolis Thinking to Research in Nursing and Health Texto Contexto 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vida na reabilitação de indivíduos com lesão medular 2012 220f Tese Doutorado em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde Universidade de Brasília Programa de PósGraduação Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde Brasília DF 2012 VIELLAS E F et al Assistência prénatal no Brasil Cadernos de Saúde Pública v30 Vol Supl p S85S100 2014 Disponível em Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 72 httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0102311X2014001300016 Acesso em 23 ago2019 ZAGO A F Ser cadeirante e Mãe Disponível emhttpfezagoblogspotcombr201002sercadeiranteemaehtml Acesso em 09 jun 2012 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 73 OS DESAFIOS DA CIÊNCIA JURÍDICA NO COMBATE À VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA CONTRA MULHERES INDÍGENAS Ana Beatriz Cruz Nunes1 Patrícia Borba Marchetto2 RESUMO No Brasil estimase que uma a cada quatro mulheres sofre violência obstétrica Contudo o tema da violência obstétrica adquire contornos particulares quando se busca discutir a questão através de um recorte étnico em razão da construção histórica da sociedade brasileira Assim desde um ponto de vista intercultural e da teoria feminista interseccional o presente trabalho buscará analisar em que medida a violência obstétrica tratase de uma modalidade de violência de gênero apresentando uma dimensão étnica quando analisada a formação histórica e cultural da sociedade brasileira Além disso buscarseá compreender em que medida a proteção contra a violência obstétrica está intimamente relacionada à efetivação dos direitos humanos sexuais e reprodutivos das mulheres bem como quais são os desafios dos aplicadores do direito no combate às formas estruturais de violência contra a mulher especialmente no que tange à proteção da mulher indígena contra a violência obstétrica A metodologia utilizada é a de pesquisa qualitativa e exploratória sobre o tema através do levantamento e análise da bibliografia e dos dados estatísticos sobre a violência obstétrica no Brasil bem como de estudo de caso para a compreensão da dimensão étnica do parto e gestação As conclusões alcançadas apontam para a necessidade de um aprofundamento do estudo jurídicoteórico e dogmático sobre o tema Palavraschave Violência obstétrica Mulheres indígenas Direitos humanos INTRODUÇÃO Recentemente a discussão acerca da legitimidade do termo violência obstétrica esteve em voga no cenário jurídicopolítico brasileiro em razão de despacho emitido pelo Ministério da Saúde no dia 03052019 defendendo a abolição do termo de seus documentos oficiais de políticas públicas Embora as Recomendações nº 292019 do Ministério Público Federal e nº 52019 do Conselho Nacional dos Direitos Humanos tenham reiterado a legitimidade do termo recomendando sua utilização em resposta às recomendações mencionadas o Ministério da Saúde no ofício nº 2962019 manteve a decisão de não utilizar o termo em suas normas e 1 Estudante Mestranda em Direito pela Faculdade de Ciências Humanas e Sociais FCHS da UNESP Campus de FrancaSP Projeto de Pesquisa de Mestrado financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CAPES Email ananunesyahoocombr Link do lattes httpbuscatextualcnpqbrbuscatextualvisualizacvdoidK8720352U0 2 Docente Doutora em Direito 2001 pela Universidade de Barcelona Espanha Docente do Departamento de Administração Pública da Faculdade de Ciências e Letras FCLAR da UNESP Campus de AraraquaraSP e do Programa de Pós Graduação em Direito da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais FCHS da UNESP Campus de FrancaSP Email patriciamarchettounespbr Link do lattes httpbuscatextualcnpqbrbuscatextualvisualizacvdoidK4761740P2 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 74 políticas públicas O ocorrido recolocou na agenda jurídicopolítica a relevância do debate da violência obstétrica enquanto forma de violência de gênero Segundo estudo realizado pela Fundação Perseu Abramo 2010 uma em cada quatro mulheres brasileiras sofre violência obstétrica que pode ser expressa de maneira física através do tratamento violento doloroso ou contrário ao consentimento da parturiente ou gestante verbal através de tratamento grosseiro ameaças ou humilhação através da negligência ou discriminação na assistência ou no atendimento médicohospitalar através do abuso ou negativa de administração de medicamentos à parturiente bem como através da utilização inadequada de tecnologias e procedimentos desnecessários ou contrários às evidências científicas durante a gestação parto pósparto e puerpério SENA 2016 Contudo quando se busca analisar os números da violência obstétrica contra mulheres indígenas os mesmos são insuficientes em razão das diversas particularidades que envolvem o debate étnico sobre o tema O próprio estudo realizado pela Fundação Perseu Abramo 2010 que recolheu dados de 25 hospitais públicos e privados em 176 municípios brasileiros reconhece que os números da violência obstétrica contra mulheres indígenas são insuficientes para a análise do fenômeno De acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE coletados no Censo Demográfico de 2010 a população indígena brasileira é estimada em 817 mil indígenas que representa algo em torno de 04 da população total do país Conforme os relatórios do Censo 2010 do IBGE os dados sobre a população indígena no país foram investigados a partir do pertencimento étnico e de critérios de identificação internacionalmente reconhecidos como a língua falada no domicílio e a localização geográfica bem como a autodeclaração de acordo com aspectos como tradições costumes cultura e antepassados IBGE 2010 Em razão da dimensão étnica quando se analisa o nascimento e parto das mulheres indígenas devese levar em conta que estes eventos não ocorrem exclusivamente como um processo fisiológico pois possuem um significado cultural JORDAN 1993 apud MENESES 2012 Sendo assim devese ter em mente que tais eventos possuem um caráter particular em cada sociedade podendo o parto ser caracterizado como um evento biossocial significado culturalmente MENEZES 2012 Portanto tendo em vista a relevância social e científica do tema abordado que envolve não apenas violação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres mas também a regulação dos corpos pelo Estado o interesse social da sociedade civil e dos movimentos sociais a Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 75 responsabilidade civil e penal médica entre outros aspectos verificase a urgência do estudo jurídicoteórico sobre o tema Assim desde um ponto de vista intercultural e da teoria feminista interseccional o presente trabalho buscará analisar a dimensão étnica da violência obstétrica a partir da compreensão da interseccionalidade entre a violência de gênero territorialidade e colonialidade na América Latina A partir dessa análise o presente trabalho buscará compreender em que medida a proteção das mulheres indígenas contra a violência obstétrica está relacionada à efetivação dos direitos humanos sexuais e reprodutivos bem como em que medida a proteção contra a violência obstétrica envolve a compreensão do caráter estrutural da violência na América Latina Por fim buscarseá apontar os desafios da proteção jurídica sobre o tema A metodologia utilizada é a de pesquisa qualitativa e exploratória através do levantamento e análise da bibliografia e de dados estatísticos sobre a violência obstétrica no Brasil bem como de estudo de caso para a compreensão da dimensão étnica do parto e gestação No primeiro tópico serão apresentados os dados da pesquisa exploratória sobre a violência contra a mulher no Brasil para no segundo tópico demonstrar a dimensão estrutural da violência contra a mulher na sociedade brasileira No terceiro tópico buscarseá compreender através da teoria decolonial e interseccional em que medida a violência obstétrica é característica do processo colonizatório latinoamericano demonstrando como os marcadores sociais da diferença especialmente de etnia impactam no não reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres indígenas No quarto tópico buscarseá demonstrar a relevância da conceituação e consolidação do termo violência obstétrica no âmbito jurídiconormativo e jurisprudencial No último tópico será apresentado o estudo de caso sobre a experiência de gestação e parto das mulheres guaranimbyá na cidade de São Paulo para que seja realizada a projeção do estudo teórico exploratório e de caso sobre a realidade da violência obstétrica contra mulheres indígenas no contexto brasileiro atual A título de conclusão verificase a urgência da compreensão da violência obstétrica em sua totalidade a partir de um recorte decolonial interseccional e étnico na análise jurídica sobre o tema Por fim reiterase a contribuição social do estudo apresentado não apenas no que tange à atualidade da temática abordada como também na ampliação da visibilidade e do combate dessa modalidade de violência de gênero que acomete um número expressivo de mulheres Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 76 brasileiras incentivando as instituições e o aplicadores do direito à debaterem o tema em sua totalidade 1 OS NÚMEROS DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO BRASIL Segundo dados da pesquisa de opinião pública Mulheres brasileiras e gênero nos espaços públicos e privados de agosto de 2010 realizada pela Fundação Perseu Abramo cerca de uma em cada cinco mulheres brasileiras 18 já sofreram algum tipo de violência por parte de algum homem conhecido ou desconhecido Segundo as respostas coletadas as violências sofridas variam desde ameaças ou assédio à violência verbal física psíquica sexual e até mesmo controle eou cerceamento entre outros Diante das 20 modalidades de violência elencadas na pesquisa duas em cada cinco mulheres 40 já teriam sofrido alguma delas ao menos uma vez na vida sobretudo controle ou cerceamento 24 violência psíquica ou verbal 23 e ameaça ou violência física propriamente dita 24 Com uma taxa de 48 assassinatos em 100 mil mulheres o Brasil está entre os países com maior índice de homicídios femininos ocupando a quinta posição em um ranking de 83 nações segundo dados do Mapa da Violência 2015 Homicídio de mulheres no Brasil Segundo a referida pesquisa 8 milhões de pessoas sofreram algum tipo de violência em 2014 no Brasil Do total 459 pertenciam ao sexo masculino e 541 ao feminino Isto significa que 57 das mulheres brasileiras maiores de 18 anos sofreram algum tipo de violência de pessoas conhecidas ou desconhecidas no ano de 2014 Sendo assim a cada dia de 2014 405 mulheres demandaram atendimento em uma unidade de saúde por alguma violência sofrida WAISELFISZ 2015 De acordo com dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação SINAN do Ministério da Saúde no ano de 2014 foram atendidas pelo SUS um total de 859 mil meninas e mulheres vítimas de violência exercida por pais parceiros e exparceiros filhos ou irmãos Agressões de tal intensidade que demandaram atendimento médico Assim estimase que um total de 107 mil meninas e mulheres foram atendidas em todo o sistema de saúde do país em 2014 vítimas de violência doméstica WAISELFISZ 2015 Recentemente os dados do Atlas da Violência de 2019 demonstraram que houve um crescimento dos homicídios femininos no Brasil em 2017 com cerca de 13 assassinatos por dia levando à estimativa de que no referido ano cerca de 4936 mulheres foram mortas registrando o maior número desde 2007 Especificamente em relação à violência obstétrica a pesquisa Mulheres brasileiras e gênero nos espaços públicos e privados de 2010 também revelou que cerca de 25 das Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 77 mulheres entrevistadas afirmaram terem sofrido algum tipo de violência durante o atendimento ao parto Segundo o referido estudo as queixas mais comuns foram terem recebido exame de toque de forma dolorosa 10 negativas ou não oferecimento de algum tipo de alívio para a dor 10 gritos 9 não receberam informações sobre algum procedimento 9 tiveram atendimento negado 8 e ouviram xingamentos ou foram humilhadas 7 Ao menos 23 das entrevistadas ouviram frases humilhantes como não chora não que ano que vem você está aqui de novo 15 ou na hora de fazer não chorou não chamou a mamãe por que está chorando agora 14 ou ainda se ficar gritando vai fazer mal para o seu neném seu neném vai nascer surdo Segundo pesquisa realizada por Sena 2016 que objetivou descrever e analisar a experiência de violência obstétrica em maternidades brasileiras a partir de relatos de mulheres entrevistadas via internet identificando práticas consideradas por estas como violência obstétrica 833 das entrevistadas informaram terem sido desrespeitadas pelo médico obstetra 50 afirmaram que foram desrespeitadas pelos enfermeiros e auxiliares de enfermagem 30 afirmam que foram desrespeitadas pelo anestesista 133 referiram desrespeitos a partir de pediatras 10 afirmaram terem sido desrespeitadas pela consultora de amamentação 67 se sentiram desrespeitadas pela recepcionista da instituição 33 afirmaram que foram desrespeitadas pela doula e a mesma proporção referiu ter sido desrespeitada pela direção do hospital A partir da pesquisa exploratória e estatística sobre o tema a primeira conclusão inequívoca é a que inexistem dados oficiais concretos e suficientes da violência obstétrica contra as mulheres indígenas Tal constatação evidencia a invisibilidade da dimensão étnica da violência obstétrica nas pesquisas quantitativas e demonstra a importância do estudo teórico bibliográfico e de caso sobre o tema Ainda ante os elevados índices da violência contra a mulher verificase que de fato a violência contra a mulher não é algo anômalo ou pontual mas sim algo naturalizado pela sociedade brasileira A análise dos dados da violência obstétrica dentro do contexto observado pelo levantamento estatístico demonstra que os mesmos refletem o quadro estrutural da violência contra a mulher no Brasil Por fim os dados da violência obstétrica evidenciam a naturalização e a habitualidade desse tipo de violência nas maternidades brasileiras sinalizando para uma realidade de violência de gênero abuso na atuação médica e violação dos direitos humanos sexuais e reprodutivos das gestantes parturientes e puérperas Frente a todos estes dados fazse mister o Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 78 estudo teórico das origens razões e sentidos da violência contra a mulher na sociedade brasileira 2 A DIMENSÃO ESTRUTURAL DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA SOCIEDADE BRASILEIRA A colonização da América Latina em geral e do Brasil em específico teve como um de seus elementos estruturais a dominação e repressão sexual Sendo assim é necessário compreender que a opressão sexual e a dominação colonial são as duas faces de uma mesma repressão entrelaçada com os fios da expropriação do próprio território corpo CELANTANI 2014 p 48 tradução livre3 Ao analisarmos o quadro da violência de gênero na América Latina verificase que a mesma não pode ser compreendida como pontual atípica ou anômala pois temos que perceber a sistematicidade desta gigantesca estrutura que vincula elementos aparentemente muito distantes da sociedade e aprisiona a própria democracia representativa SEGATO 2016 p 75 tradução livre4 Essa sistematicidade refletiu historicamente na realidade de exclusão das mulheres indígenas do processo democrático de conquistas e proteção de direitos Portanto para a autora a dimensão de gênero traduzse como a intensificação da violência que é estrutural em nossa sociedade Sendo assim para compreender as raízes históricas da violência obstétrica no Brasil é necessário um passo largo no sentido da compreensão do caráter estrutural da violência contra as mulheres dentro do projeto civilizatório da colonialidademodernidade QUIJANO 1992 compreendendo em profundidade a função da violência na organização das relações de gênero na colonização da América Latina Historicamente as mulheres indígenas sofrem diversas discriminações que resultam em sua exposição à violação de direitos humanos em todos os âmbitos de suas vidas civis políticos econômicos sociais culturais sexuais e reprodutivos entre outros Suas denúncias de violação de direitos humanos foram inclusive fundamentais para a conceituação da violência de gênero sob suas próprias perspectivas contribuindo para a compreensão da centralidade da violência contra a mulher na América Latina CEPAL 2015 3 No original la opresión sexual y la dominación colonial son las dos caras de una misma represión entretejida con los hilos de la expropiación del propio territorio cuerpo CELANTANI 2014 p 48 4 No original tenemos que percibir la sistematicidad de esta gigantesca estructura que vincula elementos aparentemente muy distantes de la sociedad y atrapa a la propia democracia representativa SEGATO 2016 p 75 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 79 Portanto embora não haja estatísticas nacionais ou internacionais sobre os dados da violência obstétrica contra mulheres indígenas verificase que a compreensão do tema deve ser abordada no contexto do racismo colonialismo e patriarcado em razão da especificidade com a qual a interseccionalidade dos marcadores sociais da diferença e da violência atingem as mulheres indígenas 3 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NO CENTRO DO PROJETO CIVILIZATÓRIO COLONIAL Os corpos das mulheres e a repressão da sexualidade estiveram no centro do projeto civilizatório próprio da colonização da América Latina e sobre os corpos colonizados historicamente atuaram uma série de instituições a família o Estado o mercado a comunidade a religião entre outros CAMPOS OLIVEIRA 2009 Assim pensar a violência obstétrica desde um viés étnico requer pensar as mulheres indígenas como corpo político pois sua expressão não se situa apenas em relação ao ser individualmente considerado mas também vinculado integralmente ao lugar ao social e ao espaço público CAMPOS OLIVEIRA 2009 Segundo Celantani 2014 compreender a história desde a perspectiva dos povos indígenas implica em compreender a luta desses povos por seus territórios e pelo direito à uma cultura própria Portanto compreender a realidade histórica das mulheres indígenas implica em compreendêlas desde de corpos que foram submetidos a repetidas tentativas de definição sujeição e controle para serem expulsos da racionalidade e transformados em máquina para a reprodução É pensar a partir do lugar que os corpos são do território corpo que resiste à ideia moderna de que as mulheres incorporam a animalidade à derrotar a falta de domínio de si e a ahistoricidade e que com sua indisciplina construiu a possibilidade de uma alternativa ao sujeito indivíduo universal CELANTANI 2014 p 48 tradução livre5 Nesse sentido compreender a violência obstétrica desde uma perspectiva étnicoracial implica não apenas em reconhecer a interseccionalidade de classe gênero e raçaetnia no âmbito da violência que é estrutural nas sociedades latinoamericanas Implica também em compreender o caráter específico que a violência de gênero imprime nos corpos na autonomia e na territorialidade dos povos indígenas 5 No original desde cuerpos que han sido sometidos a repetidos intentos de definición sujeción y control para ser expulsados de la racionalidad y convertidos en máquina para la reproducción Es pensar desde el lugar que son los cuerpos desde el territorio cuerpo que se resiste a la idea moderna que las mujeres encarnan la animalidad a derrotar la falta de dominio de sí y la ahistoricidad y que com su indisciplina ha construido la posibilidad de una alternativa al sujeto individual universal CELANTANI 2014 p 48 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 80 A territorialidade pode ser compreendida enquanto uma concepção historicamente definida de território na medida em que os sujeitos e seus territórios são coproduzidos por uma forma específica de organização social em um determinado momento histórico e através de caracteres de pertencimento SEGATO 2016 A territorialidade a autodeterminação e a autonomia são centrais na luta dos povos indígenas sendo as principais demandas desde que estes passaram a exigir da comunidade dos Estados Nação seu reconhecimento como sujeito de direito6 A Comissão Interamericana de Direitos Humanos CIDH considera que a violência obstétrica e espiritual também são formas de violência contra a mulher e devido ao papel singular das mulheres indígenas como líderes espirituais e núcleos da reprodução da cultura indígena a violência contra elas perpetrada em diferentes contextos as prejudica no âmbito físico cultural e espiritual OEA 2017 p 7 É importante destacar que de acordo com Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas o quadro de referência da autonomia demandada pelos povos indígenas expressase no reconhecimento do direito à livre determinação que supõe a existência e o exercício de direitos coletivos assim como o respeito às instituições e sistemas de autogoverno dos povos indígenas CEPAL 2015 p 18 A proteção dos direitos sexuais e reprodutivos constitui ainda na atualidade um dos grandes desafios a serem enfrentados para a proteção dos povos indígenas O direito à saúde dos povos indígenas deve ser entendido tanto em sua dimensão individual como coletiva sendo interdependente da realização de outros direitos humanos CEPAL 2015 p 77 Assim é necessário compreender que a proteção das mulheres indígenas contra violência obstétrica implica necessariamente no reconhecimento das dimensões da autonomia e da autodeterminação A autonomia como expressão da livre determinação permite adotar decisões e instituir práticas próprias relacionadas com a cosmovisão território indígena terra recursos naturais organização sociopolítica administração da justiça educação idiomas saúde medicina e cultura dos povos indígenas CEPAL 2015 p 19 6 Os dois principais marcos da proteção dos direitos das mulheres indígenas foram a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais de 1989 que reconheceu pela primeira vez como direitos os valores e práticas sociais culturais religiosos e espirituais próprios dos povos indígenas e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas de 2007 que reconheceu o direito desses povos à livre determinação Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 81 Portanto o estudo teórico sobre a dimensão civilizatória e colonial sobre a violência obstétrica demonstra que a proteção jurídica do parto étnica e culturalmente adequado implica no reconhecimento das práticas e cosmovisão tradicionais indígenas bem como no reconhecimento das implicações da territorialidade sobre os eventos de gestar e parir em contextos pluriétnicos Ademais a proteção e promoção da saúde sexual e reprodutiva das mulheres indígenas está estruturalmente vinculada à erradicação da violência pois nos determinantes sociais da saúde o cruzamento das desigualdades étnicas e de gênero se expressa precisamente nesses âmbitos impactando o direito fundamental à vida CEPAL 2015 p 86 4 A ATUALIDADE DO DEBATE JURÍDICO SOBRE O TEMA A recente controvérsia acerca da legitimidade do termo violência obstétrica que esteve em voga no cenário jurídicopolítico brasileiro trouxe à tona a relevância do debate da centralidade da violência de gênero enquanto forma de manutenção das estruturas de poder na sociedade brasileira O próprio estudo teórico sobre o tema da sugere que a autonomia e a sexualidade das mulheres indígenas passam cada vez mais a serem objetos de regulação do Estado sendo possível verificar a hipótese de que este processo tem como objetivo a subjugação dos referidos corpos às tecnologias e operações próprias do funcionamento social na atualidade nos termos do que Foucault 1988 conceituou como biopoder Especialmente em relação aos corpos selecionados pelos marcadores da diferença os corpos femininos negros indígenas lésbicos transexuais pobres e marginalizados Dentro de todo esse contexto os acadêmicos e operadores do direito cada vez mais são instados a analisar compreender e propor soluções sobre o fenômeno sociojurídico político e cultural da violência obstétrica Em meio à relativização do termo enquanto produto histórico de estudos e pesquisas tradicionais e científicos sobre o tema o Judiciário pode figurar como importante ator no reconhecimento dos direitos das mulheres ou como perpetuador da violência obstétrica Portanto fazse mister o estudo e debate aprofundados sobre o tema em toda sua totalidade e complexidade pela comunidade jurídica como um todo pesquisadores acadêmicos do direito aplicadores do direito bem como dos movimentos sociais e da sociedade civil Sobre o tratamento jurisprudencial da violência obstétrica a pesquisa de Nogueira 2015 que analisou 148 julgados provenientes dos Tribunais de Justiça dos Estados de São Paulo Minas Gerais Rio de Janeiro e Espírito Santo demonstrou que as decisões judiciais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 82 analisadas não reconheceram os danos e lesões sofridas pelas vítimas como violência obstétrica bem como não os associaram aos direitos sexuais reprodutivos ou até mesmo como direitos humanos e fundamentais das vítimas de tal violência Nogueira 2015 destaca que a pesquisa do termo violência obstétrica como palavra chave nas ferramentas de buscas dos sites dos referidos Tribunais não encontrou nenhum resultado apesar do termo ser amplamente utilizado pelos movimentos sociais de humanização do parto e de estudiosos da área Portanto verificase a importância da reivindicação da legitimidade do termo para a descrição do que as entrevistadas na pesquisa de Sena 2016 e da Fundação Perseu Abramo 2010 identificaram e denunciaram como violência obstétrica A ampliação do debate e estudo jurídico sobre o tema especialmente quando levamos em conta a especificidade do caso das mulheres indígenas vítimas de violência obstétrica pode proporcionar a compreensão da necessidade de reivindicação do termo pelos próprios aplicadores do direito 5 O CASO DAS MULHERES INDÍGENAS GUARANIMBYÁ DA REGIÃO NOROESTE DA CIDADE DE SÃO PAULOSP Ante o estudo realizado verificase a necessidade do estudo interdisciplinar e interseccional da violência obstétrica para a devida compreensão da dimensão étnica do fenômeno Portanto optouse pela realização do estudo de caso das experiências de gestação e parto das mulheres indígenas guaranimbyá da região noroeste da cidade de São PauloSP para a compreensão da forma como esse tipo de violência se expressa em contextos pluriétnicos Com base na pesquisa de Menezes 2012 que analisou as práticas de cuidado com as gestantes parturientes e puérperas de uma comunidade da etnia guaranimbyá da região noroeste da cidade de São Paulo através de entrevistas e estudo etnográfico a investigadora verificou que O sistema biomédico de atenção à saúde da mulher gestante parturiente e puérpera é um sistema cultural construído a partir da realidade social local Apesar de seu destaque e qualidades tal sistema não é uma verdade universal e absoluta Seu destaque para a ciência e tecnologia de modo etnocêntrico excluindo outras formas e possibilidades terapêuticas pode ser contestado a partir do fato de que as evidências científicas para a gestação e parto são ignoradas em detrimento da realização de procedimentos de rotina MENEZES 2012 p 76 Ao entrevistar as mulheres guaranimbyá a investigadora analisou como estas mulheres percebem o atendimento institucional na saúde e na assistência à gestação e parto verificando que Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 83 As indígenas guaranimbyá da periferia da região noroeste da cidade de São Paulo quando estão gestando seus bebês convivem em uma pluralidade terapêutica utilizando tanto recursos próprios de cuidados à saúde ao serem cuidadas por pessoas da comunidade como recursos mistos oferecido pelo sistema de saúde onde é preconizada uma assistência intercultural mesclando aspectos da biomedicina e levando em conta fatores culturais da cosmologia indígena As falas das mulheres evidenciaram a grande importância de um cuidado holístico para a sua Saúde MENEZES 2012 p 76 A partir dos relatos das mulheres guaranimbyá a investigadora percebeu que existe uma série de procedimentos ancestrais e tradicionais que envolvem o parto e o puerpério dessas mulheres especialmente no que se refere ao enterro da placenta à dieta diferenciada e a uma série de rituais familiares que envolvem banhos especiais e mudança nos hábitos dos familiares que frequentemente não são observados no parto hospitalar das mulheres entrevistadas Assim embora nas últimas décadas tenham sido implementadas diversas políticas públicas para a proteção do parto humanizado e culturalmente adequado especialmente voltadas para a proteção da saúde reprodutiva dos povos indígenas as mulheres indígenas ainda vivenciam um quadro de expropriação de seus corpos e de sua autonomia quando se trata da questão da violência obstétrica Embora oficialmente o Estado ainda seja ator principal no combate a violações de direitos humanos sexuais e reprodutivos das mulheres com a crise do Estado moderno e com o avanço conservador na América Latina as condições de tutela de direitos e garantias fundamentais pelo Estado brasileiro tornamse mínimas especialmente no que tange à controvérsia em relação à compreensão da violência obstétrica enquanto violência contra a mulher CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir dos aportes supramencionados verificouse que a violência obstétrica apresentase como uma das dimensões da violência de gênero na qual os marcadores sociais da diferença especialmente de gênero e etnia impactam no não reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres indígenas Verificouse ainda que a violência obstétrica quando analisada sob a perspectiva étnica apresenta um viés de contrariedade aos direitos à autonomia e autodeterminação dos povos indígenas em sentido coletivo Portanto a violência obstétrica contra a mulher indígena carrega uma carga histórica dupla de produção e significação do controle totalitário de corpos e territorialidade sendo sua expressão um ato de reafirmação da condição de nãosujeito universal dos povos indígenas e de dominação colonial em sentido amplo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 84 Isto porque no âmbito dos direitos humanos os direitos sexuais e reprodutivos abarcam para além de sua dimensão enquanto saúde reprodutiva uma dimensão relacionada à luta das mulheres por direitos e liberdades democráticas Com base no estudo sociojurídico e de análise de caso sobre o tema a despeito da ausência de dados oficiais sobre a violência obstétrica contra as mulheres indígenas verificou se a realidade de alijamento e cerceamento dessas mulheres em relação a seus direitos humanos fundamentais sexuais e reprodutivos Em relação ao aspecto jurisprudencial e dogmático verificase que a ciência jurídica pouco se aprofunda nas questões estruturais que permeiam a violência de gênero Portanto verificase como hipótese de superação do paradigma atual da violência contra a mulher e especificamente da violência obstétrica contra as mulheres indígenas a necessidade de compreensão metodológica do fenômeno sociojurídico da violência obstétrica desde uma perspectiva interseccional e decolonial do Direito Essa questão é fundamental no campo do método e da ciência do direito pois a atuação dos Tribunais de Justiça exerce papel fundamental enquanto mediador dos conflitos sociais De fato na relação dialética entre a emancipação política e a emancipação humana o direito ainda configurase como ferramenta fundamental para garantir a conquista das condições materiais necessárias à emancipação política das mulheres REFERÊNCIAS CAMPOS Carmen Hein de OLIVEIRA Guacira Cesar de Saúde Reprodutiva das Mulheres direitos políticas públicas e desafios Brasília CFEMEA Fundação H Boll Fundação Ford 2009 Coleção 20 anos de cidadania e feminismo Disponível em httpwwwcfemeaorgbrimagesstoriespublicacoescolecao20anossaudereprodutivadasmul herespdf Acesso em 21082019 CANCIAN Natália Ministério da Saúde veta uso do termo violência obstétrica Orientação causa reação entre especialistas e grupos de defesa das mulheres Folha de S Paulo 07maio2019 às 02h00 Caderno Cotidiano Disponível em httpswww1folhauolcombrcotidiano201905ministeriodasaudevetausodotermo violenciaobstetricashtml Acesso em 21082019 CANCIAN Natália Ministério da Saúde mantém decisão de não usar termo violência obstétrica diz secretário Ofício ao MPF foi interpretado nas redes sociais como recuo da pasta que havia abolido termo de políticas públicas Folha de S Paulo 10junho2019 às 21h49 Caderno Cotidiano Disponível em httpswww1folhauolcombrcotidiano201906ministeriodizreconhecertermoviolencia obstetricamasquecontinuaraanaousaloshtml Acesso em 21082019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 85 CELANTANI Francesca Gargallo Feminismos desde Abya Yala Ideas y proposiciones de las mujeres de 607 pueblos en nuestra America Ciudad de México Editorial Corte y Confección 2014 1 ed digital Disponível em httpsfrancescagargallowordpresscomensayoslibrosdefgfeminismosdesdeabyayala Acesso em 13042019 CEPAL COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA LATINA E O CARIBE Os Povos Indígenas na América Latina Avanços na última década e desafios pendentes para a garantia de seus direitos Santiago Chile CEPAL 2015 124p Disponível em httpsrepositoriocepalorgbitstreamhandle11362377731S1420764ptpdf Acesso em 13042019 FOUCAULT Michel História da sexualidade vol I A vontade de saber trad de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J A Guilhon Albuquerque Rio de Janeiro Edições Graal 1988 Disponível em httpsedisciplinasuspbrpluginfilephp2940534modresourcecontent1HistC3B3ria daSexualidade1AVontadedeSaberpdf Acesso em 22082019 FUNDAÇÃO PERSEU ABRAMO SESC Pesquisa de opinião Mulheres brasileiras e gênero nos espaços públicos e privados 2010 São Paulo FPASESC 2010 Disponível em httpcsbhfpabramoorgbrsitesdefaultfilespesquisaintegrapdf Acesso em 27072019 IBGE INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA Censo Demográfico 2010 Características da população e dos domicílios Resultados do universo 2011 Disponível em httpsbibliotecaibgegovbrvisualizacaoperiodicos93cd2010caracteristicaspopulacao domiciliospdf Acesso em 22082019 IPEA INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA Atlas da violência 2019 Organizadores Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada Fórum Brasileiro de Segurança Pública Brasília Rio de Janeiro São Paulo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada Fórum Brasileiro de Segurança Pública 2019 Disponível em httpwwwforumsegurancaorgbrwpcontentuploads201906AtlasdaViolencia 201905junversC3A3ocoletivapdf Acesso em 22082019 MENEZES Mariane de Oliveira Gestar e parir em terra de juruá a experiência de mulheres guaranimbyá na cidade de São Paulo Dissertação Mestrado em Ciências Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo São Paulo 2012 93p Disponível em httpwwwtesesuspbrtesesdisponiveis66136tde10092012103748ptbrphp Acesso em 13042019 MARTINELLI Andréa Conselho Nacional de Direitos Humanos recomenda volta do termo violência obstétrica em políticas públicas Em maio Ministério da Saúde emitiu documento abolindo o uso do termo em políticas públicas e em normas relacionadas à saúde da mulher Huffpost Brasil 03062019 às 19h28 Mulheres Disponível em httpswwwhuffpostbrasilcomentryviolenciaobstetricadireitos humanosbr5cf593d8e4b0e346ce831abd Acesso em 21082019 NOGUEIRA Beatriz Carvalho Violência obstétrica análise das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça da região sudeste Trabalho de Conclusão de Curso Bacharelado em Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 86 Direito Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo Ribeirão Preto 2015 86p Disponível em httpwwwtccscuspbrtcedisponiveis89890010tce 26082016101211langbr Acesso em 21082019 OEA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS Brochure Mujeres indígenas Resumo gráfico do Relatório As Mulheres Indígenas e seus Direitos Humanos nas Américas 2017 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos CIDH Nações Unidas 2017 Disponível em httpswwwoasorgptcidhdocspdf2018Brochure MujeresIndigenasptpdf Acesso em 13082019 OIT ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho sobre Povos Indígenas e Tribais 27 de junho de 1989 Decreto no 5051 de 19 de abril de 2004 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato200420062004decretod5051htm Acesso em 12072019 ONU ORGANIZAÇÃO DA NAÇÕES UNIDAS Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas 13 de setembro de 2007 Rio de Janeiro Nações Unidas 2008 Disponível em httpwwwunorgesasocdevunpfiidocumentsDRIPSptpdf Acesso em 13042019 QUIJANO Aníbal Colonialidad y ModernidadRacionalidad Revista del Instituto Indigenista Peruano vol 13 n 29 Lima 1992 pp 1120 Disponível em httpswwwlavacaorgwpcontentuploads201604quijanopdf Acesso em 08092019 SEGATO Rita Laura La guerra contra las mujeres Madrid Traficantes de Sueños 2016 Disponível em httpswwwtraficantesnetsitesdefaultfilespdfsmap45segatowebpdf Acesso em 13042019 SENA Ligia Moreiras Ameaçada e sem voz como num campo de concentração a medicalização do parto como porta e palco para a violência obstétrica Tese Doutorado Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Ciências da Saúde Programa de Pós Graduação em Saúde Coletiva Florianópolis 2016 277 p Disponível em httptedeufscbrtesesPGSC0156Tpdf Acesso em 21082019 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa Da Violência 2015 Homicídio de Mulheres no Brasil Organização FLACSO OPASOMS ONU Mulheres SPM Ano 2015 Disponível em httpswwwmapadaviolenciaorgbrpdf2015MapaViolencia2015mulherespdf Acesso em 05122018 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 87 VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA UMA VIOLAÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES Mainara Gomes Cândida Coelho1 Poliana Ribeiro dos Santos2 RESUMO O presente estudo surgiu a partir do despacho de maio de 2019 do Ministério da Saúde do Brasil FEGRASGO 2019 que vetou a utilização do termo violência obstétrica gerando um intenso debate por todo o país Desse modo o problema da presente pesquisa se resume em Como o Brasil percebe e lida com a violência obstétrica A hipótese levantada é de que o país não amadureceu a ideia de violência obstétrica como violação aos direitos humanos das mulheres Assim o objetivo geral é traçar um panorama sobre a violência obstétrica no Brasil e nos países da América Latina que possuem leis especificas para o combate desta Para isso têmse os seguintes objetivos específicos I Contextualizar a história do parto e da violência obstétrica sofrida pela mulher gestante II Conceituar a violência obstétrica e suas formas de manifestações III Traçar um paralelo entre o Brasil e os três países da América Latina que possuem legislação específica para trabalhar com a violência obstétrica IV Contextualizar a violência obstétrica no Brasil Optouse por desenvolver uma pesquisa bibliográfica e documental através da lente interdisciplinar do Direito e das Relações Internacionais com uma metodologia de pesquisa qualitativa exploratória Os resultados encontrados evidenciam que as leis existentes não são suficientes para lidar com o problema visto que além de não criminalizarem a violência há um problema cultural Concluise que além das leis é necessário um trabalho de conscientização em todas as esferas e que o Brasil não percebe a violência obstétrica como violação aos direitos humanos Palavraschave Parto Violência obstétrica Direitos das mulheres Brasil INTRODUÇÃO A luta contra a violência obstétrica surgiu a partir do movimento pela humanização do parto e da medicina baseada em evidências no final do século passado MATOS et al 2013 Desde então houve a intensificação de estudos sobre o tema bem como formulação de políticas públicas e aprovações de leis que ora a abordam especificamente ora a tangenciam Depois de os direitos reprodutivos e sexuais das mulheres serem reconhecidos como direitos humanos e ganhar destaque nas agendas estatais e de organizações internacionais a violência obstétrica passou a ser objeto de debate a nível nacional e internacional 1Graduanda do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina Pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos em Direito e Feminismos CnpqUFSC Email mainaragommeshotmailcom httplattescnpqbr2652268126045133 2 Advogada Especialista em Direito Penal e Processo Penal pela Faculdade Damásio de Jesus 2015 Mestranda pelo Programa de PósGraduação Profissional em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina Pesquisadora integrante do Núcleo de Estudos em Direito e Feminismos CnpqUFSC Email polianaaribeirogmailcom httplattescnpqbr2149540920056487 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 88 Especificamente na América Latina o termo ganhou notoriedade na década de 2000 quando um médico venezuelano o utilizou para se referir às violações dos direitos das mulheres na gravidez parto puerpério e abortamento A partir de então a Argentina e a Venezuela promulgaram leis especificando a violência obstétrica como uma violência contra a mulher e o Suriname alterou o seu código penal tipificandoa como um crime Em alguns países latino americanos existem leis a nível estadual sobre o tema citase Venezuela Argentina e Suriname e no caso do Brasil existem algumas leis que tangenciam Observase que embora esse tipo de violência contra a mulher seja uma discussão recente já é possível notar alguns avanços legislativos e sociais Todavia é necessário que os países latinoamericanos continuem avançando nessa agenda visto que ainda é uma realidade presente e que muitas vezes manifestase de uma forma quase imperceptível o que provoca subnotificações da incidência de tal violação Por ainda ser considerado um ato comum na vida das mulheres a temática necessita de investimento contínuo em pesquisa e conscientização dos profissionais da área da saúde tal qual da população comum em especial as mulheres as vítimas visto que muitas delas ainda não possuem conhecimento acerca desse tipo de violência Diante desse quadro problemático no qual a mulher gestante está inserida o problema norteador da presente pesquisa se resume em Como o Brasil percebe e lida com a violência obstétrica Sendo levantada como hipótese balizadora que o país ainda não amadureceu a ideia de violência obstétrica como uma forma de violação aos direitos humanos das mulheres Para desenvolver a presente pesquisa o objetivo geral é traçar um panorama sobre a violência obstétrica no Brasil e nos países da América Latina que possuem leis específicas para o combate a violência obstétrica Em consonância com o objetivo geral estabeleceuse os seguintes objetivos específicos que também compõe os subcapítulos deste estudo I Contextualizar a história do parto e da violência obstétrica sofrida pela mulher gestante II Conceituar a violência obstétrica e suas formas de manifestações III Traçar um paralelo entre o Brasil e os três países da América Latina que possuem legislação especifica para trabalhar com a violência obstétrica IV Contextualizar a violência obstétrica no Brasil Desse modo para atingir os objetivos e responder ao problema pesquisa suscitado optouse por desenvolver uma pesquisa bibliográfica e documental através da lente interdisciplinar do Direito e das Relações Internacionais primando por um diálogo plural Sendo empregando como metodologia a pesquisa qualitativa de viés exploratório 1 PARTO DO PROCESSO NATURAL À HOSPITALIZAÇÃO Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 89 Para elucidar sobre a violência obstétrica tanto sobre a origem do termo quanto a sua definição e suas formas é necessário um aprofundamento teórico sobre as nuances e práticas do parto Isto é como essa atividade que antes era realizada e protagonizada por mulheres parturientes foi tornandose medicinal instrumental e até mesmo patológica cujo protagonismo das mulheres foi se tornando cada vez menor e muitas vezes inexistente Anteriormente até meados do século XX aproximadamente até o início da década de 1960 o parto era realizado pelas próprias mulheres conhecidas como parteiras cujos conhecimentos eram adquiridos através da prática e eram transmitidos de geração em geração A maioria dos partos acontecia na casa da parturiente com a ajuda da parteira CUNHA 2015 ZANARDO et al 2017 Logo o nascimento era uma cerimônia puramente feminina e intimista na qual a assistente do parto auxiliaria a futura mãe respeitando seu tempo seus costumes e sua cultura CUNHA 2015 p 25 Assim o parto era uma atividade estritamente feminina realizada pelas parteiras e o protagonismo era da mulher As parteiras realizavam essa atividade de uma forma humanizada respeitando a autonomia e vontades das parturientes O trabalho das parteiras ao longo do século XX tornouse cada vez menos frequente até de fato acontecer a hospitalização do parto isto é as parturientes começarem a ter os seus bebês em hospitais com o uso de instrumentos medicinais Segundo ROHDE 2016 e WOLFF et al 2008 os médicos começaram a exercer a atividade obstétrica no início dos séculos XVII e XVIII Na Europa contudo eles apenas acompanhavam emergências os partos ainda eram realizados pelas parteiras No Brasil essa mudança paradigmática teve início por volta de 1808 com a criação das Escolas de Medicina e Cirurgianos sic na Bahia e no Rio de Janeiro As primeiras décadas do século XX foram marcadas por movimentos sociais de modo que a senhora Maria Antonieta de Castro fundou em 1930 uma entidade filantrópica visando a promoção da assistência maternoinfantil chamada Cruzada PróInfância A entidade tinha como objetivo combater a mortalidade infantil e dois anos depois de sua fundação a Cruzada Pró Infância inaugura a Casa Maternal que apoiava mães e gestantes FRANCO MACHADO 2016 Como elucida Zanardo 2017 já no final do século XIX teve início um processo de mudança uma vez que o parto passa a ser tido como uma prática médica e não mais um evento biológico feminino Assim a mulher parturiente deixa de ser a protagonista e é submetida aos procedimentos médicos Com a chegada da Família Real Portuguesa no Brasil no século XX essa inversão do processo do parto iniciada no século XIX foi concretizandose durante todo o século XX uma vez que a medicina começou a ganhar poder FRANCO MACHADO 2016 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 90 Foi então no contexto pós Segunda Guerra Mundial no século XX que o parto começou a ser hospitalizado e as mulheres começaram a transferir o parto residencial e humanizado para os hospitais dando início à institucionalização do parto MATOS et al 2013 p 871 Uma vez que os governos começaram a perceber a necessidade de diminuir a mortalidade materna e infantil as parturientes passaram a ser afastadas de seus familiares durante o processo do parto permanecendo isoladas e no hospital com a ideia de que seriam melhores assistidas Concomitantemente a esse fato ocorreu uma intensificação dos usos da tecnologia e intervenções de rotina como a episiotomia uma cirurgia realizada na vulva cortando a entrada da vagina com tesoura ou bisturi e o uso do fórceps Wolff e Waldow 2008 elucidam que o ato de dar à luz que outrora era domiciliar transformouse em experiência no âmbito hospitalar uma vez que os médicos e residentes de medicina e obstetrícia passaram a se utilizar desse momento para treinar técnicas e aprender Portanto a prática de realizar um parto começou a ser vista como um ato somente do médico e com o intuito de aumentar a qualidade da assistência temse medicalizado o parto utilizando em larga escala procedimentos considerados inadequados e desnecessários ZANARDO et al 2017 p 3 Além disso o parto passa a integrar um modelo centralizado na figura do médico e que exclui outros profissionais da saúde como enfermeiras que por formação estariam habilitadas para atender o parto normal ZANARDO et al 2017 p3 Nesse contexto de desenvolvimento médico e social quando a medicina começou a estudar a anatomia das mulheres consequentemente suas especificidades passaram a ser compreendidas como inferiores em comparação à anatomia do corpo masculino Assim os médicos iniciaram a produção de ideias e descrição de uma natureza feminina cuja sexualidade estava atrelada às funções de mãe e esposa Logo suas atividades estariam restritas ao âmbito privado e suas normalidades foram transformadas em patologias isto é o parto passa a ser tratado muitas vezes como doença Essa naturalização foi o principal suporte para a medicalização do corpo feminino e para a intervenção médica FRANCO MACHADO 2016 De acordo com Oliveira e Albuquerque 2018 esse modelo tecnicista alterou o modelo de assistência ao parto visto que a mulher começou a parir da forma que fosse conveniente ao médico e não mais como o seu corpo biológico ditaria Ademais após o nascimento mulheres e filhos passaram a ser imediatamente separados Assim a tecnologia passou a ser empregada no parto sob o contestável argumento de salvar a vida das parturientes mas com o tempo foi possível observar que tal prática foi empregada e normatizada para otimizar o trabalho dos médicos possibilitando a realização de partos em série em virtude da rapidez do procedimento Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 91 A Organização Mundial da Saúde OMS em documento publicado em 2018 referente às recomendações durante o parto afirma que esse processo de medicalização do parto diminui a capacidade da mulher de dar à luz e afeta de forma negativa a sua experiência e além do mais as intervenções que são realizadas sem indicações científicas continuam a acentuar a lacuna existente entre os ambientes ricos e pobres em recursos financeiros e técnicos WHO 2018 tradução livre No final do século XX na década de 1980 surge o movimento pela humanização do parto e do nascimento que tem como objetivo resgatar a autonomia da mulher e o fenômeno de parir como algo natural humanizado não patológico sem intervenções desnecessárias Simultaneamente a ideia do parto humanizado começa a reverberar e começam a surgir também as doulas De acordo com Tornquist apud Zanardo et al 2017 este movimento teve como precursor as propostas da OMS de 1985 que estimulavam o parto vaginal e a amamentação logo após o parto e diversas outras recomendações de assistência à parturiente e ao recémnascido No tocante ao Brasil os movimentos de mulheres passaram a pressionar o governo para mudanças legislativas e criação de políticas públicas que contemplassem as suas pautas Isso resultou na institucionalização da agenda feminista pelo Estado e assim o governo criou o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher PAISM em 1984 Conselho Nacional de Direitos da Mulher CNDM e a Comissão de Estudos sobre Direitos da Reprodução Humana CEDRH em 1985 FRANCO MACHADO 2016 O movimento pela humanização tornouse mais difundido no ano de 2000 quando o Ministério da Saúde MS emitiu a Portaria nº 569 de 1º de junho de 2000 que lançava o Programa Humanização do PréNatal e Nascimento PHPN O Programa visa desenvolver ações de promoção prevenção e assistência à saúde de gestantes e recémnascidos BRASIL 2000 sp Ou seja o objetivo é melhorar a assistência do préparto parto e puerpério A Portaria elucida quais medidas devem ser tomadas para que isso ocorra e salienta que para humanizar o atendimento é necessário romper com as práticas intervencionistas que não são necessárias e prejudicam a mulher e o bebê como a episiotomia por exemplo corroborando com as recomendações da OMS anteriormente citadas Dessa forma a humanização do parto diz respeito à atenção à mulher substituindo as intervenções médicas e o uso de tecnologias por um modelo humanista cujo foco é um atendimento à mulher que respeite as diferenças sociais e culturais MATOS et al 2013 Assim a ideia da humanização do parto é seguir uma medicina baseada em evidências que traz à tona que só devem ser realizados procedimentos que são estritamente necessários e Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 92 que possuem comprovações científicas de sua eficácia Sob esse viés é possível saber quais são de fato as necessidades de intervenção e quais os riscos ou complicações geradas quando realizadas sem necessidade SILVA 2018 2 A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA Com o surgimento do processo tecnicista do parto assistência à saúde da mulher e do bebê e concomitantemente a realização de procedimentos intervencionistas e muitas vezes violentos surge o conceito de violência obstétrica para debater e tipificar um tipo de violência contra a mulher sofrida durante o período da gravidez parto pósparto e abortamento Franco e Machado 2016 trazem à tona que muito embora a discussão sobre o tema seja recente a violência obstétrica é uma violência de gênero uma vez que se utiliza de uma condição específica das mulheres a reprodução e a partir dessa condição perpetuamse hierarquias e dominações através da violência O termo violência obstétrica surgiu na América Latina no ano 2000 e foi criado pelo médico Rogelio Pérez DGregorio então presidente da Sociedade de Obstetrícia e Ginecologia da Venezuela O termo foi importante nas lutas do movimento feminista pela erradicação e punição dos atos tidos como violentos e desrespeitosos durante toda a assistência ao parto e pósparto MARIANI NASCIMENTO NETO 2016 De acordo com Cunha 2015 a luta contra a violência obstétrica está atrelada à garantia dos direitos sexuais e reprodutivos portanto direitos humanos Essa constatação de que os direitos sexuais e reprodutivos são direitos humanos aconteceu na década de 70 em consequência aos movimentos de mulheres da época Porém em âmbito internacional foi reconhecido apenas em 1994 quando ocorreu a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento realizada em Cairo reunindo 179 países debatendo políticas de gênero como essencial para a qualidade de vida Na segunda década do século XXI o tema ganhou ainda mais visibilidade e começou a ser debatido bem como começou a ser objeto de estudos documentários investigação parlamentar ações no Judiciário tema de políticas públicas e intervenções de saúde pública Sua relevância como problema de saúde pública foi compartilhada pela declaração da OMS chamada Prevenção e Eliminação de Abusos Desrespeito e MausTratos Durante o Parto em Instituições de Saúde de 2014 DINIZ et al 2015 Este documento elenca que todos os abusos maustratos negligência e desrespeitos antes durante e depois da gravidez parto pós parto e abortamento são violações de direitos humanos fundamentais Também afirma que Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 93 as mulheres grávidas possuem direitos de informação de não discriminação e de terem saúde física e mental da melhor forma possível incluindo a saúde sexual e reprodutiva OMS 2014 Desse modo violência obstétrica é um termo usado para descrever situações de violações de direitos das mulheres durante a gravidez o parto pósparto e abortamento É considerada internacionalmente uma violência contra a mulher e por isso uma violência de gênero e é uma forma de violência institucionalizada visto que é cometida por profissionais da saúde em âmbito hospitalar 21 Definição de violência obstétrica e suas manifestações O Brasil é signatário de duas Convenções muito importantes que dizem respeito às formas de violência contra a mulher A Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher de 1979 e a Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher Convenção de Belém do Pará 1994 A Convenção de Belém do Pará define que a violência contra a mulher é qualquer ação ou conduta baseada no gênero que cause morte dano ou sofrimento físico sexual ou psicológico à mulher tanto no âmbito público como no privado OEA 1994 sp A Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher vai mais além quando elucida que Para os fins da presente Convenção a expressão discriminação contra a mulher significará toda a distinção exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento gozo ou exercício pela mulher independentemente de seu estado civil com base na igualdade do homem e da mulher dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político econômico social cultural e civil ou em qualquer outro campo ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS 1979 sp Embora as Convenções não mencionem expressamente o termo violência obstétrica recomendam que os Estados signatários adotem medidas legais para o combate a qualquer tipo de violência contra a mulher Ou seja entre elas está a violência obstétrica que deve ser entendida como uma típica violência praticada contra a mulher e combatida nos termos das Convenções Internacionais A OMS define violência como o uso intencional da força física ou do poder contra uma pessoa ou grupo de pessoas tendo como resultado ou possibilidade de acarretar lesão morte e dano psicológico A inclusão da palavra poder e a frase uso da força física faz com que o entendimento de violência usualmente conhecido seja expandido uma vez que inclui atos que Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 94 resultem de relações de poder como ameaças e intimidação por exemplo Mais ainda também inclui atos de negligência ou omissão OMS 2002 Assim a violência significa atos de dor e sofrimento A violência contra a mulher pode ser de diversas formas física psicológica sexual institucional obstétrica etc A violência de gênero portanto é considerada a violência física sexual e psicológica contra a mulher manifestandose por meio das relações de poder histórica e culturalmente desiguais ocorridas entre homens e mulheres WOLFF WALDOW 2008 p 140 Nesse ponto de vista Oliveira e Albuquerque 2018 demonstram que a violência obstétrica é uma apropriação do corpo e dos processos reprodutivos da mulher pelos profissionais de saúde que são evidenciados pelo tratamento violento uso excessivo de medicação e patologização de um processo natural e biológico que acabam por acarretarem na perda da autonomia da parturiente que não consegue decidir sobre seu corpo A OMS divide a violência obstétrica em cinco tipos I Intervenções e medicalização não necessárias e de rotina II Maustratos humilhações e agressões verbais e físicas III Falta de insumos e instalações inadequadas IV Exercícios de residentes sem a autorização da mãe com informação completa verdadeira e suficiente V Discriminação por razões culturais econômicas religiosas e étnicas CASTRILLO 2016 tradução livre Assim quando os profissionais proferem palavras que humilham constrangem coagem ou fazem piadas sobre o corpo utilizam procedimentos e medicamentos inadequados submetem a parturiente ao jejum impedem a parturiente de escolher posições para parir privamna de um acompanhante ou de liberdade e privacidade realizam exames de toques vaginais excessivos negam atendimento prénatal ou de aborto entre outros estão praticando violência obstétrica PARTO DO PRINCÍPIO 2012 Um dos problemas existentes é a cirurgia cesariana de rotina A OMS recomenda que as cesáreas sejam realizadas em até 15 dos partos uma vez que esse tipo de intervenção deve ser realizado apenas quando indicada por motivos médicos como salvar a vida da parturiente ou do bebê Taxas maiores de cesárea não têm comprovação científica de que reduzem a mortalidade materna e neonatal A cirurgia pode causar complicações e até mesmo sequelas ou morte principalmente em locais onde há pouca infraestrutura eou capacidade de realizar cirurgias de uma forma segura bem como tratar quaisquer complicações provenientes desta Sendo assim a cesariana deve ser realizada se somente se for estritamente necessária OMS 2015 Contudo as cesáreas vêm sendo excessivamente realizadas por diversos motivos e tornouse uma prática rotineira e frequente em diversos países do mundo inclusive da América Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 95 Latina até mesmo naqueles países onde já existem leis específicas sobre esse tipo de violência Não existem evidências científicas que a cesárea quando realizada sem motivos diminui a mortalidade materna e neonatal A cesariana traz perigos imediatos e a longo prazo riscos esses maiores em mulheres que possuem pouco acesso a cuidados obstétricos que podem afetar a saúde da mulher e do filho OMS 2015 Outro procedimento rotineiro e desnecessário que também configura como um tipo de violência obstétrica é a episiotomia Essa prática que se tornou rotina pode causar maior perda de sangue mais dor durante o parto aumenta o risco de infecção de hemorragia dores na hora do ato sexual e problemas em longo prazo LEAL 2014 PARTO DO PRINCÍPIO 2012 Esse procedimento é realizado na maioria das vezes sem o consentimento da mulher e sem informála dos riscos eou benefícios É realizada com a justificativa de aumentar o canal vaginal para facilitar a passagem do bebê Esse procedimento começou a ser realizado na década de 1940 com a hospitalização e patologização dos partos usandose como argumento de que a mulher não teria dilatação suficiente para a passagem do bebê Assim era um erro anatômico e precisaria de intervenção médica para o parto acontecer ROHDE 2016 Existe ainda a expressão e técnica conhecida como ponto do marido Alguns médicos ao realizarem a episiorrafia fazem um ponto a mais para deixar a vagina mais apertada sob o argumento de que isso ofereceria mais prazer ao parceiro da mulher na hora do sexo É considerada por muitos um exemplo de mutilação feminina cuja prática pertence a um contexto cultural no qual a sexualidade da mulher deve ser de serventia ao homem ROHDE 2016 O documento chamado Parirás com Dor elucida que a episiotomia é realizada aproximadamente em 94 dos partos normais no Brasil evidenciando assim que há uma epidemia do procedimento cujo qual não é recomendado cientificamente porque o corpo da mulher já está apto para parir A recomendação da OMS é de que a taxa de episiotomia seja entre 10 e 30 LEAL 2014 Nesse mesmo viés outro exemplo de procedimento de rotina é o exame de toque vaginal Durante a espera para o parto para verificar a dilatação os médicos fazem o chamado exame de toque Muitas vezes é realizado de forma excessiva gerando transtornos e humilhações à mulher Na maioria das vezes é realizado sem qualquer consentimento ou entendimento da parturiente e essa manobra pode ser prejudicial para o trabalho de parto Além disso existem vários relatos de uso de ocitocina rompimento artificial da bolsa e dilatação manual do colo do útero para acelerar a dilatação seguida por processos de episiotomia Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 96 Manobra de Kristeller e uso de fórceps Se esses procedimentos não forem suficientes para a saída do bebê recorrese à cesárea PARTO DO PRINCÍPIO 2012 As Ciências Sociais têm como ponto de partida ao definir a violência obstétrica pensar a prática médica como expressão das relações de poder posições de classe e hierarquias Nessas relações de poder que são assimétricas existem condições para que sejam exercidas violências contra as mulheres gestantes e os recémnascidos CASTRILLO 2016 tradução livre Algumas manifestações da violência obstétrica são mais evidentes como as agressões Outras são mais difíceis de serem notadas haja vista que fazem parte de procedimentos rotineiros como as cesarianas episiotomia dentre outros De acordo com a OMS aproximadamente 140 milhões de nascimentos ocorrem a cada ano em todo o mundo e a maioria deles apresentam fatores de risco de complicações para as gestantes e para os bebês além de diferentes formas de violências contra as mulheres WHO 2018 tradução livre 3 A AMÉRICA LATINA E A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA Na América Latina a luta contra a violência obstétrica teve início na década de 1990 a partir do movimento Medicina Baseada em Evidências Em âmbito mundial a OMS vem publicando desde então documentos e recomendações a respeito dos procedimentos do parto e então a partir da década de 2000 vários países latinoamericanos começaram a tratar o tema como um problema de saúde pública e aprovaram leis que garantiam às mulheres o direito de terem um acompanhante durante o parto como o Uruguai Argentina Brasil Porto Rico Chile México entre outros Porém somente a Venezuela 2007 a Argentina 2009 e o Suriname 2009 possuem leis federais tipificando a violência obstétrica e considerandoa uma violência de gênero Alguns outros países latinoamericanos possuem leis a nível estadual que abordam a violência obstétrica como é o caso do México Bolívia Panamá El Salvador Brasil dentre outros Em 2013 todos os países da América Latina aderiram ao Consenso de Montevidéu sobre População e Desenvolvimento um dos acordos multilaterais da América Latina da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe CEPAL da Organização das Nações Unidas ONU A partir da ratificação todos os países latinoamericanos comprometeramse a universalizar e garantir o acesso aos direitos sexuais e reprodutivos de forma humanizada e de qualidade CEPAL 2013 Entretanto um estudo produzido em 2017 pela Mira que te Miro uma Organização Não Governamental elenca quais foram os avanços depois da adesão ao Consenso O documento traz à tona que menos da metade dos países da América Latina Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 97 possuem mecanismos para lidar com as mulheres vítimas de violência obstétrica No que tange ao parto humanizado o estudo demonstra que apenas 8 dos 23 países promovem em seus relatórios práticas consideradas negativas como raspar os pelos pubianos uso de analgésicos durante o parto etc Para além disso a região latinoamericana no geral encontrase defeituosa no que diz respeito aos sistemas de denúncia para violência obstétrica e mais da metade dos países da região não possuem sanções para a prática MIRA QUE TE MIRO 2017 31 Argentina A Argentina foi o primeiro país da América Latina a reconhecer a violência obstétrica pela lei do parto humanizado a partir da Lei Nacional 25929 conhecida como Lei de Parto Humanizado SOARES BASANI 2018 A Argentina é um dos países da América Latina com menores barreiras legais para que a mulher exerça os seus direitos sexuais e direitos reprodutivos Além disso possui avanços consideráveis no que tange à prevenção da mortalidade materna e à promoção do parto humanizado MIRA QUE TE MIRO 2017 Nos últimos anos o país aprovou uma série de leis sobre a temática que impulsionaram a proteção da mulher gestante quais sejam A Lei n º 26529 2009 que versa sobre os Direitos do Paciente na relação com os profissionais e instituições de saúde a Lei nº 264852009 que trata sobre a Proteção da Violência contra a Mulher e a Lei nº 259292004 que diz respeito à Proteção à Gravidez e ao RecémNascido Ainda a Lei sobre os Direitos dos Pais e Filhos no Processo de Nascimento diz respeito ao Parto Humanizado Entretanto só foi regulamentada em 2015 através do Decreto 20352015 A referida lei evidencia que as mulheres têm direito a um parto natural respeitando o tempo fisiológico e sem qualquer intervenção desnecessária desde que não a desrespeite nem discrimine têm direito a ser informada sobre todo e qualquer procedimento que for realizado direito a um acompanhante durante o trabalho de parto parto e pós parto dentre outros Também elenca quais são os direitos do recémnascido e dos pais do bebê A lei portanto define os direitos das mulheres durante a gestação e garante à mulher o acesso à informação e o respeito à sua individualidade CARVALHO et al 2019 Assim a Argentina foi o primeiro país da América Latina a legislar e definir a humanização do parto A Lei nº 26485 Lei de Proteção Integral às Mulheres de 2009 versa sobre a proteção integral para prevenir punir e erradicar a violência contra a mulher conceitua a violência e classificaa em cinco tipos que se manifestam em cinco modalidades física psicológica sexual econômica ou patrimonial e simbólica SOARES BASANI 2018 Em seu artigo 6º encontra se a definição de violência obstétrica Art 6º Violência obstétrica aquela que o profissional Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 98 da saúde exerce sobre o corpo e os processos reprodutivos das mulheres expressandose em um tratamento desumanizado um abuso de medicalização e patologização dos processos naturais ARGENTINA 2009 O Ministério da Saúde e Desenvolvimento Social do país elucida que a cesariana é uma cirurgia que tem como fim resolver problemas durante o processo de nascimento e que nesses casos é uma intervenção necessária Não havendo indicações da cirurgia ela envolve riscos e não deve ser considerada como uma opção MINISTÉRIO DA SAÚDE E DESENVOLVIMENTO SOCIAL DA ARGENTINA sd tradução livre indo ao encontro das recomendações internacionais Mesmo após a promulgação da lei especificando a violência obstétrica alguns artigos ainda não foram regulamentados e além disso não explicita quais são as sanções direcionadas aos profissionais e às instituições de saúde que praticam a violação Para sanar essas lacunas existentes em 2011 através do Ministério da Justiça e Direitos Humanos da Nação mediante a Resolução nº 120 foi criada a Comissão Nacional Coordenadora de Ações para a Elaboração de Sanções da Violência de Gênero CONSAVIG formada por especialistas multidisciplinares ativistas dos direitos das mulheres cujo objetivo é a articulação de todos os poderes a nível municipal provincial e nacional para coordenar ações para o desenvolvimento de sanções contra a violência de gênero EL PARTO ES NUESTRO 2017 tradução livre MINISTERIO DE JUSTICIA Y DERECHOS HUMANOS tradução livre Pesquisas demonstram que mesmo após a promulgação da Lei 265292009 que garante às mulheres gestantes o direito à informação esse direito é constantemente violado pelas instituições de saúde Além disso procedimentos rotineiros como o uso de ocitocina e episiotomia continuam sendo comuns e sem a autorização e ciência da parturiente A taxa de cesarianas no país mesmo após a Lei do Parto Humanizado continua sendo alta aproximadamente 30 nas instituições de saúde públicas e 70 nas privadas indo de encontro ao recomendado pela OMS EL PARTO ES NUESTRO 2017 tradução livre Percebese portanto que muito embora existam leis que versam sobre o tema a realidade na Argentina ainda é preocupante visto que os direitos das mulheres ainda são violados durante a gravidez parto puerpério e abortamento configurando a violência obstétrica Práticas como episiotomia e cirurgia cesariana para além da inexistência de evidência e recomendação científica fazem parte de uma cultura na qual se subjuga o corpo da mulher e o coloca como pertencente ao outro e não a ela mesma ideia constantemente corroborada pela sociedade patriarcal e machista A falta de clareza no que diz respeito às Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 99 sanções para os profissionais e instituições de saúde que cometam a violação também contribui para que essas práticas continuem acontecendo 32 Venezuela A República Bolivariana da Venezuela foi a precursora ao definir a violência obstétrica como uma violação aos direitos humanos das mulheres Em 2007 aprovouse a Lei Orgânica sobre o Direito das Mulheres a uma Vida Livre da Violência tendo como ponto de partida o Dia Internacional pela Eliminação da Violência celebrado em 25 de novembro de 2006 SOARES BASANI 2018 Assim como a legislação da Argentina a lei venezuelana define a violência obstétrica como uma das formas de violência contra a mulher Em seu Artigo 15 delineia quais são os tipos de violência contra as mulheres e uma delas é a violência obstétrica entendida como Art 15 A violência obstétrica é entendida como a apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres pelo pessoal de saúde que se expressa no tratamento desumanizante no abuso da medicalização e patologização dos processos naturais resultando em perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres VENEZUELA 2007 Percebese que as definições argentina e venezuelana são bastante parecidas porém a lei venezuelana diferese ao afirmar que a violência traz consigo a perda da autonomia das mulheres e a capacidade de decidir sobre o seu corpo e sua sexualidade No entanto tal qual a lei argentina a venezuelana não prevê sanções aos profissionais que pratiquem tais atos Além do mais o Código Penal do país também sofreu algumas mudanças no que diz respeito à interpretação a partir de decisões proferidas pelo Tribunal Supremo de Justiça TRIBUNAL SUPREMO DE JUSTIÇA sd Todavia a Anistia Internacional 2017 menciona que segundo o Boletim Epidemiológico publicado pelo Ministério da Saúde venezuelano de 2016 a mortalidade materna e infantil aumentou 6579 e 3012 respectivamente Devido a esse aumento da mortalidade materna neonatal e infantil intimamente ligado às violações de direitos sexuais e reprodutivos muitas gestantes estão cruzando as fronteiras da Colômbia para parir Esse aumento está atrelado principalmente à crise de saúde que o país vivencia acarretando a falta de insumos de infraestrutura e na redução de pessoal que tem sido denunciado por diversas ONGs de direitos humanos 33 Suriname Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 100 A República do Suriname é o menor país da América do Sul considerado medianamente desenvolvido Não obstante o país é deficiente em alguns aspectos referentes aos direitos humanos e embora não possua uma lei específica para a violência obstétrica como nos casos venezuelano e argentino o país reformou o seu Código Penal de 1911 em 2009 e incluiu a violência obstétrica como crime O país adotou um projeto chamado Ação Integral de Gênero 20062010 que teve como objetivo garantir a transversalização do enfoque de gênero e a formulação e implementação de políticas públicas na administração pública Assim um dos temas eram os direitos humanos e um dos meios para promover o enfoque de gênero na administração pública foi a reforma do Código Penal que incorporou alguns temas como crime a exemplo da violência obstétrica ONU MULHERES sd 34 Brasil No Brasil a proteção à maternidade e à infância como assunto de saúde pública emerge no Estado Novo como uma política voltada para garantir o aumento da mãodeobra A partir de 1964 já no período ditatorial dáse início ao modelo de atendimento privado tendo como foco a relação de cuidado médico como algo individual e na década de 70 o Estado destinase à prevenção de gravidez de risco e fornecimento de pílula anticoncepcional proporcionando o poder de escolha quanto à maternidade SILVA 2018 A violência obstétrica ganhou mais notoriedade na década de 1980 a partir da publicação de Espelho de Vênus em 1981 que fazia uma etnografia da experiência feminina descrevendo explicitamente o parto institucionalizado como uma vivência violenta DINIZ et al 2017 p 2 O trabalho relatava as experiências femininas e descrevia o parto institucionalizado como uma violência Além disso abordava a relação médicopaciente trazendo à tona algumas vivências das mulheres no momento gestacional parto e aborto CARVALHO et al 2019 Ainda de acordo com Diniz et al 2017 e Carvalho et al 2019 a violência obstétrica também já estava sendo debatida no âmbito da saúde ao final dessa mesma década com a criação do PAISM e do Programa de Atenção Integral à Saúde da Criança em 1984 Ambos os programas consideravam a mulher um sujeito de reprodução incluindo ações educativas preventivas diagnósticos tratamento e recuperação SOARES BASANI 2018 FRANCO MACHADO 2016 A partir da década de 90 ocorreram diversos eventos concernentes ao tema Em 1993 em Campinas SP um evento composto por diversos profissionais da saúde e ativistas de gênero discutia acerca da situação atual do nascer na nossa sociedade o qual gerou um Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 101 documento a Carta de Campinas refletindo sobre a alta taxa de cesariana no país e instituindo a organização Rede pela Humanização do Parto e do Nascimento REHUNA que elenca acerca dos riscos à saúde das mães e bebês submetidos às práticas intervencionistas inadequadas resgata o nascimento como um fenômeno natural revaloriza o parto humanizado incentiva as mulheres à sua autonomia e poder de decisão e adere ao movimento da medicina baseada em evidências REHUNA Já em 1998 o Ministério da Saúde MS através das Portarias nº 2815GM e nº 2816GM estabelece como prioridades a redução da mortalidade materna e perinatal qualidade do prénatal e parto e a redução das cirurgias cesarianas bem como os casos de violência contra a mulher Essas iniciativas inauguraram um processo de humanização dos serviços de saúde o que ocasiona no surgimento do Programa de Humanização no PréNatal e Nascimento instituído pelas Portarias nº 5695705712000 com o objetivo de mudar a assistência à saúde SOARES BASANI 2018 A partir de 2000 o Brasil acentuou as políticas públicas e normativas no que diz respeito à violência contra a mulher em seu período gestacional parto e pósparto muito embora ainda não dispunha uma lei em nível federal sobre o tema Em 2004 o MS lançou a Política Nacional de Humanização do Sistema Único de Saúde destinado a gestores e trabalhadores do Sistema e o Pacto de Redução da Mortalidade Materna e NeoNatal Em 2011 instituiu o Programa Rede Cegonha SOARES BASANI 2018 através da Portaria nº 14592011 O Programa Rede Cegonha é promovido pelo Sistema Único de Saúde e visa estimular o planejamento reprodutivo e a atenção integral à gestante durante o período gestacional parto e puerpério e para além objetiva a redução da mortalidade materna e neonatal Para implantar um modelo de atenção à saúde da mulher que leva em consideração a assistência humanizada no parto puerpério e crescimento da criança tem como base quatro componentes PréNatal Parto e Nascimento Puerpério e Atenção à Saúde da Criança E ainda um sistema de transporte sanitário e regulação Assim a finalidade última do programa é instituir a humanização do atendimento e do parto Dados do MS de 2016 mostram que o programa já atingiu mais de 5000 municípios do Brasil alcançando mais de 2 milhões de gestantes MINISTÉRIO DA SAÚDE 2017 Em 2015 o governo brasileiro através da Agência Nacional de Saúde Suplementar ANS editou a Resolução Normativa 3682015 cujo objetivo é diminuir a alta taxa de cesarianas realizada no país considerada uma epidemia No mesmo ano foi lançado o Projeto Parto Adequado desenvolvido pela ANS o Hospital Israelita Albert Einstein e o Instituto para a Melhoria da Saúde tradução livre ou Institute for Healthcare Improvement Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 102 com o apoio do MS que visa identificar modelos novos e viáveis de parto e nascimento dando atenção ao parto normal para tentar reduzir a quantidade de partos cesarianos utilizandose da medicina baseada em evidências AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR sd O Brasil não possui uma legislação específica sobre a violência obstétrica em âmbito federal Todavia alguns estados possuem leis acerca do tema como por exemplo Santa Catarina Lei nº 170972017 São Paulo Lei nº 157592015 Rio de Janeiro Lei nº 71912016 Minas Gerais Lei nº 231752018 dentre outros Ademais alguns estados já contam também com legislação permitindo as profissionais doulas acompanharem as mulheres no processo do parto como é o caso de Goiás Rio Grande do Sul São Paulo e outras cidades possuem leis municipais como UberabaMG e Bragança Paulista SP Apesar de todo o complexo e profundo histórico envolvendo a violência obstétrica no Brasil e no mundo em maio de 2019 o Ministério da Saúde do Brasil publicou um despacho vetando o uso do termo violência obstétrica por não agregar valor e não ajudar no movimento de humanização do parto algo inédito do órgão depois de anos corroborando com a luta contra a violência obstétrica através do fomento de políticas públicas e recomendações Em junho após várias críticas e inclusive recomendações do Ministério Público Federal o órgão voltou atrás e reconheceu o uso de qualquer termo que melhor represente as experiências vivenciadas durante o parto sem citar explicitamente a violência obstétrica G1 FEBRASGO Ainda no ano passado o Ministério lançou uma página informativa ou site para monitorar de forma online as cesáreas no país MINISTÉRIO DA SAÚDE 2018 O que se observa portanto é que ao mesmo tempo em que os movimentos de mulheres e organizações ativistas lutam pela erradicação de todas as formas de violência contra as mulheres percebese a ascensão de um movimento contrário ao uso do termo violência obstétrica e como tal o enquadramento da prática como uma forma de violência específica contra os direitos humanos das mulheres O Conselho Federal de Medicina publicou o Parecer CFM n 32 de 2018 afirmando que o uso do termo configura uma agressão contra a medicina porque a expressão causa indignação na especialidade obstétrica BRASIL 2018 Compactuando desse ponto de vista no ano corrente o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro publicou a Resolução n 293 Rio de Janeiro 2019 proibindo oa médicoa de aderir a quaisquer propostas e ou documentos que restrinjam a sua autonomia inclusive o plano de parto da gestante BRASIL 2019 Além disso os dados acerca desse tipo de violência evidenciam que a prática ainda é um problema no país A taxa de cesarianas é a mais alta do mundo chegando a 56 ficando Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 103 próximo àquelas de países como China México Itália e Estados Unidos que estão entre 46 e 32 mostrando que o país vai de encontro às recomendações da OMS no que tange às cesáreas A realidade do contexto brasileiro ainda é marcada por um abuso de intervenções cirúrgicas atendimentos humilhantes e muitas vezes até mesmo o impedimento a presença do acompanhante O modelo de atenção ao parto e a atuação dos profissionais da saúde não está baseado em evidências LEAL et al 2014 ZANARDO et al 2017 REDE HUMANIZA SUS ASSOCIAÇÃO ARTEMIS CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do exposto percebese que a violência obstétrica ainda é um assunto pouco discutido em âmbito nacional na América Latina mesmo nos países onde já existem leis específicas acerca do tema No caso da Argentina e da Venezuela que trazem consigo legislações configurando a violência obstétrica como uma forma de violência contra a mulher percebese que não existem leis que preveem punições para quem cometer tal prática estando os profissionais e instituições de saúde responsáveis por promoverem a humanização da assistência e do parto O único país que teve um avanço nesse sentido foi o Suriname que instituiu em seu Código Penal a violência obstétrica como um crime e prevê punições No caso da Argentina especificamente mesmo após a promulgação das leis os dados continuam alarmantes inclusive no que diz respeito aos partos cesarianos e práticas intervencionistas não necessárias No tocante à Venezuela há aumento da mortalidade materna e neonatal devido à grave crise de saúde na qual o país se encontra devido às faltas de suprimentos profissionais e infraestrutura Durante a pesquisa não se conseguiu encontrar dados mais precisos acerca das taxas de cesariana e episiotomia no país No caso do Brasil que promove uma discussão acerca do tema desde a década de 80 houve vários avanços principalmente de políticas públicas buscandose atenuar o problema Alguns estados brasileiros conseguiram avançar aprovando leis que configuram a violência obstétrica e em alguns locais até mesmo permitindo a presença das doulas tornando o parto humanizado uma realidade possível Ainda assim carece de leis de nível federal que versem especificamente sobre o tema Além disso ainda no que diz respeito ao Brasil é perceptível a existência de diversas ONGs que realizam o trabalho de conscientização das mulheres e da população no geral Existem ainda inúmeras políticas públicas que visam atenuar a violência bem como profissionais que aderem ao movimento pela humanização do parto muito embora o governo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 104 brasileiro não considere a violência obstétrica uma violação aos direitos humanos das mulheres nem uma prática que precisa ser constantemente combatida criminalizada e debatida As lutas feministas nesse sentido trouxeram muitas conquistas aos direitos das mulheres demonstradas nas leis e políticas públicas do Brasil Entretanto ainda que o país considere a violência obstétrica como um problema esse tipo específico de violação ainda é marginalizado e não se configura enquanto problema que deve ser erradicado e debatido entre os profissionais da saúde população e instituições governamentais Este papel de conscientização fica a cargo de profissionais ou da população que trazem consigo a consciência de que é necessário avançar política e socialmente nesse aspecto Assim há negligência por parte do governo brasileiro que ao não perceber a violência obstétrica como uma violação aos direitos humanos das mulheres faz com que não haja mecanismos de denúncia contra a prática penalização e fiscalização REFERÊNCIAS AGÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE SUPLEMENTAR Projeto Parto Adequado Disponível em httpsbitly2lEe0Dc Acesso em 23 jul 2019 ANISTIA INTERNACIONAL Violencia obstétrica en contextos de crisis de salud 2017 Disponível em httpsbitly2P1BdhG Acesso em 23 jul 2019 ARGENTINA Ley nº 26485 de 11 de março de 2009 Ley de protección integral para prevenir sancionar y erradicar la violencia contra las mujeres en los ámbitos en que desarrollen sus relaciones interpersonales Ley de Proteccion Integral A Las Mujeres Argentina 1 abr 2009 ASSOCIAÇÃO ARTEMIS Sobre a ONG Disponível em httpsbitly2HeBO9x Acesso em 22 jul 2019 BRASIL Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro Resolução n 293 de 2019 Rio de Janeiro 2019 BRASIL Ministério da Saúde Portaria n 569 de 1 de junho de 2000 Brasília 2000 CARVALHO A S et al Violência obstétrica a ótica sobre os princípios bioéticos e direitos das mulheres Brazilian Journal Of Surgery And Clinical Research Bjscr Online p 52 58 marmai 2019 Disponível em httpsbitly2KT3i5B Acesso em 18 jul 2019 CASTRILLO B Dime quién lo define y te diré si es violento Reflexiones sobre la violencia obstétrica Sexualidad Salud y Sociedad Revista Latinoamericana Rio de Janeiro v 0 n 24 p4368 dez 2016 Disponível em httpsbitly2z2xOVg Acesso em 07 jun 2019 CEPAL Países da região aprovam o Consenso de Montevidéu sobre População e Desenvolvimento 2013 Disponível em httpsbitly31OKvPP Acesso em 17 jul 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 105 CUNHA C C A Violência obstétrica Uma análise sob o prisma dos direitos fundamentais 2015 46 f TCC Graduação Curso de Direito Universidade de Brasília Brasília 2015 Disponível em httpsbitly33IpKqE Acesso em 07 jun 2019 DINIZ S G et al Violência obstétrica como questão para a saúde pública no brasil origens definições tipologia impactos sobre a saúde materna e propostas para sua prevenção Journal Of Human Growth And Development São Paulo p 18 2015 Disponível em httpsbitly2KHRZ1j Acesso em 08 jun 2019 FRANCO L M MACHADO I V Brasil em trabalho de parto um estudo sobre a violência obstétrica In CAMARDELO A M P FERRI C OLIVEIRA M Contornos de opressão história passada e presente das mulheres Caxias do Sul Edusc 2016 p 89112 LEAL M do C et al Intervenções obstétricas durante o trabalho de parto e parto em mulheres brasileiras de risco habitual Cadernos de Saúde Pública Online v 30 n 1 p17 32 ago 2014 FapUNIFESP SciELO Disponível em httpsbitly2KXkN4G Acesso em 05 jun 2019 MATOS G C et al A trajetória histórica das políticas de atenção ao parto no Brasil uma revisão inegrativa Revista de Enfermagem UFPE Online Recife v 7 n 3 p870878 mar 2013 Disponível em httpsbitly2KVIaLV Acesso em 28 jun 2019 MINISTÉRIO DA SAÚDE Ministério da Saúde fará monitoramento online de partos cesáreos no país 2018 Disponível em 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Universidade Estadual de Londrina 2018 Disponível em httpsbitly2Z8C1B9 08 jun 2019 SOARES C S BASANI A B Violência Obstétrica Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento Ano 03 Ed 12 Vol 01 pp 5379 dez 2018 Disponível em httpsbitly31JKb4O WORLD HEALTH ORGANIZATION WHO recommendations intrapartum care for a positive childbirth experience Geneva WHO 2018 WOLFF L R WALDOW V R Violência consentida mulheres em trabalho de parto e parto Saúde e Sociedade São Paulo v 17 n 3 p138151 set 2008 FapUNIFESP SciELO Disponível em httpsbitly2NemMVh Acesso em 05 jun 2019 ZANARDO G L P et al Violência obstétrica no Brasil uma revisão narrativa Psicologia Sociedade Porto Alegre v 29 p111 2017 FapUNIFESP SciELO Disponível em httpsbitly2KLOuWg Acesso em 05 jun 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 107 O DIREITO DE ESCOLHER E DE BEM NASCER ENFRENTAMENTO DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA Isabele Bruna Barbieri1 Franciele Volpato2 RESUMO O presente artigo pretende analisar a autonomia da mulher gestante no parto e pósparto em contrapartida com os direitos humanos em um cenário de violência obstétrica no Brasil Parte se da hipótese de que a perpetuação da violência sofrida pela mulher no parto e também pela realização desnecessária de procedimentos médicos na mãe e no recémnascido continua ocorrendo diante de uma medicina arraigada de entendimentos patriarcais Para tanto o primeiro capítulo inicia apresentando a primeira seção apresenta um panorama de direitos humanos e que os direitos das mães e dos recémnascidos estão imersos nestas garantias fundamentais Ao passo no segundo capítulona segunda seção demonstramse as práticas violentas cotidianas e corriqueiras no trabalho de parto ausência de respeito amorosidade e desrespeito a autonomia da mulher em um momento de vulnerabilidade Finalizase apontando um local de parto que respeita a autonomia da mulher e o bem nascer sendo um instrumento na disseminação das boas práticas e do respeito no parto o que possibilita uma mudança na forma de se pensar a assistência sobre o parto e as vidas envolvidas Para isso a metodologia utilizada é o método hipotéticodedutivo por meio da pesquisa bibliográfica e documental Palavraschave Direitos humanos Direito de escolher Violência obstétrica Centro de Parto Normal INTRODUÇÃO As mulheres são capazes de gestar nutrir e parir naturalmente sem a necessidade de intervenções médicas Essas intervenções deveriam ficar restritas àquelas situações em que há complicações e risco à mulher e bebê Todavia não é essa a realidade brasileira onde o parto é marcado pela violência que submerge da sociedade patriarcal imbuída de valores machistas fragmentados e mecanicistas Todavia a gestação o parto e o nascimento são eventos complexos integrados holísticos naturais 1 Doutoranda do Programa de Pósgraduação de Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Pesquisadora do Observatório de Justiça Ecológica Bolsista de doutorado pela CAPES isabeleibbadvocaciaadvbr Lattes httplattescnpqbr3274945152259897 2 Enfermeira Obstetra Mestranda pelo Programa de Pósgraduação de Enfermagem da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa e Inovação Tecnológica em Saúde Obstétrica e Neonatal Bolsista pela CAPES franparteiragmailcom Lattes httpbuscatextualcnpqbrbuscatextualvisualizacvdoidK4137683H0 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 108 Nesse sentido em sociedades marcadas pelo capitalismo extremado o parto foi e continua sendo afastado de sua natureza intrínseca para ser marcado pelo processo mecanicista tecnológico e profissionalcentrado característico do modelo biomédico de cuidado O presente trabalho objetiva analisar a autonomia da mulher no parto e pósparto imediatos em contrapartida com os direitos humanos em um cenário de violência obstétrica no Brasil Acreditase que a perpetuação da violência sofrida pela mulher no parto continua ocorrendo diante de uma cultura de cuidado arraigada de valores patriarcais onde o conhecimento na área da saúde é pensado e apreendido pelo viés da dependência e incapacidade feminina ancorado na autoridade do profissional que detém o conhecimento Para tanto o primeiro capítulo inicia apresentando um panorama dos direitos humanos em que os direitos das mulheres e recémnascidos estão imersos nestas garantias fundamentais Ao passo no segundo capítulo demonstramse as práticas violentas cotidianas e corriqueiras no trabalho de parto ausência de respeito amorosidade e autonomia da mulher em um momento de vulnerabilidade E finalizase apontando um local de parto que respeita a autonomia da mulher e o bem nascer sendo um instrumento na disseminação das boas práticas e do respeito no parto o que possibilita uma mudança na forma de se pensar a assistência obstétrica A presente análise se justifica em virtude de um cenário de total retrocesso e obscurantismos no sentido de ocultar a violência obstétrica por meio da não utilização de sua terminologia bem como pela necessidade de evidenciar essa violência através de um comparativo com outra forma possível e respeitosa de parir e nascer Dessa forma pretendese contribuir com a luta pelo direito da mulher de autodeterminação autonomia em seus processos naturais e pela atenção respeitosa à fisiologia do parto e nascimento Neste estudo utilizase o método hipotéticodedutivo com revisão bibliográfica e narrativa de relatos 1 DIREITOS REPRODUTIVOS NA MATERNIDADE COMO DIREITOS HUMANOS A saúde é um direito fundamental do ser humano onde o Estado deve zelar por suas boas práticas e dar condições para que elas aconteçam Inserido nesta amplitude de direito estão os direitos reprodutivos das mulheres que dispõe sobre as práticas de cuidados da saúde feminina sob o enfoque da integridade corporal autonomia pessoal igualdade e diversidade ZORZAM CAVALCANTI 2016 No caso da mulher parturiente a saúde tem sido sinônimo de intervenções médicas injustificadas maus tratos verbais e por fim o descumprimento de leis como no caso da Lei Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 109 do Acompanhante Lei nº 1110805 nas quais as maternidades impedem a presença do pai ou do acompanhante de escolha da mulher no trabalho de parto parto e pósparto De acordo com a Organização Mundial de Saúde a violência sofrida pelas mulheres é uma violação dos direitos humanos sendo que os abusos os maustratos a negligência e o desrespeito durante o parto equivalem a uma violação dos direitos humanos fundamentais das mulheres como descrevem as normas e princípios de direitos humanos adotados internacionalmente Ela aponta que há aproximadamente 140 milhões de nascimentos no mundo anualmente sendo que a grande maioria não apresenta fatores de risco que levariam a complicações no trabalho de parto e para os bebês OMS 2014 p 3 Todavia os índices de intervenções só aumentam sendo que nas últimas décadas têm sido aplicadas diversas práticas de iniciar acelerar terminar esse processo fisiológico o que por certo debilitam a capacidade da mulher de conduzir um parto natural afetando negativamente sua experiência de parto OMS 2018 A pesquisa nacional Nascer no Brasil realizado pela Fiocruz entre 20112012 entrevistou 23894 mulheres em pósparto e identificou que apenas 56 dos partos no SUS são naturais ou seja sem nenhuma intervenção Enquanto que 92 das mulheres pariram em litotomia deitadas de barriga pra cima 56 foram vítimas de episiotomia corte no períneo e menos de 50 delas foram beneficiadas com as boas práticas ao parto e nascimento OMS 1996 como liberdade para escolher a posição que deseja alimentarse durante o trabalho de parto entre outras LEAL et al 2014 Em 2018 a OMS publicou novas diretrizes para o parto e nascimento resultarem em uma experiência positiva São 56 recomendações para os cuidados durante o parto contendo as seguintes categorias recomendado não recomendado recomendado sob um contexto específico e recomendado somente em contexto de investigações rigorosas Entre elas orienta se não realizar intervenções para acelerar o trabalho de parto como o uso da ocitocina ou cesariana cirurgia de grande porte não cortar o períneo antes do parto vaginal disponibilizar analgesia para alívio da dor quando solicitado permitir a movimentação e escolha da posição de parir não realização de pressão no fundo uterino durante o período expulsivo Manobra de Kristeller oportunizar clampeamento tardio de cordão umbilical contato pele a pele com o recém nascido mamada na primeira hora e garantir que mãe e bebê permaneçam juntos no mesmo local 24 horas por dia Dessa forma Hoje há uma enorme discrepância no apoio prestado às mulheres em torno do parto Num extremo do espectro são oferecidas demasiadas intervenções médicas cedo demais No outro eles recebem muito pouco apoio tarde demais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 110 ou nenhum Em nenhum extremo as mulheres têm a experiência de parto positiva que desejam e merecem SIMELELA 2018 p1 tradução minha Nos últimos 20 anos houve uma ampliação do uso de intervenções que deveriam ser utilizadas para evitar riscos ou complicações Todavia atualmente essas intervenções são realizadas quando não há esse cenário sendo que mesmo em mulheres saudáveis há pelo menos uma intervenção clínica durante o trabalho de parto NAÇÕES UNIDAS BRASIL 2018 No entanto o que se verifica no cotidiano da assistência à saúde da gestante parturiente e do recémnascido não é o respeito a um processo fisiológico natural sob o cuidado baseado em evidências científicas e amorosidade Ao contrário a experiência do parto para a maioria das mulheres se torna um momento traumático O que aprendemos na nossa formação Departamento de Saúde na prática era que as mulheres têm seus direitos suspensos pela maternidade Seu direito à condição de pessoa seu direito à integridade corporal seu direito à equidade e à diversidade não valiam mais pois a maternidade é sacrifício e qualquer desobediência de sua parte seria segundo aprendemos uma ameaça à segurança do bebê Como parturiente ela deveria aceitar ser fisicamente imobilizada mantida sem água nem comida sem a presença de ninguém de sua confiança Deveria aceitar uma fila de pessoas desconhecidas introduzindo os dedos na sua vagina para seu própria bem ZORZAM CAVALCANTI 2016 p 9 Nesse sentido além de um evento traumático emocional psicológica e até fisicamente é uma ferida nos direitos humanos Um desrespeito a essas normas de proteção inerentes a todo e qualquer indivíduo humano independente de raça cor sexo direcionadas para a proteção dos mais fracos e vulneráveis nas relações desiguais cujos direitos nasceram e nascem a partir da mobilização da sociedade civil contra todos os tipos de opressão dominação exclusão PIOVESAN 2009 Os direitos humanos impõem obrigações internas e internacionais que estão inseridos no conteúdo da Constituição Federal Brasileira de 1988 primando pela dignidade da pessoa humana cuja pessoa é fundamento e fim de uma sociedade e de um Estado PIOVESAN 2009 Os valores constitucionais asseguram assim a base de toda interpretação de normas esparsas no ordenamento jurídico guiando e orientando a aplicação do direito Logo questões de bem estar das mulheres devem ser vistas sob esse viés As questões de gênero são questões de Justiça onde a demanda das mulheres por seus direitos passa pela posição de questionar as políticas e práticas de bemestar ou de maus tratos mas também ativa aliado a necessidade de reconhecimento da mulher como agente sendo ambos os aspecto o do bemestar e o da condição de agente pautas dos movimentos feministas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 111 O reconhecimento de apenas um desses fatores implica em uma condição restrita da mulher como pessoa SEN 2000 Por certo que movimentos que lutam somente por questões de bemestar ou benestaristas são importantes pela luta da não submissão da mulher a piores tratamentos ou a uma alta mortalidade por parcialidade entre os sexos na assistência e distribuição dos cuidados da saúde Todavia as mulheres já não são apenas receptoras passivas de auxílio para melhorar seu bemestar as mulheres são vistas cada vez mais tanto pelos homens como por elas próprias como agentes ativos de mudanças promotoras dinâmicas de transformações sociais que podem alterar a vida das mulheres e dos homens SEN 2000 p 220 Nesta posição ativa as mulheres começam a perceber os abusos que sofrem na assistência ao préparto parto e pósparto e encorajamse para denunciálos Neste sentido conforme Zormam e Cavalcanti 2016 são infrações aos direitos humanos e práticas mais corriqueiras que serão abordadas mais detalhadamente na próxima seção através da citação de relatos de mulheres3 o abuso físico ou seja o desrespeito a integridade corporal das mulheres bem como deixar de oferecer os melhores cuidados ocitocina de rotina ou sem indicação episiotomia cesárea sem indicação ou por conveniência do profissional Práticas sem consentimento ferem o direito da mulher ao acesso à escolha informada e informada não quer dizer comunicada apenas mas explicada além das intervenções acima citadas ainda temse exames de toques para aprendizagem de residentes descolagem digital das membranas durante o toque vaginal redução de colo durante o exame de toque Violência verbal e emocional fere o direito ao respeito e a dignidade recebimento de xingamentos e humilhações Discriminação a atributos específicos seja a classe social condição étnica idade cor da pele Coerção à autodeterminação e autonomia das mulheres impedir que recebam informações e que possam decidir livremente sobre os tipos de parto São diversos documentos normativos que disciplinam o direito e a não violência que são frequentemente desrespeitados Em vista disso a Lei 170972017 dispõe sobre a implantação de medidas de informação e proteção à gestante e parturiente contra a violência obstétrica SANTA CATARINA 2017b Assim a mulher vítima de violência obstétrica pode 3 Nestas indicações não se pretende aprofundar nos conceitos médicos das intervenções realizadas mas se pretende pontuar as práticas consideradas violência abusos ou que trazem mais prejuízos do que benefícios à mulher e ao recémnascido Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 112 acessar o Poder Judiciário demandando com ações civis de reparação de danos materiais eou morais Conforme a gravidade da violência sofrida podese acionar a Defensoria e o Ministério Público para dar entrada em uma ação penal por injúria ou por lesão corporal Para tanto faz se necessário convocar mais diálogo pesquisa e mobilizações para desvelar a temática da saúde da mulher e de seus direitos fundamentais 2 UMA QUESTÃO DE GÊNERO O PATERNALISMO NAS EXPERIÊNCIAS DE PARTO E NASCIMENTO PERPETUAM UMA VIOLÊNCIA INSTITUCIONALIZADA Ao longo do tempo diversas mudanças foram ocorrendo em relação ao parto e nascimento no Brasil A princípio o parto era visto como um processo fisiológico da vida uma reunião de mulheres em torno do nascimento de uma vida e assistência da mãe que pari Com a institucionalização e medicalização o corpo da mulher passa a ser considerado um corpo defeituoso que necessita de intervenções subjulgando a mulher a uma autoridade que a faz desacreditar em sua capacidade fisiológica de parir JARDIM MODENA 2018 A demonização do parto e a penitência da mulher são sinônimos do pecado original feminino apregoado por concepções religiosas onde a dor do parto é pagamento pelo pecado entendendo esse sofrimento como um desígnio divino DINIZ 2005 Todavia a ciência como salvadora dos homens da ignorância cega chama para si o papel de resgatar essas pecadoras resolvendo extirpar a dor da vítima a dor de ser quem é a dor da sua própria natureza Desta forma a obstetrícia médica assume o papel de combater os perigos e de resolver o problema da parturição sem dor DINIZ 2005 cuja medicina vislumbra o parto como uma violência intrínseca uma violência sofrida pela mãe perpetrada pela criança ao nascer REDE PARTO DO PRINCÍPIO 2012 Diante desse sofrimento o modelo biomédico de cuidado obstétrico em sua superioridade retira a mulher de seu papel ativo no trabalho de parto retira o parir e tornao patológico ou seja implica em possíveis danos riscos e sofrimentos Oferecendo solidariedade humanitária e científica diante do sofrimento a obstetrícia cirúrgica masculina reivindica sua superioridade sobre o ofício feminino de partejar leigo ou culto DINIZ 2005 p 628 Em se tornando assim um evento de puro sofrimento e dor a obstetrícia médica ofereceu soluções mulheres davam à luz inconscientes sedação total para que não houvesse lembrança do que tinha ocorrido Nesta sedação total era também utilizado um alucinógeno o que produzia Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 113 muita agitação nas mulheres e para tanto tinham que ser amarradas nas camas cenário este que demonstra um parto instrumental DINIZ 2005 De pecadora à vítima a mulher é subjulgada aos desígnios dos profissionais representações de uma sociedade patriarcal sedada desacorda amarrada instrumentalizada o nascimento se torna novamente o pecado original sob a forma de salvamento A mulher se torna então um elemento secundário no cenário do nascimento No modelo hospitalar dominante do século 20 as mulheres embora conscientes eramsão imobilizadas com as pernas abertas e levantadas o funcionamento de seu útero acelerado ou reduzido assistidas por pessoas desconhecidas Separada de seus parentes DINIZ 2005 p 629 Em seu momento de vulnerabilidade4 nas salas obstétricas encontramse mulheres seminuas na presença de estranhos sozinhas em um cenário desconhecido em posição de submissão total pernas abertas e levantadas genitália exposta rotineiramente separadas de seus filhos logo após o nascimento a relação de autoridade se impõe onde os profissionais de assistência ao parto são imbuídos de autoridade técnicocientífica em uma relação de poder desigual promovem o nascimento como um evento médico com protocolos a seguir JARDIM MODENA 2018 p 2 Historicamente a conquista do poder por uma elite profissional médica e masculina envolveu uma luta que acompanhou a abordagem racional e científica da saúde bem como introduziu os homens em setores tradicionalmente atendidos por mulheres como o parto CAPRA 2012 O modelo biomédico hegemônico se centra em um excesso de procedimentos procedimentos estes que compõem um protocolo comum de serviços de assistência obstétrica bem como em uma relação médicopaciente autoritária PALHARINI 2017 O modelo patriarcal perpassa o ensino médico trazendo sua característica de hierarquização do masculino acima do feminino onde nesta relação desigual deve existir o agente capaz de decidir sobre o incapaz os preceitos da cultura médica hegemônica perpetuada por meio de suas práticas e da garantia de sua continuidade pela formação dos futuros médicos funcionam como um dispositivo de verdade que ultrapassa evidências científicas normas e recomendações de órgãos da saúde PALHARINI 2017 p 25 4 O presente artigo utiliza o termo vulnerabilidade no sentido de caracterizar o momento em que a mulher necessita decidir sobre a saúde e a vida do seu filho bem como do momento no parto natural em que a mulher se entrega por completo ao trabalho de parto em que muitas vezes a atenção e consciência está voltada somente para esse momento interno não percebendo muitas vezes as demais questões externas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 114 Neste sentido Amorim 2019 p 4 pontua que o saber médico é constituído em um modelo patriarcal que vê o corpo feminino como essencialmente defectivo E é um modelo que reproduz a desigualdade e a hierarquia da sociedade Além da característica do saber científico que proporciona essa desigualdade na relação de poder o estereótipo da mulher como sexo frágil a mantém sob a autoridade patriarcal o profissional revelando a presença constante e influência das questões de gênero onde a representação de uma figura masculina é quem melhor pode decidir frente a um sujeito fragilizado incapaz e dependente As mulheres são infantilizadas e fragilizadas para reforçar esse modelo de hierarquia onde devem ser conduzidas pelos médicos e equipe responsável Importante pontuar que neste modelo de ensino embora se tenha a presença de profissionais mulheres e homens o saber está imerso nesses valores patriarcais e de hierarquização sendo que a figura de autoridade personifica esses valores Por isso se tem violências perpetradas por profissionais mulheres também No modelo biomédico de cuidado as pessoas são desumanizados retiradas suas identidades para figurarem como um número de prontuário a ser estudado diagnosticado e tratado DINIZ et al 2015 Nas profissões da saúde em sua maioria o ensino não é humanizado restando uma relação de sujeitoobjeto ou seja o médico e a doença e o paciente um material didático Neste cenário onde o nascer está centrado no profissional há terreno fértil para práticas violentas Usualmente se pergunta para a mulher que pariu quem realizou seu parto O que demonstra uma completa desatenção a esta relação de mulher autônoma inserida em seu contexto social e cultural trazendo ao Mundo novo ser gestado nutrido cuidado pela mulher passando a demonstrar que a autoridade médica é a responsável pelo nascimento de uma nova vida enquanto a mulher foi mero receptáculo afastando por completo seu protagonismo Em um mundo masculinizado onde o parir se tornou patologia se retira da mulher o parir naturalmente a expressão de ser quem é Nesse cenário em que a mulher é objetificada e por conseguinte desconsiderada como ser de direito há terreno fértil para práticas violentas Contudo as mulheres têm reconhecido nos aspectos patriarcais da medicina mais uma manifestação do controle do corpo das mulheres pelos homens CAPRA 2012 Assim cuidado centrado na mulher e o respeito a sua autonomia feminina são nortes para transformar essa assustadora realidade REDE PARTO DO PRINCÍPIO 2012 A mudança neste cenário assustador portanto seria proposta pela organização civil fundada nos preceitos do feminismo centrando o olhar na consideração da mulher como Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 115 principal sujeito REDE PARTO DO PRINCÍPIO 2012 O feminismo teve um papel fundamental na forma de reforma no parto nos Estados Unidos criando centros de saúdes feministas sendo que esta luta evoluiu para se pensar a assistência a parir baseada em direitos um direito humano inserido nos conceitos de direitos reprodutivos e sexuais DINIZ 2005 Do mesmo modo a terminologia violência obstétrica nasce com o ativismo das mulheres sendo uma das inúmeras formas de violência de gênero e suas intersecções de classe e raça sendo mais fortemente difundido no ano de 2015 O termo é considerado recente todavia a prática violenta não Há narrativas da década de 50 nos Estados Unidos e na Inglaterra de partos em hospitais onde imperavam a negligência à mulher bem como práticas irracionais como parturientes serem drogadas e amarradas contra sua vontade separadas de seus filhos DINIZ et al 2015 No Brasil desde a década de 80 documentos oficiais como o Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher PAISM já apontava e reconhecia o tratamento agressivo e impessoal dado à mulher na atenção à saúde da mulher E a temática avançou tornandose objeto de leis estaduais como a Lei Estadual de Santa Catarina Lei ordinária nº 1709717 que dispõe de medidas de informação e proteção contra violência obstétrica DINIZ et al 2015 Há diversas definições tipificações e classificações do termo violência obstétrica sendo relatado pela Organização Mundial da Saúde que desrespeitos e abusos durante o parto nas instituições de saúde incluem violência física humilhação profunda e abusos verbais procedimentos médicos coercivos ou não consentidos incluindo a esterilização falta de confidencialidade não obtenção de consentimento esclarecido antes da realização de procedimentos recusa em administrar analgésicos graves violações da privacidade recusa de internação nas instituições de saúde cuidado negligente durante o parto levando a complicações evitáveis e situações ameaçadoras da vida e detenção de mulheres e seus recémnascidos nas instituições após o parto por incapacidade de pagamento OMS 2019 p1 Para a autora Amorin a Violência obstétrica consiste na apropriação do corpo da mulher e dos processos reprodutivos por profissionais de saúde na forma de um tratamento desumanizado medicalização abusiva ou patologização dos processos naturais reduzindo a autonomia da paciente e a capacidade de tomar suas próprias decisões livremente sobre seu corpo e sua sexualidade o que tem consequências negativas em sua qualidade de vida 2019 p 3 Importante observar que as práticas de conduta violenta não são realizadas apenas por médicos podendo ser praticadas por qualquer profissional no decorrer do parto aborto Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 116 puerpério prénatal Todavia diante do modelo de assistência hospitalocêntrico e medicalizado acabase focando na figura do médico e este então aparece mais nos relatos de abusos Embora se tenha um aumento nas discussões com relação a violência sofrida pelas mulheres na gestação parto e pósparto na contramão o Ministério da Saúde neste ano de 2019 instituiu como política pública o fortalecimento da utilização de outros termos que não o da violência sob a justificativa de que o profissional da saúde não teria a intenção de prejudicar ou causar dano Ora a partir da narrativa dos casos concretos é possível apontar que o uso da terminologia Violência Obstétrica é adequado Quando um médico realiza a episiotomia sem o consentimento da mulher ao contrário com a expressa manifestação de vontade solicitando a não realização isso caracteriza um dano Ao passo que de forma mais grave como citado por Amorim 2019 para realizar o procedimento da episiotomia o médico rasga o períneo da paciente com a mão Se há a necessidade de um elemento subjetivo ou seja a vontade de causar dano este exemplo é indiscutível Uma auxiliar de enfermagem veio e disse que eu estava com frescura porque parto normal era assim mesmo doía e que eu tinha que ter pensado antes de engravidar Minha mãe consegui subir mas foi barrada na porta sabia que ela deveria buscar socorro urgente porque eu morreria caso ninguém fizesse nada Ela tentou mas ninguém ajudou todos disseram que era frescura Na troca do plantão pela manhã a médica pediu que me dessem soro com ocitocina para tentar fazer o parto Mesmo assim ela me avisou que não sabia se seria possível e que talvez nem eu nem o meu bebê sobrevivêssemos fui submetida a um parto normal com quatro centímetros de dilatação fizeram algo parecido com uma manobra de fórceps mas com as mãos tomei 28 pontos na episiotomia meu filho já estava em sofrimento e passou 22 dias na UTI Foi muito traumático ter essa experiência Desencadeei um histórico de ansiedade e depressão pósparto pois eu e meu bebê sofremos muito Julia Souza5 33 anos MASSA 2016 p 2 Colocaram meu bebê que nasceu morto aos 5 meses numa luva cirúrgica Talmai Terra 31 anos fonte época vítimas de violência obstétrica o lado invisível do parto Falaram cale a boca Quem manda no procedimento sou eu Eva Maria Cordeiro 40 anos LAZZERI 2015 p 2 Faziam 15 minutos que o meu primeiro filho tinha nascido e aí me aviaram que ele havia falecido Nesse momento começaram várias ofensas Eu pedi para o médico me desamarrar da maca falei que estava sentindo muita dor nas costas Ele começou a reclamar que eu era muito frescurenta que eu não queria soro que eu não queria ficar amarrada que eu não queria que ele fizesse o exame de toque Disse que eu já tinha matado meu primeiro filho e que agora eu ia matar o segundo Luma 22 anos SUDRÉ 2019 p 4 5 Codinome utilizado na publicação fonte para preservar a identidade Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 117 A obstetra fez exame de toque no meio de uma contração Eu avisei que estava tendo uma contração e ela enfiou o dedo mesmo assim no meio de uma contração Eu quase morri Yasilis 32 anos SUDRÉ 2019 p 8 Esses relatos concretizam o cenário de desrespeito e violência sofridos por mulheres no parto sendo que a Organização Panamericana da Saúde afirma que há uma frequência de desrespeito e maustratos no parto de 43 das mulheres em verdade essas brutalidades são a ponta de um iceberg porque qualquer tipo de apropriação do corpo da mulher e dos processos de saúde e assistência reduzindo a autonomia da mulher são caracterizados como violência obstétrica uma das formas da violência de gênero AMORIM 2019 p 3 Em todos esses casos médicos o que ocorre é a perpetuação de práticas misógenas patriarcal medicalizada e hospitalocêntrica de um modelo de assistência a saúde sexual e reprodutiva da mulher AMORIM 2019 E mais a política silenciadora e invisibilizadora do Ministério da Saúde em excluir a utilização do termo violência obstétrica reforça ainda mais a permanência desse modelo de subalternização da mulher tendo como matriz a violência de gênero a retirada da autonomia da mulher 3 O CENTRO DE PARTO NORMAL CASA DE PARTO Diante de toda essa crença médica de falha do corpo feminino em parir não há dados científicos que apresentem tal condução muito pelo contrário como já apontado as mulheres em sua maioria não apresentam fatores de risco que influenciem no trabalho de parto Desta forma questionase o que seria boas práticas para um trabalho de parto bem como para não apresentar complicações O foco estaria no protagonismo da mulher e não apenas em práticas clínicas de rotina onde se reconhece a experiência de parto positiva quando se supera as crenças e expectativas pessoais e socioculturais prévias da mulher Por certo que isso inclui dar à luz a um bebê saudável em um ambiente seguro assistida por profissionais amáveis e com competências adequadas OMS 2018 Outro ponto chave está na participação da tomada de decisão mesmo quando se necessita ou se deseja intervenções para parir Haja vista na assistência ao parto e nascimento há situações que podem apresentar mais de uma opção de cuidado sendo que cada opção apresenta benefícios e riscos O processo de tomada de decisão informada portanto objetiva apoiar a mulher a fazer escolhas informadas no contexto de seus próprios valores e preferências ONTARIO PUBLIC HEALTH ASSOCIATION 2018 É um direito da mulher e uma demonstração de respeito à sua autonomia envolvêla nas escolhas sobre seu corpo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 118 Nesse sentido as recomendações da OMS sobre os cuidados essenciais no parto afirmam que independente do país ou região e do tipo de saúde disponibilizada no país o enfoque é uma prática centrada na mulher por meio de uma visão holística baseada nos direito humanos considerando toda a complexidade deste evento OMS 2018 Além disso nas recomendações para um parto respeitoso aos direitos humanos e à complexidade do evento como alternativa para o modelo de cuidado hegemônico têmse o Centro de Parto Normal CPN com a proposta de viabilizar um espaço baseado no cuidado respeito e tecnologias apropriadas para partos com financiamento público a fim de oferecer acesso a todas as mulheres que optarem por esse local de parto Em Santa Catarina tramita o Projeto de Lei 034302017 que define o CPN como uma unidade de saúde que presta atendimento humanizado seguro e de qualidade exclusivamente às mulheres em condições clínicas de realizar um parto normal sem distócia SANTA CATARINA 2017a Cabe apontar que o CPN é uma política pública nacional respaldada pela Portaria nº 11 de 2015 e incentivada pela Rede Cegonha como estratégia para redução do excesso de intervenções ao parto e nascimento BRASIL 2015 Nesse local a enfermeira obstetra e obstetriz são as profissionais responsáveis pela assistência tendo em vista que são habilitadas para atendimento ao parto de risco habitual baixo risco na antiga nomenclatura A fim de corroborar com a importância da implementação de CPNs estudos apontam que partos atendidos por enfermeiras obstetras têm maior índice de satisfação das mulheres e menores taxas de intervenções VARGENS SILVA PROGIANTI 2017 Ainda o CPN privilegia a privacidade a dignidade e a autonomia da mulher ao parir oferecendo um espaço acolhedor e confortável onde o préparto parto e puerpério PPP são atendidos no mesmo ambiente oportunizando o contato pele a pele imediato e ininterrupto da mãe e do recémnascido Além disso no CPN a presença do acompanhante de escolha da mulher é estimulada bem como o respeito a individualidade da mulher e ao seu protagonismo no parto e decisões Uma das atividades previstas neste Projeto de Lei é o desenvolvimento de atividades educativas e de humanização no intuito de preparar a mãe para o parto e amamentação do recémnascido Aqui importante apontar a essencialidade de tal projeto visto que o Brasil tem alto índice de cesáreas 55 no SUS em 2016 as implantações dos Centros de Parto Normal CPN são fundamentais para acabar com a epidemia de cesáreas no Brasil cujos números ultrapassam em muito a recomendação da Organização Mundial de Saúde OMS que fixa limite de 15 desses procedimentos SANTA CATARINA 2017a OMS 2019 p 3 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 119 Portanto é um novo serviço na rede pública de saúde de atenção às mulheres bebês e famílias um espaço de nascimento com respeito Além disso é uma outra opção de local de nascimento a qual oferece atendimento mais humano e menos intervencionista entendendo o nascimento como um processo saudável e parte da vida CONSIDERAÇÕES FINAIS O cenário obstétrico brasileiro caracterizase por elevada taxa de intervenções desnecessárias e desrespeito à autonomia da mulher O profissional fiel ao modelo biomédico assume o protagonismo do processo parturitivo e por conseguinte a condução do corpo da mulher Dessa forma a fisiologia do nascimento é imputada pelas rotinas e práticas que visam assessorar a máquina que não está funcionando adequadamente A partir deste olhar a mulher é violada em seus direitos pois suas necessidades desejos e escolhas passam a ser secundários a um sistema que serve a produção de nascimentos controlados e violentos Desta forma a violência obstétrica tem deixado marcas em 14 das mulheres brasileiras O direito de bem parir e bem nascer portanto precisa ser respeitado e efetivado haja vista mulheres recémnascidos e familiares serão influenciados por essa experiência ao longo de suas vidas Boas práticas ao parto e nascimento promovem vínculo favorecem a amamentação e garantem a satisfação da mulher A fim de fomentar esse cenário respeitoso estratégias como o Centro de Parto Normal são incentivadas como política pública bem como o acesso a informação baseada em evidências científicas À medida que a mulher conhece seus direitos e é informada de suas possibilidades de escolhas se empodera para escolher e se mobiliza a resgatar seu espaço de agente ativa na roda da vida REFERÊNCIAS AMORIM Melania O nome é violência obstétrica RADIS Comunicação e Saúde Rio de Janeiro 2019 Entrevista por Elisa Batalha Disponível em httpsradisenspfiocruzbrindexphphomeentrevistaonomeeviolenciaobstetrica Acesso em 15 ago 2019 BRASIL Ministério da Saúde Portaria nº 11 de 07 de janeiro de 2015 Brasilia DF Disponível em httpbvsmssaudegovbrbvssaudelegisgm2015prt001107012015html Acesso em 06 ago 2019 CAPRA Fritjof O Ponto de Mutação a ciência a sociedade e a cultura emergente sl Cultrix 2012 408 p Disponível em httpwwwpsiquiatrianetcombreducacaomedicamodelo01htm Acesso em 09 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 120 DINIZ Simone Grilo et al Abuse and disrespect in childbirth care as a public health issue in brazil origins definitions impacts on maternal health and 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PALHARINI Luciana Aparecida Autonomia para quem O discurso médico hegemônico sobre a violencia obstétrica no Brasil Cad Pagu Campinas n 49 e174907 2017 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0104 83332017000100307lngennrmiso Acesso em 11 ago 2019 PIOVESAN Flávia Direito Humanos e o Direito Constitucional Internacional 10 ed rev e atual São Paulo Saraiva 2009 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 121 REDE PARTO DO PRINCÍPIO Brasil Org Dossiê da Violência Obstétrica Parirás com dor 2012 188 p Disponível em httpwwwsenadogovbrcomissoesdocumentosSSCEPIDOC20VCM20367pdf Acesso em 08 ago 2019 SANTA CATARINA Estado Projeto de Lei nº 343 de 2017a Florianópolis SC Disponível em httpwwwalescscgovbrexpediente2017PL034302017Originalpdf Acesso em 11 ago 2019 SANTA CATARINA Estado Lei nº 17097 de 17 de janeiro de 2017b Florianópolis SC Disponível em 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Escola Anna Nery Revista de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 122 Enfermagem sl v 21 n 1 p18 2017 GN1 Genesis Network httpdxdoiorg1059351414814520170015 Disponível em httpwwweeanedubrdetalheartigoaspid1486 Acesso em 25 ago 2019 ZORZAM Bianca CAVALCANTI Priscila Org Direitos das mulheres no parto Conversando com profissionais da saúde e do direito São Paulo Coletivo Feminista de Sexualidade e Saúde 2016 Disponível em httpswwwmulheresorgbrwp contentuploads201709cartilhaWEBpdf Acesso em 20 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 123 O ENSINO DE SEXUALIDADE E REPRODUÇÃO NAS AULAS DE CIÊNCIAS POSSIBILIDADES À DESNATURALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA Gabriele Nigra Salgado1 Lívia Dornelles Madrid2 RESUMO O artigo analisa as representações de estudantes acerca do parto e nascimento identificadas por meio de desenhos produzidos nas aulas de ciências de uma escola de educação básica e num curso de formação de professores de biologia na educação superior A representação predominante dos estudantes de ambas as instituições evidencia o parto como um evento de sofrimento e dor à mulher sendo a internação hospitalar e as intervenções médicas sempre necessárias As relações desta representação com a naturalização da violência obstétrica foram discutidas sob a perspectiva teórica dos Estudos Culturais em Ciências visando identificar e problematizar as relações sociais de poder e de saber implicadas na construção de significados sobre a temática Esta abordagem do ensino de Sexualidade e Reprodução nas aulas de ciências mostrouse uma possibilidade didática potente à desconstrução de narrativas generalizantes e deterministas que acabam por violar os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres Palavraschave Ensino de ciências Violência obstétrica Estudos culturais Sexualidade INTRODUÇÃO Este artigo se propõe a analisar as representações de estudantes acerca de temas relacionados ao conteúdo Sexualidade e Reprodução previsto nas escolas como currículo das aulas de Ciências e discutir a relação destas com a naturalização da violência obstétrica A investigação foi desenvolvida através de uma proposta de ensino que envolveu estudantes da educação superior e básica em dois contextos e momentos distintos A primeira etapa aconteceu durante a disciplina de Tópicos em Biologia e Educação ofertada para os estudantes da primeira fase de uma turma do Curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC em 2017 e a segunda ocorreu nas aulas de Ciências ofertadas para duas turmas de oitavo ano do Centro Educacional Marista Lúcia Mayvorne3 em 2019 Embora tenha sido necessário fazer adequação do conteúdo aos diferentes públicos o foco das aulas foi o nascimento e o parto sendo o objetivo principal evidenciar a construção 1 Professora Doutora em Educação pela Universidade Federal de Santa Catariana UFSC Docente articuladora da área de Ciências da Natureza do Centro Educacional Marista Lúcia Mayvorne gabrielesalgadogmailcom Lattes httplattescnpqbr1048042365703759 2 Professora Especialista em Ciências Ambientais pela Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões URI Docente de Ciências da Natureza do Centro Educacional Marista Lúcia Mayvorne liviamadrid82gmailcom Lattes httplattescnpqbr8151416316428534 3 O Centro Educacional Marista faz parte do Grupo Marista e está localizado na comunidade do Monte Serrat em Florianópolis SC Atende a aproximadamente 550 crianças adolescentes e jovens com educação básica gratuita e na perspectiva de Educação Integral Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 124 histórica e cultural de algumas representações sociais acerca de como acontece o parto A discussão promovida com os estudantes buscou relacionar algumas formas naturalizadas de ver e de falar sobre o parto e o não questionamento de alguns protocolos hospitalares e discursos médicos que constituem uma grave violação à autonomia das mulheres aos seus direitos humanos e aos seus direitos sexuais e reprodutivos PAES 2018 A escolha por enfatizar esta temática e sua relação com a violação desses direitos se justifica pela constatação de que a violência obstétrica que acomete uma a cada quatro brasileiras durante o parto VENTURI et al 2010 é um conceito praticamente desconhecido e que foi incorporado às leis e políticas públicas de proteção à gestante e parturiente há muito pouco tempo no Brasil Em Santa Catarina por exemplo este conceito aparece pela primeira vez na Lei 17097 aprovada em 2017 em cujo artigo segundo fica explícito que se considera como violência obstétrica todo ato praticado pelo médico pela equipe do hospital por um familiar ou acompanhante que ofenda de forma verbal ou física as mulheres gestantes em trabalho de parto ou ainda no período puerpério Apesar do considerável avanço do Estado em reconhecer a violência obstétrica em maio de 2019 o Ministério da Saúde emitiu um despacho no qual defendeu a retirada desta expressão das leis brasileiras sob a justificativa de uma conotação inadequada associada ao termo que de acordo com o que foi declarado no documento não agrega valor e prejudica a busca do cuidado humanizado no continuum gestaçãopartopuerpério Esta decisão foi reiterada em junho deste ano quando o Ministério declarou manter a decisão de não usar esta expressão em suas normas e políticas públicas embora reconheça o direito da sua utilização pela população Apesar deste posicionamento cabe ressaltar que na literatura científica esta expressão já é consolidada e segundo a revisão teórica realizada por Zanardo e colaboradores compreendese por violência obstétrica o uso excessivo de medicamentos e intervenções no parto assim como a realização de práticas consideradas desagradáveis e muitas vezes dolorosas não baseadas em evidências científicas Alguns exemplos são a raspagem dos pelos pubianos episiotomias de rotina realização de enema indução do trabalho de parto e a proibição do direito ao acompanhante escolhido pela mulher durante o trabalho de parto DINIZ 2009 DOLIVEIRA DINIZ SCHRAIBER 2002 LEAL et al 2014 apud ZANARDO et al 2017 p 5 Segundo a Organização Mundial da Saúde 2014 este tipo específico de violência contra a mulher tem acontecido de diversas maneiras durante a assistência ao parto nas instituições de saúde públicas e privadas no mundo todo seja por meio de xingamentos ou frases de conotação sexual violência verbal por meio de procedimentos dolorosos e Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 125 desnecessários sem consentimento violência física e até mesmo por negligência abusos e maustratos o que pode ter consequências adversas para a mãe e para o bebê principalmente por se tratar de um momento de grande vulnerabilidade à mulher ZANARDO et al 2017 De acordo com García Diaz e Acosta 2013 um fator sempre presente entre as gestantes é a falta de informação e o medo de perguntar sobre os processos que irão ser realizados na evolução do trabalho de parto Esta situação pode leválas a se conformar com a exploração de seus corpos por diferentes pessoas aceitando diversas situações incômodas sem reclamar Esta constatação nos provoca a questionar como alguns discursos médicos e a medicalização do parto foram naturalizados historicamente a ponto de práticas de violência obstétrica serem aceitas sem reclamação pelas mulheres Alguns dos fatores que explicam a naturalização da violência obstétrica estão relacionados hospitalização em massa dos partos que ocorreu há cerca de cinquenta anos e transformou este evento antes considerado como natural e que acontecia entre mulheres em algo perigoso que precisa ser controlado por medicamentos tecnologias e intervenções realizadas majoritariamente por homens médicos Este processo levou à perda de autonomia e decisão das mulheres sobre seus próprios corpos durante o parto Somamse a este cenário fatores econômicos que enquadraram o parto numa lógica de mercado na qual se utilizam procedimentos que aceleram o processo e justificam algumas intervenções caras e lucrativas como sendo necessárias Pela complexidade desta temática e pelas consequências deste tipo de violência para a qualidade de vida das mulheres que passam pela experiência do parto compreendese que este tema merece uma discussão aprofundada em diversos setores e instituições da sociedade inclusive na Educação em Ciências que acontece nas escolas e na formação de professores de Ciências e Biologia que serão os responsáveis por este ensino Através da análise das representações dos estudantes que participaram desta investigação nosso objetivo é possibilitar reflexões sobre o que a nossa cultura incluindose nesta o ensino de Ciências e Biologia tem nos ensinado ou deixado de nos ensinar acerca do corpo feminino e seu processo reprodutivo bem como evidenciar algumas relações entre estes ensinamentos e a construção de representações sociais acerca do parto Neste sentido a organização das aulas esteve fundamentada na abordagem dos Estudos Culturais em Ciências que defende um modo de pensar a Biologia implicada em relações sociais em relações de poder e saber e nos contextos culturais SILVA 2012 o que possibilita identificar e talvez desconstruir estas relações que participam da criação de narrativas generalizantes e deterministas que acabam por naturalizar a perda de autonomia e capacidade Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 126 de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres AGUIAR 2010 Com esta investigação pretendemos possibilitar outra perspectiva para o ensino de Sexualidade e Reprodução nas escolas bem como contribuir com as atuais discussões sobre os direitos reprodutivos e a violência de gênero contra as mulheres 1 HOSPITAIS MÉDICOS E TECNOLOGIAS AS REPRESENTAÇÕES DE PARTO EVIDENCIADAS NAS AULAS DE CIÊNCIAS O ensino da Sexualidade e Reprodução nas aulas de Ciências tradicionalmente se baseia numa abordagem bastante técnica na qual se introduzem os termos científicos referentes à morfologia dos órgãos que compõem os sistemas genitais feminino e masculino e suas funções bem como os mecanismos fisiológicos envolvidos na concepção desenvolvimento e nascimento dos bebês De acordo com Michel Foucault 1998 essa tendência foi enraizada historicamente por uma forma de saber desenvolvida graças ao conhecimento médico ou seja as metodologias orientadas pelo discurso médicobiológico reproduzido na anatomia da reprodução humana cumprem portanto a função de reger a sexualidade através de conceitos explicações e modos de disciplinarização presentes na organização curricular CARVALHO 2009 p1 A problematização desse ensino tecnicista e disciplinador foi o foco da aula desenvolvida com os graduandos de licenciatura em Ciências Biológicas da UFSC que teve a duração de duas horas e contou com a participação de quarenta e quatro estudantes Para tanto buscamos evidenciar a sexualidade envolvida na reprodução humana como sendo um dispositivo produzido pelos acontecimentos históricos culturais e mesmo subjetivos que irão compor as nossas linguagens e as nossas práticas e representações FOUCAULT 1998 Neste sentido foram enfatizados os modos como alguns artefatos culturais que circulam na própria formação escolar básica e superior participam da construção de significados sobre o corpo feminino tendo sido destacadas algumas imagens dos livros didáticos de ciências onde se percebe a presença da mulher somente quando se ensina sobre o sistema reprodutor A ausência do corpo feminino na exemplificação de outros sistemas do corpo humano e sua presença apenas quando se trata da reprodução é um exemplo de como o referido dispositivo atua na construção de uma subjetividade que passa a compor a representação social de que reproduzirse e ser mãe é natural para a mulher e não uma escolha pessoal Esta ênfase em como se aprende sobre o corpo feminino implicado com a reprodução através do livro didático bem como de outros artefatos culturais que circulam em nossa Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 127 sociedade revistas filmes exposições etc foi o enfoque diferenciado da aula ministrada aos futuros professores de Ciências e Biologia na UFSC Em comparação ao que realizamos na escola de ensino básico com os educandos de oitavo ano a metodologia de aula que passamos a relatar a seguir bem como os vídeos assistidos foram os mesmos com as três turmas investigadas As duas turmas de oitavo ano do CEM Lúcia Mayvorne totalizaram trinta e cinco estudantes e a temática foi desenvolvida em três aulas de cinquenta minutos cada Na primeira aula os educandos foram convidados a desenhar a cena de um parto na qual deveriam representar as pessoas envolvidas neste evento o lugar onde acontecia e os sons que fazem parte deste momento utilizando recursos textuais como balões de fala e onomatopeias Depois de prontos os desenhos todos assistiram a um vídeo de parto natural com o objetivo de identificarem se o desenho de cada um apresentava elementos que se aproximavam do tipo de parto apresentado Aqueles que apresentavam proximidade ao parto natural foram colados de um lado da parede enquanto que os que eram diferentes ficaram no lado oposto No momento de observação coletiva dos desenhos ficou evidente tanto na turma de estudantes da UFSC que realizaram a mesma dinâmica quanto nos oitavos anos do CEM Lúcia Mayvorne uma grande quantidade de desenhos com elementos que se referiam ao parto hospitalar 65 sendo na maioria deles realizado pelo médico mostrando a mulher numa posição passiva deitada na posição de decúbito dorsal com expressão de dor e sofrimento conforme representado nos desenhos que compõem a Figura 1 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 128 Figura 1 Representações de parto e nascimento hospitalares Fonte Acervo pessoal da primeira autora Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 129 O vídeo escolhido para problematizar estas representações majoritárias foi o Birthday4 2012 da parteira Naolí Vinaver Lopez no qual ela documenta o nascimento da sua terceira filha tendo sido um parto natural na água em casa com a presença dos seus familiares marido filhos pai e mãe Neste vídeo a mulher é mostrada dando à luz em seu próprio lar de forma ativa e livre sentindo dores em alguns momentos e sorrindo em outros assistida por pessoas em quem ela confia e com respeito à evolução lenta e processual do parto sem nenhuma intervenção Narrado em primeira pessoa pela própria parteira o parto se apresenta neste vídeo como sendo um processo fisiológico natural do próprio corpo as mulheres dando à luz quando são deixadas em paz sabem exatamente o que fazer para parir Nós mulheres temos por dentro o profundo conhecimento de como nos movimentarmos precisamente de como empurrar quando empurrar O corpo que fez o bebê sabe exatamente como expulsálo do corpo e fazêlo nascer BIRTHDAY 2012 644705 Consideramos este um artefato cultural interessante para problematizar as representações majoritárias presentes nos desenhos dos estudantes por se tratar de um vídeo que constrói significados acerca do parto e nascimento bastante distintos daqueles atribuídos ao parto hospitalar Entretanto cabe destacar que 34 dos desenhos trouxeram elementos do parto humanizado conforme se pode observar nas imagens que compõem as figuras 2 e 3 Figura 2 Representação de parto domiciliar Fonte Acervo pessoal da primeira autora 4 O filme está disponível em httpswwwyoutubecomwatchvVXLnw2J6Vuc Acesso em 18 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 130 Figura 3 Representações que se aproximam do parto humanizado Fonte Acervo pessoal da primeira autora Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 131 Nestes desenhos o parto acontece no hospital ou em casa com a assistência de um médico da família figura 2 A mulher aparece parindo em pé ou de cócoras em acordo com a gravidade que por sua vez auxilia na descida do bebê e a mulher aparece sendo apoiada por outras pessoas companheiro médico mulheres que lhes dão a mão e lhes dizem frases de afeto encorajamento e as expressões do rosto são de esforço dor e tranquilidade Além de identificar as representações dos estudantes sobre a temática investigada esta dinâmica inicial teve o intuito de fazêlos perceber que o conhecimento que apresentam sobre o parto e o nascimento são produzidos em muitos espaços e instâncias culturais como nos programas de TV séries e filmes que assistem nas músicas que ouvem nas revistas e livros que lêem inclusive o livro de ciências da escola nas práticas subjetivas advindas da convivência familiar com amigos e namoradoa nos movimentos sociais em políticas públicas e campanhas para a promoção da saúde a que têm acesso entre outras Através dos desenhos pudemos evidenciar e problematizar toda uma rede de instituições que constituem uma Pedagogia Cultural5 pela qual se constrói e se divulga verdades e representações culturais que nos transmitem atitudes valores crenças e significados que influenciam nossa visão de mundo e nossas escolhas Portanto nesta arena cultural onde se disputam significados o conhecimento sobre sexualidade parto e nascimento ganha novos significados quando esse percorre diversas outras posições e cenários que envolvem posições políticas sociais institucionais e pessoais muitas vezes não exploradas quando se visualiza a construção do cotidiano e as possibilidades de desestabilizar identidades e discursos dominantes CARVALHO 2002 p 17 Apesar de alguns desenhos apresentarem elementos que representam a mulher como protagonista o parto retratado como um momento de sofrimento e dor que precisa de intervenções médicas e internação hospitalar estava representado como discurso dominante Neste sentido a próxima etapa da aula foi o momento de desestabilização deste discurso que pode estar intimamente relacionado à naturalização da violência obstétrica Para tanto organizamos dados estatísticos e evidências científicas que pudessem confrontar algumas afirmações dos estudantes que justificavam a necessidade da hospitalização como medida de segurança às mulheres e bebês e a intervenção cirúrgica cesariana como justificativa para salvar vidas Não negamos a conquista tecnológica que a cesárea representa 5 Esta expressão foi cunhada no campo teórico dos Estudos Culturais e pode ser compreendida como um processo que educa por meio da produção de significados cultura sendo exercido por diferentes instâncias culturais não somente as escolares Deste modo tanto a cultura é vista como uma pedagogia como a própria pedagogia é vista como uma forma cultural SILVA 1999 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 132 nem o fato de que ela possa salvar vidas apenas questionamos junto aos estudantes quais fatores levam a ocorrência de 52 desta cirurgia nos partos realizados no setor público podendo chegar a 88 no setor privado PAES 2018 Estas estatísticas se tornam alarmantes quando consideramos a recomendação da organização mundial da saúde de que a taxa ideal de cesáreas varie entre 10 e 15 OMS 2014 Neste sentido levantamos as seguintes questões se a cesárea serve para salvar vidas o que justifica um número tão elevado desta cirurgia em nosso país Parir e nascer se tornou tão arriscado a ponto de justificar tais estatísticas Por que motivos as mulheres não são informadas acerca das consequências de uma cesárea A problematização dos dados apresentados junto ao histórico da hospitalização do parto levantado por Zanardo e colaboradores 2017 ajudou a esclarecer que alguns fatores políticos econômicos e sócio históricos contribuíram para a cultura do parto hospitalar como a conhecemos hoje O processo de hospitalização do nascimento aconteceu no final do século XX chegando a uma taxa de 9808 de partos hospitalares realizados na rede de saúde do Brasil entre os anos de 2007 e 2011 ZANARDO et al 2017 Concomitante a este processo houve o aumento do uso de tecnologias de monitoramento e controle da evolução do trabalho de parto com forte adesão em nosso país conforme revelou a pesquisa nascer no Brasil que entrevistou 23940 mulheres em 191 municípios em 70 das mulheres foi realizada punção venosa cerca de 40 receberam ocitocina e realizaram aminiotomia ruptura da membrana que envolve o feto para aceleração do parto e 30 receberam analgesia raquiperidural Já em relação às intervenções realizadas durante o parto a posição de litotomia deitada com a face para cima e joelhos flexionados foi utilizada em 92 dos casos a manobra de kristeller aplicação de pressão na parte superior do útero teve uma ocorrência de 37 e a episiotomia corte na região do períneo ocorreu em 56 dos partos Esse número de intervenções foi considerado excessivo e não encontra respaldo científico em estudos internacionais LEAL et al 2014 apud ZANARDO et al 2017 p 2 As estatísticas comprovam que a partir de uma cultura intervencionista têmse utilizado em larga escala procedimentos considerados inadequados e desnecessários que muitas vezes podem colocar em risco a saúde e a vida da mãe e do bebê sem avaliação adequada da sua segurança e sem base em evidências científicas DINIZ CHACHAM 2006 No Brasil os exames sofisticados as intervenções e procedimentos cirúrgicos contrapõemse aos cuidados à mulher para realização e estimulação do parto normal e caracteriza nossa realidade marcada pela cultura da medicalização do parto e por um atendimento com abuso de intervenções cirúrgicas que transformaram o parto e o nascimento Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 133 em um evento médico e masculino incluindo a noção do risco e da patologia como regra e não mais como exceção Neste modelo tecnocrático a mulher deixou de ser protagonista de seu próprio parto cabendo ao médico a condução do processo PASCHE et al 2010 SANFELICE et al 2014 WOLFF WALDOW 2008 Para além das relações de poder masculinofeminino naturaltecnológico cabe destacar a apropriação de um discurso do medo pelas instituições que lucram com os partos para convencer as pessoas de que é mais seguro um parto controlado utilizandose de vários procedimentos e medicamentos caros como a anestesia internação antibióticos antiinflamatórios equipamentos do centro cirúrgico Para fomentar uma ressignificação acerca das representações dos estudantes foi preciso percorrer em nossas discussões estes outros cenários e posições políticas sociais institucionais não tão exploradas em seus cotidianos Encerramos a aula com a apresentação do vídeo A difamação do Parto6 2015 de Cynara Scheffer que reúne um conteúdo imagético que possibilitou fazer uma excelente sistematização da discussão realizada A narrativa construída por Cynara demonstra como foi sendo criada através da cultura em diferentes períodos históricos uma difamação do parto normal que levou às estatísticas alarmantes que hoje conhecemos a respeito dos partos cesarianos e à aceitação sem questionamentos de intervenções desnecessárias durante o parto O vídeo mostra ainda alguns partos naturais como contraponto ao modelo tecnocrático e intervencionista o que permitiu promover uma breve reflexão acerca do movimento de humanização do parto Originado no final da década de 1980 este movimento vem propondo mudanças baseadas nas propostas realizadas pela OMS que em 1985 já estimulava o parto vaginal a amamentação logo após o parto o alojamento conjunto da mãe e do recémnascido e a presença de acompanhante durante o processo ZANARDO et al 2017 p3 Para muitas mulheres estes quatro direitos básicos de assistência ao parto ainda são negados e geram consequências inimagináveis para a qualidade de vida delas e dos bebês o que nos motiva a propor aulas de Sexualidade e Reprodução que provoquem os estudantes à ressignificarem o que lhes sempre pareceu ser normal ou natural acerca do parto 2 POTENCIALIDADES E LIMITAÇÕES DOS ESTUDOS CULTURAIS À DESNATURALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA 6 O filme está disponível em httpswwwyoutubecomwatchv2jsUrevlua8 Acesso em 18 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 134 A seguir compartilhamos um texto que explicita os efeitos desta aula para uma mulher que percebeu ter sofrido violência obstétrica a partir das reflexões suscitadas na aula realizada no curso de Licenciatura em Ciências Biológicas da UFSC o qual a estudante estava cursando em 2017 A partir deste texto e de alguns comentários escritos pelos estudantes de oitavo ano do CEM Lúcia Mayvorne iremos tecer considerações acerca das potencialidades e limitações da abordagem teórica dos Estudos Culturais em Ciências à desnaturalização da violação dos direitos reprodutivos e sexuais das mulheres Resolvi fazer meu comentário baseado no tema da primeira temática exposta em aula biologia e cultura imbricadas na reprodução e no parto Esse foi o tema que mais me sensibilizou talvez pelo fato de ser mãe de dois filhos e também pelas questões que me despertaram a respeito dos meus partos e de tantas outras mulheres Vieramme as lembranças das mulheres da minha família minha mãe tias e avós Minha avó teve quatorze filhos todos de parto normal em casa Já minha mãe que teve três filhos todos nasceram de cesariana no hospital e não amamentou nenhum porque segundo ela não tinha leite Perguntei o porquê da escolha das cesarianas já que no caso dela foi realmente uma escolha e me disse que tinha medo de sentir dor que parto normal era coisa dos antigos e que nos hospitais o parto era mais simples Era o que ela pensava ou foi induzida a pensar não sei Ela conta que naquela época todas queriam fazer cesariana pois era o mais indicado e ela abraçou a idéia Ela veio de uma cidadezinha pequena e foi morar em São Paulo e as mulheres de lá faziam cesarianas Quando eu fiquei grávida pela primeira vez optei pelo parto normal fiz o prénatal estava tudo certo teria meu filho pelo SUS Fomos felizes para a maternidade a Santa Casa da cidade que morávamos Chegamos e nos despedimos na portaria pois era proibida a entrada de qualquer outra pessoa Naquele momento me senti muito insegura as dores estavam aumentando e eu não conhecia ninguém Uma enfermeira veio e me depilou o que achei estranho porque ela nem me perguntou se eu queria Para ela era um procedimento normal para mim uma violação da minha intimidade Fiquei com vergonha Depois me colocou numa sala de préparto e várias gestantes estavam esperando à hora de ir para sala de parto Havia muitos gritos fiquei com medo meu marido ouviu os gritos e entrou lá desesperado achando que era eu Ainda não era e ele foi tirado pelos seguranças que pediram para ele ir embora Ele foi muito preocupado e triste Um médico veio me ver e pediu para a enfermeira me colocar um soro e ela não conseguia achar minha veia me picou varias vezes até achála deixando meu braço todo roxo Depois de colocado o soro a dor que senti acredito que não exista maior no mundo Não tinha posição e a orientação ou melhor a ordem era para ficar deitada Chorei vomitei senti vontade de morrer e nesses momentos perdi a conexão com meu filho estava fora de mim O momento que tanto sonhei se tornou um pesadelo estava rodeada de pessoas estranhas e frias num lugar horrível Depois de muito gritar o médico me levou para a sala de parto me colocaram numa cama deitada com as pernas para cima e um dos médicos pressionava minha barriga Senti que ia desmaiar até que fizeram um corte na minha vagina e fiz uma força que veio de minhas entranhas Meu filho nasceu lindo 1370kg 49 cm cabeludo forte Fiquei enamorada dele mas me levaram para uma sala pósparto e fiquei algum tempo sozinha Como um bicho fiquei nervosa com a falta da cria estava toda suja de sangue levantei e fui tomar um banho sozinha Ainda Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 135 sentia dor a dor do corte na vagina Logo depois ele chegou e ficamos num quarto com outras mães por três dias Recebi a visita da minha mãe e do meu marido falei para ele que pensava numa fuga estava num nível de estresse tão grande que não conseguia nem ouvir falar de parto e era só o que se falava naquele quarto Enfim chegou o dia que fui para casa com meu filho parecia que tinha saído de um campo de concentração Logo depois me senti deprimida mas mesmo assim consegui amamentálo Amamentei meu filho por um ano e meio e minha mãe que não tinha amamentado se realizava através de mim Depois de contarlhe como tinha sido meu parto ela concordou que minha avó apesar dos 14 partos sofreu muito menos porque ela estava em casa acolhida pela família Os partos de minha avó foram humanizados Minha mãe não sentiu dor em seus partos mas não teve leite e acredito que pode ter sido uma conseqüência da cesariana Meu segundo filho também foi de cesárea não pude fazer o parto normal porque ele teve bradicardia e a obstetra achou melhor não arriscar Confesso que depois de tudo também tive medo mas arriscaria para não deixar de amamentálo Trago minha própria história porque depois dessa aula todas estas questões do parto vieram à tona em mim pois não me dava conta da tamanha violência que sofri e que as mulheres continuam sofrendo Tenho amigas que fizeram o parto humanizado e suas histórias apesar de também sentirem dor são diferentes Dependendo de sua classe social você sofre mais ou menos e infelizmente os partos humanizados ainda são para uma pequena parcela das mulheres que podem pagar por ele Ainda assim acredito que esteja acontecendo um movimento maior de divulgação desse parto um resgate da nossa natureza pois esse tipo de parto nos permite aceitarmos quem somos mulheres e parimos Cada qual com seu jeito de cócoras na água deitada mas acima de tudo com amorosidade Não temos educação sexual e o parto deveria ser um tema a ser discutido estudado e esclarecido Ainda se romantiza o fato de ser mãe na realidade não tem nada de romântico porque as dores e dificuldades são muito maiores para as mulheres Somos induzidas o tempo todo a ser mãe mas será que temos consciência do que é ser mãe Talvez se eu tivesse essa consciência lá atrás não teria tido ou teria agora mais vivida menos romântica Através do relato da estudante é possível identificar expressões que revelam um dispositivo de sexualidade que age por meio da cultura do medo e do discurso institucional determinando os modos de ver falar e até as escolhas das mulheres em relação ao próprio parto tinha medo de sentir dor nos hospitais o parto era mais simples ela conta que naquela época todas queriam fazer cesariana era o mais indicado e ela abraçou a idéia Sua narrativa aos poucos nos conta dos vários tipos de violência obstétrica que ela sofreu a começar pelo impedimento da presença de um acompanhante nos despedimos na portaria era proibida a entrada de qualquer outra pessoa me senti muito insegura seguida da tricotomia dos pêlos pubianos procedimento com o qual ela sentese violada ela nem me perguntou se eu queria para ela era um procedimento normal para mim uma violação da minha intimidade A negligência ao atendimento de outra parturiente também é um fato observado pela estudante gritava e não era atendida Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 136 Algumas intervenções são relatadas como a aplicação da ocitocina sintética Um médico veio me ver e pediu para enfermeira me colocar um soro cujo efeito foi a aceleração do parto e a intensificação das contrações uterinas o que lhe causou muita dor acredito que não exista maior no mundo não tinha posição e a orientação ou melhor a ordem era para ficar deitada Com os movimentos restringidos outras intervenções são realizadas como a manobra de Kristeller proibida em vários países e a episiotomia um dos médicos pressionava minha barriga e senti que ia desmaiar até que fizeram um talo na minha vagina Quando a mãe e o bebê recebem alta a sensação relatada pela estudante é de ter saído de um campo de concentração e ela sentiuse deprimida quando voltou para casa Não vamos nos deter em analisar o discurso da estudante pois o que nos cabe aqui é ressaltar que o seu texto nos indica que a aula lhe despertou algumas lembranças emoções e subjetividades muitas vezes desconsideradas na abordagem de ensino tecnicista dos temas que envolvem a sexualidade Nossa aposta no ensino que considera a cultura e a biologia imbricadas na relação do parto e nascimento está em possibilitar a percepção de que as práticas carregadas de significados culturais estereotipados de desvalorização e submissão da mulher atravessadas pelas ideologias médica e de gênero se tornam naturalizadas na cultura institucional ZANARDO et al 2017 p 9 Neste sentido a aula aqui relatada baseada nos Estudos Culturais em Ciências mostrou se como uma possibilidade didática sensível e potente para evidenciar os impactos que a perda de autonomia e de decisão tem sobre os corpos e sexualidade da mulher contribuindo com uma possível desnaturalização da violência obstétrica conforme destacado pela estudante Trago minha própria história porque depois dessa aula todas estas questões do parto vieram á tona em mim e não me dava conta da tamanha violência que sofri e que as mulheres continuam sofrendo Esta proposta também se soma a um movimento que busca romper com o paradigma conteudista da abordagem tecnicista do ensino de Sexualidade e Reprodução nas escolas de educação básica que foca na reprodução de nomes e funções dos órgãos do sistema reprodutor Uma das limitações desta abordagem é que o conteúdo se torna muito teórico e descontextualizado das dúvidas e desafios que os adolescentes apresentam durante a fase da puberdade Assim a aprendizagem pode se tornar muitas vezes enfadonha para os estudantes com ênfase na repetição de termos técnicos e não no questionamento e na contextualização deste conhecimento em suas vidas e na comunidade escolar onde vivem Com as turmas de oitavos anos do CEM Lúcia Mayvorne pudemos perceber que a abordagem dos Estudos Culturais em Ciências também possibilitou uma ressignificação das Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 137 representações de parto e nascimento verificadas em comentários escritos em seus cadernos Eu entendi que o parto de hoje pode ser feito em casa ou no hospital que temos que respeitar os corpos das mulheres o momento dela e da criança Hoje em dia o parto é visto de uma maneira muito menos importante do que deveria Para ajudar poderíamos fazer leis mais rígidas sobre o parto O parto é visto como uma obrigação como se a mulher só servisse para ter filho Eu acho que para o parto voltar a ser um ato feminino e natural as mulheres e seus parceiros ou as pessoas que irão acompanhálas na hora do parto deveriam estudar e se preparar mais Assim eles não precisariam necessariamente ir à maternidade Nas discussões realizadas com estas turmas também foram relatados alguns casos de violência obstétrica que familiares dos alunos sofreram Contudo observamos que para a maioria dos estudantes ainda persiste a ideia de haver muitos riscos durante o parto o que justifica estar no ambiente hospitalar como uma garantia à saúde da mãe e do bebê Neste sentido é importante ressaltar que não enfatizamos em nossas aulas o parto domiciliar como oposição ao parto hospitalar e nem o parto natural ao parto com intervenções pois reconhecemos que a biologia e a cultura são indissociáveis na reprodução e no parto ou seja defendemos que o parto natural não é uma condição sine qua non a todas as mulheres pois cada uma apresenta uma história pessoal e um contexto social que irão se relacionar intimamente com sua experiência de parto Acreditamos que tão desrespeitoso quanto à violência obstétrica seria atribuir à mulher a incumbência de parir a qualquer custo sob a justificativa de que temos instintos biológicos que responderão de forma natural neste processo Este pensamento desconsidera o momento de vida a história pessoal e outros fatores que podem levar a mulher a fazer outras escolhas conscientes O que está em discussão não é o retorno ao parto em casa sem assistência especializada o que consideramos um grande risco mas o direito da mulher poder receber a informação necessária para decidir sobre como deseja parir e ser respeitada em sua decisão por aqueles que irão assistila durante o parto aconteça este em casa ou no hospital CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise dos registros acerca do parto e nascimento produzidos pelos estudantes investigados nos permite concluir que há uma relação entre as representações de parto hospitalares e a naturalização da violência obstétrica evidenciada pelos desenhos e textos que trazem significados culturais estereotipados de submissão atravessados por ideologias médicas e de gênero que por sua vez desvalorizam a mulher Por outro lado verificamos que pode estar em curso uma mudança nesta representação predominante pois também foram identificados Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 138 elementos que apontam para uma ideia de parto onde a mulher é protagonista respeitada em suas necessidades e desejos Contudo para que seja possível afirmar a existência desta mudança bem como compreender os seus impactos à qualidade de vida das mulheres apontamos à necessidade de mais pesquisas que relacionem a construção das representações sociais com a pedagogia cultural existente nas várias instâncias culturais da nossa sociedade não apenas nas escolas Nas aulas realizadas buscamos valorizar uma abordagem para o ensino de Sexualidade e Reprodução que contemplasse além da dimensão biológica a cultural e a estética numa tentativa de superar o conteudismo e a abordagem tecnicista Neste sentido foi possível constatar que estas aulas possibilitaram ativar emoções e subjetividades em relação à realidade pessoal de alguns estudantes o que consideramos uma possibilidade didática importante para ressignificar as representações de parto e nascimento contribuindo assim com o direito à informação contextualizada que em sua potencialidade pode desnaturalizar atos de violência que ferem os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres REFERÊNCIAS A DIFAMAÇÃO DO PARTO SI sn 2015 1 vídeo ca 11 min Publicado pelo canal Cynara Scheffer Disponível em httpswwwyoutubecomwatchv2jsUrevlua8 Acesso em 09 set 2019 AGUIAR J M Violência institucional em maternidades públicas hostilidade ao invés de acolhimento como uma questão de gênero 2010 Tese doutorado em medicina preventiva Faculdade de medicina Universidade de São Paulo São Paulo 2010 BIRTHDAY SI sn 2012 1 vídeo ca 11 min Publicado pelo canal Hernan Disponível em httpswwwyoutubecomwatchvVXLnw2J6Vuc Acesso em 18 ago 2019 CARVALHO F A Outros Com textos e passagens traços biológicos em obras de Monteiro Lobato Dissertação Mestrado em Educação Faculdade de Educação Universidade Estadual de Campinas Campinas 2002 CARVALHO F A De Que saberes sobre sexualidade são esses que não dizemos na escola In FIGUEIRÓ M N D org Educação Sexual em busca de mudanças Londrina UEL 2009 p 116 DINIZ S G CHACHAM A S O corte por cima e o corte por baixo o abuso de cesáreas e episiotomias em São Paulo Questões de saúde reprodutiva Rio de Janeiro RJ v 1 n1 p 8091 2006 FOUCAULT M A história da sexualidade a vontade de saber 13 ed Rio de Janeiro Graal 1998 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 139 GARCÍA D DÍAZ Z ACOSTA M El nacimiento en Cuba análisis de la experiencia del parto medicalizado desde una perspectiva antropológica Revista Cubana de Salud Pública La Habana Cuba v 39 n 4 p 718732 2013 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE Prevenção e eliminação de abusos desrespeito e maustratos durante o parto em instituições de saúde Genebra Autor 2014 PAES F D R Violência obstétrica políticas públicas e a legislação brasileira In Consultor Jurídico SI 8 out 2018 Disponível em httpswwwconjurcombr2018out08mp debateviolenciaobstetricapoliticaspublicaslegislacaobrasileira Acesso em 25 ago 2019 PASCHE D F VILELA M E A MARTINS C P Humanização da atenção ao parto e nascimento no Brasil pressuposto para uma nova ética na gestão e no cuidado Revista Tempus Actas Saúde Coletiva Brasília v 4 n4 p 105117 2010 Disponível em fileCUsersgabrielesalgadoDownloads83816671PBpdf Acesso em 11 set 2019 SANFELICE C ABBUD F PREGNOLATTO O SILVA M SHIMO A Do parto institucionalizado ao parto domiciliar Revista Rene Fortaleza CE v 15 n2 p362370 marabr 2014 Disponível em httpperiodicosufcbrrenearticleview31702433 Acesso em 25 ago 2019 SANTA CATARINA Lei 17097 de 17 de janeiro de 2017 Dispõe sobre a implantação de medidas de informação e proteção à gestante e parturiente contra a violência obstétrica no Estado de Santa Catarina Florianópolis Assembléia Legislativa do Estado de Santa Catarina 2017 Disponível em httpleisalescscgovbrhtml2017170972017leihtml Acesso em 09 set 2019 SILVA E P Q S Leituras em educação em ciências algumas possibilidades teórico metodológicas In ENCONTRO DE PESQUISA E PÓSGRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO DA REGIÃO CENTROOESTE ANPEDCO 11 2012 Corumbá MS Anais Corumbá MS UFMS 2012 SILVA T T Documentos de identidade uma introdução às teorias de currículo Belo Horizonte Autêntica 1999 VENTURI G RECAMÁN M OLIVEIRA S orgs Pesquisa mulheres brasileiras nos espaços públicos e privados São Paulo Fundação Perseu Abramo 2010 ZANARDO G L DE P URIBE M C NADAL A H R HABIGZANG L F Violência obstétrica no Brasil uma revisão Psicologia Sociedade Belo Horizonte MG vol 29 p1 11 2017 Disponível em httpwwwscielobrpdfpsocv2918070310psoc29 e155043pdf Acesso em 09 set 2019 WOLFF L WALDOW V Violência consentida mulheres em trabalho de parto e parto Saúde e Sociedade São Paulo SP v 17 n3 p 138151 2008 Disponível em httpswwwrevistasuspbrsausocarticleview76049128 Acesso em 25 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 140 A PORNOGRAFIA DE VINGANÇA COMO VIOLÊNCIA GLOBAL E A ALTERNATIVA DE CONTENÇÃO APRESENTADA PELOS INTERMEDIÁRIOS Gabriela Ferreira Dutra1 Liziane da Silva Rodríguez2 Paulo Thiago Fernandes Dias3 Sara Alacoque Guerra Zaghlout4 RESUMO A invasão da privacidade da mulher por meio do fenômeno conhecido como pornografia de vingança adquiriu novas proporções quando passou a ser cometida no ambiente virtual Nesse sentido essa violência adquiriu caráter instantâneo multiplicador e sem limitações de ordem territorial Utilizandose de estudo bibliográfico o presente trabalho tem como objetivo principal analisar a violência da pornografia de vingança cometida contra mulheres no ambiente virtual e o papel dos ditos intermediários Primeiramente analisarseá as características dessa violência com ênfase no seu caráter cibernético violência global os sujeitos que participam da violação agressores primários e secundários e as consequências para as vítimas Em seguida pretendese demonstrar a situação dos intermediários sites que fazem o index ou disponibilizam a informação A investigação se debruçará ainda sobre o ordenamento jurídico brasileiro no que diz respeito à pornografia de vingança e à responsabilização dos intermediários por mencionada prática Palavraschave Pornografia de vingança Direito internacional privado Violência de gênero Crime cibernético Cyberspace INTRODUÇÃO A invasão da privacidade da mulher no que diz respeito à sua sexualidade não é novidade na história da humanidade É possível observar contos tão antigos datados de 485 ac que descrevem situações nas quais um homem busca observar a mulher nua sem o seu 1 Doutoranda em Direito internacional Público na University of Milan Bicocca Mestra em Direito pela University of London Birkbeck College Email gabefdutragmailcom Link do Lattes httplattescnpqbr1548554527209764 2 Advogada inscrita OABRS Doutoranda em Direito Público na Universidade Vale do Rio dos Sinos UNISINOS Mestra em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Email liziane00hotmailcom Lattes httplattescnpqbr5373453337860546 3 Professor de Direito Penal na Universidade CEUMA e de Direito Processual Penal na Faculdade UNISULMA IESMA Advogado inscrito na OABMA Doutorando em Direito Público na Universidade Vale do Rio dos Sinos UNISINOS Mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Email paulothiagofernandeshotmailcom Lattes httplattescnpqbr4247353234663822 4 Advogada inscrita na OABMA Doutoranda em Direito Público na Universidade Vale do Rio dos Sinos UNISINOS e Bolsista CAPES Mestra em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Email sahalacoquehotmailcom Lattes httplattescnpqbr2927150421896071 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 141 consentimento Referese ao conto descrito por Heredotus no qual o Rei Candaules trai a confiança de sua esposa Lydia ao tentar observála nua com a ajuda do guarda Gyges Apesar de não ser um comportamento novo a invasão da intimidade sexual da mulher assumiu novas características com o advento das Tecnologias de Informação e de Comunicação TICs que possibilitaram que informações dados e variados tipos de arquivos fossem compartilhados com milhares de usuários da rede mundial de computadores em questão de segundos a um custo baixíssimo Dessa forma a invasão da privacidade sexual da mulher praticada no ambiente virtual adquiriu novas proporções ao exponenciar a exposição e tornar na prática impossível de garantir a extinção da informação compartilhada na rede e hospedada em sítios eletrônicos principalmente quando estrangeiros Em função disso utilizandose de estudo bibliográfico o artigo versa sobre violações cometidas no ambiente virtual somente dando enfoque para esse tipo específico da violência contra a mulher No contexto desse trabalho dentre as mais diversas formas de invasão da privacidade da mulher buscase tratar mais especificamente da distribuição de material íntimo especialmente fotos e vídeos sem consentimento feminino o que também é tipicamente conhecido como pornografia de vingança Conforme será brevemente explicado a seguir essa violência pode ou não ser praticada por um antigo ou atual companheiro da vítima ou até mesmo ser uma situação de extorsão o que de certa forma explicita uma das limitações dessa terminologia5 Ainda assim neste trabalho preferiuse utilizar a terminologia pornografia de vingança em seu sentido amplo pois foi através dela que o conhecimento dessa forma de violência tornouse mundialmente conhecida As consequências dessa agressão para as mulheres são inúmeras e versam desde perdas econômicas até consequências emocionais gravíssimas que em alguns casos já levaram algumas vítimas à prática de suicídio CARVALHO ARRAES 2017 Argumentase neste trabalho porém que o fato dessa violência ser atualmente cometida no ambiente virtual agravou significativamente os danos e as perdas para a vítima A pornografia de vingança no ambiente virtual também incluiu novos atores que perpetuam de maneira direta ou indireta a violência contra a mulher violada Em função disso pretendese revelar o papel dos servidores de internet na exponencialização da violência e assim demonstrar que a colaboração desses novos atores pode ser de grande importância para 5 Segundo a organização internacional End Revenge Porn a expressão tecnicamente mais adequada seria pornografia nãoconsensual GIONGO 2015 Já no âmbito da legislação brasileira Lei 137182018 a prática é chamada de divulgação não consentida de imagens íntimas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 142 atenuar os efeitos da violação caso se recusem a compartilhar ou a hospedar esse tipo de material íntimo 1 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A PORNOGRAFIA DE VINGANÇA Quanto mais a internet se incorpora às atividades do dia a dia maiores são as chances para invasões na vida privada Aliás a própria noção de privacidade vai ganhando novos contornos especialmente no que refere à cada vez maior divulgação de informações pessoais inclusive de cunho íntimo nas redes sociais Nalguma medida essa publicização do afeto do íntimo do particular por meio de mecanismos potencializadores desse processo de divulgação relacionase com um sentimento narcísico no sentido de que o eu é projetado para o público SENNETT 2015 p 21 e ss Este a sua vez aprovará ou não o teor daquilo que inicialmente íntimo tornouse público Não se trata na contemporaneidade da desvalorização da privacidade de sua substituição por ideais coletivos ou sociais ou seja não há uma substituição da valorização individual pela preocupação coletiva ou pública O que se constata na verdade é uma busca pela exaltação da individualidade que deve ser exibida ao olhar do outro É a imposição da privacidade no público Assim os relacionamentos devem ser mostrados para o público em geral para transmitir uma ideia de felicidade e complementariedade do casal Além disso há também um gozo em penetrar na privacidade alheia e conhecer a intimidade da vida amorosa para se ter acesso não só à suposta felicidade dos parceiros mas especialmente aos conflitos e à infelicidade conjugal MOREIRA LIMA STENGEL PENA SALOMÃO 2017 p 11 No que diz respeito à pornografia de vingança segundo estudo realizado pela McAfee PITCHER 2016 p 14351466 aproximadamente 50 das pessoas utilizaram os telefones móveis para compartilhar mensagens de texto emails ou fotos de cunho íntimo Esses números apontam uma mudança considerável na forma como as pessoas compreendem sentem e manifestam a sua sexualidade na contemporaneidade refletindo na maneira como essas novas tecnologias serão utilizadas inclusive no campo da criminalidade O problema público da sociedade contemporânea é duplo o comportamento e as soluções que são impessoais não suscitam muita paixão o comportamento e as soluções começam suscitar paixão quando as pessoas os tratam falseadamente como se fossem questões de personalidade Mas uma vez que esse duplo problema público existe ele cria um problema no interior da vida privada O mundo dos sentimentos íntimos perde suas fronteiras não se acha mais refreado por um mundo público onde as pessoas fazem um investimento alternativo e balanceado de si mesmas A erosão de uma vida pública forte deforma assim as relações íntimas que prendem o interesse sincero das pessoas Nas últimas quatro gerações não ocorreu nenhum exemplo mais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 143 vívido de tal deformação do que na mais íntima das experiências pessoais o amor físico SENNETT 2015 p 2122 Amor físico esse na atualidade compreendido como sexualidade tendo já passado pela noção de erotismo Para Sennett 2015 p 22 o erotismo representava que a manifestação sexual se verificava por meio de ações sejam elas ligadas à repressão ou à interação Sendo que a sexualidade por seu turno configura um estado no qual o ato físico do amor decorre quase como uma consequência passiva como um resultado natural do sentimento de intimidade entre duas pessoas Nesse diapasão à medida que as relações de consumo se modificam com o passar dos anos a própria sexualidade passa a ser experimentada de forma diferente A troca de material íntimo os denominados nudes via aplicativos de internet se insere nesse contexto em que as relações se tornam superficiais descartáveis reféns da aprovação pública por mais desconhecido que seja esse público em termos reais O próprio conceito de intimidade também se torna poroso haja vista que com a chegada dos smartphones cada um passou a ser protagonista do seu próprio show da intimidade Ocorreu uma ruptura entre o sujeito que olha e o olhar VERAS 2019 p de internet Após essas breves notas sobre a própria compreensão da sexualidade verificase ainda que não é apenas a frequência da utilização das Tecnologias de Informação e de Comunicação que aumenta a exposição dos indivíduos a violações de privacidade mas também o fato de o Direito e os avanços tecnológicos se desenvolverem de forma diferente RISCO Enquanto as tecnologias avançam de forma quase experimental o Direito em regra regula aquilo que existe já no plano material ou seja entre o desenvolvimento e a regulamentação de uma tecnologia pelo Direito observase um gap temporal que contribui para que violações se perpetuem no cyberspace A pornografia de vingança nem sempre é praticada por algum exparceiro da vítima que pretende alguma vindita por conta do término do relacionamento ou mesmo evitar via chantagem que enlace afetivo se desfaça A revange porn pode ser realizada por sadismo de hackers ou também com intuito de obter vantagem patrimonial indevida configurando o delito de extorsão previsto no artigo 158 do Código Penal cuja definição legal consiste em constranger alguém mediante violência ou grave ameaça e com o intuito de obter para si ou para outrem indevida vantagem econômica a fazer tolerar que se faça ou deixar de fazer alguma coisa BRASIL 1940 Aquele que pratica a pornografia de vingança parece ter o objetivo de causar o maior prejuízo à vítima seja ele financeiro emocional eou social É comum que o agressor envie o Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 144 conteúdo íntimo para a família da vítima empregadores ou outras pessoas com as quais ela mantenha laços afetivosprofissionais atingindo significativamente suas relações sociais BUZZI p 29 Dessa forma como consequência da exposição as vítimas são muitas vezes obrigadas a modificar suas características como por exemplo o corte e a cor do cabelo mudar de emprego ou de cidade isolarse do seu convívio social habitual entre outras possibilidades O prejuízo decorre da vergonha em função da exposição daquilo que tradicionalmente pertence à vida íntima de uma pessoa em um ambiente público Apesar de a pornografia de vingança afetar homens e mulheres devese reconhecer que ela afeta muito mais as mulheres do que os homens tanto em números quanto na gravidade das consequências que essa violência ocasiona para os diferentes gêneros CITRON 2014 Ademais a sociedade é considerada por excelência patriarcal sendo a liberdade sexual feminina ainda motivo de julgamentos tanto perante o campo social da informalidade senso comum como no campo da formalidade Sistema de Justiça Criminal 6 Isso significa que apesar de a violação do direito à privacidade ser de certa forma similar para esses gêneros as consequências ou os prejuízos sofridos pela mulher são em regra muito maiores e mais intensos que os sofridos pelo homem em função das tradicionais e atuais estruturas sociais patriarcais Esse imaginário é baseado em normas socialmente construídas que fixam um lugar para a sexualidade da mulher São normas rígidas e tradicionais que autorizam socialmente o julgamento e a punição daquelas que não seguem os padrões Do mesmo modo padrões de masculinidade atuam para que os homens não passem pelo mesmo julgamento moral que as mulheres Para eles muitas vezes ter uma foto íntima divulgada tratase de uma afirmação da sua masculinidade DAMITZ FARIA 2017 p 80 Aguiar 2000 p 308 acentua que o patriarcalismo estabeleceuse no Brasil como estratégia da colonização portuguesa tendo estreita correlação com a escravidão Estavam patriarcalismo e escravidão intimamente interligados com a questão da sexualidade já que os escravocratas se valiam da prática de estupros para engravidar suas escravas e com isso aumentar a quantidade de escravos propriedade Essa prática sexual abusiva é uma das características do patriarcado Ainda segundo Aguiar 2000 p 309 a religião portanto 6 Para melhor elucidar podese citar Shecaira de um lado temse o controle social informal que passa pela instância da sociedade civil família escola profissão opinião pública grupos de pressão clubes de serviço etc Outra instância é a do controle social formal identificada com a atuação do aparelho político do Estado São controles realizados por intermédio da Polícia da Justiça do Exército do Ministério Público da Administração Penitenciária e de todos os consectários de tais agências como controle legal penal etc SHECAIRA 2014 p 56 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 145 enquanto substituta da magia racionaliza o comportamento social pela regulação da sexualidade Saffioti 2011 p 5758 reforça a importância da manutenção do uso do termo patriarcado no que tange ao estudo dessa cultura da dominação masculina que também é sexual em relação às mulheres Devese conservar o termo patriarcado pelas seguintes razões a por configurarse uma relação de natureza civil e não meramente particular b pela concessão de direitos sexuais aos homens de forma podese dizer ilimitada em face das mulheres c em razão da natureza hierarquizada desse tipo de relação observada nos diversos estamentos sociais d por possuir uma base material e diante da corporificação que opera e por caracterizar uma estrutura de poder firmada tanto na ideologia quanto na violência Difícil dissociar a pornografia de vingança do âmbito da violência de gênero já que nesse contexto conforme apresentado acima tratase de uma violação sendo esta concebida como espécie de mandato que por sua vez seria condição necessária para a reprodução do gênero como estrutura de relações entre posições marcadas pelo diferencial hierárquico e instância paradigmática de todas as outras ordens de status PEREIRA 2007 p 459 No contexto de uma sociedade patriarcal portanto evidenciase cristalinamente a vulnerabilidade vivenciada pela mulher já que a sua sexualidade ainda é controlada e julgada por homens ou por critérios masculinos 2 ASPECTOS ESSENCIAIS DA PORNOGRAFIA DE VINGANÇA COMO VIOLÊNCIA GLOBAL Devese esclarecer que a conduta violenta cometida no ambiente virtual não conhece fronteiras e que dessa forma assim como outros crimes praticados no cyberspace a pornografia de vingança é uma forma de violência global CHAWKI 2015 p 8 Sobre o tema o Relatório Europeu concluiu que computerrelated crimes are committed across cyberspace and dont stop at the conventional stateborders They can be perpetrated form anywhere against any computer user in the world CHAWKI 2015 p 87 Quando se trata da pornografia de vingança afirmase que o material que expõe a intimidade da vítima tem o potencial para chegar a usuários da rede mundial de computadores presentes em todos os países isto é o alcance é potencialmente global e difuso Ainda que agressor primário e vítima estejam sob a jurisdição de um mesmo país a conduta violenta 7 crimes informáticos cometidos por meio do ambiente virtual não se limitam as fronteiras tradicionais dos Estados Eles podem ser cometidos de qualquer lugar e contra qualquer usuário de computador no mundo CHAWKI 2015 p 8 Tradução livre Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 146 acaba sendo perpetrada por outros milhares de usuários muitas vezes anônimos e nas mais diferentes jurisdições que multiplicam o impacto e o alcance da violência na medida em que compartilham eou consomem o material íntimo distribuído sem o consentimento da vítima Nesse sentido é possível identificar dois principais atores que participam da agressão conhecida como pornografia de vingança Como sujeitos diretos do crime encontramse a vítima como a pessoa que teve seu material íntimo espalhado na rede sem consentimento e o agressor enquanto responsável por disponibilizar esse conteúdo a terceiros sem o consentimento da vítima Como participantes de forma indireta na violência podem ser identificados dois outros atores 1 aqueles que consomem eou compartilham o material e também 2 os sites provedores da web mídias sociais que disponibilizam o material para uma ampla audiência que costuma atrair ganhos com publicidade de acordo com o número de visitações ao site Com outros dizeres há toda uma indústria estabelecida em torno dessa prática ilícita Quando vítima e agressor encontramse sob a mesma jurisdição parece mais fácil garantir a punição do agressor pois não é necessário buscar a cooperação judicial e o apoio de países terceiros para haver a responsabilização Nesse sentido as legislações domésticas são talvez num primeiro momento importantes para combater a atividade maliciosa no ambiente virtual CHAWKI 2015 No caso da pornografia de vingança a legislação doméstica parece servir inicialmente para prevenir que o conteúdo íntimo se espalhe por meio da rede mundial de computadores com ressalvas que serão realizadas a seguir O papel preventivo da lei talvez seja ainda mais importante nos casos de pornografia de vingança pois ainda que ações repressivas sejam tomadas contra esse agressor pouco pode ser feito para impedir que esse conteúdo se espalhe e se multiplique quando já disponibilizado na web Uma vez que uma informação é disponibilizada na rede mundial de computadores torna se quase impossível rastrear completamente o seu alcance Dessa forma é praticamente impossível garantir que essa informação seja extinta CHAWKI 2015 A incapacidade de garantir a extinção do conteúdo íntimo da web faz com que a vítima viva constantemente sob o medo de ser confrontada novamente com o material que lhe causa vergonha dor insegurança temor e humilhação Ainda que a vítima exerça nova profissão assuma outra identidade e mude de cidade para mitigar o impacto que a agressão teve em suas relações e status sociais a internet não conhece limites e a agredida pode voltar a ter a sua nova vida invadida pela agressão sofrida no passado Não é possível precisar quantas e quais pessoas visualizaram o conteúdo divulgado Ao considerar a possibilidade de se reviver infinitas vezes a agressão podese alegar que além de ser uma violência global a pornografia de vingança Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 147 também é uma violência que se perpetua no tempo o que a torna ainda mais cruel e de difícil reparação 3 AS DIFICULDADES NA RESPONSABILIZAÇÃO DE AGRESSORES PRIMÁRIOS E SECUNDÁRIOS Quando a prevenção não é possível e atos caracterizadores da pornografia da vingança são perpetrados devese buscar a punição do agressor e a reparação da vítima Porém as legislações domésticas apresentam pouca efetividade para lidar com o caráter global da conduta violenta Quando os agressores primários ou secundários se encontram em jurisdição diversa fazse necessário o apoio no judiciário estrangeiro para a repressão o que torna essa violência um problema de direito internacional privado BAMBAUER 2014 Os problemas na utilização da cooperação judicial para combater a pornografia de vingança são inúmeros destacandose a falta de alinhamento nas diferentes jurisdições sobre aspectos essenciais dessa violência como a própria concordância sobre a definição da violência eou o bem jurídico violado Enquanto alguns países combatem a pornografia de vingança na esfera criminal outros o fazem na esfera civil Alguns ainda possuem legislações específicas sobre essa matéria enquanto outros preferem realizar a repressão por meio da tutela da privacidade A responsabilização daqueles indivíduos que consomem eou compartilham o conteúdo íntimo enfrenta dois desafios a identificar o usuário que compartilha e b identificar a consciência volitiva As dificuldades na responsabilização dos agressores secundários apontadas a seguir apresentamse independentemente de estarem ou não na mesma jurisdição em que a vítima se encontra e decorrem essencialmente do caráter virtual que assume essa violência O problema sobre identificar todos esses envolvidos na perpetuação da violência se deve ao fato de que a internet foi construída sobre a base do anonimato e portanto desenhada para que os seus usuários não sejam identificados CHAWKI 2015 Identificar usuários da internet e o seu comportamento na web transpassa inúmeras jurisdições e as suas respectivas leis de proteção de dados ou privacidade o que envolve significativos recursos financeiros humanos etc Na prática isso torna quase impossível identificar todos àqueles que acessam ou compartilham o material de cunho íntimo que foi distribuído sem o consentimento Já a questão que se refere ao elemento da vontade que é normalmente requisito para responsabilização na esfera criminal devese observar que existe material de cunho sexual disponível na web que foi produzido e compartilhado de maneira consensual Dessa forma Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 148 podese argumentar que se torna difícil para aquele que acessa ou compartilha a informação como intermediário distinguir se o conteúdo foi disponibilizado com ou sem consentimento da pessoa ofendida Assim ainda que fosse possível identificar todos os que acessam ou compartilham as imagens decorrentes da pornografia de vingança seria difícil estabelecer o nexo volitivo necessário para a responsabilização criminal Se não é possível garantir a extinção completa da informação nem a identificação de todos os envolvidos na perpetuação da violência ainda que de maneira indireta uma alternativa parece surgir para buscar a minimização das consequências dessa violência Segundo Suzor 2017 p 10571097 um dos remédios mais eficazes para trazer reparação às vítimas da pornografia é a responsabilidade dos ditos intermediários ou seja aqueles que host index ou make available o conteúdo na web uma vez que eles servem como pontos efetivos de controle8 Nessa categoria encontramse servidores canais de buscas redes sociais que são considerados pontos focais na internet para a distribuição de conteúdo Estabelecem por assim dizer um vínculo entre o conteúdo e o consumidor A capacidade de controlar os conteúdos distribuídos por esses grupos focais pode portanto reduzir a visibilidade que o material íntimo atinge na internet Reduzir a visibilidade da exposição do material íntimo também pode ser considerada uma forma para mitigar o impacto dessa violação SUZOR 2017 p 10571097 Um exemplo disso seria garantir que quando for feita a busca por meio do site Google valendo se do nome de uma pessoa vítima da pornografia de vingança a plataforma não disponibilize o material de cunho sexual relacionado à ofendida como resultado das buscas feitas A dificuldade em acessar o material na internet pode ser fator que diminua consideravelmente a exposição da vítima da pornografia de vingança e portanto amenize as consequências dessa violência Apesar das inúmeras críticas quanto à viabilidade de tornar esses intermediários responsáveis pelas informações compartilhadas em seus domínios número significativo das maiores plataformas de busca de informações sites como o Facebook e Youtube desenvolveram voluntariamente sistemas para responder a denúncias registradas nessa área SUZOR 2017 p 10571097 4 O TRATAMENTO DA PORNOGRAFIA DE VINGANÇA NO ORDENAMENTO BRASILEIRO E A RESPONSABILIDADE DOS INTERMEDIÁRIOS 8 Esses termos são tipicamente utilizados na linguagem empregada no ambiente virtual A tradução literal seria hospedam arquivam ou classificam e tornam disponíveis Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 149 Nesse sentido como o problema da pornografia de vingança parece se espalhar juristas do mundo inteiro buscam propor soluções para o problema Tais soluções variam de mecanismos relacionados à proteção da privacidade ao direito dos contratos à propriedade intelectual e por último à busca pela causação de dor emocional PITCHER 2016 Conforme mencionado anteriormente enquanto alguns ordenamentos parecem utilizar medidas de natureza cível pra lidar com a prática da pornografia de vingança outras legislações parecem optar pela via criminal Nesse sentido há diferentes provisões para combater essa conduta sendo que elas variam conforme o país dificultando as possibilidades das vítimas em buscar reparação Sobre a tutela da pornografia de vingança no ordenamento brasileiro devese primeiro observar que recentemente surgiu menção específica à conduta de espalhar conteúdo íntimo da mulher sem o seu consentimento Anteriormente em regra esses casos acabavam sendo tratados pelo rol de crimes contra a honra como a difamação ou a injúria sendo o primeiro o ato de imputar fato ofensivo à honra e o segundo o ato de ofender a dignidade ou decoro Quanto à sanção penal poderia haver a detenção por até um ano o que geralmente não acontecia pois em regra são casos sujeitos às medidas despenalizadoras da Lei n 909995 e no âmbito cível indenização por danos morais e materiais Ademais como mencionado anteriormente pode ser também enquadrado como crime de extorsão em que as penas são de 4 a 10 anos de reclusão E ainda caso ocorra em situações especiais podese recorrer ao Estatuto da Criança e do Adolescente ou à Lei Maria da Penha conforme a peculiaridade do caso9 Importa destacar também que existiram diversos projetos de lei que objetivaram alterar o Código Penal ou a Lei Maria da Penha para regulamentar a matéria no Brasil Vale citar o Projeto de Lei nº 6630 de 23 de novembro de 2013 apensado ao PL nº 55552013 o Projeto de Lei nº 6713 de 06 de novembro de 2013 apensado ao PL nº 66302013 o Projeto de Lei nº 6831 de 26 de novembro de 2013 apensado ao PL nº 66302013 Projeto de Lei nº 5822 de 25 de junho de 2013 apensado ao PL nº 55552013 dentre outros Referida informação demonstra a preocupação dos legisladores em tutelar de maneira específica a pornografia de vingança em face da insuficiência da legislação anterior para combater essa prática No que concerne à figura dos intermediários num dos projetos de lei o de n 5555 de 09 de maio de 2013 é possível visualizar uma preocupação do legislador para com a retirada do conteúdo da rede mundial de computadores 9 Apenas com intuito de observação na ação da pornografia de vingança ao adquirir caráter transnacional a competência para o processamento e julgamento dos processos passa a ser da esfera federal Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 150 O artigo 22 da Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 passa a vigorar acrescido do parágrafo 5º com a seguinte redação Art22 5º Na hipótese de aplicação do inciso VI do artigo 7º desta Lei o juiz ordenará ao provedor de serviço de email perfil de rede social de hospedagem de site de hospedagem de blog de telefonia móvel ou qualquer outro prestador do serviço de propagação de informação que remova no prazo de 24 vinte e quatro horas o conteúdo que viola a intimidade da mulher BRASIL 2013 De forma geral o que se observa nos projetos é que há preocupação com a retirada rápida do material disponibilizado sem a oitiva prévia do responsável pelo site hospedeiro para que o conteúdo não fique mais tempo à disposição do público e nem seja ainda mais compartilhado evitando maior circulação e danos Ademais podese citar também a Lei 127372012 batizada como a Lei Carolina Dieckmann que acrescentou ao Código Penal artigos sobre delitos informáticos dispondo sobre invasão informática e divulgação de materiais privados Tais artigos abrangem sobre violação de dispositivos informáticos que obtém adulteram ou destroem dados ou informações sem autorização do titular do dispositivo como também criminaliza aqueles que produzem oferecem vendem ou difundem dispositivos ou programas de computador que permitem a prática das violações acima descritas Contudo o Projeto de Lei que gerou a Lei 137182018 é de número 618 de 16 de setembro de 2015 de autoria da Senadora Vanessa Grazziotin PCdoBAM vinculado também ao Projeto de Lei de nº 5452 de 2016 BRASIL 2015 Inicialmente o Projeto visava alterar o Código Penal para prever causa de aumento de pena para o crime de estupro cometido por duas ou mais pessoas A Senadora ao justificar alegou que os estupros coletivos estão cada vez mais corriqueiros e de extrema repugnância pois além da violência física a dignidade da mulher é atingida causando traumas irreversíveis Referido texto foi aprovado entretanto com algumas modificações durante seu andamento como a inclusão da importunação sexual inclusão da divulgação de cena de estupro e também da divulgação não consentida de imagens íntimas Observase que de início o texto não estava vinculado à temática da pornografia de vingança mas durante a tramitação para a aprovação foi passando por alguns ajustes A norma aprovada que discorre sobre oferecer trocar disponibilizar transmitir vender ou expor à venda distribuir publicar ou divulgar por qualquer meio inclusive por meio de comunicação de massa ou sistema de informática ou telemática fotografia vídeo ou outro registro audiovisual que contenha cena de sexo nudez ou pornografia sem o consentimento da vítima deixa dúvidas sobre a responsabilidade dos intermediários pois não apresenta um texto Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 151 bem claro para tal situação Apesar de tutelar a temática da pornografia de vingança ainda deixa a desejar pela utilização de verbos amplos o que proporciona uma margem de incertezas sobre determinadas situações como por exemplo a dos intermediários Nesse sentido em âmbito normativo a responsabilização de intermediários perante a violência contra a mulher na pornografia de vingança fica prejudicada pois não há regulação para a responsabilização destes como também não apresenta nenhuma medida alternativa para que os host index ou make available sejam utilizados como uma alternativa de contenção já que a possibilidade de controlar os conteúdos distribuídos poderia reduzir a visibilidade do material íntimo na internet Referida dificuldade visualizase tanto na legislação especifica a Lei 137182018 quanto na Lei 127372012 a Lei Carolina Dieckmann Além disso apenas com o intuito de fazer um acréscimo e um contraponto imprescindível notar que a legislação por si só não tem força para modificar a situação de vulnerabilidade para os problemas de gênero Davis aponta ser um erro considerar que a legislação sozinha irá criar justiça e igualdade DAVIS 2009 p 109 já que conforme as situações por ela analisada nos EUA mesmo após promulgações de leis consideradas importantes para garantir direitos muitos problemas ainda persistem especialmente quanto às desigualdades econômicas raciais e de gênero Conforme a mesma autora é importante refletir atualmente sobre as violências institucionais visto que há uma tendência de tentar acabar com os problemas sociais violentos de forma violenta sendo que diante do que discorre Davis esta não seria a melhor estratégia Para ela devese começar a pensar em novas estratégias como por exemplo através dos movimentos de massa DAVIS 2009 p 137 Tendo em vista que o sistema de justiça criminal brasileiro tende também para ações de cunho patriarcal aliado ao fato de que é seletivo e estigmatizante SHECAIRA 2014 p 308 visto ser a sociedade como um todo construída e difundida por essa cultura não há garantias que as vulnerabilidades femininas serão resolvidas por legislação criminalizante Tal afirmativa consiste porque é possível verificar a vitimização feminina nas esferas ditas protetivas ou seja ao ocorrer um crime como o de pornografia de vingança que envolve as liberdades sexuais por vezes os órgãos de poder e controle acabam por julgar a conduta da mulher vítima avaliando se ela é realmente vítima e se merecia ou não ser tratada daquela maneira ANDRADE 2012 p 148 o que por qualquer ótica se mostra absurdo Sendo assim talvez as soluções mais interessantes sejam através de um controle maior sobre os materiais disponibilizados e a retirada deles também de forma a dificultar o máximo possível a divulgação bem como que sejam encontrados novamente Ainda uma atuação mais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 152 significativa na esfera positiva CELMER AZEVEDO 2007 p 16 vinculada a efetivação de direitos fundamentais trazendo a mulher como um sujeito de direitos CAMPOS 2003 seja mais interessante que uma efetivação na esfera criminal na qual são vistas como apenas vítimas Além disso também seria significativo um rompimento com a cultura patriarcal formando uma nova história para a sociedade livre das amaras estigmatizantes e limitadoras CONSIDERAÇÕES FINAIS A pornografia de vingança como já referido por ser em algumas das vezes veiculada em sites ou em aplicativos de redes sociais fato que ultrapassa barreiras territoriais e não há como mensurar sua real repercussão Nesse sentido identificamse sujeitos como a vítima aquela pessoa que teve seus vídeos eou fotos íntimas divulgados sem a sua autorização como também o agressor responsável pela disponibilização do conteúdo a terceiros pelos mais diversos motivos vingança ameaça extorsão entre outros e os demais sujeitos que atuam indiretamente consomem ou compartilham o material íntimo e também os sites ou redes sociais Quanto aos limites territoriais percebese que quando ficam dentro do território nacional existem mais possibilidades de controlar a disponibilização ainda que de forma ínfima e deficiente e de buscar por alguma reparação para a vítima Entretanto quando a disponibilização do material íntimo adquire caráter internacional se faz necessário buscar por cooperação judicial de países terceiros para apurar e cessar a violência Nesse sentido legislações específicas sobre a temática poderiam ser pertinentes visto que traria uma regulação e permitiria talvez alguma prevenção bem como facilitaria para com a colaboração de outros países A legislação brasileira tutela especificamente sobre a pornografia de vingança Lei 137182018 e também sobre invasões informáticas Lei 127372012 ou quanto àqueles que produzem oferecem vendem ou difundem dispositivos ou programas de computador que permitem a prática das violações na rede mundial de computadores Porém a legislação apresenta falhas sendo uma delas referente aos intermediários A responsabilização dos host index ou make available ou seja intermediários poderia ser uma alternativa de contenção pois seria uma forma de barrar a divulgação não consentida e minimizar as consequências dessa violência Diante do fato de que nessa categoria encontramse servidores canais de buscas e redes sociais que são considerados um dos pontos de distribuição do conteúdo a viabilidade de controlar os conteúdos distribuídos por esses grupos poderia reduzir a visibilidade que o material íntimo atinge na internet Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 153 No Brasil então não há regulação para a responsabilização destes como também não apresenta nenhuma medida alternativa para que os intermediários sejam utilizados como uma alternativa de contenção Portanto a violência contra a mulher no âmbito da pornografia de vingança fica prejudica nesse sentido Ademais tendo em vista não somente questões normativas e com intuito de apresentar uma crítica e contraponto é importante considerar que somente a existência de legislação não resolve os problemas da pornografia de vingança pois é uma temática sensível que envolve questões da sociedade patriarcal e também da liberdade sexual feminina Portanto necessário pensar além de criminalizações mas também considerar alternativas como movimentos de massa e ações positivas que busquem a efetivação de direitos que estão respaldados positivamente na Constituição Federal considerando a mulher como sujeito de direitos e não apenas como vítima REFERÊNCIAS AGUIAR Neuma Patriarcado sociedade e patrimonialismo In Revista Sociedade e Estado Vol 15 nº 2 p 303330 Brasília JuneDec 2000 ALMEIDA Tânia Mara Campos de As raízes da violência na sociedade patriarcal In Revista Sociedade e Estado Brasília v 19 nº 1 p 235243 janjun 2004 ANDRADE Vera Regina Pereira de Pelas mãos da criminologia o controle penal para além da desilusão Rio de Janeiro Revan 2012 BARATTA Alessandro Criminologia crítica e crítica ao direito penal introdução à sociologia do direito penal Tradução Juarez Cirino dos Santos Rio de Janeiro RevanInstituto Carioca de Criminologia 2011 BARATTA Alessandro O paradigma do gênero da questão criminal à questão humana In CAMPOS Carmem Hein de Criminologia e feminismo Porto Alegre Sulina p 1980 1999 BRASIL Decretolei n 2848 de 07 de dezembro de 1940 Código Penal Brasília DF Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03decretoleiDel2848htm Acesso em 10 ago 2016 BRASIL Lei 13718 de 24 de setembro de 2018 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Ato201520182018LeiL13718htm Acesso em 10 fev 2019 BRASIL Projeto de Lei n 5555 de 09 de maio de 2013 Brasília DF Disponível em httpwwwcamaragovbrproposicoesWebfichadetramitacaoidProposicao576366ord1 Acesso em 07 jul 2016 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 154 BRASIL Projeto de Lei n 5822 de 25 de junho de 2013 Brasília DF Disponível em 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1ª ed Florianópolis Empório do Direito 2015 CAMPOS Carmem Hein de Juizados Especiais Criminais e seu déficit teórico Revista Estudos Feministas v 11 n 1 Florianópolis janjun 2003 CARVALHO Marcela Melo de ARRAES Bruno Suicídio e pornografia de vingança In Juscombr Publicado em jun2017 Disponível em httpsjuscombrartigos58248suicidioepornografiadevinganca Último acesso em 12 ago 2019 CELMER Elisa Girotti AZEVEDO Rodrigo Ghiringhelli de Violência de gênero produção legislativa e discurso punitivo uma análise da lei nº 113402006 Boletim do IBCCRIM São Paulo Ano 14 n 170 jan 2007 CHAWKI M et al Cybercrime Digital Forensics and Jurisdiction electronic resource Cham Springer International Publishing Imprint Springer 2015 Studies in Computational Intelligence 593 ISBN 9783319151502 CITRON Danielle Keats Hate Crimes in Cyberspace Harvard University Press 2014 DAMITZ Caroline Vasconcelos FARIA Josiane Petry PORN REVENGE UMA QUESTÃO DE GÊNERO In Rev Estudos Legislativos Porto Alegre ano 11 n 11 p 73 88 2017 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 155 DAVIS Angela Y A democracia da abolição para além do império das prisões e da tortura Tradução Artur Neves Teixeira Rio de Janeiro DIFEL 2009 FERREIRA Paula Perseguição Pornografia de vingança Ofensa sexual A violência contra a mulher cresce nas redes Publicado no Jornal OGlobo em 08 mar 2019 Disponível em httpsogloboglobocomsociedadecelinaperseguicaopornografiadevingancaofensa sexualviolenciacontramulhercrescenasredes23506835 Acesso em 12 ago 2019 GIONGO Marina Grandi Madalenas modernas e um caso de pornografia de vingança reflexões sobre gênero sexualidade e cidadania na educação Disponível em httpswwwufrgsbrsicpwpcontentuploads201509MARINAGRANDIGIONGOpdf Acesso em 12 ago 2019 MOREIRA JO LIMA N L STENGEL M PENA BF SALOMÃO CS A exposição do amor na internet público ou íntimo In Arquivos Brasileiros de Psicologia Rio de Janeiro Vol 69 n 1 p 518 2017 Disponível em httppepsicbvsaludorgpdfarbpv69n102pdf Último acesso 10 set 2019 PEREIRA P P G As estruturas elementares da violência Cadernos Pagu Campinas n 29 p 459468 Disponível em httpsperiodicossbuunicampbrojsindexphpcadpaguarticleview8644837 Juldez 2007 Último acesso 12 ago 2019 PITCHER J The State of the States The Continuing Struggle to Criminalize Revenge Porn Brigham Young University Law Review 2015 5 pp 14351466 May 15 2016 SAFFIOTI Heleieth I B Gênero patriarcado e violência São Paulo Editora Fundação Perseu Abramo 2011 SENNETT Richard O declínio do homem público as tiranias da intimidade Versão eletrônica Rio de Janeiro Record 2015 SHECAIRA Sérgio Salomão Criminologia 6 ed São Paulo Editora Revista dos Tribunais 2014 SUZOR Nicolas P SEIGNIOR Bryony SINGLETON Jennifer Nonconsensual porn and the responsibilities of online intermediaries Melbourne University Law Review 40 3 pp 10571097 Sept 2017 THE INDEPENDENT Revenge porn is no longer a niche activity which victimises only celebrities the law must intervene Disponível em httpwwwindependentcoukvoicescommentrevengepornisnolongeraniche activity whichvictimisesonlycelebritiesthelawmustintervene8622574html Acesso em 15 de nov 2017 VERAS Marcelo Redes sociais espalham epidemia de malestar pela humanidade diz psicanalista Entrevista concedida a Amanda MontAlvão Veloso BBC News Brasil São Paulo 3 ago 2019 Disponível em httpswwwbbccomportuguesegeral49160276 Último acesso em 07 set 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 156 ZAFFARONI Eugenio Raúl A questão criminal Tradução Sérgio Lamarão 1 ed Rio de Janeiro Revan 2013 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 157 FEMINISMO E PORNOGRAFIA QUANDO A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER É EROTIZADA E CAPITALIZADA Bruna Carolina Bernhardt1 Kimberly Gianello Studer2 Luísa Neis Ribeiro3 RESUMO O presente trabalho apresenta criticamente a pornografia sob a hipótese de que ela se enquadra enquanto discurso e exercício institucional de violência contra a mulher Para isso utilizase da metodologia de pesquisa bibliográfica através do diálogo entre marcos teóricos feministas que discutem o tema Ainda expõese dados empíricos representativos da dimensão da indústria pornográfica e fazse uma análise da atual situação da pornografia a partir deles Objetivase por meio do trabalho expor a relação da pornografia com o patriarcado e avançar rumo a um arcabouço estatal efetivamente garantidor dos direitos civis das mulheres que considere as problemáticas exclusivas a elas dada a atuação da indústria pornô As autoras feministas Carole Pateman Andrea Dworkin Catharine Mackinnon e Heleieth Saffioti são abordadas para identificar os elementos políticos econômicos e sociais da pornografia Verificase com base na discussão entre as autoras e nos dados apresentados a existência de estruturas condicionantes do envolvimento das mulheres com a indústria pornográfica que a caracterizam como instrumento monetizador e promotor da violência contra a mulher Diante disso recomendase um horizonte possível para o problema no âmbito jurídico semelhante ao modelo legal sobre assédio sexual existente hoje em diversos países Por fim destacase a necessidade do debate livre sobre esse fenômeno amplamente disseminado e pouquíssimo problematizado qual seja a pornografia Palavraschave Direito Feminismo Mulher Pornografia Violência INTRODUÇÃO O presente trabalho pretende discutir a pornografia enquanto uma das instituições que atraem submetem e violentam mulheres4 Entretanto sem jamais desconsiderar a importância da prostituição na história no modo de operação e na utilidade da pornografia uma vez que ambas constituem domínios interdependentes que se caracterizam pela troca de sexo por 1 Mestranda no Programa de PósGraduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina desde 2018 Bolsista CAPES Email brunabernhardtgmailcom Lattes httplattescnpqbr3221380570884685 2 Graduanda do curso de Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Catarina Email kimberlysstudergmailcom Lattes httplattescnpqbr2620662542761454 3 Graduanda do curso de Direito na Universidade Federal de Santa Catarina Email luuribeiro7gmailcom Lattes httplattescnpqbr8971992231087644 4 Para uma exemplificação do aliciamento de mulheres vulneráveis podese verificar o que conta a exatriz pornô Mia Khalifa sobre as companhias que atacam mulheres jovens em entrevista de agosto de 2019 disponível em httpswwwbbccomnewsnewsbeat49330540 Acesso em 20 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 158 dinheiro Deste modo tratase de investigar a condição das mulheres na esfera da pornografia considerandoa enquanto instituição social Em primeiro lugar verificase que apesar da difusão da prática a problematização teórica acerca da pornografia não se encontra em estágio altamente desenvolvido pelas ciências sociais o que se reflete no reduzido estudo do problema sob o prisma jurídico Na tentativa de completar essa lacuna e de promover o debate acadêmico e social considerase primordial tratar do assunto dada a quantidade crescente de vidas implicadas na atividade pornográfica o que aferese no trabalho por meio da análise de dados recentemente divulgados pela agência pornográfica Pornhub e pela empresa DoubleClick Ad Planner Ademais para facilitar o entendimento do estado da arte separase as feministas que se debruçaram sobre o tema em dois grupos principais o primeiro composto primordialmente pelas feministas radicais considera o fenômeno um atentado aos interesses comuns da classe de mulheres Já o segundo formado por feministas liberais e pelas pósestruturalistas reduz a questão a uma escolha individual da qual o Estado não deve se ocupar ou rejeita as atitudes legaisinstitucionais deliberadas contra a indústria Isso posto ressaltase que algumas correntes do segundo grupo não compreendem a pornografia nem a prostituição como problemas ou como violências contra as mulheres restringindo seu posicionamento à luta por garantias trabalhistas para as chamadas profissionais do sexo De outra parte a perspectiva a que o trabalho se filia vê com desconfiança a legalização e a regulamentação desse mercado buscando no Estado e na sociedade o que permite o funcionamento pleno desses institutos Além disso percebeos enquanto práticas que por sua própria qualidade submetem mulheres a situações violentas Diante disso considerase necessário um estatuto jurídico atento a essa problemática Assim sendo por meio de pesquisa bibliográfica apresentase marcos teóricos feministas que localizam o problema da violência contra a mulher no âmbito da pornografia com atenção às dimensões políticas sociais e econômicas que determinam a instituição São eles Carole Pateman Andrea Dworkin Catharine Mackinnon e Heleieth Saffioti Apesar disso destacase que a revisão bibliográfica do trabalho não esgota de nenhum modo o debate feminista sobre o tema que abarca uma pluralidade de análises Nesse sentido partese do ponto de vista feminista presente na crítica de Carole Pateman 1993 ao contratualismo social doutrina legitimadora do Direito e do Estado modernos Utilizese de sua contribuição para situar as peculiaridades da cidadania feminina possibilitando um olhar crítico às instituições sociais especialmente à família à prostituição e ao Estado Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 159 Em um segundo momento as contribuições de Dworkin 1981 são detalhadas para a compreensão da hierarquia de gênero histórica e socialmente construída como razão primária da existência da prostituição e consequentemente da indústria pornográfica Portanto é somente no sistema denominado por Dworkin 1981 p 200 de dominação sexual masculina que surge o conceito de puta assim como se possibilita a criação da pornografia do comércio sexual do insulto enfim da capitalização do uso do corpo feminino como instrumento de prazer masculino Nesse sentido demonstrase que a desigualdade sexual de poder político econômico e simbólico funda e sustenta as instituições que subordinam a classe das mulheres à classe dos homens Além disso as reflexões de Dworkin 1981 p 21 denunciam a realidade cruel do mundo pornográfico que de acordo com a autora é reduzida retoricamente a uma fantasia Ainda explicase porque a atuação de mulheres no sistema prostituiçãopornografia não deve ser considerada trabalho em contraposição com outras vertentes do feminismo No horizonte jurídico a professora de Direito Catharine MacKinnon 1993 p 34 guia a exposição ao justificar que há uma permissibilidade da violência contra a mulher quando os ordenamentos jurídicos tratam a pornografia como discurso protegido obstando a proteção de direitos civis das mulheres Depois iniciase uma discussão especificada na condição sócio econômica das mulheres brasileiras através das pesquisas de Heleieth Saffioti 1985 para trazer à tona o aspecto material da desigualdade sexual que possibilita o mercado de sexo Partindo portanto da hipótese de que a pornografia contribui para a constituição da cultura do estupro das mais variadas violências contra a mulher e da desigualdade sexual identificase o problema da pesquisa no nãoreconhecimento por parte do Estado e da sociedade da pornografia enquanto um instrumento de violência Tratada como entretenimento pessoal ela blinda o estudo de seus efeitos de modo que há ainda pouca pesquisa empírica sobre a dimensão real que ela ocupa na vida das mulheres envolvidas bem como no corpo social como um todo Nosso objetivo portanto é questionar esse instituto naturalizado apresentando os motivos de seu funcionamento atual Pretendese além disso problematizar a percepção sobre as mulheres perpetuada pelas produções pornográficas assim como investigar em que medida existem alternativas possíveis e adequadas no âmbito do Direito em relação à particularidade da violência sofrida através dessa prática Buscase desta forma encontrar instrumentos jurídicos que deem poder às mulheres violentadas nessa circunstância considerando os limites de funcionamento do Estado Em vista disso esperase que o trabalho sirva para o questionamento da naturalização da pornografia e que incentive o estudo qualificado a respeito do tema Aspirase também que Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 160 outros pesquisadores preocupados com o problema da violência contra a mulher contestem em suas produções a capitalização do corpo feminino e seus impactos a fim de que esse tema complexo seja mais bem discutido 1 FEMINISMO E PORNOGRAFIA 11 Carole Pateman e a subcidadania feminina Para tornar a crítica ao fenômeno atual da pornografia mais consistente baseiase na tese de Carole Pateman 1993 sobre a subcidadania feminina A análise da autora acerca do período de ascensão dos Estados modernos e do Direito é categórica em afirmar que a legitimação dessas instituições através das teorias do contrato social não contribuiu para a emancipação das mulheres Para Pateman 1993 as mulheres foram o próprio objeto negociado neste contrato sendo impedidas de receber da nova ordem social os mesmos direitos inatos garantidos aos homens Por este motivo estabelecemse meios centrais de submissão femininos o lar e a prostituição carregando em si a funcionalidade da negação política da mulher Se o que marca a governamentalidade liberal FOUCAULT 2008 de que se está tratando é a noção de consentimento a opressão das mulheres tem sido desde então lida socialmente como uma escolha é natural da mulher se submeter a um homem5 e nesse modelo a prostituição e contemporaneamente a pornografia é entendida como uma alternativa normal Ignorase porém as coações morais psicológicas e econômicas que o sistema social impõe à mulher que assim se submete 12 O tamanho da indústria pornográfica e sua relação com o patriarcado Em 2017 o maior site de pornografia do mundo o Pornhub completou dez anos de existência e atingiu a marca de 75 milhões de visitantes diários Desses a maior parte do público era composta por jovens entre 18 e 24 anos que tinham a seu dispor mais de 10 milhões de vídeos na época ORENSTEIN 2017 Antes disso no ano de 2012 a DoubleClick Ad Planner empresa pertencente ao Google divulgou o recorde de views de outros dois canais pornográficos que conjuntamente já alcançavam o tráfego de dados equivalente ao do Twitter 5 Sobre isso afirma Dworkin 1981 p 206 Este desejo da mulher de se prostituir é muitas vezes retratado como ganância por dinheiro ou prazer ou ambos A mulher natural é uma prostituta mas a prostituta profissional é uma prostituta gananciosa gananciosa por sensação prazer dinheiro homens Tradução livre de The natural woman is a whore but the professional prostitute is a greedy whore greedy for sensation pleasure money men DWORKIN 1981 p 206 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 161 que recebia 59 bilhões de acessos por mês naquele ano Somente o Xvideos possuía mais de 4 bilhões de visualizações mensais ANTHONY 2012 Esses números revelam a magnitude da indústria pornográfica comprovantes de sua atratividade por isso não é surpresa que seja uma das indústrias mais lucrativas do mundo6 É por meio desta estrutura bilionária que se promove o que aqui se denuncia como um meio pouco reconhecido de violência contra as mulheres estejam elas envolvidas direta ou indiretamente nesse cenário Antes de tudo para compreender as origens desse alarmante interesse social pelo conteúdo pornográfico retornase aos alicerces da hierarquia de gênero a fim de melhor determinar porque a pornografia pode ser descrita como violência contra a mulher As reflexões de Andrea Dworkin escritora feminista radical estadunidense elucidam a derivação estrutural da instituição pornografia com relação ao sistema político patriarcal Sabese que historicamente a classe dos homens sempre foi mais poderosa em relação à das mulheres em maior ou menor grau nos mais diversos campos da existência humana7 Após a constituição definitiva do patriarcado eles se tornam os determinadores principais da função e do valor da figura feminina e também de corpos femininos individualizados Assim Dworkin 1981 p 200 explica que a mulher como puta existe dentro do sistema objetivo e real de dominação sexual masculina A pornografia em si é objetiva real e central para o sistema sexual masculino8 A elaboração e o uso masculinos do termo puta portanto dentro e fora da pornografia tem uma funcionalidade prática ao patriarcado à medida em que reduz a mulher a mero objeto sexual retirandolhe seu caráter humano e dificultando seu enquadramento enquanto sujeito de direitos Essa afirmação é comprovada pelas palavras de um dos traficantes de mulheres envolvido em um esquema milionário na Espanha Ele declara em sua autobiografia 6 Embora seja difícil saber as receitas exatas da indústria devido à grande quantidade de empresas não regulamentadas na internet estimase que este setor tenha movimentado cerca de 97 bilhões de dólares em 2006 Hoje é possível adquirir ações de algumas empresas produtoras de pornografia como a Beate Uhse cuja receita obtida em 2018 foi de 5549 milhões de dólares e a DNXcorp cuja receita em 2018 foi de 2361 milhões de dólares Disponível em httpswwwrankiapttop11deindustriasquemovimentammaisdinheironomundo ecomoinvestirnelas Acesso em 19 ago 2019 7 Esta tese pode ser verificada por exemplo na obra de Simone de Beauvoir 2008 dentre outras produções que articulam o tema Antes da instauração do patriarcado as mulheres já eram reservadas à vida imanente limitadora de suas potencialidades quando comparadas a homens em virtude de sua condição biológica reprodutiva Porém com a constituição do patriarcado é configurado um salto de dominação masculina através das mais diversas instituições por eles criadas e lideradas Esta perspectiva existencialista ainda assim não naturaliza a submissão de um sexo em relação a outro e vê o avanço da autonomia corporal da mulher como um dos motores à emancipação feminina 8 Tradução livre de Woman as whore exists within the objective and real system of male sexual domination The pornography itself is objective and real and central to the male sexual system DWORKIN 1981 p 200 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 162 Ninguém acorda em um certo dia e decide ser prostituta mas nós temos a teia de aranha perfeitamente tecida onde cabem as promessas de uma vida melhor para ela e os seus os elogios que gosta de escutar e algumas ajudas insignificantes que apresentamos como grandes favores e que elas nos agradecem como se fossem Quando a mosca prende suas patinhas na rede é impossível se soltar E lá fica Presa Pronta A balança do acordo verbal não se inclina para ambos os lados por igual Por isso o suposto consentimento das vítimas não é mais do que uma farsa onde não existem os requisitos éticos imprescindíveis em qualquer relação pessoal social ou trabalhista Eu forneci mulheres durante anos a 12 dos melhores macrobordéis que existem na atualidade na Espanha Enchi dessa matériaprima que os puteiros chamam de carne fresca dia após dia E jamais parei para pensar se a mercadoria que eu importava eram pessoas como eu Elas eram outra coisa Eram putas JABOIS 2017 grifo nosso O recrudescimento dessa desumanização é verificado nas cenas pornográficas onde o corpo feminino ordinariamente é retratado e estigmatizado como um produto sujo o que acaba por reforçar noções de que a sexualidade feminina em si é suja enquanto a masculina é natural e instintiva DWORKIN 1981 A pornografia desse modo contribui para o exacerbamento do patriarcado pois erotiza a objetificação feminina e despreza o sexo feminino ao mesmo tempo em que mantém a integridade e o domínio do sexo masculino frente a este objeto artificialmente construído Além disso evidenciase ainda o fato de que o pornô é midiatizado como forma de diversão reforçando a ideia de que o que está sendo mostrado é prazeroso para todos os envolvidos especialmente para a mulher em cena9 Isso torna ainda mais difícil modificar o ideário social de que é agradável para a mulher estar ali e fazer o público entender o porquê da situação ser abusiva e se figurar como uma forma de violência Comprovante da situação emblemática na qual se encontra uma mulher que em algum momento da vida envolveuse com prostituição ou pornografia a entrevista da exatriz pornô Mia Khalifa para o jornal BBC News corrobora a carga de discriminação acarretada pela participação nessa indústria Khalifa MIA 2019 conta que já perdeu vagas de emprego por causa de seu passado no pornô10 sendo mais um caso exemplificativo da forma degradante como a sociedade estigmatiza essas mulheres Diferente por exemplo é o caso de um homem atuante no pornô que ao sair do ramo não necessariamente tem suas ações anteriores 9 Dworkin 1981 percebe como valores padrão da pornografia a emoção de humilhação a alegria da dor o prazer do abuso a magnificência do pau a mulher que resiste apenas para descobrir que ela ama isso e quer mais Tradução livre de the standard values of pornography the excitement of humiliation the joy of pain the pleasure of abuse the magnificence of cock the woman who resists only to discover that she loves it and wants more DWORKIN 1981 p 215 10 A frase original dita pela exatriz é It gets me so down when I get nos from companies who dont want to work with me because of my past retirada de httpswwwbbccomnewsnewsbeat49330540 Acesso em 20 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 163 constantemente relembradas e eventualmente pode até ocupar um cargo público11 não prejudicando do mesmo modo seu estigma social Entretanto à mulher filmada reservamse difamações rebaixamento intelectual e preconceitos ou seja percebese que o fardo da discriminação sexual vivida por todas as mulheres é multiplicado nesse contexto Além disso o viés racista da pornografia é exaustivo nas cenas em que mulheres negras aparecem Analisadas por Dworkin 1981 a mensagem passada ao público é bem clara se mulheres brancas são reduzidas a objetos pela categoria de puta mulheres negras são punidas sexualmente pela cor de sua pele Disso resultam cenas notadamente mais violentas nas quais se apreende pelo enredo que a modelo negra não precisa estar nua para ser sexo qualquer exibição de sua pele é sexo O sexo dela está bem na superfície sua essência sua ofensa12 DWORKIN 1981 p 216 Essa promoção do racismo tem indubitavelmente a raiz histórica da escravização onde o estupro era uma arma de dominação uma arma de repressão cujo objetivo oculto era aniquilar o desejo das escravas de resistir e nesse processo desmoralizar seus companheiros DAVIS 2016 p 36 Percebese portanto consequências muito problemáticas do discurso pornográfico em termos raciais que demandam aprofundamento Dando prosseguimento ao debate a seção seguinte pretende explicar por que a pornografia não pode ser considerada um trabalho por intermédio da revisão das ideias de Dworkin e da comparação entre o trabalho comum e a atuação na indústria pornográfica 121 Complexo prostituiçãopornografia e o mundo do trabalho Outro ponto essencial discutido por Dworkin 1992 é se a atuação na pornografia deveria ser tratada como uma profissão igual às demais merecedora portanto de regulamentação estatal enquanto trabalho Primeiramente a autora aponta que em nosso sistema político determinado pelo patriarcado nunca houve uma instituição de erotização e capitalização de corpos masculinos 11 Exemplo disso é o caso de Alexandre Frota exator pornô que em 2018 foi eleito para o cargo de deputado federal no estado de São Paulo pelo PSL atualmente Frota é filiado ao PSDB 12 A violência contra o sexo dela é violência contra a pele dela A excitação de torturar seu sexo é a excitação de torturar sua pele O ódio à seu sexo é o ódio à sua pele Seu sexo é esticado sobre ela como uma luva e quando ele toca sua pele ele coloca aquela luva Ela modela sua pele seu sexo Seu sexo é tão próximo tão disponível quanto sua pele Seu sexo é tão escuro quanto sua pele A modelo negra não precisa estar nua para ser sexo qualquer exibição de sua pele é sexo Seu sexo está bem na superfície sua essência sua ofensa DWORKIN A 1981 p 216 Tradução livre de The violence against her sex is violence against her skin The excitement of torturing her sex is the excitement of torturing her skin The hatred of her sex is the hatred of her skin Her sex is stretched over her like a glove and when he touches her skin he puts on that glove She models her skin her sex Her sex is as close as available as her skin Her sex is as dark as her skin The black model need not model naked to be sex any display of her skin is sex Her sex is right on the surface her essence her offense DWORKIN A 1981 p 216 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 164 semelhante ao que ocorre com as mulheres através do complexo prostituiçãopornografia Diante desse paradigma historicamente colocado a ascensão do dinheiro como meio de troca transfigurase em ferramenta de dominação de corpos femininos na medida em que torna o acesso a eles um privilégio dos homens dada sua posição social de maior poder econômico13 ILO 2016 Em virtude dessa articulação sóciohistórica das questões de gênero Dworkin 1981 se posiciona contra o reconhecimento legal da atuação pornográfica como profissão alegando ser a desigualdade econômica uma coatora que força mulheres a venderem seus corpos para consumo masculino Exigese diante disso uma outra postura institucional que pode ser verificada a seguir Por outro lado respondendo a críticas de que muitos homens também fazem o que não gostam para obter dinheiro Dworkin 1992 reconhece o cunho desagradável que o trabalho pode ter para eles Agora nós compreendemos a respeito do trabalho masculino Nós compreendemos que os homens fazem coisas que não gostam de fazer a fim de ganhar um salário Quando homens fazem trabalho alienado em uma fábrica nós não dizemos que o dinheiro transforma a experiência para eles de tal maneira que eles a amaram tiveram um bom divertimento e de fato aspiraram a mais nada Nós olhamos para o enfado a ausência de saída nós dizemos certamente a qualidade de vida de um homem deveria ser melhor que essa 1992 p 3 Isso posto além da necessária atenção às estruturas econômicas que discriminam mulheres o núcleo do problema está em saber identificar o que exatamente diferencia um trabalho comum da atuação na pornografia e porque é primordial separar os dois qualitativamente Ao compreender o trabalho como a venda do tempo de um indivíduo a outro em troca de determinado salário observase que o agente principal dessa relação é o trabalhador em virtude de ser ele o realizador de esforços físicos ou intelectuais específicos exigidos na tarefa Como afirmado pela autora este trabalho pode ser indesejável porém não vulnerabiliza completamente o indivíduo frente a seu empregador Há nesse caso um serviço a ser prestado por alguém com consciência das atividades demandadas e um contratante que usufrui única e exclusivamente delas não se apropriando materialmente do corpo de quem as realiza Mesmo 13 Para exemplificar Em nível global a disparidade de gênero com relação a empregos tem diminuído por apenas 06 pontos percentuais desde 1995 com uma relação empregopopulação de 46 por cento para as mulheres e quase 72 por cento para os homens em 2015 ILO 2016 Disponível em httpswwwiloorgbrasilianoticiasWCMS458115langptindexhtm Acesso em 18 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 165 assim sabese que as relações chefeempregado podem ser abusivas se o trabalhador é tratado com indignidade Quando isso ocorre o subordinado pode buscar seus direitos via judicial De outra parte a prostituição e a pornografia significam a venda do corpo da mulher para alguém ou seja a mercadoria não é fruto de um esforço físico ou intelectual específico mas a própria carne de quem trabalha O agente principal dessa relação não é ela mas seu detentor temporário ou duradouro A subordinação desse tipo de atividade é singular pois se estrutura na apropriação da integridade física e sexual de outrem e não de certa quantidade de tempo Ademais o trabalho comum não envolve que o trabalhador seja coagido a aceitar qualquer imposição externa fora dos limites do contrato anteriormente firmado salienta Dworkin 1992 Em contrapartida na pornografia delegase ao pornógrafo a decisão do que a atriz deve aguentar no próprio corpo assim como acontece na prostituição por arbítrio do cliente levando muitas vezes ao esgotamento dos limites físicos mentais e psicológicos da mulher Ainda a indústria pornográfica possui o agravo de mercantilizar o abuso através das gravações destituindo a atriz de qualquer poder sobre a circulação dessas imagens o que é ressaltado por Khalifa MIA 2019 Considerando inerente o tratamento desumano para com as mulheres na indústria pornográfica buscase agora introduzir um horizonte jurídico a respeito do tema na perspectiva do feminismo radical Sob essa ótica é correta a assertiva de que é mais adequado prover uma base institucional que empodere as vítimas ao invés de ampliar demasiadamente o poder punitivo estatal Nesse sentido o próximo tópico inicia apresentando as razões que fundamentam essa postura 13 A leitura de MacKinnon Direito e Estado masculinos MacKinnon 1983 jurista e cientista social estadunidense propõe uma interpretação feminista do Estado e do Direito Isso implica colocar os problemas que as mulheres enfrentam como estupro agressão pornografia prostituição assédio discriminação sexual e aborto no centro da análise dessas instituições Esse exercício ressignifica a instituição estatal identificando nela um caráter promotor da supremacia masculina Assim afastandose da concepção do marxismo vulgar de que o Direito é pura ideologia replicadora da dominação de classe e também da noção liberal que entende o Direito Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 166 como instrumento de fins políticos em disputa e vê o Estado como neutro14 MacKinnon 1983 p 644 afirma formalmente o Estado é masculino na medida em que a objetividade é sua norma A objetividade aqui firmada opera sob pressupostos da condição masculina ignorando especificidades da condição feminina para o funcionamento do Estado Nesse sentido a racionalidade patriarcal modela a legislação colocando o homem como o padrão humano15 para condutas tornando especialmente difícil lidar com a questão do estupro por exemplo Sobre isso pontua Tendo definido o estupro em termos sexuais masculinos o problema do direito que se torna o problema da vítima é distinguir o estupro do sexo em casos específicos A lei faz isso ao adjudicar o nível de força aceitável começando logo acima do nível estabelecido pelo que é visto como comportamento normal sexual masculino e não no ponto de violação da vítima ou das mulheres O ponto de referência substantivo implícito nos padrões legais existentes é o nível sexualmente normativo de força16 MACKINNON 1983 p 649 Esse raciocínio feminista relativo ao estupro é exemplificativo da virada epistemológica feminista que analisa todas as áreas tratadas como mercado de sexo incluída a pornografia sob outro ângulo Feita essa consideração preliminar constatase que o ponto de vista tradicional adotado no ordenamento jurídico normalmente prejudica as mulheres por terem suas especificidades biológicas e sociopolíticas postas à margem e não na centralidade Apesar disso Mackinnon 1993 reconhece nas instâncias judiciais uma possibilidade de empoderamento feminino como de fato se obteve com a aplicabilidade da legislação relativa a assédio sexual por ela defendida É nesse sentido que é construída por ela uma espécie de anteprojeto de lei DWORKIN MACKINNON 1988 abordado a seguir com participação de Andrea Dworkin Esse projeto que intentava prover uma base jurídica contra a violência na pornografia foi debatido nas cidades de Minneapolis e Indianápolis e citado em decisões da Suprema Corte canadense contrárias à pornografia gerando ressonância em países como Inglaterra Irlanda Alemanha 14 Esta é a visão adotada pelo positivismo jurídico cujo principal teórico é Hans Kelsen Ele afirma que o Estado é um instrumento para qualquer um dos fins sociais deliberados socialmente enquanto o Direito seria esse sistema de normas reguladoras do comportamento humano acordadas em sociedade KELSEN 2005 15 A contribuição de Simone de Beauvoir 2008 é primordial neste aspecto Nas sociedades patriarcais as características humanas são categorizadas de modo que os comportamentos social e biologicamente reservados a homens são desvendados por um espectro positivo e neutro enquanto a condição feminina é definida sempre negativamente em relação ao homem que define o padrão humano e não é captada em si mesma 16 Tradução livre de Having defined rape in male sexual terms the laws problem which becomes the victims problem is distinguishing rape from sex in specific cases The law does this by adjudicating the level of acceptable force starting just above the level set by what is seen as normal male sexual behavior rather than at the victims or womens point of violation The substantive reference point implicit in existing legal standards is the sexually normative level of force MACKINNON 1983 p 649 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 167 Nova Zelândia e Tasmânia como demonstram os trabalhos de Silva 2013 Infelizmente não houve até o momento qualquer discussão pública de proporção semelhante acerca do assunto no Brasil 131 O regulamento antipornografia de Mackinnon e Dworkin O anteprojeto de lei MACKINNON DWORKIN 1988 redigido pelas teóricas apresentadas até aqui pressupõe o reconhecimento estatal da pornografia como instituição violadora dos direitos civis das mulheres em vista da natureza ilocucionária da mesma Explicase o termo to make visual pornography and to live up to its imperatives the world namely women must do what the pornographers want to say MACKINNON 1993 p 25 O vocábulo expressa que uma cena pornográfica não é apenas representação mas consiste em atuação no mundo real o que compreende por um lado violência contra a mulher na produção17 e por outro disseminação de ideias de subordinação feminina18 através de seu consumo Logo de acordo com essa abordagem radical a pornografia deve ser proibida não porque representa dano como obviamente faz e não porque provoca danos como alguns sustentam mas porque é dano19 MCGOWAN 2005 p 28 grifo da autora Avaliando portanto o impacto negativo direto e indireto da pornografia para as mulheres o anteprojeto objetiva em primeiro lugar garantir às vítimas diretas uma causa de ação contra seus pornógrafos Para tal há previsão de cinco possibilidades de processo por coerção na pornografia por ter sido forçada à pornografia por ser agredida por conta de uma pornografia específica por difamação através da pornografia e por tráfico na pornografia DWORKIN MACKINNON 1988 O texto sustenta ainda que a motivação de recrutadores a cometer abusos muitas vezes via tráfico de pessoas20 é predominantemente financeira constituindo a vil estrutura do 17 Através de uma análise estatística das cenas constatouse que há agressão física em 882 das cenas e agressão verbal em 487 das cenas BRIDGES et al 2010 p 1075 Entretanto reforçamos que na perspectiva feminista mesmo quando agressões físicas eou verbais não ocorrem a subordinação completa do corpo da atriz aos homens do set ator pornógrafo e outros já configura violência sexual 18 Essas ideias podem surgir especialmente a partir da sistemática performance de atos masculinos violentos às mulheres nas cenas pornográficas McKee 2005 argumenta que nesse contexto a violência contra as mulheres é um subtipo e também um contribuidor causal à objetificação delas MCKEE apud BRIDGES et al 2010 p 1067 19 Tradução livre de According to this radical approach pornography is to be prohibited not because it depicts harm as it obviously does and not because it causes harm as some maintain but because it is harm MCGOWAN 2005 p 28 grifo da autora 20 Dos milhões de vítimas globais de tráfico humano pouco menos de um quarto cerca de 22 são traficados para atos sexuais Esses 22 ganham um gritante 66 dos lucros do tráfico global ILO 2014 De acordo com o Relatório da ONU de 2018 72 das pessoas traficadas para fins sexuais são mulheres ou meninas UNODC 2018 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 168 mercado pornográfico Por isso qualquer legislação que busque 1 desincentivar e desestabilizar a indústria pornô e 2 compensar a vítima pelo dano sofrido nessa circunstância21 deve prever este tipo de ação no âmbito civil abarcando esses casos de modo distintivo A importância da especificação é assim explicada Ter uma causa de ação significa que há um direito contra o que ocorreu então podese processar As vítimas não têm que lutar primeiramente se elas são permitidas a processar ou não da maneira como as mulheres agora sem o regulamento têm que lutar quando querem deixar de ser feridas pela pornografia Com uma causa de ação basta provar que o que a lei prevê aconteceu com você22 DWORKIN MACKINNON 1988 p 41 Contrário ao anteprojeto antipornografia o jurista e filósofo do Direito Ronald Dworkin 1993 argumenta que o Estado não deve adotar nenhuma iniciativa sobre a questão por considerar que a liberdade de expressão deve ser compreendida e defendida como uma liberdade fundamental em um sentido negativo o Estado portanto deve absterse de legislar sobre o conteúdo dos bens simbólicos que circulam na sociedade DWORKIN 1993 p 105 A partir disso o autor parece ignorar a dimensão concreta da pornografia indissociável na prática da esfera simbólica De outra parte Dworkin 1993 e McKinnon 1993 entendem que o Estado sendo capaz de adotar medidas favoráveis ao grupo menos poderoso assim deve proceder Ou seja promover a liberdade substancial e não aquela abstratamente pensada requer da instituição estatal realizar uma escolha dar mais valor à vida e à integridade física e psicológica das mulheres do que às ideias dos homens sobre elas 21 O propósito da indenização em ações judiciais é indenizar a vítima pela lesão Embora seja impossível realmente compensar qualquer pessoa pelos danos da pornografia também é impossível compensar verdadeiramente a lesão por difamação morte por negligência desmembramento negligência médica e a maioria dos outros danos pessoais que são compensados o tempo todo O ponto específico de danos sob esta lei de direitos civis é duplo reconhecer que algo que pertencia à vítima foi erroneamente tirado dela e fornecer restituição nos mesmos termos que deram aos pornógrafos um incentivo para levála em primeiro lugar DWORKIN MACKINNON 1988 p 55 Tradução livre de The purpose of money damages in lawsuits is to compensate the victim for the injury While it is impossible truly to compensate anyone for the harm of pornography it is also impossible truly to compensate for the injury of libel wrongful death dismemberment medical malpractice and most other personal injuries that are compensated all the time The particular point of damages under this civil rights law is twofold to recognize that something that belonged to the victim was wrongly taken from her and to provide restitution in the same terms that provided the pornographers with an incentive to take it in the first place DWORKIN MACKINNON 1988 p 55 22 Tradução livre de To have a cause of action means that there is a law against what happened so one can sue The victims do not have to first fight about whether they are permitted to sue or not the way women now without the Ordinance have to fight when they want to stop being hurt by pornography With a cause of action one only has to prove that what the law provides for has happened to you DWORKIN MACKINNON 1988 p 41 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 169 14 As estruturas econômicas da pornografia o caso brasileiro por Heleieth Saffioti Para melhor aproximar a proposta das autoras estadunidenses à realidade brasileira buscase situar o complexo prostituiçãopornografia utilizando a obra da socióloga feminista brasileira Heleieth Saffioti 1985 Segundo ela o patriarcado não se resume a um sistema sociopolíticoideológico mas apresenta também uma forte dimensão econômica SAFFIOTI 1985 p 104 A autora se debruça sobre o funcionamento do sistema capitalista e patriarcal pelas lentes do materialismo histórico concluindo que a divisão sexual do trabalho que subordina mulheres a homens é originária da interrelação do patriarcado enquanto sistema político ideológico com o capitalismo modelo de produção e reprodução da vida Como não é possível isolar esses institutos do ponto de vista estrutural instituise aí o que a autora denomina de capitalismopatriarcado central ao aprofundamento do debate sobre pornografia como veremos O processo de industrialização e urbanização do Brasil na década de 1970 ilustra bem a forma pela qual essa interrelação se articula Com o início de uma política de rebaixamento dos salários no quadro da ditadura civilmilitar brasileira o ônus desse sistema altamente discriminatório às mulheres se evidencia em dados estatísticos Demonstra Saffioti as diferenças salariais entre homens e mulheres tornaramse muito mais pronunciadas em 1976 do que eram em 1970 De um rendimento médio de 612 do masculino em 1970 as mulheres passaram a auferir em média apenas 486 do que percebiam os homens em 1976 O fosso foi portanto ampliado de quase treze pontos percentuais o que redundou em rendimentos médios femininos inferiores à metade dos rendimentos médios masculinos SAFFIOTI 1985 p 135 A explicação para essa aguda diferenciação salarial e de empregabilidade entre os sexos está na gestão patriarcal da lógica do capital A simbiose patriarcadocapitalismo flexibiliza a maximização de lucro que seria possível pela incorporação massiva da força de trabalho feminino por menores salários para priorizar a alocação delas nos aparelhos de reprodução a fim de salvaguardar em primeiro lugar a reprodução da família trabalhadora explorando em grau mais intenso a força de trabalho feminino quando dela necessita e nas proporções em que dela precisa SAFFIOTI 1985 p 139 Estabelecese assim a dupla opressão feminina do nosso tempo na produção mais exploradas do que homens na reprodução por eles subjugadas Esse estado de opressão feminina em termos de classe garante a base material para o envolvimento de uma mulher na pornografia ou na prostituição Todavia não se trata de uma relação direta de causalidade Há que se levar em consideração fatores importantes que Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 170 constrangem mulheres a essas instituições além do critério estrutural econômico Aqui se insere por exemplo a variedade de fraudes adotadas pelo tráfico internacional de pessoas Aproveitandose muitas vezes da falta de informação inúmeras promessas falsas dos traficantes são direcionadas sobretudo a mulheres jovens de países periféricos ou semiperiféricos que veem a realização de um sonho23 na oportunidade de trabalhar em um país central como examinado em detalhes por MacKinnon 2005 No Brasil país de semiperiferia do capitalismo a discriminação às mulheres na produção é ainda mais evidente que na maioria dos países centrais SAFFIOTI 1985 o que facilita o direcionamento de algumas delas ao complexo prostituiçãopornografia nacional e internacional Nessa condição recrutadores de mulheres perpetuam seus negócios conscientes do poder do dinheiro para atraílas a esse tipo de transação Depois de cooptadas dificilmente conseguem sair da situação de violência em que se encontram Procurase esmiuçar aqui a condição da força de trabalho feminina brasileira como constituinte de uma das premissas a vulnerabilidade econômica para a movimentação de instituições que capitalizam mulheres Depreendese que mesmo quando a pornografia for o caminho de uma escolha ela é resultado da opressão econômica mas não só econômica realizada ante a supremacia masculina assim como a prostituição o é Outras variáveis discriminatórias de natureza sexual como gravidez seguida de abandono paterno também devem ser observadas Ainda sobre o caso brasileiro chama à atenção a naturalidade com que o atual Governo aborda o chamado turismo sexual representando explicitamente o aval do Estado sobre a erotização capitalizada de corpos femininos Proferiu recentemente o Presidente da República se alguém quiser vir aqui fazer sexo com uma mulher fique à vontade RANGEL GADELHA 2019 Diante de tal insensibilidade esperase que a sociedade civil brasileira possa se importar com o problema já que o Estado brasileiro parece estar longe de fazêlo CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante a presente pesquisa o objeto foi explorado com o suporte da filosofia política de Carole Pateman buscando colocar em perspectiva as violências praticadas contra as mulheres no âmbito da indústria pornografia Os dados comprobatórios do tamanho desta impulsionaram a investigação do que está por trás desse fenômeno Nesta esteira utilizouse de 23 Fui com uma mala cheia de sonhos Assim brasileiras são transformadas em escravas sexuais na Espanha Disponível em httpsbrasilelpaiscombrasil20170418internacional1492537286311397html Acesso em 20 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 171 Andrea Dworkin para contextualizar a existência da instituição e seu caráter opressivo com o sexo feminino A seguir Catharine Mackinnon foi trazida a fim de orientar uma proposição jurídica cabível Para avaliar essas questões à luz da realidade brasileira Saffioti foi incorporada ao trabalho deslocando a discussão para as estruturas econômicas que condicionam a existência útil do complexo prostituiçãopornografia Considerando esses objetivos centrais da pesquisa cumpridos pelo uso de dados empíricos e através de revisão bibliográfica julgase que o trabalho ampliou a compreensão sobre a problemática proposta visto que a pornografia seu modo de funcionamento e suas consequências ainda são pouco estudadas no Brasil Entendese que para um efetivo combate à violência contra a mulher é preciso ampliar o olhar a situações geralmente irrefletidas pela sociedade Assim observando a naturalização de comportamentos e instituições variadas que fomentam a subcidadania feminina a pesquisa também se caracteriza enquanto uma provocação especialmente para a comunidade jurídica que se ocupa do problema de gênero A responsabilidade que o Direito e seus operadores têm é de mudar esse paradigma opressor frente ao fato indiscutível de que a pornografia tem se tornado uma máquina cada vez maior de mercantilização de corpos femininos A cidadania da classe de mulheres não conseguirá ser atingida em sua plenitude enquanto uma parcela dela for reservada à venda Dessa forma enfatizase que a proposta apresentada não consiste em ampliar o poder punitivo estatal com seus cidadãos mas sim promover um aporte jurídico sob o qual as vítimas dos abusos da indústria pornográfica poderão se amparar considerando a atual lacuna do direito brasileiro sobre o tema O Estado tem o dever de garantir os direitos e facilitar o acesso à justiça nesses casos de modo similar ao avanço atingido frente à legislação de assédio sexual no trabalho Ressaltase que a abordagem que perpassou a problemática exposta é a do feminismo radical Porém o problema da pornografia não fica limitado ao estudo nesse molde diante da evidente necessidade de discutir a matéria pelas mais variadas vertentes feministas e principalmente de agir sobre essa realidade Por fim deixase exposto o desejo primordial de que o debate acerca do tema aconteça não só no ambiente acadêmico mas principalmente fora dele Essa análise surgiu também do poderoso esforço para que a sociedade como principal agente transformador se perceba no dever de combater urgentemente as brutalidades cometidas contra as mulheres e de questionar o sistema opressor atual para enfim rejeitálo definitivamente Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 172 REFERÊNCIAS ANTHONY Sebastian Just how big are porn sites 2012 Disponível em httpswwwextremetechcomcomputing123929justhowbigarepornsites Acesso em 10 ago 2019 BEAUVOIR Simone de O segundo sexo Rio de Janeiro Nova Fronteira 2008 BERCHT Gabriela Pornografia e atos de fala o debate entre Judith Butler e Catharine MacKinnon Universidade Federal do Rio Grande do Sul Instituto de Ciências Humanas e Filosofia Departamento de Filosofia 2016 BRIDGES Ana J 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reprodutivos delas leva à uma série de violências contra as mulheres especialmente aquelas oriundas de grupos mais vulnerabilizados Procura compreender a regulação do tema no Poder Legislativo levando em conta um breve percurso histórico pela presença das mulheres na Assembleia Nacional Constituinte e no Poder Judiciário ressaltando a importância de seu papel contramajoritário na afirmação de direitos de grupos vulnerabilizados Nesse ponto busca compreender especialmente o ineditismo da ADPF 442 e quais os seus impactos para a delimitação do tema no país Utiliza metodologia de revisão bibliográfica bem como pesquisa jurisprudencial e de peças processuais para atingir os fins aos quais se propõe Conclui que embora o papel do Poder Judiciário na implementação de direitos seja tema controverso é fundamental avaliar essa via como um importante caminho para mudar os rumos desse tema sensível e polêmico afastandoo das perspectivas morais ou religiosas e aproximandoo dos direitos fundamentais previstos pela Constituição Federal de 1988 Palavraschave Violência contra mulher Descriminalização do aborto Direitos Sexuais e Reprodutivos ADPF 442 INTRODUÇÃO Este artigo pretende avaliar a questão do aborto no Brasil partindo do pressuposto que a criminalização da prática precisa ser repensada à luz de alguns critérios Em primeiro lugar leva em consideração com respaldo em pesquisas estatísticas sobre o tema que o aborto é um fato natural da vida das mulheres e que a disposição legal sobre o tema ignora a autonomia das mulheres e a importância do pleno gozo do exercício dos direitos sexuais e reprodutivos para sua autonomia o que se consolida como uma violência de gênero em última análise Depois partindo do pressuposto de que a questão do aborto deve ser tratada como um assunto de saúde pública passa a discorrer sobre a tratativa do tema na Assembleia Nacional Constituinte pelo 1 Estudante Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná Integrou a Clínica de Direitos Humanos do Programa de PósGraduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná PUCPR Integrou o Grupo de Pesquisa e Extensão Antígona da Universidade Federal do Paraná UFPR Email durtado19gmaillcom Link do lattes httplattescnpqbr0703949265126394 2 Advogada Especialização em andamento em Direito homoafetivo e de gênero pela Universidade de Santa Cecília UNISANTA Especialista em Políticas Públicas e Justiça de Gênero pelo Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais CLACSO Graduada em Direito pela Universidade Federal do Paraná Pesquisadora da Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal do Paraná CDH UFPR Email marisparisgmailcom Link do lattes httplattescnpqbr9751550314762427 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 176 Poder Legislativo a regulação da matéria no Código Penal brasileiro e por fim interpreta o papel do Supremo Tribunal Federal STF para decidir sobre o tema O estudo parte da premissa de que a participação no espaço público reflete as demandas que são priorizadas rememorando a Assembleia Nacional Constituinte de 19871988 para lembrar da participação das mulheres na construção do texto constitucional e investigar o que integrou a pauta ainda que de forma tímida sobre o aborto Em seguida analisa o Poder Legislativo para evidenciar o contexto atual de assimetria das representantes no Congresso Nacional e das pautas legiferantes em relação ao aborto Posteriormente busca compreender o quadro normativo sobre o aborto no Brasil hoje discorrendo ainda que brevemente sobre as dificuldades de acesso a direitos já reconhecidos pela legislação tais como o aborto legal Indica nesse sentido as violações de direito que sofrem as mulheres ao tentar recorrer aos procedimentos previstos na legislação e como isso se consolida em um ataque à autonomia das mulheres Por fim discorre a respeito da judicialização da questão do aborto no Brasil buscando compreender os precedentes do STF sobre a questão Especialmente no que diz respeito à ADPF 442 busca compreender seu ineditismo e seu importante papel para a consolidação dos direitos das mulheres pautado pela função contramajoritária a qual incumbe à suprema corte brasileira Em sendo assim este artigo busca compreender de que forma o tema do aborto é tratado pelas diferentes esferas de poder com enfoque na judicialização da questão e nas novas perspectivas possíveis a partir do ineditismo da ADPF 442 Tem por objetivo refletir criticamente a respeito da regulação sobre o aborto no Brasil bem como os reflexos da participação feminina na Assembleia Nacional Constituinte analisar a participação das mulheres e dos movimentos feministas no Poder Legislativo de que forma elas podem impactar na concretização via legislativo dos direitos das mulheres e compreender qual o papel do Poder Judiciário para proteger direitos fundamentais Essa análise se justifica especialmente porque o tema é controverso e polêmico na sociedade brasileira mas sobre o qual é fundamental refletir longe das paixões ou influências religiosas ou morais Analisar criticamente a questão do aborto é buscar compreender os complexos fatores jurídicos que influenciam o tema sobretudo compreender qual é a proporcionalidade da criminalização diante dos bens jurídicos que supostamente visa proteger Avaliar o aborto como uma questão de saúde pública e sua criminalização como um fator de vulnerabilização torna possível enxergar essa medida como uma violência praticada contra as mulheres no cerceamento de seus direitos sexuais e reprodutivos Nesse aspecto compreender Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 177 a judicialização do tema para a garantia dos direitos fundamentais das mulheres é uma etapa imprescindível Para isso essa empreitada valeuse de ampla revisão bibliográfica sobre o tema fundada em autoras e autores que discorrem sobre os conflitos jurídicos inerentes à questão e estudos alinhados ao constitucionalismo feminista além da investigação das peças processuais que compõem a ADPF 442 bem como análise jurisprudencial das decisões do STF em temas correlatos Para isso em um primeiro momento será analisada a participação das mulheres na Assembleia Nacional Constituinte após serão tecidas importantes considerações sobre a configuração do Poder Legislativo atual e de que forma tem se regulado a questão do aborto Diante dessas conclusões esse estudo se dedica à análise do quadro regulador do aborto no Brasil e as novas perspectivas para concretização dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres por fim avalia o papel do Poder Judiciário e especialmente a ADPF 442 Entendese que dessa forma o presente artigo pode contribuir para a reflexão crítica sobre o tema e avançar na discussão sobre os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres Compreender a questão do aborto distante das perspectivas religiosas ou morais significa reconhecer a necessária compatibilização entre direitos fundamentais e abre caminhos para que isso seja feito de acordo com os princípios consolidados pela Constituição Federal 1 A PARTICIPAÇÃO DAS MULHERES NA ASSEMBLEIA NACIONAL CONSTITUINTE A mobilização feminista dos anos de 1970 percebida como segunda onda inserese no contexto da ditadura civilmilitar 19641985 e aparece no Brasil comprometida com a luta pelas liberdades democráticas O movimento feminista e de mulheres guarda portanto intrínseca relação com a democracia que se avistava no horizonte porquanto o processo de redemocratização abriu caminho para novas militâncias que ampliaram os embates políticos e a relação dos movimentos sociais com o Estado fortalecendo também os grupos ativistas dos direitos da mulher MORAES 2015 p 17 As mulheres buscaram e buscam constitucionalizar as demandas que vinham reivindicando historicamente Isso faz parte de uma visão neoconstitucionalista na qual a vertente do próprio constitucionalismo feminista se insere e é característica dos novos processos de construção democrática no contexto da América Latina SILVA WRIGHT 2015 p 172 A Constituição da República Federativa do Brasil teve a gênese do seu texto construída entre 1987 e 1988 com a instalação da Assembleia Nacional Constituinte no plenário da Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 178 Câmara dos Deputados Insta lembrar que no panorama constitucional o poder constituinte é tradicionalmente a fonte da qual a nova ordem constitucional brota É o poder de fazer a nova Constituição da qual os poderes constituídos adquirem a sua estrutura o poder constituinte instala uma ordem jurídicoconstitucional totalmente nova CHUEIRI GODOY 2010 p 170 Dentre o total de 559 parlamentares constituintes apenas 26 eram mulheres Nas reuniões as parlamentares foram registradas sentadas juntas e de mãos dadas simbolizando a união que tinham para enfrentar o ambiente majoritariamente masculino Para além da diferença de participação foi percebido um plenário que não contava com banheiros femininos O espaço em que seriam discutidas todas as propostas que culminaram com a promulgação do texto da Carta Maior simplesmente não esperava por mulheres Não obstante a representação feminina foi apelidada de lobby do batom em clara estigmatização de suas presenças no debate público A emblemática expressão já indiciava os percalços do caminho Vale destacar que o Lobby do batom foi uma classificação feita pelos próprios parlamentares a partir de um amplo recurso à ironia pois no meu entender foi uma tentativa de minimizar senão ridicularizar as contribuições das mulheres no processo constituinte Pode ser entendido como uma marca misógina que tentou desqualificar a importância deste momento em nossa história política em relação à atuação das mulheres reduzindoas a seus corpos e aos artifícios utilizados para sedução PIMENTA 2010 p13 A voz e a vez das mulheres neste momento contou com a campanha Constituinte pra Valer tem que ter Palavra de Mulher enaltecida pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher CNDM criado em 1985 pela Lei 7353 com a finalidade de promover em âmbito nacional políticas para a eliminar a discriminação da mulher assegurandolhe condições de liberdade e de igualdade de direitos bem como sua plena participação nas atividades políticas econômicas e culturais na época vinculado ao Ministério da Justiça hoje ao Ministério dos Direitos Humanos O CNDM criou ainda a Comissão da Mulher para acompanhar e dar suporte aos trabalhos durante Constituinte de 1987 Neste ponto é necessário ressaltar que há uma diferenciação no que se entende por movimento feminista e por movimento mulheres na medida em que o primeiro possui um comprometimento com as pautas específicas para mulheres enquanto o segundo não necessariamente MORAES 2015 p 17 A mobilização resultou ainda na escrita da Carta das Mulheres aos Constituintes endereçada ao Presidente da Assembleia Nacional Constituinte Ulysses Guimarães PMDB A carta continha desde reivindicações gerais como a igualdade até mais específicas no âmbito Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 179 da família do trabalho da saúde e muitas outras Atenção voltase aos pleitos setorizados na parte da saúde que assinalam vedação ao Estado de qualquer ação impositiva que interfira no exercício da sexualidade bem como a garantia do livre exercício da maternidade como o direito de evitar ou interromper a gravidez sem prejuízo para a saúde da mulher CNDM 1897 O conflito do aborto foi suscitado discretamente ainda como pano de fundo de discussões da previdência para abordar o planejamento familiar e o direito da mulher decidir quantos e se deseja ter filhos BRASIL 1987 p 194 195 Das Atas de Comissões documentos de registro da Assembleia Nacional Constituinte notase que da reunião da Comissão da Família da Educação da Cultura e Esportes Ciência e Tecnologia e da Comunicação foi discutido o acréscimo da expressão desde a concepção a proteção à vida Isso para evitar qualquer controvérsia de que o texto admitisse interpretação de prática do aborto A discussão levou em conta a proposta que em sentido contrário previa as hipóteses em que o aborto seria permitido BRASIL 1987 p 56 Sobre o direito à interrupção voluntária da gravidez os parlamentares constituintes deixaram a questão em aberto não dispondo sobre a extensão de proteção à vida e sobre o exercício de escolha da mulher É importante ressaltar que a dificuldade de enfrentamento dessa pauta dáse por diversos fatores Dessa forma pontuase A socióloga Eva Blay professora da USP e participante do movimento feminista desde antes da redemocratização explica que a discussão sobre o aborto foi levada à Constituinte porém rejeitada Segundo ela não foi apenas a rejeição de grupos religiosos ou conservadores que impediu a inclusão do tema na Constituição A sociedade como um todo possui uma aversão a esse debate BRASIL 2018 p69 2 A PAUTA DO ABORTO NO PODER LEGISLATIVO ATUAL Em relação ao Poder Legislativo é possível dizer que funciona como um dos poderes de maior cunho democrático dado seu aspecto de eleição de representantes Entretanto o perfil do legislativo atual deixa a questão controvertida dada a crise da correlação de representação entre os ocupantes dos cargos e os cidadãos e cidadãs No Brasil apenas 11 das cadeiras do Parlamento são ocupadas por mulheres conforme dados da Organização das Nações Unidas de 2017 O que deu ao país a 154ª posição no ranking da participação das mulheres no Congresso dentre os 174 países analisados São 55 dos 513 lugares da Câmara e 12 dos 81 do Senado Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 180 Esse panorama assimétrico ainda é encontrado embora passados 20 anos desde a publicação da Lei 9504 de 1997 a qual estipulou em seu artigo 10 3o que cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30 trinta por cento e o máximo de 70 setenta por cento para candidaturas de cada sexo Em 2018 o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade ADI 5617 de relatoria do ministro Edson Fachin versou sobre a proporcionalidade destinada ao fundo de campanha eleitoral para candidatas A ADI redigida pelo ProcuradorGeral da República explicita que o Brasil tem menos participação proporcional de mulheres no Poder Legislativo do que outras nações de menor consolidação democrática menor abertura política e cultural ou menor condição socioeconômica A ADI foi julgada procedente por maioria para ajustar para 30 como mínimo a mesma proporção prevista para cargos eletivos a ser destinado ao fundo partidário de campanha A participação de grupos nos espaços de poder reflete as demandas os anseios e prioridades daquilo que é posto em pauta Tendo em vista o cenário de representação feminina alarmante opções legislativas e direcionamentos judiciários de incentivo são uma tentativa para atingir maior isonomia materializar o princípio da igualdade conquanto possa ser discutido sua efetividade ou não Inúmeras propostas sobre a questão do aborto tramitam no Poder Legislativo ora com intuito de majorar o controle jurídico penal como aumento de pena para os crimes já previstos nos artigos 124 a 126 do Código Penal ou criar novos tipos penais ora para acrescentar à Constituição o direito à vida desde a concepção com fim de blindar uma possível permissão à interrupção voluntária da gravidez Alguns dos exemplos recentes o PL n 556 de 2019 para elevar a pena do crime de aborto provocado por terceiro com o consentimento da gestante e criar nova causa de aumento de pena o PL nº 2574 de 2019 criminaliza o aborto provocado que seja motivado pela má formação fetal PEC nº 292015 altera a Constituição Federal para acrescentar no art 5º a explicitação inequívoca da inviolabilidade do direito à vida desde a concepção Noutra via exemplo de proposta no sentido de inaugurar nova causa de excludente de ilicitude em relação ao tipo é a Sugestão Legislativa nº 15 de 2014 a qual visava regular a interrupção voluntária da gravidez dentro das doze primeiras semanas de gestação pelo sistema único de saúde que foi posteriormente arquivada Em que pese o consenso advindo do movimento feminista de que a representação política importa é notável a influência de variados fatores em relação à agenda do aborto tais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 181 como a presença de questões religiosas à arena política e posicionamentos de viés conservador por isso a disputa pela regulação do aborto não é linear ou fixa mas ocorre em espaços sociais mais ou menos institucionalizados e envolve atores não estatais e atores estatais As estratégias e estruturas de mobilização mudam de acordo com o equilíbrio das oportunidades e restrições políticas que por sua vez são constantemente alteradas pela ação de movimentos e contramovimentos MACHADO MACIEL 2017 p 120 tradução livre3 4 A DISCIPLINA LEGAL DO ABORTO NO BRASIL Conforme Schiocchet e Barbosa 2013 p 354 o aborto no Brasil possui caráter constitucional já que se insere no âmbito do planejamento familiar previsto pelo art 226 7º da CRFB88 e Lei nº 926396 e também do direito à saúde art 196 da CRFB88 Tratase de uma questão ampla situada especialmente no campo da saúde pública entrecortada por questões de gênero e socioeconômicas Atualmente a prática do aborto não é considerada crime em três hipóteses Duas dessas hipóteses de excludentes de ilicitude do aborto praticado pelo médico estão inseridas no artigo 128 do Código Penal CP quando houver risco de vida para a mulher ou quando a gravidez for resultado de estupro A terceira circunstância deriva de decisão do Supremo Tribunal Federal STF Após julgamento da ADPF n 54 a corte declarou a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124 126 e 128 incisos I e II todos do CP com fulcro notadamente na inviabilidade da vida extrauterina e da preservação da saúde psíquica da gestante O direito ao aborto legal tem difícil implementação e encontrase ameaçado por iniciativas conservadoras que ganham cada vez mais força no Poder Legislativo brasileiro Além das iniciativas apontadas anteriormente as autoras apontam por exemplo o Estatuto do Nascituro PL n 4782007 como um verdadeiro retrocesso no tratamento dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres SCHIOCCHET BARBOSA 2013 p 354 já que prevê entre outras medidas a revogação das hipóteses de aborto legal prevê auxílio financeiro aos filhos cuja concepção decorrer da prática de estupro A chamada PEC da vida PEC 292015 do 3 the dispute over the regulation of abortion is not linear or fixed but occurs in more or less institutionalized social spaces and involves nonstate actors feminist movements and other social movements trade unions religious medical and legal organizations and health professionals and state actors state bureaucracies of public policy staff members of congress judges and judicial officers Mobilization strategies and frames change according to the balance of political opportunities and restrictions which in turn are constantly altered by the action of movements and countermovements In MACHADO Marta Rodriguez de Assis MACIEL Débora Alves The Battle over Abortion Rights in Brazils State Arenas 19952006 Health and Human Rights Journal Sl vol 19 p 119131 jun 2017 p 120 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 182 exsenador Magno Malta ES foi desarquivada no início deste ano e em abril de 2019 recebeu relatório favorável da Senadora Juíza Selma PSLMT que argumenta que o direito à vida desde a concepção é o direito principal de todos os direitos humanos4 Segundo Schiocchet e Barbosa 2013 p 355 inobstante as diretrizes previstas pelo Ministério da Saúde5 que orientam o cuidado humanizado ao abortamento legal elas são rotineiramente desrespeitadas de modo sutil sendo correntes os atos de discriminação contra a mulher pela escolha de realizar o abortamento o que potencializa a sua vulnerabilidade Diante das dificuldades de implementação da legislação vigente e das mais diversas violências às quais as mulheres estão submetidas sobretudo na consolidação de seus direitos sexuais e reprodutivos é fundamental discutir a questão do aborto no Brasil como uma questão diretamente relacionada à autonomia e à cidadania delas alinhada à melhoria da saúde pública e ao planejamento familiar 3 O ABORTO E O EXERCÍCIO PLENO DA AUTONOMIA DAS MULHERES Diante desse cenário é importante destacar a importância da plena garantia dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres para o total exercício de sua dignidade e autonomia Nesse sentido o ordenamento jurídico brasileiro expressamente reconhece a igualdade de gênero já que elenca como um de seus objetivos fundamentais a promoção do bem estar de todos sem preconceitos de origem raça sexo cor idade e quaisquer outras formas de discriminação O art 5 da CRFB88 estabelece que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações No âmbito internacional o Brasil ratificou uma série de Convenções que obrigam o Estado a se comprometer com a igualdade de gênero e o combate à violência contra a mulher A Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a mulher e a Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher Convenção CEDAW preveem um importante catálogo de direitos a serem assegurados às mulheres especialmente para que tenham uma vida livre de violências tanto no âmbito público quanto privado A Convenção de Pequim por exemplo prevê que o reconhecimento explícito e a reafirmação do direito de todas as mulheres de controlar todos os aspectos de sua saúde em particular sua própria fertilidade é básico para seu fortalecimento Essas Convenções são 4 Ao expressamente considerar que o direito à vida deve ser protegido desde a concepção admitese a exclusão das hipóteses de aborto legal e o prejuízo aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres Ver httpswww12senadolegbrnoticiasmaterias20190424propostadeemendaaconstituicaocontraaborto seravotadadia8demaionaccj 5Atualmente há duas normas técnicas elaboradas pelo Ministério da Saúde MS sobre a questão dos serviços de interrupção voluntária da gravidez nos casos legalmente previstos Atenção humanizada ao abortamento 2010 e Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes 2012 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 183 importantes compromissos internacionais além de consagrar o dever do estado brasileiro como estadoparte de combater a violência contra a mulher É a partir deste arcabouço principiológico que se desenvolve hoje o constitucionalismo feminista SILVA BARBOSA FACHIN 2019 p 71 o qual considera a pauta do aborto uma importante discussão inserida na temática dos direitos humanos cuja disputa pela descriminalização se fundamenta nos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres no direito fundamental à liberdade e à autodeterminação assim como a integridade física e psíquica Nesse sentido é fundamental destacar que o aborto é um evento comum na vida reprodutiva das brasileiras É isso que revelou a Pesquisa Nacional do Aborto PNA desenvolvida pela Anis Instituto de Bioética6 A PNA de 2016 indicou que 1 em cada 5 mulheres até os 40 anos já realizou um aborto no Brasil Além disso a pesquisa mostrou que em 2015 aproximadamente 416 mil mulheres realizaram o procedimento e que houve maior frequência do aborto entre mulheres de menor escolaridade pretas pardas e indígenas vivendo nas regiões Norte Nordeste e CentroOeste O principal método eleito pelas mulheres como já havia indicado a PNA 2010 foi a utilização de medicamentos Outro dado alarmante é que quase a metade das mulheres precisou ficar internada para finalizar o aborto e diversos casos noticiados amplamente pela mídia revelam os perigos dos procedimentos ilegais e inseguros realizados no Brasil7 A criminalização do aborto relega as mulheres a um cenário de vulnerabilidade e marginalização submetendoas a diversas e amplas formas de violência aprofundadas conforme os recortes de classe raça idade etnia posição em relação aos centros das metrópoles entre outros marcadores Diretamente relacionada à questão da violência contra mulher a criminalização do aborto reforça uma série de padrões de estereótipos de gênero com vistas a uma suposta proteção da vida que na prática não se concretiza Isso porque essa 6 Pesquisa Nacional do Aborto foi realizada pela Universidade de Brasília e pela Anis Instituto de Bioética com financiamento do Ministério da Saúde e Fundo Elas Em 2010 quando foi realizada a primeira edição da pesquisa o estudo recebeu o prêmio de excelência em literatura sobre saúde pela Organização Pan Americana de Saúde Prêmio Fred L Soper DINIZ Debora MEDEIROS Marcelo MADEIRO Alberto Pesquisa Nacional de Aborto 2016 Cien Saude Coletiva v 22 n 2 p 653660 2017 Disponível em httpdxdoiorg1015901413 8123201722223812016 Acesso em 25 fev 2017 7 Mulher morre durante aborto clandestino em Montes Claros O Tempo Minas Gerais 25dez2018 Disponível em httpswwwotempocombrcidadesmulhermorreduranteabortoclandestinoemmontesclaros 12084494 Jovem é encontrada morta após fazer aborto em clínica clandestina em Benfica G1 Extra Rio de Janeiro 23ago2018 Disponível em httpsextraglobocomcasosdepoliciajovemencontradamortaapos fazerabortoemclinicaclandestinaembenfica19981158html Grávida de quatro meses morre após fazer aborto em casa e suspeita de realizar procedimento é presa G1 Região Serrana Rio de Janeiro 20jul2018 Disponível em httpsg1globom clínica clandestina em Benficacomrjregiaoserrananoticia20180720gravidade quatromesesmorreaposfazerabortoemcasaesuspeitausartalodemamonaepresaghtml Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 184 discussão é absolutamente permeada por argumentos morais e religiosos que obscurecem as importantes questões de saúde pública inerentes ao debate e as violações dos direitos das mulheres Assim a defesa da igualdade de gênero e o combate ao fim da violência contra a mulher não pode prescindir do direito à tomada de decisão sobre o próprio corpo já que o pleno gozo dos direitos sexuais e reprodutivos é crucial para a consolidação da autonomia e dignidade das mulheres A criminalização do aborto é ofensiva à dignidade da mulher em suas mais complexas dimensões já que se mostra como um mecanismo de controle dos corpos femininos Por isso a questão do aborto deve ser enfrentada pelo Poder Judiciário especialmente em uma democracia constitucional na qual as supremas cortes tem por função inexorável um poder contramajoritário de proteção dos grupos vulnerabilizados Neste cenário a ADPF n 442 adquire especial relevância 4 O PAPEL DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL E O INEDITISMO DA ADPF 442 Como se vê a questão do aborto no Brasil é um dos temas mais polêmicos e controversos da atualidade Com baixa aderência das pautas feministas no Congresso Nacional a agenda das mulheres especialmente no que diz respeito aos seus direitos sexuais e reprodutivos bate às portas do Judiciário brasileiro Inobstante os argumentos que reputam ilegítimo o papel contramajoritário do Supremo Tribunal Federal na proteção dos grupos vulnerabilizados esse é um entendimento já consolidado e respalda a atuação do tribunal constitucional para solidificar o estado democrático de direito e proteger os direitos fundamentais Parece este ser o caso da descriminalização do aborto tema sobre o qual a Corte foi instada a se posicionar por intermédio da Ação de Descumprimento Fundamental n 442 Antes da ADPF 442 Cook e Machado 2018 p 217 consideram que os precedentes do STF firmaram o entendimento de que o debate judicial sobre a descriminalização do aborto parte do pressuposto de que o art 1 da Constituição Federal garante às mulheres o livre exercício da cidadania Muito embora a discussão feita na ADPF 54 tenha sido a respeito da interrupção da gravidez nos casos de fetos anencéfalos as autoras apontam que a Corte avançou ao considerar os motivos pelos quais a descriminalização do aborto é fundamental para o exercício da cidadania das mulheres consistente com as noções que orientam a Constituição de 1988 Diante disso considerase que o Supremo Tribunal Federal abriu caminhos para a descriminalização do aborto pela via judicial Segundo as autoras o debate promovido pelo STF acerca dessa questão evidencia que a Corte constitucional brasileira tem de maneira louvável movido a questão para longe de uma Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 185 narrativa religiosa que impõe o sofrimento e a maternidade como fatos naturais e obrigatórios da vida da mulher para se aproximar de uma perspectiva constitucional segundo a qual o Estado deve promover e defender os direitos das mulheres à saúde e a uma vida livre de tortura ou tratamento desumano COOK MACHADO 2018 p 217 Ao reconhecer a importância dos direitos fundamentais das mulheres e de sua autonomia para o exercício da plena cidadania a Suprema Corte brasileira estabeleceu que a proteção do feto precisa ser compatibilizada com os direitos das mulheres indicando a partir de suas decisões anteriores que o direito à vida não é absoluto no ordenamento jurídico brasileiro Nesse sentido em março de 2017 o Partido Socialismo e Liberdade PSOL impetrou Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental ADPF 442 com pedido de medida cautelar pleiteando que o Supremo Tribunal Federal declare com eficácia geral e efeito vinculante a não recepção parcial dos art 124 e 126 do Código Penal para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras 12 semanas sob o argumento de que tais dispositivos legais são incompatíveis com a dignidade da pessoa humana a cidadania das mulheres e a promoção da não discriminação como princípios fundamentais da República além de violarem os direitos fundamentais das mulheres8 Para sustentar o pedido o partido político enfatiza que a prática do aborto é um fato normal da vida reprodutiva das mulheres e destaca a importância de circunscrever a discussão à dimensão jurídica e consequentemente à seguinte pergunta qual a proporcionalidade do poder coercitivo do Estado para coibir a interrupção voluntária da gravidez9 Os requerentes concluíram que não há objetivo constitucional legítimo na criminalização do aborto já que 1 o embrião ou feto não deve ser considerado uma pessoa constitucional devendo sua proteção darse na esfera infraconstitucional com fundamento na compreensão internacional do aborto e nos precedentes do STF sobre o tema 2 a criminalização do aborto é ofensiva à dignidade da mulher em suas mais complexas dimensões e destacam que recortes de por exemplo classe raça idade etnia posição em relação aos centros das metrópoles são fatores que aumentam essas violações 3 caso se admita que o 8 Na peça inicial o partido indicou como preceitos violados os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana da cidadania e da não discriminação bem como os direitos fundamentais à inviolabilidade da vida à liberdade à igualdade à proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante à saúde e ao planejamento familiar todos da Constituição Federal art 1o incisos I e II art 3o inciso IV art 5o caput e incisos I III art 6o caput art 196 art 226 7º para que seja declarada a não recepção parcial dos art 124 e 126 do Código Penal DecretoLei no 28481940 9Após traçar um histórico de cortes constitucionais de diversos países sobre a descriminalização do aborto O PSOL utiliza técnica desenvolvida por Verónica Undurraga para pensar a proporcionalidade e os diferentes estágios do raciocínio constitucional em casos substantivos Ver UNDURRAGA Verónica Proportionality in the constitutional review of abortion Law In COOK Rebecca J et al Orgs Abortion law in transnational perspective cases and controversies Philadelphia University of Pennsylvania Press 2014 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 186 embrião ou feto é dotado de direitos fundamentais o embate entre direitos fundamentais colocado pela criminalização do aborto não passa no teste de proporcionalidade que avalia a idoneidade a necessidade e a proporcionalidade da medida Em trâmite há mais de dois anos10 a ADPF conta até o momento com cinquenta e quatro pedidos de habilitação de amici curiae Entre eles treze manifestaramse em seus pedidos de habilitação de forma contrária ao requerimento impetrado pelo PSOL até o presente foram efetivamente habilitados o Partido Social Cristão PSC a União dos Juristas Católicos de São Paulo UJUCASP e o Instituto de Defesa da Vida e da Família IDFV todos contrários ao pedido formulado na inicial Nos dias 03 e 06 de agosto de 2018 foi realizada audiência pública para a qual se inscreveram mais de quinhentas entidades foram habilitadas cinquenta e duas expositoras Dessas dezessete manifestaramse contrariamente ao pedido formulado na peça inicial O restante posicionouse de forma favorável As expositoras habilitadas incluíam pessoas físicas com potencial de autoridade e representatividade organizações não governamentais sociedade civil e institutos específicos principalmente entidades da área de saúde institutos de pesquisa organizações civis e instituições de natureza religiosa e jurídica Cada expositora contou com vinte minutos para fazer suas colocações e para informar a Corte das perspectivas éticas morais religiosas e assim por diante A expressiva participação de órgãos públicos e entidades da sociedade civil nesta ação específica aponta para a relevância do tema e para o acirramento dos ânimos por ele provocado Revela sobretudo o ineditismo dessa ADPF especialmente no Brasil que se tornou o palco para discussão sobre principais argumentos e pontos críticos que envolvem a questão hoje Em análise preliminar dos pedidos de habilitação e das manifestações na audiência pública foi possível identificar os principais argumentos trazidos por aqueles que pleiteiam a posição de amicus curiae e pelas expositoras na audiência pública e consequentemente delinear inicialmente os principais pontos jurídicos em debate Resumidamente os principais argumentos da discussão jurídica até então identificados focamse em três eixos e são operados tanto para posições favoráveis quanto contrárias a os critérios de proporcionalidade e ponderação para propor soluções para o conflito entre o direito 10 Em novembro de 2017 a relatora Min Rosa Weber indeferiu pedido de medida cautelar de urgência que visava à suspensão de prisões em flagrante inquéritos policiais e andamento de processos ou decisões judiciais baseados na aplicação dos artigos 124 e 126 do código penal a casos de aborto voluntário realizado nas primeiras 12 semanas de gravidez Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 187 à vida e a autonomia das mulheres b o cenário internacional de regulação do aborto e finalmente c a legitimidade do STF no debate sobre o aborto Ressaltese que acima foram destacados os pontos importantes para circunscrever a discussão jurídica Foram explorados inúmeros argumentos de ordem religiosa ética moral biológica sem contudo incrementar propriamente a argumentação jurídica De um lado vêse a recorrência de temas ligados a perspectivas religiosas e o uso de instituições jurídicas para mascarar a defesa de estereótipos de gênero11 de outro notase a robustez dos movimentos sociais de mulheres para interferir e se posicionar na perspectiva de defesa e promoção dos direitos delas Não se ignoram portanto os impactos simbólicos e políticos dos argumentos de natureza não jurídica apenas se opta por delimitar o objeto de pesquisa aos aspectos acima identificados Por isso a ADPF 442 marca um importante momento na discussão sobre aborto no Brasil pelo ineditismo dos argumentos trazidos e pela relevância da judicialização desse tema no Brasil Em primeiro lugar é importante destacar que se nos precedentes do STF sobre o assunto como na ADPF n 5412 a discussão girou majoritariamente em torno da viabilidade da vida em potencial se há vida no período gestacional quando é o início dela a participação da sociedade civil na ADPF 442 têm possibilitado o ingresso de temas inéditos na discussão sobre a descriminalização do aborto Além do pedido inicial vigorosamente fundamentado nesses aspectos é pela atuação dos amici curiae e das expositoras na audiência pública que temas como a autonomia sexual e reprodutiva da mulher o direito a um aborto seguro além de argumentos jurídicos importantíssimos como a regulamentação do aborto em outros países e as normativas internacionais que orientam o tema foram aprofundados nesta discussão 11 Em sua manifestação na audiência pública e nos memoriais apresentados a União de Juristas Católicos de São Paulo UJUCASP por exemplo relaciona o aumento das gestações entre as adolescentes com a popularização dos bailes funks em regiões periféricas além de citar uma suposta Síndrome pósaborto responsável pelo aumento da frigidez entre as mulheres e pela frustração de seu instinto materno 12 O STF já se manifestou sobre temas correlatos à questão do aborto especialmente na ADPF 54 na ADI 3510 e no HC 124306 Em síntese na ADPF 54 STF declarou a inconstitucionalidade da tipificação como crime de aborto a interrupção da gravidez de feto anencéfalo A Suprema Corte considerou que a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos é atípica pois tais fetos não deveriam receber proteção jurídica considerando que não possuem expectativa de vida extrauterina ao julgar a ADI 3510 e aprovar a constitucionalidade da pesquisa com embriões o STF afirmou que a Constituição Federal não estabelece quando a vida humana tem início sendo esta uma questão externa para o enfrentamento da constitucionalidade da pesquisa com embriões humanos na decisão do HC 124306 tomada por maioria julgada em novembro de 2016 pela 1ª Turma o STF considerou que a interrupção da gravidez até o terceiro mês de gestação não pode ser equiparada ao aborto Seria assim hipótese de atipicidade Nessa última decisão embora não tenha efeitos vinculantes e nem em face de todos argumentos diversos foram trazidos à discussão tais como a desproporcionalidade da punição direitos sexuais e reprodutivos autonomia da mulher paridade entre os sexos integridade física e psíquica da gestante entre outros Esse cenário foi diverso das decisões anteriores que se concentraram na argumentação a respeito do início da vida e na definição da proteção à vida em potencial Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 188 Além disso a ADPF 442 é o primeiro pedido judicial para descriminalização do aborto com força vinculante e efeito contra todos No Brasil a ADPF 442 tornouse o palco da judicialização da questão do aborto com o aprofundamento de discussões que já tardavam no ordenamento jurídico vigente Nesse sentido a discussão posta nesta ação constitucional já se mostra um ganho consolidado para o movimento feminista e para a delimitação dos argumentos jurídicos sobre a questão A ADPF 442 já se mostra um importante passo na defesa e promoção dos direitos das mulheres sobretudo para a construção de uma cultura jurídica emancipatória entre os gêneros além de contribuir para a consolidação de uma sociedade mais justa e democrática CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto é possível compreender a complexidade da questão do aborto no Brasil Avaliar criticamente a participação feminina na Assembleia Nacional Constituinte e a presença das pautas das mulheres no Poder Legislativo indica a dificuldade de implementação dos direitos delas por essa via Especificamente no que diz respeito ao aborto compreendese a influência religiosa e moral que determina a legislação sobre o tema sobretudo no Poder Legislativo brasileiro Nesse cenário avulta a importância da jurisdição constitucional para a implementação de direitos Assim discorreuse amplamente sobre os fatores inéditos da ADPF 442 e a sua importância para delimitar o debate à esfera jurídica provocando o STF a se manifestar sobre o conflito entre direitos fundamentais e indicar se a criminalização da prática está de acordo com a CRFB88 O que o entendimento internacional sobre o tema indica assim como os precedentes do próprio Supremo é que é preciso ponderar o direito à vida diante do direito à autonomia das mulheres já que impedindo o seu pleno exercício o Estado chancela uma série de violências contra elas Contudo à guisa de considerações finais é importante destacar que o potencial do papel do Poder Judiciário para implementar ou aniquilar direitos é um tema tão controverso quanto fundamental Não há contudo resposta certeira somente a indicação de que é necessária a conjugação ponderada entre as matrizes que se opõem a toda forma de opressão em busca de posicionamentos emancipatórios e jamais reprodutores de desigualdades Especificamente no que diz respeito à consolidação dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e consequentemente à descriminalização do aborto é urgente a tarefa de enfrentar o tema a partir de perspectivas jurídicas arejadas críticas distante dos estereótipos de gênero critérios morais ou religiosos e principalmente alinhadas ao que dispôs a Constituição Federal Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 189 REFERÊNCIAS BRASIL Senado Federal 30 anos Constituição da cidadania reportagens de Cintia Sasse e Guilherme Oliveira 280 p Brasília 2018 BRASIL Câmara dos Deputados Constituição 20 anos Estado democracia e participação popular caderno de textos Brasília Edições Câmara 243 p Série ação parlamentar n 393 2009 BRASIL Câmara dos Deputados Assembleia Nacional Constituinte Atas de Comissões 11ª Reunião Ordinária Realizada em 10 de junho de 1987 Brasília DF 1987 BRASIL Supremo Tribunal Federal Ação Direta de Inconstitucionalidade 5617 Distrito Federal Do montante do Fundo Partidário destinado ao financiamento das campanhas eleitorais para a aplicação nas campanhas de candidatas Inconstitucionalidade Ofensa à igualdade e à nãodiscriminação Procedência da Ação Relator Edson Fachin Julgado em 15 de março de 2018 Publicado em 27 de março de 2018 Disponível em httpredirstfjusbrpaginadorpubpaginadorjspdocTPTPdocID748354101 Acesso em 25 ago2019 CONSELHO NACIONAL DOS DIREITOS DA MULHER CNDM Carta das Mulheres Disponível em httpwww2camaralegbratividade legislativalegislacaoConstituicoesBrasileirasconstituicaocidadaconstituintesa constituinteeasmulheresConstituinte2019871988 Carta20das20Mulheres20aos20Constituintespdf Acesso em 25082019 DINIZ Debora MEDEIROS Marcelo MADEIRO Alberto Pesquisa Nacional de Aborto 2016 Cien Saude Coletiva v 22 n 2 p 653660 2017 Disponível em httpdxdoiorrevistag10159014138123201722223812016 Acesso em 25 fev 2017 MACHADO Marta Rodriguez de Assis COOK Rebecca J Constitutionalizing abortion in Brazil Revista de Investigações Constitucionais Curitiba vol 5 n 3 p 185231 setdez 2018 DOI 105380rinc v5i360973 MACHADO Marta Rodriguez de Assis MACIEL Débora Alves The Battle over Abortion Rights in Brazils State Arenas 19952006 Health and Human Rights Journal Sl vol 19 p 119131 jun 2017 MACHADO Lia Zanotta O aborto como direito e o aborto como crime o retrocesso neoconservador Cad Pagu Campinas n 50 e17504 2017 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0104 83332017000200305lngptnrmiso acessos em 24 Abr 2019 Epub 06Jul2017 httpdxdoiorg10159018094449201700500004 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS ONU Women in Politics 2017 Disponível em httpswwwipuorgresourcespublicationsinfographics201703womeninpolitics 2017utmsourceInterParliamentaryUnion28IPU29utmcampaign550dedbec7 EMAILCAMPAIGN20170223utmmediumemailutmterm0d1ccee59b3 550dedbec7258891957 Acesso em 25 ago2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 190 PIMENTA Fabrícia Faleiros Políticas Feministas E Os Feminismos Na Política O Conselho Nacional Dos Direitos Da Mulher 19852005 Tese Doutorado em História Universidade de Brasília Brasília 2010 SILVA Christine Oliveira Peter da Constitucionalismo feminista Coordenadoras Christine Oliveira Peter da Silva Estafânia Maria de Queiroz Barboza Melina Girardi Fachin organizadora Bruna Novak Salvador Editora JusPodivm 2018 SILVA Salete Maria da JAY Sonia As Mulheres E O Novo Constitucionalismo Uma Narrativa Feminista Sobre A Experiência Brasileira Revista Brasileira de História do Direito eISSN 2526009X Minas Gerais v 1 n 2 p 170 190 JulDez 2015 SCHIOCCHET T BARBOSA A Tutela e efetividade do aborto legal reflexões jurídicas acerca da autonomia de adolescentes e do direito à objeção de consciência In Felipe Asensi Paula Lucia Arévalo Mutiz Roseni Pinheiro Org Direito e Saúde Enfoques Interdisciplinares 1ªedCuritiba Juruá 2013 v 1 p 351364 Disponível em httpsunisinosacademiaeduTaysaSchiocchet UNDURRAGA Verónica Proportionality in the constitutional review of abortion Law In COOK Rebecca J et al Orgs Abortion law in transnational perspective cases and controversies Philadelphia University of Pennsylvania Press 2014 MULHER morre durante aborto clandestino em Montes Claros O Tempo Minas Gerais 25dez2018 Disponível em httpswwwotempocombrcidadesmulhermorredurante abortoclandestinoemmontesclaros12084494 Acesso em 01ago2019 GRÁVIDA de quatro meses morre após fazer aborto em casa e suspeita de realizar procedimento é presa G1 Região Serrana Rio de Janeiro 20jul2018 Disponível em httpsg1globom clínica clandestina em Benficacomrjregiao serrananoticia20180720gravidadequatromesesmorreaposfazerabortoemcasae suspeitausartalodemamonaepresaghtml Acesso em 01ago2019 JOVEM é encontrada morta após fazer aborto em clínica clandestina em Benfica G1 Extra Rio de Janeiro 23ago2018 Disponível em httpsextraglobocomcasosdepoliciajovem encontradamortaaposfazerabortoemclinicaclandestinaembenfica 19981158htmlAcesso em 01ago2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 191 A INFLUÊNCIA DA MORAL RELIGIOSA NO DIREITO BRASILEIRO E AS CONSEQUÊNCIAS DA CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO Julia Sleifer Alonso1 Deisemara Turatti Langoski2 RESUMO O artigo trata sobre a influência da moral religiosa no direito brasileiro e as consequências da criminalização do aborto O trabalho desenvolve uma pesquisa bibliográfica por método dedutivo acerca do conceito de moral na filosofia jurídica principalmente da moral religiosa e a sua extensão nas relações do Estado e suas leis Tem como objetivo principal demonstrar a influência das religiões no Estado brasileiro especialmente no que diz respeito aos direitos das mulheres em específico aborda a temática da criminalização do aborto Nesse sentido foi possível concluir que são alarmantes os dados constatados sobre a problemática em função da ainda criminalização da prática de interrupção da gravidez De tal modo como também possível verificar um crescente envolvimento da igreja evangélica na política e nas decisões do Brasil afastando o conceito de Estado laico que ficticiamente permanece na Constituição Federal de 1988 PalavrasChave Moral Moral Cristã Filosofia Feminista Criminalização Aborto INTRODUÇÃO O presente trabalho visa desenvolver uma pesquisa analítica por pesquisa bibliográfica e método dedutivo acerca das políticas de gênero especificamente sobre a violência contra a mulher mais precisamente a respeito da ainda presente criminalização do aborto na sociedade brasileira Objetiva mostrar o envolvimento das religiões no Direito brasileiro igualmente as consequências que isso está trazendo para o país Em um primeiro momento o trabalho irá abordar a influência da moral cristã no legislativo e judiciário brasileiro seguindo de um paradigma sobre a criminalização do aborto assim como seus reais efeitos na sociedade Para ao final fazer uma análise do que seria o melhor para a sociedade brasileira tomando como ponto de partida o fato de haver a liberdade religiosa no país seu livre exercício e manifestação O trabalho também irá ter como base bibliográfica a filosofia feminista na qual Tiburi 2015 p 254 descreve que além de ser uma forma de ética consiste também em uma 1 Estudante da graduação do curso de Direito na Universidade Federal do Pampa Unipampa Campus Santana do Livramento juliasleiferalonsogmailcom Lattes httplattescnpqbr5003007476742764 2 Professora do Magistério Superior na Universidade Federal do Pampa Unipampa Campus Santana do Livramento Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC deisemaraturattiunipampaedubr Lattes httplattescnpqbr3978473576279102 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 192 crítica da metafísica do patriarcado Neste sentido assevera a autora que a filosofia feminista é um projeto que se estabelece na contramão da filosofia tradicional enquanto essa filosofia é metafísica patriarcal ancorada em um discurso acrítico A filosofia feminista neste sentido é necessariamente filosofia crítica Motivo pelo qual se utiliza destes conceitos para promover uma crítica reflexiva das estruturas ontológicas do patriarcado existente e submeter os discursos e as práticas relacionadas ao tema em estudo 1 CONSIDERAÇÕES SOBRE O DIREITO DAS MULHERES NO BRASIL Há pouco mais de cem anos estava em vigência a segunda Constituição brasileira de 1891 baseada ainda na cultura da mulher como propriedade privada do pai e após do marido porém é recente a desvinculação do marido nas legislações sobre as mulheres Foi apenas em 1962 com o Estatuto da Mulher Casada Lei nº 412162 que além de outras garantias previu não ser mais necessário a autorização do marido para que as mulheres pudessem trabalhar receber herança e requerer a guarda dos filhos em caso de separação A lei mudou mais de dez artigos no Código Civil vigente entre eles o artigo 6º que previa a incapacidade feminina para alguns atos E foi só em 1977 com a Lei n 6515 que as mulheres conquistaram o direito ao divórcio Desde o final do século XX com a redemocratização do Brasil houve uma nova era no que tange aos direitos fundamentais e à proteção dos Direitos Humanos se consolidando com a Constituição Federal de 1988 o direito das mulheres com maior ênfase em face ao patriarcado até então vigente nas normas brasileiras A desigualdade de gênero é uma afronta à igualização proposta pelos Direitos Humanos desde a sua fundação no século XVIII os três principais documentos sobre são um reflexo do social e da estreiteza em relação às diferenças de gênero COLLING 2015 p 159 E foi na mesma década de 1980 tempo de promulgação da Carta Maior 1988 que as mulheres começaram a poder exercer maiores papéis na sociedade do mesmo modo que seus direitos estiveram cada vez mais assegurados e garantidos Com a publicação do Código Eleitoral de 1932 no governo de Getúlio Vargas seguido da Constituição de 1934 as mulheres conquistam os direitos políticos e foi quando as alcançaram pela primeira vez o direito ao voto no Brasil Porém seguido de golpes de poder só puderam exercer de fato tais direitos com a redemocratização no final do século XX Já a França que criou a Declaração dos Direitos Humanos que pretendia ser universal foi o último país do ocidente a conceder o voto às mulheres sua cidadania política COLLING 2015 p 159 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 193 Com o novo Código Civil de 2002 as mulheres conquistaram importantes papéis dentro do poder familiar assim como a capacidade civil plena e igualdade de direitos civis Entretanto só em 2006 após anos de luta e enfrentamento da violência contra as mulheres que Maria da Penha depois de sofrer agressões do seu marido chegando ao nível de ficar paraplégica e tendo que recorrer à Corte Interamericana de Direitos Humanos que foi aprovada no Brasil a Lei n 11340 denominada de Lei Maria da Penha representando uma medida de pena para com o descaso do Estado brasileiro para com as políticas públicas relacionadas à gênero Referida lei define e criminaliza a violência contra a mulher prevê mecanismos de apuração e punição além de assinalar a necessidade de apoio e assistência A Lei n 13104 de 2015 traz mudanças significativas no Código Penal instituindo o crime de feminicídio Relevante pontuar todavia ser o âmbito penal no Brasil o mais reticente a revisões e alterações em normas claramente sexistas conservadoras e patriarcais Conforme Machado 2017 np desde 1996 o Brasil é signatário da Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher conhecida como Convenção de Belém do Pará também incorpora o Comitê CEDAW Comitê para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher e assina o Protocolo Facultativo que segue normas da Organização Mundial de Saúde com relação ao atendimento da mulher vítima de violência sexual e doméstica por exemplo Até o ano de 1890 o Estado brasileiro se considerava Católico Romano e foi com o Decreto nº 119A de janeiro de 1890 que o Brasil deixou de ter uma religião oficial então declarando sua separação oficial do Estado com a Igreja se tornando um país laico como prevê a Constituição Federal vigente Podese conceber a definição de laicidade da seguinte forma Por laicismo entendase a exclusão da religião da esfera pública de forma enfática sem qualquer penetração em ambientes estatais ZYLBERSZTAJN apud MACHADO 2017 np Porém o conceito de laicidade não fica muito bem definido nem para a sociedade nem para o Estado principalmente quando há o crescente envolvimento de religiões na política e sua importante influência nas decisões do Estado brasileiro Os números de religiosos envolvidos com a política se mostram cada vez maior como comprovam os dados nas eleições de 2018 Do mesmo modo é crescente o número de parlamentares na Bancada Evangélica segundo pesquisa realizada pela Carta Capital 2018 a atual Bancada Evangélica conta com 78 setenta e oito deputados federais totalizando um percentual de 15 quinze por cento do total da Câmara Federal Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 194 No entanto é junto com a era progressista de direitos fundamentais que parte da população brasileira vem adquirindo nos últimos anos que as igrejas têm tentado novamente aproximação com o processo político com a gestão governamental e nas decisões estatais De Destarte fica evidente seu o real envolvimento de entidades religiosas para com as políticas públicas sobretudo no que diz respeito às políticas de gênero envolvendo às de violência contra às mulheres 2 INFLUÊNCIA DA MORAL RELIGIOSA NO DIREITO BRASILEIRO Em contrapartida à era progressista com referência aos direitos das mulheres assim como a já antiga separação da igreja com o Estado brasileiro se tornando e auto definindo como um Estado laico nas últimas décadas podese notar o crescente envolvimento de líderes religiosos na política Estes no entanto não se apresentam como pessoas com credos para governar para todos mas como políticos autodeterminados religiosos e ambiciosos em conquistar importantes e altos cargos públicos para transcender seus dogmas religiosos nas políticas públicas e na gestão do Estado brasileiro De tal modo é o que se observa o caso da Bancada Evangélica citada anteriormente Machado 2017 np afirma haver um confronto da criminalização do aborto com a laicidade do Estado e que o aborto como crime e pecado está diretamente relacionado à família tradicional consagrada pela igreja eis que estabelece um lugar à mulher o qual é subordinado à reprodução da família Do mesmo modo até pouco mais de um século a mulher quando casada era considerada incapaz e seu marido respondia por ela ou antes do casório seu pai detinha a posse e administração de sua vida Conforme explica Tessaro 2017 p 27 Partindo do princípio de que o direito à vida é um dom recebido diretamente de Deus e que os homens são apenas administradores dela existe um consenso entre as crenças religiosas no que diz respeito ao caráter sagrado da vida Como sequência proíbese qualquer intervenção do homem sobre ela Seguindo esta premissa muitas são as religiões que condenam a prática da interrupção voluntária da gravidez ainda que o feto seja portador de anomalia que incompatibiliza sua sobrevivência extrauterina A igreja católica é a que adota a postura mais radical Por muito tempo nem mesmo a interrupção da gravidez praticada para salvar a vida da gestante foi vista de maneira favorável pela igreja TESSARO 2017 p 27 A questão da criminalização do aborto está diretamente interligada com a moral religiosa presente de forma ativa na sociedade brasileira como também é a principal influenciadora nos rumos do direito e das leis SAMPAIO 2015 np É possível perceber através da análise de que em 36 trinta e seis projetos de leis que existem no Congresso Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 195 Nacional cinco almejam que a interrupção da gestação seja considerado crime hediondo dados levantados no ano de 2017 ZANOTTO 2017 np Sobre o assunto acrescenta Machado 2017 p 1 Os fundamentos do aborto como crime e pecado foram explicitado como sanções religiosas e ao mesmo tempo regras morais A prévia longa duração da criminalização do aborto durante a contínua expansão do Cristianismo no mundo ocidental da Idade Medieval à Moderna se deu em contexto em que predominava a não separação entre Igreja e Estado Durante séculos as legislações dos Estados se articulavam ou se complementavam com o Direito Canônico E era o Direito Canônico o paradigma do entendimento do aborto como crime e pecado Contudo é importante sublinhar que o aborto não era considerado condenável se ocorresse nas primeiras fases da gestação O termo canônico está diretamente relacionado à Igreja Católica Romana O Código do Direito Canônico é o conjunto de normas cânones que orientam a disciplina eclesiástica definem a hierarquia administrativa os direitos e deveres dos fiéis católicos os sacramentos e possíveis sanções por transgressão das normas leis próprias da igreja RIGUETI 2015 É presumível identificar que nunca houve de fato uma separação dos ideais religiosos igualmente com a moral religiosa para com o direito e por decorrência com o processo de elaboração das leis Neste sentido considerase que A ideia de honra familiar presente nas Ordenações Filipinas que distribui desigualmente os poderes as atribuições os deveres e os direitos de homens e mulheres de pais mães e filhosfilhas de senhores e agregados e escravos está assentada ou adequada às normas disciplinares cristãs sobre sexualidade sendo toda a sexualidade que foge à heterossexualidade considerada sob o signo do pecado da sodomia diferença de sexo e gênero as mulheres com dever de obediência ao poder masculino e dever diferenciado de fidelidade e diferença e distância de status social referente não só a classe social como ao instituto da escravidão Os princípios do código relacional da honra persistem no Código Civil de 1916 e no Código Penal de 1940 e na memória social MACHADO 2000 2001 2010 CORREA 1983 apud MACHADO 2017 p 1 Para Machado 2017 np nos períodos colonial e de Império brasileiro nunca existiu a separação da Igreja Católica com o Estado a ponto de fazer com que o direito absorvesse os fundamentos religiosos nos mais variados níveis e esferas apresentando consequências até a atualidade Contudo não foi sempre que a Igreja Católica teve a mesma postura dos dias atuais em relação ao aborto isso porque durante aproximadamente 18 séculos não houve consenso a respeito do momento que a alma é incorporada ao produto da gestação e durante esse período a Igreja sustentou pontos de vistas conflitantes assegura Tessaro 2006 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 196 É explícito que o relativismo em relação à concepção de vida antes do nascimento é uma polêmica que persiste por muitos séculos dentro da Igreja No entanto a intolerância e a intransigência da Igreja Católica nessa matéria do aborto datam portanto pouco menos de cento e quarenta anos FRANCO apud TESSARO 2006 p 28 Outrossim dispõese que O Código Criminal do Império de 1830 no Brasil independente aderiu parcialmente à longa duração do entendimento religioso sobre o aborto como condenável pois somente tipifica o crime de realizar o aborto em outrem Não considerou crime o autoaborto Estavam ali presentes as porosidades e interfaces do pensamento religioso e do pensamento social da ideia de honra modalidade de argumento em parte secularizado que poderia no senso comum da época fazer entender à elite política porque uma mulher poderia querer abortar No período republicano o Código Penal de 1890 que teve vigência até 1940 criminalizou não só quem provocasse ou auxiliasse o aborto como a mulher que o cometesse Em 1890 o aborto provocado por terceiros e o infanticídio tiveram as penas aumentadas MACHADO 2017 np Apesar da Igreja Católica durante maior parte de sua história ter grande relativização e controvérsias na definição de qual momento o feto começa a ter direitos acarretando a dicotomia às lutas contemporâneas em que as religiões acreditam em vida abstrata e as feministas antiproibicionistas defendem a vida que já existe de vida vivida Inclusive a forma com que a Igreja Católica conduz o debate na atualidade é inflexível defendem a tese da animação imediata do zigoto fato que não condiz com o passado de séculos em que a questão do aborto do ponto de vista religioso era objeto de um discurso aberto não se tratando ainda de uma postura fundamentalista TESSARO 2006 p 38 Apesar da crescente onda de laicidade dos Estados é admissível notar que a partir do século XVII não foram significativas as mudanças nas legislações no que se refere à temática do aborto pelo contrário estabeleceuse tanto na sociedade quanto nas leis vigentes sua severa criminalização mudanças essas prejudiciais às mulheres Tampouco o Estado teve o reconhecimento de que a sua criminalização está baseada em fundamentos religiosos Como esclarece Machado 2017 np essa questão está diretamente relacionada à outras temáticas também do direito adjacente ao assunto dos direitos humanos no que tange aos valores familiares e conjugais que o direito herdou do entendimento cristão os quais estavam centrados na autoridade e no poder desigual de homens e mulheres e da sexualidade heterossexualidade e procriação obrigatória porque consideradas sagradas Toda história da filosofia em relação às mulheres é ideologia patriarcal altamente misógina TIBURI 2015 p 254 Então é preciso compreender toda a função fundamentalista Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 197 imposta pelos ideais religiosos acerca do ser mulher na sociedade designadamente na brasileira E além disso se podemos falar de lógicas seculares de disciplinamento das condutas sexuais e reprodutivas das mulheres presentes na instauração dos estados laicos é porque já haviam sido absorvidos os fundamentos religiosos cristãos de longa duração MACHADO 2017 np Acrescenta em seguida a mesma autora que Foi somente no decorrer do século XX com a progressiva laicização e separação da Igreja e do Estado e com a movimentação por direitos que antes dos anos sessenta alguns poucos Estados legislam a favor da descriminalização do aborto Antes de 1960 o primeiro país europeu a legalizar o aborto com restrições foi a Suécia em 1938 seguido pela Finlândia 1950 e pelas repúblicas bálticas 1955 Estônia Lituânia e Letônia MACHADO 2017 p1 No Código Penal Brasileiro de 7 de dezembro de 1940 os artigos 124 125 e 126 consideram crime a prática da interrupção da gestação quando praticada por uma mulher gestante a seu pedido ou sem o seu consentimento Referida norma permite o aborto em duas situações gravidez em que há risco de morte para a mulher e em caso de estupro Em 2012 o Supremo Tribunal Federal aprovou a terceira situação na qual o aborto não é considerado crime no Brasil quando o feto é anencéfaloinviável Nestas circunstâncias é necessária a autorização da Justiça para realização da interrupção da gravidez Neste sentido posicionase Machado 2017 np Denomino retrocesso neoconservador o período que se inicia claramente ao final de 2005 e que se agudiza a partir dos anos 2010 com o crescimento do poder político da movimentação próvida no Parlamento brasileiro que reage a um processo de secularização da sociedade e ao crescimento dos movimentos sociais por direitos humanos Nos anos noventa e início do milênio era legítimo o debate público e político em prol da defesa dos direitos ao aborto Ainda que tal objetivo não tenha sido jamais atingido foi conseguido o atendimento no sistema de saúde de casos decorrentes de abortos em situação clandestina assim como se instituíram serviços de aborto legal aos casos permitidos pela legislação brasileira O aborto é uma questão de saúde pública e prossegue Diniz 2007 p 7 em sua preleção ao garantir que enfrentar com seriedade esse fenômeno significa entendêlo como uma questão de cuidados em saúde e direitos humanos e não como um ato de infração moral de mulheres levianas A partir de dados de internações por abortamento do Serviço de Informações Hospitalares do Sistema Único de Saúde SUS do ano de 2005 estimase que ocorreram 1054242 um milhão cinquenta e quatro mil duzentos e quarenta e dois abortos induzidos naquele ano E a Pesquisa Nacional do Aborto PNA realizada em 2010 retrata que no Brasil Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 198 uma em cada cinco mulheres com até quarenta anos de idade já realizou ao menos um aborto em sua vida Sobre estes dados menciona Tessaro 2006 p 11 que Percebese atualmente que o aborto é responsável por 13 das mortes maternas no mundo representando no Brasil a terceira causa de morte materna Destarte por integrar o grupo de países que possuem uma legislação restritiva ao aborto e que na sua totalidade representam 40 dos países do mundo estimativas sugerem a realização de 238000 à 1008000 abortos no período de 1999 à 2002 Em escala mundial segundo dados da Organização Mundial da Saúde a legislação punitiva não impede que sejam realizados anualmente entre 42 e 50 milhões de abortos metade deles ilegais e de risco Além desse quadro alarmante há ainda grandes números de abortos ilegais em que mulheres chegam ao óbito em função da prática ser ignorada e criminalizada pelo Estado É também importante apontar que os atos de aborto inúmeras vezes não chegam aos tribunais MACHADO 2017 p1 Entre as principais consequências do aborto clandestino e inseguro sobressaem a perfuração de útero a hemorragia e a infecção septicemia sendo que tais situações podem ocasionar distintos graus de prejuízos à saúde da mulher até mesmo sua morte Em face desse contexto Tessaro 2006 p 11 alude que é urgente e necessária uma adequação da lei penal à situação social apresentada permitindo que o problema da interrupção da gravidez incluindose a gestação de feto com malformação grave e incurável seja tratado pela mulher de forma consciente e esclarecida sendo conferido à ela o direito ao livre exercício da maternidade optando entre interromper ou levar a termo a gravidez Por conseguinte estes dados revelam que a punição do aborto não impede que as mulheres o realizem A manutenção de sua criminalização significa fechar os olhos à realidade à discriminação ao sofrimento e violação dos direitos fundamentais destas mulheres No 5º Encontro Feminista LatinoAmericano e Caribenho realizado em 1999 na República Dominicana instituiuse o 28 de setembro como o dia LatinoAmericano e Caribenho pela Descriminalização do Aborto mas tãosomente dois países latinoamericanos e caribenhos apresentou efetivas mudanças e o aborto foi legalizado Cuba e Uruguai Em 2007 a Cidade do México convalidou de forma legal a prática do aborto mas nos demais estados mexicanos escolta sendo considerado crime SAMPAIO 2015 Já no Uruguai foi sancionada a Lei nº 18987 em outubro de 2012 devidamente regulamentada pelo Decreto nº 37512 A lei dispõe sobre a Interrupción Voluntaria del Embarazo e o artigo 1º versa que o Estado garante o direito de procriação consciente e Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 199 responsável reconhecendo o valor social da maternidade promovendo o pleno exercício dos direitos sexuais e reprodutivos de toda a população Após o cenário de horror como é onde vigoram legislações proibicionistas aonde a vida das mulheres e suas vontades próprias em relação aos seus destinos são deixadas de lado em busca de um bem maior que seria defender a vida de um incapaz o mesmo discurso acaba se tornando hipócrita ao não defender a vida que já existe ou seja a vida da mulher O Uruguai se torna vanguardista e inspirador para os demais países na medida em que o Estado toma para si a responsabilidade da saúde pública que atinge todas as mulheres fazendo com que o número de mortes reduza a zero desde que a prática do aborto deixou de ser considerada como crime A criminalização do aborto conflita com os direitos fundamentais civis políticos e sociais das mulheres assim como com a definição mínima de sujeito de direito pessoa nascida tornada social e jurídica a partir do nascimento em uma sociedade plenamente laica MACHADO 2017 p1 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do estudo realizado percebese a influência que as concepções e doutrinas religiosas intervêm no direito brasileiro Fica evidente a intromissão da teoria religiosa nas leis que regem o Brasil as quais sempre tiveram e ainda tem na atualidade apesar do avanço da sociedade e de tantas mudanças esta interferência nos entendimentos é fortemente presente no Poder Legislativo Uma moral construída por bases somente de cunho religioso intervém na vida de toda a população como é o exemplo abordado no presente trabalho e de forma geral todas as mulheres acabam por serem prejudicadas em seus direitos como seres humanos e sujeitos de direitos em razão de uma falsa moral de defesa da vida que a mesma política em contrapartida acaba por condenar à morte mulheres já vivas É interessante observar que o presente estudo abre caminhos para várias abordagens sobre a influência da moral religiosa no direito e suas consequências na criminalização do aborto haja vista o posicionamento do pontífice o Papa Francisco que manifestouse contra a criminalização do aborto além de questões brasileiras de forte influência na política como é o caso da bancada evangélica que exerceu forte coação social sobre o tema no pleito eleitoral do ano de 2010 REFERÊNCIAS Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 200 COLLING Ana Maria TEDESCHI Losandro Orgs Dicionário crítico de gênero Dourados MS UFGD 2015 DINIZ Debora Aborto e Saúde Pública no Brasil Cadernos de saúde pública Rio de Janeiro v 23 n 9 set 2007 p 19921993 DINIZ Debora A cada minuto uma mulher faz um aborto no Brasil Carta capital São Paulo dez 2016 Seção sociedade Disponível em httpswwwcartacapitalcombrsociedadeabortoacadaminutoumamulherfazumaborto nobrasil Acesso em 04 jun 2019 LOPES Bárbara MARTINS Jéssika MORENO Tica Orgs Somos todas clandestinas relatos sobre aborto autonomia e política São Paulo SOF 2016 MACHADO Lia Zanotta O aborto como direito e o aborto como crime o retrocesso neoconservador Scielo Dossiê conservadorismo direitos moralidades e violência Cadernos Pagu n 50 Campinas jul 2017 Disponível em httpwwwscielobrscielophp Acesso em 29 nov 2019 FONSECA Alexandre Brasil Nem a bancada evangélica resiste ao vendaval Carta capital São Paulo out 2018 Blogs Diálogo de fé Disponível em httpswwwcartacapitalcombrblogsdialogosdafenemabancadaevangelicaresisteao vendaval Acesso em 29 jun 2019 RIGUETI Victor Direito Canônico Revista Jusbrasil Salvador 2015 Seção Artigos Disponível em httpsvictorriguetijusbrasilcombrartigos189140585direitocanonico Acesso em 29 jun 2019 SAMPAIO Paula Faustino In Dicionário crítico de gênero COLLING Ana TEDESCHI Losandro Orgs Dourados MS UFGD 2015 TESSARO Anelise Aborto bem jurídico e direitos fundamentais 2006 Dissertação Mestrado em Ciências Criminais Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Porto Alegre 2006 TIBURI Márcia In Dicionário crítico de gênero COLLING Ana TEDESCHI Losandro Orgs Dourados MS UFGD 2015 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 201 A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL ADEQUAÇÃO DA TEORIA DE SILVIA FEDERICI À REALIDADE DO ESTADO BRASILEIRO Grazielly Alessandra Baggenstoss1 Luciele Mariel Franco2 Betina Fontana Piovesan3 RESUMO Para responder à pergunta Por que as mulheres brasileiras são criminalizadas pela interrupção voluntária da gravidez mobilizouse a teoria de Silvia Federici numa revisão bibliográfica de O Calibã e a Bruxa mulheres corpo e acumulação primitiva 2017 Na sequência a partir de uma revisão integrativa realizada nas bases de dados Portal de Periódicos da Capes e Revista dos Tribunais online analisaramse artigos científicos publicados a partir de processos de investigação e criminalização do aborto publicados após o marco constitucional de 1988 Ao final os artigos foram analisados à luz da teoria de Federici o que levou à conclusão de que a criminalização do aborto além de servir como estratégia de manutenção do sistema capitalista também se vincula às opressões de raça e classe Palavraschave Criminalização do aborto Controle reprodutivo estatal Violência institucional INTRODUÇÃO Ou vocês acha que nós não lembrava do estupro da escrava Pra vocês ainda comemoração porque o resultado a linda miscigenação Ou vocês acha que nós esquece a tragédia dos mec mec Que termina lá no cytotec Sim aborto A pergunta agora é se o feto era vivo ou morto E ela Crucificada aos dezesseis Sem ajuda de nenhum de vocês Sozinha Pedindo aos céus ajuda de mainhaMas aqui só tinha inferno E o julgamento é eterno Se não vai pra prisão pode ir pro valão Taxada de puta na televisão Pra nós ninguém reserva oração Gabz Gabrielly Nunes Transcrição livre do vídeo Vencedora Slam Grito Filmes 2017 Gabz4 Blessed be the fruit A frase bendito seja o fruto tratase da saudação exaustivamente reiterada entre as aias personagens da distopia futurista de Margareth Atwood 1 Doutora e Mestra em Direito pela UFSC Doutoranda em Psicologia pela UFSC Professora Adjunta do Curso de Direito e dos Programas de Pós Graduação em Direito Acadêmico e Profissional da UFSC Pesquisadora líder do Lilith Núcleo de Pesquisas em Direito e FeminismosCNP Email grazyabgmailcom 2 Mestranda em Direito pela UFSC Pósgraduanda em Ciências Penais pela UEM Pósgraduanda em Direito Penal e Processual Penal pela Estácio de Sá Graduada em Direito pela UEM Pesquisadora do Lilith Núcleo de Pesquisas em Direito e FeminismosCNPq Bolsista de mestrado pelo CNPq Email lucielemfrancogmailcom 3 Mestranda em Teoria e História do Direito no Programa de PósGraduação em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina PPGDUFSC com enfoque em historicismo conhecimento crítico e subjetividades Pesquisadora do Lilith Núcleo de Pesquisas em Direito e FeminismosCNPq Email betinapiovesangmailcom 4 Disponível em httpswwwyoutubecomwatchvkZhPvruoeFw Acesso em 18 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 202 na qual os direitos das mulheres são suprimidos por um Estado teocrático fundamentalista cristão Gilead que outrora se chamava Estados Unidos Em O conto da Aia diante da alta taxa de esterilidade as mulheres férteis têm a obrigação de gerar filhos para uma elite econômicopolítica No contexto de ficção tais mulheres são reduzidas a meros ventres tendo sua autonomia completamente minada No cenário brasileiro por sua vez o Estado considera a prática voluntária do aborto ilegal muito embora estudos nacionais demonstrem sua considerável ocorrência entre mulheres de todas as idades e classes sociais Além disso após sua realização há uma significativa incidência de internações hospitalares decorrentes de procedimentos mal realizados da desinformação e da combinação com métodos invasivos e inseguros que representam a realidade da clandestinidade mais onerosa sobre as mulheres mais jovens e de baixa renda Nesse sentido verificase que o acesso ao aborto representa uma zona conflituosa na trama das relações entre o Estado e a condição feminina em que ainda que não haja uma completa supressão a autonomia destas é relativizada Nesse cenário os direitos humanos se apresentam como conceitos e práticas em construção e transformação permanentes demarcados por diversos marcadores como o de gênero A partir dessas inquietações ficcionais e reais buscamos neste artigo examinar a criminalização do aborto no Brasil a partir do marco teórico da Silvia Federici Assim para ilustrar e confirmar a adequação da teoria na explicação da realidade brasileira utilizamos trabalhos científicos publicados após 1988 marco constitucional que inaugurou uma série de direitos e garantias fundamentais os quais examinam processos judiciais sobre o tema da interrupção voluntária da gravidez Partimos do pressuposto de que a criminalização do aborto não foi recepcionada pela Constituição Federal88 de modo que a permanência de seu tratamento legal através do direito penal representa uma constante violação dos direitos humanos das mulheres por parte do Estado verificável em múltiplos aspectos5 Assim este trabalho se constitui em uma pesquisa qualitativa que a partir do método dedutivo busca dar bases para a reflexão sobre a atuação do Estado no controle e violação de determinados corpos reprodutivos Algumas perguntas nos movem Quais vidas importam A quem interessa criminalizar o aborto Existe uma ambivalência estatal Se sim como podemos resolvêla Tais perguntas 5 Para considerações mais completas a esse respeito ver o seguinte trabalho especialmente a conclusão Sena Gabriela de Mello Aborto criminalização no panorama da arguição de descumprimento de preceito fundamental ADPF 442 2019 TCC graduação Universidade Federal de Santa Catarina Centro de Ciências Jurídicas Direito Florianópolis 2019 Disponível em httpsrepositorioufscbrhandle123456789199450 Acesso em 25 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 203 portanto são condensadas em nossa problemática do por que as mulheres brasileiras são criminalizadas pela interrupção voluntária de sua gravidez Para tentar responder e cumprir com os objetivos delineados adotamos como procedimento primeiro a revisão bibliográfica narrativa de trechos selecionados da obra O Calibã e a Bruxa de Silvia Federici filósofa feminista ítaloestadunidense Na sequência realizamos uma revisão bibliográfica integrativa de artigos científicos construídos a partir de casos jurídicos de aborto e por fim analisamos os dados relatados a partir do marco teórico que orienta este trabalho levando a nossas conclusões Salientamos que para a revisão bibliográfica integrativa o levantamento foi realizado em dois bancos de dados sendo o primeiro o Portal de Periódicos da Capes por se configurar como uma biblioteca virtual que contém um considerável acervo de textos completos e de bases referenciais6 e o segundo a plataforma online da Revista dos Tribunais por ser uma plataforma de pesquisa específica da área jurídica que contém as publicações de dezenas de revistas científicas vinculadas à editora Em ambos a pesquisa foi limitada a periódicos revisados por pares em língua portuguesa e com a publicação dentro da delimitação temporal de 1988 a 2019 correspondendo ao período pós Constituição Federal de 1988 No primeiro banco de dados realizamos cinco buscas combinadas entre as palavras chave aborto crime processo judicial processos judiciais e análise judicial resultando em 26 vinte e seis artigos científicos dentro dos critérios de seleção Após a análise de seus resumos verificamos que apenas 01 um se adequou completamente no enquadramento pretendido qual seja artigos científicos construídos a partir da análise de peças préprocessuais eou processuais relacionadas ao crime de aborto No segundo por sua vez considerando a demasiada quantidade de artigos não condizentes com a temática do aborto obtidos a partir dos primeiros critérios optamos pela busca da palavrachave aborto nos títulos dos artigos científicos de modo a resultar em um total de 30 trinta estudos dos quais 02 dois corresponderam ao enquadramento supracitado Nesse sentido a revisão integrativa foi feita a partir dos 03 três referidos estudos 1 A REGULAÇÃO DA REPRODUÇÃO EM O CALIBÃ E A BRUXA 6 Segundo a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Capes o referido Portal de Periódicos reúne o melhor da produção científica internacional e conta com um acervo de mais de 45 mil títulos com texto completo 130 bases referenciais 12 bases dedicadas exclusivamente a patentes além de livros enciclopédias e obras de referência normas técnicas estatísticas e conteúdo audiovisual Disponível em httpswwwperiodicoscapesgovbrindexphpoptioncompcontentviewpcontentaliasmissao objetivosItemid109 Acesso em 09 set 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 204 O Calibã e a Bruxa mulheres corpo e acumulação foi publicado por Silvia Federici em 2004 como resultado de uma pesquisa de quase trinta anos que buscou lançar um olhar sobre a questão das mulheres nos estudos sobre as formas pelas quais o sistema capitalista se impôs sobre a sociedade e sobre os corpos compondose em um sistema econômicosocial necessariamente ligado ao racismo e ao sexismo O livro lançado no Brasil apenas em 2017 foi construído a partir de diversas historiadoras feministas de modo a acrescentar novos elementos importantes para a descrição do processo de acumulação primitiva de capital inicialmente formulado por Karl Marx Assim além da expropriação dos meios de subsistência dos camponeses e da escravidão dos povos da América e África Federici aponta que foi necessário um forte disciplinamento dos corpos para se transformarem em máquinas de trabalho ao mesmo tempo em que para as mulheres os corpos passaram a ser máquinas de trabalho reprodutivo Em sua obra a autora descreve como a reprodução realizada pelas mulheres além de gerar amamentar e cuidar das crianças se manifesta por um conjunto de trabalhos necessários para manter a sobrevivência da vida humana como o cuidado com a alimentação com as roupas com a higiene e manutenção dos espaços domésticos bem como pelo apoio psicológico e afetivo oferecido aos membros familiares Neste sentido para Federici considerar o trabalho reprodutivo como sem valor é uma forma de legitimação da escravidão das mulheres ao lar Assim é um livro que investiga o desenvolvimento capitalista do ponto de vista dos não assalariados mulheres e escravos da reprodução da vida e da força de trabalho repensando todo o processo de sua formação Seu desenvolvimento demonstra que a reconstrução da história das mulheres ou o olhar sobre a história por um ponto de vista feminino implica uma redefinição fundamental das categorias históricas aceitas e uma visibilização das estruturas ocultas de dominação e exploração FEDERICI 2017 p29 Ainda a partir das revisitações de memória e narrativas a caça às bruxas dos séculos XVI e XVII tanto na Europa quanto no Novo Mundo ainda que tenha se dado de maneiras distintas é apontada pela autora como um fato histórico determinante na aniquilação da participação das mulheres nos movimentos de luta e resistência o que até então era comum naquelas comunidades Nesse sentido Federici 2017 desconstrói o imaginário de que tal evento tenha sido recluso à Idade Média e somente resultante da perseguição da Igreja Católica contra mulheres desertoras do cristianismo Ao contrário aponta que a perseguição às bruxas enquanto política da burguesia nascente e da burocracia estatal por um lado teria contribuído para a construção de diferenças e divisões dentro da classe trabalhadora como as hierarquias construídas sobre o gênero a raça e a idade que se tornaram constitutivas da dominação de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 205 classe e do proletariado moderno E por outro lado teria destruído o controle que as mulheres exerciam sobre sua função reprodutiva abrindo espaço para o desenvolvimento de um regime patriarcal mais opressor A partir do exposto é possível se ater a pontos específicos da referida obra relevantes para o debate proposto em que a autora aborda as questões da sexualidade feminina e do disciplinamento de seus corpos para a reprodução pensadas em conjunto com a formação do Estado Moderno No primeiro capítulo ao apresentar as bases para uma leitura da transição para o capitalismo7 a partir do ponto de vista da luta antifeudal na Idade Média Federici 2017 destaca o período subsequente à catástrofe demográfica produzida pela Peste Negra como um importante momento de ascensão do controle da reprodutivo das mulheres Isso porque diante da escassez da força de trabalho uma parte importante do campesinato da Europa Ocidental passou a reivindicar um maior poder de decisão sobre o seu trabalho maior valorização e o desaparecimento de sua servidão Por consequência os empregadores passaram a se queixar das novas exigências dos trabalhadores e do poder econômico que estes teriam adquirido Assim como resposta desenvolveuse uma contrarrevolução no final do século XV por parte tanto do Estado quanto da burguesia nascentes que abarcava todos os níveis da vida social e política Como meio de cooptar trabalhadores jovens e rebeldes por exemplo incorporouse uma política sexual que resultou na hostilidade contra as mulheres proletárias através da descriminalização quase total do estupro de mulheres pobres como no caso da França em que o estupro coletivo de proletárias se tornou uma prática comum O consentimento estatal para a prática do estupro segundo Federici teria criado um clima intensamente misógino que por consequência acabou por degradar todas as mulheres independentemente de sua classe além de ter insensibilizado a população frente à violência contra a mesmas Além do referido exemplo destacase como diante da intensificação do conflito social houve a centralização do Estado como o único agente capaz de confrontar a generalização 7 Sobre o termo transição Federici aponta que é um conceito que ajuda a pensar em um processo prolongado de mudança e em sociedades nas quais a acumulação capitalista coexistia com formações políticas que não eram ainda predominantemente capitalistas No entanto afirma que o mesmo sugere equivocadamente um desenvolvimento histórico gradual e linear sendo portanto incapaz de evocar as mudanças que abriram o caminho para a chegada do capitalismo e das forças que conformaram essas mudanças Assim explica que o termo é utilizado em sua obra principalmente em um sentido temporal enquanto que para os processos sociais que caracterizaram a reação feudal e o desenvolvimento das relações capitalistas é usado o conceito marxista de acumulação primitiva ou originária embora ressalve a ausência na obra de Marx da menção às profundas transformações que o capitalismo introduziu na reprodução da força de trabalho e na posição social das mulheres FEDERICI 2017 p116118 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 206 da luta e de preservar as relações de classe tornandose o gestor supremo dessas relações e o supervisor da reprodução da força de trabalho uma função que continua desempenhando até os dias de hoje FEDERICI 2017 p107 No segundo capítulo entre outras questões Federici chama atenção para a transformação do corpo em uma máquina de trabalho com a sujeição das mulheres para sua reprodução a partir do processo de acumulação primitiva Nesse sentido expõe como os processos que separaram os trabalhadores de seus meios de subsistência como os cercamentos das terras antes comunais e a criação de uma dependência das relações monetárias significaram também a redução do salário real e o aumento dos preços dos alimentos ao mesmo tempo que o trabalho feminino foi desvalorizado com relação ao masculino e a importância econômica da reprodução da força de trabalho realizada no âmbito doméstico e sua função na acumulação do capital se tornaram invisíveis 2017 p145 Assim como resultantes da acumulação capitalista são observáveis fenômenos como o empobrecimento as rebeliões e a escalada do crime posteriormente controlados com a exportação da superexploração dos trabalhadores com a institucionalização da escravidão negra e a expansão da dominação colonial 2017 p161162 Em menos de um século após a invasão colonial na América ocorreu um novo colapso demográfico tanto entre os povos originários do Novo Mundo provocado conjuntamente pelas doenças e pela brutalidade dos colonizadores quanto entre a população da Europa Ocidental que alguns autores creditam tanto a escassez alimentícia quanto à apropriação ocorrida dos rendimentos agrícolas Segundo a autora foi nesse contexto que a reprodução e o crescimento populacional se transformaram em assuntos de Estado e do discurso intelectual de modo a promover a intensificação da perseguição às bruxas e a adoção de novos métodos disciplinares para regular a procriação e quebrar de vez o controle das mulheres sobre a reprodução Observa se que a partir de meados do século XVI ao mesmo tempo que os barcos portugueses retornavam da África com seus primeiros carregamentos humanos todos os governos europeus começaram a impor penas mais severas à contracepção ao aborto e ao infanticídio FEDERICI 2017 p172 Enquanto que na Idade Média as mulheres contavam com muitos métodos contraceptivos utilizados para estimular a menstruação provocar um aborto ou criar condições de esterilidade a criminalização da contracepção as expropriou desse saber antes passado de geração a geração relegandoos à clandestinidade Além da criminalização diversas medidas prónatalistas foram adotadas na Europa naquele período como a bonificação do casamento e penalização do celibato a valorização da família como instituiçãochave para a transmissão da Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 207 propriedade e reprodução da força de trabalho o início dos registros demográficos e as intervenções do Estado na supervisão da sexualidade da procriação e da vida familiar Federici visualiza nessas medidas o embrião de uma política reprodutiva do capitalismo na medida em que verifica na teoria e na prática mercantilistas a expressão mais direta dos requisitos da acumulação primitiva e da primeira política capitalista que trata explicitamente do problema da reprodução da força de trabalho 2017 p173 A partir do controle reprodutivo e da sucessiva criminalização das mulheres seus úteros teriam se transformado em um território político controlado pelos homens e pelo Estado A autora ainda indica que mesmo depois desse momento incipiente do capitalismo e até o presente o Estado não poupou esforços na sua tentativa de arrancar das mãos femininas o controle da reprodução e da determinação sobre onde quando ou em que quantidade as crianças deveriam nascer FEDERICI 2017 p180 E complementa que este controle levaria as mulheres a uma indescritível angústia e desespero por verem seus corpos se voltando contra si mesmas como nos casos de uma gravidez indesejada Conforme mencionado as políticas de natalidade conduziram a uma crescente desvalorização do trabalho feminino a partir de um processo que as reduziu a não trabalhadoras Sobre esse aspecto mencionase a perda de espaços das mulheres em empregos que tinham tradicionalmente ocupado a dificuldade em obter trabalhos além daqueles com status mais baixos e com remuneração reduzida e a crescente suposição no direito nos registros de impostos nas ordenações das guildas de que as mulheres não deviam trabalhar fora de casa Além disso acrescentase o fato de que qualquer trabalho feito por mulheres em âmbito doméstico era considerado como não trabalho e portanto sem valor ganhando o status de trabalho doméstico ainda que não exercidos para sua família FERERICI 2017 p 181190 Todo esse contexto impossibilitava que mulheres pudessem sobreviver sozinhas que culminou no aumento da prostituição em diversos países da Europa Esse crescimento somado ao clima de intensa misoginia levou inicialmente ao estabelecimento de restrições à prostituição e posteriormente a sua criminalização já em meados do século XVI Segundo Federici é possível relacionar a proibição da prostituição e a expulsão das mulheres do espaço de trabalho organizado com a aparição da figura da dona de casa e da redefinição da família como lugar para a produção da força de trabalho 2017 p188 Nesse sentido todos os eventos se interrelacionam demonstrando como o Estado a partir do auxílio ou cumplicidade de outras forças sociais foi utilizado para o controle da sexualidade da reprodução e do trabalho feminino Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 208 Todo esse processo de desvalorização do trabalho das mulheres e de privação de sua autonomia só foi possível graças a um simultâneo e intenso processo de degradação social produzido por exemplo por uma constante erosão de seus direitos por sua infantilização legal pela diferenciação sexual dos espaços sociais e também pelo amplo debate desenvolvido na literatura erudita e popular a respeito da natureza de suas virtudes e de seus vícios Na América colonial no entanto as relações de gênero que se desenvolveram e muitas vezes foram impostas tanto sobre os povos ameríndios e africanos quanto entre o proletariado europeu que havia migrado em razão de dívidas ou do cumprimento de sentenças penais se deram de formas muito diversas apresentando especificidades em cada colônia e de acordo com as políticas implementadas pelos colonizadores em cada período histórico De todo modo pela teoria descolonial afirmase que foi a colonização que impôs as hierarquias de gênero nas Américas Oportuno destacar a contribuição de María Lugones que nos apresenta a colonialidade de gênero relacionada simultânea e reciprocamente às colonialidades do poder e do saber Inicialmente a autora sustenta que até a invasão dos colonizadores as relações de gênero existentes entre os povos tradicionais não eram dicotômicas nem hierarquizadas de modo que o gênero não era um princípio organizador da sociedade Entretanto como estratégia para colonizar foram instituídas práticas discursivas que recorreram ao gênero disciplinando homens e mulheres da América Latina de acordo com a perspectiva eurocêntrica Tratase do que a autora nomeou como sistema moderno colonial de gênero 2014 p935 Esse sistema de acordo com Lugones 2014 p 935 é uma lente através da qual podemos aprofundar a teorização da lógica opressiva da modernidade colonial seu uso de dicotomias hierárquicas e de lógica categorial Ou seja de acordo com a autora gênero e raça foram criações categoriais da colonização que tinham como objetivo racializar e engendrar as sociedades colonizadas A colonização pautouse pela dicotomia entre o humano e o não humano este associado aos colonizados que foram transformados em homem e mulher através dos códigos de gênero e raça ocidentais e europeus Retornando à Federici temos que com a colonização em alguns locais como no México e no Peru foram instituídas leis que tornaram as mulheres propriedades dos homens sendo as mesmas forçadas a seguir o destino destes No Canadá os jesuítas treinaram etnias indígenas para incorporarem a supremacia masculina com sua consequente submissão das mulheres e filhos Nas colônias norteamericanas o racismo assim como o sexismo foi legislado e imposto especialmente após a institucionalização da escravidão Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 209 Em contrapartida nos sistemas de plantations até a abolição do tráfico de escravizados mulheres e homens eram submetidos ao mesmo grau de exploração sem distinções de hierarquias sexuais muito embora as mulheres recebessem menos comida e estivessem vulneráveis aos ataques sexuais de seus senhores o que evidencia a desumanização conjunta à desgenerificação na medida em que mulheres eram tidas tão somente como seres escravizados Contudo após a proibição legal do tráfico fazendeiros do Caribe e dos Estados Unidos por exemplo adotaram uma política de criação de escravos tentando regular as relações sexuais e os hábitos reprodutivos a partir da necessidade de mais ou menos filhos para o trabalho no campo FEDERICI 2017 p224 Conforme o exposto verificase que a obra analisada expõe a transição para o capitalismo como uma questão primordial para a teoria feminista na medida em que descreve como as sociedades capitalistas reconstruíram os papéis sexuais e redefiniram as tarefas produtivas e reprodutivas da forma como se perpetuam até a atualidade ainda que se valendo de mecanismos diferentes Nesse sentido o uso da violência e a intervenção estatal foram primordiais para essas construções e segundo a autora continuam sendo dispositivos utilizados na manutenção do controle dos corpos femininos Dessa maneira a partir das desmistificações propostas pela autora buscamos analisar de que modo a intervenção do Estado sobre os corpos das mulheres através da criminalização do aborto alinhase com tal política sexual que as transforma em meras reprodutoras de mão de obra para o sistema capitalista demonstrando a adequação da teoria de Federici à realidade brasileira 2 ESTADO ABORTO E CRIMINALIZAÇÃO REVISÃO INTEGRATIVA Ao realizarmos a seleção de artigos científicos elaborados a partir da análise de peças préprocessuais eou processuais relacionadas ao crime de aborto no Brasil dentro dos bancos de dados e do recorte adotados obtivemos como material de análise três trabalhos O primeiro de Danielle Ardaillon foi publicado no segundo trimestre de 1998 na Revista Brasileira de Ciências Criminais e tem como título A Insustentável Ilicitude do Aborto O segundo escrito em coautoria por Debora Diniz e Alberto Madeiro foi publicado na Revista Ciência Saúde Coletiva em 2012 intitulado Cytotec e Aborto a polícia os vendedores e as mulheres E o terceiro Controvérsias relativas à pronúncia do crime de aborto análise jurisprudencial foi publicado na Revista dos Tribunais São Paulo em 2013 tendo por autor Antonio Baptista Gonçalves Os pontos trazidos de cada um desses artigos priorizam as considerações realizadas a partir dos processos analisados Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 210 21 A insustentável ilicitude do aborto Seguindo a ordem cronológica das publicações para análise o primeiro artigo é estruturado em quatro pontos principais No primeiro momento a autora analisa aspectos da relação entre Estado feminismo e o status social das mulheres para na sequência examinar a relação entre o Estado e o corpo das mulheres Em continuidade trata do différend8 do aborto no Brasil e por fim aborda o domínio jurídico propriamente dito ao examinar alguns aspectos de seu discurso No que se refere ao procedimento metodológico deste último ponto o mesmo é pautado no levantamento de inquéritos e processos judiciais em três Fóruns da Região Metropolitana de São Paulo que resultaram na coleta de 43 processos por aborto além da seleção de 117 acórdãos de recursos interpostos em processos de diversas Comarcas do Estado de São Paulo encontrados na Revista dos Tribunais a partir dos quais se construiu a análise e a argumentação Danielle Ardaillon 1998 parte do entendimento de que há uma situação sociocultural que marca os corpos femininos e masculinos simbólica e politicamente pelo gênero e pela classe social de forma assimétrica e hierárquica Como consequência haveria uma negativa sociocultural a impossibilitar que as mulheres usufruam de sua sexualidade de forma autônoma inclusive consolidada na ação estatal contemporânea A demanda pelo aborto então constituiria uma zona conflituosa na trama das relações entre o Estado e a condição feminina e essa interligação poderia ser verificada na medida em que a reivindicação de acesso ao aborto é um direito exercido sobre um corpo reprodutor e especificamente originado no corpo de sexo feminino Nesse sentido essa zona conflituosa evidenciaria o limite da suposta relação do Estado com indivíduos descorporificados que entendemos como a abstração de um sujeito universal Seguindo essas considerações a autora reforça que as relações de poder desenvolvidas a partir da formação das políticas públicas não afetam a diversidade de pessoas da mesma maneira Segundo Ardaillon o corpo das mulheres foi controlado desde sempre e em toda parte por ser mais do que o corpo dos homens o locus da reprodução E por isso talvez que na nossa sociedade como em outras o direito de abortar parece simbolizar uma subversão extrema inaceitável 1998 p4 8 A autora parte da definição de JeanFrançois Lyotard afirmando que os différends ao contrário dos litígios são conflitos sem solução são discussões que não chegam a um consenso definitivo mas a tolerâncias mútuas e provisórias entre os diversos atores sociais ARDAILLON 1998 p2 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 211 Dentro desse cenário em que há uma disputa de narrativas promovida por um conjunto de enunciados diferenciados de diversos atores sociais e dentro de diferentes campos como o judicial o religioso o médico o feminista o biológico entre outros a autora defende a inclusão da demanda de acesso ao aborto no espectro dos direitos reprodutivos por considerar que sua ilicitude teria perdido muito da sua sustentação pós Constituição de 1988 No que se refere à análise dos processos de aborto um primeiro ponto levantado diz respeito ao paradoxo verificado no fato de haver um enorme investimento social na proibição do aborto através de lei polícia e prisões ao mesmo tempo em que haveria uma baixa penalização o que faria levantar a hipótese de que sua punição não interessaria realmente à sociedade Nesse sentido o Estado muito distante de ser algo abstrato representaria um complexo de relações sociais e de poder entre cidadãos e o referido paradoxo representaria o intento de perseguir e maltratar ainda que não o de punir penalmente A constatação desse paradoxo foi obtida a partir de algumas circunstâncias observadas nos processos coletados A primeira está relacionada com a materialidade do crime de aborto que ao ser definido doutrinariamente como a interrupção voluntária da gravidez com a consequente morte do feto requer que seja comprovado processualmente tanto uma gravidez preexistente quanto que sua interrupção foi provocada voluntariamente Nesse sentido Ardaillon 1998 observou nos processos analisados uma considerável dificuldade em reunir elementos probatórios suficientes dessas condições o que leva ao arquivamento dos inquéritos à impronúncia ou à absolvição sumária ou na fase do júri a depender de até qual fase os processos se estendam Durante a própria coleta dos procedimentos verificouse uma quantidade muito superior de inquéritos do que de processos judiciais levando a investigação dos motivos para tanto Em primeiro lugar observouse que muitos inquéritos diziam respeito ao encontro de fetos sem a presença de quaisquer indícios de autoria e da efetiva comprovação da voluntariedade do ato Outros casos tratavam da busca e apreensão em clínicas clandestinas de aborto sem que houvesse a obtenção da materialidade de crimes específicos necessária para o processamento judicial Por fim apontouse que qualquer relato quanto à interrupção de uma gravidez antes de seu termo normal foi tido como a chave para se abrir um inquérito independente de tratarse visivelmente de um aborto espontâneo submetendo as mulheres à investigação criminal para após arquivála Diante da dificuldade na obtenção da materialidade necessária para a persecução penal Ardaillon 1998 aponta que os atores legais nitidamente exploram os processos fisiológicos ligados à sexualidade da mulher e à reprodução buscando objetivos muitas vezes diferentes Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 212 comprovar ou não a realidade da gravidez ou comprovar ou não a espontaneidade do aborto Nesse mesmo sentido no decorrer de sua análise observa uma dualidade representada ora numa intenção condenatória ora numa intenção absolutória por parte de quem julga e até mesmo de quem acusa 1998 p14 Tal constatação advém do fato de que as provas documentais e periciais bem como os testemunhos muitas vezes com o mesmo teor são constantemente valoradas com pesos diferentes a depender de quem responde o processo Assim observase que a reconstrução das diferentes personagens é feita de acordo com papéis sociais estereotipicamente consagrados pelos atores sociais que as interrogam reforçando a ideia de que nos processos penais não se julga o crime isoladamente mas a moralidade dos indivíduos envolvidos Ademais tratandose o aborto de um crime de difícil comprovação abrirseia um grande espaço para debates retóricos com o entrecruzamento de argumentos biológicos jurídicos e morais No que se refere aos processos que chegaram a ir a Júri é destacada uma proporção de um menor resultado condenatório até mesmo nos casos em que oa agente provoca a morte da gestante como nos processamentos de médicos e parteiras Entretanto também é verificada uma disposição íntima seja para absolver ou para condenar nos pronunciamentos dos atores envolvidos juízesas promotoresas defensoresas e conselho de sentença O que se destaca é a forte presença da moralidade em certos casos em que é a sexualidade da mulher que é avaliada como o motivo para a condenação muito mais do que a prática do crime em si Acrescentase então ao paradoxo supramencionado o fato de que quando a punição ocorre o que se pune é a sexualidade feminina Sobre isso a autora aponta que até mesmo na intenção absolutória não aparece o reconhecimento do direito de opção das mulheres de decidir sobre o rumo de suas vidas e sobre o exercício de sua sexualidade o que ocorre é a redução das mulheres ao papel de vítimas dos homens da vida e do azar Diante disso Ardaillon finaliza asseverando que a Justiça enquanto instituição que deve respeitar os limites da cidadania deveria conscientizarse de que as mulheres não são menores civis ou menoresmorais 1998 p25 que precisam ser protegidas ou corrigidas Nesse cenário observa que no Brasil tanto os direitos como a cidadania são conceitos e práticas em construção e transformação permanentes 1998 p23 22 Cytotec e aborto a polícia os vendedores e as mulheres O artigo escrito por Debora Diniz e Alberto Madeiro tem por objetivo a análise do comércio ilegal do medicamento abortivo misoprostol no Brasil a partir do estudo de dez casos que alcançaram o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios entre os anos de 2004 e Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 213 2010 sendo seis inquéritos policiais e quatro processos judiciais com um ou mais réus cada Sendo assim estruturouse o trabalho em três momentos a história das mulheres investigadas o perfil dos vendedores intermediários ou fornecedores e os dois casos de morte materna a partir da análise das peças processuais e de entrevistas abertas com familiares A escolha do objetivo considerou a mudança dos principais métodos abortivos utilizados pelas mulheres a partir da década de 1990 no Brasil quando o misoprostol princípio ativo do medicamento conhecido como Cytotec passou a ser o agente abortivo mais utilizado em vez de substâncias cáusticas ou objetos perfurantes que resultavam em uma alta morbimortalidade com impacto maior entre as mulheres mais jovens e as mais pobres No entanto a Agência Nacional de Vigilância Sanitária Anvisa restringiu sua oferta a hospitais credenciados desde 1998 em consideração à criminalização do aborto impossibilitando sua livre obtenção em farmácias Sobre esse aspecto destacase o fato de que seu comércio ilegal acaba favorecendo sua adulteração e a venda de apresentações com subdoses ou até mesmo sem o princípio ativo além do risco de sua utilização em dose excessiva pelas mulheres o que por óbvio leva a diversas complicações No que se refere às histórias das mulheres investigadas verificase uma variedade de perfis relativamente aos marcadores sociais que as atravessam Entretanto indicase uma predominância de mulheres jovens sem filhos com companheiros namorados ou esposo provenientes de cidades interioranas das regiões Norte ou Nordeste do Brasil embora todas fossem residentes de cidadessatélites do Distrito Federal Como profissão há o registro de serem empregadas domésticas donas de casa ou funcionárias de comércio tendo como nível educacional o fundamental básico o que indica um forte atravessamento de classe Diniz e Madeiro relatam dois percursos típicos para o aborto entre essas mulheres No primeiro o Cytotec é usado com o conhecimento do companheiro e sua finalização é feita em um hospital público momento em que são denunciadas à polícia e tem início o inquérito policial No segundo verificado nos dois casos em que as mulheres eram adolescentes o aborto teria sido forçado por seus namorados ao introduzirem o medicamento em suas vaginas sem o seu consentimento após um encontro amoroso em um motel colocandoas na situação de vítimas Nestes últimos dois casos os companheiros figuraram como indiciados Já nos demais ainda que se tenha informação de que os homens estavam cientes da gravidez e do aborto nem todos foram postos no papel de investigados A esse respeito ressaltase a indicação de estudos que mostram que geralmente a compra do Cytotec é uma atribuição dos homens na divisão das decisões sobre o aborto DINIZ MADEIRO 2012 p1800 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 214 No que concerne ao perfil dos vendedores estes estão divididos entre os intermediários que seriam os sujeitos que vivem na comunidade e que são conhecidos popularmente como vendedores de remédio e os fornecedores descritos como traficantes de medicamentos ilegais mas encontrado em apenas um caso analisado De qualquer modo apontase que esse mercado clandestino é dominado por homens DINIZ MADEIRO 2012 Os intermediários por terem contato direto com as mulheres são referidos como personagens importantes na trajetória reprodutivas das mesmas na medida em que as orientam quanto à rotina de usos regimes e doses do medicamento e sugerem medidas terapêuticas preventivas para o controle de infecções Paralelamente são indicados como figuras que exercem uma grande pressão psicológica ao desestimularem as mulheres a procurar os serviços de saúde em situação de emergência ao mesmo tempo que se recusam a socorrêlas Quando são descobertos pela polícia costumam alegar que a posse do medicamento é para uso pessoal por problemas de úlcera indicação farmacológica do Cytotec DINIZ MADEIRO 2012 p1799 Quanto aos fornecedores há um silêncio policial em seu entorno o que sugere as hipóteses de que seja um personagem mais raro no comércio ilegal de medicamentos ou que sua atuação escape ao controle da polícia Sua prisão está atrelada a grandes operações da Polícia Federal em parceria com a Anvisa ocasiões em que também são encontradas armas munições dinheiro e até mesmo indícios de produção artesanal de medicamentos Nos dois casos em que ocorreram a morte materna sabese que houve a participação de um intermediário embora em um deles a autoria estivesse em apuração Neste indicase dois aspectos de principal obscuridade o primeiro é o fato da mulher ter morrido após chegar ao hospital sentindo fortes dores abdominais taquicardia e delírios porém nada comentando sobre sua conduta abortiva e os motivos que a levaram a cometer tal ato Inquérito Policial 2008 apud DINIZ MADEIRO 2012 p1801 e o segundo diz respeito à agilidade de comunicação entre o hospital a polícia e as mídias locais antes mesmo de que os familiares fossem informados DINIZ MADEIRO 2012 p1801 No segundo caso por sua vez considerando a extensa disponibilidade de peças processuais como depoimentos laudos e escutas telefônicas foi possível verificar o itinerário trágico da vítima que teve sangramento e dores por quatro dias sofreu a recusa de atendimento pelo intermediário e postergou sua procura ao hospital pela intimidação deste e pelo medo de ser denunciada à polícia Assim Diniz e Madeiro afirmam que a morte desta mulher decorreu de complicações de um aborto realizado com a combinação do Cytotec com métodos invasivos como o uso de sonda seguido da demora no atendimento hospitalar Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 215 Diante de toda a análise concluem que não há garantia da qualidade do medicamento para as mulheres que usam o misoprostol e que ao serem forçadas a circular em um terreno de clandestinidade estão suscetíveis a múltiplas violências Ademais os hospitais apresentamse como espaços de ameaça às mulheres na medida em que há uma persistência da denúncia à polícia por médicos que quebram o seu dever de sigilo ainda que seja uma grave violação à ética profissional 23 Controvérsias relativas à pronúncia do crime de aborto O terceiro artigo analisado é construído a partir de um estudo de caso selecionado como ponto de referência para a análise de algumas problemáticas e controvérsias atinentes ao crime de aborto Neste Antonio Baptista Gonçalves debruçase principalmente sobre as discussões da doutrina penal a respeito do conceito de aborto de sua classificação e da competência de seu julgamento que não são o objeto da análise que propomos Mas na parte final o autor examina os pormenores do processo selecionado sendo esta a que nos ateremos O objetivo de Gonçalves foi avaliar o acerto da decisão de segundo grau que manteve a pronúncia de uma mulher que fez uso de medicamento abortivo provando o nascimento prematuro do feto que morreu somente algumas horas depois Por conseguinte a problemática se deu com relação ao questionamento da defesa no que se refere ao nexo de causalidade necessário para a configuração típica do aborto ao afirmar a prematuridade como causa da morte Em síntese considerando a literalidade típica e o entendimento doutrinário o autor concluiu pelo acerto da decisão além de ter afirmado seu posicionamento pela proibição do aborto na medida que o entende como uma ação que representa um dano à vida do feto e igualmente um risco à vida da gestante GONÇALVES 2013 p6 Nesse sentido apresenta se como um contraponto às posições observadas na construção dos outros dois artigos analisados muito embora não negue as altas estimativas de abortos realizados clandestinamente e que suas complicações levam a taxas consideráveis de mortes maternas 3 A CRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL A partir do que foi exposto nos tópicos acima destacamos inicialmente a atualidade da obra de Silvia Federici e o acerto de seu diagnóstico quando a autora coloca que podemos reconhecer a caça às bruxas em fenômenos muito próximos a nós A criminalização do aborto como estratégia de manutenção do capitalismo é um deles Assim como Angela Davis 2016 p199 coloca que a continuidade das opressões generalizadas sobre as mulheres é uma muleta Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 216 essencial para o capitalismo em Silvia Federici temos que a contínua expulsão dos camponeses da terra a guerra e o saque em escala global e a degradação das mulheres são condições necessárias para a existência do capitalismo em qualquer época FEDERICI 2017 p 27 Assim nossa tese central é a de que o aborto permanece sendo criminalizado no Brasil um país geopoliticamente periférico porque o sistema econômico em que estamos inseridas pautado no modo de produção capitalista depende da formação e reprodução de cada vez mais mão de obra para compor a força de trabalho Inclusive encontramos na própria autora a resposta para o fato de que a interrupção da gravidez seja permitida pela legislação brasileira em apenas alguns casos ainda que não seja o objetivo deste trabalho discorrer sobre o aborto legal Ao tratar sobre as consequências dos cercamentos e privatização das terras que culminaram na exploração dos trabalhadores Federici coloca que no intuito de apaziguar as revoltas que essas medidas provocaram instituiuse o trabalho assalariado aos trabalhadores que não aceitavam a condição de servidão e escravidão Com o disfarce de conquista e sob a alegação de que o trabalho era remunerado o salário era irrisório e perpetuava a miséria além de ser concedido a apenas alguns grupos de homens Mesmo remunerado o trabalho não era livre Tratavase pois daquilo que a autora nomeou de escravidão do salário 2017 p 125 A lógica por detrás da permissão do aborto em apenas alguns casos é a mesma diante das constantes reivindicações dos movimentos feministas da resistência das mulheres que reivindicam a liberdade sobre seus corpos embasadas nos direitos humanos e nas garantias fundamentais o Estado brasileiro sob a máscara do progressismo acaba por permitir que a gravidez seja interrompida nas hipóteses por ele estipuladas9 Mas da mesma forma que a introdução do trabalho assalariado não conferiu liberdade aos trabalhadores a permissão parcial do aborto também não torna as mulheres livres e emancipadas E isso se confirma especialmente quando confrontamos notícias relatos e pesquisas que apontam as dificuldades de se realizar o procedimento mesmo nos casos legais Em uma pesquisa sobre serviços de aborto legal no Brasil Débora Diniz e Alberto Madeiro 2016 concluíram por um distanciamento entre o que é previsto pelas políticas públicas de saúde e a realidade do funcionamento dos serviços de aborto legal sendo o cumprimento das recomendações contidas nas normas ainda infrequente 9 No Brasil o aborto é permitido pela legislação quando a gravidez é decorrente de estupro ou quando não há outra forma de salvar a vida da gestante Além disso por meio de decisão judicial do Supremo Tribunal Federal é também permitido nos casos de anencefalia Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 217 Em relatório publicado em junho de 2019 pela Artigo 19 organização não governamental britânica constatouse que menos da metade 43 dos hospitais públicos brasileiros indicados pelo Ministério da Saúde para efetuar o procedimento de aborto de fato o realizam nos casos previstos10 Em ambas as pesquisas temse que um dos principais motivos pelos quais os hospitais não realizam o aborto legal diz respeito a barreiras morais e religiosas Também é preciso recordar que os trabalhos analisados no tópico anterior dizem respeito a processos judiciais que ocorreram após a Constituição de 1988 justamente porque a Carta Cidadã inaugurou uma série de direitos e garantias fundamentais sem distinção de sexo ou de qualquer outra natureza dentre os quais se destacam a vedação à tortura e a tratamentos humanos degradantes a dignidade da pessoa humana a não discriminação a liberdade a saúde o planejamento familiar além dos direitos sexuais e reprodutivos Parecenos portanto oportuno afirmar que um Estado que prevê garantias apenas formais sem se atentar à materialidade deixando de promover ações realmente efetivas no que diz respeito à concretização dos direitos que foram afirmados no plano do discurso está aliançado a um determinado projeto de sociedade que favorece apenas a classe dominante Pela proibição do aborto temos que essa sociedade enxerga as mulheres mais como sujeitas ao Direito do que como sujeitos de direito o que as reduz a meros ventres Confrontando os artigos examinados com dados sobre o perfil das mulheres que são processadas pelo crime de aborto podemos identificar mais um acerto no diagnóstico de Federici a autora coloca que a caça às bruxas criou um clima geral de misoginia que atingia a todas as mulheres contudo os efeitos foram sentidos de maneira mais intensa naquelas marcadas por raça classe e localização geográfica Para nós tanto a partir do que se pode extrair das pesquisas analisadas no tópico anterior quanto a partir de dados coletados pela Defensoria Pública Geral do Rio de Janeiro 2018 o fato de uma mulher ser negra pobre e brasileira latinoamericana a expõe de forma mais acentuada às consequências da criminalização do aborto11 Aqui entendese por consequências da criminalização do aborto não somente a submissão a procedimentos judiciais inclusive como visto nos casos em que o aborto é permitido ou em que não há evidentemente um crime mas também a sua morte decorrente do emprego de métodos clandestinos 10ROCHA Julia et al Acesso à informação e aborto legal mapeando desafios nos serviços de saúde São Paulo Artigo 19 Brasil 2019 Disponível em httpsartigo19orgblog20190619relatorioapontaqueacessoa informacaoebarreiraaodireitoaoabortoemcasosprevistosemlei Acesso em 25 ago 2019 11 Alguns dos dados colhidos pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro sobre o perfil das pessoas criminalizadas pela realização de aborto demonstram que as rés na maioria dos casos possuem cor e renda definidas Tratase em grande parte de mulheres em situação de vulnerabilidade negras e pobres DEFENSORIA PÚBLICA GERAL DO RIO DE JANEIRO 2018 p 55 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 218 Em análise sobre o perfil das mulheres que morrem em decorrência dos abortos clandestinos isto é aquelas que não querendo dar continuidade a uma gravidez indesejada se veem desamparadas pelo Estado e se socorrem a métodos inseguros que as levam à morte os dados disponibilizados pelo Ministério da Saúde em audiência pública da ADPF 44212 apontaram que as vítimas da clandestinidade são justamente as mulheres mais vulnerabilizadas e marginalizadas na nossa sociedade as pobres e negras É interessante observar nesse contexto que esses corpos estão sempre sob ataque no modelo capitalista seja pela flexibilização das leis trabalhistas pela precarização da previdência social ou pela criminalização de seus corpos Sobre isso a partir de Federici 2017 podemos observar como a criminalização do aborto relacionase com a geopolítica do capitalismo Pelo exposto considerando a obra de Silvia Federici que através de uma análise dialética sobre o desenvolvimento histórico da sociedade capitalista evidencia como as políticas estatais de intervenção e disciplinamento dos corpos especialmente das mulheres servem a propósitos de legitimação desse próprio sistema e manutenção do status quo do capitalismo racistapatriarcal o que é reforçado pela análise dos artigos científicos que se dedicaram a investigar processos judiciais sobre aborto permanece como inquietação se o Estado brasileiro especialmente após a Constituição de 1988 cumpre a promessa de ser um garantidor e efetivador dos direitos humanos e garantias fundamentais das mulheres Cabe ressaltar o questionamento feito por Danielle Ardaillon 1998 quanto à permanência da criminalização diante da enorme estimativa de abortos praticados por ano sendo a maioria nas piores condições de higiene e de desrespeito à dignidade humana e tendo como consequência mortes e lesões Interroga ainda por que essa demanda social não está sendo ouvida pelo Estado Ao refletir sobre a permissão do aborto no caso de estupro especialmente parecenos que diferente do que se sustenta o que se busca tutelar com a criminalização não é a suposta vida do feto mas sim a sexualidade das mulheres que são completamente ignoradas pelo 12 A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental 442 foi proposta perante o Supremo Tribunal Federal no ano de 2017 pelo Partido Socialismo e Liberdade PSOL onde com base na Constituição Federal de 1988 e nos tratados internacionais de Direitos Humanos pede a declaração de recepção parcial dos artigos 124 e 126 do Código Penal de 1940 para excluir do seu âmbito a interrupção voluntária da gestação até as doze primeiras semanas por ser incompatível e violar os princípios fundamentais da dignidade da pessoa humana da cidadania e da não discriminação bem como os direitos fundamentais à inviolabilidade da vida à liberdade integridade física psicológica igualdade de gênero à proibição de tortura trato desumano ou degradante saúde e ao planejamento familiar No momento agosto de 2019 já foi realizada a audiência pública para oitiva e participação de diversos setores da sociedade civil de modo que o processo está concluso ao gabinete da Ministra Relatora Rosa Weber para prosseguimento conforme os ditames do art 102 1º da CRFB1988 e da Lei 98821999 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 219 Estado quando se trata de debater sobre o aborto Ardaillon sugere em seu artigo a existência de algum interesse do estado intenção política portanto em sancionar a assimetria das relações entre homens e mulheres e consequentemente uma ordem de gênero desigual 1998 p7 Assim parecenos oportuno e necessário também refletir sobre as considerações tecidas no artigo de Gonçalves que apontam para uma contradição em seu posicionamento com relação à defesa da vida das gestantes e ao mesmo tempo a defesa pela criminalização do aborto Por diversas vezes o autor se refere ao aborto como um risco para a vida da gestante inclusive em suas ponderações sobre o caso concreto analisado além de reconhecêlo como um caso de saúde pública o que demonstra uma pretensa preocupação com direitos das mulheres mormente os direitos à vida e à saúde No entanto o referido sustenta a necessidade de sua criminalização e indica como um dos motivos o próprio risco que a mulher coloca contra a sua vida Sobre este ponto primeiro destacamos a incoerência na pretensão de se proteger a vida das mulheres através da punição penal sendo este inclusive o motivo do suicídio ser um indiferente penal em nosso ordenamento jurídico Ademais o que podemos notar é a consonância com a conclusão de Ardaillon no sentido de as mulheres serem constantemente vistas como menorescivis ou menoresmorais 1998 p25 À guisa de conclusão alinhamonos com Angela Davis quando diz que o controle de natalidade escolha individual métodos contraceptivos seguros bem como abortos quando necessários é um prérequisito fundamental para a emancipação das mulheres 2016 p 205 Por isso em que pese a necessidade de pensarmos o Estado como um aliado desse processo e daí que decorre sua ambivalência pois como pudemos concluir ao mesmo tempo em que ele se apresenta como possível instrumento garantidor de direitos é quem perpetua as violências pelo nosso horizonte a libertação das mulheres depende de uma mudança sistêmica afinal como coloca Silvia Federici é impossível associar o capitalismo com qualquer forma de libertação 2017 p37 já que sua estruturação não permite qualquer troca igualitária sendo sua natureza democrática nada mais que um mito REFERÊNCIAS ARDAILLON Danielle A Insustentável Ilicitude do Aborto Revista Brasileira de Ciências Criminais v 22 p 199230 abrjun 1998 DAVIS Angela Mulheres raça e classe Tradução Heci Regina Candiani São Paulo Boitempo 2016 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 220 DEFENSORIA PÚBLICA GERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Entre a morte e a prisão quem são as mulheres criminalizadas pela prática do aborto no Rio de Janeiro Rio de Janeiro Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro 2018 Disponível em httpwwwdefensoriarjdefbrnoticiadetalhes5372DPRJapontaperfildamulher criminalizadapelapraticadoaborto Acesso em 25 ago 2019 DINIZ Debora MADEIRO Alberto Cytotec e Aborto a polícia os vendedores e as mulheres Ciência Saúde Coletiva Rio de Janeiro v17 n 7 p 17951804 2012 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1413 81232012000700018lngptnrmisotlngpt Acesso em 10 ago 2019 DINIZ Debora MADEIRO Alberto Serviços de aborto legal no Brasil um estudo nacional Ciência Saúde Coletiva Rio de Janeiro v 21 n 2 p 563572 2016 Disponível em httpwwwcienciaesaudecoletivacombrartigosservicosdeabortolegalno brasilumestudonacional15229 Acesso em 21 ago 2019 FEDERICI Silvia Calibã e a Bruxa mulheres corpo e acumulação Trad Coletivo Sycorax São Paulo Editora Elefante 2017 GONÇALVES Antonio Baptista Controvérsias relativas à pronúncia do crime de aborto análise jurisprudencial Revista dos Tribunais São Paulo São Paulo v 2 p 87106 setout 2013 LUGONES María Rumo a um feminismo descolonial Revista Estudos Feministas Florianópolis v22 n3 p 935952 setdez 2014 ROCHA Julia et al Acesso à informação e aborto legal mapeando desafios nos serviços de saúde São Paulo Artigo 19 Brasil 2019 Disponível em httpsartigo19orgblog20190619relatorioapontaqueacessoainformacaoebarreiraao direitoaoabortoemcasosprevistosemlei Acesso em 25 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 221 GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA E ESTUPRO DE VULNERÁVEL O TRABALHO DO ASSISTENTE SOCIAL Karopy Ribeiro Noronha1 Fernanda Nunes da Rosa Mangini2 Eliane Rodrigues3 RESUMO O presente trabalho tem por objetivo analisar percepções e as concepções acerca das demandas de gravidezes oriundas de estupro de vulnerável tendo como referência o fazer profissional doa assistente social e da equipe multiprofissional no atendimento dessas situações de violência Buscase através de um estudo de caso trazer ao centro do debate as concepções sobre o estupro de vulnerável suas implicações na vida das adolescentes atendidas na maternidade do Hospital Universitário de Santa Maria HUSM e os entraves dispostos no encaminhamento das usuárias do serviço peloa assistente social As construções sociais sobre o estupro de vulnerável influenciam na dificuldade de compreensão e atendimento das adolescentes bem como perpetuam as múltiplas expressões da violência contra a mulher O ato do estupro normalmente não é percebido e vinculado ao abusador esse caminho muda apenas quando ocorrem os encaminhamentos legais sobre o crime Palavraschave Estupro de vulnerável Serviço social Adolescentes Gravidez INTRODUÇÃO O presente artigo tem por objetivo analisar percepções e construções sociais acerca da violência sexual contra as mulheres especialmente no caso de crianças e adolescentes notadamente nos casos de estupro de vulnerável tendo como referência o trabalho doa Assistente Social realizado na MaternidadeAlojamento Conjunto AC do Hospital Universitário de Santa Maria HUSM Este trabalho emerge do processo de estágio curricular supervisionado do Curso de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Maria levando em consideração os condicionantes do referido campo e as demandas atendidas no serviço Tratase de um estudo de caso sobre as adolescentes grávidas atendidas no Hospital Universitário de Santa Maria cuja gravidez configurase como estupro de vulnerável Este 1 Estudante Graduanda do Curso de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Maria UFSM karopyrgmailcom Lattes httplattescnpqbr4379349343344729 2 Assistente Social Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Docente do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Santa Maria UFSM fernandapesquisadoragmailcom Lattes httplattescnpqbr0599793251155702 3 Assistente Social Especialista em Gestão e Atenção Hospitalar no Sistema Público de Saúde com ênfase na linha de Cuidado MaternoInfantil nanerodriguesgmailcom Lattes httplattescnpqbr1449445680739192 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 222 estudo toma como base o registro a descrição e a documentação obtida por meio de diário de campo Para análise do material foi realizado um estudo de caráter teóricobibliográfico tomando como referência os estudos sobre gênero e sexualidade e o papel doa Assistente Social no atendimento desses casos Na atualidade há um desconhecimento de direitos básicos por parte da família e das adolescentes que engravidam devido ao estupro de vulnerável4 Esta situação que é tipificada como crime desperta muita dificuldade no entendimento apontando para as representações sociais predominantemente machistas e as desigualdades de gênero Tais barreiras se apresentam como desafios para os encaminhamentos dos profissionais da saúde e da rede de proteção que acompanha as crianças e adolescentes A hipersexualização dos corpos femininos as estruturas do sistema patriarcal e os papéis arraigados sobre as mulheres fortalecem as representações sociais de sua relação de subalternidade fomentando e banalizando as situações de violência sexual especialmente na adolescência Nesse sentido buscase desenvolver uma reflexão teórica tendo como suporte o respaldo jurídico em relação ao estupro de vulnerável 1 BASES TEÓRICAS E JURÍDICAS SOBRE O ESTUPRO DE VULNERÁVEL E A VIOLÊNCIA SEXUAL CONTRA AS ADOLESCENTES Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente ECA a adolescência é o período compreendido entre os 12 e 18 anos Essa fase é complexa e repleta de diversas descobertas que norteiam e contribuem para o processo de construção da identidade dos adolescentes Por este motivo o transcurso de experimentações que os adolescentes vivenciam pode implicar no envolvimento pelo novo e pelas possibilidades que a vida quase adulta proporciona Essas experimentações se devem pelo rito de passagem para adolescência que simboliza absterse da condição de criança que normalmente é deslegitimada em alguns aspectos devido à baixa idade para se encaminharem a condição de jovem e futuro adulto Essa transição tem correspondência direta com as responsabilidades que os adolescentes terão mas principalmente no olhar alheio sobre a legitimação de seus saberes e por conseguinte de sua identidade Portanto cabe destacar que essa transição marcada pelas modificações de identidade é um processo conturbado e repleto de novas descobertas 4 Art 217A Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 catorze anos BRASIL 2009 p 4 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 223 O HUSM sendo o maior hospital da região central do estado do Rio Grande do Sul por abranger duas grandes regiõescoordenadorias5 de saúde é referência no atendimento de gravidezes de alto risco Dessa forma as gravidezes de mulheres territorializadas nessas coordenadorias em que existe algum tipo de risco no binômio mãebebê são encaminhadas via rede de saúde para a maternidade do HUSM Atualmente frente à desvinculação de maternidades de risco habitual no interior do estado o HUSM passou a ser a única referência para estas duas regiões de saúde na assistência ao parto Ou seja o HUSM sendo especializado em atendimento de alto risco passou a absorver as demandas de parto de risco habitual elevando o número de pacientes adolescentes dos municípios da região Justamente por abranger a região central as mulheres que acessam os serviços disponíveis no hospital em sua grande maioria são oriundas de regiões que majoritariamente têm como fonte de renda e emprego o trabalho no campo A baixa escolaridade a pobreza e principalmente o distanciamento das mulheres dos serviços de saúde corroboram para que essas sejam mais suscetíveis aos mais variados tipos de violência dentre elas o estupro BRASIL 2004 Tendo em vista sua condição de trabalhadoras rurais e as modificações no mundo do trabalho apoiadas no desenvolvimento da tecnologia os jovens filhos de trabalhadores rurais muitas vezes optam por não dar continuidade ao trabalho exercido pelos pais na lida do campo buscando alternativas nas cidades como por exemplo melhores oportunidades de estudos e de trabalho Porém mesmo que essas oportunidades estejam dispostas nas cidades e que seja um desejo dos adolescentes a centralidade da família ainda assume um papel fundamental na vida dos adolescentes A família ainda é central na vida das mulheres principalmente no contexto rural pois até hoje tem sido atribuído às mulheres o papel de cuidadoras e a premissa de que apenas alcançam o status de mulher quando se tornam mães Mesmo com a modernização do mundo do trabalho e a maior facilidade de ingresso na educação pública que se constituem como 5 As Coordenadorias Regionais de Saúde CRS abrangidas pelo HUSM são compostas pelos seguintes municípios Agudo Cacequi Capão do Cipó Dilermando de Aguiar Dona Francisca Faxinal do Soturno Formigueiro Itaara Itacurubi Ivorá Jaguari Jari Júlio de Castilhos Mata Nova Esperança do Sul Nova Palma Paraíso do Sul Pinhal Grande Quevedos Restinga Seca Santa Maria Santiago São Francisco de Assis São João do Polêsine São Martinho da Serra São Pedro do Sul São Sepé São Vicente do Sul Silveira Martins Toropi Unistalda e Vila Nova do Sul sendo referente a 4º CRS e os municípios de Alegrete Barra do Quaraí Itaqui Maçambará Manoel Viana Quaraí Rosário do Sul Santa Margarida do Sul Santana do Livramento São Gabriel e Uruguaiana compõem a 10º CRS Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 224 oportunidades de crescimento pessoal e desenvolvimento da vida laboral a maternidade compulsória6 ainda é um dos entraves na vida das mulheres Haja vista essas afirmações devese ponderar que em sua grande maioria as adolescentes que se encontram na faixa etária dos 12 aos 14 anos compõem um número relevante de usuárias das maternidades públicas assim como na maternidade do HUSM Segundo o informativo sobre gravidez do Ministério da Saúde no Brasil um em cada cinco bebês nasce de uma mãe com idade entre 10 e 19 anos BRASIL 2019 p 2 Existem mais mães adolescentes do que pais adolescentes isso se deve pelos relacionamentos com expressiva disparidade de idade que podem influenciar na coerção das adolescentes pelos parceiros mais velhos Evidenciase dessa forma que quando inseridas em relacionamentos com homens mais velhos as adolescentes possuem menor poder de decisão frente ao direito de seus corpos pela concepção arcaica de que o homem é o pilar da relação e também quem dá a última palavra Essa submissão conferida às adolescentes em especial as que são oriundas do espaço rural se deve pela forma como são ludibriadas pela ideia de que quando constroem família com homens mais velhos essas passam a assumir responsabilidades de adultos pois a maternidade ainda hoje confere às mulheres o status de mulher de fato Existem poucos estudos acerca da temática das gravidezes oriundas de estupros de vulneráveis porém uma pesquisa recente acerca do tema intitulada Estupro e gravidez de meninas de até 13 anos no Brasil características e implicações na saúde gestacional parto e nascimento SOUTO et al 2017 traz questões importantes a serem consideradas Realizou se um comparativo do banco de dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação SINAN e do Sistema de Informações de Nascidos Vivos SINASC por meio do qual se verificou um perfil das gravidezes fruto de estupro de vulnerável Os números reportados sobre tipificação dessa violência tinham cor e classe visto que em sua grande maioria estas adolescentes estão na faixa dos 13 anos são solteiras negras e situadas no Nordeste brasileiro As implicações de uma gravidez não desejada fruto de um estupro ocasionam na vida das adolescentes muitos impasses que interferem até mesmo na saúde mental das vítimas já que as violências contra crianças e adolescentes representam grave ameaça aos 6 A gravidez coercitiva isto é a maternidade compulsória nos termos de Siegel representa um regime injusto de controle punitivo com potenciais efeitos disruptivos ao projeto de vida das mulheres PSOL 2017 p39 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 225 direitos humanos e à saúde desse grupo etário especialmente no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos O estudo de Souto et al 2017 ainda ressalta que as adolescentes nos casos de estupro de vulnerável ficam mais expostas às infecções sexualmente transmissíveis como sífilis hepatites e ao vírus da imunodeficiência humana justamente por não compreenderem as implicações das relações sexuais desprotegidas e não terem poder de negociação com seus parceiros adultos Este fator constituise em aspecto relevante e é um agravante para saúde maternoinfantil uma vez que a gravidez não planejada ou desejada repercute no início tardio da assistência prénatal aumento de número de cesáreas em primíparas riscos de partos prematuros e tratamento de ISTs na adolescente e seu filho recémnascido Outro aspecto relevante diz respeito à rede de apoio e proteção que estas adolescentes terão durante a gestação parto e nascimento Sabese que o planejamento em relação a ter ou não um filho na vida de todas as mulheres implica na forma que estas estão organizadas em relação aos estudos mercado de trabalho e independência financeira As adolescentes neste sentido estando a sua maioria em idade escolar dependem financeiramente da família para sua subsistência Nos casos de gravidezes não desejadas ou planejadas e especialmente nos casos de estupro o estudo refere que a maioria abandona a escola por necessidades relacionadas aos cuidados com recémnascido particularmente nas famílias oriundas das camadas populares Em relação aos parceiros o estudo traz que não há dados suficientes nas notificações dos dados do SINAN para inferir a idade cor escolaridade ou participação na vida destas adolescentes após a descoberta da gestação parto ou nascimento Sabese que em camadas oriundas de parcelas mais vulneráveis da população ainda há a necessidade de que estas adolescentes se vinculem a figura masculina devido às questões culturais e estigmas sociais latentes no imaginário social de que a mulher com filho necessita da figura do homem ao seu lado especialmente pela constituição do modelo de família burguesa nuclear parental socialmente imposto SOUTO et al 2017 A maioria das adolescentes do referido estudo definemse como solteiras especialmente por considerarse que no Brasil o Código Civil somente permite o casamento em decorrência da gestação nos adolescentes com idade superior ou igual a 16 anos Este aspecto tornase ainda mais perverso por considerar a autorização dos pais como aspecto relevante para que o casamento infantil ocorra ressaltando que a gravidez e o nascimento do filho conferem à adolescente mesmo que de forma simbólica ou compulsória a ascensão Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 226 social esperada e a independência do seio familiar substituindo os laços com os pais pela dependência afetiva ou financeira do parceiro A união decorrente de pessoas com idade inferior a 18 anos de idade é definida pela Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança CRC a qual o Brasil é signatário como uma das mais graves violação dos direitos humanos pois traz questões relacionadas à saúde materna e infantil atrasos educacionais especialmente em relação às mulheres dificuldades de mobilidade social exposição a violências múltiplas pelos parceiros sexuais inclusive na idade adulta Ou seja a gravidez na adolescência conforme o Ministério da Saúde é considerado fator de risco e em muitos casos como elemento desestruturador da vida destas adolescentes Sendo a adolescência e juventude etapas fundamentais do desenvolvimento humano necessitando de especial proteção em relação aos direitos humanos o Estatuto da Criança e Adolescente ECA constituise como marco importante para defesa destes direitos especialmente no que diz respeito à saúde em seu conceito amplo como prevê a Constituição Federal de 1988 No que diz respeito aos direitos sexuais e reprodutivos a adolescência de forma especial ainda é negligenciada pela falta de efetividade dos serviços de saúde educação e assistência social Isso é ainda mais evidente em relação à sexualidade desta parcela da população seja pela limitação dos profissionais ou pela dificuldade de transpor as barreiras referentes ao conservadorismo cultural que via de regra nega a sexualidade na adolescência Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE demonstravam no ano de 2012 que o início da atividade sexual precoce no Brasil é uma realidade que não pode ser desconsiderada demonstrando que 137 das adolescentes menores de 13 anos já haviam realizado atividade sexual sendo que 96 eram crianças com idade inferior a 12 anos No entanto todas as adolescentes com idade inferior a 14 anos que praticam atividade sexual sejam com adultos ou outros adolescentes se incluem no que é tipificado em lei como estupro de vulnerável independentemente de a relação ser consentida ou não Conforme o artigo Art 3o do Decreto de lei nº 2848 de 1940 do Código Penal o estupro de vulnerável é tipificado em lei como aquele em que se pratica conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso com menor de 14 anos ou praticar na presença de alguém menor de 14 catorze anos ou induzilo a presenciar conjunção carnal ou outro ato libidinoso a fim de satisfazer lascívia própria ou de outrem além de submeter induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 dezoito anos ou que por enfermidade ou Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 227 deficiência mental não tem o necessário discernimento para a prática do ato facilitála impedir ou dificultar que a abandone BRASIL 2009 p 09 Cabe salientar que nesse processo de transição para a vida adulta principalmente quando se relacionando com adultos as adolescentes são mais suscetíveis às violências Segundo a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres entendese por violência contra as mulheres a violência doméstica que pode ser psicológica sexual física moral e patrimonial a violência sexual o abuso e à exploração sexual de mulheres adolescentesjovens o assédio sexual no trabalho o assédio moral o tráfico de mulheres e a violência institucional BRASIL 2011 p 21 Para se pensar a violência sexual contra as mulheres e em especial o estupro de vulnerável e suas implicações no desenvolvimento da vida das adolescentes é necessário ter em vista de que forma a sociedade compreende tal fato especialmente tratandose de estupro de vulnerável que envolve relações consentidas pelas adolescentes Para o senso comum o estupro está vinculado apenas à atividade sexual sem consentimento de alguma das partes em sua grande maioria as mulheres e que acontece teoricamente por algum desconhecido Nesse sentido quando se pensa sobre esse crime temse a ideia de que ele se expressa somente dessa forma Por outro lado podese inferir que a realidade sobre os casos de violência contra a mulher quando o assunto é o estupro é muito diversificada Conforme dados publicados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPEA entre os anos de 2011 e 2014 a taxa de estupros de crianças e adolescentes por indivíduos que compunham o seu ciclo familiar é de 73 ao passo que 88 dos crimes foram cometidos por companheiros ou excompanheiros Nesse mesmo contexto devese destacar que a taxa de estupros reportados ao SINAN é muito distante do número real de estupros praticados no Brasil Podese inferir que o baixo número de subnotificações se deve à dificuldade de denunciar pelo despreparo das delegacias frente ao caso pelo medo de represálias e exposição pelo não entendimento de que o estupro aconteceu e especialmente pelo fato das mulheres se sentirem desamparadas É importante também referir que o fato de que as adolescentes do sexo feminino são as que mais sofrem violência sexual está vinculado à precoce iniciação sexual e principalmente à relação de subalternidade conferida às mulheres em relacionamentos heteronormativos Assim a baixa idade e o relacionamento com homens mais velhos implica diretamente na baixo poder de decisão do uso ou não de métodos contraceptivos nas relações de poder e nos papéis definidos historicamente pelas mulheres na sociedade capitalista Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 228 Em grande parte pelos aspectos já delimitados o estupro de vulnerável pode acarretar em uma gravidez não planejada seja pelo medo das vítimas em denunciar e buscar auxílio nos serviços de referência seja pela não compreensão da existência de um crime pois muitas vezes as próprias adolescentes referem ter consentido a relação No caso de gravidezes fruto de estupros as vítimas têm direito ao aborto legal disponibilizado pelo Sistema Único de Saúde SUS Nos casos de estupro de vulnerável porém por mais que o aborto seja legal em alguns casos não existe o interesse da vítima em interromper o processo de gravidez em função da vinculação afetiva com o abusador ou ainda por falta de preparo dos profissionais que atendem essas adolescentes na assistência ao prénatal por desconhecimento da lei e dos direitos da criança e do adolescente Essas dificuldades se devem à cultura do estupro que é reforçada diariamente hipersexualizando jovens meninas e construindo de forma atravessada a ideia de que apesar da pouca idade estas seriam mais maduras e por conseguinte seriam responsáveis pelas suas escolhas A cultura do estupro no Brasil está vinculada à história de colonização do país A cultura do estupro no Brasil não pode ser desvinculada de nosso passado colonial e escravocrata As mulheres negras escravas eram consideradas coisas propriedades dos donos das fazendas e eram sistematicamente estupradas além de sofrerem diversas outras violências Eram responsabilizadas pelas mulheres brancas e pelos homens brancos pela suposta sedução do senhor O comportamento violento dos senhores brancos donos das escravas e escravos não era questionado A hipersexualização das mulheres negras advém dessa criação para justificar o estupro Assim o sexismo e o racismo fundamentam a cultura do estupro no Brasil Não é por outra razão que as mulheres negras são as que mais sofrem com a violência doméstica e sexual em nosso país CAMPOS et al 2017 p 899 Os resquícios escravocratas na sociedade brasileira ainda se manifestam diariamente inclusive quando analisado o número de notificações no SINAN onde 772 dos casos de estupro de adolescentes com até 13 anos têm como vítimas mulheres negras SOUTO 2019 O que traz ao centro da questão que os traços escravocratas e colonizadores do Brasil expõem diversas crianças e adolescentes negras a violência sexual diariamente e ainda que as expressões da questão social objeto de trabalho do Assistente Social são expressivamente marcantes na vida das mulheres negras no Brasil Na sequência apresentase de que forma se configura o trabalho do Assistente Social diante das situações de estupro de vulnerável Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 229 2 O TRABALHO DOA ASSISTENTE SOCIAL FRENTE ÀS DEMANDAS DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL Na maternidade do HUSM o atendimento doa assistente social é oriundo das solicitações da equipe de saúde da livre demanda dos usuários ou ainda da busca ativa nas situações em que pode haver necessidade de intervenção desse profissional Normalmente essas solicitações se devem por questões diversas como as gestações na adolescência pré natais incompletos uso e abuso de drogas na gestação multiparidade gestações não planejadas e indesejadas desejo das mulheres de encaminhar a criança para família substituta ou ampliada gestantes ou puérperas com detecção de doenças sexualmente transmissíveis durante o prénatal ou parto situação de violência sexual física psicológica institucional e famílias com recém nascidos internados em unidade de terapia intensiva O profissional de Serviço Social ainda atua em equipe multiprofissional e intervém diretamente no planejamento da alta hospitalar além das situações nas quais se apresentam os mais diversos tipos de violências contra as mulheres Dentre essas demandas levando em consideração o perfil das usuárias do serviço que em número expressivo são adolescentes entre a faixa etária dos 12 aos 19 anos parte significativa de solicitações para o Serviço Social são de pareceres voltados à condição das gestantes e puérperas adolescentes Nesta fase especial do desenvolvimento poderão existir situações de violação de direitos especialmente em relação aos direitos sexuais e reprodutivos O papel do assistente social nos atendimentos de adolescentes também está voltado para avaliar a rede de apoio e proteção disponível para a mãe e sua criança garantido que a família e os cuidadores desempenhem papéis protetivos em relação a esse binômio Nos casos em que se verifica situação de violação de direitos o assistente social além de sensibilizar a adolescente e a família articula a rede de proteção e realiza as pactuações necessárias para corresponsabilização da rede em relação aos acompanhamentos necessários no território daquela adolescente O Código de Ética do Serviço Social tem como alguns de seus princípios o reconhecimento da liberdade como valor central a defesa intransigente dos direitos humanos a recusa do arbítrio e do autoritarismo e a ampliação e consolidação da cidadania considerada tarefa primordial de toda sociedade com vistas à garantia dos direitos civis sociais e políticos das classes trabalhadoras CFESS 2012 Com base nesse instrumento que norteia o fazer profissional doa assistente social compreendese a necessidade da atuação desses profissionais como forma de garantir aos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 230 usuários o acesso às políticas sociais que visem a emancipação humana e autonomia dos sujeitos Nessa perspectiva os direitos sexuais e reprodutivos são inerentes à cidadania plena Na perspectiva feminista aqui adotada os direitos reprodutivos dizem respeito à igualdade e à liberdade na esfera da vida reprodutiva Os direitos sexuais dizem respeito à igualdade e à liberdade no exercício da sexualidade O que significa tratar sexualidade e reprodução como dimensões da cidadania e conseqüentemente da vida democrática ÁVILA 2003 p 466 Esse processo de consciência em relação ao corpo desejos e direitos ainda está muito distante da realidade das mulheres especialmente das adolescentes como já foi exposto anteriormente Dessa forma em seus relacionamentos afetivos as jovens mulheres desconhecem seu corpo seus direitos e acabam inibindo suas vontades frente aos parceiros Existe uma grande dificuldade de construir uma relação linear e igualitária na qual as mulheres sejam ouvidas e consigam se posicionar sobre seus desejos e aspirações para o futuro Assim as mulheres não possuem espaço de expressão dentro das relações heteronormativas isso porque pela condição de gênero e por consequência pela condição de subalternidade as mulheres não tem papel de decisão dentro desses relacionamentos sendo que a palavra final ainda é a do homem Nesse sentido tornase imprescindível a construção de um espaço acolhedor onde as mulheres possam se abrir e dialogar sobre suas perspectivas e vontades para fomentar uma análise sobre suas vivências Essa realidade aponta para a necessidade de investimento em ações de educação sexual que tenham por base o direito à informação e uma análise crítica da condição social das mulheres levando em conta os papéis de gênero historicamente construídos e impostos a essas Tais ações precisam considerar a realidade dessas mulheres frente à sexualidade em suas especificidades sem ignorar seus desejos e principalmente suas relações Não se pode mais permanecer no modelo engessado e ultrapassado da relação entre mulher sexo e gravidez Dessa forma é preciso construir e disseminar conhecimento que dialogue com a realidade em que as mulheres se encontram levando em consideração o sistema patriarcal dando assim o primeiro passo para a ruptura com esse sistema que mata desvaloriza e não respeita a mulher Nas situações em que se apresenta um caso de estupro de vulnerável é muito importante que se desenvolva o vínculo com a usuária respeitando suas decisões mas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 231 principalmente que se faça da intervenção um momento de reflexão e construção de saberes Tornase necessário apreender mais sobre a realidade vivenciada pela usuária tendo em vista sua condição adolescente sem perder de vista seus direitos Sobre a conduta socioeducativa do assistente social o documento que estabelece Os Parâmetros para Atuação do Assistente Social na Saúde dispõe As ações socioeducativas eou educação em saúde não devem pautarse pelo fornecimento de informações eou esclarecimentos que levem a simples adesão do usuário reforçando a perspectiva de subalternização e controle dos mesmos Devem ter como intencionalidade a dimensão da libertação na construção de uma nova cultura e enfatizar a participação dos usuários no conhecimento crítico da sua realidade e potencializar os sujeitos para a construção de estratégias coletivas CFESS 2010 p 55 Dessa forma a intervenção voltada para a construção coletiva de saberes deve apreender a questão gênero não somente como fruto da relação entre homens e mulheres mas também pela ótica de que essa se estrutura com base em um sistema de dominação e exploração sóciosexual que demanda mais das mulheres Portanto não se pode desvincular o trabalho doa assistente social da ordem macroestrutural isso significa que as ações e intervenções propostas e executadas pelo Serviço Social não devem se esgotar no atendimento de questões emergenciais para resolver demandas pontuais Essa intervenção precisa sempre questionar a lógica do capital e no seu interior o sistema patriarcal tendo em vista seus desdobramentos na realidade dos usuários atendidos Nessa perspectiva é preciso que o fazer do assistente social seja despido das crenças individuais para que se objetive na intervenção a não moralização dos usuários pautandose nos conhecimentos técnicos da profissão uso adequado dos instrumentos de trabalho e sobretudo no código de ética profissional O propósito é desvelar as situações de violação de direitos da população atendida cujo papel pedagógico é central para orientar e munir as equipes multiprofissionais de conhecimento acerca deste tema para que possam ampliar o olhar frente às situações de violência contra criança e adolescentes no espaço em que estão inseridos CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesse sentido entendese que há uma necessidade expressiva frente à construção de saberes coletivos acerca das mais diversas expressões da violência contra as mulheres em Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 232 especial sobre o estupro de vulnerável para que seja possível desenvolver junto das mulheres a emancipação humana A respeito do trabalho do assistente social é essencial que osas profissionais busquem sempre desenvolver ações socioeducativas com base nos instrumentais da profissão visando a compreensão da realidade vivenciada pelas mulheres inseridas no sistema patriarcalcapitalista objetivando superálo e construir a justiça social É preciso ter em vista o modo como as configurações do capitalismo frente à questão social e suas expressões de gênero influenciam a vida das mulheres O atendimento na altacomplexidade muitas vezes revela as mais diversas expressões da questão social que perpassam a vida do usuário A multi demanda das usuárias é um reflexo da vulnerabilidade social do contexto em que elas estão inseridas Por este motivo o trabalho doa assistente social é tão importante no serviço em questão pois é somente com a intencionalidade do fazer profissional doa assistente social e com a postura ética que se torna possível apreender quais são os fatores que desencadearam as demandas dos usuários Existem muitas barreiras que dificultam o estabelecimento do vínculo entre o usuário e o serviço dentre eles a figura do profissional policial que teoricamente estaria ali para punir Essa visão por parte dos usuários sobre o Serviço Social se constrói com base na falta de informação dos usuários sobre qual é o sentido do trabalho profissional Portanto o profissional deve explicitar qual é a sua função e qual é o seu objetivo no atendimento tornando o usuário parte do processo para que se construa o sentimento de pertencimento O Serviço Social é uma profissão que trabalha com a subjetividade e as vontades do usuário Diferente do profissional do período préreconceituação que trabalhava com o objetivo de organizar a desordem o profissional atualmente precisa compreender que as realidades vividas pelos indivíduos se diferenciam Concluise portanto que existe a necessidade de desenvolver políticas que contribuam para o processo de resistência e afirmação do segmento feminino visando a construção de sua autonomia entendendo que este processo e a leitura e intervenção frente à questão de gênero deve abarcar também a construção de saberes para os homens levando em consideração a construção machista dos papéis de gênero e o que é predestinado aos homens e mulheres REFERÊNCIAS Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 233 ÁVILA Maria Betânia Direitos sexuais e reprodutivos desafios para as políticas de saúde Cad Saúde Pública 19 ed Rio de Janeiro Ensp 2003 BRASIL Decretolei nº12015 de 7 de agosto de 2009 Dispõe sobre os crimes hediondos Brasília DF ago 2009 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03 Ato200720102009LeiL12015htm Acesso em 08 set 2019 BRASIL Informativo sobre Gravidez na Adolescência impacto na vida das famílias e das adolescentes e jovens mulheres Brasília MS 2019 Disponível em httpwwwmds govbrwebarquivospublicacaoassistenciasocialinformeInformativo20Gravidez20ad olescC3AAncia20finalpdf Acesso em 11 ago 2019 BRASIL Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE Pesquisa Nacional de Saude Escolar 2012 Rio de Janeiro IBGE 2012 Disponível em httpsbibliotecaibge govbrvisualizacaolivrosliv64436pdf Acesso em 10 ago 2019 BRASIL Lei nº 8069 de 13 de julho de 1990 Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências Brasília DF Disponível em httpwwwplanalto govbrccivil03leisl8069htm Acesso em 23 ago 2019 BRASIL Ministério da 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acadêmico que tem como objetivo explorar o manejo da Gestaltterapia frente à queixa de abuso sexual na infância da mulher O número crescente de casos de mulheres vítimas deste tipo de violência na infância ou adolescência e a restrição de materiais envolvendo a temática através de uma visão gestáltica foi o motivador desta pesquisa Sendo assim a partir de uma perspectiva teórica e metodológica gestáltica buscase compreender como a Gestaltterapia lida com o tema do abuso sexual na infância e adolescência e descrever como a fenomenologia e método dialógico conceitos chaves desta abordagem se fazem presentes no manejo com mulheres vítimas de violência sexual Concluise que as marcas muitas vezes traumáticas deixadas pelos episódios de violência se estendem ao longo da vida como formas disfuncionais de adaptação e autorregulação que cristalizadas não assumem novas formas A Gestaltterapia portanto se apresenta primeiramente como um lugar de acolhimento e respeito para com o processo terapêutico trabalhar os bloqueios de contato e os ajustamentos disfuncionais geradores de sofrimento psíquico ajustando criativamente para concluir os ciclos de contato e fechar as gestalten abertas pelas marcas e traumas dos episódios de abuso sexual Palavraschave Gestaltterapia Abuso sexual Manejo INTRODUÇÃO É crescente o número de casos de mulheres que buscam a psicoterapia e que relatam já ter sofrido algum tipo de abuso e violência sexual O interesse pelo tema surgiu justamente pelo grande número de mulheres brasileiras vítimas desse tipo de violência durante a infância eou adolescência3 e pela restrição dos materiais bibliográficos sobre essa temática já que apesar da busca pela psicoterapia por essas mulheres ser crescente ainda há pouco material que relaciona a prática clínica da Gestaltterapia com o assunto 1Psicóloga psicoterapeuta Graduada pela Associação Catarinense de Ensino 2013 especializanda em Gestaltterapia pelo Centro de Estudos de Gestaltterapia de Santa Catarina CEGSC 2Psicóloga graduada pela Associação Catarinense de Ensino 1990 Especialização em Gestaltterapia pelo CEGPR 1995 Arteterapeuta pósgraduada pelo Alquimy ArtSPINPG 2007 Formação em Psicologia Transpessoal pela UnipazPR 2019 Psicoterapeuta de adultos e adolescentes desde 1990 Supervisora clínica Professora do Curso de Formação em Gestaltterapia CEGSC desde 2003 3 Segundo dados da Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência Abrapia registrase um total de 2349 denúncias de abuso e exploração de menores referentes ao período de fevereiro de 1997 à janeiro de 2003 O Brasil registrou ainda 1 estupro a cada 11 minutos em 2015 São os Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 236 Diante desse cenário foi possível reconhecer uma relação entre episódios de abuso sexual na infância ou adolescência e ajustamentos disfuncionais na fase adulta O manejo desses ajustamentos pela abordagem da Gestaltterapia se tornou portanto o tema central deste ensaio A hipótese levantada é a de que ao manejar em psicoterapia os ajustamentos disfuncionais da pessoa vítima de abuso sexual abrese o caminho para a ressignificação do trauma gerado pela violência A pesquisa referencial teve como objetivo sustentar teoricamente a hipótese à luz da abordagem supracitada Segundo a Organização Mundial de Saúde 2002 p 149 a violência sexual é qualquer ato sexual ou tentativa de obtenção de ato sexual por violência ou coerção comentários ou investidas sexuais indesejados ou diretamente contra a sexualidade de uma pessoa independentemente da relação com a vítima Para Jesus 2006 em casos de abuso existe uma relação de poder que é desigual Nos atendimentos psicoterapêuticos com mulheres vítimas desse tipo de violência é possível perceber que a maioria dos casos de abuso aconteceram na infância alguns permanecendo até a adolescência e que os abusadores na maioria das vezes eram membros da família Com isso entendese essa relação de poder como desigual já que sendo membros da família com frequência a vítima tem uma relação de confiança e dependência com o abusador além de normalmente serem pessoas mais velhas contribuindo para a relação respeite os mais velhos como uma submissão inclusive de diferenças na força física em se comparando o corpo de uma criança com o corpo de um adulto Melo e Dutra 2008 complementam que a figura dos adultos representa para a criança alguém socialmente responsável e autorizado a exercer poder Sendo assim a criança ou o adolescente na maioria das vezes confiam e obedecem a seus abusadores O enfoque deste trabalho é explorar como é o manejo do gestaltterapeuta frente à queixa de abuso sexual A Gestaltterapia segundo Yontef 1998 é definida por três princípios ser fenomenológica basearse no existencialismo dialógico e conceituarse na visão de mundo baseada no holismo e na teoria de campo Sendo assim partindo destes pressupostos o manejo do terapeuta frente a esta demanda deverá ser baseado na exploração fenomenológica do acontecimento além de cumprir seu papel de estar junto com seu cliente como pessoa permitindo e favorecendo sua alteridade GINGER A GINGER S 1995 O objetivo do artigo é portanto abordar este assunto a partir de uma perspectiva teórica e metodológica gestáltica compreendendo como a Gestaltterapia lida com o tema do abuso sexual na infância e adolescência e descrever como a fenomenologia e método dialógico se fazem presentes no manejo com mulheres que foram vítimas de violência sexual Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 237 1 DOS EVENTOS AO TRAUMA Percebese a partir dos escritos de alguns autores citados a seguir que os episódios de abuso sexual normalmente não são acompanhados de violência ou seja não caracterizam um estupro Segundo Kristensen Flores e Gomes 2001 p 110 Abuso sexual pode ser operacionalmente definido como o envolvimento de crianças e adolescentes dependentes e evolutivamente imaturos em atividades sexuais que eles não compreendem verdadeiramente para as quais não são capazes de dar seu consentimento informado e que violam os tabus sexuais dos papéis familiares A violência acaba aparecendo no sentido de se violar algo Há uma indução e coerção a coerção não costuma aparecer como força física recorrente nos casos de estupro mas como violação visto que afetos previamente estabelecidos pessoas próximas brincadeiras e carinho não raro estão envolvidos A ausência de violência física entretanto não significa a falta de consequências psíquicas negativas Já que o fato de existir um estímulo externo que não corresponde ao grau de evolução interna e às possibilidades de integração física e psíquica da vítima já é em si uma violência neste caso psicológica CALDATTO 2003 Para Sousa 2017 em consequência de uma sociedade patriarcal o ato sexual ainda é em muitos casos considerado um serviço imposto à mulher O agressor parte da ideia de que o não é um sim que ainda não foi revertido e de que no fundo a mulher quer aquilo tanto quanto ele que precisa apenas de algum outro estímulo a mais como drogas álcool ou força física para ceder SOUSA 2017 p 21 Granzotto 2018 fala do conceito de mulher objetificada e como as mulheres introjetaram esse olhar objetificante dos homens Ainda segundo essa psicóloga a violência contra a mulher vem sendo invisibilizada e naturalizada nos levando a pensar que um abuso pode ser considerado um hábito socialmente legitimado herança do pensamento machista imperado na sociedade brasileira informação verbal4 A naturalização do assunto nos leva ao conceito de cultura do estupro que segundo Sousa 2017 pode ser entendido como uma determinada prática social de cultura caracterizada entre outras coisas por ser algo feito de maneira corriqueira Essa mesma cultura do estupro ensina que os homens devem aproveitar toda e qualquer oportunidade de consumação sexual e que muitas vezes 4 Palestra dada Rosane Lorena Granzotto no XVI Encontro Nacional de Gestaltterapia XIII Congresso Brasileiro da Abordagem Gestáltica em Curitiba em julho de 2018 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 238 as mulheres que dizem não apenas o dizem porque são ensinadas a não dizer sim na primeira vez e que cabe a eles transformar aquele não em um sim SOUSA 2017 p 13 Quando se fala em abuso sexual envolvendo membros da mesma família podese pensar que essa cultura se intensifica ainda mais Segundo Miller 1995 a cultura do abuso ou estupro vem também para nos lembrar que o abuso sexual em si diz respeito ao exercício de poder por pessoas ocupando posições de autoridade pai chefe professor etc sobre os que delas dependem para proteção orientação e até sobrevivência Os abusadores buscam a satisfação para si mesmos abusando daqueles que deles dependem Pensando na concepção dos eventos e possíveis consequências de acordo com Mello 2008 as crianças vítimas de abuso sexual geralmente terão na construção de suas auto imagens visões negativas carregadas de culpa sofrimento e dor Consequentemente muitas desenvolvem percepções distorcidas acerca de si mesmas Sendo assim ficam evidentes os efeitos da violência pois há uma violação um desrespeito ao outro e ainda a possibilidade do desenvolvimento de um trauma complexo5 O aparecimento da violência pode também se dar após os episódios de abuso quando aparecem as ameaças do abusador para que o ato se mantenha em sigilo Segundo Kristensen Flores e Gomes 2001 além do medo da reação dos pais e da reação de outras pessoas outro fator que contribui para a manutenção do segredo é o medo da reação do abusador Isto porque normalmente o abusador sabe que está fazendo algo fora da norma e por isso não quer ser descoberto Além de oprimir ameaçar chantagear e fazer todo tipo de coação que deixa a vítima tão amedrontada que a impede de denunciar o abuso Isso leva à compreensão de que a maioria das mulheres vítimas de abuso sexual trazem somente o assunto à tona já na vida adulta Primeiro a elaboração do ocorrido pode demorar Darse conta de que foi um abuso nem sempre é algo rápido E segundo pelas ameaças que geralmente são feitas por quem a abusou além das consequências que a vítima na maioria das vezes acredita que terá Para Melo e Dutra 2008 percebese que em alguns casos a criança assume a responsabilidade pelo ocorrido já que o abusador faz a vítima acreditar que ela mesma foi a responsável pela violência que sofreu por têlo provocado para o ato ou por ter consentido em realizálo Além do sentimento conflitante de amor ainda existente por quem a abusou Viola et al 2011 p57 enfatizam que 5 Segundo Viola et al 2011 as reações e consequências ao trauma diferem quanto aos tipos de eventos traumáticos Um trauma complexo seriam as respostas ao trauma de início precoce de ocorrências múltiplas e às vezes de natureza invasiva e interpessoal maustratos na infância negligência infantil violência doméstica etc Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 239 indivíduos com histórico de abuso na infância raramente são expostos a apenas um único evento traumático pois geralmente o abusador é alguém próximo da vítima o que acaba por dificultar uma possível denúncia Sabe se também que em se tratando de violência doméstica o trauma pode ser mantido em segredo por longo tempo prejudicando a identificação de alguma síndrome póstraumática É possível pensar também que a vítima pode viver com a insegurança de perder o amor do abusador que na maioria dos casos são membros da família Kristensen Flores e Gomes 2001 p 136 afirmam nesse sentido que revelar ou não revelar o abuso para outra pessoa expressão relacionavase com a avaliação percepção das consequências da revelação 2 O TRAUMA DO ABUSO SEXUAL À LUZ DA GESTALTTERAPIA Partindo do princípio de que o abuso sexual pode ser um evento traumático ou gerar um trauma complexo fazse uma leitura gestáltica do tema Segundo Perls Hefferline e Goodman 1997 o trauma pode ser visto como situações inacabadas que podem gerar experiências sensoriais marcantes Por situações inacabadas podese entender como determinada situação do passado que ainda faz parte de alguma forma do presente daquela pessoa bloqueando o fluxo de sua vida em determinada esfera MESQUITA 2011 Tendo como exemplo a experiência de uma mulher que tenha sido abusada na infância eou adolescência a experiência na qual a pessoa se sentiu impotente e dominada pelo abusador pode não ser digerida nem assimilada organismicamente6 Isto faz com que esta experiência permaneça na memória como uma situação mal resolvida ou inacabada funcionando como algo introjetado que não foi assimilado e que contamina as vivências do presente gerando percepções distorcidas da realidade atual MELO 2007 O trauma pode também interferir no processo de autorregulação7 e por consequência no início do ciclo de contato pois contamina as sensações e as percepções O ciclo de satisfações de necessidades ou ciclo de contato é um importante pressuposto para a Gestalt terapia tornandose inclusive um dos seus focos de trabalho Tal ciclo referese ao processo 6 Para a Gestaltterapia o homem é visto como um organismo unificado não se acredita haver divisão entre mente e corpo Esta perspectiva holística visa a manutenção e o desenvolvimento de um bemestar harmonioso Sendo assim quando se fala em assimilação não se diz respeito somente à assimilação mental Pensamentos e ações são feitas da mesma matéria sendo as ações físicas motoras interrelacionadas às ações mentais Uma parte não assimilada pode ser capaz de afetar o todo assim como o todo pode afetar as partes FREITAS 2016 7 Na Gestaltterapia e segundo Goldstein 1995 a autorregulação organísmica é vista como uma forma do organismo de interagir com o mundo nesta interação o organismo pode se atualizar ou regularse respeitando a sua natureza do melhor modo possível Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 240 de formação e destruição de figuras ou necessidades O homem saudável identifica sem esforço a necessidade dominante no momento sabe fazer escolhas para satisfazêlas e está assim disponível para a emergência de uma nova necessidade GINGER A GINGER S 1995 p 129 No caso de uma pessoa que tenha passado por uma experiência traumática esse ciclo pode ficar interrompido e por consequência existir uma dificuldade em identificar ou satisfazer alguma necessidade A fronteira de contato ou seja a fronteira entre a pessoa e o mundo também sofre com as memórias traumáticas pois tornase rígida Isto é na tentativa de protegerse de outras situações traumáticas a pessoa pode fecharse para viver outras relações e situações afetivas Além disso o contato afetado pela experiência traumática fica sujeito a ajustamentos disfuncionais já que podem ficar voltados para o movimento de fuga luta ou paralisia BIANCHI KUBLIKOWSKI 2018 Na visão gestáltica o homem vive em uma tentativa de ajustarse ou autorregularse de forma tal que suas gestalten ou necessidades possam ser fechadas para que outras possam surgir completando assim o ciclo natural da vida PERUZZO 2011 Um novo recurso ou uma nova saída que a pessoa vai encontrar para satisfazer ou completar uma necessidade é chamada na Gestaltterapia de ajustamento criativo Quando a pessoa passa a generalizar a forma de se ajustar a muitas situações do seu dia a dia estes ajustamentos deixam de ajudála a adaptar o mundo as suas necessidades e passam a ser disfuncionais ou seja prejudicar a sua interação organismomeio PERUZZO 2011 p 21 Além da mulher lidar com o abuso sexual como um evento traumático e possivelmente como algo inacabado concordase com Granzotto 2018 que entende que a partir do momento em que há uma perda ou aniquilação das representações com as quais se estava identificada isso acarretará em sofrimento informação verbal8 levandose em conta que a neurose é uma fixação no passado que não muda PERLS HEFFERLINE GOODMAN 1997 p 181 Como situação inacabada há um esforço do organismo para satisfazer sua necessidade buscando o completamento da figura O caminho de trabalho da clínica gestáltica desenvolvese por meio do trabalho dialógico que favorece à pessoa ou ao cliente o processo de autorregulação e ajustamentos criativos saudáveis e não mais disfuncionais BIANCHI KUBLIKOWSKI 2018 3 AS MARCAS DO ABUSO 8 Palestra dada por Rosane Lorena Granzotto no XVI Encontro Nacional de Gestaltterapia XIII Congresso Brasileiro da Abordagem Gestáltica em Curitiba em julho de 2018 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 241 Além de pensar no trauma e no sofrimento psíquico como consequência dos abusos sofridos na infância Montgomery 2005 discorre sobre o tema trazendo informações sobre os sentimentos ambíguos no abuso O mesmo afirma que a criança no seu desenvolvimento saudável busca o prazer Por exemplo no brincar ao invés de fazer tarefas no preferir chocolate à sopa Em se tratando do abuso não é incomum que ao ser tocada a mesma também sinta prazer sexual ou não quando o abuso se dá dentro da família é mascarado de carinho fraternal e mimos o que desperta na criança sentimentos ambíguos MONTGOMERY 2005 p 27 Além disso o vínculo entre vítima e abusador vai se tornando sexualizado contendo ao mesmo tempo elementos positivogratificantes e elementos danosos para a criança PADILHA GOMIDE 2004 Sendo assim não é incomum surgir uma ambivalência de sentimentos em relação ao abusador e também aos pais Montgomery 2005 revela em seu livro alguns relatos de mulheres vítimas de abuso eu tinha 9 anos e resolvi contar tudo para minha mãe Lembrome que fiquei muito assustada Porém minha mãe além de não acreditar me deu uma surra para parar de mentir Em alguns momentos eu mesma duvidava do que acontecia comigo achava que minha mãe tinha razão que era coisa da minha cabeça Montgomery 2005 p 44 A confusão de sentimentos em relação ao abusador pode gerar uma dificuldade no desenvolvimento do afeto amor e confiança na vida adulta Padilha e Gomide 2004 trazem que a necessidade de afeto da criança acaba sendo suprida de forma sexualizada ou seja Com o acúmulo de experiências de abuso a vítima em sua confusão entre cuidado emocional e experiência sexual pode apresentar comportamento sexualizado quando na verdade quer cuidado emocional Além disso desenvolve uma dificuldade em confiar nas pessoas sejam próximas ou não Padilha Gomide 2004 p 54 Para a Gestaltterapia não podemos considerar um organismo dissociado do seu campo de inserção PERLS HEFFERLINE GOODMAN 1997 ou seja para compreendermos o indivíduo se faz necessário olhar para o campo em que este está inserido Considerando isto não se pode excluir o fato de que se o meio em que a mulher antes menina estava inserida era de ambiguidades de sentimentos e de sexualização exacerbada e precoce constituirse mulher não se dará sem os efeitos destas experiências 4 O MANEJO FRENTE À QUEIXA Considerase a Gestaltterapia uma abordagem que busca em sua essência traçar um conhecimento aprofundado da dinâmica psíquica humana decorrente de suas vivências Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 242 internas e externas explorando junto ao cliente os efeitos destas vivências na fixação de formas de interromper o contato com o mundo e com o si mesmo MELO 2007 Sobre o manejo de situações traumáticas em uma psicoterapia embasada na Gestalt terapia Bianchi e Kublikowski 2018 p 257 trazem que Podese perceber que a clínica gestáltica dispõe de instrumentos para manejo clínico em vítimas de trauma infantil uma vez que trabalha com a restauração do processo autorregulador do organismo busca a qualidade relacional permitindo o cuidado com as questões de apego e vínculo e facilita o aprimoramento da função criativa Sendo assim é nesse sentido que trabalha a psicoterapia gestáltica O terapeuta em conjunto com sua cliente que traz esse tipo de queixa irá explorar ao longo do processo terapêutico quais e se existem efeitos dos episódios de abuso e qual a ligação dos acontecimentos com seu adoecimento psíquico Conforme escrito anteriormente buscase neste trabalho a compreensão de como a fenomenologia e o método dialógico se fazem presentes no manejo da psicoterapia com vítimas de violência sexual Entendese que uma psicoterapia dialógica acolhe o indivíduo de forma singular e dentro do seu contexto relacional Por isso exige respostas únicas para situações que também são únicas para cada um Por dialógico não se quer dizer baseada somente no diálogo ou fala mas como uma forma de abordar o cliente Hycner e Jacobs 1997 p29 definem como dialógico o contexto relacional total em que a singularidade de cada pessoa é valorizada relações diretas mútuas e abertas entre as pessoas são enfatizadas e a plenitude e presença do espírito humano são honradas e abraçadas Acreditase que a valorização da singularidade da pessoa e de sua experiência abre espaço para superação de resistências e expansão de seus limites de crescimento Sendo assim à medida que terapeuta e cliente trabalham nos vários estágios da terapia que pode passar por momentos de hesitação do cliente esse pode começar a se sentir confirmado essa pessoa não se ressente mais da falta de recursos emocionais nem se sente tão ameaçada e resistente que não possa entrar em uma relação plena HYCNER JACOBS 1997 p 48 Precedendo o método dialógico a Gestaltterapia aborda o seu cliente por meio da compreensão fenomenológica que se caracteriza pelo uso de uma linguagem descritiva que se opõe à linguagem interpretativa e prescritiva AGUIAR 2005 p187 Uma atitude fenomenológica implica o terapeuta colocar de lado todo e qualquer préjulgamento acerca de seu cliente e do que o mesmo relata em sessão Isto é assim como na relação dialógica valorizase a singularidade das experiências do cliente Nesse sentido é possível fazer uma Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 243 correlação entre o método dialógico e a fenomenologia Para Yontef 1976 apud HYCNER JACOBS 1997 a atitude fenomenológica e dialógica do terapeuta propicia a awareness do cliente ou seja possibilita que este responda às situações de forma apropriada às suas necessidades e possibilidades Reconhecer isto é aceitarse sem a necessidade de julgar ou condenar sua experiência Desta forma na prática clínica o manejo da Gestaltterapia frente à queixa de abuso sexual será na tentativa de ajudar a cliente a perceber dentro de suas possibilidades de que forma ela assimilou ou não as experiências traumáticas e de que modo essas experiências estão permeando seus bloqueios de contato De acordo com Melo 2007 p 73 o objetivo é fazer com que a pessoa possa atuar diferente de forma mais ativa e agressiva diante daquela mesma situação à qual ela teve que se submeter passivamente por medo de ferir ou ser ferida Esperase que os introjetos tóxicos e as situações que ficaram inacabadas e por isto não puderam ser superadas nem esquecidas possam finalmente ser digeridas assimiladas e integradas à totalidade do Self promovendo assim a reorganização e crescimento da pessoa Diante disso acreditase que a forma como a clínica gestáltica lida com seus clientes possibilita a ressignificação de situações traumáticas tais como as situações de abuso sexual na infância ou adolescência possibilitando a eles uma nova forma de se relacionar com os outros e com o mundo sem o sofrimento vivido com as experiências de violência CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho teve como objetivo discutir o manejo da Gestaltterapia frente a queixa de abuso e violência sexual na infância apresentando os recursos teóricos e clínicos de que a abordagem dispõe para possibilitar ao cliente uma nova forma de assimilação dos episódios de violência Para tal foram abordados três princípios da Gestaltterapia fenomenologia existencialismo dialógico e teoria de campo mais especificamente o que se refere ao contato Com base nos autores citados ao longo do presente artigo podemos entender a relação dos episódios de violência com as respostas organísmicas das vítimas Recorrentemente em ambientes familiares e promovidos por pessoas da família os abusos e atos de violência geram uma pluralidade de sensações e emoções muitas delas ambivalentes que dificultam a assimilação por parte da criança não raro por longos períodos podendo se estender até a vida adulta A impossibilidade de assimilação é o que chamamos de trauma Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 244 O trauma e as marcas deixadas pelos episódios de violência se estendem ao longo da vida como formas disfuncionais de adaptação e autorregulação que cristalizadas não assumem novas configurações Tais adaptações disfuncionais podem ser então entendidas como o conceito de doença na visão da Gestaltterapia O terapeuta juntamente com o cliente em uma clínica gestáltica e a partir de seus princípios podem promover a ressignificação desses traumas e dessas marcas e em consequência possibilitar respostas saudáveis e funcionais para a cliente A Gestaltterapia portanto se apresenta principalmente como um lugar de acolhimento e respeito para com o processo terapêutico trabalhar os bloqueios de contato e os ajustamentos disfuncionais geradores de sofrimento psíquico transformandose criativamente para concluir os ciclos de contato e fechar as gestalten abertas pelas marcas e traumas dos episódios de abuso e violência sexual REFERÊNCIAS AGUIAR L Gestaltterapia com criancas Teoria e prática São Paulo Livro Pleno 2005 BIANCHI D KUBLIKOWSKI I Efetividade da Clínica Gestáltica no Tratamento do Trauma Infantil ESTUDO DE CASO Lisboa ISPA Instituto Universitário 2018 Disponível em httprepositorioispaptbitstream10400126185112CongNacSaude251pdf Acesso em 06 out 2018 CALDATTO E M Olhar gestáltico sobre o fenômeno da violência sexual Florianópolis 2003 Disponível em httpwwwcomunidadegestalticacombrsitesdefaultfilesElianaMaria20CaldattoOl har20gestalticosobreo20fenômenoda20violência20sexualpdf Acesso em 29 jul 2018 FREITAS J R C B 2016 A relação terapeutacliente na abordagem gestáltica In IGT na Rede Disponível em httppepsicbvsaludorgscielophpscriptsciarttextpidS1807 25262016000100006lngpttlngpt Acesso em 27 nov 2018 p 85104 HYCNER R JACOBS L Relação e cura em Gestaltterapia São Paulo Summus 1997 GINGER S GINGER A Gestalt uma terapia do contato 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pelo Poder Judiciário por ser considerada como pessoa vulnerável financeira e socialmente A vítima foi esterilizada contra sua própria vontade sob argumentos injustificados logo após um procedimento de parto Tendo isso em vista pretendese partindose da análise do caso demonstrar os instrumentos e motivações explícitos e implícitos de ações que visam controlar a natalidade no país mesmo que para isso violências sejam praticadas em face de mulheres Ressaltase por fim a necessidade de se repensar a origem dos problemas enfrentados ao invés de promover a esterilização por que não optar por métodos alternativos de contracepção ou mesmo pela adoção de outras medidas protetivas Palavraschave Violência Autonomia Natalidade Esterilização Mulher INTRODUÇÃO Imaginese a situação de uma mulher gestante que em decorrência da arbitrariedade do Poder Judiciário é submetida a um procedimento de laqueadura tubária esterilização mesmo contra a sua própria vontade Esta foi a realidade de muitas mulheres e recentemente a de Janaina Aparecida Quirino a qual figurou como requerida em uma Ação Civil Pública interposta pelo Ministério Público de Mococa São Paulo com o intuito de que fosse submetida compulsoriamente a 1 Advogada Doutoranda e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná bolsista PROSUP Especialista em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional ABDConst Pósgraduanda Legal Tech Direito Inovação e Start Ups pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Editora Adjunta da Revista da ABDConst Membro Núcleo de Estudos de Pesquisas em Tributação Complexidade e Desenvolvimento e do Grupo de pesquisa Análise Econômica do Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná Membro da Comissão de Igualdade Racial e da Verdade da Escravidão Negra da OABPR mokfhotmailcom Lattes httplattescnpqbr4312339156293623 2 Estudante Graduanda em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná Integrante do Grupo de Estudos de Análise Econômica do Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná Pesquisadora de Iniciação Científica Voluntária 20192020 ariefernedaxxgmailcom Lattes httplattescnpqbr3222637526954534 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 248 um procedimento de laqueadura devido ao fato de ser considerada como uma pessoa que vive de forma desregrada usuária de substâncias e de álcool A cirurgia foi realizada em 2018 logo após o parto de Janaina ainda que pendente um recurso de apelação o qual por ocasião de seu julgamento entendeu por decretar a extinção do processo diante das ilegalidades que ocorreram durante a demanda Porém já não adiantava mais o procedimento havia sido realizado Tendo em vista as diversas violações de direitos perpetradas pelo próprio Poder Judiciário o presente estudo busca analisar o desenvolvimento das políticas populacionais do controle de natalidade bem como do planejamento familiar Após buscase identificar as causas que dão azo à perpetração de violências contras as mulheres de modo a desconsiderar a sua autonomia individual e seus direitos sexuais e reprodutivos Assim o artigo se subdivide em duas partes desenvolvidas a partir do método descritivo e de revisão bibliográfica e de caso Na primeira serão analisadas as origens das políticas e concepções acerca do controle de natalidade das políticas populacionais bem como do planejamento familiar No segundo momento o caso da Janaina Aparecida Quirino é utilizado como exemplo claro das falhas dos programas de planejamento familiar os quais são repletos de ineficiências uma vez que permeados pela desinformação e como será abordado pela discriminação de alguns grupos de pessoas Desse modo buscase uma reflexão sobre a forma como as políticas populacionais são implementadas com base no planejamento familiar Há portanto evidente necessidade de se repensar o controle de natalidade não mais como forma de erradicação da pobreza e promoção do desenvolvimento socioeconômico de uma população A origem dos problemas socioeconômicos enfrentados não se remedia com a esterilização de mulheres mas com informações e principalmente com respeito aos direitos sexuais e reprodutivos 1 O CONTROLE DE NATALIDADE AS POLÍTICAS POPULACIONAIS E O PLANEJAMENTO FAMILIAR O tema a respeito do controle de natalidade e o aumento populacional há muito preocupa a sociedade e direta ou indiretamente se relaciona com os recursos que se possui a disposição O debate sobre as políticas populacionais por sua vez é cercado de tabus e eivado de conotações ideológicas Inicialmente as argumentações sobre população e desenvolvimento iniciaram de maneira otimista à época do iluminismo século XVIII na qual os pensadores eram partidários da ideia de progresso ARRUDA PILETTI 2000 p 230 Em 1776 o Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 249 economista Adam Smith 1983 p 56 sinalou que o marco mais decisivo da prosperidade de qualquer país é o aumento no número de seus habitantes Em oposição aos debates progressistas a voz destoante veio do pastor Thomas Robert Malthus Nesse sentido as discussões de cunho pessimista possuem sua origem em essência na escassez de recursos Isto é se a população aumenta consequentemente os recursos diminuem inviabilizando assim qualquer tipo de progresso social ALVES 2014 p 220 A partir das ideias de Malthus portanto que a teoria populacional ganhou força e ainda é fundamento para diversas abordagens utilizadas atualmente Por meio desta teoria em 1798 em pleno contexto da Revolução Industrial em que houve uma grande alteração no caráter do trabalho ARRUDA PILETTI 2000 p 239 Malthus apontou a população como culpada pelos seus próprios males considerada como o principal obstáculo ao desenvolvimento econômico e social ALVES 2004 p 22 Nesse sentido o pastor propôs que a produção de alimentos cresceria de forma aritmética 1 2 3 4 enquanto o crescimento populacional ocorreria de forma geométrica 1 2 4 8 de modo a alcançar a discrepância entre a demanda de alimentos devido à ampliação da população e a oferta daqueles MALTHUS 1959 p 78 Como consequência surge a necessidade de redução da natalidade uma vez que expandindose a população para além dos limites da subsistência a fome a miséria e os vícios passariam a pressionar a sociedade Desse modo a redução poderia ocorrer de modo natural por meio de guerras epidemias e fome ALENCAR 1973 p 178 Contrapondo a posição de Malthus no século XIX Karl Marx afirmou que o capitalismo seria capaz de gerar bens e serviços em progressão superior ao crescimento demográfico Igualmente o excesso da população seria uma estratégia criada para a criação de um estoque de seres humanos destituídos dos meios de produção e à disposição da burguesia Por outro lado as discussões a respeito da população e do desenvolvimento foram retomadas de modo ainda mais intenso com o advento da transição demográfica a qual é formulada à luz da relação entre o crescimento populacional e o desenvolvimento socioeconômico VASCONCELOS GOMES 2012 p 540 O objetivo da transição é em suma promover a passagem de elevadas para reduzidas taxas de natalidade e mortalidade Tratase de um fenômeno estrutural importante e fortemente condicionado pelas condições históricas e sociais de um determina país onde se realiza BRITO 2008 p 6 Ou seja a transição realizada em um país subdesenvolvido não promoveria grandes transformações econômicas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 250 É nesse contexto que surge a teoria neomalthusiana a qual atrelou o controle de natalidade a questões de saúde preocupandose inclusive com o bom nascimento e a boa educação CABELEIRA 2012 p 83 Destacouse portanto a diferença entre fazer amor e fazer filhos Houve ainda a criação de teses para tratar especificamente da copulação preventiva e da esterilização voluntária uma vez que defendiase a estabilidade populacional pela redução das taxas de fecundidade CABELEIRA 2012 p 84 ALES 2014 p 221 A concepção neomalthusiana por outro lado ecoou ao longo dos tempos tanto é assim que no contexto da Guerra Fria foi amplamente utilizada nas disputas ideológicas Para os países capitalistas havia necessidade de reduzir a fecundidade para promoção do desenvolvimento e erradicação da pobreza Em contrapartida nos países do Terceiro Mundo e na União Soviética defendiase a prioridade do fortalecimento das políticas de apoio ao desenvolvimento em contraposição ao controle da natalidade e ao planejamento familiar ALVES 2014 p 222 Inobstante destacase o exemplo do governo chinês anteriormente comunista que condenava qualquer método de controle de natalidade Entretanto em 1979 sob o governo de Deng Xiaoping adotouse uma política malthusiana consistente na requisição aos casais chineses da etnia Han majoritária no país a terem apenas um filho Ademais referida política era severa exigindose certificado de filhoúnico incentivos para utilização de contraceptivos esterilização aborto e punição para os transgressores LI 1995 Por outro lado com o fim da Guerra Fria realizouse no Cairo em 1994 a Conferência Internacional de População e Desenvolvimento CIPD na qual se ressaltou a defesa dos direitos humanos e dos direitos reprodutivos Na oportunidade restou definido que os direitos reprodutivos consistem na liberdade de escolha das pessoas para definir como quando e quantos filhos desejam ter ALVES 2014 p 224 Feitas as considerações iniciais a respeito do desenvolvimento dos ideais de políticas populacionais salientase por oportuno que no Brasil as concepções a respeito do planejamento familiar controle de natalidade e política populacional foram consideradas como sinônimas Ocorre que a política populacional consiste na conjugação de três elementos mortalidade natalidade e migração e representa um conjunto de medidas destinadas a modificar o estado de uma população de acordo com interesses sociais determinados SILVA 1986 p 923 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 251 Não obstante referidas políticas são consideradas como as intenções do Estado e de instituições variadas com o objetivo de alterar as tendências demográficas de uma população ressaltando que há um conteúdo social e ideológico na adoção dessas políticas CAMARGO 1980 p 86 Nesse sentido propõemse a subdivisão das políticas populacionais de acordo com suas abrangências caráter meios e níveis da seguinte forma i Sobre a dinâmica demográfica mortalidadeesperança de vida natalidadefecundidadefertilidade migração nacional e internacional e nupcialidade ii Sobre o ritmo de crescimento expansionista natalista reducionista controlista e neutra laissezfaire iii Sobre o nível de aplicação individual familiar casal e institucional iv Sobre o caráter das políticas pública e privada v Sobre a transparência dos objetivos implícitas e explícitas vi Sobre a finalidade dos propósitos intencionaisantecipadas e nãointencionaisnãoantecipadas vii Sobre a tempestividade das ações proativaprevenir reativa remediar viii Sobre o caráter de implantação democráticaconsensual e autoritáriacoercitiva ALVES 2006 p 24 Por sua vez o controle de natalidade entendida como uma imposição estatal e como uma ideologia é uma forma coercitiva de retirar direitos e atribuir à população problemas que não são dela ALVES 2004 p 22 O controle implica intervenção impositiva estatal e nas palavras de Bresser Pereira 1978 p 45 poucos temas são mais carregados de conotações ideológicas do que o controle da população Em relação ao planejamento familiar tratase de uma regulação através da qual as pessoas estabelecem o tamanho de sua família por meio de orientações e apoio Igualmente com o avanço das conquistas feministas o planejamento familiar foi inserido no contexto da saúde integral da mulher ALVES 2004 p 31 O Planejamento Familiar nesse sentido é entendido como um conjunto de ações que busca o controle de fecundidade BRASIL 1996 Os métodos e as orientações por sua vez buscam facilitar a escolha e a utilização de determinado planejamento familiar que garanta direitos iguais de constituição limitação ou aumento da prole pela mulher Nada obstante referidas ações buscam fortalecer os direitos sexuais e reprodutivos dos indivíduos e se pautam em ações clínicas preventivas educativas oferta de informações e dos meios e técnicas para regulação da fecundidade além de fornecer orientações quanto à segurança e eficácia do uso de métodos contraceptivos Por outro lado cabe pontuar que no Brasil as primeiras políticas sociais voltadas à questão da natalidadefecundidade foram no governo Vargas 19301945 as quais possuíam efetivamente objetivos natalistas Exemplo disto pode ser observado por meio do Decreto Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 252 Federal n 202911932 que estabelecia a vedação ao médico de prática que tivesse por objetivo impedir a concepção ou interromper a gestação Igualmente verificase a mesma conotação através da Lei das Contravenções Penais a qual proibia o uso de substância que provocasse o aborto ou evitasse gravidez Do mesmo modo a Constituição de 1937 estabelecia junto ao seu art 124 que as famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção de seus encargos ROCHA 1987 Ainda denotase que desde o século XIX uma política natalista foi adotada como cultura nacional o que foi reforçado no governo militar de 19641970 a partir do qual foram criadas políticas para o crescimento demográfico e preenchimento de regiões vazias Amazonas e Planalto Central CANESQUI 1985 p 3 Nesse sentido a elite brasileira e o governo não vislumbravam o crescimento populacional como um empecilho a economia Acreditavase por outro lado que existia uma sinergia entre dinâmicas populacionais e econômicas elevadas ALVES 2006 p 23 Até então o Brasil não possuía uma política voltada à disciplina da dinâmica demográfica o que acabou gerando políticas de planejamento familiar nos anos de 1966 a 1975 preconizadas pela Sociedade Bemestar da Família BENFAM a qual passou a oferecer serviços relacionados ao controle de fecundidade MEDICI BELTRÃO 1996 p 13 Ressaltase ainda que durante o governo Geisel 19741979 optouse por uma política mais desenvolvimentista atrelada ao planejamento familiar Iniciouse então uma segregação enquanto as parcelas mais ricas da população possuíam acesso à regulação e à orientação as mais pobres não ALVES 2006 p 23 Ademais importante se destacar que o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher PAISM elaborado em 1984 representou um grande avanço Este programa posicionou o Brasil em situação efetivamente neutra na discussão dos natalistas e controlistas bem como incluía ações educativas preventivas de diagnóstico tratamento e recuperação abrangendo a assistência à mulher em clínica ginecológica em planejamento familiar além de outras necessidades identificadas a partir do perfil populacional das mulheres cujos serviços assaram a ser ofertados pelo Sistema Único de Saúde SUS BRASIL 2004 p 17 Inobstante isso a construção do planejamento familiar ocorreu de modo mais concreto com o advento da Constituição Federal de 1988 Nesse sentido o art 226 7º da CRFB de 1988 dispõe que o planejamento familiar é de livre decisão do casal competindo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 253 ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas BRASIL 1988 Destacase que ainda que o tema da esterilização feminina não tenha sido integrado ao texto Constitucional este foi muito discutido em especial a partir dos casos de esterilização em massa os quais foram deflagrados em 1991 e precederam as discussões a respeito da regulamentação de políticas de planejamento familiar Instaurada em 1992 a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito tinha como objeto investigar a incidência da esterilização em massa de mulheres no Brasil e fundamentouse nas seguintes denúncias a esterilização era oferecida como a principal e única forma de contracepção dentro de uma orientação de controle de natalidade havia a falta de informação sobre contracepção e o processo reprodutivo a situação de miséria e falta de esclarecimentos para as mulheres que se submetiam a cirurgia grande número de arrependimentos predominância de mulheres negras indícios de que o atestado de esterilização estava sendo exigido para a obtenção de vagas de trabalho BRASIL 1991 Em 1996 revelouse que a esterilização feminina correspondia a 57 do uso de anticonceptivos artificiais devido à ausência de conhecimento sobre alternativas de contracepção e desconhecimento sobre os riscos sequelas e irreversibilidade dos procedimentos de esterilização Destacase ainda que dentre as pessoas que realizaram o depoimento na CPMI estava Sônia Beltrão que alegava ter sido esterilizada sem o seu consentimento em um hospital do Rio de janeiro BRASIL 1991 Ademais algumas das conclusões tomadas ao final das investigações auxiliaram a regulamentação da política de planejamento familiar no Brasil Dentre as considerações apontase o controle de fertilidade no Brasil era feito pela BENFAM e o Centro de Pesquisas e Assistência Integral à Mulher e à Criança CPAIMC os quais eram subsidiados por recursos e interesses estrangeiros realizando um efetivo controle de natalidade necessidade de ampliação do PAISM no SUS para conter inclusive os interesses internacionais altas reduções da fecundidade no Brasil na década de 1980 decorriam da utilização de pílula e da esterilização e defendeuse a regulamentação do art 226 7º da CRFB1988 sobre o planejamento familiar BRASIL 1991 Tendo em vista a investigação e as constatações realizadas a Lei do Planejamento Familiar publicada em 1996 foi editada com o intuito de regular o 7º do art 226 da Constituição Federal de 1988 Buscase através dela promover ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição limitação ou aumento da prole pela mulher pelo homem ou pelo casal BRASIL 1996 Ainda fazse um importante realce ao Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 254 art 10 do texto legal em que o tema da esterilização é tratado de modo a impor alguns requisitos para sua efetivação os quais serão analisados no tópico seguinte Em 2005 por outro lado foi divulgada a Política Nacional de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos em que se focalizou a atuação na ampliação de métodos anticoncepcionais reversíveis ampliação do acesso à esterilização cirúrgica e a introdução da reprodução humana assistida no SUS BRASIL 2005 p 1617 Nesse sentido é possível compreender a abordagem sobre o controle de natalidade no Brasil é feita por meio da política de Planejamento Familiar enquanto política pública que possui em tese um direcionamento individual e familiar Ressaltase ainda que no presente estudo buscase analisar as práticas implícitas de controle de natalidade com conotação discriminatória aplicada às mulheres em situação vulnerável cuja esterilização é realizada claramente com o intuito de reduzir a fecundidade para supostamente erradicar problemas sociais Retornase assim à teoria malthusiana a população é culpada pelas próprias mazelas 2 ESTERILIZAÇÃO COERCITIVA E A VIOLAÇÃO DA AUTONOMIA INDIVIDUAL DA MULHER UMA ANÁLISE DO CASO JANAINA APARECIDA QUIRINO Dentre os métodos autorizados e utilizados para promoção do planejamento familiar encontrase a esterilização voluntária a qual é permitida em determinadas situações e desde que atendidos os seguintes requisitos i em homens e mulheres dotados de capacidade civil plena e desde que maiores de vinte e cinco anos de idade ou pelo menos com dois filhos vivos ii observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar visando desencorajar a esterilização precoce iii risco à vida ou à saúde da mulher ou do futuro concepto testemunhado em relatório escrito e assinado por dois médicos art 10 I e II da Lei n 92631996 Para que se realize a esterilização é necessário que haja manifestação de vontade em documento escrito e firmado devem ser fornecidas informações a respeito dos riscos da cirurgia possíveis efeitos colaterais dificuldades de sua reversão bem como a respeito das opções de contracepção reversíveis existentes art 10 1º da Lei n 92631996 Entretanto contrariando disposições expressas quanto à possibilidade e autorização da esterilização o Ministério Público em 30052018 propôs uma Ação Civil Pública ACP Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 255 em face de Janaina Aparecida Quirino A ACP foi proposta com o intuito de atuar em defesa dos interesses individuais indisponíveis cujo fundamento justificou a legitimidade do órgão ministerial BRASIL 2017 A requerida da demanda considerada como hipossuficiente era à época dos fatos usuária contumaz de álcool e substâncias ilícitas De acordo com o representante do Parquet Janaina sempre se recusou a aderir aos tratamentos ambulatoriais aos quais foi submetida por diversas vezes Mãe de cinco filhos os quais já estiveram sujeitos ao procedimento de acolhimento institucional foi considerada incapaz de prover as necessidades básicas de sua prole além de colocálos em potencial risco em razão do uso de álcool e drogas BRASIL 2017 Sendo assim Janaina foi submetida ao procedimento de esterilização laqueadura tubária com o objetivo de evitar novas gestações indesejadas e irresponsáveis tendo em vista que segundo o Ministério Público a requerida possui uma vida desregrada e apresenta comportamento de risco Isto é a esterilização compulsória resolveria o fato de Janaina utilizar substâncias ilícitas levar uma vida desregrada sem residência fixa possuir comportamento de risco ou mesmo contrair doenças venéreas Entretanto a partir da análise dos autos constatouse que o Departamento Municipal de Saúde de Mococa local onde Janaina residia emitiu parecer afirmando que a paciente demonstrou interesse em realizar a cirurgia de esterilização porém não possuía condições de dar prosseguimento ao procedimento de laqueadura sem motivação especificada Ainda assim o pedido específico do Parquet consistiu na A concessão da tutela de urgência para que o requerido MUNICÍPIO DE MOCOCA seja obrigado a providenciar em favor de JANAÍNA APARECIDA QUIRINO a laqueadura tubária pleiteada precedida do indispensável laudo médico nos termos do artigo 10 inciso II da Lei nº 926396 devendo fazêlo mesmo contra a vontade desta sob pena de multa diária em valor não inferior a R50000 quinhentos reais SÃO PAULO 2018 p 56 Destacase ainda a fundamentação do Ministério Público O direito à saúde é indisponível e está intimamente relacionado à dignidade da pessoa humana e à própria vida Assim não resta alternativa ao Ministério Público senão o ajuizamento da presente ação para compelir o MUNICÍPIO DE MOCOCA a realizar a laqueadura tubária em JANAÍNA bem como para submetêla a tal procedimento mesmo contra a sua vontade tudo em conformidade com o disposto na Lei nº 926396 e preceitos constitucionais que consagram a saúde como dever do Estado e direito de todos Logo tratase de direito inserto no chamado mínimo existencial cuja garantia é obrigação e responsabilidade do Estado mormente à luz do Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 256 princípio da dignidade da pessoa humana fundamento da Constituição Federal consoante seu artigo 1º inciso III SÃO PAULO 2018 p 56 Nesse sentido o órgão ministerial salientou que apenas a esterilização seria eficaz para salvaguardar a sua vida a sua integridade física bem como a de eventuais outros filhos que poderiam nascer e ser expostos a riscos em virtude do comportamento destrutivo da mãe Ainda vincula a esterilização a laqueadura tubária como diretamente relacionado ao direito à saúde e somente com uma abordagem nesse sentido garantirase o mínimo existencial O MPSP pediu a concessão de tutela provisória de urgência acostando alguns documentos inclusive um relatório informativo dirigido ao juiz em que uma assistente social do Centro de Referência Especializado de Assistência Social CREAS descrevia que Janaína possuía sinais de embriaguez e não cumpria as orientações da equipe e também não aderia aos serviços oferecidos pela rede de saúde No mesmo relatório é informado que as três crianças mais novas estavam acolhidas podendo indicar medida de proteção do tipo acolhimento institucional3 SÃO PAULO 2018 p 910 Em outro relatório de agentes de saúde há a narrativa de uma entrevista com Janaína em que esta informa não ter discutido com equipe de saúde sobre procedimentos e que também não foi iniciada a laqueadura Entretanto a equipe negou a realização dessa entrevista afirmando possuírem registro do processo e que Janaína possuía perda de memória ambas as alegações não foram comprovadas em documentos juntados aos autos Ademais concluíram que Janaína não teria condições de realizar a laqueadura mesmo diante da manifestação de seu interesse na cirurgia SÃO PAULO 2018 p 1112 Em conclusão a assistente social sugeriu a internação compulsória para tratamento da dependência química uma vez que Janaína se mostrava resistente ao tratamento ambulatorial e assim colocava e risco potencial a sua vida e de seus filhos SÃO PAULO 2018 p 1316 Após foi prolatada decisão 07062017 determinandose a avaliação psicológica de Janaína uma vez que havia manifestado interesse pela laqueadura Entretanto como demonstrado anteriormente no relatório de acompanhamento em que ela manifestou esse interesse a profissional responsável opinava no sentido de que ela não teria conduções de se submeter a cirurgia SÃO PAULO 2018 p 9 3 Conforme a Lei nº 80691990 Estatuto da Criança e do Adolescente Art 98 As medidas de proteção à criança e ao adolescente são aplicáveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaçados ou violados I por ação ou omissão da sociedade ou do Estado II por falta omissão ou abuso dos pais ou responsável III em razão de sua conduta Art 101 Verificada qualquer das hipóteses previstas no art 98 a autoridade competente poderá determinar dentre outras as seguintes medidas VII acolhimento institucional Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 257 Em 26 de junho de 2017 o laudo psicológico informou que Janaína sóbria e com discurso colaborativo já havia perdido o poder familiar sobre os quatro filhos mais novos e ela teria manifestado o interesse em fazer a laqueadura tubária mas que havia desistido devido a demora e complexidade da triagem e eventuais perdas de interesse quando sob o efeito de álcool SÃO PAULO 2018 p 25 Neste segundo relatório destacase que Janaína declarou seu interesse em retomar os tratamentos contra o vício ao passo que seu companheiro não SÃO PAULO 2018 p 26 Encerrou a Psicóloga Judiciária anotando que Sendo assim considerando os direitos sexuais e reprodutivos femininos e o desejo consciente de Sra Janaína em realizar a laqueadura somado a sua declaração em que não se adaptou a outros métodos contraceptivos opinamos favoravelmente a realização da cirurgia de laqueadura SÃO PAULO 2018 p 27 Janaína foi orientada a declarar seu desejo referente à realização da cirurgia de laqueadura no Cartório da Comarca de Mococa SÃO PAULO 2018 p 28 O juiz da 2ª Vara do Foro e Mococa São Paulo 27062017 deferiu parcialmente a tutela antecipada requerida no sentido de condenar o Município de Mococa a realizar a cirurgia de esterilização de Janaína estabelecendo prazo de 30 dias sob pena de multa diária como destacado anteriormente com fundamento no direito à saúde SÃO PAULO 2018 p 30 31 Janaina foi citada em 03072017 por oficial de justiça SÃO PAULO 2018 p 43 Entretanto em 01082017 foi emitido outro relatório informando que Janaína não havia comparecido a consulta ginecológica possuía aspecto desnutrido e fazia uso diário de álcool SÃO PAULO 2018 p 46 O MPSP reiterou o caráter compulsório da laqueadura reafirmando que o prazo já havia se esgotado e o Município deveria cumprir a ordem judicial no prazo de 48 horas com majoração da multa SÃO PAULO 2018 p50 o que foi acolhido pelo juízo em 15082017 SÃO PAULO 2018 p 51 O Município juntou aos autos novo relatório agora pela Coordenadora do CAPS local em 30082017 informando que Janaína havia sido acolhida para tratamento contra dependência química e foi constatado que se encontrava em estado gravídico SÃO PAULO 2018 p63 A tutela de urgência foi suspendida em 04092017 SÃO PAULO 2018 p 68 após precluiu o prazo para Janaína se manifestar Destacase que a única notificação realizada foi a citação Em 06092017 o MPSP reiterou o pedido e requereu que fosse enviado ofício ao departamento de saúde municipal para que fosse informada a provável data do parto SÃO PAULO 2018 p 7274 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 258 Em 21092017 o Município de Mococa peticionou com o objetivo de produzir provas da incapacidade da ré e requerendo somente naquele momento a nomeação de curador especial dativo SÃO PAULO 2018 p 8082 Sobre esse ponto citase a manifestação do MPSP em 25092017 o presente feito já apresenta elementos seguros e satisfatórios acerca do estado de saúde física e psíquica da requerida à vista dos relatórios fls 0917 oriundos do CREAS Departamento de Saúde CAPSAD e do setor social assistente social deste juízo bem como do laudo do estudo psicológico realizado pelo setor técnico deste juízo fls 2428 os quais denotam não se tratar a requerida de pessoa incapaz muito embora não possua quaisquer condições de fornecer os cuidados necessários à futura prole SÃO PAULO 2018 p 90 Em 05102017 foi publicada a sentença e o magistrado de primeiro grau entendeu que os documentos acostados aos autos eram suficientes para afastar a incapacidade de Janaína não havendo assim decisão ou pedido de curatela em seu favor SÃO PAULO 2018 p 92 Ainda o juiz entendeu ser cabível o julgamento antecipado da lide sem a necessidade de dilação probatória e assim julgou procedente a demanda SÃO PAULO 2018 p 94 A sentença possui como fundamento na obrigação das sic pessoas políticas assegurarem sic a efetividade do direito à saúde do cidadão SÃO PAULO 2018 p 94 e que por mais que o Município nada tenha trazido aos autos eventual alegação quanto ao princípio da reserva do financeiramente possível não poderia ser considerada sic SÃO PAULO 2018 p 95 Nesse sentido condenou o Município de Mococa a realizar a laqueadura sobre Janaína logo após o parto sob pena de multa diária SÃO PAULO 2018 p 95 O Município apresentou suas razões ao recurso de apelação no dia 07112017 SÃO PAULO 2018 p 9798 e dentro do prazo o MPSP apresentou suas contrarrazões Entretanto antes de a apelação ser recebida pelo Tribunal na data de 08112017 foi juntado aos autos relatório requerido pelo MPSP de visita de equipes de saúde à casa de Janaína informando que ela estava com saúde ruim infecção urinária consumindo álcool e outras substâncias No referido relatório recomendouse sua internação compulsória para tratar da dependência química e também para a laqueadura SÃO PAULO 2018 p114115 MPSP também informou no processo que Janaína estava presa preventivamente por decisão do mesmo juiz por suspeita de tráfico de drogas art 33 da Lei nº 113432016 Nesta oportunidade o MPSP requereu a expedição de ofício ao estabelecimento onde estava a ré custodiada para que fosse determinada a realização de laqueadura compulsória quando Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 259 nascesse seu filho SÃO PAULO 2018 p 118 Este pedido foi deferido em 28112017 SÃO PAULO 2018 p 119 No dia 14032018 data em que ocorreu o relatório do Tribunal a diretora Técnica da Penitenciária encaminhou ofício ao juízo informando a realização do parto e da laqueadura em 14022018 em atendimento ao requerido que determina a realização de tal procedimento SÃO PAULO 2018 p 146 Destacase ainda que por ocasião da interposição de recurso de apelação do Município o Tribunal de Justiça de São Paulo determinou a extinção do processo diante das ilegalidades que ocorreram durante a demanda SÃO PAULO 2018 A anulação em sede recursal no entanto não teve os efeitos pretendidos pois o procedimento já havia sido realizado Salientase por oportuno que o presente trabalho não se presta à análise dos impactos sociais ou econômicos de uma pessoa hipossuficiente e usuária de droga possuir uma vida desregrada e engravidar de modo indesejado eou irresponsável Não são emitidos juízos de valor mas atentase exclusivamente à análise da violação da dignidade da mulher e de sua autonomia individual de optar pela realização da esterilização nos termos da Lei n 92631996 O caso paradigma utilizado é o da Janaina Aparecida Quirino porém não se excluem outras mulheres que foram eventualmente submetidas ao mesmo tratamento Nesse sentido a partir de situações como a narrada acima percebese evidente violação aos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres os quais são parte integrante dos direitos humanos Estes direitos por sua vez abrangem o exercício da vivência da sexualidade sem constrangimento da maternidade voluntária e da contracepção autodecidida LEMOS 2014 p 245 Ademais é possível traçar um espectro de atuação do controle de natalidade de margem que é realizado pelas instituições mas não é posto como uma política pública embora possua reflexos diretamente relacionados com as vivências das populações Compreender os seus fundamentos é essencial para entender como o Estado por meio da margem realiza o controle de natalidade Nada obstante decisões como no caso de Janaína demonstram a materialização de políticas realizas pelo Estado eou seus representantes de forma invisível mas com claras intenções de modificação demográfica focalizada na população pobre Evidenciase então a Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 260 prática de violências por governos aos grupos minoritários4 e vulneráveis como mulheres negros pessoas com deficiência e em situação socioeconômica desfavorável os outsiders5 que são sujeitos sem lugar e excluídos do tempo relegados à margem e ao esquecimento BREPOHL GONÇALVES GABARDO 2018 p 321361 Demonstrase nesse sentido a materialização do preconceito Como Bobbio aponta algumas diferenciações a primeira diz respeito aos individuais e aos coletivos Os primeiros são conceituados como superstições e crenças maldições que não teriam um impacto efetivo diferente dos coletivos que são compartilhados por um grupo social inteiro e principalmente a sua periculosidade está no fato de gerar uma distorção na forma como um grupo julga o outro conceituando grupos rivais BOBBIO 2002 p 105106 Nessa perspectiva é o que se observa no caso apontado anteriormente a predominância de julgamentos não racionais sobre corpos femininos de classes baixas e também em alguns casos de negras O Brasil não possui um caos demográfico ou ausência de recursos que justifique um controle sob esses parâmetros e ainda há uma redução progressiva no número de filhos por mulher O processo de declínio da fecundidade com o destaque a partir dos anos 80 esteve presente em todas as regiões e estratos sociais entretanto essa queda não foi acompanhada de alterações significativas na situação de pobreza e desigualdade sociais a concentração de renda somente se acentuou BRASIL 2005 Entretanto em 2013 o próprio Ministério da Saúde realizou um relatório informativo para dentre outros objetivos avaliar a aplicação da respectiva política Constatase no relatório que as ações têm sido focadas na saúde reprodutiva da mulher adulta em específico no ciclo gravídicopuerperal e à prevenção do câncer de colo de útero e de mama Ou seja há poucas atuações e pesquisas com o objetivo de inserir os homens no processo e também a própria compreensão da saúde sexual em diferentes momentos do ciclo de vida BRASIL 2013 p 910 Há efetivamente a construção de uma política pluralista e não baseada no preconceito 4 É possível vislumbrar duas concepções de minorias a primeira diz respeito ao elemento numérico e quantitativo ou seja é uma minoria pequena parcela da população segunda é a de minorias segundo o discurso jurídico e algumas concepções políticas e assim entendidas também como minorias sociais representariam a parcela da população que é discriminada e possui pouco poder de voz São exemplos dessas minorias as mulheres negros as pessoas LGBTI pessoas com deficiência entre outros VIANA 2016 P2728 e 29 5 Como apontam Marion Brepohl Marcos Gonçalves e Emerson Gabardo 2018 p 321361 esta expressão de identificação social foi consagrada por Norbert Elias 2000 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 261 O Estado deve buscar catalisar as identidades de modo a construir por meio das visões plurais e diversas que se possui uma identidade coletiva Entretanto quando se realiza a interpretação constitucional esta não pode se fundar em argumentos irracionais da vontade popular hegemônica que impõem a restrição aos direitos fundamentais GABARDO 2017 p 66 Ressaltase que atualmente devese considerar também o movimento dialógico entre governantes e governados o accoutability enquanto mecanismo de controle o qual ganha força e espaço nas estruturações políticas6 Verificase ademais que a conduta do Poder Judiciário atentou contra o próprio planejamento familiar o qual exige prévia educação e informação a respeito das opções e mecanismos de controle de fecundidade GAMA 2011 p 523 A utilização dos métodos e mecanismos de planejamento familiar deve ocorrer de forma livre prezando pela autonomia individual CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do presente estudo foi possível analisar a estruturação e desenvolvimento das políticas populacionais e do controle de natalidade que em alguns momentos históricos estavam repletas de conotação ideológica Notouse ainda que com as transformações sociais estruturais e institucionais permitiram o início da transição demográfica uma vez que a partir da queda da taxa de mortalidade surgiu a necessidade de regulação da fecundidade Disponibilizaramse então métodos contraceptivos e demais ações capazes de orientar a aludida regulação os quais buscam facilitar a escolha e utilização de determinado planejamento familiar de modo a garantir direitos iguais de constituição limitação ou aumento da prole pela mulher pelo homem ou pelo casal Ademais constatouse que referidas ações buscam fortalecer os direitos sexuais e reprodutivos dos indivíduos e se pautam em ações clínicas preventivas educativas visando segurança e eficácia do uso de métodos contraceptivos Tratase portanto de orientações e não de técnicas impostas compulsoriamente Prezase pela liberdade de escolha dos métodos e o Estado não pode obrigar a sua adoção tanto é assim que a esterilização permitida na Lei do Planejamento Familiar dispõe que esta é voluntária 6 Para o aprofundamento do tema do controle social consulte CABRAL PIO 2017 p 214239 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 262 Em contrapartida no caso de Janaina Aparecida Quirino o que se verificou foi um verdadeiro atentado discriminatório e violador de sua dignidade enquanto mulher Julgada por homens com clara postura controlista e contrária à posição predominante no Brasil natalistaneutra foi submetida a um procedimento de esterilização compulsória pois já possuía uma quantidade expressiva de filhos vivia de modo desregrado e fazia uso de substâncias ilícitas e de álcool No entanto ressaltase que não existe motivo hábil para tolher a autonomia individual e praticar violências compulsórias em face de uma pessoa atestadamente capaz Destacase por fim que a solução para o diálogo sobre a questão da natalidade não é a imposição de um controle e sim a estruturação de uma política de planejamento familiar efetiva já que na sociedade brasileira a questão da reprodução está permeada pela desinformação REFERÊNCIAS ALENCAR Ana Valderez Ayres Neves de Explosão demográfica controle de natalidade e planejamento familiar Revista de Informação Legislativa janmar 1973 ALVES José Eustáquio Diniz As políticas populacionais e o planejamento familiar na América Latina e no Brasil Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística IBGE Escola Nacional de Ciências Estatísticas Rio de Janeiro Escola Nacional de Ciências Estatísticas 2006 ALVES José Eustáquio Diniz As Políticas Populacionais e os Direitos Reprodutivos O Choque de Civilizações versus Progressos Civilizatórios Associação Brasileira de Estudos Populacionais Dez anos do Cairo tendências da fecundidade e direitos reprodutivos no Brasil p 2147 2004 ALVES José Eustáquio Diniz População desenvolvimento e sustentabilidade perspectivas para a CIPD pós2014 Revista Brasileira de Estudos de População Rio de Janeiro v 31 n 1 p 219230 janjun 2014 ARRUDA José Jobson de A PILETTI Nelson Toda História História Geral e História do Brasil 11 ed São Paulo Editora Ática 2000 BOBBIO Norberto Elogio da serenidade e outros ensaios Tradução de Marco Aurélio Nogueira São Paulo Editora Unesp 2002 BRASIL Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Ações Programáticas Estratégicas Área Técnica de Saúde da Mulher Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos uma prioridade do governo Brasília Ministério da Saúde 2005 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 263 BRASIL Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Ações Programáticas Estratégicas Área Técnica de Saúde da Mulher Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos uma prioridade do governo Brasília Ministério da Saúde 2005 BRASIL Senado Federal CPMI Esterilização da Mulher 1991 Sistema de Informações do Congresso Nacional Sicon Disponível em httpswww25senadolegbrwebatividademateriasmateria33842 Acesso em 10 jun 2019 BRASIL Constituição da República Federativa do Brasil 1988 BRASIL Lei n 9263 de 12 de janeiro de 1996 Regula o 7º do art 226 da Constituição Federal que trata do planejamento familiar estabelece penalidades e dá outras providências BRASIL Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Ações Programáticas Estratégicas Política nacional de atenção integral à saúde da mulher princípios e diretrizes Brasília Ministério da Saúde 2004 BRASIL Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Atenção Básica Saúde sexual e saúde reprodutiva 1 ed 1 reimpr Brasília Ministério da Saúde 2013 Cadernos de Atenção Básica n 26 BRASIL Tribunal de Justiça de São Paulo 2ª Vara Civil da Comarca de Mococa Ação Civil Pública n 10015215720178260360 Disponível em httpsdrivegooglecomfiled1jHtilpwUug40GUEFhQF8B56gtOPdQOUview Acesso em 18 ago 2019 BREPOHL Marion GONÇALVES Marcos GABARDO Emerson As violências do estado de exceção e a defesa da memória contra a invisibilidade dos grupos vulneráveis Revista Brasileira de Estudos Políticos Belo Horizonte n 117 p 321361 juldez 2018 BRITO Fausto Transição demográfica e desigualdades sociais no Brasil Revista Brasileira de Estudos de População São Paulo v 25 n 1 p 526 janjun 2008 CABELEIRA Mayara de Martini Neomalthusiano o controle da população revisitado In FREIRE João LOUSADA Maria Alexandre Orgs Greve de Ventres Para a história do movimento neomalthusiano em Portugal em favor de um autocontrole da natalidade Lisboa Edições Colibri 2012 CABRAL Flávio Garcia PIO Nuno Roberto Coelho Controle Social Como Mecanismo de Efetivação da Eficiência Administrativa RDU Porto Alegre v 14 n 77 p 214239 setout 2017 CAMARGO Cândido P F Sociedade Estado e população In SANTOS J L F LEVY M S F SZMRECSANYI T Orgs Dinâmica da população teoria métodos e técnicas de análise São Paulo Editora TA Queiroz 1980 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 264 CANESQUI Ana M Planejamento Familiar nos planos governamentais Revista Brasileira de Estudos de População Campinas v 2 n 2 juldez p 120 1985 ELIAS Norbert SCOTSON John L Os estabelecidos e os outsiders Tradução de Vera Ribeiro Rio de Janeiro Jorge Zahar 2000 GABARDO Emerson Os perigos do moralismo político e a necessidade de defesa do direito posto na Constituição da República de 1988 AC Revista de Direito Administrativo Constitucional Belo Horizonte ano 17 n 70 p 6591 outdez 2017 GAMA Guilherme Calmon Nogueira da Princípio da paternidade responsável Doutrinas Essenciais Família e Sucessões v 4 p 521543 ago 2011 HIEMANN Eduard História das Doutrinas Econômicas 2 Edição Zahar Editores Rio de Janeiro 1971 LEMOS Adriana Direitos sexuais e reprodutivos percepção dos profissionais da atenção primária em saúde Saúde Debate Rio de Janeiro v 38 n 101 p 244253 abrjun 2014 LI Jiali Onechild policy how and how well it worked A case study of Hebei province 197988 Population and Development Review v 21 n 3 p 563585 set 1995 MALTHUS Thomaz Robert Population The First Essay The University Michigan Press Michigan EUA 1959 MEDICI AC BELTRÃO KI Financiamento dos programas de planejamento familiar no Brasil estratégias econômicas de sustentação Texto para Discussão n 28 Instituto de Economia do Setor Público IESP São Paulo 1996 PEREIRA Luiz Carlos Bresser Controle da população e ideologia Revista de Administração de Empresas Rio de Janeiro v 18 n 4 p 4550 outdez 1978 ROCHA M Isabel Baltar O parlamento e a questão demográfica um estudo do debate sobre o controle da natalidade e planejamento familiar no Congresso Nacional Texto Nepo 13 Campinas NEPOUNICAMP 1987 SÃO PAULO Tribunal de Justiça de São Paulo Apelação Cível n 1001521 5720178260360 Rel Paulo Dimas Mascaretti 8ª Câmara de Direito Público j em 23 maio 2018 VASCONCELOS Ana Maria Nogales GOMES Marília Miranda Forte Transição demográfica a experiência brasileira Revista Epidemiologia e Serviços de Saúde Brasília v 21 n 4 p 539548 outdez 2012 VIANA Nildo O que são minorias Revista Posição Ano 3 v 3 n 9 janmar 2016 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 265 ESTERILIZAÇÕES FORÇADAS EM MULHERES UMA ANÁLISE ACERCA DA INGERÊNCIA DOS CORPOS NO CAMPO BIOPOLÍTICO Luana Marina dos Santos 1 Bruna Marques da Silva 2 RESUMO A partir do método hipotéticodedutivo com levantamento documental bibliográfico e estudo de caso esta pesquisa busca identificar em que medida a prática de esterilização forçada em mulheres comporta uma dimensão de gestão biopolítica voltada à não aplicação de dispositivos normativos pelo Estado O estudo concentrase de forma principal na análise do caso de Janaína Aparecida Quirino tanto sob a perspectiva do marco normativo internacional e interno brasileiro sobre o tema bem como à luz dos aportes teóricos sobre poder e biopolítica A título de resultados a pesquisa aponta que por meio da dimensão biopolítica o Estado logra êxito em instituir mecanismos de controle que se tornam aptos a privar determinados grupos de exercerem e gozarem plenamente seus direitos fundamentais formalmente garantidos Palavraschave Biopolítica Direitos humanos Direitos reprodutivos Esterilização forçada INTRODUÇÃO Sob a ótica de Foucault o poder desenvolvido sobre a vida dos indivíduos no final do século XVIII focalizado na intervenção de um controle regulador da população nas gerências estatais pode ser traduzido ao que o autor nomina como biopolítica Por se ocupar da regulação da vida dos nascimentos da mortalidade da saúde e de outras condições variantes a biopolítica se atém propriamente ao que constitui a vida humana Os aparatos do Estado sob esta perspectiva são notados como próprias instituições de poder uma vez que comportam o condão de assegurar o mantimento das relações econômicas de produção desenvolvimento e demais garantias funcionais à sociedade e à população Entretanto este mesmo panorama também operou como ferramenta de segregação e hierarquização social instituindo relações de dominação e efeitos de hegemonia Nesse sentido o sexo foi configurado como uma circunstância que adquiriu relevante importância neste jogo político uma vez que passou a ser utilizado como um dos eixos de controle da 1 Mestranda em Direito Público pelo Programa de PósGraduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos Bolsista CAPESPROEX Email luanamarinadsgmailcom Lattes httplattescnpqbr2816121103061181 2 Mestranda em Direito Público pelo Programa de PósGraduação em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos Bolsista CNPq Integrante do Núcleo de Direitos Humanos NDH da UNISINOS E mail bmrqsoutlookcom Lattes httplattescnpqbr4384388529123644 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 266 população estando ativamente presente nos procedimentos reguladores populacionais Combinado ao objetivo de disciplinar o corpo uma das linhas da política do sexo que incidiu especificamente sobre a mulher representou dentre suas faces o sexo no corpo feminino como uma condição tipicamente orientadora das funções de reprodução Discorrer sobre direitos reprodutivos tendo em conta esse pano de fundo implica refletir sobre o fato de que sua operacionalização no que se refere ao ordenamento jurídico não deixa de ser atravessada por encargos históricos de fenômenos culturais políticos e sociais Discorrer ainda sobre a esterilização forçada em mulheres que pode ser considerada como uma violação aos direitos reprodutivos acarreta examinar os campos jurídicos e as normativas que se ocupam da regulação desse método na forma voluntária Distintos campos do conhecimento analisam sob suas próprias lentes a travessia da invisibilização feminina à posição de detentora de garantias e direitos específicos O lugar comum entre essas perspectivas entretanto refere que a subjugação do gênero feminino ainda que em menor ou modificado nível permanece Desse modo a partir da análise do caso de Janaína Aparecida Quirino tanto sob a perspectiva do marco normativo internacional e interno brasileiro sobre o tema bem como à luz dos aportes teóricos sobre poder e biopolítica este estudo objetiva verificar se por uma iniciativa de uma instituição pública e autorizada por órgão jurídico estatal a esterilização considerada forçada ocorrida em Janaína comporta uma dimensão de gestão biopolítica na inaplicação de dispositivos normativos A pesquisa justificase pelo histórico de práticas de esterilizações forçadas em mulheres em países em vias de desenvolvimento como o Brasil bem como diante da ampla repercussão nacional e internacional sobre o caso questão O método utilizado reside no hipotéticodedutivo com levantamento bibliográfico e documental sobre os temas contando com estudo de caso Para tanto a pesquisa dividese em três momentos Inicialmente serão retomados conceitos sobre o instituto da biopolítica e seus desdobramentos sob a ótica de Foucault bem como da análise contemporânea sobre a biopolítica sustentada por Agamben Após serão revistados os direitos reprodutivos a regulação e tutela do método de esterilização cirúrgica voluntária e a caracterização de esterilizações forçadas em mulheres na perspectiva do marco normativo internacional e interno brasileiro Por fim a partir da análise do caso de Janaína Aparecida Quirino será verificado como a biopolítica pode ser desvelada das dissonâncias entre a resolução jurídica do caso analisado e a legislação assegurada pelo âmbito nacional e internacional Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 267 1 A VIDA ENQUANTO FENÔMENO UMA BREVE ANÁLISE DO CONTEXTO BIOPOLÍTICO EM TEMPOS CONTEMPORÂNEOS O termo biopolítica instituído por Foucault 1999 ao descortinar as relações de poder3 imbuídas nos mais variados âmbitos sociais trouxe à luz um poder normalizador que já não se exercia mais sobre os corpos individuais mas sobre os corposespécie Na análise quanto às relações de poder tangenciadas pelas práticas disciplinares Foucault 1999 mostra que o Estado procurava atuar vigiando e controlando o cotidiano dos indivíduos a fim de otimizar a produção destes e explorar suas capacidades e potencialidades principalmente quando voltadas para o acúmulo do capital Assim através do desdobramento dessas verificações Foucault 1999 aponta que a biopolítica traz no âmago do conceito um estágio de poder que é posterior às práticas disciplinares ou seja não mais se alicerça em um período onde os corpos de uma sociedade eram controlados por meio de instituições como o hospital a escola e a prisão Assim com a entrada da biopolítica disciplinar as condutas individuais não seria o suficiente o necessário estaria no ato de inaugurar um gerenciamento planificado da vida destas pessoas A biopolítica portanto concentrada na vida enquanto fenômeno procura atuar como um instrumento de gerenciamento de corpos da população como um todo Se houve uma vez em que o poder disciplinar se orientava sobreposto à individualização dos corpos com o instituto da biopolítica os alvos do exercício do poder do Estado passam a ser os efeitos e processos gerados pela vida em conjunto AYUB 2015 p 68 Compreende esclarecer neste ponto que o termo instituído por Foucault e por tantos outros pensadores procura designar a maneira pelo qual o poder tende a governar o mecanismo de vida dos indivíduos atentandose à gestão da saúde da alimentação da natalidade que configuram processos individuais que passam a ser gerados no seio da população Estes pequenos fragmentos da vida política minuciosamente calculados através de estatísticas globais são capazes de permitir que o Estado coloque como passivo o corpo da própria população Desse modo não se trata mais do poder que detém o domínio somente sobre a morte do indivíduo mas 3 O conceito de poder utilizado neste estudo é o cunhado por Foucault 1999 Para este poder é tratado como uma intersecção que se incumbiu tanto do corpo quanto da vida em geral consolidada através de simples atos reiterados no próprio cotidiano dos indivíduos Intercedido à biopolítica o poder materializase mediante a atuação do biopoder através de biopoderes locais que fragmentam e censuram o processo biológico dos seres exercido mediante centros de transmissão que se conectam e circulam dentro do próprio seio da população Não se trata portanto de um poder estagnado que apenas cria e recria através de comandos de uma única lei eou ser mas de um poder que circula e transmuta de forma reiterada a partir de métodos fragmentados e espalhados por todos os campos da vida humana Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 268 também de uma gerência que detém o poder da vida o fazer viver e deixar morrer Conforme Foucault as guerras já não se travam em nome do soberano a ser defendido travamse em nome da existência de todos populações inteiras são elevadas à destruição mútua em nome da necessidade de viver Os massacres se tornaram vitais Foi como gestores da vida e da sobrevivência dos corpos e da raça que tantos regimes puderam travar tantas guerras causando a morte de tantos homens E por uma reviravolta que permite fechar o círculo quanto mais a tecnologia das guerras voltouse para a destruição exaustiva tanto mais as decisões que as iniciam e encerram se ordenaram em função da questão nua e crua da sobrevivência FOUCAULT 2008 p 302 Com a instituição da biopolítica o Estado procurou buscar mecanismos que pudessem normalizar e regulamentar a população a fim de otimizar a sua produtividade Nesse sentido criaramse políticas saneadoras microscópicas destinadas a produzir uma população por meio da qual o Estado lograsse êxito em controlar suas riquezas e suas condições de subsistência ultrapassando a barreira de garantias e proibições legais atentandose inclusive à ordem dos próprios afazeres dos indivíduos Ocorre que o Estado por vezes em razão desta necessidade de controle que objetiva principalmente normalizar uma população na busca de otimizar a sua produtividade acaba aplicando um controle desmedido que aliena o indivíduo da cena política e não lhe assegura direitos fundamentais PELBART 2003 Com efeito é possível compreender que a biopolítica mediante controles de dominação que procuram insistentemente instaurar uma manutenção de vigilância acerca dos afazeres do homem acaba refletindo e atuando de forma contrária à própria vida Em razão dessa tentativa de conduzir a vida dos cidadãos mediante táticas baseadas em um controle desmedido os pressupostos basilares de uma vida digna são inviabilizados o que reflete uma biopolítica com caráter negativo dada a gravidade que alguns indivíduos acabam suportando em razão da ausência de determinadas garantias FOUCAULT 2008 Assim de acordo com o estudo acerca do instituto da biopolítica é possível auferir que o controle do Estado sobre os indivíduos não se dá unicamente mediante à prática de discursos e de ideologias previamente instituídas por determinado partido político tampouco ocorre somente em razão do poder de polícia e da aplicação de leis O controle de que trata a biopolítica além de ser a soma de todas estas práticas também ocorre principalmente no corpo biológico somático do próprio sujeito fazendo com que o Estado se preocupe com o avanço de estudos da medicina na área da saúde e ainda com métodos reprodutivos que visem estabelecer um certo determinismo sob o agir daquele indivíduo FOUCAULT 2008 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 269 Partindo da compreensão de que o instituto da biopolítica opera muitas vezes através de meios obscuros infiltrandose discretamente nos comportamentos cotidianos dos indivíduos podese entender que este instituto na medida em que busca instaurar uma certa padronização de comportamentos regulando previamente os caminhos da vida social possui mesmo que subliminarmente indícios de um fascismo regular Isso porque se infiltra cuidadosamente na vida dos indivíduos criando e ditando discursos previamente instituídos pela máquina Estatal a fim de otimizar e manter o controle de uma população que por sua vez dificilmente consegue desprenderse ou até mesmo perceber este controle governamental mormente porque se encontra induzida pelas exigências de competitividade do mercado e de uma sociedade que luta pelo espaço econômico AGAMBEN 2004 Como resultado de práticas de poder algumas formas de controle exacerbadas deixam de priorizar garantias e direitos fundamentais ceifando liberdades através de jogos escusos que impedem a percepção direta de seus subordinados A biopolítica neste ponto inverteu relativamente sua definição primária Não se trata mais unicamente de uma política voltada ao deixar viver mas também de uma política voltada ao fazer morrer pois os indivíduos acabam sendo vistos unicamente como máquinas capazes de produzir riquezas e não como sujeitos dotados de liberdades e garantias individuais WERMUTH SANTOS 2017 Muito embora a biopolítica contribua para o aumento da expectativa da vida humana é cediço afirmar que o instituto mudou a perspectiva do modo de fazer política por acarretar a emergência de mudanças estruturais que engessam a vida pública dos homens no que se refere ao seu aparelho de produção utilizandose de uma série de operações voltadas a extrair e dominar os corpos destes indivíduos para finalmente adestrálos e consequentemente excluilos e individualizálos A partir dessa compreensão resta possível visualizar que a faceta reguladora da biopolítica na contemporaneidade instrumentaliza a vida como objeto natural quando esta se mostra útil para os meios de produção e a descarta quando não cumpre seu papel social evidenciando neste viés que a decisão sobre o valor da vida não é apenas pressuposto de estados totalitários mas que também se faz presente mesmo que de maneira indireta em estados democráticos Desse modo cabe salientar que o totalitarismo moderno pode ser definido nesse sentido como a instauração por meio do estado de exceção de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos mas também de categorias inteiras de cidadãos que por qualquer razão pareçam não integráveis ao sistema político Desde então a criação voluntária de um estado de emergência permanente ainda que eventualmente não declarado tornouse uma das práticas essenciais dos estados Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 270 contemporâneos inclusive dos chamados democráticos AGAMBEN 2004 p 13 Não é uma tarefa fácil analisar questões referentes à liberdade em um contexto de controle governamental sobretudo porque mesmo que de maneira indireta e sutil o controle sempre está lá exercendo sua autoridade e sua regulamentação sobre os indivíduos Entender que a necessidade de controle do Estado está latente e buscando cada vez mais gerenciar os afazeres da vida humana é pressuposto inicial para entender que a vida humana em um contexto biopolítico se torna por vezes descartável aos olhos da dominação Estatal SCHMITT 2015 Nesta ótica é necessário identificar que nem todo indivíduo é capaz de se inserir na vida pública ou seja nem todo cidadão em uma sociedade contemporânea dinâmica e pluralista dotada de vontades de cores e de desejos multifacetados consegue se adequar ao contexto biopolítico operacionalizado pelo mercado de capital O sistema que em um primeiro momento foi visto como uma espécie de proteção aos interesses do indivíduo atualmente também pode ser identificado como um sistema de aniquilamento uma vez que de certa forma acaba permitindo a eliminação de categorias que por qualquer motivo acabam não se integrando ao sistema político adotado As estratégias de regulamentação do corpo social inseridas em um contexto biopolítico não são capazes de se adequar às vontades daqueles povos que resistem em assumir uma vida subordinada aos controles de determinada governabilidade O Estado com tamanho poder de controle e governança é capaz de inclinar a seleção de quem terá mais chances de viver em um contexto institucionalizado baseando sua escolha em fatores como cor raça poder aquisitivo e inserção do mercado econômico ditando regras e preceitos particularmente definidos A legitimidade de uma lei em um Estado biopolítico acaba sendo facilmente adulterada entre determinados membros de uma sociedade Para certos grupos não inseridos diretamente no contexto biopolítico algumas medidas acabam sendo facilmente flexibilizadas de modo que aquilo que fora previamente pactuado no que diz respeito a direitos e garantias fundamentais não lhes seja garantido pelo fato de que o poder instituído cria e recria sua própria forma de elaboração e aplicação de leis em relação àqueles sujeitos que se encontram excluídos da vida pública AGAMBEN 2004 Compreender os contornos da biopolítica e a perspectiva em que a estrutura social está inserida é o primeiro passo para entender que as leis em um contexto biopolítico poder ter vigência e aplicabilidade particularmente definidas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 271 2 A ESTERILIZAÇÃO CIRÚRGICA EM MULHERES NAS NORMATIVAS INTERNA E INTERNACIONAL ENTRE GARANTIAS E INEFICÁCIAS Tanto os direitos sexuais quanto os direitos reprodutivos concentram garantias que dizem respeito ao exercício e vivência sexual do ser humano bem como de sua capacidade reprodutiva Ainda que não plenamente dissociáveis mas complementares Ramos 2018 refere que os direitos sexuais e reprodutivos se diferenciam principalmente quanto ao elemento cerne protegido os direitos sexuais são mais amplos e não estão sempre identificados com a reprodução humana nem todo o ato sexual visa procriação e sim com a vida com prazer RAMOS 2018 p 900 Entretanto para o autor ambos os direitos assemelhamse em características possuindo a dimensão positiva que versa sobre a esfera da autonomia dos indivíduos b dimensão negativa pautada na proibição da violência e discriminação em relação à sexualidade orientação sexual e gênero c proteção direta pela normativa regulatória tipificada e d proteção indireta por interpretação de forma ampliada de direitos como direito à igualdade ou direito à saúde que estão dispostos genericamente RAMOS 2018 Nas palavras de Ramos 2018 p 900 os direitos reprodutivos abrangem o direito de exercer a reprodução sem sofrer discriminação temor ou violência o direito de acesso à informação a respeito de métodos meios e técnicas contraceptivas e ainda o direito de escolher livremente e de modo informado sobre ter ou não ter filhos e sobre as circunstâncias que envolveriam esta opção Nesse sentido é possível aduzir que a esterilização cirúrgica está concentrada nos direitos reprodutivos ainda que possivelmente encontre respaldo nos direitos sexuais4 Lima afirma com sustento em Raposo que os direitos reprodutivos conectam as temáticas referentes ao direito ao aborto legal e o direito a tratamento de fertilidade o direito a uma saúde reprodutiva de qualidade e o direito ao acesso a métodos contraceptivos o direito de realizar procedimento de esterilização dentre outros RAPOSO apud LIMA 2014 p 335 Segundo Correa e Ávila o termo direitos reprodutivos foi consolidado na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento realizada no Cairo em 1994 tendo sido tratado juntamente com o que se denominou saúde reprodutiva A associação que foi realizada entre o direito à saúde e os direitos reprodutivos culminou na categoria de saúde reprodutiva que para Ramos 2018 p 902 corresponde a um estado completo de bem estar físico mental e social e não apenas como a simples ausência de doença ou enfermidade 4 A fundamentação quanto aos conceitos de direitos sexuais e reprodutivos não comporta o objeto principal deste estudo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 272 em todas as matérias concernentes ao sistema reprodutivo e suas funções e processos No mesmo paralelo a Recomendação Geral nº 14 de 2000 elaborada pelo Comitê sobre Direitos Econômicos Sociais e Culturais das Nações Unidas refere de acordo com Oliveira 2010 e no sentido do que aduz a Organização Mundial da Saúde que o direito à saúde também abrange que o Estado tome medidas efetivas para implementar à saúde propriamente dita ofereça informações quanto à saúde propriamente dita quanto não ser submetido a experimentos médicos sem consentimento nem à esterilização forçada OLIVEIRA 2010 p 94 Além disso a nomenclatura direitos reprodutivos voltou a ser reiterada pela IV Conferência Mundial da Mulher das Nações Unidas realizada em Pequim em 1995 CORREA ÁVILA 2003 que consagrou a dimensão dos direitos humanos das mulheres em especial os direitos sexuais e reprodutivos Correa e Ávila nesse sentido não deixam de mencionar a importância do movimento feminista contemporâneo nos desdobramentos dos direitos reprodutivos e sexuais e na luta para traduzilos aos sistemas jurídicos COSTA ÁVILA 2003 Segundo Ramos os direitos sexuais e reprodutivos são um marco para os direitos das mulheres que incluem os seus direitos a ter controle sobre as questões relativas à sua sexualidade inclusive sua saúde sexual e reprodutiva e a decidir livremente a respeito dessas questões livre de coerções discriminação e violência RAMOS 2018 p 902 O procedimento de esterilização cirúrgica portanto sedimentado no âmbito dos direitos reprodutivos é atravessado pelos direitos humanos à vida integridade pessoal e tratamento humano liberdade de expressão principalmente no âmbito de acesso à informação proteção à família igualdade e não discriminação ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS AMERICANOS 2011 No âmbito internacional o Brasil além de estar submetido ao Sistema Global ONU e ser signatário de diversos tratados internacionais além do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos5 está igualmente vinculado ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos OEA6 Como país originário da OEA o Brasil ratificou os dois principais instrumentos normativos do sistema interamericano a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem e a Convenção Americana de Direitos Humanos Pacto de San José da Costa Rica 5 Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos Decreto Legislativo nº 2261991 Protocolo Facultativo ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos Decreto Legislativo nº 3112009 Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher Decreto nº 43772002 entre outros 6 Este sistema regional por estar limitado à proteção e garantia dos direitos humanos nos espaçogeográfico onde o Brasil está inserido apresenta maior eficácia na promoção e no olhar atento às realidades que assolam os estadosmembros americanos Desse modo o marco normativo internacional que será analisado será o vinculado ao sistema interamericano de direitos humanos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 273 este último na condição de tratado internacional vincula juridicamente o Brasil à jurisdição internacional e foi integrado à legislação nacional por meio do Decreto nº 6781992 Através da Convenção Americana de Direitos Humanos o direito à vida art 4º e a integridade pessoal art 5º abrangem a necessidade de proteção à saúde a todos os indivíduos por parte do Estado Já o direito à liberdade de expressão art 13 que comporta o direito de expressar buscar e receber informações é o direito que claramente obriga o Estado a difundir informações sobre a saúde sexual e reprodutiva e uma vez não materializado de forma eficaz a todos os indivíduos pode constituir violação de outros direitos como a igualdade art 24 não discriminação art 1º e 24 e proteção à família art 17 ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS AMERICANOS 2011 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS 2016 Outra normativa importante à matéria dos direitos reprodutivos é a Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher Convenção de Belém do Pará principalmente no tocante aos artigos 3º 4º 7º 8º e 9º Da mesma forma foi incorporada à legislação nacional através do Decreto nº 19731996 Segundo a Comissão Interamericana de Direito Humanos e de acordo com o texto normativo da referida Convenção a violência contra a mulher também pode ser materializada diante da ausência de informação quanto à prática de uma esterilização que foi realizada sem consentimento juntamente com todas as consequências físicas e psicológicas ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS AMERICANOS 2011 Além disso a Corte Interamericana de Direitos Humanos no julgamento do caso IV Vs Bolívia Exceções Preliminares Mérito Reparações e Custas Sentença de 30 de novembro de 2016 Série C Nº 329 argumentou que a ocorrência de esterilizações forçadas constitui uma violação expressa ao direito da mulher de viver livre de toda a forma de violência disposto no artigo 7º Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher Convenção de Belém do Pará ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS 2016 A questão da debilidade informacional é amplamente registrada pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos Segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos as mulheres representam a parcela da população mais afetada pelos obstáculos que compreendem os direitos reprodutivos Dada as suas vulnerabilidades mulheres pobres indígenas eou afrodescendentes ou que habitam zonas rurais migrantes e de exclusão social são ainda mais atingidas A violação de direitos pode ser tão considerável no que tange à discriminação por gênero e principalmente ao acesso à informação que uma das consequências deste contexto é a própria esterilização praticada sem o devido consentimento Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 274 Diante da debilidade informacional frágil condição social e em alguns casos de recursos que viciam ou dificultam a manifestação livre de vontade algumas mulheres são impelidas a aderir à esterilização A Comissão refere ainda que a necessidade de que o Estado forneça ou garanta as informações quanto à saúde reprodutiva também abarca a responsabilidade de que as decisões tomadas pelas mulheres sejam livres de toda e qualquer forma de coerção principalmente pelo fato de que os métodos de esterilização tanto feminina quanto masculina são considerados pela Organização Mundial da Saúde como os únicos permanentes Assim caso a esterilização ocorra sem o consentimento do indivíduo submetido o Estado pode vir a ser responsabilizado perante à jurisdição internacional ORGANIZACIÓN DE LOS ESTADOS AMERICANOS 2011 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS 2016 Vale esclarecer que no que tange ao consentimento à esterilização cirúrgica de mulheres ainda segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos o julgamento do caso IV Vs Bolívia Exceções Preliminares Mérito Reparações e Custas Sentença de 30 de novembro de 2016 Série C Nº 329 ainda enfatizou que este deve contar com basicamente dois elementos a caráter prévio ou seja sempre ser concedido antes de qualquer ato médico As exceções que se concentram nos casos em que o consentimento não possa ser realizado pela pessoa nas circunstâncias de urgência ou emergência de atuação médica ou grave dano contra à vida do paciente não se aplicam à esterilização de laqueadura tubária já que o propósito desta intervenção cirúrgica é tão somente prevenir uma futura gravidez b consentimento livre voluntário pessoal da mulher ausentes mecanismos de coerção pressão ameaça e desinformação ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS 2016 Outro ponto extremamente crucial é que o consentimento para que seja considerado livre não pode ser solicitado à mulher quando esta não se encontre em condições de tomar uma decisão plenamente informada por encontrarse em situações de estresse e vulnerabilidade entre outros como durante ou imediatamente depois do parto ou de uma cesárea ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS 2016 p 149 No que que diz respeito à normativa do direito interno além dos mesmos direitos humanos estarem na Constituição Federal como direitos fundamentais o método da esterilização cirúrgica em mulheres tem tipificação expressa na Lei nº 9263 de 1996 regulando o 7º do art 226 da Constituição Federal que versa sobre o planejamento familiar BRASIL 1988 Da leitura da redação do art 10 da referida Lei é possível verificar que a esterilização voluntária é tratada como exceção no ordenamento jurídico já que o dispositivo legal elenca taxativamente as hipóteses em que a intervenção cirúrgica é assegurada Dentre Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 275 os requisitos o inciso I e II referem quem pode se submeter à esterilização e as circunstâncias em que podem ocorrer Registrase ainda que no caso de mulheres na vigência da sociedade conjugal o consentimento expresso deve ser de ambos conforme disposição do art 10 5º da Lei nº 926396 que regulamenta o Planejamento Familiar A Corte entretanto consignou que como a esterilização feminina diz respeito à decisão da mulher de ter filhos ou não apenas a paciente está autorizada a oferecer o consentimento e não terceiros de modo que não se deverá solicitar a autorização do companheiromarido nem de nenhuma outra pessoa para a realização de uma esterilização ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS 2016 p 149 Contudo para o fim deste estudo cabe salientar que a lei impõe no 2º e 3º do art 10 que a a esterilização cirúrgica não ocorrerá na mulher durante os períodos de parto ou aborto exceto nos casos de comprovada necessidade por cesarianas sucessivas anteriores b a manifestação de vontade não será considerada se expressa durante ocorrência de alterações na capacidade de discernimento por influência de álcool drogas estados emocionais alterados ou incapacidade mental temporária ou permanente Ademais a realização da esterilização cirúrgica em desacordo com os requisitos do art 10 implica em sanção penal de reclusão de acordo com o art 15 da Lei supracitada e único BRASIL 1996 Verificase neste ponto que ambas as circunstâncias são dotadas de relevância para auferir principalmente o consentimento voluntário e livre da mulher Todavia se a mera tipificação formal da norma não implica necessariamente sua materialidade que possíveis contornos se somam a essa problemática 3 CASO JANAÍNA APARECIDA QUIRINO UMA ANÁLISE SOB A PERSPECTIVA NEGATIVA DA GESTÃO BIOPOLÍTICA Os posicionamentos internacional e nacional quanto à esterilização cirúrgica em mulheres principalmente no que tange à realização do procedimento sem consentimento fazemse primordiais para análise de recente caso ocorrido no Brasil o qual ganhou repercussão mundial dada suas peculiaridades7 Através de uma Ação Civil Pública ajuizada pelo Ministério Público em face do Município de MococaSP e Janaína Aparecida Quirino a ré foi submetida a esterilização voluntária sem consentimento válido realizada logo após o parto de seu 8º filho e previamente ao julgamento de recurso interposto pelo Município de MococaSP que por sua vez obteve êxito em reformar na íntegra a sentença que concedia a 7 A Organização das Nações Unidas ONU manifestouse publicamente sobre o caso afirmando que o caso em apreço tratavase de esterilização forçada ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS 2018 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 276 ocorrência do procedimento8 Dentre as razões postulatórias o Ministério Público argumentou que Janaína apresentava quadro de dependência química demonstrava recusa em aderir aos tratamentos disponibilizados pelo Estado não dispunha de condições para arcar com o sustento de outros filhos além dos que já possuía não possuía condições para avaliar as consequências de outra gestação e tinha sido orientada pelos serviços de saúde e assistência social quanto ao procedimento e seus desdobramentos já tendo expressado algumas vezes aquiescência SÃO PAULO 2018a Da análise do feito é possível verificar que o processo não contou com nenhuma manifestação de Janaína a fim de averiguar o seu consentimento quanto à realização da laqueadura tubária O consentimento que foi levado em consideração para determinar a esterilização irreversível conforme já referido foi um documento de aquiescência firmada por Janaína em 2015 juntado pelo Ministério Público SÃO PAULO 2018a Ora com base no contexto e fatores que envolviam Janaína descritos pela própria instituição pública na inicial seria viável considerar tal documento como um consentimento voluntário válido nos termos das orientações dos órgãos internacionais e dos requisitos da própria legislação brasileira Segundo o acórdão proferido pela 8ª Câmara há dúvida razoável quanto ao consentimento da requerida haja vista que segundo o que se extrai dos autos Janaína não possuía condições físicas eou psíquicas para expressar sua volição com segurança SÃO PAULO 2018b Ademais mesmo que houvesse consentimento válido de acordo com a legislação a laqueadura tubária não poderia ter sido realizada no momento do parto de Janaína já que um dos requisitos contidos na legislação brasileira e nas orientações internacionais é que a laqueadura não seja realizada no período puerperal e nem no mesmo no próprio ato de partos normais eou cesárea Tão somente da leitura da sustentação do Ministério Público já se verifica a insubsistência da inicial no que se refere à posição internacional e às disposições legais brasileiras sobre o procedimento de esterilização feminina O próprio acórdão da 8ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo sustentou que petição inicial não tem condescendência constitucional que institui regime democrático e de direito fundado na dignidade humana e no respeito à liberdade individual Somado a isso a decisão de primeiro grau da mesma forma não estava em conformidade com o ordenamento jurídico 8 O acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo deu provimento ao recurso interposto pelo Município de MococaSP Além de ter acolhido a preliminar de ilegitimidade passiva considerando ausência de interesse processual do Ministério Público a decisão sustentou que o pedido era ilícito e que houve cerceamento de defesa SÃO PAULO 2017b Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 277 E através do exercício do duplo grau de jurisdição foi reformada na totalidade ainda que a destempo Ademais para a 8ª Turma a decisão do juízo em realidade deferiu medida que se caracteriza como esterilização eugênica já que a esterilização pedida nos autos não é a de natalidade pois não tem caráter geral e impessoal mas considera as qualidades subjetivas da paciente de aspectos financeiros social educacional e eventuais vícios O acórdão registrou ainda que o caso compõe um preconceito social e político contra determinada parcela vulnerável da população SÃO PAULO 2018b p 1 Longe de estar dentro dos valores principiológicos das normativas internacional e interna e das próprias tipificações legais expressas o caso Janaína Quirino aponta uma aproximação ainda que subliminarmente a outros vieses Conforme já referido na dimensão biopolítica as práticas reguladoras do controle dos corpos abarcaram a política do sexo que dentre suas linhas agrega a histerização da mulher Segundo Foucault 1998 p 8788 essa esfera exigió una medicalización minuciosa de su cuerpo y su sexo se llevó a cabo en nombre de la responsabilidad que les cabría respecto de la salud de sus hijos de la solidez de la institución familiar y de la salvación de la sociedad Mais que isso a definição do sexo no âmbito do controle regulador o abrange inclusive como algo que por si constitui o corpo da mulher e que se orienta inteiramente a las funciones de reproducción y perturbándolo sin cesar en virtud de los efectos de esas mismas funciones FOUCAULT 1998 p 8788 Assim sendo verificase que além das demais circunstâncias que caracterizam a atuação da biopolítica já referidas esse instituto concentra no campo das práticas reguladoras um fator que recai especificamente tanto sobre a mulher quanto sobre a configuração do funcionamento de seu sexo já que o atrela primordialmente ao sistema reprodutivo FOUCAULT 1998 resultando uma produção de modos de pensar e agir sobre estes pontos específicos Ainda que adstrito ao direito posto a Corte Interamericana de Direitos Humanos por exemplo reconhece que a liberdade e autonomia das mulheres conta com uma limitação histórica que muito é fundada em razão de estereótipos de gênero e em relação à matéria reprodutiva e sexual isso acentuase as mulheres são vistas como o ente reprodutivo por excelência diante da outorga social político e cultural de predomínio masculino na tomada decisões inclusive quanto a seus próprios corpos ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS 2016 Conforme argumenta Meyer 2004 p 95 as mulheres seguem sendo posicionadas e interpeladas nessa área prioritariamente como mães parceiras conjugais e como reprodutoras e nutrizes biológicas e culturais da espécie De certa forma poderseia dizer que os demais atributos sociais que envolvem a Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 278 situação social e política de Janaína Quirino não correspondiam adequadamente a essa matriz classificatória e mais que isso sua função reprodutora não parecia estar moldada à pretensão das práticas reguladoras o que num contexto biopolítico poderia ensejar maiores incidências Se o Estado biopolítico comporta a capacidade de atuar seletivamente e se a legitimidade das normas legais pode sofrer alterações em relação a determinados membros da sociedade com base em fatores sociais específicos é possível verificar que as mulheres que não pertencem ao contexto institucional de governamentalidade conforme já sustentado encontramse mais distantes da extensão da aplicabilidade normativa assegurada AGAMBEN 2004 Além disso aproveitando a própria fundamentação do Tribunal de Justiça de São Paulo sobre o caso que o aproximou dos mecanismos de esterilização eugênica vale salientar que nas palavras de Kern 2015 com sustento em Foucault a eugenia pode ser caracterizada como uma das manifestações do biopoder poder que está adstrito ao instituto da biopolítica e mais que isso como uma estratégia biopolítica que recaía sobre a população Como eugenia negativa o autor sustenta que essa dimensão visava impedir a reprodução de indivíduos e grupos considerados degenerados e portanto indesejados KERN 2015 p 13 Por fim registrase as palavras da própria Janaína em entrevista concedida ao Jornal da EPTV exibido em 22 de junho de 2018 ao ser questionada sobre o seu consentimento firmado no único documento que sustentou a determinação da realização da laqueadura tubária e permanente impossibilidade de reproduzir eu não sei ler direito aí eu assinei só que ele não leu não mandou eu ler e não mandou ninguém ler Pode ser esse papel que ele levou assinado que eu tinha aceitado a laqueadura mas eu não aceitei GLOBO PLAY 2018 CONSIDERAÇÕES FINAIS As análises realizadas permitiram refletir que por meio da dimensão biopolítica o Estado ao instituir mecanismos de controle de maneira indireta oculta e subversiva pode acabar relativizando o protagonismo da garantia formal prevista nos ordenamentos legais privando determinados grupos de exercerem e gozarem plenamente de garantias e direitos fundamentais Considerando as análises realizadas verificouse que o caso de Janaína Aparecida Quirino se tornou um exemplo prático de uma ingerência dos corpos no cerne da biopolítica estatal O poder do Estado exerceuse de modo antagônico às premissas legais produzindo efeitos de deformidades na garantia e eficácia de direitos Ainda é possível verificar que este Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 279 mesmo poder exercido sobre o corpo da mulher traduziu uma estratégia biopolítica por meio da qual o valor da vida humana foi medido levando em consideração características individuais do sujeito relativizando seus direitos políticos e o próprio exercício de livre arbítrio válido e seguro Temse nesta perspectiva uma vida que passa a ser de um lado politicamente irrelevante no sentido da própria autonomia e de outro relevante para a atuação dos mecanismos de controle ainda que tacitamente a regulação da população pairou sobre Janaína principalmente em relação à sua nãoreprodução É imperioso que se atente aos novos contornos de uma biopolítica que a remonta discriminadora que coloca sob suspeita extremos de excesso e de individualização a fim de que a consciência sobre controles que medem e desmedem o valor da vida humana seja possível REFERÊNCIAS AGAMBEN Giorgio Estado de exceção São Paulo Boitempo 2004 AYUB João Paulo Introdução à analítica do poder de Michel Foucault São Paulo Intermeios 2015 BRASIL Constituição 1988 Constituição 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arqueologiagenealogia do poder da sociedade disciplinar à biopolítica In Quaestio iuris Rio de janeiro v 09 n 01 p 405424 201nov 2017 SÃO PAULO 2ª Vara Judicial da Comarca de Mococa Ação Civil Pública nº 1001521 5720178260360 Autor Ministério Público Estadual de São Paulo Réus Município de MococaSP e Janaína Aparecida Quirino Disponível em httpsdrivegooglecomfiled1INTfDLL9zGVgsTHu2QoMcRd6laXdGNlUview Acesso em 15 jun 2019 SÃO PAULO Tribunal de Justiça Apelação nº 10015215720178260360 Recorrente Prefeitura Municipal de MococaSP Recorrido Ministério Público Estadual de São Paulo Relator Paulo Dimas Mascaretti São Paulo 23 de maio de 2018 Disponível em httpwwwmigalhascombrarquivos20186art2018061112pdf Acesso em 14 ago 2019 SCHMITT Paula Helena Espaços de exceção A produção biopolítica do medo e do inimigo In GLOECKNER Ricardo Jacobsen FRANÇA Leandro Ayres RIGON Bruno Silveira Orgs Biopolíticas estudos sobre política governamentalidade e violência Curitiba IEA 2015 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 282 HOMICÍDIO CONJUGAL MASCULINO E FEMINICÍDIO ÍNTIMO DIÁLOGOS EPISTEMOLÓGICOS SOBRE AS VIOLÊNCIAS LETAIS NA INTIMIDADE João Fillipe Horr 1 Bruna Adames2 Lucienne Martins Borges3 RESUMO Quando comparado às outras formas letais de violência o homicídio conjugal se diferencia por ocorrer numa relação em que houve investimentos afetivos culturalmente localizados e singularmente vividos entre autor e vítima Assim este capítulo tratase de uma revisão narrativa de literatura que teve como objetivo debater a produção científica das violências letais na conjugalidade particularmente os resultados provenientes das pesquisas sobre os homicídios conjugais nas suas possíveis relações com as críticas das teorias feministas e da categoria de análise do feminicídio íntimo Do ponto de vista das pesquisas identificouse a pluralidade de categorias de análise com relação a violência letal na intimidade com diferentes matrizes epistemológicas Dos estudos sobre homicídios conjugais há consenso sobre a importância de variáveis sociodemográficas psicossociais e de indícios precursores ao ato na compreensão do fenômeno com diferenças nas vertentes preditivas de fatores de risco e da compreensão clínica da passagem ao ato As principais críticas apontadas pelas teorias feministas são discutidas principalmente quanto a implicação política na construção das pesquisas no reconhecimento do patriarcado como dimensão cultural e o psicologismo de teorias sustentadas no saber clínico Argumentase que a noção de virilidade e sua relação com a masculinidade nos homicídios conjugais cometidos por homens em relações heterossexuais expressa a continuidade cultural do patriarcado como forma de negociação pautada na posse e controle nas relações íntimas As possíveis relações entre essas perspectivas nas demarcações epistemológicas são debatidas no campo das tomadas de decisão e prevenção em políticas públicas de enfrentamento da violência contra a mulher Palavraschave Homicídio conjugal masculino Feminicídio Íntimo Violências letais na intimidade Políticas Públicas 1 Psicólogo Mestre em Psicologia pelo Programa de Pósgraduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC 2015 Doutorando em Psicologia pelo Programa de Pósgraduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Email jfhorrgmailcom Lattes httplattescnpqbr7233120878512131 2 Psicóloga Graduação em Psicologia pelo Centro Universitário de Brusque UNIFEBE 2017 Mestranda em Psicologia pelo Programa de Pósgraduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Bolsista CAPES Email brunaadamespsicologiagmailcom Lattes httplattescnpqbr4058230467438695 3 Psicóloga Docente da École de travail social et de criminologie Université Laval e da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC PósDoutorado Université du Québec à Montréal uqam Canadá 2015 Email lucienneborgesufscbr Lattes httplattescnpqbr3388192539897247 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 283 INTRODUÇÃO Este capítulo se propõe a debater a produção científica das violências letais que ocorrem nas relações íntimas particularmente os resultados provenientes das pesquisas sobre homicídios nos contextos norteamericano e europeu nas suas possíveis relações com os estudos feministas e da categoria de análise do feminicídio íntimo O debate terminológico nas violências letais contra as mulheres é um problema contemporâneo com implicações teóricas metodológicas e desdobramentos na aplicabilidade das intervenções psicossociais com enfoques preventivos ELLIS STUCKLESS SMITH 2015 Neste capítulo pretendemos por meio de uma revisão narrativa de literatura apresentar alguns dos principais resultados e reflexões provenientes das pesquisas sobre fatores associados e variáveis predominantes nas situações de homicídios conjugais A revisão narrativa assume uma posição epistemológica diante de determinada problemática ao guiar a coleta de materiais e as análises de acordo com a pertinência em produzir reflexões para a pergunta de pesquisa VOSGERAU ROMANOWSKI 2014 Nossa problemática principal é estabelecer as possíveis relações entre territórios epistemológicos distintos isto é os estudos sobre homicídios e as reflexões das teorias feministas acerca do feminicídio com objetivo de produzir tensionamentos e diálogos no campo da pesquisa e aplicação de políticas públicas Para isso consideramos as referências principais utilizadas nos estudos de homicídios conjugais localizados no contexto norteamericano estadunidense e canadense e francês sustentando nossa análise na reflexão sobre algumas críticas pertinentes das teorias feministas sobre esta categoria de análise a saber a de ordem terminológica e conceitual em relação a ausência da motivação e compreensão de gênero no conceito de homicídio b de compreensão científica em relação a tendência psicologista das pesquisas em produzir resultados que justificam o autor do crime como um sujeito mentalmente adoecido e mais precisamente tomado por uma violenta emoção ou paixão e c de compreensão política e aplicabilidade na prevenção dos atos letais especialmente devido as mudanças jurídicas que tornam o feminicídio como crime hediondo no contexto brasileiro 1 DESENVOLVIMENTO 11 A categoria Homicídio Conjugal delimitacão do fenômeno sua prevalência e impactos psicossociais A violência letal contra um cônjuge ou excônjuge é considerada como um gesto extremo e destrutivo em relação ao outro dentro das relações íntimas e uma grave violação Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 284 dos Direitos Humanos ALVAZZI DEL FRATE 2011 STOCK et al 2013 Estimase que um a cada sete homicídios no mundo seja cometido por alguém com quem se estabeleceu uma relação íntima somado aos assassinatos em guerras narcotráfico e acidentes STOCKL et al 2013 Quando comparado às outras formas letais de violência o homicídio conjugal se diferencia por ocorrer numa relação em que houve investimentos afetivos e sexuais culturalmente localizados e singularmente vividos entre autor e vítima No campo científico é um conceito que expressa diferentes territórios epistemológicos como o homicídio entre parceiros íntimos concepção dos estudos epidemiológicos principalmente de origem norte americana homicídio conjugal concepção do paradigma da passagem ao ato na psiquiatria forense proveniente dos estudos francófonos feminicídio íntimo concepção proveniente dos estudos feministas específico para o campo das relações íntimas Esses conceitos ao expressarem diferentes epistemologias centralizam suas análises em variáveis distintas do fenômeno a relação entre autor e vítima por exemplo ou fatores relevantes da saúde mental de autores em pelo menos um ano antes ou do próprio eixo de compreensão do mesmo na compreensão feminista como uma escalonada final das múltiplas violências legitimadas pelo sistema patriarcal ou enfoques de fatores de risco disparadores do ato homicida como na epidemiologia norteamericana Por exemplo por meio da categoria homicídio conjugal vamos agrupar diferentes tipologias de conjugalidade como as relações íntimas heterossexuais ou homoafetivas Mas quando analisamos as prevalências é possível identificar que mulheres possuem seis vezes mais chances de serem assassinadas por seus parceiros e exparceiros em relações heterossexuais quando comparadas a relações íntimas homoafetivas STOCKL et al 2013 Ao aprofundar as análises os riscos de atuação homicida possuem diferenças entre o gênero dos autores e na motivação da violência letal MARTINSBORGES 2011 Em relações heterossexuais a motivação de homens que matam suas parceiras é frequentemente relacionada aos ciúmes excessivos o rompimento da relação por parte da parceira e a traição real ou imaginada enquanto que mulheres matam seus parceiros quando experimentam a ameaça contra si e aos filhos MARTINSBORGES 2011 Mapeamentos realizados no Canadá nos Estados Unidos e na Inglaterra no início dos anos 2000 indicaram que a proporção de pelo menos 30 das mortes de mulheres foi cometida pelos seus parceiros ou exparceiros o que garantiu legitimidade na construção de pesquisas e políticas que focam na avaliação de risco como prevenção do gesto homicida Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 285 BOURGET GAGNÉ 2012 As pesquisas também destacam as diferenças entre os continentes em relação à prevalência de homicídios por parceiros ou exparceiros em relação às mulheres sendo a Ásia com as maiores taxas 58 seguido por países de alta renda4 412 e as Américas 405 STOCKL et al 2013 Já para os homens enquanto vítimas apesar de números inferiores quando comparados aos homicídios de mulheres os países de alta renda 6 região africana 41 e os países de média de renda da Europa 36 representam as maiores taxas Outro elemento pertinente são as prevalências dentro dos países com números que diferem de acordo com a regionalidade e pelos próprios sistemas de notificação da violência letal o que exige a necessidade de estudos mais aprofundados STOCKL et al 2013 Um dos aspectos regionais discutidos na produção científica são as diferenças entre áreas urbanas e rurais como demonstrou Jennings e Piquero 2008 em relação ao aumento do número de homicídios conjugais cometidos entre 1980 e 1999 nos estados rurais dos Estados Unidos quando comparado aos centros urbanos Argumentase que a falta de acesso a serviços socioassistenciais relacionados ao atendimento de pessoas em situação de violência conjugal e a falta de envolvimento comunitário na dinâmica da violência seriam fatores de risco nesses cenários Ainda sobre a prevalência dos homicídios conjugais cometidos por homens destaca se a associação do fenômeno com as atuações do homicídio seguido de suicídio BOURGET GAGNÉ 2012 Matthews e colaboradores 2008 investigaram numa amostra de 3793 homicídios conjugais na África do Sul uma representatividade de 194 de casos seguidos de suicídio em até três anos depois do homicídio totalizando 261 casos Liem e Roberts 2009 ao investigar uma amostra de 341 casos de homicídios conjugais cometidos por homens entre 1991 e 2000 nos Países Baixos identificou que 44 homens tentaram contra a própria vida após o ato sendo 30 suicídios consumados Dentro da violência letal na intimidade os estudos principalmente em países europeus indicam que os casos de homicídios seguidos de suicídio podem acontecer diante da ruptura do relacionamento mas também pactuados principalmente em casais mais velhos e com problemas de saúde DOBASH DOBASH 2015 LIEM ROBERTS 2009 Estes eventos trágicos de atuação 4 De acordo com os autores os países de alta renda foram selecionados a partir da lista no Banco Mundial sendo eles Andorra Austrália Áustria Canadá Croácia Chipre República Tcheca Dinamarca Inglaterra e País de Gales Estônia Finlândia França Alemanha Hungria Islândia Irlanda Israel Itália Japão Lichtenstein Luxemburgo Malta Mônaco Holanda Nova Zelândia Noruega Polônia Portugal Escócia Eslováquia Eslovênia Espanha Suécia Suíça e Estados Unidos da América Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 286 letal podem ainda estar ligados com filicídio assassinato dos filhos e o familicídio assassinato de mais de um membro da família WEBSDALE 2010 Estimase que o homicídio conjugal é a sétima maior causa de assassinato de mulheres nos Estados Unidos gerando um custo de até 1 bilhão de dólares STOCK 2013 Não obstante a brutalidade do gesto homicida e da sua relação com o homicídio seguido de suicídio pesquisas também demonstram o impacto psicossocial nas famílias Pesquisas recentes indicam a presença de sintomas traumáticos tanto para vítimas de tentativas de homicídio quanto para os filhos e filhas de autores e vítimas que são as primeiras a encontrar o corpo bem como podem presenciar a cena do homicídio ALISIC et al 2017 Um termo também utilizado atualmente na produção científica tanto internacional quanto nacional é o de femicídio ou feminicídio Esse conceito constituído no campo da sociologia crítica e do feminismo explica os atos homicidas contra as mulheres como um crime de ódio pela condição de ser mulher ALVAZZI DEL FRATE 2011 MENEGUEL PORTELLA 2017 Especialmente no conceito de feminicídio existe uma demarcação política e teoricamente interseccional com as estruturas de classe gênero e raça que constituem a condição das mulheres em diferentes contextos sustentados pela lógica patriarcal No contexto brasileiro esse conceito será importante devido as mudanças jurídicas operadas a partir da Lei 131042015 BRASIL 2015 a Lei do Feminicídio Esta lei garantiu novas estratégias de notificação punição aos autores e de possíveis pesquisas sobre os assassinatos de mulheres Sustentase aqui neste capítulo que é também o ponto de encontro possível entre as pesquisas acerca do homicídio conjugal e os estudos sobre o feminicídio no território brasileiro Ao observar os dados sobre as mortes de mulheres no contexto brasileiro é possível perceber a condição de grave risco de homicídio das mulheres WEISELFISZ 2015 SOUZA et al 2017 Segundo o último levantamento sobre o assassinato de mulheres do Mapa da Violência WEISELFISZ 2015 no período de 19802013 106093 mulheres foram assassinadas colocando o país como o 5º mais violento no mundo em relação as mulheres Desses homicídios foi possível identificar que 332 foram cometidos por parceiros ou exparceiros da vítima Romio 2017 por meio da sua tese de doutorado construiu uma tipologia acerca dos feminicídios cometidos no Brasil dentre eles o feminicídio doméstico Assumese que o feminicídio doméstico representa o assassinato de mulheres dentro do universo privado por um agressor próximo da unidade familiar Não há distinção na tese acerca do tipo de relação Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 287 estabelecida com o agressor mas de acordo com a autora no período de 2009 a 2014 foram registrados 7707 óbitos de mulheres no universo doméstico Dentre esses casos as mulheres entre 15 a 49 anos foram as mais vitimadas representando 46 da amostra pesquisada O conceito de feminicídio trouxe a implicação do Estado para a agenda de pesquisa e intervenções jurídicolegais em relação às violências letais contra as mulheres no contexto brasileiro No entanto um limite importante na produção científica nacional especificamente nos homicídios conjugais é a compreensão dos fatores associados e das variáveis presentes nessas atuações violentas Apesar de não haver consenso entre os pesquisadores sobre as terminologias adequadas da violência letal cometida na intimidade ELLIS STUCKLESS SMITH 2015 há sinergia na produção científica acerca da pertinência de variáveis sociodemográficas psicossociais criminológicas e clínicas em relação ao homicídio conjugal nas pesquisas internacionais BOURGET GAGNÉ 2012 ERIKSSON MAZEROLLE 2013 Pesquisadores brasileiros têm investigado os homicídios conjugais e homicídios seguidos de suicídio na busca de estimar a sua prevalência os fatores de risco associados e possíveis estratégias de avaliação de risco letal na intimidade MARTINSBORGES BARROS 2016 MEDEIROS TAVARES 2015 SÁ WERLANG 2007 MartinsBorges Lodetti e Girardi 2014 ao mapear processos criminais já julgados identificaram 29 casos de homicídios conjugais cometidos na cidade de Florianópolis entre 2000 e 2010 A análise dos processos indicou que a maioria dos autores foram homens em que a separação as medidas de represália e vingança foram a principal motivação dos atos além da presença da violência conjugal e a condição de estar separados como variáveis precursoras predominantes nos casos Por meio de uma pesquisa exploratória e comparativa MartinsBorges Lodetti Machado e Tridapalli 2016 analisaram notícias de jornais de grande circulação de Santa Catarina e São Paulo mapeando respectivamente 34 e 110 casos de homicídios conjugais midiatizados As informações veiculadas corroboraram com dados das pesquisas internacionais sobre o tema como a predominância de autores homens a separação e o ciúme como principal motivador em mais da metade dos casos e a presença de indícios precursores como por exemplo a violência conjugal Um dos poucos estudos exploratórios publicados no Brasil sobre o homicídio seguido de suicídio foi realizado por Sá e Werlang 2007 ao mapear 14 casos no período de 1996 a 2004 na cidade de Porto Alegre por meio de fontes jornalísticas e inquéritos policiais além Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 288 de entrevistas semiestruturadas com parentes e amigos das vítimas As principais vítimas tinham ou haviam tido relacionamento íntimo com o autor do crime cometido apenas por homens na amostra sendo principalmente a exparceira namorada ou esposa 8 casos e o homicídio ocorreu principalmente durante ou no primeiro ano após a separação As autoras por meio de entrevistas com parentes e conhecidos corroboraram com as pesquisas do campo em relação a características como o ciúme a agressividade e os sintomas depressivos observados nos autores do HS Em relação às pesquisas sobre a avaliação de risco do homicídio conjugal Medeiros e Tavares 2015 construíram um protocolo de níveis de gravidade de violência conjugal a partir da análise de validação de itens na perspectiva de profissionais da saúde e do judiciário O protocolo foi elaborado a partir dos principais instrumentos de avaliação de risco e preditores associados aos homicídios conjugais O instrumento está em etapa de implementação recente nos sistemas de justiça do Distrito Federal MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL E TERRITÓRIOS 2018 Essas pesquisas demonstram iniciativas em compreender a realidade brasileira acerca das violências letais na intimidade No entanto é necessário considerando as recentes mudanças jurídicas e dos sistemas de notificação da violência construir um diálogo entre as pesquisas acerca do feminicídio e do homicídio conjugal preservando suas diferenças na construção de pesquisas e ações preventivas 12 Homicídio Conjugal Masculino ou Feminicídio Íntimo impasse dos nomes e efeitos na prevenção O conceito de feminicídio utilizado na última década em países da América Latina reflete politicamente a implicação dos EstadosNação na responsabilidade dos atos letais em relação às mulheres PATH 2008 Por definição as condições da ação letal contra as mulheres devem ser motivadas pelos autores da violência e investigadas pelas autoridades da Justiça e da Segurança Pública pela sua condição de ser existir e se posicionar como mulher Essas violências letais incluem uma diversidade de tipologias conceituais relacionadas à relação que a vítima estabelecia com o autor da violência letal bem como mortes como efeitos de práticas misóginas De acordo com o relatório PATH 2008 com relação aos autores da violência letal o feminicídio deve ser utilizado quando a íntimo o autor é um homem em relações de intimidade e parentesco parceiro atual exparceiro e outros familiares como irmãos pais tios etc b não íntimo quando não relacionados a Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 289 relações familiares conhecidos e ou estranhos à vítima c perpetrado por mulher quando uma mulher pratica a violência letal nesse sentido coadunadas com a lógica patriarcal dentro de crimes de honra por exemplo d quando é cometido por desconhecidos da vítima conflitos armados ataques de gangue e outras violências generificadas em relação à vítima mulher Ao considerar a implicação do Estado o feminicídio também destaca as mortes consequentes das políticas ou ausência dessas frente às práticas misóginas como negligência fome mortalidade materna mutilação da genitália feminina mortes relacionadas ao tratamento do HIV etc É importante destacar que na compreensão da morte pela condição de ser mulher Russel 1992 indicava o ódio o prazer e o sentimento de posse como base motivacional por parte dos autores violentos em relação a mulher Percebese então que a categoria feminicídio é ampla considerando uma diversidade de atos letais contra as mulheres Argumentase aqui que a função política dessa categoria produz efeitos de visibilidade de uma variedade de fenômenos importantes com impacto nos sistemas de notificação e jurisdição dos casos concretos mas não caracteriza os fatores e variáveis associadas como o homicídio conjugal especificamente nas características e especificidades da relação entre autor e vítima Isso se sustenta em dois argumentos a a relação de continuidade entre o relacionamento íntimo violento e o homicídio conjugal enquanto desfecho não é consenso na produção científica sobre o tema o que exige a produção de reflexões sobre o tema e na tomada de decisão de políticas públicas e b a atuação letal na intimidade ainda que atuada principalmente por homens heterossexuais contra suas respectivas parceiras não se restringe à orientação sexual o que exige a exploração de outras variáveis e teorias como por exemplo associadas aos relacionamentos homoafetivos Ellis Stuckless e Smith 2015 ao revisar as terminologias das violências letais na intimidade argumentam de um ponto de vista pragmático sobre a necessidade de refletir sobre a validade a utilidade e a confiabilidade dos usos terminológicos por parte dos pesquisadores no campo Elas trazem que a partir da década de 1980 autores de referência da área de pesquisa como Jacqueline Campbell passam a utilizar o conceito de feminicídio entre parceiros íntimos reiterase o mesmo utilizado pelas autoras que incluem tanto homens quanto mulheres como perpetradores do ato pelo fato da vítima ser mulher O argumento das autoras se sustenta pela facilidade das estratégias de notificação dos casos de homicídio Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 290 No entanto uma das reflexões pertinentes na revisão das autoras se dá nas implicações da distinção entre os objetos de pesquisa e intervenção da violência conjugal e do homicídio conjugal Na compreensão feminista o feminicídio íntimo se dá num continuum da violência de gênero como um desfecho fatal nos ciclos da violência conjugal RUSSEL 1992 No argumento de Ellis Stuckless e Smith 2015 isso tem efeitos importantes no campo da prevenção da violência letal já que o públicoalvo das intervenções preventivas podem ser mulheres que buscam dispositivos de acolhimento para situações de violência bem como homens notificados como autores de violência em relação a parceira ou exparceira Mas não há consenso sobre a associação entre violência conjugal e homicídio conjugal mesmo sendo um preditor associado nas pesquisas sobre o tema CAMAN et al 2017 ELLIS 2017 MARTINSBORGES 2011 Autores que definem o homicídio conjugal como uma categoria distinta da violência conjugal justificam o argumento devido às amostras em pesquisas em que não há indícios ou notificações de violência conjugal prévia CAMAN et al 2017 DOBASH DOBASH 2015 Nesses casos bem como naqueles em que há presença da violência conjugal na dinâmica relacional a separação e perda de controle com relação a parceira foram as principais motivadoras do ato alinhadas às ameaças contra o outro e a própria vida ELLIS 2017 Como fator de alto risco para atuação letal a separação o ciúme e a ameaça para si e ao outro se tornam variáveis fundamentais no campo da prevenção Isso parece também transcorrer nos casos de homicídio seguido de suicídio comumente relacionados ao homicídio conjugal LIEM ROBERTS 2009 A ameaça ou separação efetiva como indício precursor ao ato também aparece em estudos acerca dos relacionamentos íntimos homoafetivos GANNONI CUSSEN 2014 GLASS et al 2004 Os autores supracitados identificaram ao analisar 9 casos de mulheres que mataram suas companheiras a motivação ao ato no período de término da relação íntima ou já separadas Gannoni e Cussen 2014 identificaram numa amostra de homicídios cometidos em relacionamentos homoafetivos na Austrália a predominância de brigas conjugais nas circunstâncias prévias ao ato bem como a separação e os ciúmes como motivadoras do ato Portanto a compreensão de que a violência letal na intimidade representa uma escalonada final da violência conjugal é um tema controverso e que não possui consenso na produção científica sobre o tema Outro argumento é que proporcionalmente a violência conjugal é um fenômeno mais frequente quando comparada aos homicídios o que não Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 291 justifica uma relação casuística precisa CAMAN et al 2017 Da mesma forma a expressão polimorfa da violência nas relações íntimas por exemplo as agressões físicas as múltiplas violências psicológicas a violência sexual e comportamentos de controle e posse na dinâmica cíclica de autores e vítimas exige uma aproximação complexa e não reducionista por parte de pesquisadores e profissionais do campo MARTINSBORGES MAYORCA LIVRAMENTO 2011 A convergência então da produção científica sobre o homicídio conjugal e os contextos de produção dos feminicídios no Brasil é necessária para a construção de estratégias de prevenção com possíveis autores e vítimas nas políticas públicas No entanto um limite se dá inevitavelmente na compreensão epistemológica das abordagens na delimitação do fenômeno Enquanto os estudos sobre o homicídio conjugal produzem teorias baseadas em preditores do ato num modelo ainda sustentado na neutralidade científica possível ELLIS 2017 ou no paradigma da passagem ao ato MILLAUD 1998 as teorias de gênero estão politicamente implicadas sustentando como tronco comum a todas as violências letais seja nas relações heterossexuais ou homoafetivas a lógica do patriarcado como explicação principal às atuações WILSON DALY 1994 Esse paradoxo epistemológico aqui presente não é exclusivo no campo da violência letal na intimidade mas das reflexões suscitadas por estudos sobre a violência BOWMAN et al 2015 HAMBY 2011 RIFIOTIS 2015 Bowman et al 2015 ao refletirem sobre a primeira onda de estudos sobre a violência impulsionada pela Organização Mundial da Saúde OMS expôs a necessidade da complementaridade de estudos epidemiológicos e empíricos sobre manifestações das violências com estudos de caso ensaios e estudos etnográficos especialmente aqueles que destoam das regularidades amostrais De acordo com o autor os cenários da violência exigem dos pesquisadores o aprofundamento das vivências e lugares dos sujeitos envolvidos e suas respectivas interações consideradas violentas O desafio teórico contemporâneo é construir modelos que possam interrogar ou explicar as relações entre fenômenos e a variabilidade da violência e que resgate uma perspectiva relacional da violência e a interseccionalidade com gênero etnia classe e outros elementos culturais e simbólicos Esses desafios têm traduzido os esforços dos pesquisadores deste capítulo em demonstrar possíveis encontros das reflexões feministas com uma compreensão clínica das variáveis identificadas em homicídios conjugais cometidos por homens Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 292 13 Virilidade clínica e atuação letal pistas para o encontro das categorias na pesquisa Argumentamos neste capítulo que o campo de aplicação e pesquisa da categoria de homicídio conjugal demonstra fatores associados e variáveis que nos dão indícios de dinâmicas de conflito e sofrimento nas relações de intimidade No entanto uma aproximação universalista do fenômeno pela lógica de produção de preditores pouco aprofunda os cenários e contextos vivenciados pelos sujeitos Neste sentido a tradição francófona dos estudos buscou reconhecer a imbricação entre clínica e violência nas suas dimensões psíquicas e sociais mas que necessita ser convocada também pelas reflexões feministas acerca do feminicídio no contexto brasileiro Compreender as variáveis presentes em homens que atuam letalmente contra suas parceiras implica inevitavelmente tecêlas no contexto sociocultural em que homens se constituem marcados pela hierarquização das masculinidades e a égide da virilidade SOBOTA HOUEL MERCADER 2009 Sustentar uma compreensão clínica da violência convoca a segunda crítica dos estudos feministas em relação ao conceito de homicídio conjugal Meneghel e Portela 2017 são enfáticas nas críticas de pesquisas que buscam delimitar características de autores da violência letal Grande parte dos homens que assassinam as esposas não difere de seus pares na sociedade e são considerados comuns e convencionais o que é ainda mais perigoso porque há uma tendência de atribuir o delito a uma explosão de cólera ou um motivo passional impossível de ser previsto e prevenido Por esse motivo considerar o feminicídio como uma explosão passional ou atribuilo à doença do agressor significa retirar a conotação social e de gênero do crime reduzindoo à esfera individual MENEGUEL PORTELA 2017 p 3081 No Brasil a jurisprudência dos casos em que homens matavam suas parceiras foi e ainda o é em algumas circunstâncias profundamente marcada pelo argumento jurídico da violenta emoção e da legítima defesa da honra ELUF 2007 Nas reflexões de Arreguy 2011 o primeiro Código Penal construído durante o período histórico do Brasil Colônia não só perdoava a pena prisional aos autores de homicídios conjugais como diferenciava a pena de acordo com o lugar social dos autores diferenciando escravos e donos de senzala No ordenamento jurídico a violenta emoção é um atenuante de pena através do artigo 65 III do Código Penal Emoção e paixão no discurso jurídico não excluem a imputabilidade mas a atenuam e se referem a estados que afetam o equilíbrio psíquico do agente É plausível que o movimento feminista brasileiro tenha ressalvas acerca de estudos que possam trazer subsídios argumentativos e discursividades para esse tipo de defesa dos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 293 autores nos contextos judiciais No entanto sabese que a própria penalização dos sujeitos nos cenários jurídicos traduz a história do colonialismo europeu do nosso país marcado pela seletividade penal da população afrodescendente e pobre nas intersecções de classe gênero e etnia com objetivo de produção de um sujeito potencialmente perigoso Portanto a constituição do nosso sistema penal pode ser metaforizada nas palavras de Góes 2017 como um abolicionismo penal que necessita de diversas chaves teóricas e analíticas que não podem ser esgotadas neste texto Além do ordenamento jurídico brasileiro complexo por si só é a própria noção de sujeito perigoso que precisa ser discutida na compreensão clínica dos atos letais Alguns estudos sobre o homicídio conjugal principalmente na tradição francófona que tem como Maurice Bezenech uma das suas principais influências de fato tematizam a relação entre transtornos mentais diagnosticados e atos de violência Esta tradição pautada na psiquiatria forense e no paradigma da passagem ao ato representou um percurso importante nos estudos dos homicídios intrafamiliares especialmente na relação entre psicose e atos homicidas principalmente em filicídios e familicídios bem como a presença da impulsividade e a agressividade como fatores de risco em homens que cometeram homicídio conjugal BENEZECH 2016 BOURGEOIS BENEZECH 2001 Porém a psiquiatra forense calcada na noção de periculosidade também pode evocar um modelo biomédico e moralista acerca da violência na crença de uma possível predição exata do comportamento violento em determinados sujeitos com transtorno mental DELGADO 2012 Uma perspectiva universalista e biomédica sobre a violência retira tanto seu caráter dinâmico e conflitivo dos sujeitos que a expressam quanto político e cultural nos seus contextos de ocorrência exigindo o posicionamento dos pesquisadores do campo BUREAU et al 2001 DELGADO 2012 Autores de perspectiva psicanalítica por meio do conceito de passagem ao ato5 tem fornecido subsídios importantes para a compreensão da atuação letal que ultrapassam e criticam a caracterologia da personalidade perigosa ARREGUY 2011 RAOULT 2006 MILLAUD 1998 SOBOTA HOUEL MERCADER 2009 No campo da pesquisa e intervenção a compreensão clínica de autores de homicídios conjugais pode ser argumentada pela via dos indícios precursores à atuação letal Os indícios 5 O conceito de passagem ao ato na psicanálise se sustenta na noção de agieren atuação construída por Freud No processo analítico a atuação corresponde ao processo do agir inconsciente como forma de negociação com o conflito intrapsíquico e evitação da elaboração pelo discurso podendo acontecer dentro ou fora do contexto terapêutico Na relação entre Psicanálise e Direito a passagem ao ato tornouse um conceito explicativo de condutas criminais principalmente por parte da Psiquiatria Forense que discutimos ao longo do capítulo Raoult 2006 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 294 precursores são manifestações comportamentais e sintomáticas circunstanciadas há pelo menos um ano que expressam um sofrimento psíquico e não necessariamente elaborado pelo sujeito tradicionalmente vinculadas aos estudos de autópsia psicológica do suicídio WERLANG 2007 No campo da psicanálise a passagem ao ato será a base de compreensão dos atos auto e heteroagressivos RAOULT 2006 Como indícios precursores aos homicídios conjugais podemos identificar os relatos de ameaça à vida da parceira ou dos filhos os comportamentos de perseguição à parceira nos contextos domiciliares e laborais a verbalização de ideias autodestrutivas as tentativas prévias de suicídio e homicídio os sintomas depressivos durante ou após a separação e mais raramente a presença de sintomas psicóticos WEBSDALE 2010 Pesquisas qualitativas realizadas com homens autores de homicídio conjugal destacam como os indícios precursores desvelam dinâmicas relacionais problemáticas como a dependência afetiva em relação à parceira a dificuldade de elaboração das emoções e a necessidade de controle do outro ADAMS 2009 DUBASH DUBASH 2015 Quanto a dimensão psicopatológica cabe reiterar ainda que há poucas evidências empíricas de quadros clínicos efetivamente associados aos autores de homicídio conjugal com resultados esparsos que indicam a presença de comportamentos impulsivos e destrutivos associados a transtornos de personalidade borderline DUTTON 1999 e episódios depressivos em casos de homicídio seguido de suicídio LIEM ROBERTS 2009 Com isso podese afirmar que de fato a atuação letal na intimidade não é cometida por um tipo de caráter No entanto isso não exclui a perspectiva clínica ao reconhecer a presença de indícios precursores importantes para a prevenção bem como estratégias de negociação da angústia que ao convergir com fatores de risco podem eclodir ao ato letal LEFBREVE 2006 Esses fatores de risco podem advir de cenários sociais e demográficos como a exclusão social o desemprego e o acesso à armas de fogo ERIKSSON MAZZEROLLE 2013 bem como cenários situacionais e psicossociais como tentativas prévias de ataque letal as estratégias de negociação diante da ameaça de separação por parte da parceira ou a separação efetiva muitas vezes associada a presença de um novo parceiro por parte da vítima KIVISTO 2015 SHEEHAN et al 2014 Uma perspectiva clínica da atuação letal deve se implicar numa perspectiva dinâmica e conflitiva acerca dos atos violentos demonstrando circuitos pulsionais de negociação da angústia dos autores situados num contexto sociocultural evitando assim um psicologismo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 295 Se a passagem ao ato expressa uma resposta diante de uma angústia culturalmente demarcada e atuada em agressividade em relação ao outro ou a si mesmo uma compreensão clínica buscará responder aos sentidos de continuidade e ruptura da experiência do sujeito que eclodiu no ato RAOULT 2006 Sobota Houel e Mercader 2009 p 41 ao investigar o registro da passionalidade dos homicídios conjugais desvelam o sentido de continuidade e ruptura em contextos culturalmente machistas a virilidade é medida pelo padrão de violência que se pode cometer contra os outros ela domina e particularmente as mulheres em nome do exercício a demonstração ou o restabelecimento da dominação essa suposta capacidade do homem viril de controlar seus afetos é antes uma repressão baseiase em um endurecimento do comportamento emocional que o empobrece e enfraquece e é portanto uma verdadeira normopatia viril A diferença entre a masculinidade e a virilidade se tornam ferramentas conceituais e clínicas com implicação no campo das intervenções preventivas e psicossociais Uma cultura da virilidade pode ser encarada pela clínica como uma constelação de sentidos e significados que garantem a continuidade e proteção contra a angústia do homem na identificação com a feminilidade SOBOTA HOUEL MERCADER 2009 e é justamente na ruptura dessas condições de posse e controle que a violência letal pode se instaurar As possibilidades de articulação de uma clínica da atuação letal e o campo da prevenção será o enfoque da terceira crítica dos estudos feministas e nesse sentido tem implicações no planejamento de intervenções psicossociais A recente promulgação da Lei do Feminicídio torna os assassinatos de mulheres quando caracterizados por motivação de gênero como crimes hediondos Portanto apesar de possuírem atenuantes são crimes inafiançáveis não sustentados pelo argumento da legítima defesa da honra por parte dos autores Dada a recente instauração normativa e jurídica as pesquisas brasileiras estão avançando para demonstrar o impacto na prevenção das violências letais contra as mulheres Algumas pesquisas já indicam as mudanças operadas na notificação da violência e principalmente nas narrativas jurídicas sobre os eventos do feminicídio É o que nos mostra Machado et al 2015 p 50 sobre como os discursos da acusação e defesa contribuem para a construção de personagens no campo judiciário Diversamente a imagem do homem violento colabora para a mobilização do conceito de periculosidade precipuamente explorada pela acusação Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 296 embasando a manutenção de custódias cautelares e a aplicação de penas maiores A monstruosidade e as perversões sexuais são enfatizadas sendo notáveis nesses processos a ocorrência de alguns pedidos de instauração de insanidade mental pela própria defesa que poderiam redundar na aplicação da medida de segurança o que não veio a ocorrer em nenhum dos processos estudados Nesse padrão a mulher vítima merecedora de proteção do sistema de justiça criminal é a boa mãe e esposa recatada e trabalhadora A desconstrução de um sujeito perigoso anormal e monstruoso é uma via importante para o projeto político que sustenta as intervenções psicossociais dentro dos estudos feministas Na clínica da atuação o que se destaca é que o sujeito juridicamente perigoso é antes ameaçado no campo intersubjetivo agredindo o outro como resposta às dissonâncias do seu mundo interno MILLAUD 1998 Essas dissonâncias de continuidade e ruptura de uma lógica do mundo interno possuem raízes culturais simbólicas e sem dúvida interpessoais no campo da intimidade SOBOTA HOUEL MERCADER 2009 Portanto se interessa ao campo da clínica na sua interface com os estudos culturais e feministas produzir efeitos na prevenção dos homicídios conjugais possíveis autores e vítimas deverão ser alvo das intervenções psicossociais É o que demonstra Reckdenwald e Parker 2010 ao construir um estudo nos Estados Unidos com objetivo de identificar se a redução da exposição à violência conjugal para mulheres reduziu as taxas de homicídios conjugais com resultados importantes no campo da prevenção De acordo com as autoras a disponibilidade de serviços legais diminuiu as chances principalmente de homens serem assassinados por suas parceiras na medida em que elas possuíam recursos para sair da situação de violência conjugal No entanto o encaminhamento para abrigos de proteção às mulheres aumentaram as chances de essas serem assassinadas por seus parceiros o que sustenta a hipótese de medida de represália e vingança Com isso as autoras concluíram que se a proteção do serviço não é o suficiente aumentase as chances de homicídios conjugais perpetrados contra as mulheres principalmente porque a etapa da separação é um dos indicadores de risco mais graves na atuação letal Pesquisas também indicam que a judicialização ou seja a punição por meio da prisão preventiva dos autores de violência possuem resultados heteróclitos na prevenção da atuação letal tanto positivos quanto negativos na contenção do ato CAMAN et al 2017 Caman et al 2017 ao analisar as características de homicídios conjugais cometidos por homens e mulheres identificaram também uma redução das taxas de homens enquanto vítimas mas uma estabilidade nos assassinatos de mulheres Esses resultados demonstram que intervenções apenas baseadas no atendimento às potenciais mulheres vítimas não Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 297 necessariamente produzem efeitos de prevenção da atuação letal dessas Os mecanismos punitivos prévios ao ato como a prisão preventiva também podem produzir efeitos iatrogênicos por meio de represália e vingança em relação à vítima Nesse sentido as intervenções psicossociais devem indicar acolhimento e proteção às vítimas bem como construir dispositivos de intervenções psicossociais que integrem os possíveis homens autores de violência letal WEBSDALE 2010 Se as conquistas dos movimentos feministas sustentadas nas políticas de igualdade de gênero promovem e ainda lutam por condições dignas das mulheres nas sociedades patriarcais o mesmo movimento parece ter acompanhado uma condição ameaçadora da continuidade simbólica viril dos homens Sendo assim as pesquisas acerca da violência letal vão se deparar inevitavelmente com uma atuação que reflete as profundas mudanças nos papéis culturalmente organizados de mulheres e homens SOBOTA HOUEL MERCADER 2009 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este capítulo surgiu da nossa necessidade enquanto estudiosos da temática de violência letal pertencentes ao campo dos estudos do homicídio conjugal em demonstrar os possíveis diálogos da clínica da violência com as reflexões suscitadas pelas críticas feministas De um ponto de vista teórico e prático partimos do lugar de compreensão sobre as situações de violência dentro da sua dinâmica relacional vivenciadas pelos sujeitos marcados simbolicamente pela continuidade da lógica patriarcal dentro das relações íntimas Do ponto de vista das pesquisas identificamos a pluralidade de categorias de análise em relação a violência letal na intimidade Essas categorias acabam por refletir diferentes matrizes epistemológicas que se aproximam deste objeto por vieses explicativos a compreensão de fatores associados às violências e seu poder preditivo numa perspectiva epidemiológica homicídios por parceiros íntimos a compreensão das variáveis psicossociais e de indícios precursores ao ato homicida numa perspectiva clínica homicídio conjugal e a compreensão da continuidade entre as violências experimentadas por mulheres na cultura patriarcal e a escalonada no ato letal numa perspectiva de gênero feminicídio íntimo No campo das políticas públicas das estratégias de enfrentamento da violência e das tomadas de decisão estas leituras permitem que possamos delimitar a questão das mortes de mulheres dentro das relações íntimas como um tema urgente e atual O Brasil expressa Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 298 números alarmantes em relação às mortes de mulheres sendo pelo menos um terço delas cometidas por um parceiro ou exparceiro da vítima Mesmo diante das mudanças jurídicas e normativas em relação a violência contra a mulher no Brasil as pesquisas que demonstram a efetividade das políticas de enfrentamento ainda são incipientes Num cenário de recrudescimento das políticas socioassistenciais de saúde e de segurança pública enxergamos cotidianamente a banalização das mortes de mulheres por meio das notícias de jornais enquanto instituições de pesquisa são desacreditadas pelo poder público Nesse sentido buscamos nosso diálogo também com a produção científica internacional sobre as ações preventivas nas situações de homicídios na intimidade que demonstram a importância de serviços socioassistenciais sensíveis à temática para a avaliação de risco nas situações de violência É necessário pensar também em estratégias que possam fortalecer a rede de proteção das mulheres e de intervenções para com os possíveis homens autores de violência Este argumento se sustenta pelos resultados de pesquisas em contextos estadunidenses e europeus que indicaram uma redução das taxas de homens assassinados por suas parceiras mas uma relativa estabilidade dos homicídios de mulheres mesmo com a disponibilidade de serviços socioassistenciais para elas Argumentouse que o termo homicídio conjugal na sua matriz francófona traz elementos da psiquiatria forense mas que deve se distanciar da noção de periculosidade para uma compreensão clínica do ato letal Por não dissociar clínica e cultura dialoga com as críticas feministas especialmente o conceito de feminicídio íntimo no contexto brasileiro que permite trazer as raízes socioculturais que garantem a continuidade simbólica de homens e mulheres nas relações íntimas Essa decisão epistemológica alinhase aos impasses contemporâneos dos estudos sobre a violência BOWMAN et al 2015 Cabe destacar que ao situar as críticas feministas em relação a categoria de homicídio não discutimos aqui as possíveis relações com as epistemologias feministas Reservamos o debate às principais críticas principalmente da suposta neutralidade científica existente nos estudos de fatores associados ao fenômeno e do viés clínico que pode corroborar com o psicologismo de estruturas de poder e dominação Na perspectiva dos autores deste capítulo acreditamos que o debate contemporâneo do feminismo interseccional pode ser uma chave analítica importante na compreensão de fenômenos complexos como a violência que mereceriam outro lugar de reflexão REFERÊNCIAS Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 299 ADAMS D Predisposing Childhood Factors for Men Who Kill Their Intimate Partners Journal Victims Offenders v 4 p 215229 2009 ALISIC E et al Children bereaved by fatal intimate partner violence A populationbased study into demographics family characteristics and homicide exposure PLoS ONE v 12 n 10 2017 ALVAZZI DEL FRATE A When the Victim Is a Woman In Geneva Declaration Secretariat p 113144 2011 ARREGUY M E Os crimes no triângulo amoroso violenta emoção e paixão na interface da psicanálise com o Direito Penal Curitiba Juruá 2011 BÉNÉZECH M LE BIHAN P BOURGEOIS M L Criminologie et psychiatrie Encycl Méd Chir Psychiatrie p 37906A10 2002 BOURGET DGAGNÉ P MOAMAI J Spousal homicide and suicide in Quebec J Am Acad Psychiatry Law v 28 p 179182 2000 BOURGET D GAGNÉ P Women who kill their mates Behavioral sciences the law n 30 v 5 p 598614 2012 BOWMAN B et al The second wave of violence scholarship South African synergies with a global research agenda Soc Sci Med p 243248 2015 BRASIL Lei 131042015 nº 131042015 de 09 de março de 2015 Brasília Distrito Federal 09 mar 2015 BRASIL Lei Maria da Penha Lei N11340 de 7 de agosto de 2006 Brasília DF Presidência da República 2006 BRASIL Plano Nacional de Redução de Acidentes e Violências Brasília Ministério da Saúde 2005 CAMAN S et al Differentiating intimate partner homicide from other homicide Psychology of Violence v 7 n 2 p 306315 2017 CECHOVAVAYLEUX E et al Singularités cliniques et criminologiques de 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GIRARDI JF LODETTI M B Homicídios conjugais na grande Florianópolis Pesquisas e Práticas Psicossociais v12 n1 p 922 2017 MEDEIROS M N Avaliação de risco em casos de violência contra a mulher perpetrada por parceiro íntimo 2015 235 f Tese Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura Universidade de Brasília Brasília 2015 MENEGUEL SN PORTELLA AP Feminicídios conceitos tipos e cenários Ciência Saúde Coletiva v22 n 9 p 30773086 2017 MERCADER P HOUEL A SOBOTA H Le crime dit passionnel Empan n73 p 4051 2009 MILLAUD F Comportements violents Réflexion psychodynamique Santé mentale au Québec v 14 n 2 p 2062091998 MILLAUD F et al La judiciarisation des patients psychiatriques éléments de réflexion et applications pratiques Santé mentale au Québec v 261 p 202215 2001 MINAYO M C S Construção de indicadores qualitativos para avaliação de mudanças Rev bras educ Med v 33 p8391 2009 MINISTÉRIO PÚBLICO DO DISTRITO FEDERAL Guia de avaliação de risco para o sistema de justiça Distrito Federal p 26 2018 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quantitativa e análise descritiva realizado a partir das informações contidas nas Fichas de Notificação compulsória de violência contra mulheres localizadas na base de dados do Sistema Nacional de Notificações SINAN Utilizouse o programa estatístico Stata versão 130 para analisar as violências notificadas Os dados estão apresentados na forma de tabelas em frequência absoluta e relativa Os levantamentos do presente estudo apontam que 26 gestantes na região Sul foram notificadas no SINAN com óbito Santa Catarina apresenta o maior número de óbitos 12 461 A maioria das gestantes era de corraça branca jovens com 5 a 11 anos de escolaridade Metade dos óbitos ocorrera no 1º trimestre da gestação sendo a maioria delas casadas ou em união estável A residência foi o principal local dos óbitos que aconteceram majoritariamente com uso de arma de fogo seguido de objeto pérfurocortante O principal agressor foi o parceiro íntimo Um caso foi notificado como homicídio e 2 foram suicídio Constatouse a importância de garantir o acesso aos serviços de saúde com acompanhamento de profissionais atentos aos sinais de violência e aptos a investigar por meio de perguntas sobre a realidade sociocultural das usuárias Assim caso seja identificada uma situação de violência os devidos encaminhamentos devem ser providos a fim de prevenir o feminicídio Palavraschave Feminicídio Violência contra a mulher Gestante INTRODUÇÃO A violência contra a mulher não é um fato recente desde os primórdios da humanidade as mulheres vêm sendo vítimas de agressões que muitas vezes evoluem para óbito Este é a expressão máxima da violência contra a mulher e definese como 1 Assistente Social Especialista em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Residente na Alta Complexidade no programa de Residência Integrada Multiprofissional em Saúde no Hospital Universitário HUUFSC marianevanderlindehotmailcom Lattes httplattescnpqbr4349432549254295 2 Enfermeira Doutora em Filosofia da Enfermagem pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Professora adjunta na Universidade Federal de Santa Catarina elzacoelhogmailcom Lattes httplattescnpqbr3980247753451491 3 Enfermeira Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC thaysbergergmailcom Lattes httplattescnpqbr8067887275425001 4 Enfermeira Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC carolziinhaflorgmailcomgmailcom Lattes httplattescnpqbr6654871617906798 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 304 Feminicídio Ultrapassando o âmbito das relações íntimas entre homens e mulheres e compreendendo um vasto conjunto de situações e não apenas as ocorridas no ambiente doméstico ou familiar o feminicídio inclui mortes provocadas por mutilação estupro espancamento as imolações de noivas e viúvas na Índia e os crimes de honra em alguns países da América Latina e do Oriente Médio MENEGHEL ET PORTELLA 2017 Tais circunstâncias permitem classificar o feminicídio em 4 tipologias a íntimo é o tipo mais frequente em que o homicida mantinha ou manteve com a vítima relacionamento íntimo ou familiar b sexual ocorre nos casos em que a vítima não possui ligação qualquer com o agressor mas sua morte foi precedida de violência sexual no caso de estupro seguido de morte c corporativo por sua vez darseá em casos de vingança ou disciplinamento através do crime organizado como se verifica no tráfico internacional de seres humanos e por fim d infantil aquele imputado às crianças e adolescentes do sexo feminino através de maustratos dos familiares ou das pessoas que tem o dever legal de protegêlas SEGATO 2006 ROMERO 2014 No Brasil resultado do aumento da preocupação com o fenômeno da violência de gênero contra mulheres a Lei do Feminicídio foi sancionada em 2015 e é previsto como circunstância qualificadora do crime de homicídio incluindoo no rol dos crimes hediondos BRASIL 2015 Mesmo com avanços no setor judiciário em prol da defesa das mulheres os dados epidemiológicos ainda são alarmantes O Mapa da Violência 2015 revelou que entre 1980 e 2013 106093 brasileiras foram vítimas de assassinato em 2013 foram 4762 casos registrados no Brasil ou seja aproximadamente 13 homicídios femininos diários Em 2015 a taxa de feminicídios no Brasil foi de 48 por 100 mil mulheres a quinta maior no mundo ONU 2016 Em 2017 o Brasil concentrou 40 dos feminicídios da América Latina CEPALONU 2018 Em 2018 o número de registros de feminicídios aumenta em 12 sendo uma mulher morta a cada 2 horas no país Monitor da Violência 2019 A taxa de homicídios femininos global foi de 23 mortes para cada 100 mil mulheres em 2017 No Brasil a taxa foi superior 74 à média mundial MONITOR DA VIOLÊNCIA 2017 Na Central de Atendimento à Mulher Ligue 180 foram registrados pelo 27 feminicídios 51 homicídios 547 tentativas de feminicídios e 118 tentativas de homicídios no período de janeiro a julho de 2018 Os relatos de violência chegaram a 79661 sendo os maiores números referentes à violência física 37396 e violência psicológica 26527 segundo Ministério dos Direitos Humanos 2018 Chama atenção que apenas na primeira semana de janeiro de 2019 foram registradas 21 mortes e 11 tentativas de assassinatos de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 305 mulheres em diversos estados brasileiros BRASIL DE FATO 2017 É alarmante que em uma semana de 2019 21 mortes registradas tenha se alcançado quase o mesmo número de casos registrados em seis meses no ano de 2018 27 casos registrados A situação é agravada quando a mulher vítima da violência está grávida colocando também em risco a vida do bebê As gestantes apresentam três vezes mais risco de sofrer homicídios do que aquelas que não sofrem violência durante esse período MCFARLANE 1995 portanto estar grávida e sofrer violência durante a gestação é um fator de risco para ser vítima de feminicídio Diferente das mortes por causas médicas como hemorragia e tromboembolismo o homicídio não possui relação fisiológica com a gravidez Dessa forma alguns homicídios principalmente causados por parceiro íntimo poderiam não ter ocorrido se a vítima não estivesse grávida Dessa forma a prevenção do homicídio por parceiro íntimo teria um efeito maior na redução da taxa de mortalidade associada a gravidez CHENG et HORON 2010 O homicídio foi identificado como a principal causa de morte de gestantes no Estados Unidos Krulewitch et al apud Lin et Gill 2011 afirmam que adolescentes gestantes tem três vezes mais chances de serem vítimas de homicídios Um estudo no Moçambique revelou que a violência era a quarta maior causa de morte materna em um hospital e na Índia 16 da mortalidade materna era atribuída a violência por parceiro íntimo OMS 2012 A partir de então com a sancionalização da Lei do Feminícidio em 2015 houve um aumento das notificações de mortalidade feminina por violência de gênero alimentando as bases de dados e passando a configurar uma questão epidemiológica ROMIO 2017 Devido à magnitude do feminicídio este estudo pretende contribuir com o fornecimento de dados epidemiológicos e reflexões a fim de auxiliar estudantes e profissionais de saúde na compreensão desse fenômeno Dessa forma o estudo pretende conhecer o perfil sociodemográfico de gestantes vítimas de feminicídio e de que forma esses atos acontecem na região sul do Brasil 1 MÉTODO Tratase de um estudo transversal de abordagem quantitativa e análise descritiva realizado a partir do Sistema de Informação de Agravos de Notificação Violências e Acidentes SINAN VIVA gerenciado pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde e implantado em 2007 com a vigilância das violências doméstica sexual eou outras violências É alimentado por profissionais dos serviços públicos e privados de saúde por meio da ficha de notificação e investigação dos casos de violências Este estudo utilizou Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 306 os dados inseridos no SINAN VIVA Contínuo baseandose nas notificações de violência contra mulheres grávidas adultas de 20 a 59 anos que foram a óbito em decorrência da violência na região Sul do Brasil abrangendo os Estados do Paraná Santa Catarina e Rio Grande do Sul no período de 2009 a 2014 As variáveis sociodemográficas pesquisadas foram faixa etária raçacor escolaridade trimestre da gestação situação conjugal e deficiência ou transtorno já as de caracterização do feminicídio foram local da ocorrência meio de agressão relação com o autor da violência e tipo de violência Utilizouse o programa estatístico Stata versão 130 para analisar os dados apresentados na forma de tabelas em frequência absoluta e relativa As notificações foram fornecidas pela Secretaria de Vigilância em Saúde Departamento de Análise de Situações de Saúde Coordenação Geral de Doenças e Agravos Não Transmissíveis e por se tratar de um banco de dados secundários não houve necessidade da submissão ao comitê de ética conforme Resolução CNS nº 4662012 2 RESULTADOS Quanto ao perfil sociodemográfico das gestantes com óbito em decorrência da violência de gênero verificase que de um total de 26 vítimas de feminicídio na região sul Santa Catarina é o Estado com maior número de mortes 461 seguido do Rio Grande do Sul 308 e por último Paraná 231 Quanto à corraça predominante é a branca 84 seguida de parda 12 e negra 4 As mulheres mais atingidas por esse tipo de violência são de faixa etária mais baixa de 20 a 29 anos correspondem a 577 dos casos seguido das mulheres de 30 a 39 anos que correspondem a 346 num total de 92 Quanto à escolaridade 824 das mulheres tinham entre 5 a 11 anos Em 50 dos casos o feminicídio ocorreu em mulheres no 1º trimestre da gestação com declínio conforme avanço do período gestacional Quanto a situação conjugal 632 eram casadas ou viviam em união estável Ter alguma deficiência ou transtorno correspondeu a 167 das notificações tabela 1 Tabela 1 Características das gestantes com óbito em decorrência da violência Região Sul Brasil 2009 a 2014 Variáveis n n Estado 26 Paraná 6 231 Santa Catarina 12 461 Rio Grande do Sul 8 308 Raçacor 25 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 307 Fonte Base de dados do Sistema Nacional de Notificações SINAN do Ministério da Saúde Anos de estudo De acordo com as informações sobre as características da ocorrência do feminicídio o local predominante foi a residência 654 O meio de agressão mais utilizado ocorreu com arma de fogo 292 seguido de objeto pérfurocortante 261 O principal agressor é o parceiro íntimo 356 Um caso foi notificado como homicídio 333 e das 26 gestantes que morreram em decorrência da violência 2 foram por suicídio 667 Tabela 2 Características da violência do feminicídio Região Sul Brasil 2009 a 2014 Variáveis n n Local ocorrência n 26 Residência 17 654 Via Pública 4 154 Outros 5 192 Meio de agressão n 30 Força corporal 4 174 Enforcamento 4 174 Objeto contundente 1 44 Objeto pérfurocortante 6 261 SubstânciaObjeto quente 1 42 Envenenamento 3 131 Arma de Fogo 7 292 Ameaça 1 44 Outros 3 136 Relação da vítimaagressor Branca 21 840 Negra 1 40 Parda 3 120 Faixa etária 26 2029 15 577 3039 9 346 4049 2 77 5059 Escolaridade 17 04 3 176 58 7 412 911 7 412 Trimestre da Gestação 26 1º Trimestre 13 500 2 º Trimestre 7 269 3 º Trimestre 4 154 Idade gestacional ignorada 2 77 Situação conjugal 20 Solteira 6 316 Casada 12 632 Separada 1 52 Deficiência ou transtorno 1 167 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 308 Parceiro íntimo 5 356 Desconhecido 2 143 Própria pessoa 4 286 Outros tipos de violência Homicídio 1 333 Suicídio 2 667 Fonte Base de dados do Sistema Nacional de Notificações SINAM do Ministério da Saúde 3 DISCUSSÃO Os levantamentos do presente estudo apontam que 26 gestantes na região Sul foram notificadas no SINAN com óbito Santa Catarina apresenta o maior número de mortes de mulheres de corraça predominantemente branca jovens em idade reprodutiva com 5 a 11 anos de escolaridade Metade dos óbitos ocorreram no 1º trimestre da gestação sendo a maioria das mulheres casadas ou em união estável A residência foi o principal local que ocorreram os óbitos que aconteceram majoritariamente com arma de fogo seguido de objeto pérfurocortante ocorrendo violência física na maioria dos casos O principal agressor é o parceiro íntimo Sendo um caso notificado como homicídio e 2 como suicídio A predominância da corraça branca pode ser explicada pelo histórico dos imigrantes que colonizaram a região sul boa parte originários de países europeus como Itália Alemanha e Portugal MUNDO EDUCAÇÃO 2019 A maioria das gestantes tem de 5 a 11 anos de escolaridade o que segundo PNAD 2016 representa um número elevado comparado a outros estados e demonstra a realidade da região Sul 83 anos do país que tem nível de escolaridade abaixo apenas da região Sudeste 88 anos Conforme o monitor da violência a taxa de feminicídios teve número crescente no decorrer dos anos principalmente após a criação da Lei do Feminicídio nª 13104 de 9 de março de 2015 Em 2018 a taxa em Santa Catarina foi de 12 no Paraná foi de 11 e no Rio Grande do Sul foi a maior com 20 por 100 mil mulheres Monitor da Violência 2018 Quanto à taxa de homicídio de mulheres em 2013 o Paraná teve a maior taxa de 6 seguido do Rio Grande do Sul com 5 e Santa Catarina 4 A maioria dos crimes aconteceram nos primeiros trimestres da gestação sendo 632 das gestantes casadas e o autor da violência corresponde majoritariamente ao parceiro íntimo da gestante Conforme a Organização PanAmericana da Saúde OPAS 2018 a violência física ou sexual praticada pelo próprio parceiro motivada por questões de gênero afeta quase 60 das mulheres em alguns países das Américas No Brasil em torno de 17 das mulheres de 15 a 49 anos serão vítimas desse tipo de abuso em algum momento das suas vidas OPAS 2018 p1 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 309 Das 26 gestantes 24 foram assassinadas e duas cometeram suicídio Das 24 que sofreram feminicídio 17 ocorreram na residência lugar onde a mulher deveria estar segura Dentro de casa o risco de sofrer violência aumenta pois é onde a mulher se encontra muitas vezes sozinha com o agressor sem possibilidade de fugir ou pedir ajuda Segundo Patrícia Galvão 2013 em pesquisa com a população apontou que 85 dos entrevistados acham que as mulheres que denunciam seus parceiros ou exparceiros quando agredidas correm mais risco de serem assassinadas A própria pesquisa aponta que o silêncio porém tampouco é apontado como um caminho seguro pois quando as agressões contra a esposacompanheira ocorrem com frequência podem terminar em assassinato Ou seja o risco de morte por violência doméstica pode ser iminente As mulheres gestantes perderam a sua vida e de seus filhos com meios de agressão diversos e violentos para não dizer cruéis 7 casos com uso de arma de fogo 6 com objeto pérfurocortante as demais por força corporal enforcamento e ainda envenenamento Esses dados demonstram que 843 das gestantes foram vítimas por violência física Isso demonstra a fragilidade da mulher frente a seu agressor Segundo Lin et Gill 2011 a porcentagem de crimes cometidos por parceiros íntimos que não utilizaram arma de fogo pode indicar que houve impulsividade e que o autor utilizou o que havia disponível e pode indicar crimes de ódio ou por motivos fúteis No Estados Unidos homicídio causado por arma de fogo também foi mais frequente do que por outras causas Isso pode ser explicado pelo fato de que a legislação em muitos estados 34 de 50 permite o porte de armas No Brasil com o decreto que flexibiliza a posse de armas de fogo o Estado está oferecendo um instrumento mais eficiente para que homens agressores cometam feminicídio Facilitando o acesso ao cidadão adquirir armas de fogo potencializam a letalidade da violência que como os dados mostram não se resume aos bandidos que integram as facções criminosas O feminicida não raro preenche todos os requisitos do estereótipo do cidadão de bem Monitor da Violência 2019 p1 Estudos norteamericanos LIN et GILL 2011 apontam que a mortalidade materna causada por injúrias como homicídios e outros tipos tem contribuido para elevar a taxa de mortalidade materna O homicídio de gestantes aumentou tanto relacionado a questões médicas como júridicas constado aumento do número de certidões de óbitos e de crimes no sistema de justiça Até 1993 a mortalidade materna era defina pela Organização Mundial de Saúde OMSCID9 por mortes ocorridas por complicações naturais da gravidez e do período de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 310 pósparto como hemorragias ou embolismo pulmonar mortes relacionadas a causas não naturais como homicídio suicídio e injúrias acidentais eram excluídas Atualmente na Classificação Internacional de Doenças CID10 foram realizadas mudanças na classificação e na codificação das mortes maternas com relação às mortes indiretas e o momento das mortes relativas à gravidez passando a incluir mortes maternas tardias e relacionadas à gravidez LIN et GILL 2011 De acordo com Munevar 2012 apud Meneghel e Portella 2017 é preciso realizar as ações de nomear visibilizar e conceituar as mortes violentas de mulheres o que constitui o exercício material do direito a ter direitos Essas ações fazem parte das estratégias para sensibilizar as instituições e sociedade sobre a ocorrência do feminicídio e a sua permanência na sociedade combater a impunidade penal promover os direitos das mulheres e estimular a adoção de políticas de prevenção à violência baseada no gênero Para tentar coibir a violência o governo brasileiro recorreu ao uso da tecnologia lançando um aplicativo para mulheres que estão sob medidas protetivas A ferramenta facilita o acionamento da polícia em caso de violência doméstica O governo também vem criando políticas públicas para a conscientização social a respeito do assunto e buscando melhorar o atendimento nos órgãos de proteção à mulher para que sejam amparadas e recebam a proteção necessária das investidas de agressores Monitor da Violência 2019 Além disso é necessário que o governo invista na capacitação de servidores no treinamento de policiais na educação de crianças e jovens e também no empoderamento e aumento da participação das mulheres no mercado de trabalho CNJ 2019 O suicídio e o homicídio contribuem para a taxa de mortalidade de mulheres jovens em idade reprodutiva no EUA representando a quarta e quinta principais causas de morte Conforme estudo mulheres jovens negras e com baixa escolaridade representam alto risco de homicídio associado à gravidez enquanto o suicídio associado à gravidez é mais comum em mulheres de faixa etária mais elevada e de raçacor branca Evidencia ainda que o risco de homicídio durante a gravidezpósparto é elevado enquanto o risco de suicídio é reduzido WALLACE ET AL 2016 De acordo com o Wallace Hoyert Williams et Mendola 2016 é impossível determinar se as mortes violentas associadas à gravidez não teriam ocorrido se não houvesse gravidez entretanto o número significante de violências por parceiro íntimo e casos de homicídio e suicídio associados à gravidez sugere que pode ser um estressante adicional em situações de vulnerabilidade ou que essas mortes podem ser o fim de um ciclo de violências física e sexual que se encerra na gravidez Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 311 A gravidez é uma oportunidade para identificar mulheres que se encontram em risco de homicídio e suicídio principalmente aquelas que não acessariam os serviços de saúde e de assistência social No momento da consulta os profissionais devem investigar por meio de perguntas sobre a realidade sociocultural da usuária sem emitir julgamentos ou juízos de valor Assim caso seja identificado uma situação de violência os devidos encaminhamentos devem ser providos a fim de prevenir o feminicídio Pesquisa da Secretaria Nacional de Segurança Pública SENASP 2013 revela que os operadores de Justiça ainda aplicam pouco a Lei Maria da Penha nos casos de homicídio de mulheres Entre 2006 a 2011 apenas 33 das peças do processo de homicídio de mulheres mencionaram a lei ou seja o sistema já falhou em proteger a mulher o que restaria seria agravar a pena ou ao menos mencionar isso mas nem simbolicamente o problema da violência de gênero aparece em muitos casos GALVÃO 2016 p1 A lei do feminicídio prevê que a pena pode ser aumentada em 13 um terço até a metade caso o crime tenha sido praticado durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto contra pessoa menor de 14 catorze anos maior de 60 sessenta anos ou com deficiência e na presença de descendente ou ascendente da vítima BRASIL 2015 A criação da lei justificase devido à importância de tipificar o feminicídio e assim reconhecer que mulheres estão sendo mortas pela razão de serem mulheres expondo a fratura da desigualdade de gênero que persiste na sociedade Bem como por combater a impunidade evitando que feminicidas sejam beneficiados por interpretações jurídicas anacrônicas e moralmente inaceitáveis como o de terem cometido crime passional BRASIL 2013 Segundo Instituto de Pesquisa e Econômica Aplicada IPEA 2015 a Lei fez diminuir em cerca de 10 a taxa de homicídios contra mulheres praticados dentro das residências das vítimas São necessárias também políticas de prevenção e reeducação porque a Lei sozinha não extingue o crime Nesse sentido a responsabilidade do Estado e também da sociedade é trabalhar na implementação dos serviços como políticas de educação uma rede intersetorial de atendimento em Saúde Assistência Social Segurança Pública e Justiça Implementando Defensorias das Mulheres Varas de Enfrentamento à Violência Intrafamiliar e contra as Mulheres casas abrigo e serviços de atenção psicossocial GALVÃO 2016 p1 Sendo realizada uma abordagem integral multidisciplinar transversal e capilarizada desenvolvidas de forma articulada e colaborativa entre os poderes da República e os entes federativos ONU 2016 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 312 Segundo Galvão 2016 pesquisas identificaram que preconceitos históricos e culturais naturalizados socialmente podem alimentar a inversão da culpa nos casos de violência contra as mulheres inclusive feminicídios Esses sistemas discriminatórios fazem com que mulheres não busquem ajuda para sair da situação de violência ou que quando buscam não sejam devidamente acolhidas Além de perpetuar a cultura da violência esta inversão alimenta a impunidade e consequentemente a tolerância social ao assassinato de mulheres GALVÃO 2016 p1 Os diferentes aspectos das condições de vida de acesso a serviços públicos e as condições socioeconômicas influenciam nos resultados apresentados nesse estudo É importante considerar que essas diferenças podem estar associadas a características dos estados relacionados a investimentos em políticas públicas de incentivo às denúncias de violência contra a mulher a maior disponibilidade de serviços de referência às mulheres e suas famílias a investimentos em campanhas de divulgação que possibilitem maior visibilidade desse agravo e também a mudança de valores e à conscientização por parte da mulher acerca de seus direitos Esses fatores podem propiciar melhoria nas notificações dos casos e das formas de monitoramento da violência contra a mulher prevenindo o feminicídio SGOBERO et al 2015 Segundo Sgobero Monteschio Zurita Oliveira et Mathias 2015 a violência raramente iniciase durante a gestação já que com frequência configurase um padrão regular e sistemático de relacionamento do casal Por isso é de suma importância que os profissionais de saúde busquem identificar situações de violência incluindo a investigação na rotina de internação e atendimentos especialmente quanto às gestantes que iniciaram acompanhamento mais tardiamente eou tiveram um número reduzido de consultas pré natais A instrumentalização dos profissionais da saúde quanto ao conhecimento dos fatores que se associam à ocorrência da violência permite que eles identifiquem essas características na mulher e sua família e priorizem um atendimento mais próximo com equipe multiprofissional e realizem uma abordagem interdisciplinar a fim de elaborar uma assistência direcionada e específica para encaminhamentos necessários no sentido de proteger a gestante Apontase como relevante a análise realizada sobre os dados do SINAN porque sua tipificação permite que uma morte por violência seja registrada por suas características clínicas sem a necessidade de tipificação de natureza criminal É de extrema importância produzir estatísticas que respondam às questões específicas das violações contra mulheres Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 313 pois é possível traçar políticas públicas e qualificar serviços de atenção à mulher vítima de violência que pode diminuir o número de vitimização por esta causa ROMIO 2017 Além de contribuir para a coleta de estatísticas o setor de saúde pode desempenhar um papel importante na resposta às violências contra as mulheres Profissionais podem fornecer atendimento imediato e reduzir os danos garantindo apoio e encaminhamento para outros setores incluindo serviços legais e sociais OPAS 2018 A partir desse estudo foi possível constatar a importância de os profissionais dos serviços realizarem a notificação e registro completo dos dados no SINAN visto que ainda é insuficiente limitando o estudo Bem como é necessário aprimoramento na coleta de dados e ampliação dos registros das agressões e mortes violentas de mulheres para que os dados exponham o problema com mais clareza a fim de contemplar as políticas públicas e que haja ampliação da cobertura do registro no território nacional de forma integrada dos sistemas Dessa forma é possível planejar políticas públicas intersetoriais voltadas à prevenção e proteção de mulheres em situação de violência bem como capacitar profissionais para atuarem de forma multiprofissional e interdisciplinar à essas mulheres visando garantir o direito à saúde integral e prevenindo mortes evitáveis REFERÊNCIAS ANISSENASP O impacto dos laudos periciais no julgamento de homicídio de mulheres em contexto de violência doméstica ou familiar no distrito federal 2013 Disponível em httpsassetscompromissoeatitude ipgsfo2digitaloceanspacescom201303ANISLAUDOSPERICIAISpdf Acesso em 05 mai 2019 BRASIL Lei nº 13104 de 09 de março de 2015 Altera o art 121 do DecretoLei nº 2848 de 7 de dezembro de 1940 Código Penal para prever o feminicídio como circunstancia qualificadora do crime de homicídio e o art 1º da Lei nº 8072 de 25 de julho de 1990 para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos Brasília 2015Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Ato2015 20182015LeiL13104htm Acesso em 07 de abr de 2019 BRASIL Projeto de Lei do Senado nº 292 de 2013 da CPMI Violência contra a mulher no Brasil Brasília 2013 Disponível em httpwwwsenadolegbratividaderotinasmateriagetPDFaspt133307tp1 Acesso em 07 abr 2019 BRASIL Resolução CNS Nº 466 2012 httpwwwcepufvbrwp contentuploadsReso4662pdf Acesso em 03 jun 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos 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MENEGHEL Stela Nazareth MARGARITES Ane Freitas Feminicídios em Porto Alegre Rio Grande do Sul Brasil iniquidades de gênero ao morrer Cad Saúde Pública Rio de Janeiro v 33 n 12 e00168516 2017 Available from httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0102 311X2017001205014lngennrmiso access on 17 Mar 2019 Epub Dec 18 2017 httpdxdoiorg1015900102311x00168516 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 315 MONITOR DA VIOLÊNCIA Feminicídios no Brasil G1 Globo 2018 httpsespeciaisg1globocommonitordaviolencia2018feminicidiosnobrasil Acesso em 25 mai 2019 OMSWHO World Health Organization Understanding and addressing violence against women 2012 Disponível em httpsappswhointirisbitstreamhandle1066577421WHORHR1238engpdfjsessio nidCED0AF84287ADE14F5BBCBCFB8177B33sequence1 Acesso em 14 abril 2019 ONU Organização das Nações Unidas Diretrizes Nacionais Feminicídio Investigar processar e julgar com 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Muniz1 RESUMO O presente artigo busca mostrar como e por que razão o estupro das mulheres foi utilizado como principal estratégia bélica no conflito ocorrido na república da BósniaHerzegovina durante a guerra da exIugoslávia Nesse sentido através da análise do conflito em questão marcado pelo nacionalismo étnico demonstrarseá a relação existente entre as divergências étnicas e as violações sexuais massivas e sistemáticas perpetradas Para tanto será preciso analisar a significação da violação sexual das mulheres dentro de uma sociedade hierarquicamente marcada a fim de que seja possível explicar o motivo pelo qual o estupro dos corpos femininos se tornou a principal arma de guerra Palavraschave Violação Guerra ExIugoslávia Mulheres INTRODUÇÃO O corpo das mulheres sobrecarregado pela subjugação social apresentase como palco para as manifestações de poder sendo alvo de intensas violências e discriminações ao longo da história Ao adentrar o contexto de guerra que evidencia o lado mais sombrio e cruel dos seres humanos a violência estrutural direcionada às mulheres alcança outra dimensão e passa a ter um sentido ainda mais profundo Nesse sentido a violação sexual perpetrada contra as mulheres foi ressignificada após a 2ª Guerra Mundial principalmente nos conflitos armados ocorridos em Ruanda e na exIugoslávia na medida em que passou a ocupar o papel central da estratégia bélica sendo utilizada como verdadeira arma de guerra O presente estudo de natureza em boa parte explicativa pretende analisar qual a razão e de que maneira o estupro dos corpos femininos se tornou o centro da estratégia de guerra tomando o conflito separatista ocorrido na exIugoslávia mais especificamente o que se deu no território atualmente pertencente à BósniaHerzegovina como referência abordagem essa importante por permitir que se chegue à compreensão das raízes sobre as quais se assenta a violência sexual contra as mulheres premissa fundamental para que se possa construir uma solução para um problema tão visceral quanto atual A metodologia utilizada se escora em três pilares a saber i vinte dias de vivência na BósniaHerzegovina estudando a história e os crimes cometidos durante a guerra conhecendo em visitas a museus da guerra por todo o país os instrumentos utilizados para a 1Mestranda em Direito Penal e Ciências Criminais Universidade de Lisboa 2020 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 317 prática das violações sexuais e analisando os depoimentos prestados pelas vítimas ii estudo das decisões proferidas pelo Tribunal Penal Internacional criado exclusivamente para julgar os crimes cometidos durante o conflito separatista da exIugoslávia nos processos instaurados contra os principais acusados de estupro na região e período em questão e iii investigação bibliográfica de autores representativos sobre a temática ora analisada Para tanto abordarseá a significação do estupro das mulheres nos âmbitos privado e público a ressignificação do fenômeno bélico e o contexto histórico social existente na BósniaHerzegovina quando da deflagração do conflito separatista para então se proceder à análise do sentido das violações sexuais contra as mulheres no cenário de extrema xenofobia entre os grupos étnicos demonstrandose de que maneira esses estupros foram utilizados como a principal estratégia de guerra Por fim discorrerseá acerca da posição adotada pelo Tribunal Penal Internacional ad hoc de modo a se apontar o conceito de estupro utilizado e quais as possibilidades de enquadramento jurídicopenal dessas condutas à luz de seu Estatuto 1 O SIGNIFICADO DA VIOLAÇÃO DO CORPO DAS MULHERES NOS ÂMBITOS PÚBLICO E PRIVADO A estrutura social que organiza a sociedade em feminino e masculino2 é historicamente marcada por relações de poder desiguais conduzindo em consequência à dominação e subordinação das mulheres pelos homens3 O alicerce de tal estrutura se assenta em uma relação hierárquica de poder na qual as mulheres se encontram em estado de submissão e inferioridade em relação aos homens aprisionadas a um destino naturalisticamente determinado BELEZA 2010 p 74 Isso acontece porque a sociedade é condicionada à perspectiva de gênero fazendo com que haja papéis socialmente adjudicados para homens e mulheres o que conduz a um desnível de poder e à superioridade masculina em detrimento do gênero feminino Essa relação de poder limitante faz com que as mulheres não sejam elevadas à dignidade de pessoa mas vistas e tratadas como patrimônio do homem BEAUVOIR 1960 Se no espaço público os corpos das mulheres não são vistos como delas fazendo com que os homens se sintam no direito e até na obrigação de dirigirlhes palavras obscenas 2 Nesse sentido Simone de Beauvoir afirma que diante dessa alteridade o homem é o absoluto e a mulher é sempre o outro BEAUVOIR 1960 3 Como se verifica no preâmbulo da Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e à Violência Doméstica de 11 de maio de 2011 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 318 ou tocarlhes no espaço privado esses mesmos corpos são vistos como propriedade da figura paterna do marido companheiro ou qualquer pessoa do gênero masculino com quem possuam relação de intimidade Dessa forma sendo as mulheres alienadas de si mesmas o que representa a violação sexual de seus corpos Para responder a essa pergunta é preciso entender que o estupro é um subproduto dessa estrutura que tem por base a inferioridade feminina não se tratando portanto de uma violência individual mas estrutural pois há uma relação direta entre essa transgressão sexual e todas as estruturas de poder existentes em uma sociedade DAVIS 2017 Nesse sentido o estupro do corpo do outro é uma manifestação de poder uma vez que representa o aniquilamento da vontade da vítima cuja redução é justamente significada pela perda de controle sobre o comportamento do seu corpo e o agenciamento do mesmo pela vontade do agressor SEGATO 2016 p 38 tradução nossa trazendo em si num único ato a dominação física e psíquica do dominado Sendo a violação sexual a máxima expressão da sobreposição de uma vontade sobre a outra o estupro das mulheres traduz uma forma de demonstrar e reforçar o poder estrutural patriarcal existente marcando o domínio masculino nas entranhas do corpo feminino Não por outra razão o estupro das mulheres não tem prioritariamente o objetivo de satisfazer a lascívia sexual caracterizandose em verdade em um instrumento de controle e domínio de modo que na maioria das vezes não é cometido por um desejo incontrolado do agressor ANDRADE 2005 Isto significa que de forma preponderante os estupros não representam um desvio individual não sendo os agressores sexuais anômalos sociais ou portadores de perturbação mental ao contrário são no mais das vezes indivíduos perfeitamente inseridos na estrutura social existente que atuam de forma oportunista utilizandose de uma relação de poder antecedente que concede inteligibilidade às suas ações SEGATO 2016 Embora a violação sexual seja um elemento da opressão sistemática sofrida pelas mulheres traduzindose em uma forma de expressão do poder enraizado socialmente a sua significação possui contornos específicos relacionados ao espaço em que praticada se privado ou público pois apesar de partir do mesmo prisma estrutura social de domínio masculino há certas características que lhes são peculiares O seio familiar entendido como qualquer espaço em que ocorra relação de intimidade é o ambiente mais íntimo dos seres humanos e paradoxalmente o local em que se revelam intensas violências contra as mulheres Isso porque além de ser um ambiente privado portanto mais fácil de ocultar o que ali acontece tem como base estruturante Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 319 diante da sociedade patriarcal a dominação masculina Se a esfera privada é um local de domínio masculino as mulheres abrigadas nesse espaço também se tornam em consequência parte da zona de controle dos homens sendo por isso o espaço privado familiar o principal local de incidência da violação sexual contra as mulheres ANDRADE 2005 Dessa forma a esfera íntima é elementar no controle social e na opressão das mulheres exercendo um papel crucial para reforçar e manter a sua subjugação Isto posto quando a violação sexual das mulheres acontece nesse ambiente em que agressor pertence ao espaço doméstico da vítima a mensagem que se transmite é a de constatação de um domínio já existente SEGATO 2016 p 43 tradução nossa pois o corpo da mulher já é entendido como propriedade do ofensor Assim sendo ao abrigo do espaço doméstico o homem abusa das mulheres que se encontram sob sua dependência porque pode fazêlo isto é porque estas já fazem parte do território que controla SEGATO 2016 p 23 tradução nossa Portanto a significação do estupro na esfera privada é de que o ofensor expressa seu poder e domínio com base na estrutura patriarcal advinda da relação de intimidade pretérita com aquela vítima específica Por outro lado quando a violação sexual das mulheres acontece no espaço público em que o agressor não pertence ao espaço doméstico da vítima e sequer a conhece não há que se falar que aquela vítima específica é parte território de controle daquele ofensor No entanto por ser homem o agressor tem poder para fazêlo e o faz como forma de demonstrar publicamente a sua capacidade de domínio Mas para além de instrumento de domínio o estupro perpetrado nesse contexto é também uma forma de reforçar os papéis hierárquicos dentro da estrutura social evidenciando por meio daquele ato o controle absoluto da vontade da vítima ao expressar ao mesmo tempo a inferioridade do agredido e a supremacia do agressor Desse modo a violação sexual das mulheres tem um caráter duplamente expressivo transmitindo no eixo vertical uma mensagem moralizadora para a vítima de que é o destino da mulher ser contida censurada disciplinada e reduzida SEGATO 2016 p 40 tradução nossa e por outro lado no eixo horizontal uma mensagem para a comunidade que reforça a virilidade do ofensor como pertencente à sociedade masculinamente hierarquizada SEGATO 2016 Como efeito dessa mesma estrutura a sexualidade feminina é impregnada de moralidade muitas vezes conectada também com crenças religiosas advinda da alienação do corpo feminino de modo que se for um estranho a tocarlhe ainda que forçosamente a moral da mulher estuprada e do proprietário daquele corpo podendo ser entendido como o Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 320 marido a família ou a coletividade a qual ela pertença passa a estar infectada Concluise assim que a violação sexual perpetrada por um estranho que não tem o domínio direto daquele corpo atinge não apenas a integridade física e psíquica da vítima mas também a sua moral e a de todos os seus associados 2 A GUERRA E A VIOLAÇÃO DAS MULHERES Tratandose a guerra de fenômeno ocorrido em espaço público a violação sexual das mulheres sempre esteve presente nos conflitos armados tendo contudo experimentado significativo processo de transformação após a 2ª Guerra Mundial Para que se possa compreender de que maneira se deu tal processo analisaremos inicialmente as características da violação das mulheres em ambiente de conflito armado e a ressignificação do fenómeno bélico para após adentramos especificamente no confronto ocorrido na ex Iugoslávia no qual essa nova significação se mostrou presente de forma nítida 21 A ressignificação ocorrida após a 2ª Guerra Mundial Realidade vivida pelas mulheres ao longo da história uma vez que a sua raiz é a própria estrutura social patriarcal a violação sexual foi fenômeno presente também nas duas Guerras Mundiais conflitos nos quais diversos abusos sexuais foram perpetrados contra mulheres de diferentes nacionalidades e idades ODIO BENITO 1998 No entanto após a 2ª Guerra Mundial o fenômeno passou por processo de ressignificação vindo a adquirir outra dimensão podendo se verificar tais mudanças por exemplo nos conflitos ocorridos na exIugoslávia e em Ruanda os quais representaram um paradigma de transformação nos métodos bélicos SEGATO 2016 Tal mudança ocorreu pelo fenômeno de paramilitarização4 da guerra a qual passou a ser controlada por corporações armadas com a participação de estados e paraestatais SEGATO 2016 p 57 tradução nossa tornandose informalizada tendo em vista que o conflito que antes ocorria entre Estadosnação passou a contar com a participação ativa de grupos privados Em consequência a violência passou a não ser mais utilizada para derrotar diretamente o inimigo mas como instrumento de expressão da derrota para simbolizar a destruição e mostrar soberania frente ao opositor desmoralizandoo por meio da imposição 4 Como exemplo de tal fenômeno durante a guerra da Jugoslávia na república da BósniaHerzegovina José A Lindgren Alves expõe que grande parte dos campos de violação massacres e suplícios eram mantidos por paramilitares sérvios Por outro lado a parte muçulmana de Saravejo também estava sob controle de diversos grupos paramilitares que tentavam à força dominar áreas cada vez maiores como forma de auferir lucros com o conflito ALVES 2013 p 115 apud AGUILAR 2003 p 91 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 321 da crueldade da ausência de limites na prática de atrocidades e do apelo ao horror uma vez que com a ressignificação uma guerra que resultasse apenas em extermínio não constituiria vitória tornandose necessário exibir o poder de morte do dominador aos que permanecessem vivos SEGATO 2016 Sendo a prática de uma crueldade discricionária do dominador a forma crucial de evidenciar sua soberania representando não só a vitória física mas também a derrota psicológica e moral do inimigo a violência se tornou um fim em si mesmo Com isso a população civil passou a ser o principal alvo do ataque dos grupos de conflito5 sendo relevante notar que o número de vítimas não militares subiu de cerca de 48 quarenta e oito por cento na 2ª Guerra Mundial para aproximadamente 90 noventa por cento em sua maioria mulheres e crianças na guerra da exIugoslávia ODIO BENITO 1998 Ademais sendo os corpos da população civil neutros frente à guerra pois sequer participavam ativamente do combate a truculência a eles direcionada atingia toda a comunidade da qual faziam parte ao mesmo tempo em que evidenciava o fracasso dos que deveriam protegêlos em respeito à lógica estrutural de cada grupo Nesse novo cenário em que a imposição de dor a profanação humilhação e o desmantelamento do inimigo se transformaram no objetivo maior da guerra o estupro que antes ocorria como um complemento do conflito armado muitas vezes interpretado erroneamente como um delito de menor importância ou mesmo efeito colateral da batalha ODIO BENITO 1998 passou a ocupar um papel central na estratégia bélica 22 A violação sexual das mulheres ocorrida no atual território da BósniaHerzegovina durante a guerra da exIugoslávia Tendo em vista que as violações sexuais das mulheres ocorridas no território da BósniaHerzegovina estão intrinsecamente conectadas com a composição étnicoreligiosa da região e com as divergências entre os grupos que motivaram o início da guerra e a desintegração da Iugoslávia mostrase necessário contextualizar brevemente o referido conflito 5 Maria Villellas Ariño demonstra em diferentes conflitos como os corpos da população civil foram utilizados como principal alvo da violência exemplificando com a utilização de minas contra pessoas na Angola e no Camboja os atentados suicidas nos ônibus em Israel as mutilações ocorridas durante o conflito armado em Serra Leoa entre outros VILLELLAS ARIÑO 2010 Especificamente no conflito da Bósnia um bom exemplo dessa ressignificação se deu através do cerco de Saravejo realizado pelas tropas sérvias que durou quase quatro anos no qual a população em sua maioria civil teve seus recursos básicos cortados e era constantemente bombardeada ALVES 2013 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 322 Antes da desintegração o território da exIugoslávia possuía uma delimitação artificial de suas fronteiras sendo composto por seis repúblicas Eslovênia Croácia Bósnia Herzegovina Montenegro Macedonia e Sérvia incluindo as regiões autónomas de Vojvodina e Kosovo IVANA ACOSTA GASTÓN PEREZ 2011 No final da 2ª Guerra Mundial a região passou a ser denominada de República Federal Socialista da Iugoslávia6 a qual em decorrência da sua configuração consistia em um verdadeiro mosaico de etnias e religiões das quais as principais eram o cristianismo ortodoxo o catolicismo e o islamismo O fim da GuerraFria e a queda do socialismo coincidiram com um período de intensa crise política e econômica o que gerou uma proliferação de partidos políticos a exaltar a diferença entre os grupos7 e a defender a independência ou maiores poderes para algumas repúblicas dentro da federação A partir disso os partidos começaram a fomentar o nacionalismo dentro das federações estimulando a desconfiança e o sentimento de medo entre os diferentes grupos étnicos Nesse período a região foi dominada por um sentimento generalizado de insegurança levando ao desmembramento da Eslovénia e da Croácia acusados pela Sérvia de separatistas marcando o início da guerra em junho de 1991 AGUILAR MATHIAS 2012 Todavia o conflito mais grave na desintegração da Iugoslávia ocorreu na república da BósniaHerzegovina tendo início em abril de 1992 e perdurando até novembro de 1995 Multiétnico o território em questão era composto majoritariamente por três grupos de crenças religiosas diferentes os muçulmanos8 ou bosníacos Islamismo os sérvios ortodoxismo e os croatas catolicismo9 Após um plebiscito na república a independência da BósniaHerzegovina foi aprovada por maioria dos muçulmanos e croatas o que provocou uma revolta dos sérvios que lá habitavam desencadeando o conflito no território Em consequência da guerra instalada motivada por nacionalismo étnico das diferentes comunidades ALVES 2013 milhares de mulheres da Bósnia croatas sérvias e muçulmanas foram vítimas de violações e agressões sexuais realizadas majoritariamente por membros de grupos inimigos Tais estupros ocorreram em diversas regiões do território 6 Inicialmente denominavase República Federativa Popular da Jugoslávia mas em 1963 foi alterado para República Federal Socialista da Jugoslávia AGUILAR MATHIAS 2012 7 Nesse sentido It was with the help of the state media national radio and TV and the newspapers with the largest circulation and greatest privileges that people got convinced that they could no longer live together that they were threatened by their neighbours with whom they had had perfect relations for decades MIRKOVIC 1998 p 37 8 Notase que apesar do termo muçulmano ser uma denominação religiosa na Iugoslávia foi atrelado às pessoas que eram da religião ilsâmica e tinham nacionalidade bosníaca 9 Em média os muçulmanos representavam 435 quarenta e três vírgula cinco por cento os sérvios 312 trinta e um vírgula dois por cento e os croatas 174 dezesete vírgula quatro por centro da população que habitava a Bósnia MARKO 2000 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 323 e foram cometidos por todos os lados da guerra embora em sua maioria e de forma massiva por sérvios Os perpetradores geralmente pertenciam a um grupo étnico diferente da vítima e eram no mais das vezes figuras de autoridade policiais paramilitares guardas de campo comandantes soldados Segundo a Anistia Internacional as violações sexuais frequentemente aconteciam na frente de outras pessoas que podiam ser parentes da vítima principalmente do sexo masculino10 ou membros do grupo do estuprador buscando reforçar a humilhação da mulher violada AMNESTY INTERNACIONAL 1993 Contudo tendo em vista que sobre a base das características da violência sexual exercida pelos sérvios havia uma política generalizada de limpeza étnica e perseguição aos não sérvios as principais vítimas dos estupros na guerra foram civis não sérvias em sua maioria muçulmanas As violações sexuais perpetradas pelos sérvios foram realizadas em um estilo sistemático e utilizando métodos similares estupros em massa vários indivíduos com a mesma vítima estupros nos campos de detenção estupros públicos uso de métodos brutais conjuntamente com outras violações de direito internacional humanitário11 Nesse sentido as violações sexuais foram praticadas de forma que os grupos tivessem conhecimento e o demonstrassem da ausência de limites fato esse que propiciou o estupro de muitas mulheres até perderem a consciência12 ou virem a morrer MACKINNON 1998 Como consequência da campanha de limpeza étnica as violações sexuais dos sérvios também objetivavam expulsar a população não sérvia de seus territórios compelindoa a sair por meio do constrangimento e humilhação praticados contra as vítimas estupradas e a comunidade a que elas pertenciam13 Por outro lado muitos desses estupros tinham como propósito a gravidez forçada havendo relatos da existência de campos de detenção dedicados exclusivamente a provocar nascimentos de crianças sérvias14 Nessas oportunidades as mulheres violentadas eram presas e vigiadas a fim de que não pudessem realizar o aborto 10 É possível verificar nesse trecho retirado do caso Nº IT0039T julgado pelo TPIJ que o marido foi obrigado a assistir a mulher sendo violada On 4 July 1992 in the same police station the witness was forced by Popić to watch the rape of his own wife by a Serb man from the Munja unit of the Red Berets assisted by two other armed Red Berets TPIJ 2006 p 241 11 Nesse sentido segundo o Tribunal Sexual assaults occurred in several regions of Bosnia and Herzegovina in a systematic fashion and using recurring methods eg gang rape sexual assault in camps use of brutal means together with other violations of international humanitarian law TPIJ 1996 p 35 12 Verificase no caso IT0039T que uma vítima foi violada por dez soldados sérvios no campo de detenção até que perdesse a consciência TPIJ 2006 p 233 13 Nesse sentido segundo o Tribunal They were performed together with an effort to displace civilians and such as to increase the shame and humiliation of the victims and of the community they belonged to in order to force them to leave TPIJ 1996 p 35 14 Segundo o Tribunal Some camps were specially devoted to rape with aim of forcing the birth of Serbian offspring the women often being interned until it was too late for them to undergo an abortion TPIJ 1996 p 35 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 324 sendo liberadas quando transcorrido tempo supostamente suficiente para evitar a interrupção da gravidez REHN SIRELAF 2002 Ademais as mulheres estupradas também eram frequentemente submetidas à prostituição forçada e às vezes vendidas pelos estupradores Há ainda relatos de mulheres que foram sequestradas pelos perpetradores em casa e além de serem constantemente estupradas por soldados sérvios tinham que realizar tarefas domésticas15 a fim de servilos Outrossim as violações sexuais eram mescladas com diferentes formas de perversão como obrigar as vítimas a dançarem nuas em uma mesa enquanto soldados sérvios assistiam e apontavamlhes armas16 e também eram realizadas no mais das vezes em conjunto com agressões verbais a fim de aumentar a hostilização das vítimas17 e reforçar a supremacia étnica do estuprador A Anistia Internacional AMNESTY INTERNACIONAL 1993 identificou três situações principais em que eram praticadas as violações e os abusos sexuais no território da BósniaHerzegovina durante o conflito sendo a primeira delas ocorrida quando a autoridade policiais paramilitares entre outros que estava controlando determinada área se utilizava do seu poder para cometer tal forma de violência Nessa situação os estupradores exploravam o clima de medo e a vulnerabilidade das mulheres que se justificava muitas vezes pela ausência do marido ou de algum parente do sexo masculino para cometer os estupros AMNESTY INTERNACIONAL 1993 As violações sexuais podiam ocorrer no local onde se encontravam as mulheres ou em outro lugar para o qual eram levadas temporariamente a fim de que fossem estupradas massivamente A segunda situação identificada pela Anistia Internacional consistia nos estupros realizados pelas autoridades nos campos de detenção em que as mulheres se encontravam detidas os quais não teriam a finalidade específica de viabilizar a prática dos abusos sexuais Por sua vez a terceira situação identificada pela Anistia Internacional foi a ocorrência de violações sexuais executadas nos denominados campos de estupro estabelecimentos que tinham como objetivo único e exclusivo propiciar a violação sexual e o abuso das mulheres aprisionadas Outrossim os estupradores na maioria soldados recebiam ordens para e 15 Segundo o testemunho de FWS87 They were also forced to do household chores like washing cooking laundering and cleaning TPIJ 2001a p 35 16 Sobre a dança nua é possível verificar no IT9623T que as vítimas foram forçadas a retirar a roupa e dançar nuas na mesa enquanto o acusado observava TPIJ 2001a p 246 17 Vejase a esse respeito que no julgamento de Dragoljub Kunarac a vítima FWS183 afirmou em seu depoimento que após ser violentada por ele e mais outro soldado Kunarac havia falado aos risos que agora ela carregava um bebê sérvio e não poderia saber quem era o pai TPIJ 2001a p 207 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 325 qurealizassem as violações sexuais18 ou seja os comandantes dos campos e oficiais tinham conhecimento dos acontecimentos quando não participavam do ato ODIO BENITO 1998 Por outro lado ainda segundo Odio Benito nos campos de detenção os estupros também eram perpetrados por civis que adentravam os locais e violavam sexualmente as mulheres com a permissão e incentivo da autoridade presente Concluise portanto que os estupros ocorridos no conflito ocorrido na Bósnia Herzegovina tinham fundamentalmente um caráter étnico no qual os estupradores se utilizavam dessa violência para autoafirmar o grupo a que pertenciam frente aos demais 3 O QUE REPRESENTA A VIOLAÇÃO SEXUAL DO CORPO DA MULHER COMO ESTRATÉGIA DE GUERRA Toda experiência de guerra é antes de tudo experiência do corpo AUDOIN ROUZEAU 2009 p 365 pois os corpos protagonizam as duas esferas antagónicas existentes em um cenário bélico na medida em que de um lado aplicam a violência e de outro é através deles que essa mesma violência é sofrida AUDOINROUZEAU 2009 Com a ressignificação do cenário bélico houve um redirecionamento do protagonismo dessa violência que antes se dava majoritariamente contra os corpos dos combatentes A nova dimensão contextual da guerra na qual se pretende afirmar o poder dos grupos utilizandose de métodos cruéis transformou a violência contra os corpos da população civil no meio ideal para alcançar a desmoralização e destruição do inimigo A violação sexual desses corpos por sua vez consegue alcançar numa única ação vários resultados pois representa a destruição física psicológica e moral do violado além de reforçar o poder de domínio do agressor Mas por que os corpos femininos foram os principais alvos dos estupros que na guerra da exIugoslávia passaram a ocupar uma posição central na estratégia bélica Em primeiro lugar diante de uma dimensão individual a violação sexual contra a mulher traduz a supremacia masculina por meio da submissão feminina causando nas vítimas o sentimento de pânico e impotência diante do inimigo No entanto ao estuprar as mulheres que representam um corpo neutro frente à guerra a truculência e a crueldade direcionadas a elas atingem também toda a comunidade a qual elas pertencem SEGATO 2016 Há ainda uma dimensão coletiva das violações tendo em vista que não eram 18 Segundo a Newsweek um soldado sérvio declarou que eles eram ordenados a violar as mulheres a fim de que a moral no grupo fosse mais alta Newsweek Staff 1993 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 326 realizadas apenas pela misoginia possuindo em verdade motivações étnicas explícitas19 ou seja tratavase de violação étnica como uma política oficial de guerra MACKINNON 1998 p 96 tradução nossa A violência hostil dirigida às mulheres tinha razões xenófobas sendo o estupro do corpo feminino o meio utilizado para atingir o grupo étnico a que ela pertencia traduzindo a máxima objetificação da mulher Nesse horizonte de análise o prazer sexual do perpetrador sequer estava em causa nas violações sexuais massivas dado que a instrumentalização da mulher era tão evidente que seus corpos passaram a ser o principal palco de expressão da xenofobia Com efeito o desejo de anular o inimigo partindo de motivações xenófobas manifestavase no corpo da mulher essencialmente de duas formas De um modo mais evidente a mulher representava o instrumento pelo qual a campanha de limpeza étnica dos sérvios podia se realizar ou seja através das violações era possível gerar bebês sérvios viabilizando assim a construção de um estado puramente sérvio MACKINNON 1998 De outro modo ancorandose diretamente na estrutura patriarcal que aliena a mulher do seu próprio corpo considerandoo propriedade masculina e da comunidade não apenas a humilhação e o poder transmitidos no estupro por meio da sobreposição de uma vontade sobre a outra atingiam toda a comunidade como ainda o controle exercido pelo violador diretamente sobre a vítima se estendia para todo o grupo étnico ao qual ela pertencia Assentandose na mesma estrutura a violação sexual da mulher que sequer era combatente na guerra evidenciava que os homens pertencentes ao grupo étnico delas falharam no papel de proteção que se espera do gênero masculino isto é na defesa de suas propriedades o que por si só representa o seu completo fracasso e humilhação Nesse sentido o estupro da mulher trazia em si a realimentação do próprio patriarcado fazendo com que a guerra invadisse o espaço doméstico e destruísse os laços de confiança do tecido social SEGATO 2016 na medida em que reforçava a ideia de que a violência contra mulheres pilar da sociedade representaria a falência do dever masculino de proteção Ainda nesse horizonte é preciso ter em vista que a sexualidade da mulher é dotada de moralidade havendo por se tratar de grupos étnicosreligiosos um controle ainda maior sobre o corpo e reprodução femininos Nesse prisma além de representar um desrespeito às regras sociais e religiosas impostas sobre o corpo das mulheres sua violação sexual no 19 Como exemplo da motivação étnica verbalmente explícita é possivel notar através do trecho retirado do caso nº IT9623T During one rape Kunarac expressed with verbal and physical aggression his view that rapes against Muslim women were one of the many ways in which the Serbs could assert their superiority and victory over the Muslims TPIJ 2001a p 234 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 327 contexto de guerra traduz um verdadeiro assassinato moral dos homens daquele grupo agravado pela espetacularização das violações isto é além de extravasar os limites sociais e religiosos existentes sobre a mulher o estupro no contexto de guerra ultrapassa as fronteiras físicas e atinge diretamente a honra que sequer é da mulher mas do homem que a possui e da comunidade da qual ela faz parte Paradoxalmente mas respeitando a lógica do patriarcado as mulheres estupradas sofriam o estigma desse estupro de modo que é comum que sejam culpadas pelas violências perpetradas nos seus corpos e consequentemente transformadas em motivo de vergonha para a família quando não rejeitadas20 REHN SIRLEAF 2002 A rejeição podia ainda se agravar se era pressuposto que a mulher fosse virgem diante dos padrões sociais culturais e religiosos da sua comunidade pois o estupro significava que a vítima fora desvirtuada antes do casamento Nesse sentido mesmo se tratando de um ato cometido contra a sua vontade a mulher vítima dificilmente conseguiria se casar ficando sempre à margem da sociedade REHN SIRLEAF 2002 considerando que o matrimônio para os grupos étnicos religiosos em questão e também para a sociedade em geral é imprescindível para que as mulheres alcancem alguma posição social Dessa forma quanto mais perto a sexualidade feminina estiver da virtude maior será a rejeição da mulher estuprada e consequentemente mais facilmente os estupradores alcançarão seu objetivo de desestruturar a comunidade inimiga A violação sexual nesses casos representa um verdadeiro ato de profanação SEGATO 2016 traduzindose em uma forma de destruição do tecido social por meio da destruição dos laços familiares da comunidade através da aniquilação daquilo que é sagrado e fundamental para manter a sua conformação Isso porque na estrutura patriarcal existente a mulher representa o eixo central que sustenta todo o tecido social de modo que o estupro do seu corpo importa em uma forma eficiente de dissolver e destruir toda a comunidade Portanto a estratégia de guerra consistia em identificar o centro de gravidade do tecido social para atacálo a fim de destruir a comunidade de uma maneira mais eficiente direta e rápida e sem gastar tanta bala SEGATO 2016 p 162 tradução nossa Concluise por todo o exposto que o estupro da mulher passou a representar um papel central e estratégico nas novas técnicas de guerra tendo em vista que se escorando no reconhecimento da existência da estrutura do patriarcado na sociedade SEGATO 2016 20 Notase também que as poucas mulheres estupradas que não conseguiram ou não quiseram abortar o bebê fruto da violação experimentaram a rejeição da família e o isolamento social Rehn Sirleaf 2002 p 39 tradução nossa Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 328 explora tal alicerce para derrotar toda a comunidade tida como inimiga por meio da violência sexual perpetrada de modo que toda a degradação física psicológica e moral sofrida diretamente pelas mulheres estupradas reflete em seu grupo levando à morte muitas vezes em vida dessas vítimas e consequentemente de toda a comunidade na qual estão inseridas 4 A VIOLAÇÃO NA PERSPECTIVA DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL DA EXIUGOSLÁVIA Criado unicamente com o objetivo de julgar pessoas acusadas da prática de violações graves ao direito internacional humanitário no território da exIugoslávia desde 1991 conforme previsto no art 1º de seu Estatuto21 o Tribunal Penal Internacional22 para a antiga Iugoslávia doravante denominado TPIJ ou Tribunal Teve a sua competência estabelecida em razão da matéria sob análise23 Após uma revisão das legislações nacionais o Tribunal entendeu no caso Prosecutor v Furundzija que os elementos para que se caracterizasse o estupro consistiam em penetração sexual ainda que leve na vagina ou ânus da vítima pelo pênis do perpetrador ou por qualquer objeto utilizado ou na boca da vítima pelo pênis do perpetrador através da coerção da força ou da ameaça de força contra a vítima ou terceira pessoa TPIJ 1998 p73 Apesar da posição adotada ter se adequado às circunstâncias do caso supracitado posteriormente o Tribunal entendeu no caso Prosecutor v Kunarac et al que o estupro atingia a autonomia sexual de modo que não seria necessário que se provasse o uso da força ou coerção se fosse demonstrado que diante das circunstâncias do caso concreto não existiu ou era impossível existir consentimento genuíno da vítima TPIJ 2001a p152157 A partir da análise da jurisprudência do Tribunal acerca dos estupros ocorridos na guerra da exIugoslávia a Anistia Internacional 2011 apontou de forma não exaustiva diversas circunstâncias verificáveis em ambiente conflagrado capazes de impedir o consentimento da vítima ao ato sexual sendo a utilização da força ou a sua ameaça a mais evidente delas uma vez que a própria coação no contexto de um conflito armado pode se manifestar de diversas maneiras Nesse sentido o medo da violência é uma das formas 21 O Estatuto do Tribunal Internacional para Julgar as Pessoas Responsáveis por Violações Graves ao Direito Internacional Humanitário Cometidas no Território da ExJugoslávia desde 1991 encontra se disponível em httpwwwministeriopublicopt 22 O TPIJ foi criado pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas através da Resolução 827 de 25 de Maio de 1993 23 Assim é que conforme previsto em seu Estatuto competiu ao Tribunal o processamento e julgamento de violações graves às convenções de Genebra de 1949 art 2º às leis ou aos costumes de guerra art 3º bem como a prática de genocídio art 4º e de crimes contra a humanidade art 5º Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 329 mais sutis de coação eis que faz com que a vulnerabilidade seja tamanha que a vítima acaba por se submeter ao ato sexual sem expressar resistência de modo a evitar maiores ameaças ou até o emprego de força física Além disso como expõe a Anistia Internacional 2011 a extorsão a intimidação ou outras formas de coação que ataquem diretamente o medo e o desespero da vítima incluindose nesse particular a realização de acordos de cunho sexual nos quais esta não teria condições de impor resistência também impossibilitariam o livre consentimento24 Ademais a própria detenção por si só sobretudo quando ilegal hipótese em que a vulnerabilidade da vítima é ainda maior gera um ambiente intrinsecamente coercitivo fazendo com que a coação se manifeste de forma mais nítida25 Ademais de acordo com a jurisprudência a ausência de liberdade de consentimento não se restringiria às hipóteses em que a vítima se encontrava detida podendo ainda se verificar quando o agente estivesse em qualquer posição de controle sobre ela advinda do poder político militar ou não e abusando desse poder a coagisse à prática de atos sexuais AMNESTY INTERNACIONAL 2011 Por fim considerando que na guerra da ex Iugoslávia muitos civis podiam adentrar os campos de detenção para violar as vítimas AMNESTY INTERNACIONAL 2011 notase que não é preciso que o violador crie o ambiente coercitivo para que se configure o estupro bastando para tanto que dele se aproveite obtendo vantagens proporcionadas pela vulnerabilidade existente em tais esferas para praticar os atos sexuais Por outro lado embora o estupro só estivesse previsto expressamente no âmbito dos crimes contra a humanidade26 art 5º al g do Estatuto o Tribunal se utilizando de um consenso jurisprudencial considerou em diferentes situações que os abusos sexuais ocorridos na guerra da exIugoslávia se amoldariam a outras normas do Estatuto podendo ser entendidos dependendo da hipótese como crime de guerra27 forma de tortura28 eou ainda 24 A título de ilustração de tal entendimento podese citar o caso IT98301T em que o acusado negociara a prática de relação sexual com a vítima oferecendolhe como contrapartida água comida e melhores condições para seu marido Analisando a referida conduta o Tribunal entendeu tratarse de violação ante a ausência de consentimento genuíno TPIJ 2001b 25 A esse respeito o Tribunal entendeu no caso IT9623T que as circunstâncias das vítimas nas detenções eram tão coercitivas que o consentimento sequer era possível TPIJ 2001a 26 Estabeleceu o Tribunal que as violações praticadas contra a população civil no âmbito de um conflito armado como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra civis ou ao menos dentro dessa lógica poderiam caracterizar crime contra a humanidade 27 Entendeu o Tribunal que embora não estivessem expressamente previstas no art 3º de seu Estatuto as violações contra a mulher praticadas no âmbito do conflito armado da exIugoslávia dada a sua natureza e característica preenchiam os requisitos necessários para que pudessem ser caracterizadas como crime de guerra 28 O Tribunal entendeu que as violações poderiam ser caracterizadas como uma forma de tortura se restasse comprovado terem sido motivadas por um propósito proibido hipótese essa que ao ver do Tribunal Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 330 meio para a prática de genocídio29 Analisando diversos casos trazidos a seu conhecimento o Tribunal entendeu que no contexto da guerra da exIugoslávia marcado por nacionalismo étnico e discriminação as violações das mulheres representavam uma forma de hostilizar e discriminar os grupos aos quais elas pertenciam CONSIDERAÇÕES FINAIS Realidade cotidiana na vida das mulheres em uma estrutura hierárquica social que conduz à dominação e subordinação do gênero feminino pelo masculino a violência atinge a sua máxima expressão na violação sexual pois enquanto manifestação do poder e supremacia o estupro das mulheres é um elemento da opressão sistemática no qual alienadas de si mesmas as vítimas suportam nos seus próprios corpos a marca do domínio masculino sendo em razão disso uma violência estrutural Diferentemente da esfera privada em que o perpetrador já se sente proprietário da mulher a violação na esfera pública também é uma forma de reforçar os papéis dentro da hierarquia uma vez que não sendo considerado dono direto daquele corpo o estuprador demonstra que tem poder estrutural para praticar tal ato reforçando sua virilidade Quando ocorrida durante a guerra e em especial contra corpos neutros não combatentes a violação sexual das mulheres prática que demonstra a impotência feminina e a supremacia masculina leva o sentimento de medo e impotência para toda a comunidade Ademais o estupro ocorrido em contexto armado ambiente no qual o homem manifesta seu lado mais hostil possui um significado ainda mais profundo sobretudo depois da ressignificação do cenário bélico ocorrida após a 2ª Guerra Mundial A partir dessa transformação o conflito que antes se dava entre Estados passou a acontecer também com a participação de grupos privados e seu objetivo se concentrou em destruir e humilhar o inimigo de forma a mostrar a supremacia absoluta do grupo vencedor Motivada por divergências étnicas a guerra ocorrida na exIugoslávia principalmente na república da BósniaHerzegovina foi um dos paradigmas do novo cenário bélico no qual os grupos conflitantes demonstravam poder por meio da extrema violência perpetrada tendo a população civil como principal alvo dificilmente deixaria de ocorrer no contexto da guerra da exIugoslávia marcada por violações praticadas com fundamento étnico e religioso e que geraram intensa dor física e mental agravadas pelas condições sociais e culturais existentes às mulheres vítimas 29 Nesse sentido o Tribunal reconheceu que atos que colocassem em prática a campanha de limpeza étnica ou que fossem realizados de modo a violar o próprio fundamento do grupo étnico o que incluiria a maioria das violações poderiam ser caracterizados como genocídio Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 331 Diante do novo paradigma de guerra a violação sexual dos corpos femininos passou a assumir papel central na estratégia bélica convertendose no principal método dos grupos exibirem seu poder pois escorandose na estrutura patriarcal existente em que a mulher é propriedade do homem e o pilar da comunidade ao atingila de forma tão degradante e violenta se estaria desestabilizando o próprio tecido social do qual ela faz parte Ademais sendo os estupros no conflito em análise também cometidos como forma de expressar xenofobia a hostilidade dirigida às mulheres apresentavase como um método de anulação do inimigo étnico de duas formas de um lado as mulheres representavam um instrumento de realização da campanha de limpeza étnica dos sérvios tendo em vista que através da gravidez forçada viabilizavam a construção de um estado puramente sérvio de outro sendo a mulher considerada propriedade masculina a violação do seu corpo representava a anulação do inimigo refletindose os efeitos desse ato de domínio em toda a comunidade a que ela pertencia Ainda na mesma lógica estrutural a violação sexual das mulheres representa o fracasso dos homens de seu grupo no dever de proteção que lhes é socialmente imposto Além disso sendo a sexualidade feminina impregnada pela moralidade notadamente no seio de grupos étnicoreligiosos o estupro dos seus corpos representa um assassinato moral dos homens membros de sua comunidade atingindo a honra de toda a coletividade Seguindo a mesma lógica o estigma da violação sexual muitas vezes fazia com que as mulheres fossem excluídas dos seus próprios grupos levando à destruição do tecido social do qual faziam parte Constatase portanto que através da identificação da mulher como pilar social a violação sexual feminina no conflito ocorrido na república na BósniaHerzegovina se mostrou a principal estratégia de guerra tendo em vista que a degradação física psicológica e moral sentida pelas mulheres refletia em toda sua comunidade de modo a levar à plena desestruturação e até destruição desses grupos Criado em decorrência dos horrores ocorridos na guerra da exIugoslávia o Tribunal Penal Internacional ad hoc reconheceu se tratar o conflito armado de ambiente naturalmente coercitivo intensificado pelas perseguições étnicas e estabeleceu que para que se caracterize o estupro não é necessário mostrar o emprego efetivo da coerção da força ou da ameaça de força tendo em vista que o próprio ambiente coercitivo impossibilitaria na maioria das vezes que as mulheres obstassem os atos sexuais Diante das características dos abusos sexuais perpetrados e do contexto da guerra o Tribunal entendeu que as violações poderiam Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 332 ser tipificadas à luz de seu Estatuto como genocídio crime de guerra crime contra a humanidade eou forma de tortura REFERÊNCIAS AGUILAR S L C MATHIAS A L T C Identidades e diferenças o caso da guerra civil na antiga Iugoslávia Revista brasileira de história e ciências sociais v 4 n 8 p 438 454 Dez 2012 Disponível em httpswwwrbhcscomrbhcsindex Acesso em 10 jul 2019 ALVES J A L Os novos Bálcãs Brasília FUNAG 2013 AMNESTY INTERNACIONAL BosniaHerzegovina Rape and sexual abuse by armed forces 1993 Disponível em httpswwwamnestyorgdownloadDocuments188000eur630011993enpdf Acesso em 20 mai 2019 AMNESTY INTERNACIONAL Rape and sexual violence Human rights law and standards in the internacional criminal court 2011 Disponível em httpswwwamnestyorgdownloadDocum ents32000ior530012011enpdf Acesso em 20 mai 2019 ANDRADE V R P A soberania patriarcal o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher Seqüência Estudos Jurídicos e Políticos v 26 n 50 p 71102 2005 AUDOINROUZEAU S Massacres o corpo e a guerra In Corbin A Courtine JJ Vigarello G Org História do Corpo As mutações no olhar o Século XX V 3 Petrópolis Editora Vozes 2009 p 365416 BEAUVOIR S O segundo sexo Fatos e mitos 3 ed São Paulo Difusão Européia do Livro 1960 BELEZA T P Direito das mulheres e da igualdade social A construção jurídica das relações de género Coimbra Edições Almedina 2010 DAVIS A Mulheres cultura e política 1 ed São Paulo Boitempo 2017 GASTÓN PÉREZ G IVANA ACOSTA M La ex Yugoslavia Conflictos y tensiones en una región de encrucijada Huellas n15 p 244264 2011 MACKINNON C A Crímenes de guerra crímenes de paz In Rawls J Rorty R Heller A Org De los Derechos Humanos Madrid Editorial Trotta1998 p 87115 MARKO J Bosnia and HerzegovinaMultiEthnic or Multinacional In Council of Europe ed Societies in Conflict The Contribution of Law and Democracy to Conflict Resolution Strasbourg Council of Europe 2000 p 92118 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências contra as mulheres nas perspectivas dos direitos sexuais e reprodutivos V4 333 MIRKOVIC S Conflict of interest and unfair reporting destroy more than one family In Bromley M Sonnenberg U org Reporting ethnic minorities and ethnic conflict beyond good or evil Maastricht European Journalism Centre 1998 p 3741 NAÇÕES UNIDAS Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia Review of the indictments pursuant to rule 61 of the rules of procedure and evidence IT955R61 Disponível em httpwwwictyorg Acesso em 16 Jun 2019 NAÇÕES UNIDAS Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia Trial Judgement IT0039T Trial Chamber I 27 de setembro de 2006 Disponível em httpwwwictyorg Acesso em 16 Jun 2019 NAÇÕES UNIDAS Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia Trial Judgement IT95171T Trial Chamber 10 de Dezembro de 1998 Disponível em httpwwwictyorg Acesso em 22 Jun 2019 NAÇÕES UNIDAS Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia Trial Judgement IT9623T Trial Chamber 22 de Fevereiro de 2001a Disponível em httpwwwictyorg Acesso em 16 Jun 2019 NAÇÕES UNIDAS Tribunal Penal Internacional para a Antiga Iugoslávia Trial Judgement IT98301T Trial Chamber 2 de novembro de 2001b Disponível em httpwwwictyorg Acesso em 16 Jun 2019 NEWSWEEK STAFF Pattern of rape Newsweek New York 1 de 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Barcelona n15 p 0115 2010 C R É D I T O S ORGANIZADORAS GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS POLIANA RIBEIRO DOS SANTOS SALETE SILVA SOMMARIVA MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGLL CAPA ATHENA DE OLIVEIRA NOGUEIRA BASTOS ILUSTRAÇÃO DA CAPA BRUNA VETTORI PROJETO EDITORIAL E DESENVOLVIMENTO POLIANA RIBEIRO DOS SANTOS