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Direito Penal
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GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS POLIANA RIBEIRO DOS SANTOS SALETE SILVA SOMMARIVA MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGLL O R G A N I Z A D O R A S Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V O L U M E 1 I S B N o b r a 9 7 8 8 5 6 6 1 4 9 3 9 5 I S B N c o l e ç ã o 9 7 8 8 5 6 6 1 4 9 3 8 8 COLEÇÃO ORGANIZADORAS Grazielly Alessandra Baggenstoss Poliana Ribeiro dos Santos Salete Silva Sommariva Michelle de Souza Gomes Hugill Coleção NÃO HÁ LUGAR SEGURO Estudos e Práticas sobre Violências Domésticas e Familiares Volume 1 Edição Eletrônica Florianópolis 2019 Copyright 2019 by Editora Centro de Estudos Jurídicos CEJUR Diagramação Poliana Ribeiro dos Santos Capa Athena de Oliveira Nogueira Bastos Categoria Produção Editorial Editora Centro de Estudos Jurídicos CEJUR O conteúdo deste livro é de responsabilidade dos autores e não expressa posição técnica ou institucional do Poder Judiciário de Santa Catarina das Organizadoras e da Universidade Federal de Santa Catarina CONSELHO TÉCNICOCIENTÍFICO Desembargador Rodrigo Tolentino de Carvalho Collaço Desembargador Moacyr de Moraes Lima Filho Desembargador Henry Petry Junior Desembargador Luiz Cézar Medeiros Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Vânia Petermann Juiz de Direito Marcelo Pizolati Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta CONSELHO EDITORIAL Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta Juiz de Direito Fernando de Castro Faria Juiz de Direito João Batista da Cunha Ocampo Moré Juiz de Direito Antônio Zoldan da Veiga Os trabalhos que compõe esta coleção foram submetidos à dupla avaliação cega doubleblind review por pareceristas ad hoc pósgraduados CIPBRASIL CATALOGAÇÃONAFONTE B144c Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares Organizadoras Grazielly Alessandra Baggenstoss Poliana Ribeiro dos Santos Salete Silva Sommariva Michelle de Souza Gomes Hugill Florianópolis Editora Centro de Estudos Jurídicos CEJUR 2019 Volume 1 314 p fig gráfs tabs ISBN Obra 9788566149395 ISBN Coleção 9788566149388 1 Violências contra as mulheres 2 Feminismo 3 Direitos das mulheres 4 Mulheres Condições sociais I Baggenstoss Grazielly Alessandra II Santos Poliana Ribeiro dos III Sommariva Salete Silva IV Hugill Michelle de Souza Gomes V Título CDD 340 Ficha catalográfica elaborada por Deise Oliveira de Almeida CRB 113414ª Este livro está sob a licença Creative Commons que segue o princípio básico do acesso público à informação O livro pode ser compartilhado desde que atribuídos os devidos créditos de autoria Não é permitida nenhuma forma de alteração ou a sua utilização para fins comerciais brcreativecommonsorg CENTRO DE ESTUDOS JURÍDICOS CEJUR CONSELHO TÉCNICOCIENTÍFICO Desembargador Rodrigo Tolentino de Carvalho Collaço Desembargador Moacyr de Moraes Lima Filho Desembargador Henry Petry Junior Desembargador Luiz Cézar Medeiros Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Vânia Petermann Juiz de Direito Marcelo Pizolati Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta CONSELHO EDITORIAL Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta Juiz de Direito Fernando de Castro Faria Juiz de Direito João Batista da Cunha Ocampo Moré Juiz de Direito Antônio Zoldan da Veiga CEJUR Academia Judicial Rua Almirante Lamego 1386 Centro FlorianópolisSC 88015601 Fone 48 32872801 academiatjscjusbr wwwtjscjusbracademia PARECERISTAS DA COLEÇÃO Os trabalhos que compõe a coleção foram submetidos à dupla avaliação cega doubleblind review por pareceristas ad hoc pósgraduados Adaiana Fátima Almeida UFSC Adailson da Silva Moreira PUCSP Adriana Aparecida da Conceição Santos Sá UNIVALE Adriana De Toni UFSC Adriele Andreia Inacio UEL Alberth Alves Rodrigues UFSC Alessandra Knoll UFSC Alessandro Tonon Câmara Ávila UFSC Alexandre Botelho UFSC Aline Antunes Gomes UNIJUÍ Amanda Muniz Oliveira UFSC Amina Regina Silva UFSC Ana Cláudia Wendt dos Santos USP Ana Cristina Costa Lima UFSC Ana Lúcia Cintra UFSC Ana Maria Justo UFSC Ana Martina Baron Engerroff UFSC Ana Paula Araujo de Freitas UFSC Andréa Martini UFSC Andressa Kikuti Dancosky UEPG Angela Maria Moura Costa Prates UFSC Arisa Ribas Cardoso UFSC Athena de Oliveira Nogueira Bastos UFSC Bettieli Barboza da Silveira UFSC Bianca Bez Goulart UFSC Brune Camillo Bonassi UFSC Camila Damasceno de Andrade UFSC Carla Pires Vieira da Rocha UFSC Carolina Frescura Junges UFSC Charles Raimundo da Silva UFSC Chimelly Louise de Resenes Marcon UNIVALI Christiane Heloisa Kalb UFSC Cinthia Creatini da Rocha UFSC Clara Martins do Nascimento UFPE Clarindo Epaminondas de Sá Neto UFSC Claudia Regina Nichnig UFSC Cristiane Valéria da Silva UFSC Daniela Castamann UEL Daniela Lippstein UNISC Daniela Maysa de Souza UFSC Daniele Beatriz Manfrini UFSC Débora Diana da Rosa UFMG Deborah Cristina Amorim UFSC Diana Piroli UFSC Dnyelle Souza Silva UFSC Edivane de Jesus UFSC Eduardo de Carvalho Rêgo UFSC Elaine Cristina Novatzki Forte UFSC Elton Fogaça da Costa UFSC Emmanuelle Elise Campos de Moraes UFSC Eunice Maria Nazarethe Nonato UNISINOS Ezair José Meurer Junior UFSC Fabiani Cabral Lima UFSC Fernanda Ax Wilhelm UFSC Fernanda Cardozo UFSC Fernanda da Silva Lima UFSC Fernanda Martins UFSC Fernanda Nunes da Rosa Mangini UFSC Frederico Augusto Paschoal UFSC Frederico Ribeiro de Freitas Mendes UFSC Gabriel Silva Costa USP Gabriela Dal Forno Martins UFRGS Gerusa Morgana Bloss UFSC Giácomo Tenório Farias UNISC Giovana Dorneles Callegaro Higashi UFSC Giovana Ilka Jacinto Salvaro UFSC Gisele Garcia Lopes UFSC Henrique Franco Morita UFSC Iara Cristina Corrêa UFSC Idonézia Collodel Benetti UFSC Isabela Martins Nadal UEPG Isabele Bruna Barbieri PUCPR Isabele Soares Parente UFSC Isabella Cristina Lunelli UFSC Ivette Sonora Soto ISA Janaina de Fátima Zdebskyi UFSC Janaina Mayara Müller da Silva FURB Janine Gomes da Silva RENNES Jessica Gustafson Costa UFSC Jéssica Sbroglia da Silva UFSC Joana DArc Vaz UFSC Joanara Rozane da Fontoura Winters UFSC Josélia da Silveira Nogueira UFSC Josiele Bené Lahorgue UFSC Juliana Alice Fernandes Gonçalves UFSC Juliana Schumacker Lessa UFSC Karine Grassi UCS Karolyna Marin Herrera UFSC Katheri Maris Zamprogna UFSC Kathiuça Bertollo UFSC Kátia Maria Zgoda Parizotto UFSC Kênia Mara Gaedtke UFSC Lady Mara Lima de Brito UFAM Laila Priscila Graf Ornellas UFSC Larissa Antunes UFSC Leide Sayuri Ogasawara UFSC Lenna Eloisa Madureira Pereira UFPA Leticia Scartazzini UFSC Liamara Teresinha Fornari UFSC Libiana Carla Bez Machado UFSC Liendina Joaquim Chirindza UFSC Ligia Ribeiro Vieira UFSC Loren Marie Vituri Berbert UFSC Luana Loria UFSC Luana Michele da Silva Vilas Bôas UERJ Luceni Medeiros Hellebrandt UENF Lúcia Helena Fidelis Bahia UDESC Luciana de Fátima Leite Lourenço UFSC Luciana Martins Saraiva UFSC Luciana Ribeiro de Brito UFSC Luciano Jahnecka UFSC Luciany Alves Schlickmann UFSC Luis Irapuan Campelo Bessa Neto UFSC Luiz Eduardo Dias Cardoso UFSC Luiza Landerdahl Christmann UFSC Maiara Pereira Cunha UFSC Maíra Marchi Gomes UFSC Marcel Soares de Souza UFSC Marcia Regina Calderipe Farias Rufino UFSC Marcio Jose Rosa de Carvalho UFSC Mareli Eliane Graupe OSNABRUECK Margarete Maria de Lima UFSC Maria Aparecida Salci UFSC Maria Cecilia Olivio UFSC Maria de Jesus Hernnandez Rodriguez UFSC Maria Eduarda Ramos UFSC María Fernanda Vásquez Valencia UFSC Mariana Aquilante Policarpo UFSC Mariana Caroline Scholz UFSC Marilande Fátima Manfrin Leida UFSC Marília dos Santos Amaral UFSC Marília Nascimento de Sousa UFSC Marina da Silva Sanes FURG Maris Stela da Luz Stelmachuk UFSC Marluce Dias Fagundes UFRGS Maurício da Cunha Savino Filó UFSC Melina de la Barrera Ayres UFSC Mirian Carla Cruz UFSC Monica Ovinski de Camargo Cortina UFSC Morgani Guzzo UFSC Natalia Fonseca de Abreu Rangel UFSC Nayala Lirio Gomes Gazola UFSC Noa Cykman UFSC Odisséia Fátima Perão UFSC Paula Helena Lopes UFSC Paula Pinhal de Carlos UFSC Paulo Ricardo Maroso Pereira UFRGS Poliana Ribeiro dos Santos UFSC Priscila Schacht Cardozo UNESC Priscilla Stuart da Silva UFSC Rafael de Almeida Pujol UFSC Rafaela Luiza Trevisan UFSC Renata Andrade de Oliveira UEM Renata Guimarães Reynaldo UFSC Renata Nunes UFSC Rene Erick Sampar UEL Roberto Wöhlke UFSC Rosana Sousa de Moraes Sarmento UFSC Roselete Fagundes de Aviz UFSC Rudá Ryuiti Furukita Baptista UEL Sabrina Aparecida da Silva UFSC Sabrina Blasius Faust UFSC Samanta Rodrigues Michelin UFSC Samira de Moraes Maia Vigano UFSC Samuel Martins dos Santos UFSC Sandra Iris Sobrera Abella UFSC Sérgio Cabral dos Reis UFSC Sheila Cristina Silva Ferraz UFSC Silvana Marta Tumelero UFSC Silvia Araújo Dettmer PUCSP Silvia Cardoso Rocha UFSC Simone Lolatto UFSC Simone Vidal Santos UFSC Soraia Carolina de Mello UFSC Tânia Welter UFSC Tatiana Pires Escobar UFSC Thatiane Cristina Fontão Pires UFSC Valéria de Angelo Ghisi UFSC Valine Castaldelli Silva UNICESUMAR Vanessa Dorneles Schinke PUCRS Wellington Lima Amorim UFRJ Yasmim Pereira Yonekura UFSC Zuleica Pretto UFSC Autoresas da Coleção Adria de Lima Sousa UFSC Adriana Dutra Tholl UFSC Adriano Beiras UFSC Alessandra Guterres Deifeld UNIVALI Amanda Ferreira da Silva CESUSC Amanda Mauricio Alexandroni UFSC Amanda Muniz Oliveira UFSC Ana Beatriz Cruz Nunes UNESP Ana Beatriz Eufrauzino de Araújo UNIPE Ana Paula Bourscheid UFSC Ana Paula Machado UFFS André Demetrio Alexandre PUCPR Anna Quialheiro Abreu da Silva UDESC Antônio José Ledo Alves da Cunha ENSP Ariane Mattei Nunes UFSC Ariê Scherreier Ferneda PUCPR Athena de Oliveira Nogueira Bastos UFSC Athena de Oliveira Nogueira Bastos UFSC Beatriz Berg USP Beatriz de Almeida Coelho UFSC Beatriz Moreira Bezerra Vieira UEM Benhur Pinós da Costa UFRJ Betina Fontana Piovesan UNIVALI Bettieli Barboza da Silveira UFSC Bianca Louise Wagner UFSC Bruna Adames UNIFEBE Bruna Amato UGF Bruna Boldo Arruda UNIVALI Bruna Camila Schuhardt UNIASSELVI Bruna Carolina Bernhardt UFSC Bruna Luisa Macelai UNIVALI Bruna Luiza de Souza Pfiffer de Oliveira UFSC Bruna Marques da Silva UNISINOS Caio Henrique de Mendonça Chaves Incrocci UFSC Camila Maffioleti Cavaler UFSC Camila Trindade UFSC Carla Julia da Silva UFRN Carla Roberta Carnette UNOESC Carmen Leontina Ojeda Ocampo Moré ULISBOA Carolina Carvalho Bolsoni UFSC Carolina Carvalho Bolsoni UFSC Carolina Orquiza Cherfem UNICAMP Carolina Young Yanes UFSC Charlene Fernanda Thurow FURB Christiane Heloisa Kalb UFSC Clarete Trzcinski UFRGS Clarindo Epaminondas de Sá Neto UFSC Cláudio Macedo de Souza UFMG Cristiane Floriano Rieg UFSC Cristiane Tonezer UFRGS Dábine Caroene Capitanio UFSM Daiane dos Santos Possamai UNESC Daniela Queila dos Santos Bornin ITE Daniela Urtado PUCPR Danielle Alves da Cruz UFSC Deise Warmling UFSC Deisemara Turatti Langoski UFSC Denise Maria Nunes UFSC Edegar Fronza Junior UFSC Edna Wernke Niehues dos Reis UNISUL Eduardo Passold Reis AJTJSC Eliane Rodrigues UFSM Elizabeth Cristiane Mendonça Azevedo UNIPAMPA Elza Berger Salema Coelho UFSC Elza Berger Salema Coelho UFSC Emilly Marques Tenorio UFES Érika Costa da Silva UFBA Fábio Mattos FGV Fernanda Cornelius Lange UNIVALI Fernanda de Carvalho Rodrigues da Silva CEGSC Fernanda Marcela Torrentes Gomes UFSC Fernanda Miler Lima Pinto UFMA Fernanda Moreira Ballaris UFRJ Fernanda Moura Muniz PUC Fernanda Nunes da Rosa Mangini UFSC Flávia Rubiane Durgante UFSM Flavia Soares Ramos UFSC Franciele Volpato UFSC Francisco Pereira de Oliveira UFPA Gabriela Feldhaus de Souza UNIPLAC Gabriela Ferreira Dutra Birkbeck College Gabriele Aparecida de Souza e Souza UEA Gabriele Nigra Salgado UFSC Genilson Fernandes Monteiro UFPA Georgia Paula Martins Faust UNIASSELVI Giovana Ilka Jacinto Salvaro UFSC Grazielly Alessandra Baggenstoss UFSC Hellen Lopes Dutra Mazzola UNIVALI Heloisa Mondardo Cardoso UFSC Hildemar Meneguzzi de Carvalho UNIVALI Íris de Carvalho PUCRS Isabele Bruna Barbieri UEL Ísis de Jesus Garcia UFSC Ismê Catureba Santos UCAM Ivone Maria Mendes Silva USP Janice Merigo PUCRS Jeanine Dewes de Oliveira UNISUL Jéssica Janine Bernhardt Fuchs UFSC Jéssica Painkow Rosa Cavalcante UFG João Antonio da Cruz dos Santos UNIVALI João Fillipe Horr UFSC José Dias Santana UFPA José Elias Gabriel Neto FMPRS Josilaine Antunes Pereira UNISINOS Júlia Farah Scholz CATÓLICASC Júlia Sleifer Alonso UNIPAMPA Juliana Alice Fernandes Gonçalves UFSC Juliana Andrade da Silva PUCRS Karine Grassi UFSC Karine Kerkhoff UNOCHAPECÓ Karla Fernanda Pereira UFMA Karolyna Marin Herrera UFSC Karopy Ribeiro Noronha UFSM Kelly Cristina Schäfer Batistella UNISUL Kimberly Gianello Studer UFSC Laís Castro UEM Larissa Emília Guilherme Ribeiro IESP Larisse de Oliveira Rodrigues UERJ Lauriana Urquiza Nogueira UFSC Letícia de Cisne Branco CESUSC Lia Gabriela Pagoto UFFS Liandra Savanhago UFSC Lívia Dornelles Madrid URI Liziane da Silva Rodríguez PUCRS Luana Limberger Marques CESUSC Luana Marina dos Santos UNISINOS Lucas Francisco Neto DOCTUM Lucely Ginani Bordon UFRN Luciana Bittencourt Gomes Silva UNIDERP Luciele Mariel Franco UEM Lucienne Martins Borges UQÀM Luisa Chaves de la Rosa UNIPAMPA Luísa Neis Ribeiro UFSC Luiza Alano de Almeida UNESC Luiza Niehues Bonetti UNESC Maiara Leandro UFSC Mainara Gomes Cândida Coelho UFSC Maira Gabriela Anschau UNOCHAPECÓ Márcia Aline Pacheco de Medeiros CESUSC Márcia Cristiane NunesScardueli UNISUL Mareli Eliane Graupe UFSC Mareli Eliane Graupe UNIPLAC Mariana Silvino Paris CLACSO Mariane Pires Ventura UFSC Mariane Vanderlinde da Silva UFSC Mariella Kraus FURB Marília de Nardin Budó UFPR Marília dos Santos Amaral UFSC Marina Williamson Touro UFSC Marja Mangili Laurindo UFSC Mayara de Abreu Stuepp Cardoso FMP Mayara Zimmermann Gelsleichter UFSC Michelle de Souza Gomes Hugill UFSC Milena Barbi UFSC Miliane dos Santos Fantonelli UFSM Mirenchu Maitena dos Santos Rivas UNIPAMPA Miriam Olivia Knopik Ferraz PUCPR Monica Ovinski de Camargo Cortina UFSC Nádia Maria Gonçalves Krüger CEGSC Natália Aparecida Antunes UFSC Natielle Machado Santos UNIPLAC Nínive Degasperi Poffo UFSC Pamela de Gracia Paiva UNINTER Paola Dozoretz FURB Patrícia Backes UFSC Patrícia Borba Marchetto UB Paulo José Mueller UNIVALI Paulo Thiago Fernandes Dias PUCRS Paulo Thiago Fernandes Dias UNISINOS Poliana Ribeiro dos Santos UFSC Priscila Fernanda Santiago Ferreira UFMA Raul da Silveira Santos UFPA Regina Célia Costa Lima PUCGO Roberta Logobuco de Araujo Pereira PUC Sabrina Nerón Balthazar UFSC Sara Alacoque Guerra Zaghlout PUCRS Scheila Krenkel UFSC Sheila Rúbia Lindner UFSC Stella Scantamburlo de Mergár UCAM Sthefanie Aguiar da Silva UFSC Tainá Malinski UNISUL Thamyres Cristina da Silva Lima UFSC Thays Berger Conceição UFSC Vanessa Martinhago Borges Fernandes UFSC Vilma Pimentel Siqueira UFSM Wellington Lima Amorim UFRJ William Hamilton Leiria UFSC Vítimas sublimes projetos de sujeitos Não Sistema e sistemas Estrutura e estruturas Hierarquia e hierarquias Vários sub Subsistemas subestruturas Dentro disto sujeitOs Fora sujeitAs Há entrecruzamentos logo não há universalismo Num espaço como o Brasil seus contextos históricopolíticoeconômicocultural jurídico importam Invasão genocídio dos povos originários escravidão ditadura militar golpes políticos Poder descentralizado nas mãos dos que observados os períodos e cenários já o detinham e o detém Pequenos desvios dentro destes ciclos perpétuos Luta muita luta Contra o genocídio escravidão ditaduras golpes políticos retiradas de direitos Negação muita negação De todos estes eventos e características próprias No atravessamento as periferias Os territórios e corpos periféricos Ditos periféricos A marginalização do outrO Da outrA Sufocamento A construção de uma mentalidade social hierarquizada sob moldes coloniais na organização de mundo dividida entre Sul e Norte Global A trama do desenho do sujeito Do que é o sujeito Do sujeito de direito Quem tem direitos E do outrO Da outrA Que não o do direito Quem não tem direitos Nesta composição articulada secularmente sem descanso num território não recuperado de seus traumas a SujeitA boa é aquela que se mantém como a outrA sem direitos isto é a não sujeitO Ocorre que em vários pontos do globo dentre contextos sociais surgem reflexões e mobilizações destas sujeitAs mulheres Novamente luta muita luta e negação muita negação Se estrutura a sujeitA para que seja boa Uma boa vítima SujeitA vítimA A negação do gênero como arma feminicida Entrecruzamentos interseccionalidades descolonizações enfrentamentos Desconstruções morais e reconstruções de alianças políticas Desfazimento da desumanização dos projetos de sujeitos como vítimas sublimes Nem boa Nem vítima Sujeita de direito Sujeitas de direitos Em oposição às violências perpetradas contra as sujeitas mulheres as margens desde e para as margens ou seja desde os corpos periféricos para um país construído como periferia Brasil por teorias e práticas desde e para as periferias do mundo Disputas narrativas e materiais pelas e para as sujeitas mulheres Juliana Alice Fernandes Gonçalves APRESENTAÇÃO A violência contra as mulheres remonta dos tempos primitivos da humanidade cuja desigualdade entre os gêneros aqui no sentido das relações de poder entre homens e mulheres é observada em todo os campos da vida humana baseada nas diferenças biológicas e com isso na divisão do trabalho e funções em uma sociedade patriarcal Às mulheres era atribuído um papel secundário e de submissão ao domínio dos homens sob o argumento de serem seres frágeis física e intelectualmente como também da sociedade e da religião que lhes limitava as atribuições à esfera privada tais como a família reprodução e afazeres domésticos enquanto aos homens era permitida a atuação na esfera pública associada à liberdade à produção à política Tal situação foi sendo alterada por meio dos movimentos feministas e dos avanços normativos em especial a partir do século XX em que foram firmados Tratados e Convenções Internacionais assim como a promulgação da Constituição Cidadã de 1988 e das leis Maria da Penha e do Feminicídio os quais não só alçaram as mulheres à condição de sujeitos de direito e não mais de objeto como também reconheceram que as violações esses direitos são violações aos direitos humanos colocando as mulheres em patamar de igualdade com os homens Por outro lado temse que os avanços sociais não acompanharam a evolução formal uma vez que por conta da manutenção da desigualdade na divisão sexual do trabalho as mulheres passaram a assumir uma sobrecarga de responsabilidades Mesmo trabalhando fora de casa permanecem como as principais responsáveis pelos afazeres domésticos cuidados com os filhos e familiares Assim as limitações existentes para as mulheres no âmbito profissional contribuem para a manutenção das desigualdades e das violências sobre elas exercidas Como se vê o mundo atual ainda não é um lugar seguro para as mulheres pois as mulheres continuam a sofrer vários tipos de violências no âmbito doméstico e familiar no trabalho e na esfera pública Em pleno século XXI mulheres continuam sendo vitimadas subjugadas e morrendo pelas mãos de seus ex parceirosmaridosnamorados permanecem com medo de sair nas ruas à noite sendo julgadas pelo seu comportamento social ou pelas roupas que vestem Diante de tudo isso é que se denota da importância desta obra cujo título da Coleção Não há lugar seguro reflete a busca dosas pesquisadoresas de diversas áreas em trazer panoramas argumentos críticas e sugestões para possíveis caminhos e soluções para a problemática da violência de gênero Com toda a certeza as reflexões aqui apresentadas contribuirão para o desenvolvimento de ideias e ações sejam elas no âmbito público ou privado para o aprimoramento da Justiça e dos serviços públicos de proteção às mulheres E por que não dizer contribuirão para que se dê mais um passo rumo à efetivação dos direitos humanos das mulheres e para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária Boa leitura Salete Silva Sommariva Desembargadora do Tribunal de Justiça de Santa Catarina TJSC PREFÁCIO O presente livro integra a Coleção Não Há Lugar Seguro constituída por estudos científicos aprovados na I Mostra de Pesquisa Científica sobre Violências Contra as Mulheres Sendo uma parceria entre o Tribunal de Justiça de Santa Catarina e o Lilith Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos da Universidade Federal de Santa Catarina devidamente certificado pelo CNPq O presente volume contempla pesquisas sobre violências domésticas e familiares que acometem as mulheres no território brasileiro A violência de forma genérica consubstanciase como desvios comportamentais a partir de uma referência de expectativa relacional positiva ao sujeito Assim compreendida é tida como um dilema humano sustentada por processos históricos relacionais e culturais que acometem a sociedade Por isso inclusive inserese com extrema relevância no contexto mundial da área inserida por se consubstanciar como um problema de saúde pública conforme posicionamento da Organização Mundial da Saúde OMS especialmente no que se refere à violência relacionada às mulheres No Brasil a temática é tratada pela Lei n 113402006 denominada Lei Maria da Penha que definiu política pública para o enfrentamento das violências domésticas e familiares contra as mulheres a partir da criação de instrumentos de tutela com viés protetivo e da proposta de implementação de um sistema interdisciplinar de combate e prevenção à violência além do endurecimento no sistema penal tradicional com medidas punitivas Importante destacar que a Lei Maria da Penha foi resultado além de movimentos por direitos humanos e feministas da condenação do Estado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos CIDH da Organização dos Estados Americanos OEA A condenação ocorreu por motivo de violação de direitos humanos relacionada à violência de gênero em referência ao caso da farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes em descumprimento dos tratados internacionais ratificados pelo País estabelecidos pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos e pela Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência Contra Mulher chamada de Convenção de Belém do Pará Os fatos que justificaram a condenação são relativos à morosidade do Estado brasileiro em punir Marco Antonio Heredia Viveros exmarido de Maria da Penha que praticou violências sistemáticas contra ela deixandoa paraplégica em 1983 Especificamente a prisão do acusado somente se deu em 2002 quase no termo final da prescrição dos crimes e depois de ainda Marco tentar matála duas vezes Assim a aprovação de uma legislação específica preocupada não apenas com a dimensão punitiva mas também atenta à dimensão reflexiva dos atos que atingem os direitos humanos das mulheres apresentam o potencial de promover mudanças de consciência individual e coletiva e consequentemente de estrutura na organização social Nesse sentido ainda estamos caminhando para a implementação efetiva das prescrições de tal política pública e para tanto fazse imprescindível as pesquisas sobre a temáticas as quais cumprem a função de direcionar concretamente as ações a serem estabelecidas para o cumprimento da lei bem como para fazer refletir sobre dispositivos que eventualmente não estejam em compasso com a proposta legal Em tal esforço seguemse estudos que apresentam a sensibilidade para tal mote e que resistem para a manutenção dos direitos humanos das mulheres e consequentemente para a concretização de uma sociedade mais saudável para todas e para todos Grazielly Alessandra Baggenstoss SUMÁRIO A PERPLEXIDADE INSTAURADA PELA LEI 138272019 NO SISTEMA DE GARANTIAS PROCESSUAIS ÀS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E INTRAFAMILIAR 17 Eduardo Passold Reis A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E A NECESSÁRIA COMPETÊNCIA HÍBRIDA DOS JUIZADOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER UMA ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E A POSIÇÃO DO FONAVID 32 Stella Scantamburlo de Mergár Lucas Francisco Neto LEI MARIA DA PENHA E A MANUTENÇÃO DA ORDEM FAMILIAR UMA ANÁLISE SOBRE A CONCESSÃO JUDICIAL DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE ALIMENTOS PROVISIONAIS E DE SUSPENSÃORESTRIÇÃO DO DIREITO DE VISITA DOSAS FILHOSAS 45 Luiza Alano de Almeida Mônica Ovinski de Camargo Cortina STALKING SOBRE A PERTINÊNCIA DE UMA LEI ESPECÍFICA A PARTIR DA ANÁLISE DE CASOS JURISPRUDENCIAIS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA 65 Marja Mangili Laurindo Karine Grassi TRANSFEMINICÍDIOS E A APLICAÇÃO DA QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO 77 Juliana Andrade da Silva José Elias Gabriel Neto EFETIVIDADE DA LEI MARIA DA PENHA NA DEFESA DOS DIREITOS DAS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA 97 Janice Merigo Karine Kerkhoff Maira Gabriela Anschau Clarete Trzcinski A JUDICIALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES 117 Ísis de Jesus Garcia PRÁTICAS PROFISSIONAIS E SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS À VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES NA PERSPECTIVA DE PROFISSIONAIS DE UMA CASA ABRIGO 130 Scheila Krenkel Carmen Leontina Ojeda Ocampo Moré VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA NOS RELACIONAMENTOS AFETIVOS A SUTIL DES ARTE DO ABUSO 148 Mayara de Abreu Stuepp Cardoso SERVIÇO SOCIAL NO SOCIOJURÍDICO E ATENDIMENTO ÀS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR 161 Emilly Marques Tenorio CARACTERÍSTICAS DA VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA MULHERES EM INTERFACE COM AS VIOLÊNCIAS SEXUAL E FÍSICA NOTIFICAÇÕES NO SUL DO BRASIL 176 Liandra Savanhago Carolina Bolsoni Elza Berger Salema Coelho Sheila Rubia Lindner REFLEXÕES SOBRE A VIOLÊNCIA DUAS MULHERES ATENDIDAS POR UMA ORGANIZAÇÃO NÃOGOVERNAMENTAL EM BLUMENAUSC 188 Geórgia Paula Martins Faust Paola Dorozetz Bruna Camila Schuhardt Patrícia Backes APONTAMENTOS ACERCA DO HISTÓRICO DE VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES E SEU ENFRENTAMENTO NA CIDADE DE IMPERATRIZMA 204 Fernanda Miler Lima Pinto Jéssica Painkow Rosa Cavalcante Regina Célia Costa Lima VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA COMARCA DE ARARANGUÁ LEVANTAMENTO DE DADOS DO SISTEMA DE AUTOMAÇÃO DA JUSTIÇA DE PRIMEIRO GRAU SAJ 222 Nínive Degasperi Poffo Fabio Mattos MARÉ MULHERES EM ACOLHIMENTO REFLEXÃO E ESCUTA RELATO DE EXPERIÊNCIA DE UM PROJETO DE EXTENSÃO COM MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA 242 Amanda Ferreira da Silva Letícia Cisne Branco Luana Limberger Marques Marília dos Santos Amaral SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA AS MULHERES SOB A PERSPECTIVA DE AGRESSORES SENTIDOS E DISCURSOS 258 Márcia Cristiane NunesScardueli UM OLHAR PARA O AUTOR DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA PERSPECTIVA DA REDUÇÃO DE DANOS 277 Vilma Pimentel Siqueira LACUNAS E ABISMOS ENTRE HOMENS E SERVIÇOS IMPASSES NO COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES 296 Adriano Beiras Caio Henrique de Mendonça Chaves Incrocci Amanda Alexandroni Marina Williamson Touro Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 17 A PERPLEXIDADE INSTAURADA PELA LEI 138272019 NO SISTEMA DE GARANTIAS PROCESSUAIS ÀS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E INTRAFAMILIAR Eduardo Passold Reis1 RESUMO A Lei 113402006 apresentou às mulheres vítimas de violência intrafamiliar com as medidas protetivas de urgência um sistema de garantias processuais de natureza cautelar As cautelares processuais tem entre outros pressupostos o da judiciariedade qual seja a reserva de jurisdição para sua prévia análise e concessão A Lei 138272019 trouxe novidade e permitiu a concessão e execução imediata de medida protetiva por policiais no exercício da função O objetivo do artigo é a reflexão sobre a integridade endonormativa do sistema de garantias processuais às mulheres vítimas de violência com vistas à promoção dos interesses destas pessoas Propõese um exame crítico da nova possibilidade a partir de uma ideia de integridade do sistema de garantias e de proibição de proteção deficiente Os resultados direcionamse a demonstrar os riscos ao sistema de garantias que podem decorrer da manutenção da norma notadamente em razão dos conflitos de regras de competência de ordem constitucional que se evidenciam As considerações finais convidam a uma análise sobre a viabilidade da manutenção da norma na forma posta diante dos riscos interpretativos envolvidos O trabalho é desenvolvido a partir das técnicas de revisão bibliográfica e de análise legislativa e seu método é o dedutivo Palavraschave Direito Violência Doméstica Garantias Processuais Tutela Cautelar Medidas Protetivas INTRODUÇÃO O quadro de violências à Mulher por sua condição e sua subjugação ao arquétipo Homem são traços de violência e desigualdade que acompanham há séculos nossa civilização Na contemporaneidade alguns passos tem sido buscados para reverter esse cenário no campo institucional e legislativo Precedida por outras legislações de cunho protecionista mais restritivo a Lei 113402006 conhecida como Lei Maria da Penha é um marco histórico no corpo de leis do Brasil acerca do tema Enunciando a temática da violência doméstica e intrafamiliar contra a Mulher com coragem e vigor e possibilitando a intervenção estatal com políticas públicas e práticas institucionais de promoção de igualdade material e discrímen positivo esta legislação trouxe 1 Magistrado membro do Poder Judiciário de Santa Catarina atuante na Comarca de Curitibanos Aluno do Curso de Mestrado Profissional em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Especialista em Direito e Gestão Judiciária pela Academia Judicial do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina 2012 Emaileduardopassoldreistjscjusbr Lattes httplattescnpqbr3345257600221255 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 18 consigo um sistema de garantias entre elas de cunho processual no âmbito do Processo judicial onde constam mulheres como vítima de violência intrafamiliar O sistema de proteção processual ainda que não ideal conta com inegáveis avanços e tem dentre outras ferramentas a utilização da técnica cautelar e inibitória como um de seus principais elementos de estruturação nomeadamente na concessão de medidas protetivas de urgência A pesquisa objetiva demonstrar a natureza processual cautelar destes pleitos com seus pressupostos e garantias Afirmase que sem os pressupostos característicos das medidas cautelares estes provimentos podem correr o risco de se tornarem inefetivos com riscos diretos e indiretos imediatos e futuros à proteção das vítimas e em desrespeito à sistematização de garantias instaurada originalmente pela Lei 113402006 e em ofensa ao princípio à proibição de retrocesso Quanto à metodologia a elaboração do trabalho pautouse pelo método dedutivo Objetivase apresentar argumentos que se compreende bem estabelecidos no estágio atual do tratamento científico da matéria para a partir deles estruturar conclusões válidas MEZZAROBA MONTEIRO 2017 p 93 A exploração de conceitos e premissas preliminares farão avançar o conteúdo do trabalho para a conclusão crítica proposta A utilização das técnicas do referente do fichamento e de pesquisa bibliográfica e legislativa foram essenciais para empreender o desenvolvimento dos estudos e das conclusões do artigo No que concerne à divisão estrutural do trabalho após esse introito a primeira subdivisão visa descrever o Processo Judicial como caminho para realização de direitos fundamentais Para esta realização é imprescindível que as técnicas processuais sejam adequadas e diferenciadas a depender do objeto de tutela pretendida A importância da tutela cautelar em sede civil e penal também é abordada Após buscase equacionar as medidas protetivas de urgência e relacionálas no âmbito penal às medidas cautelares penais com todas suas características e atributos Às mulheres vítimas de violência devese dar proteção plena com instrumentos processuais efetivos e garantida a seriedade e certeza das sanções em caso de descumprimento dos preceitos cautelares tomados para tutelar seus direitos e interesses A segunda seção aborda a norma trazida à lume pela Lei 138272019 e denuncia a perplexidade interpretativa que se erige a partir de então É que referida Lei deferiu a agentes administrativos como policiais civis militares e delegados de polícia a atribuição de também poderem determinar e executar de imediato provimentos cautelares de cunho processual penal no âmbito da proteção doméstica e familiar contra a mulher A ofensa à natureza jurisdicional dos provimentos cautelares e ao caráter de juridicidade desta injunção que terá efeitos tanto Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 19 no Processo quanto no âmbito relacional e no direito Material dos envolvidos é que clama por atenção e cuidado As considerações finais são um chamado à reflexão crítica sobre essa nova possibilidade apresentada pelo legislador 1 AS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA INSTITUÍDAS PELA LEI 113402006 E SUA NATUREZA JURÍDICA DE PROVIMENTO CAUTELAR À cena jurídica contemporânea é evidente o cariz de primeira necessidade que se emprestam aos direitos e garantias fundamentais A luta pelos direitos no decorrer da História transformouse de uma dimensão inicialmente política primeiro em fase de afirmação de direitos individuais e depois coletivos para uma dimensão sistêmica em que a inclusão e o acesso são elementos essenciais CAPELLETTI GARTH 1988 A Constituição Federal de 1988 e suas luzes trouxe evolução da prática jurídica abarcando princípios garantias e fundamentos que servem de base e direcionamento na resolução dos conflitos processuais Não sem razão afirmouse que um dos desafios atuais da teoria do processo é afeiçoar seus conceitos à realidade constitucional e mais que isso visualizar a jurisdição sob o prisma político incorporando no exercício jurisdicional os princípios e valores que qualificam o processo como instrumento da democracia no Estado Democrático de Direito ABREU 2011 p 409 Sob esse prisma os meios processuais são meios implementos garantias formas de cumprir promessas constitucionais e de Direito substantivo Segundo Lamy 2007 só cabe falar em real prestação de jurisdição quando garantido pelos órgãos judiciários responsáveis pela tutela do direito um mandamento de efetividade ao direito material vez que diante de lesão ou ameaça grave este deve realizarse plenamente Situados neste referencial prévio sabese que dentro da legislação processual há medidas que funcionam como forma de alcance rápido acautelamento de situações e também de resguardo de direitos Dentro dessas medidas encontrase a tutela cautelar que possui a função de proteção na relação processual sejam de direitos de provas ou de bens A partir disso entendese a aplicação do direito processual como vínculo entre a parte que necessita o resguardo de determinado bemdireito e o somatório de requisitos para que isso se aplique de forma rápida justa e viável dentro do âmbito processual seja no âmbito cível seja na seara penal O papel dos aplicadores do direito nesse contexto é o de verificar qual o bemdireito está em risco e qual a urgência e necessidade de protegêlo A atividade de conhecer Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 20 e analisar pleitos de provimentos de urgência feitos no Processo tem como notas imprescindíveis a reflexão o estudo detida análise e interpretação acurada Esta ponderação torna essencial a análise jurisdicional das tutelas de urgência em geral entre elas as medidas cautelares Daí há de se lembrar do princípio da reserva da jurisdição fundado constitucionalmente Acerca do tema a doutrina especializada afirma a Constituição Federal de 1988 estabelece abrangência do princípio da inafastabilidade da jurisdição de modo que passa a proteger lesões e ameaças a direitos e não somente restringir tal garantia às situações jurídicas que envolvam a proteção de direitos individuais o que vem alcançar as cautelares em geral POLASTRI 2014 p 26 Não se olvide que as cautelares civis ou penais terão efeitos espraiados em todo procedimento a partir de sua implementação Um provimento de natureza cautelar cria obrigações erige interditos implica consequências ao seu descumprimento adjudica posição de vantagem processual ou de reequilíbrio material em favor de quem foi tomado Dessa forma é preciso se pensar em eficácia de uma determinada decisão e na função social do processo ou seja a cautelaridade processual contribui para que o resultado de uma determinada demanda seja cíclico integrado e cumpra seu objetivo maior a entrega da tutela jurisdicional justa útil adequada Nessa tessitura como se verá adiante uma das características de maior substância dos provimentos cautelares é a judiciariedade isto é o de ser um provimento com carga jurisdicional e emanado de autoridade judiciária no cumprimento de seu viés constitucional O provimento cautelar para ser deferido deve guardar equacionamento aos vetores de urgência e verossimilhança que em sentido pragmático resumemse nos elementos fumus boni iuris ou em sede criminal fumus comissi delicti e periculum in mora na seara crime o periculum libertatis O primeiro possui a tradução juridicamente conhecida como fumaça do bom direito ou seja indícios de que o direito requerido possui embasamento legal e existe O segundo se dá em razão do perigo na demora indicando que se a medida não for analisada e tomada com certa urgência correse o risco de uma das partes não alcançar o direito tutelado ou submergir algum bem importante para a causa Igualmente na específica sede processual penal as medidas cautelares também tem o objetivo de proteger direitos bens provas pessoas e o andamento processual como um todo resguardando um resultado eficaz para a lide criminal Em sede processual penal as medidas cautelares serão pessoais relacionadas à pessoa do investigado ofensor ou da vítima ou Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 21 reais relacionada a bens ou objetos relacionados à prova ou cuja custódia se faça necessária para outros fins como ressarcimento de danos causados pelo crime por exemplo Situandonos no objeto específico deste estudo a Lei n 11340 de 07 de agosto de 2006 popularmente conhecida como Lei Maria da Penha trouxe contribuição importante ao campo do Processo notadamente na aplicação e implementação de cautelares que obrigam o agressor art22 e que visam a integridade física e psicológica art 23 e patrimonial da vítima art 24 É alarmante o número de mulheres vítimas de violência doméstica intrafamiliar seja ela física ou psicológica Para esses casos as medidas cautelares funcionam de maneira imediata visando com o provimento de urgência salvaguardar os bens que são mais caros naquela situação a dignidade humana a liberdade a propriedade individual a vida As medidas protetivas de urgência são pleitos de natureza civil ou penal apresentados pela autoridade policial pelo Ministério Público ou pela própria ofendida que tem por objetivo resguardar condição de integridade mínima aos direitos da ofendida frente à situação de violência doméstica ou intrafamiliar São provimentos de cunho situacional e pragmático cuja intenção é especificamente fazer cessar quadro de violência ou evitar que se erijam no mundo dos fatos situações para novas violências contra a ofendida Por se tratar de direito fundamental a cautelaridade encontrase na preservação da vítima seja sua saúde patrimônio integridade física ou vida A atuação dos órgãos estatais responsáveis pela coleta dos informes e apuração dos fatos é essencial para que se efetive a medida cautelar e principalmente que seja ela concretizada o mais rápido possível Segundo doutrina majoritária as medidas protetivas de urgência são cautelares processuais cujo caráter poderá ter abrangência cível ou penal dependendo do direito material violado e do provimento jurisdicional que se visa obter CUNHA PINTO 2015 Nesse sentido também é a lição de PORTO 2014 Não é possível nos determos especificamente sobre o ponto mas é certo que as medidas protetivas tem caráter cautelar pois há clara relação de comutatividade entre as medidas protetivas de urgência e demais medidas cautelares previstas na legislação de regência Isto é as medidas protetivas podem ser reforçadas ou substituídas por outras medidas de cunho cautelar previstas na legislação processual penal art 19 2º e 3º Lei 113402006 Sob o ponto de vista de comando legislativo e aplicabilidade pragmática endoprocessual a questão parece resolvida sob os prismas da relação de comutatividade e possibilidade de fungibilidade Só são fungíveis ou adesivas medidas de mesma natureza jurídicoprocessual Assim se as medidas protetivas podem ser complementadas por outras e em caso de descumprimento Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 22 podem ser substituídas ou desafiar medidas mais gravosas como a prisão preventiva segundo o art 313 IV CPP é certo que ambas tem a mesma natureza jurídica a de medidas cautelares Pelas especificidades do estudo proposto direcionamonos especificamente para a natureza processual penal dos pleitos de medidas protetivas de urgência Esta natureza erigir seá quando houver no mundo fenomênico ocorrência de fato tipificado como crime em que a ofendida busque auxílio denunciando o fato na seara criminal Presentes os requisitos formais passíveis a iniciar o procedimento simplificado de promoção de medidas protetivas art 18 Lei 11340 e concedidas as medidas protetivas com fundamento cautelar pelo Juiz esta contará com os requisitos próprios das medidas cautelares penais sendo estes acessoriedade preventividade instrumentalidade hipotética provisoriedade revogabilidade referibilidade e jurisdicionalidadesic POLASTRI 2014 p 330 Após intimado da concessão das medidas que lhe interpõe interditos é possível e infelizmente ocorre com frequência DIAS 2015 p 2830 que o ofensor torne a importunar a vítima Sua conduta nesse caso desqualifica o diálogo inter partes e o desrespeita a própria relação processual estabelecida motivo pelo qual poderá ser sancionado com medidas graves e específicas Novas medidas protetivas ou outas cautelares em complementação poderão ser ordenadas arts 19 2 e 3º Lei 11340 podendo chegar à decretação da prisão preventiva art 20 Lei 11340 e art 313 IV CPP contra o ofensor recalcitrante Não fosse a medida protetiva de urgência tomada em seara de persecução penal uma cautelar criminal típica não tivesse ela essa natureza jurídica não poderiam haver em substituição ou complemento a ela outras medidas cautelares penais Lembremos que tomadas as medidas previstas nos arts 22 a 24 da Lei Maria da Penha em ação de esfera cível o que é perfeitamente possível esta sede não poderá ordenar cautelares criminais típicas sem que haja persecução penal instaurada Em um sistema que tem no discrímen positivo uma política afirmativa de inclusão e promoção de valores e condutas o sistema processual e suas garantias devem ser interpretados e aplicados em consonância com os vetores que iluminam a legislação de regência Sem descurar do rigor metodológicointerpretativo próprios da Ciência Jurídica isso quer dizer que o sistema tem de estar preparado e colmatado para funcionar e trazer resultados para quem dele se utiliza e necessita Por isso as medidas protetivas de urgência como as demais cautelares criminais tem de ter efeito célere prático e vívido e não sendo bastantes impõese sua complementação ou substituição por medidas mais drásticas a fim de cessar danos e reparar situações de ilicitude cometidas donde se pode enxergar um viés claramente inibitório Isto porque Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 23 quando se requer com base na legislação processual a observância do fazer exigese o cumprimento do dever imposto pela norma para a prevenção do direito a realização do desejo preventivo de direito material significa tutela jurisdicional preventiva e portanto tutela jurisdicional inibitória MARINONI 2010 p 201 Mister neste ponto reforçar apontamento acerca de pressuposto essencial para ter lugar essas medidas que é a judiciariedade a reserva de jurisdição ou noutros termos que estas medidas sejam analisadas e aplicadas por membro do Poder Judiciário Não só em razão dos mandamentos constitucionais e legais que adiante serão trabalhados é ao Judiciário que o legislador originário depositou estas competências e atribuições A regra havendo notícia de crime e denúncia por parte da vítima é que a relação seja judicializada procedimentalizada processualizada SOUZA 2015 Conceituase judiciariedade como a função típica jurisdicional na resolução do conflito a juris dictio princípio pelo qual toda questão que envolva apreciação de legalidade deva ser submetida a um juiz FERREIRA FILHO 1984 p 37 As medidas protetivas de urgência pela natureza jurídica cautelar que tem e pelos efeitos severos jurídicos e materiais que delas podem advir tem pressupostos e atributos bem marcados sendo um dos mais marcantes como visto a competência judicial exclusiva para sua decretação O cisma promovido pela Lei 138272019 nessa atribuição de competências gera quebra de raciocínio sistêmico o que pode redundar risco sério às garantias processuais da mulher vítima de violência doméstica em ofensa ao princípio da proibição da proteção deficiente BIANCHINI 2014 2 A PERPLEXIDADE CRIADA NO SISTEMA DE GARANTIAS PROCESSUAIS À MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA A PARTIR DA EDIÇÃO DA LEI 138272019 Como se viu o sistema processual penal tal qual o processual civil possui formas diferenciadas de tutelas de urgência no Processo Essa gestão no Processo Penal é problematizada a partir de vetores vários como entre outros a repercussão social de dada conduta tomada como crime em determinada comunidade como a gravidade concreta da conduta e reação dos atores sociais envolvidos ou a partir da possibilidade franca de reiteração de condutas tidas como crime com risco iminente às vítimas No caso específico de nosso objeto de estudo é este último aspecto que visamos abordar Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 24 As práticas de violência e desrespeito contra as mulheres em nossa sociedade é estado de coisas não situação episódica A par disso o recorte da Lei 113402006 é específico e limitado à relação intrafamiliar e às violências oriundas de uma relação pessoal de afetividade De todo modo é certo que se trata de violação a garantias mínimas art 6º da Lei 11340 porque ela caracterizase principalmente na cultura machista do menosprezo pela mulher bem como na ideia de perpetuação da mulher ao mando do homem autorizando a equivocada e nefasta disseminação da inferioridade do gênero feminino em relação ao masculino permitindo a coisificação da mulher numa afronta direta à doutrina da dignidade da pessoa humana SOUZA 2016 p 71 O retrato da História revela que as premissas socioeconômicas psicológicas e antropológicas em que se desenvolvem as violências contra o gênero feminino tornam esse ciclo sempre de novo repetido e repetível em multiformes maneiras DIAS 2015 Num âmbito mais situacional é sabido que a reiteração de condutas violentas contra a mulher pelo mesmo companheiro mesmo já tendo sido denunciado anteriormente não é infelizmente nenhuma novidade As Varas judiciais específicas já contam num misto de pasmo icônico e inoperância e incompetência na gestão de políticas públicas específicas com clientes com cadeira cativa que já tem ajuizados contra si mais de dezena de procedimentos criminais instaurados por violências contra a mesma ou contra várias mulheres Esse retrato empírico não é mero recurso pictórico mas real vivenciado e faz concluir a reiteração das condutas de violência intrafamiliar é muito mais frequente que se imagina mesmo após a primeira denúncia e o tratamento judiciário da matéria A discussão sobre a efetividade da Lei e das políticas públicas no âmbito de proteção judiciária merecem reflexão em sede apartada e mais específica Nosso recorte é mais pragmático agora É que diante da constatação da reiteração da violência é preciso trazer à lume instrumentos efetivos e sérios ainda que gravosos para manutenção da regularidade do sistema de garantias Entre outros para os caso de reiteração de condutas de violência contra a mulher temos os meios de possibilidade de aplicação de medidas protetivas em complementação às primeiras art 22 caput in fine Lei 11340 de punição do agressor por novo crime art 24A Lei da Maria da Penha e da possibilidade de decretação de medidas cautelares penais previstas no Código de Processo Penal tomando aqui o exemplo da prisão preventiva porque disposta textualmente a hipótese pelo legislador em dois diplomas legais art 20 da Lei 11340 e art 313 IV Código de Processo Penal com a redação dada pela Lei 124032011 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 25 Ainda que as medidas de restrição impostas pela Lei Maria da Penha e Código Penal ao infrator sejam medidas de exceção como são e devem ser as medidas de restrição de quaisquer liberdades num Estado Democrático de Direito sua aplicação deve ser fomentada para evitar ainda mais abusos e reiteração de condutas de violência contra a mulher vítima de violência intrafamiliar Longe de ser o único ou mais eficaz meio de auxílio na proscrição desse tipo de violência as medidas cautelares processuais de toda ordem tem dimensão específica e importante aqui A mulher que está em sujeição de ameaça de direitos e reiteração de violência precisa de uma resposta rápida urgente para ontem porque isso pode custarlhe a própria vida Denunciada a violência e retratada institucionalmente através da persecução judicial criminal e seu Processo o Estado tem o dever de implementar medidas justas adequadas e eficazes mesmo que duras para evitar a perpetuação do estado de violência denunciado Daí novamente a importância das medidas protetivas e das cautelares processuais penais como um instrumento de equilibrar o diálogo processual Processo é diálogo equilibrado Se um dos debatedores no caso o ofensor advertido de condutas desditosas anteriores e com interditos impostos por exemplo concessão de medidas protetivas como afastamento do lar reitera em condutas de violência no plano real e com isso desequilibra o diálogo e a relação processual é justo e adequado para segurança da vítima e zelo ao procedimento que medidas institucionais e legais mais gravosas lhe sejam impostas prisão preventiva por exemplo Daí que esse sistema de garantias precisa ser coeso e fazer sentido Sem um ferramental de garantias de auto conservação um sistema não pode ser concebido corretamente como sistema Um sistema de garantias processuais de natureza cautelar precisa guardar conformidade constitucional ter operabilidade e ser de aplicação relativamente simples Entram aqui especificamente nossas críticas ao novel legislador que na Lei 138272019 inserindo o art 12C com parágrafos ao texto da Lei 113402006 previu expressamente a possibilidade de aplicação de medida protetiva de urgência cautelar processual penal conforme se viu por agente policial civil ou militar ou delegado de polícia Sem qualquer ranço de viés corporativista e sem demérito aos valorosos trabalhos prestados pelas Corporações militares de polícia e ao preparo técnico da Polícia Judiciária o que temos aqui é uma quebra na sistematização legal do quadro de garantias processuais penais implementadas em favor da mulher vítima de violência intrafamiliar E essa quebra gera perplexidade notadamente se cotejarmos a possibilidade novel com as disposições dos arts 20 e 24A da Lei Maria da Penha e art 311 do Código de Processo Penal Ainda que o primeiro parágrafo do art 12C venha a aludir a prazos para a medida cautelar ordenada por autoridade não judicial ser comunicada e por assim dizer homologada Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 26 ou não pela autoridade judiciária a sistematização de regras e garantias processuais inicialmente vislumbrada tem princípio de rotura inegavelmente Há uma clara contradição entre as regras implementadas o que permite concluir que se avizinha estado de perplexidade na interpretação perplexidade que pode redundar em crise e ruptura sistêmicas Para ÁVILA 2018 p 105 regras são normas imediatamente descritivas primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência A atribuição de competência para ordens de natureza processual é de matiz constitucional de viés constitutivo É uma questão ontológica tais medidas são apenas existentes válidas e eficazes porque passam por procedimento específico de produção e edição que passa iniludivelmente pela competência primordial da autoridade que as edita Na síntese de ÁVILA 2018 p 102 dispositivos relativos à atribuição de competência são regras constitutivas Temos portanto duas regras de atribuição de competência para decretar medidas cautelares em sentido absolutamente dissonante E não é possível resolver a antinomia por hermenêutica de princípios porque de um lado a Lei 11340 e o Código de Processo Penal impõe regra com um sentido cautelar como medida processual com controle e crivo jurisdicional e a Lei 138272019 dispõe nova situação com regra em sentido diverso cautelar de natureza processual e com efeitos penais e processuais penais emitida por autoridade administrativa e sem crivo jurisdicional Há claro conflito de regras de competência portanto A perplexidade denunciada ou se resolve pelas vias de declaração de inconstitucionalidade ou se corre sério risco de criar um tertium genus uma cautelar processual penal à brasileira emitida sem os essenciais controle e análise jurisdicional prévios e tendo como resultado a possibilidade de criar ainda maiores riscos ao sistema de garantias à mulher vítima de violência por permitir a porosidade e a insegurança jurídica nas garantias Sob um prisma de sistematização completude conexão e coerência do sistema de garantias ainda uma vez recordando a lição de ÁVILA 2018 p 145 e 165 ss imperioso que se atribua leitura cuidadosa do novo instituto Diante do conflito de regras evidenciado e a perplexidade que resulta a superação da regra novel deve ter lugar visando tanto promoverse o objeto imanente à regra definidora isto é um sistema de garantias processuais adequado e que a mulher vítima de violência possa contar quando houver reiteração de atos processuais de violência quanto o valor formal de segurança jurídica do sistema e das relações processuais e pessoais que se interpenetram nesse sistema Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 27 CONSIDERAÇÕES FINAIS À vista do exposto quernos parecer que a judiciariedade é e ainda deva ser atributo das medidas cautelares ordenadas em sede processual penal Tanger direitos de tantos envolvidos que não se resumem aos papéis de agressor e vítima mas de toda construção de relações pessoais por eles previamente estabelecida afiguranos medida que não deva ser tomada ao calor dos acontecimentos de bate pronto à queima roupa A imposição de deveres de cunho material e processual decorrência da decretação das medidas protetivas por seu caráter cautelar deve ser precedida de elementos justificados e explícitos processualmente a ordem deve ser clara e fundamentada isso é da essência de todo provimento injuntivo proferido no diálogo processual Como as partes ou o Juiz saberão por qualis motivos o policial militar no curso da ocorrência atribuíram ou deixaram de atribuir determinada medida protetiva Isso estará fundamentado além dos formulários de praxe utilizados pelas corporações O policial estará habilitado para fazer esse juízo e fundamentálo para ter efeitos processuais no correr do feito criminal Por fim perguntase é realmente papel dele diante de seus atributos constitucionais seja na ótica da polícia judiciária seja na atividade policial operacional ostensiva A ordem jurídica justa e adequada pressupõe como se disse acesso democrático e efetivo O equacionamento positivo que a norma faz em proveito das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar é inegável passo de evolução a favor de uma sociedade mais igualitária e equânime Mas há de se atender com cuidado para certas intenções legislativas que a pretexto de auxiliar mais baralham que contribuem com o progresso do estado das coisas com prejuízos que podem rebentar de novo para a mulher vítima de violência Explicase Se a Lei 138272019 possibilita a agentes não membros de Poder Judiciário uma atividade típica deste poder é permitido falar francamente em uma medida cautelar declarada por autoridade constitucionalmente incompetente E ordem emanada de autoridade competente não é pressuposto básico no plano de validade de qualquer ato administrativo Seguimos A exclusão da reserva da jurisdição por certo aliviará a pletora de trabalho judiciário nas Varas Criminais e nos Juizados de Violência Doméstica Mas o argumento pragmático não é suficiente As garantias de publicidade transparência isenção fundamentação e conformidade que se tem e se pode exigir dos juízes competentes para análise destes pleitos também poderão ser exigidas de policiais que precisam decidir questões muito mais graves e prementes que dizem respeito por vezes ao risco de suas próprias vidas e dos envolvidos na ocorrência Há de se exigir tal sangue frio que diante de ameaça a vida de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 28 terceiros e da própria em situação de cautelaridade fragorosa do combatente seja dado aplicar medida tão gravosa e de tal repercussão processual e material Lembremos que há previsão específica de prazos de validade formas e sanções pelo descumprimento de medidas protetivas estas medidas quando ordenadas por autoridade não judiciária podem constituir crime Não nos parece porque a a autoridade que as ordena não tem legitimação constitucional a tanto Por ser medida cautelar processual penal com reserva de jurisdição como observado se não for analisada previamente e proferida por Magistrado competente seus efeitos não se espraiarão para o surgimento de novos gravames ao ofensor em caso de reiteração Desprovida de judiciariedade isto é não emanada de Juiz competente em caso de reiteração pelo ofensor não poderemos falar em possibilidade de prisão preventiva art 313 IV CPP ou em incidência de novo crime art 24A Lei Maria da Penha Ora se a medida não foi previamente submetida e analisada fundamentada explicitamente e nem ordenada por quem de direito segundo a ordem constitucional seu descumprimento não poderá acarretar novo crime nem ensejará prisão preventiva E nem se alegue que uma interpretação de caráter ampliativo fundado em princípios maximizadores do discrímen outrora referido poderia possibilitar os gravames de repressão do contempt nesses casos Tais princípios operam em questão de implementação de direitos materiais e sob premissa metodológica interpretativa geral Mas não há como negar a existência de regras constitucionais e infraconstitucionais que estariam sendo ofendidas diametralmente A colisão entre regras é diferente da colisão de princípios e a forma para sua resolução é também diversa Daí de novo precisamos duvidar da razoabilidade da intentio legis nesse caso Outorga se possibilidade novel sem garantia de que as premissas ordenadas possam ser cumpridas à saciedade para evitar novos danos E isso só faz soçobrar os interesses e anseios da pessoa que deveria ser o sujeito da proteção a mulher vítima de violência doméstica ou familiar A pessoa nesta condição tem o direito de ter seu pedido analisado e o pleito determinado por um juiz competente tem direito de ter garantias amplas dadas pela legislação processual que a reiteração nestes atos será punida com elementos processuais adequados e efetivos E não descuremos que o ofensor também é pessoa sujeita de direitos que lhe garantem a Constituição Federal Ele tem direito de saber quais que efeitos e prazos tem as medidas contra ele tomadas bem como as sanções de seu descumprimento Deverá conhecer por escrito em documentação essencial para o debate judiciário a fundamentação das ordens que lhe foram emanadas e suas justificativas legais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 29 O que se teme e nosso objetivo é mais o do vigilante atalaia que do o letrado escriba é que o Direito seja usado garantias alvitradas e promessas institucionais empenhadas sem contrapartida A nada serve para a mulher vítima de violência que o agressor retorne a incomodála e que não seja punido por isso ou que a atividade hermenêutica não desautorizada porque pro reo e se trata de matéria penal venha n futura a catalogar as medidas protetivas em judiciais oriundas de análise prévia de membro do Poder Judiciário e não judiciais advindas da decretação de autoridades administrativas meramente homologadas pelo Juiz sendo que às primeiras atribua meios de coerção e cumprimento amplos e às segundas não Isso não é responsável com o direito das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar Elas precisam de proteção de cuidado objetivo de empenho de políticas públicas de resultado E isso perpassa também a atuação processual mas com critérios metodológicos e técnicos porque o Direito é ciência que perpassa e influencia a vida das pessoas O ofensor que reitera atos de violência deve ser punido criminalmente com a possibilidade de decretação de sua prisão preventiva porque isso garante à vítima proteção processual e material é um reforço à suas garantias legais Há um perigo sério e grave novamente anunciado a pretexto de prodigalizar as medidas protetivas outorgando sua concessão a autoridades administrativas mesmo que profissionais de carreira jurídica de estado e retirando o caráter de reserva de jurisdição correse risco de fazer troça com o direito de quem mais precisa As mulheres estariam protegidas por uma medida cautelar inconstitucional e processualmente inválida e o descumprimento a estas medidas não sofreria sanção alguma E prejuízos incontáveis à coerência e ordem do sistema processual penal de garantias se avizinham Aguardemos o testemunho da História Teremos medidas protetivas de duas classes em breve futuro a permanecer assim o status quo aquelas ordenadas pelo Juiz que contará com os pressupostos típicos e poderá levar a consequências jurídicas e processuais sérias em casos de descumprimento crime de descumprimento de medidas protetivas eou decretação de prisão preventiva por exemplo e aquelas ordenadas por agente administrativo que advindas de agente constitucionalmente incompetente serão inválidas e não terão qualquer efeito além de sua execução imediata no mundo fenomênico sem que redunde qualquer proteção ou garantia processual prospectiva à mulher vítima de violência A novidade legislativa implementada no art 12C da Lei 11340 pode fazer mais mal que bem às mulheres vítimas de violência as medidas serão tomadas ao calor dos acontecimentos por profissional constitucionalmente incompetente para analisálas e que está Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 30 em execução de tarefas que lhe demandam por vezes vigor físico e tirocínio mental incompatíveis com a atividade de ponderação jurídica de valores em discussão Além disso há o risco de enxergarse na novel legislação por via interpretativa pro reo uma cautelar menor com âmbito protetivo mais restrito e que não trará à mulher vítima de violência a possibilidade de uma resposta efetiva em caso de reiteração de condutas pelo ofensor Esse é o acesso à ordem jurídica justa íntegra e conforme que queremos para as pessoas envolvidas nesse cenário Não estaremos aviltando ainda mais as mulheres que estão sob essa difícil condição fazendoa ouvir e crer em mais esta promessa legislativa e institucional descumprida Concluise com um chamado à reflexão detida e assertiva sobre a conveniência da manutenção dessa via transversa de medida cautelar ordenada sem o prévio exame jurisdicional apropriado REFERÊNCIAS ABREU Pedro Manoel Processo e democracia o processo jurisdicional como locus da democracia participativa e da cidadania inclusiva no estado democrático de direito Coleção Ensaios de Processo Civil vol 3 São Paulo Conceito Editorial 2011 ÁVILA Humberto Bergmann Teoria dos Princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos 18ª ed rev atual São Paulo Malheiros 2018 BIANCHINI Alice Lei Maria da Penha Lei 113402006 Aspectos assistenciais protetivos e criminais da violência de gênero Coleção Saberes Monográficos 2ª ed São Paulo Saraiva 2014 BRASIL Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 texto compilado Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos Brasília DF Disponível em httpplanaltogovbr Acesso em 14082019 BRASIL DecretoLei 3689 de 3 de outubro de 1941 Institui o Código de Processo Penal texto compilado Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos Brasília DF Disponível em httpplanaltogovbr Acesso em 14082019 BRASIL Lei 11340 de 7 de agosto de 2006 texto compilado Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos Brasília DF Disponível em httpplanaltogovbr Acesso em 14082019 BRASIL Lei 138272019 de 13 de maio de 2019 Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos Brasília DF Disponível em httpplanaltogovbr Acesso em 14082019 CAPELLETTI Mauro GARTH Bryan Acesso à Justiça Trad De Ellen Gracie Northfleet Porto Alegre Fabris 1988 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 31 CUNHA Rogério Sanches PINTO Ronaldo Batista Violência Doméstica Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo 6ª ed rev atual ampl São Paulo Revista dos Tribunais 2015 DIAS Maria Berenice Lei Maria da Penha a efetividade da Lei 113402006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher 4ª ed rev atual e ampl São Paulo Revista dos Tribunais 2015 FERREIRA FILHO Manoel Gonçalves Estado de Direito e Estado Legal Revista de Direito Administrativo n 157 julset 1984 Rio de Janeiro Fundação Getúlio Vargas 1984 LAMY Eduardo de Avelar Princípio da Fungibilidade no processo civil São Paulo Dialética 2007 MARINONI Luiz Guilherme Técnica Processual e Tutela dos Direitos 3ª ed rev e atual São Paulo Revista dos Tribunais 2010 MEZZAROBA Orides MONTEIRO Cláudia Servilha Manual de metodologia da pesquisa no direito 6 ed São Paulo Saraiva 2014 POLASTRI Marcellus A tutela cautelar no processo penal 3ª ed São Paulo Atlas 2014 PORTO Pedro Rui da Fontoura Violência Doméstica e Familiar contra a mulher Lei 1134006 análise crítica e sistêmica 3ª ed rev atual e de acordo com a ADI 4424 Porto Alegre Livraria do Advogado Editora 2014 SOUZA Sérgio Ricardo Lei Maria da Penha comentada sob a perspectiva dos direitos humanos 5ª ed Curitiba Juruá 2016 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 32 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E A NECESSÁRIA COMPETÊNCIA HÍBRIDA DOS JUIZADOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER UMA ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E A POSIÇÃO DO FONAVID Stella Scantamburlo de Mergár1 Lucas Francisco Neto2 RESUMO O artigo objetiva analisar a competência híbrida dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que permite o trâmite conjunto de processos criminais e civis decorrentes da prática de violência contra a mulher almejando esclarecer a atual posição adotada pelo Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher FONAVID sobre o instituto se em conformidade ou desconformidade com a inteligência da Lei Maria da Penha e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça O estudo está dividido em três partes sendo que a primeira fará uma breve análise na história sobre a violência contra a mulher no Brasil com enfoque a partir dos anos 1970 a segunda parte se debruçará sobre uma revisão dos principais instrumentos nacionais e internacionais de proteção aos direitos humanos das mulheres e por fim na terceira será abordada especificamente a competência cumulativa cível e criminal realizandose ponderações sobre a determinação do Enunciado nº 3 do FONAVID A pesquisa é do tipo teórica mediante o uso de levantamento bibliográfico documentos legislativos e entendimentos jurisprudenciais Palavraschave Lei Maria da Penha Mulher Violência Competência híbrida Revitimização INTRODUÇÃO O art 14 da Lei nº 11340 de 07 de agosto de 2006 prevê que os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher possuem competência híbrida cível e criminal destinada a julgar e executar causas que decorram da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher O Informativo nº 654 do Supremo Tribunal Federal STF com base na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19 reafirmou a intenção legislativa por detrás do supracitado art 14 no sentido de que a Lei Maria da Penha buscou deixar facultado aos Estados a criação desses Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e atribuiu às varas criminais a competência híbrida para o julgamento de ações cíveis e criminais oriundas de 1 Advogada Especialista em Direito de Família pela Universidade Cândido Mendes UCAM Mestranda do Programa de PósGraduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo UFES Membra do Laboratório de Estudos de Gênero Poder e Violência LEGUFES Email stellasmergargmailcom 2 Advogado Mestrando do Programa de PósGraduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo UFES Bolsista da FAPES Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo Email lucasguaraparigmailcom Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 33 situações de violência doméstica contra a mulher diante da necessidade de conferir tratamento uniforme especializado e célere em todo território nacional às causas sobre a matéria ADC 19DF rel Min Marco Aurélio 09022012 A Tese nº 8 da Edição nº 41 de Direito Penal sobre Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Jurisprudência em Teses do Superior Tribunal de Justiça STJ define muito bem essa competência Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher têm competência cumulativa para o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos do art 14 da Lei n 113402006 No entanto apesar de tal previsão legal e confirmada pelo STJ e pelo STF o Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em seu Enunciado nº 03 de novembro de 2018 prevê que a competência cível dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher se restringiriam aos pedidos de medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha e as ações cíveis deveriam tramitar perante as Varas Cíveis e de Família Logo há um descompasso da legislação federal e da jurisprudência do STF e do STJ com o entendimento dos juízes atuantes nas Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher Diante disso foram colacionados 04 acórdãos proferidos pelo STJ acerca da competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher demonstrando a necessidade de se analisar conjuntamente as questões cíveis referentes às situações de violência doméstica contra a mulher como o divórcio guarda e alimentos por exemplo a fim de se evitar a revitimização da mesma no âmbito jurisdicional Para tanto foram utilizados no campo de busca de jurisprudência do sítio eletrônico do STJ os seguintes termos competência cumulativa juizado especializado e violência doméstica A partir dessa busca foram encontrados os seguintes processos 1 REsp nº 1550166DF de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze Terceira Turma e julgado em 21112017 2 RHC nº 69334SC de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior Sexta Turma e julgado em 24052016 3 REsp nº 1496030MT de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze Terceira Turma e julgado em 06102015 e 4 REsp nº 1475006MT de relatoria do Ministro Moura Ribeiro Terceira Turma e julgado em 14102014 A violência doméstica e familiar contra a mulher está intrinsecamente ligada às questões judiciais envolvendo dissolução de união estável e divórcio guarda dos filhos e fixação de alimentos Não se pode dissociar tais questões uma vez que quando uma mulher está em uma situação de violência em seu relacionamento ela precisa aliar o pedido de providências na Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 34 esfera criminal medidas protetivas de urgência instauração de inquérito policial etc com o divórcio ou dissolução de união estável e regulamentação da guarda e alimentos sendo que o pedido de pensão alimentícia pode ser voltado para si eou para seus filhos dependendo do seu grau de vulnerabilidade Acresçase a isso o fato de que a violência doméstica contra a mulher é uma violência de gênero No Brasil verificase que a problemática da violência contra a mulher encontrase intrinsecamente atrelada à ideologia patriarcal de modo que apenas recentemente por volta dos anos 1970 é que o país passou a fazer parte de tratados e convenções internacionais acerca do tema bem como passou a produzir instrumentos legislativos direcionados a prevenir e reprimir esse tipo de violência de gênero como a Lei Maria da Penha no ano de 2006 Assim também é de fundamental importância fazer em um primeiro momento um breve apanhado na história do Brasil a partir da década de 1970 objetivando explicar a posição de submissão e violência a que tantas mulheres se encontram submetidas Atrelada à história serão apresentados os dados referentes à violência contra mulher no Brasil baseandose na 2ª edição do relatório produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública FBSP em 2019 conhecido como Visível e Invisível a vitimização de mulheres no Brasil Em seguida será abordada a questão dos direitos humanos das mulheres em plano internacional e nacional destacandose que tardiamente é que a mulher foi reconhecida enquanto sujeito de direitos Por fim é preciso delinear acerca da competência híbrida da Lei Maria da Penha e o descompasso da legislação federal e da jurisprudência do STF e do STJ com o entendimento dos juízes atuantes nas Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher trazendo reflexões sobre os prováveis impactos ocasionados às mulheres em situação de violência provocando em grande parte das situações a revitimização 1 REFERENCIAL TEÓRICO 11 A violência contra mulher no Brasil breve contextualização histórica e dados O combate à violência contra a mulher é recente no Brasil Tratase de um problema social que permaneceu invisibilizado por muito tempo e que somente a partir dos anos 1970 é que passaram a ser elaborados tratados e convenções internacionais a fim de buscar conscientizar governos e sociedades sobre essa situação e apenas no ano de 2006 é que foi promulgada uma lei destinada à proteção das mulheres a Lei nº 11340 mais conhecida como Lei Maria da Penha Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 35 Lima e Nader 2016 em seu artigo intitulado Da legitimação à condenação social afirmam que no Brasil a violência praticada contra as mulheres não se tratava e nem era encarada como um problema social a demandar atuação estatal uma vez que legitimado por ocorrer no espaço doméstico e dentro das relações conjugais e familiares É preciso enfatizar que a violência era legitimada por se tratar de fruto da ideologia patriarcal base das relações conjugais e familiares advinda do período colonial e oriunda do estilo de vida das minorias predominantes Assim essas ideias passaram a permear as demais camadas sociais espraiando se entre os homens o sentimento de posse do corpo feminino tornando vinculado à honra masculina o comportamento das mulheres que estavam sob a sua tutela Desse modo corroborada pela ideologia patriarcal a dominação masculina imperava tendo se tornada institucionalizada e legalizada fazendo com que o espaço doméstico se transformasse em local de privilégio para a prática da violência contra a mulher tida como necessária para a manutenção da família e o bom funcionamento da sociedade LIMA E NADER 2016 As autoras apontam que a sociedade era regida por uma moral sexual dupla permissiva para com os homens e repressiva com relação às mulheres de modo que era requisito para a honestidade da mulher uma vida sexual abstêmia até o casamento e após o casamento relações sexuais somente com o seu marido detentor da sexualidade da esposa Logo as mulheres que fugissem a esse padrão apresentando condutas desonestas poderiam ser corrigidas através da violência física sendo ao final culpada pelas agressões Tanto era assim que todos os códigos penais brasileiros desde o Código Criminal do Império até o Código Penal de 1940 faziam menções ao comportamento ideal da mulher como o termo mulheres honestas que esteve presente neste último até o ano de 2003 quando foi retirado Além disso é importante destacar a questão da criminalização do adultério que penalizava em maior grau a mulher que o cometesse pois seria aplicada à mulher casada adúltera uma pena de um a três anos de prisão enquanto que o homem casado que praticasse somente seria punido com a mesma pena caso tivesse uma concubina a quem fornecesse sustento LIMA E NADER 2016 Atentandose a esse breve histórico é possível identificar uma das muitas causas que resultam na violência do homem contra a mulher sendo no entanto ainda a relação de posse do homem para com o corpo feminino sempre legitimada pela lógica patriarcal que a sociedade ainda se encontra inserida uma das mais significativas É necessário abordar os dados existentes na 2ª edição do relatório produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública FBSP em 2019 conhecido como Visível e Invisível a Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 36 vitimização de mulheres no Brasil referentes à violência contra a mulher demonstrando como a ideologia patriarcal continua permeando as relações conjugais e familiares Segundo a pesquisa no ano de 2019 no Brasil os tipos de agressores mais apontados foram pessoas conhecidas 764 divididas em cônjuge companheiro namorado 238 vizinhoa 211 excônjuge excompanheiro exnamorado 152 e pai mãe 72 somase a isso o fato de que a maior parte das agressões sofridas pelas mulheres foi dentro de casa 42 Além disso é preciso considerar que a maioria das mulheres não busca ajuda com relação à violência sofrida num total de 52 e apenas 222 buscaram órgãos oficiais e 296 delas buscaram órgãos não oficiais como igreja família e amigos Além desses dados é preciso destacar que foram vítimas de violência 274 das mulheres dentre as abaixo elencadas ofensas verbais reportadas por 218 das mulheres agressões físicas que conglomeram bater empurrar chutar jogar objetos espancar tentar estrangular e que somadas alcançaram 165 das mulheres ameaça de agressão incluindo ameaça com faca ou arma de fogo e de amedrontamento e perseguição atingiram 225 das mulheres ofensa sexual foram reportados por 89 das mulheres esfaqueamento ou tiro alcançaram 17 das mulheres 12 Direitos Humanos das mulheres e sua proteção A Declaração Universal dos Direitos Humanos DUDH proclamada pela Organização das Nações Unidas ONU em 1948 é a principal referência quando se trata da proteção de bens e valores fundamentais para que as pessoas tenham uma vida digna Partindose desse documento internacional e de tantos outros tratados internacionais destinados à preservação de direitos há uma ampla gama voltada para a salvaguarda específica dos direitos das crianças dos idosos das mulheres e de outras minorias TRINDADE 1997 Buscando tornar a mulher sujeito de direitos situação que lhe foi negada durante muitos séculos COSTA 2014 em 1975 a ONU realizou a I Conferência Mundial sobre a Mulher na Cidade do México e os temas principais discutidos foram i a igualdade entre os sexos ii a integração da mulher no desenvolvimento e iii a promoção da paz Como resultado foi elaborada em 1979 a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres mais conhecida como Convenção da Mulher tendo restado como obrigação aos signatários o compromisso com a eliminação da discriminação e a garantia da igualdade de gênero COSTA 2014 O Brasil levou anos para se tornar signatário de tal Convenção de modo que somente em 1º de fevereiro de 1984 é que a subscreveu mas com reservas e apenas a ratificou Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 37 plenamente em 1994 com o Decreto Legislativo nº 2694 e promulgada em 2002 pelo Presidente da República através do Decreto nº 4377 Brasil 2002 Este último documento definiu pela primeira vez a discriminação contra a mulher juridicamente sendo a expressão discriminação contra a mulher significará toda a distinção exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento gozo ou exercício pela mulher independentemente de seu estado civil com base na igualdade do homem e da mulher dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político econômico social cultural e civil ou em qualquer outro campo Outro documento de extrema importância tratase da Declaração de Viena e seu Programa de Ação resultados da Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos ocorrida na cidade de Viena na Áustria em 1993 Decorreu dela a prescrição de que cabe como objetivo primordial aos países participantes da comunidade internacional o fomento da participação da mulher na vida civil política social econômica e cultural em âmbito nacional e internacional a fim de que sejam erradicadas todas as formas de discriminação baseadas no gênero Dessa Declaração verificase que foi definida a violência contra a mulher como uma forma de violação de direitos humanos DIAS 2010 de modo que o documento conferiu maior visibilidade aos direitos das mulheres sendo enxergada como um sujeito pleno de direitos PIOVESAN 2012 Em 27 de novembro de 1995 foi ratificada pelo Brasil através do Decreto Legislativo nº 107 e promulgada pelo Presidente da República por meio do Decreto nº 197396 a Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência Doméstica adotada pela Organização dos Estados Americanos OEA mais conhecida como Convenção de Belém do Pará DIAS 2010 Esse documento veio reconhecer ainda mais os direitos humanos das mulheres ao enumerar direitos básicos bem como elencou medidas punitivas ações preventivas e apoio jurídico e psicológico às mulheres deixando claro que uma vida sem violência é um direito devendo os signatários adotarem políticas públicas no sentido de prevenir punir e erradicar a violência PIOVESAN 2012 A Constituição Federal tratase de marco jurídico no que se refere ao reconhecimento de direitos e garantias fundamentais tendo como princípio basilar a dignidade da pessoa humana Além disso fincou suas bases no princípio da igualdade restando o mesmo estabelecido como valor essencial do ordenamento constitucional de modo que visa a igualdade formal e material entre homens e mulheres objetivando igualdade de oportunidades e tratamento isonômico havendo até mesmo previsão de ações afirmativas como por exemplo na Lei Maria da Penha Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 38 Outra previsão da Constituição de 1988 e um dos objetivos da República é a promoção do bem de todos sem preconceitos referentes à origem raça sexo cor idade crença religiosa almejando uma mudança da realidade brasileira que ainda possui altas taxas de discriminação em razão de gênero excluindo as pessoas e indo em direção contrária ao ideal de inclusão Além disso previu que a família é a base da sociedade e por conta disso deveria receber especial atenção do Estado tendo assegurado a cada membro familiar a devida assistência e meios para evitar a violência no âmbito de suas relações GONÇALVES 2011 Ainda que se tenha tido diversos avanços no ordenamento jurídico brasileiro com a Constituição da República de 1988 a violência contra as mulheres é um problema estrutural no Brasil e que tem inúmeras consequências para elas Diante do cenário estarrecedor somente em 2006 com a Lei nº 11340 mais conhecida como Lei Maria da Penha é que se pode afirmar que o país passou a ter um mecanismo previsto em lei para combater a violência doméstica contra a mulher Alguns de seus avanços podem ser destacados tais como tutela penal somente para as mulheres exclusão dos crimes praticados em situação de violência doméstica do rol daqueles considerados de menor potencial ofensivo e suas consequências criação das medidas protetivas de urgência criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher com competência civil e criminal e ainda previsão de tratamento integral intersetorial e interdisciplinar da vítima CAMPOS 2017 A Lei Maria da Penha buscou atuar de três maneiras visando a prevenção da violência e a sua repressão bem como fornecendo tratamento para o agressor de maneira que é uma das leis de maior eficácia vigente no Brasil 13 A competência híbrida da Lei Maria da Penha o entendimento do STJ e o enunciado do FONAVID A Lei Maria da Penha originária de compromissos assumidos em tratados internacionais pelo Brasil e do disposto no art 226 8º da Constituição Federal estabeleceu em seu art 14 a criação de órgãos jurisdicionais que deteriam competência para conhecer processar julgar e executar causas cíveis e criminais advindas da violência doméstica e familiar contra a mulher deixando à cargo da União e dos Estados a sua criação O objetivo do legislador foi tornar mais acessível e rápida a resolução das questões cíveis inerentes às questões criminais certamente ocasionadas pela violência Tal competência híbrida tratase de um avanço legislativo sem precedentes já que possibilita que a mulher em situação de violência não sofra ainda mais ao ter que buscar todas as esferas judiciais para que tenha a sua demanda atendida Resta clara a intenção do legislador em evitar que mulheres fragilizadas com a violência sofrida tenham que além de buscar as Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 39 delegacias e varas criminais ingressar nas varas de família também realizando uma verdadeira peregrinação nos fóruns judiciais em busca de justiça Além disso existe uma grande chance de a mulher sofrer uma revitimização sofrer novamente a violência ao relembrála ao ter que enfrentar seu agressor em eventual audiência em um ambiente onde o juiz e serventuários desconhecem a situação de violência e medo existente Logo é de suma importância a previsão legal referente à competência cumulativa cível e criminal dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher A sua inobservância acarreta além da violência doméstica e familiar já sofrida a violência institucional contra a mulher ao condenála a perambular pelos fóruns atrás de seus direitos há muito já violados Ocorre que apesar de previsão legal e realmente necessária o Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em seu Enunciado nº 03 de novembro de 2018 previu que a competência cível dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher se restringiriam aos pedidos de medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha e as ações cíveis deveriam tramitar perante as Varas Cíveis e de Família claramente limitando o escopo legislativo almejado Antes de tal enunciado ser elaborado o Superior Tribunal de Justiça já havia decidido em 04 acórdãos acerca da competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher demonstrando a necessidade de se analisar conjuntamente as questões cíveis referentes às situações de violência doméstica contra a mulher como o divórcio guarda e alimentos por exemplo a fim de se evitar a revitimização da mesma no âmbito jurisdicional Os processos respectivos são 1 REsp nº 1550166DF de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze Terceira Turma e julgado em 21112017 2 RHC nº 69334SC de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior Sexta Turma e julgado em 24052016 3 REsp nº 1496030MT de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze Terceira Turma e julgado em 06102015 e 4 REsp nº 1475006MT de relatoria do Ministro Moura Ribeiro Terceira Turma e julgado em 14102014 É preciso também trazer à baila o Informativo nº 654 do Supremo Tribunal Federal STF com base na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19 que reafirmou a intenção legislativa por detrás do supracitado art 14 no sentido de que a Lei Maria da Penha buscou deixar facultado aos Estados a criação desses Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e atribuiu às varas criminais a competência híbrida para o julgamento de ações cíveis e criminais oriundas de situações de violência doméstica contra a mulher diante da Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 40 necessidade de conferir tratamento uniforme especializado e célere em todo território nacional às causas sobre a matéria ADC 19DF rel Min Marco Aurélio 09022012 Logo há um descompasso da legislação federal e da jurisprudência do STF e do STJ com o entendimento dos juízes atuantes nas Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher Para dirimir tal controvérsia e descompasso é preciso trazer à colação os fundamentos utilizados nos acórdãos acima enumerados nos quais se reafirma a competência híbrida dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher No acórdão do Recurso Especial nº 1550166DF de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze Terceira Turma e julgado em 21112017 há a exposição do seguinte entendimento O art 14 da Lei n 113402006 preconiza a competência cumulativa criminal e civil da Vara Especializada da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para o julgamento e execução das causas advindas do constrangimento físico ou moral suportado pela mulher no âmbito doméstico e familiar 11 A amplitude da competência conferida pela Lei n 113402006 à Vara Especializada tem por propósito justamente permitir ao mesmo magistrado o conhecimento da situação de violência doméstica e familiar contra a mulher permitindolhe bem sopesar as repercussões jurídicas nas diversas ações civis e criminais advindas direta e indiretamente desse fato Providência que a um só tempo facilita o acesso da mulher vítima de violência familiar e doméstica ao Poder Judiciário e conferelhe real proteção No mesmo sentido o acórdão do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 69334SC de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior Sexta Turma e julgado em 24052016 prevê ser Totalmente improcedente a alegação de incompetência do Juízo a quo para decidir as medidas protetivas de um lado porque se trata de Vara Única de outro porque quando se trata de Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher a Lei n 113432006 preconiza a competência cumulativa criminal e civil para o julgamento e execução das causas advindas do constrangimento físico ou moral suportado pela mulher no âmbito doméstico e familiar de modo a concentrar em uma única autoridade judicial todo o plexo de providências medidas e decisões judiciais sejam de natureza cível ou criminal aptas a debelar a violência de gênero O Recurso Especial nº 1496030MT de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze Terceira Turma e julgado em 06102015 aduz 1 O art 14 da Lei n 113402006 preconiza a competência cumulativa criminal e civil da Vara Especializada da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para o julgamento e execução das causas advindas do constrangimento físico ou moral suportado pela mulher no âmbito doméstico e familiar 11 A amplitude da competência conferida pela Lei n 113402006 à Vara Especializada tem por propósito justamente permitir ao mesmo magistrado o conhecimento da situação de violência doméstica e familiar Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 41 contra a mulher permitindolhe bem sopesar as repercussões jurídicas nas diversas ações civis e criminais advindas direta e indiretamente desse fato Providência que a um só tempo facilita o acesso da mulher vítima de violência familiar e doméstica ao Poder Judiciário e conferelhe real proteção Por fim e na mesma toada o Recurso Especial nº 1475006MT de relatoria do Ministro Moura Ribeiro Terceira Turma e julgado em 14102014 apresenta o seguinte entendimento 1 Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher órgãos da justiça ordinária têm competência cumulativa para o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos do art 14 da Lei nº 113402006 2 Negar o julgamento pela Vara especializada postergando o recebimento dos provisionais arbitrados como urgentes seria não somente afastar o espírito protetivo da lei mas também submeter a mulher a nova agressão ainda que de índole diversa com o prolongamento de seu sofrimento ao menos no plano psicológico CONSIDERAÇÕES FINAIS A violência doméstica contra a mulher é uma dura realidade no Brasil apesar de todos os instrumentos internacionais e nacionais visando a sua prevenção e repressão ainda ceifa muitas vidas e deixa severas sequelas na alma e corpo de quem a sofre A estrutura social embasada na ideologia patriarcal continua produzindo severos danos à sociedade fomentando relações abusivas e agressivas contra as mulheres valendose constantemente da lógica da dominação masculina Diante disso percebese a necessidade da real implantação da competência híbrida nos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher uma vez que a dissonância das esferas cível e criminal apenas gera mais prejuízos às mulheres vitimizadas pelos seus cônjugescompanheirosnamorados Seria possível evitar que as mulheres fragilizadas com a violência sofrida tivessem que realizar uma peregrinação pela justiça indo em delegacias varas criminais varas de família etc Evitaria também que a mulher ficasse suscetível ao ter que encarar o seu agressor em audiência na Vara de Família em um ambiente onde o juiz e serventuários desconhecem a situação de violência e medo existente Diante dos argumentos acima apresentados verificase que a previsão legal e confirmada pela jurisprudência pátria demonstram a necessidade e a validade da competência híbrida dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher As disposições contrárias existentes bem como decisões judiciais entendendo por separar as competências estão em clara afronta à lei e ao entendimento da Corte Superior Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 42 REFERÊNCIAS BADINTER Elisabeth Um Amor conquistado o mito do amor materno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 BESSE Susan K Modernizando a Desigualdade reestruturação da ideologia de gênero no Brasil 19141940 São Paulo Editora da Universidade de São Paulo 1999 BRASIL Decreto nº 4377 de 13 de setembro de 2002 Disponível em httpwwwplanalto govbrccivil03decreto2002d4377htm Acesso em 10 maio 2019 BRASIL Superior Tribunal de Justiça Tese nº 8 Edição nº 41 de Direito Penal sobre Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Jurisprudência em Teses Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher têm competência cumulativa para o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos do art 14 da Lei n 113402006 Brasília DF Superior Tribunal de Justiça 2015 Disponível em sconstjjusbrSCONjttocjsp Acesso em 02 set 2019 BRASIL Superior Tribunal de Justiça Recurso Especial nº 1550166DF Pedido de suprimento judicial de autorização paterna para que a mãe possa retornar ao seu país de origem Bolívia com o seu filho realizado no bojo de medida protetiva prevista na Lei n 113402006 Lei Maria da Penha Brasília DF Superior Tribunal de Justiça 2017 Disponível em sconstjjusbrSCONpesquisarjsp Acesso em 02 set 2019 BRASIL Superior Tribunal de Justiça Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 69334SC Lei Maria da Penha Medidas protetivas de urgência Alegação de negativa da vítima em representar contra o agressor Prejudicado Incompetência da autoridade judicial Não ocorrência Parecer acolhido Brasília DF Superior Tribunal de Justiça 2016 Disponível em sconstjjusbrSCONpesquisarjsp Acesso em 02 set 2019 BRASIL Superior Tribunal de Justiça Recurso Especial nº 1496030MT Ação de divórcio distribuída por dependência à medida protetiva de urgência prevista na Lei n 113402006 Lei Maria da Penha Brasília DF Superior Tribunal de Justiça 2015 Disponível em sconstjjusbrSCONpesquisarjsp Acesso em 02 set 2019 BRASIL Superior Tribunal de Justiça Recurso Especial nº 1475006MT Ação de execução de alimentos Lei Maria da Penha Medida protetiva de urgência em trâmite junto à Vara Especializada de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher Art 14 da Lei nº 113402006 Competência híbrida Possibilidade de julgamento pelo JVDFM Acórdão estadual mantido Recurso improvido Brasília DF Superior Tribunal de Justiça 2014 Disponível em sconstjjusbrSCONpesquisarjsp Acesso em 02 set 2019 CAMPOS Carmen Hein de Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídicofeminista Rio de Janeiro Lumen Juris 2011 CAMPOS Carmen Hein de Lei Maria da Penha necessidade de um novo giro paradigmático Revista Brasileira de Segurança Pública São Paulo v 11 n 1 1022 FevMar 2017 Disponível em httprevistaforumsegurancaorgbrindexphprbsparticledownload778248 Acesso em 25 abr 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 43 CÂNDIDO Antônio The Brazilian Family In SMITH T L ed Brazil Portraitof a Half Continent Nova Iorque Marchant General 1951 p 291311 COSTA Elder Lisboa Ferreira da O gênero no direito internacional discriminação violência e proteção Belém PakaTatu 2014 COLLING Ana Maria Tempos Diferentes Discursos Iguais a construção histórica do corpo feminino Dourados UFGD 2014 DIAS Maria Berenice A Lei Maria da Penha na justiça a efetividade da Lei 113402006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher 2 ed rev atual e ampl São Paulo Revista dos Tribunais 2010 FREYRE Gilberto Casa Grande Senzala formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal Rio de Janeiro J Olympio 1969 GONÇALVES Ana Paula Schwelm Secretaria especial de políticas para mulheres um instrumento indispensável para o empoderamento das mulheres em situação de violência In CAMPOS Amini Haddad COSTA Lindinalva Rodrigues Dalla Coord Sistema de justiça direitos humanos e violência no âmbito familiar Curitiba Juruá 2011 p 7588 LIMA Lana Lage da Gama Mulheres e sexualidade no Brasil colonial In SAMARA Eni de Mesquita Org Mulheres na América e no Mundo Ibérico São Paulo Humanitas 2011 LIMA Lana Lage da Gama NADER Maria Beatriz Da legitimação à condenação social In PINSKY Carla Bassanezi Org PEDRO Joana Maria Org Nova História das Mulheres no Brasil São Paulo Contexto 2016 MONTEBELLO Marianna A proteção internacional aos direitos da mulher Revista da EMERJ v 3 n 11 p 155170 2000 Disponível em httpwwwemerjtjrjjusbrrevistaemerjonline edicoes revista 11revista11 155 pdf Acesso em 12 dez 2018 MURARO Rose Marie Breve Introdução Histórica In Malleus Maleficarum O Martelo das Feiticeiras Rio de Janeiro Rosa dos Tempos 1991 MURARO A mulher no Terceiro Milênio uma história da mulher através dos tempos e suas perspectivas para o futuro Rio de Janeiro Rosa dos Tempos 1992 NADER Maria Beatriz Paradoxos do Progresso a dialética da relação mulher casamento e trabalho Vitória Edufes 2008 PEDRO Joana Maria Corpo prazer e trabalho In PINSKY Carla Bassanezi org PEDRO Joana Maria org Nova História das Mulheres São Paulo Contexto 2016 PINTO Célia Regina Jardim Feminismo história e poder Rev Sociol Polít Curitiba v 18 n 36 p 1523 jun 2010 Disponível em httpwwwscielobrpdfrsocpv18n3603pdf Acesso em 25 set 2018 PINTO Uma história do feminismo no Brasil São Paulo Fundação Perseu Abramo 2003 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 44 PIOVESAN Flávia A proteção internacional dos direitos humanos das mulheres Revista da EMERJ Rio de Janeiro v 15 n 57 Edição Especial p 7089 janmar 2012 Disponível em httpwwwescoladegovernoorgbrattachments1314AproteC3A7C3A3ointernac ionaldosdireitosdasmulherespdf Acesso em 12 abr 2019 SAMARA Eni de Mesquita As mulheres o poder e a família São Paulo século XIX São Paulo Editora Marco Zero 1989 SCHMITTPANTEL Pauline A criação da mulher um ardil para a história das mulheres In MATOS Maria Izilda S de E SOIHET Rachel O corpo feminino em debate São Paulo Editora UNESP 2003 SOIHET Rachel O que acham da mulher In Condição Feminina e formas de violência mulheres pobres e ordem urbana 18901920 Rio de Janeiro Forense Universitária 1989 SOIHET A conquista do espaço público In PINSKY Carla Bassanezi org PEDRO Joana Maria org Nova História das Mulheres São Paulo Contexto 2016 TRINDADE Antônio Augusto Cançado Dilemas e desafios da proteção internacional dos direitos humanos no limiar do século XXI Revista brasileira de política internacional Brasília Jun 1997 vol 40 n 1 p 167177 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsci arttextpid S003473291997000100007 Acesso em 10 maio 2018 VISÍVEL e invisível a vitimização de mulheres no Brasil 2 ed Fórum Brasileiro de Segurança Pública Instituto Datafolha 2019 Disponível em httpwwwifffiocruzbrpdfrelatoriopesquisa2019v6pdf Acesso em 04 set 2019 WALBY Sylvia Theorizing Patriarchy Oxford Blackwell 1990 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 45 LEI MARIA DA PENHA E A MANUTENÇÃO DA ORDEM FAMILIAR UMA ANÁLISE SOBRE A CONCESSÃO JUDICIAL DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE ALIMENTOS PROVISIONAIS E DE SUSPENSÃORESTRIÇÃO DO DIREITO DE VISITA DOSAS FILHOSAS Luiza Alano de Almeida 1 Mônica Ovinski de Camargo Cortina 2 RESUMO A Lei n 113402006 ou Lei Maria da Penha inovou ao criar as medidas protetivas de urgência que têm a finalidade de proteger as mulheres e prevenir a prática de novas violências especialmente quando houver o rompimento da relação conjugal Diante desse contexto o objetivo da pesquisa é analisar a aplicação de medidas protetivas de caráter civil como as de alimentos provisionais e restriçãosuspensão de visitas dosas filhosas para verificar se há a tendência de indeferimento dessas medidas no âmbito judicial e seus impactos para a manutenção da gestão e estrutura familiares Para tanto utilizouse a análise de dados de outras pesquisas realizadas no Brasil além de acórdãos do Tribunal de Justiça de Santa Catarina publicados entre os anos de 2013 e 2018 O método de abordagem foi o dedutivo em pesquisa do tipo teórica e qualitativa com etapa quantitativa de dados de acórdãos a partir do emprego de material bibliográfico e documental legal Pesquisas apontam que as práticas judiciárias revelam um padrão de concessão de algumas medidas protetivas em detrimento de outras de forma seletiva como as medidas de rearranjo familiar de restriçãosuspensão de visitas dos filhos e alimentos provisionais Os resultados apontam para a resistência dosas magistradosas em deferir medidas que importam na alteração da gestão familiar o que dificulta o rompimento da relação violenta pois obriga as mulheres em situação de violência a ingressar com outras ações judiciais nas varas de família Por conseguinte resultam na limitação do acesso à justiça destas mulheres e na manutenção do ciclo da violência Palavraschave Lei Maria da Penha Medidas protetivas Rearranjo familiar Poder Judiciário INTRODUÇÃO A luta dos movimentos feministas acerca da questão da violência contra as mulheres no Brasil foi intensificada na década de 1980 com slogans de Quem ama não mata que culminaram na criação das Delegacias da Mulher em 1985 no Estado de São Paulo Esse modelo logo foi replicado em outros estados por alinhar a escuta psicológica e o atendimento social às mulheres que denunciavam as violências sofridas Muitas pesquisas foram feitas nesse 1 Pósgraduanda em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade de Educação São Luís FESL Bacharela em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense UNESC 2018 Email almeidaluizaahotmailcom 2 Professora do Curso de Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense onde leciona as disciplinas de Direitos Humanos das Mulheres e Criminologia Mestra em Direito pelo PPGDUFSC 2001 Doutoranda em Direito pelo PPGDUFSC Membro do NIEGen Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Gênero da UNESC E mail monicaovinskigmailcom Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 46 período trazendo conhecimento sobre as particularidades da violência doméstica e familiar contra as mulheres Na década de 1990 a formulação da categoria de gênero trouxe uma nova compreensão sobre as nuances desse tipo de violência demarcada pela assimetria de poder nas relações sociais especialmente no contexto da conjugalidade3 designada de violência de gênero A Lei 113402006 é um marco legislativo no Brasil por ter sido elaborada em um contexto democrático de intensa participação dos movimentos feministas na questão da violência contra as mulheres Ao absorver as demandas desses movimentos a Lei emergiu como uma resposta às recomendações recebidas da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no caso Maria da Penha Maia Fernandes que cunhou o nome para a Lei A Lei prescreveu também o alinhamento normativo com a CEDAW Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres e a Convenção de Belém do Pará Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher A Lei 113402006 chamada de Lei Maria da Penha adiante LMP inovou no enfrentamento da violência de gênero praticada no âmbito doméstico familiar e em relações de afeto por não se ater à problemática resposta punitiva do sistema de justiça criminal De fato a Lei contém determinações voltadas para a prevenção assistência e punição apresentando as medidas protetivas de urgência como diferencial que se constituem em um instrumento normativo voltado à proteção das mulheres em situação de violência prevenindo a reiteração de novas violências e propiciando às mulheres a possibilidade de romper com as relações violentas especialmente as conjugais Dados do Conselho Nacional de Justiça CNJ sobre a litigiosidade das medidas protetivas de urgência no Poder Judiciário brasileiro apontam que em 2017 foram expedidas 236141 medidas protetivas representando um incremento de 21 em relação a 2016 quando foram deferidas 194812 medidas protetivas entre as que obrigam o agressor e as que são voltadas à proteção das mulheres BRASIL 2018 Mesmo diante de tal magnitude quantitativa pesquisas apontam que há medidas protetivas que são mais aplicadas em detrimento de outras como será visto no desenvolver no trabalho 3 Para a melhor compreensão de conjugalidade esta advém de um processo de transformações de sentimentos e intimidades nas relações De acordo com Magalhães e FéresCarneiro 2003 p 23 a conjugalidade definese como dimensão psicológica compartilhada que possui uma dinâmica inconsciente com leis e funcionamento específico Para as autoras com o passar do tempo a conjugalidade passou a fundamentarse no complemento entre companheiros materializando assim do termo eu para o termo nós Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 47 Nesse contexto o objetivo que se propõe nessa pesquisa é examinar a aplicação de medidas protetivas de caráter civil especificamente as de alimentos provisionais e restriçãosuspensão de visitas dos filhos para verificar os índices de indeferimento dessas medidas no âmbito judicial e compreender as implicações dessas decisões para a prevenção da violência no contexto das relações de conjugalidade A partir da análise das decisões judiciais será possível verificar se as medidas protetivas que alteram a gestão familiar estão sendo de fato aplicadas pelo Poder Judiciário e como a atuação judicial tem contribuído para garantir o acesso à justiça para as mulheres em situação de violência especialmente diante da possibilidade de ruptura das relações violentas resultando em maior vulnerabilidade das mulheres Para cumprir com tal objetivo o trabalho examinará pesquisas realizadas no Brasil as quais apresentam dados sobre a concessão de medidas protetivas em distintos locais e também será feita a coleta e análise de acórdãos publicados pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina sobre o recorte das medidas protetivas de rearranjo familiar4 entre o mês de janeiro de 2013 e o mês de setembro de 2018 Acerca do tema é importante evidenciar que o Brasil não possui dados unificados em relatórios ou pesquisas acadêmicas que abordem especificamente as medidas protetivas de urgência ou mapeamento de suas aplicações de forma a abranger todo o território nacional5 Como foi explicitado no parágrafo anterior as poucas pesquisas que existem com dados judiciais sobre a concessão de medidas protetivas são investigações locais e não nacionais Desta forma mesmo tendo em conta a previsão do artigo 8 II da LMP que determina a existência de um banco de dados nacional sobre a violência doméstica e familiar no Brasil a análise desse artigo será realizada a partir de pesquisas com dados locais feitas de maneira esparsa em alguns municípios ou regiões do país Justificase a pesquisa na necessidade de se compreender a importância da aplicação da LMP especialmente no Poder Judiciário como resposta estatal de proteção às mulheres em situação de violência que buscam no sistema de justiça o suporte necessário para a efetivação do direito a uma vida livre de violência conforme disposto no artigo 3 da Convenção de Belém do Pará OEA 1994 4 Esclarecese que nas linhas que seguem as medidas protetivas de alimentos provisionais dos filhos e restriçãosuspensão de visitas pelo Judiciário serão designadas como medidas de rearranjo familiar expressão definida por Vieira 2016 p 29 5 A única base de dados nacional que especifica as medidas protetivas deferidas pelo poder judiciário brasileiro é a do Conselho Nacional de Justiça CNJ sobre a litigiosidade da LMP Contudo essa base de dados não especifica os tipos de medidas requeridas deferidas e indeferidas nem outros dados sobre as violências Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 48 1 O PODER JUDICIÁRIO E A LEI MARIA DA PENHA A APLICAÇÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA DE ALIMENTOS PROVISIONAIS E GUARDA PROVISÓRIA DOSAS FILHOSAS As medidas protetivas põemse distintas dentro da Lei Maria da Penha Inicialmente no artigo 22 estão previstas medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor Já no artigo 23 há a previsão das medidas protetivas de urgência em favor da ofendida As medidas previstas no rol do artigo 22 não são exaustivas e de acordo com o seu parágrafo primeiro o magistrado pode adotar outras providências previstas em lei sempre que a segurança da mulher ou outras circunstâncias o exigirem conforme adiante se explanará BELLOQUE 2011 BRASIL 2004 No entanto são os respectivos incisos IV e V do artigo 22 da LMP que elencam as medidas protetivas de rearranjo familiar merecendo aqui o devido destaque Isto porque segundo estudiosasos do tema as medidas protetivas de restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores de 18 anos e a de prestação de alimentos provisionais ou provisórios não possuem natureza cautelar penal mas sim natureza civil MENEGHEL et al 2011 DIDIER OLIVEIRA 2008 PASINATO 2009 Dentre as medidas protetivas de urgência categorizadas como de rearranjo familiar estão a prestação de alimentos provisionais e a restrição de visitas aos dependentes menores de 18 dezoito anos Percebese que o deferimento judicial de tais medidas modifica a ordem familiar estabelecida fornecendo meios financeiros para que as mulheres possam romper com a situação de violência bem como a proteção dos filhos e filhas sendo que o exercício do direito de visita é por vezes usado pelos acusados de agressão para manter contato com as mulheres VIEIRA 2016 A consideração dessas medidas acima citadas como de rearranjo familiar ocorreu devido as semelhanças propósitos e efeitos entre estas medidas protetivas dispostas na LMP para que se torne mais clara a análise de dados acerca de seus requerimentos e deferimentos pelosas magistradosas VIEIRA 2016 Destas medidas protetivas de urgência atípicas ou também consideradas híbridas conforme conceituadas por Didier e Oliveira 2008 os alimentos provisionais ou provisórios artigo 22 V LMP merecem destaque no sentido de que para seu requerimento além dos pressupostos necessários do artigo 1695 do Código Civil há necessidade de configurarse também cumulativamente a situação de urgência decorrida da prática da violência doméstica e familiar Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 49 As mulheres que se encontram com a guarda dos filhos e dependentes enfrentam dificuldades após prática da violência Ou seja a obrigação alimentar possui grande importância no contexto doméstico e familiar pois as mulheres que pretendem manter o sustento de seus filhos sentemse pressionadas sendo possivelmente silenciadas sobre a violência que sofrem em prol da subsistência da prole BELLOQUE 2011 Da mesma forma mesmo ciente de que a medida de restrição de visita dosas filhosas é questão sensível de limitação dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes envolvidos bem como dos pais em situações de risco grave de novas violências contra as mulheres a medida deve ser empregada De fato considerase que a exposição dos filhos da mulher ao risco de violência constitui forma de violência psicológica à mulher ÁVILA 2019 p 21 Nesse caso o simples acesso do agressor aos filhos e filhas serve para a mulher em situação de violência como forma de violência psicológica pois esta vê o risco que os filhosas estão submetidosas As crianças e adolescentes comumente presenciam os atos de violência praticados contra a mãe quando não também sofrem a violência junto com ela ÁVILA 2019 Embora o artigo 22 IV da LMP empregue a expressão restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores o uso do termo guarda dos filhos menores no decorrer deste artigo merece elucidação Observase que quando osas magistradosas regulamentam as restrições ou suspensões de visitas aos filhos crianças e adolescentes pressupõese automaticamente que a guarda desses ficará com a mãe ou seja o deferimento desta medida implicará na decisão provisória de guarda dos filhos menores de 18 anos mesmo que de maneira indireta por isso foi atribuído o termo guarda BRASIL 2002 VIEIRA 2016 Assim a LMP ao determinar cumulação de competência cível e criminal aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher ou na inexistência desses ao conceder competência híbrida às varas criminais conforme o art 33 da LMP busca a efetivação do acesso à justiça para as mulheres Portanto conforme elenca Vieira 2016 p31 todas as causas relacionadas ao contexto de violência doméstica que não sejam de cunho penal como ações cíveis de divórcio dissolução de união estável pensão alimentícia visitação e guarda dos filhos deveriam ser julgadas em um mesmo órgão evitando a atuação tradicionalmente compartimentalizada do Judiciário A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro no ano de 2015 realizou um relatório sobre medidas protetivas de urgência selecionando uma amostra de 294 duzentos e noventa e quatro processos para análise Os processos judiciais foram escolhidos porque contavam com requerimentos de medidas protetivas de urgência além de abranger casos referentes aos delitos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 50 de lesão corporal decorrentes de violência doméstica previstas no artigo 129 9 e 11 do Código Penal No tocante a divisão dos processos para a realização da pesquisa foram separados aqueles nos quais haviam deferimento de medidas protetivas dos outros sendo posteriormente os autos subdivididos novamente entre dois tipos de grupos RIO DE JANEIRO 2016 A pesquisa citada constatou que no que diz respeito ao teor das medidas protetivas deferidas em geral osas magistradosas concederam a maioria das medidas previstas nos incisos II e III do artigo 22 da Lei Maria da Penha sendo estas afastamento do lar proibição da aproximação da ofendida de seus familiares e das testemunhas proibição de contato com a ofendida bem como de seus familiares e testemunhas e proibição de frequentar determinados lugares Importa esclarecer que na pesquisa citada dentre todos os deferimentos não houve nenhuma concessão de medidas de prestação de alimentos provisionais conforme assim evidenciam as tabelas RIO DE JANEIRO 2016 O relatório aponta que as medidas do inciso III são as mais concedidas considerando os resultados das três alíneas dispostas nesse inciso do artigo 22 sendo estes 134 vezes a proibição de frequentação de determinados lugares 193 vezes de proibição de contato com a ofendida e por fim 198 vezes a proibição de aproximação da ofendida e seus familiares e das testemunhas resultando em um total de 525 vezes somente no que diz respeito ao inciso III das medidas protetivas RIO DE JANEIRO 2016 Desta forma reiteradamente percebese um ponto em comum nas pesquisas citadas em que osas magistradosas aplicam as medidas protetivas de urgência elencadas nos incisos II e III do artigo 22 da Lei n 113402006 enquanto as medidas de rearranjo familiar objetos dessa análise estão entre as que possuem menores índices de deferimento É possível destacar também por meio da análise dos gráficos formulados pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro que a medida mais indeferida é a de prestação de alimentos provisionais com a porcentagem de 57 cinquenta e sete por cento dos casos já a restriçãosuspensão de visitas em 29 vinte e nove por cento dos casos é indeferida RIO DE JANEIRO 2016 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 51 Gráfico 1 Medidas protetivas indeferidas Fonte Pesquisa Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro 2015 De igual forma dados examinados por outras investigações apontam no mesmo sentido da pesquisa fluminense como os que figuram na dissertação de mestrado de Sinara Gumieri Vieira 2016 os quais evidenciam novamente que as medidas protetivas de rearranjo familiar têm um baixo padrão de deferimento judicial Consoante as tabelas abaixo é possível observar a diferença de medidas deferidas entre os dois grupos nos quais foram distintas Tabela 1 Medidas protetivas de rearranjo patrimonial e familiar Fonte Pesquisa Implementação de Medidas Protetivas da LMP no DF PNUDSENASP MJAnis 2014 A coleta dos dados acima expostos se referiu ao recorte histórico de seis anos o marco inicial foi o ano de 2006 com a implementação da LMP e o final foi o ano de 2012 Como critérios de análise foram incluídos autos judiciais referentes á Lei Maria da Penha entre ações Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 52 penais requerimentos de medidas protetivas de urgência e inquéritos policiais analisados no Distrito Federal delimitandose ações penais que tivessem sido sentenciadas ou aquelas em que os réus obtiveram o benefício da suspensão condicional do processo determinados até o ano de 2012 ANIS 2014 Tabela 1 Medidas protetivas de rearranjo patrimonial e familiar Fonte Pesquisa de Implementação de Medidas Protetivas da LMP no DF PNUDSENASP MJAnis 2014 Diante dos dados examinados principalmente da tabela acima demonstrada questiona se quais motivos explicam os baixos índices de deferimentos das medidas protetivas de rearranjo familiar bem como de seus requerimentos Segundo aponta a pesquisa realizada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro os motivos para o indeferimento seriam baseados na justificativa de que não há dados suficientes que levem à convicção do Juízo e justamente nos casos de prestação de alimentos provisionais e de restriçãosuspensão de visitas osas juízesas acabam solicitando uma regularização junto ao Juízo de família transferindo a competência ou seja não julgamse competentes para as demandas RIO DE JANEIRO 2016 Com efeito é possível verificar que os motivos apontados para a baixa concessão das medidas protetivas de urgência que implicam em rearranjo familiar revelam o claro descompasso com o que está definido na LMP No tocante aos dados colhidos no Tribunal de Justiça de Santa Catarina a coleta de acórdãos dividiuse em três momentos conforme estão apresentados no gráfico a seguir Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 53 Gráfico 2 Expressões utilizadas nas três etapas para a pesquisa de acórdãos Fonte Gráfico elaborada pelas autoras com base nos dados publicamente publicados no site do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Na primeira etapa os 15 julgados foram oriundos de 12 doze Comarcas espalhadas pelo Estado Em uma segunda etapa dos 40 quarenta resultados encontrados 14 quatorze eram de diferentes Comarcas espalhadas pelo Estado E por fim buscouse pelas expressões medidas protetivas de urgência e indeferimento agregando 64 sessenta e quatro resultados provenientes de 38 trinta e oito Comarcas As demais decisões foram descartadas por não se encaixarem no objetivo proposto Acerca das controvérsias dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar o Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial adiante REsp 1475006MT no ano de 2014 estabeleceu e delimitou a competência híbrida dos Juizados bem como das Varas Criminais competentes para julgar os crimes da LMP Esse REsp julgado gerou precedente para o Informativo n 5506 publicado em 19 de novembro de 2014 Desta forma a presente decisão determinou aos órgãos do judiciário uma competência cumulativa para julgar as causas decorrentes de violência doméstica e familiar O REsp explicitou que as decisões judiciais que decidem negar provimento aos alimentos provisionais arbitrados em caráter urgente no âmbito da LMP submetem as mulheres novamente a outra agressão e isso resulta no prolongamento de seu sofrimento já que terá que ingressar em outra jurisdição BRASIL 2018 Cada Estado delimita sua organização judiciária designando as competências dos Juizados de Violência Doméstica Portanto de acordo com a parte final do acórdão acima citado quando uma magistradoa nega a competência cível prejudica a apreciação de medidas 6 Os informativos apresentam teses firmadas pelo STJ toda quinzena e geram repercussões no mundo jurídico 0 10 20 30 40 50 60 70 1ª Etapa Expressões Medidas Protetivas e conflitos de competência 2ª Etapa Expressões Medidas Protetivas de caráter cível e fixação de alimentos 3ª Etapa Expressões Medidas protetivas de urgência e indeferimento Números de julgados quando mencionado as seguintes expressões Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 54 protetivas de alimentos provisionais restrição de visitas e a separação de corpos o que poderá propiciar condições para que a mulher sofra novas agressões Essas controvérsias geram óbice a implementaçãoaplicação integral de medidas protetivas de urgência ANIS 2015 No entanto no mais das vezes não é o que ocorre nas decisões judiciais de Santa Catarina Conforme se verificou osas magistradosas de primeiro grau tendem a não aplicar as medidas protetivas de urgência de rearranjo familiar levando adiante os processos em instância superior para que as mulheres possam obter o deferimento de suas pretensões O seguinte caso ocorreu na Capital de Santa Catarina Florianópolis local onde há Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher no qual o juízo de primeiro grau indeferiu as medidas de rearranjo familiar solicitadas portanto observase Na comarca da Capital M L P da F requereu a concessão de medidas protetivas Lei n 1134006 art 22 em face de seu companheiro L M A P Não vislumbrando provas contundentes de agressão física a juíza de direito do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher indeferiu o pedido Reconheceu que o casal passa por conturbado processo de dissolução da sociedade conjugal e anotou que a separação de corpos deverá se necessário for ser decidida no juízo da família fls 13v14 e 26v Dessa decisão a requerente interpôs o presente agravo de instrumento Postulou ao final a concessão das medidas protetivas pleiteadas em primeira instância quais sejam a o afastamento do agressor do lar domicílio ou local de convivência com a ofendida b a proibição de aproximação da ofendida e de seus familiares fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor c a proibição de contato com a ofendida seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação d a restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar e e a prestação de alimentos provisionais ou provisórios enquanto durar a ação de dissolução de união estável ou qualquer procedimento perante este juízo SANTA CATARINA 2013 p02 grifo nosso Interposto o agravo de instrumento nº n 20130559053 teve seu provimento negado a partir do voto do relator que fundamentou Conforme já mencionado na decisão denegatória da antecipação da tutela recursal em consulta ao Sistema de Automação do Judiciário SAJ constata se que ambos os envolvidos já formularam pedidos de dissolução da sociedade conjugal Os processos tramitam perante a 2ª Vara da Família da comarca da Capital juízo em que já foi decidido cautelarmente sobre o afastamento do agravado do lar conjugal sobre a regulamentação de visitas à filha do casal bem como sobre os alimentos provisionais SANTA CATARINA 2013 p03 Diante dos dados apresentados em síntese como bem apontou a pesquisa da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro as mulheres em situação de violência obrigamse a ingressarem com ação nas varas de família para obterem a prestação jurisdicional desejada Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 55 Assim causalhes prejuízo tendo em vista que o relatório concluiu que os processos em outras instâncias não seriam resolvidos antes de quatro meses sendo que poderiam ser resolvidos em 48 quarenta e oito horas por meio de medidas protetivas RIO DE JANEIRO 2016 É importante salientar que as principias controvérsias de competência acerca da aplicação de medidas protetivas ocorrem quando não há a presença de Juizados de Violência Doméstica nas Comarcas Portanto nas seguintes situações o Tribunal de Justiça de Santa Catarina tem decidido que a aplicação das medidas protetivas é de competência do juízo criminal nas comarcas em que não houver Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher conforme dispõe seguinte emenda AGRAVO DE INSTRUMENTO AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL GUARDA DE MENOR E ALIMENTOS PEDIDO DE CONCESSÃO DE MEDIDA PROTETIVA PREVISTA NA LEI MARIA DA PENHA INCOMPETÊNCIA DAS VARAS DA FAMÍLIA COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER ARTS 14 E 33 DA LEI N 113402006 RESOLUÇÃO N 182006TJ DECISÃO MANTIDA RECURSO IMPROVIDO A Lei n 113402006 denominada Lei Maria da Penha determinou a criação de juizados especializados de violência doméstica e familiar contra a mulher competindolhe o julgamento das causas decorrentes de sua aplicação Nas comarcas em que ainda não foram criados tais juizados a competência recai sobre as varas criminais conforme disposição da norma de regência Instituído pela Resolução n 182006TJ o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher na comarca da Capital competelhe o exame do pedido de concessão de medida protetiva à mulher vítima de ameaças por seu excompanheiro SANTA CATARINA 2014 p01 O julgado anterior serviu como fundamento para o voto do relator e decisão no Agravo de Instrumento n 20150253968 de Joinville No caso em tela a agravante asseverou que as Varas de Família possuem competência para aplicação das medidas protetivas da LMP nas ações de dissolução de união estável No entanto o Tribunal de Justiça de Santa Catarina decidiu pacificamente do qual extraise Na hipótese dos autos verificase que a demandante requereu a aplicação de medidas protetivas em ação de dissolução e reconhecimento de união estável em trâmite na Vara da Família da Comarca de JoinvilleSC de modo que acertada a decisão ao reconhecer a incompetência da Vara da Família para processamento e julgamento da medida protetiva Isso porque compete ao juízo criminal em ação própria a adoção de medidas protetivas e de urgência no intuito de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher de modo que não poderia a agravante pleitear medida de competência criminal nos autos da ação de dissolução e reconhecimento de união estável Dessarte a aplicação das medidas protetivas é de competência do juízo criminal nas comarcas em que não houver Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher conforme se infere dos artigos 14 e Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 56 33 da Lei n 113402006 motivo pelo qual mantém a decisão profligada SANTA CATARINA 2016 p 06 grifo nosso Desta forma cumpre ressaltar a importância da manutenção familiar das mulheres e dos filhos nos casos de violência como se exibirá a seguir bem como a fixação de medidas protetivas de urgência de rearranjo familiar observandose a resistência doas magistradosas de primeira instância em não aplicar as medidas bem como as devidas consequências acerca do não deferimento No Agravo de Instrumento n 40251187120178240000 o requerente almejou a revogação da medida protetiva de afastamento do lar deferida em primeiro grau O caso é referente ao pai que supostamente haveria aplicado querosene na filha de 12 doze anos causandolhe queimaduras de primeiro grau na face e no ombro Neste caso foi aplicada a LMP e não o Estatuto da Criança e Adolescente Tanto a mãe quanto o pai da criança postularam pela revogação da medida protetiva concedida Em sede recursal o agravante alega que não passou de um acidente devido a realização de simpatia também ressaltando que a filha sofre com o afastamento do genitor SANTA CATARINA 2018 Pois bem o fato anteriormente explanado ocorreu na Comarca de Urussanga Santa Catarina e se refere a um caso de violência ocorrida no âmbito familiar Caso fossem deferidas medidas protetivas de rearranjo familiar7 nesta situação8 de vulnerabilidade da adolescente o desfecho do processo e da apelação poderiam ter sido outros ao menos haveria sido garantida condições financeiras e de guarda que em hipótese poderiam propiciar condições para a ruptura da relação Primeiro porque regulamentado a restrição de visitas da filha em situação de violência automaticamente concederia a guarda unilateral da mãe Em segundo porque a mãe responsável pela subsistência familiar neste lapso temporal de afastamento do lar do agressor deveria contar com a fixação de alimentos provisionais tendo em vista a situação familiar e as lesões sofridas pela filha que provavelmente ensejaram despesas Portanto o que se denota é uma despreocupação em relação a manutenção desta família Desse modo evidenciase um confronto entre o Judiciário que afasta o agressor do lar mas não regulamenta questões da entidade familiar Nesse caso como a mulher requereu medidas protetivas em outros autos contra o mesmo agressor é nítida a necessidade de se conceder as 7 Referentes à restrição de visitas e alimentos provisionais 8 É importante esclarecer que neste caso a criança menor de 12 doze anos está em situação de violência e é filha do agressor fruto de uma relação conjugal No entanto observase que a mãe também já requereu medidas protetivas contra o cônjuge o mesmo agressor da filha Com o afastamento do agressor do lar a mãe ficou responsável pela subsistência e neste caso não havendo regulamentação de visitas muito menos de alimentos a mãe devido a dependência financeira emocional requer que o cônjuge retorne ao lar utilizandose do argumento de que a filha estaria sofrendo com a ausência Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 57 medidas de rearranjo familiar porque as práticas de violência são reiteradas e a mulher ao que parece encontrase em uma situação e dependência do agressor SANTA CATARINA 2018 A partir desse ponto da decisão extraemse as partes relevantes Verificase outrossim que já tramita em desfavor do agravante a Ação Penal n 00018155620178240078 na qual lhe é imputada a prática do delito previsto no 129 9º do Código Penal com incidência da Lei n 1134006 Tudo isso revela sem sombra de dívidas a real gravidade dos fatos apurados e sinaliza a necessidade da concessão da medida de afastamento Por outro enfoque ainda que a também ofendida SSCT genitora da vítima MSCT tenha desistido de prosseguir com as medidas protetivas noticiando à p 32 que a filha estaria sofrendo demasiadamente com o afastamento do pai inviável ao menos por ora a cassação da decisão no que tange à menor SANTA CATARINA 2018 p 06 grifo nosso Portanto a concessão unicamente de medida protetiva de afastamento do lar nesta situação não é eficaz inclusive por menção do Relator ao ressaltar a gravidade do caso mereceria análise instantânea de aplicação de outras medidas protetivas principalmente àquelas que regulam as famílias Ainda a respeito da guarda dos filhos principalmente nos casos de relações conjugais em que as mulheres sofrem muitas vezes atos de violência omitindose da situação para o sustento dos filhos não se pode forçar uma convivência entre a mulher em situação de violência e o cônjuge por causa de seus filhos até mesmo causando a esses impactos irrecuperáveis já que em regra presenciam as cenas Neste ínterim é preciso destacar que a competência híbrida não é uma realidade de muitas Comarcas isto porque em diversas localidades não há a implementação de Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar e as Varas Criminais por vezes não deferem as medidas protetivas de rearranjo familiar enviandoas para as Varas de Família Contudo quando os casos são enviados para uma Vara de Família por exemplo estas não estão preparadas para atender as mulheres em situação de violência Em vista disso os processos referentes a LMP quando presentes nas Varas de Família seguem o rito do Código de Processo Civil com a designação da audiência de mediação na qual estarão presentes no ato tanto a mulher em situação de violência quanto o homem agressor procedimento que a LMP veda PARIZOTTO 2018 Sem dúvida submeter uma mulher em situação de violência a participar de uma audiência de mediação perante o agressor mesmo não sendo obrigatória essa realização resulta em duplicar o dano sofrido pelas mulheres Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 58 revitimizandoa além de trivializar a violência sofrida o que se constitui como uma medida de gestão mantenedora da família9 Esclarecese que nesses casos o modelo de solução de conflitos regido pelas Varas de Família não atende às particularidades da violência doméstica e familiar com base em gênero Acaso houvessem as audiências híbridas determinadas pela LMP aos Juizados Criminais os Magistrados poderiam arbitrar amplamente medidas protetivas cíveis e criminais alcançando resultados céleres à mulher que está vivenciado uma situação de violência PARIZOTTO 2018 Com efeito a gestão mantedora da família nas decisões é um obstáculo para o uso de medidas fundamentais na proteção das mulheres É uma forma de reproduzir a violência contra as mulheres e implica em ato de manutençãoexteriorização de discriminação Desta forma conforme elenca Vieira 2016 p 32 uma hipótese para explicar a resistência dosas magistradosas em deferir as medidas protetivas de rearranjo familiar e patrimonial remete a uma possível gestão patriarcal da família na resposta judicial à violência doméstica ANIS 2015 No que tange a defesa dos direitos humanos das mulheres importa evidenciar as recomendações internacionais sobre o tema Nesse sentido o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres CEDAW emitiu a Recomendação Geral 33 O conteúdo dessa Recomendação que está incluído no texto da CEDAW trata acerca do significado de acesso à justiça para as mulheres como por exemplo a valoração da credibilidade e do peso dado às vozes femininas notadamente nos argumentos e depoimentos das mulheres como partes e testemunhas ONU 2015 Ou seja o descrédito judicial conferido às palavras das mulheres em situação de violência quando se apresentam em juízo seja quando não são ouvidas ou quando se exigem provas adicionais para validar o que dizem especialmente em uma decisão de urgência e temporária implica em clara violação dos direitos humanos previstos no conteúdo da CEDAW Ainda neste ponto cumpre ressaltar também a importância das disposições específicas para as mulheres em situação de violência como por exemplo as Regras de Brasília Sobre Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade aprovadas na XIV Conferência Judicial Iberoamericana as quais orientam o judiciário a alertarem as mulheres em especial 9 O termo gestão mantedora da família também pode ser traduzido como familialismo ANIS 2015 e gestão normalizadora da família VIEIRA 2016 remetendo ao objetivo dosas magistradosas de não interferir na ordem doméstica e nas relações de conjugalidade através da não concessão de medidas protetivas de urgência de cunho civil Esse termo foi definido por Vieira 2016 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 59 nos casos de violência doméstica familiar sobres as decisões judiciais que possam lhes trazer riscos ou que interfiram em sua segurança Sendo portanto tanto o esclarecimento quanto as informações sobre os processos jurisdicionais um fator importante para efetivação do acesso à justiça das mulheres em situações de vulnerabilidade CONFERÊNCIA JUDICIAL IBERO AMERICANA 2008 Deste modo as diretrizes as disposições específicas e o objetivo da recomendação são importantes para ressaltarem principalmente o acesso à justiça das mulheres em situação de violência já que o não deferimento das medidas protetivas de rearranjo familiar as conduzem a terem que ingressar em outros juízos com outras ações para terem êxito em seus pedidos causandolhes prejuízos e resultando em revitimização Podese avultar também a questão das Delegacias da Mulher em muitos casos não há menção por estas delegacias sobre as medidas protetivas de urgência de alimentos provisionais e de restrição de visitas Em vários casos o atendimento inicial não esclarece quanto a possibilidade de requerimento ou deferimento pelo Juízo BELLOQUE 2011 PASINATO 2011 Ademais o acesso à justiça para as mulheres em situação de violência pode ser obstaculizado devido a falta de conhecimento acerca de seus direitos e da legislação que as ampara É nesse ponto que se destaca a necessidade de avanços na educação que deve ser orientada pela perspectiva de gênero Da análise dos relatórios periódicos dos Estados Partes o Comitê CEDAW verificou a falha dos Estados na garantia de acesso à informação das pessoas sobre os direitos humanos das mulheres principalmente no ponto de não discriminação e igualdade ONU 2015 Diante desse cenário considerase que o não deferimento de medidas protetivas de urgência traz consequências negativas às mulheres e cria obstáculos na efetivação da Lei 1134006 As mulheres têm o acesso à justiça limitado e assim as questões de direito de família como a fixação de alimentos por exemplo como apontam as pesquisas não são aplicadas por meio de medidas protetivas o que exige que as mulheres recorram a outros Juízos por meio da proposição de novas demandas que ensejam custas e morosidade nas decisões E também porque nestes casos acabase reforçando o ciclo da violência a dependência emocional financeira e a decisão por conta dos filhos questões que dificultam a saída da mulher do relacionamento violento A partir deste ponto põese em questão a eficácia da LMP embora como apontado a lei contenha a previsão de diversas espécies de medidas protetivas de urgência bem como as de rearranjo familiar É preciso elucidar que de certa forma há uma recusa de boa parte dosas magistradosas na compreensão da Lei Maria da Penha como um sistema único que deve ter Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 60 por base de interpretação regras próprias bem como nas aplicações também As mulheres em situação de violência devem ser o centro e o foco da LMP e sua aplicação pelo Judiciário e magistradosas caso não o façam revelam uma resistência fundada na lógica jurídica tradicional opondose à lógica de proteção da mulher CAMPOS 2017 É preciso avançar na implementação de políticas públicas no combate à violência contra as mulheres medida que se faz de extrema importância pois entre os obstáculos encontrados pelas mulheres referentes ao acesso à justiça estão a falta de implementação de Unidades Judiciárias de Violência Doméstica atendimentos psicológicos e abrigamentos ocorridos devido ao contingenciamento econômico e motivos políticos o que têm gerado a manutenção das desigualdades e da violência LOPES et al 2016 CONSIDERAÇÕES FINAIS Indeferir as medidas de rearranjo familiar e conceder outros tipos de medidas é limitar a proteção das mulheres em situação de violência É ignorar que estas mulheres são sujeitos de direitos e precisam da proteção garantida pelas normas para a reorganização de suas casas e de seus recursos É vedar os olhos às recomendações internacionais postas em prol do acesso das mulheres à justiça A insegurança dosas magistradosas em aplicar as medidas protetivas de rearranjo familiar implicam em violação ao direito a uma vida livre de violência e ao mesmo tempo violam a garantia de acesso à justiça pois no mais das vezes desconsideram as palavras das mulheres o que enfraquece a aplicação da LMP É preciso que o Poder Judiciário como um todo compreenda o propósito preventivo da LMP em especial focado nas medidas protetivas de urgência Essas sem dúvida constituemse em um rico instrumental para o enfrentamento da violência de gênero que é pautada na desigualdade de poder nas relações conjugais entre homens e mulheres Reconhecer que há uma desigualdade de gênero na sociedade brasileira atual que resulta em grave assimetria de poder nas relações sociais e conjugais é a base para a aplicação adequada e completa das medidas protetivas Os altos índices de indeferimento das medidas protetivas de rearranjo familiar como as de alimentos provisionais e a restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores expressa a dificuldade que o Poder Judiciário tem de modificar a gestão normalizadora da família Esses indeferimentos além de violarem os ditames protetivos da mulher e preventivos de novas práticas de violência previstos na LMP também servem de obstáculo ao acesso à justiça das mulheres que terão que buscar um defensor e se submeter a propor ação específica na Vara de Família Isso representa uma forma de resistência aos ditames da LMP e dificulta o Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 61 rompimento do ciclo de violência a que as mulheres estão sujeitas o que indiretamente as incentiva a permanecer nas relações violentas Observase também que o rito proposto nas Varas de Família tende a seguir o disposto no Código de Processo Civil o qual ignora as vulnerabilidades resultantes da prática da violência de gênero no âmbito conjugal e expõe as mulheres à situações constrangedoras como o é a participação em sessão de mediação prática rejeitada pela LMP O diferencial da LMP não é a punição do agressor que bem ou mal encontra lastro legal no Código Penal desde 1940 em tipificações que podem ser aplicadas nos casos de violência doméstica e familiar inclusive em relações de conjugalidade A proteção das mulheres em situação de violência é um dos diferenciais da LMP Portanto o deferimento das medidas protetivas representam no mais das vezes o suporte necessário para o rompimento dos relacionamentos violentos ou seja em última instância as medidas protetivas podem salvar vidas e evitar maiores danos não apenas para as mulheres em situação de violência mas também para osas filhosas dependentes menores de 18 anos pessoas em formação que precisam igualmente de proteção e cuidado da lei Após treze anos de vigência da LMP permanece a luta para que seus instrumentos sejam de fato aplicados e assim seja possível desnaturalizar a violência contra as mulheres E essa proteção encontra seu principal emblema nas medidas protetivas de urgência que devem ser viabilizadas pelo Poder Judiciário de forma rápida e adequada REFERÊNCIAS ANIS Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero Quem somos Disponível em httpwwwanisorgbrsobre Acesso em 15 set 2018 ÁVILA Thiago Pierobom de Medidas protetivas da Lei Maria da Penha natureza jurídica e parâmetros decisórios Revista Brasileira de Ciências Criminais v 157 p 128 jul 2019 Disponível em httpswwwacademiaedu39986181MedidasprotetivasdaLeiMariadaPenhanaturez ajurC3ADdicaeparC3A2metrosdecisC3B3rios Acesso em 27 jul 2019 BELLOQUE Juliana Garcia Das medidas protetivas que obrigam o agressor artigos 22 In CAMPOS Carmen Hein de Lei Maria da Penha comentada em uma perspectivo jurídicafeminista Rio de Janeiro Lumen Juris 2011 p 307314 Disponível em httpthemisorgbrwpcontentuploads201504LMPcomentadaperspectivajuridico ferministapdf Acesso em 20 jan 2019 BRASIL Conselho Nacional de Justiça O Poder Judiciário na aplicação da Lei Maria da Penha 2018a Disponível em httpcnjjusbrfilespublicacoesarquivo5f271e3f54a853da92749ed051cf305918ead26dd2a b9cb18f8cb59165b61f27pdf Acesso em 11 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 62 BRASIL Lei n 10406 de 10 de janeiro de 2002 Institui o Código Civil Brasília DF 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MAGALHÃES A S FÉRESCARNEIRO T Conjugalidade e subjetividades contemporâneas o parceiro como instrumento de legitimação do eu Estados Gerais da Psicanálise Encontro Mundial 2 2003 Rio de Janeiro Anais Disponível em httpwwwestadosgeraisorgmundialrjdownload5aCarneiro39020903portpdf Acesso em 02 mai 2019 MENEGHEL Stela Nazareth et al Repercussões da Lei Maria da Penha no enfrentamento da violência de gênero Ciênc saúde coletiva Rio de Janeiro v 18 n 3 p 691700 mar 2013 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1413 81232013000300015lngennrmiso Acesso em 5 jul 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 63 OEA Organização dos Estados Americanos Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher Convenção de Belém do Pará 9 jun 1994 Disponível em httpwwwcidhorgBasicosPortuguesmBelemdoParahtm Acesso em 12 fev 2019 ONU Organização das Nações UnidasComitê Sobre a Eliminação da Discriminação Contra as Mulheres Recomendação Geral n 33 sobre o acesso das mulheres à justiça 2015 Disponível em httpsassetscompromissoeatitude ipgsfo2digitaloceanspacescom201602RecomendacaoGeraln33ComiteCEDAWpdf Acesso em 12 fev 2019 PARIZOTTO Natália Regina Violência doméstica de gênero e mediação de conflitos a reatualização do conservadorismo Serv Soc Soc São Paulo n 132 p 287305 maioago 2018 287 Disponível em httpdxdoiorg10159001016628142 Acesso em 020819 PASINATO Wânia Avanços e obstáculos na implementação da Lei 113402006 In CAMPOS Carmen Hein de org Lei Maria da Penha comentada na perspectiva jurídicofeminista Rio de Janeiro Lumen Juris 2011 p 119142 PASINATO Wânia Estudo de caso sobre o juizado de violência doméstica e familiar contra a mulher e a rede de serviços de CuiabáMato Grosso Cadernos Observe nº 2 Salvador Observe Observatório da Lei Maria da Penha NEIMUFBA 2009 103 p Disponível em httpsassetscompromissoeatitude ipgsfo2digitaloceanspacescom201208PASINATOEstudodeCasoJVDFM2010pdf Acesso em 20 ago 2019 RIO DE JANEIRO Estado Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro Diretoria de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça Relatório sobre medidas protetivas de urgência Rio de Janeiro 2016 Disponível em httpwwwportaldpgerjgovbrPortalsarovaimagemdpgepublicarquivosRelatorioMedid asProtetivaspdf Acesso em 06 jun 2019 SANTA CATARINA Tribunal de Justiça Agravo de Instrumento 20130687383SC Ação de dissolução de união estável guarda de menor e alimentos Pedido de concessão de medida protetiva prevista na lei maria da penha Incompetência das varas da família Competência dos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher Arts 14 e 33 da lei n 113402006 Resolução n 182006tj Decisão mantida Recurso improvido Agravante S S Agravado R C G Segunda Câmara de Direito Civil Relatora Janine Stiehler Martins 20 de fevereiro de 2014 Disponível em encurtadorcombrrAEU6 Acesso em 20 fev 2019 SANTA CATARINA Tribunal de Justiça Agravo de Instrumento n 20130559053SC Agravo de instrumento Lei maria da penha Medidas protetivas Indeferimento Posterior deferimento em ação de dissolução de sociedade conjugal Agravante M L P da F Agravado L M A P Quarta Câmara Criminal Relator Des Roberto Lucas Pacheco 14 de fevereiro de 2013 Disponível em httpsgoogl75rZHP Acesso em 20 fev 2019 SANTA CATARINA Tribunal de Justiça Agravo de Instrumento n 20150253968SC Agravo de instrumento Ação de reconhecimento e dissolução de união estável cc alimentos e pedido de aplicação de medidas protetivas Agravante E C S Agravada F A Segunda Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 64 Câmara de Direito Civil Relator Des Sebastião César Evangelista 10 de Março de 2016 Disponível em httpsgoogl9iUVkf Acesso em 20 fev 2019 SANTA CATARINA Tribunal de Justiça Agravo de Instrumento n 4025118712017SC Recurso interposto contra decisão que indeferiu o pedido de revogação das medidas protetivas de urgência lei n 113402006 aplicadas em desfavor do agravante com relação à filha Genitor que supostamente aplicou querosene na menor provocandolhe queimaduras de primeiro grau na face e no ombro Agravante A C T Agravado Ministério Público do Estado de Santa Catarina Terceira Câmara Criminal Relator Leopoldo Augusto Brüggemann 18 de março de 2018 Disponível em httpsgoogl1R544U Acesso em 20 fev 2019 VIEIRA Sinara Gumieri Lei Maria da Penha e Gestão Normalizadora da Família um estudo sobre a violência doméstica judicializada no Distrito Federal entre 2006 e 2012 Dissertação Mestrado em Direito Faculdade de Direito da Universidade de Brasília 2016 Disponível em httprepositoriounbbrbitstream104821993112016SinaraGumieriVieirapdf Acesso em 20 jul 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 65 STALKING SOBRE A PERTINÊNCIA DE UMA LEI ESPECÍFICA A PARTIR DA ANÁLISE DE CASOS JURISPRUDENCIAIS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA Marja Mangili Laurindo1 Karine Grassi2 RESUMO O presente trabalho se propôs a perguntar de que forma tem aparecido casos de stalking sofrido por mulheres no Tribunal de Justiça de Santa Catarina TJSC e como o mesmo tem decido sobre Para isso foram analisadas as apelações encontradas em consulta à Jurisprudência do TJSC em pesquisa ao site do Tribunal O objetivo da escolha dos critérios para a leitura dos casos se pautou na necessidade de compreender como tem sido propostas e julgadas as ações na ausência de lei específica a fim de compreender se há necessidade de legislação específica Verificouse que a ausência de critérios seguros de resolução e de compreensão do fenômeno em sua especificidade que criam um cenário jurídico inseguro de sentenças variáveis concluindo ser necessária e pertinente uma legislação específica para o stalking a fim de que se separe de outros tipos de demanda e adquira sua própria especificidade Palavraschave Stalking Criminalização Tribunal de Justiça de Santa Catarina Jurisprudência INTRODUÇÃO Há poucos dados sobre stalking no Brasil No entanto o termo vem sendo usado há muitos anos e tratado por vários países como sério objeto de estudo psicossocial e jurídico Há alguns estudos pontuais no Brasil que vão em consonância com os dados apontados por estudos estrangeiros a maioria das vítimas são mulheres Além disso o dano psicológico causado às vítimas desse gênero parece como em pesquisa apontada recentemente BOEN LOPES 2019 maior do que em comparação aos homens que sofreram stalking A jurisprudência do TJSC por meio de alguns instrumentos de busca permite inferir algumas leituras sobre a situação atual no que diz respeito em primeiro lugar ao tipo de demanda jurídica que é feita ao Tribunal de Justiça e em segundo lugar de que forma são 1 Doutoranda em Direito pelo Programa de Pósgraduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina PPGDUFSC Bolsista CNPq Mestra em Direito 2017 pelo Programa de Pósgraduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina PPGDUFSC Graduada em Direito 2015 pela Universidade Federal de Santa Catarina Contato marjamangiligmailcom 2 Doutoranda em Direito pelo Programa de Pósgraduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina PPGDUFSC Bolsista Capes Mestra em Direito 2015 pelo Programa de Pósgraduação em Direito da Universidade de Caxias do Sul PPGDirUCS Graduada em Direito 2012 pela Universidade do Planalto Catarinense Uniplac Contato grassikggmailcom Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 66 decididos os casos Dá ademais indicativos sobre como o stalking está socialmente posicionado e como se relaciona com outros tipos de violência Não há no Brasil qualquer lei que puna de acordo com as especificidades do ato o stalking Atualmente costumase punir atos que perturbem a tranquilidade da vítima conforme dispõe o art 65 do DecretoLei 3688 de 1941 Lei das Contravenções Penais Molestar alguém ou perturbarlhe a tranquilidade por acinte ou por motivo reprovável Pena prisão simples de quinze dias a dois meses ou multa de duzentos mil réis a dois contos de réis A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou no dia 14 de agosto de 2019 dois projetos de lei que criminalizam perseguição física ou virtual tornando o seu tipo mais certo e endurecendo a sanção que passaria da prisão simples de quinze dias a dois meses para possivelmente de no mínimo seis meses até três anos com ou sem possibilidade de multa conforme o projeto Em atenção a isso procurase compreender se há necessidade e pertinência de uma legislação específica para o stalking a partir da análise dos processos encontrados na sessão de Jurisprudência do site do Tribunal de Justiça de Santa Catarina com foco nos casos de stalking ou perseguição em que a vítima é mulher critério que será justificado no tópico 3 Não foi encontrada qualquer pesquisa de análise de jurisprudência desse Tribunal no mesmo sentido Acreditase que essa pesquisa possa contribuir em campo que necessita cada vez mais de estudos 1 O QUE É STALKING Entendido como perseguição obsessiva a palavra stalking está em sua origem associada à caça de animais NICOL 2006 e teria sido utilizada pela primeira vez com relação a pessoas em meados da década de 1970 no contexto da perseguição a famosos e por um serial killer estadunidense que teria se usado desse termo para se referir à caça de suas vítimas NICOL 2006 Nicol 2006 p 15 define stalking como uma constelação de comportamentos pelos quais um indivíduo inflige a outro intrusões e comunicações indesejadas repetidamente Segundo o mesmo autor uma definição precisa é difícil de ser alcançada porque normalmente não se constitui através de apenas um ato mas uma multiplicidades deles não sendo necessariamente cada um por si só ilegal NICOL 2006 p 15 Tal comportamento surge em situações em que o stalker foi frustrado de alguma maneira PINALS 2007 Diante de uma expectativa que não se concretizou agem indiferentemente ao consentimento e ao medo dos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 67 seus objetos de obsessão agindo de maneira a desconsiderar o direito do outro em nome de um direito que tem certeza possuir PINALS 2007 Tal conduta adota uma série de métodos de perseguição que persistem e se repetem de maneira indesejada podendo a aproximação ser física ou por meios de comunicação como cartas emails ou até mesmo sinais de que o stalker passou por perto de sua vítima NICOL 2006 p 17 A perseguição pode também vir em forma de flores As vítimas são induzidas diz Nicol a um estado de stress e medo constante de violência física que muito comumente se concretizam 2006 p 17 Pinals 2007 p 5 aponta para pelo menos três características um padrão de conduta indesejado pela vítima que se repete justamente pela imposição da vontade do stalker sobre o desejo do outro uma ameaça implícita ou explícita por fim a geração de medo da vítima No entanto os métodos de aproximação podem variar infinitamente podendo combinar atos legais e ilegais PATHÉ 2002 Pinals 2007 afirma que a perseguição causa sérios efeitos psicológicos nas vítimas e é normalmente anúncio de vários tipos de agressão e por isso os sistemas criminais tem a responsabilidade de controlar e prevenilos É muito comum que o stalking conduza a crimes como homicídio assédio sexual mas as penas talvez não mostrem o crime de stalking PINALS 2007 p 6 É natural que as vítimas desse tipo de perseguição se sintam preocupadas com a possibilidade de uso de outros tipos de violências seja contra si mesma contra seus animais ou sua propriedade PATHÉ 2002 Elas e as pessoas próximas a ela se tornam ansiosas e sentem que estão enlouquecendo manifestando sintomas de stress traumático Há também o sentimento indevido de culpa a vítima pensa no que poderia ter feito para causar tal situação Tal instabilidade pode causar comportamentos estranhos como afastamento do ambiente de trabalho de amigos e pode levar a pensamentos sobre como violentar o stalker ou tomar outras medidas drásticas PATHÉ 2002 Em muitos casos pode haver poucas evidências ou evidências dissimuladas de que está de fato ocorrendo tal situação Há na atividade do stalker uma intenção de se ocupar da vida da vítima de modo a parecer que há de fato um relacionamento amoroso ou envolvimento consentido A leitura dos casos disponibilizados pela jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina evidência tais afirmações como se verá no tópico seguinte 2 ANÁLISE DOS RESULTADOS DA PESQUISA À JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA 21 Procedimentos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 68 Como não há tipificação específica foram realizadas cinco tipos de consulta em busca avançada de jurisprudência no site do TJSC Em um primeiro momento na procura por resultados pela palavra stalking encontrouse 2 resultados relativos ao mesmo caso que será descrito mais à frente Em seguida procurouse pelas palavras stalk e stalker e para essas expressões não se encontrou resultado Em seguida procurouse pela perseguição com exclusão das seguintes palavras patrimônio furto crédito débito política homicídio tráfico policial roubo administrativa servidor e usucapião Essa pesquisa trouxe 143 resultados Além disso sabendose ser comum a aplicação do art 65 do Decreto Lei 368841 pesquisouse tais palavras com o acréscimo das expressões molestar e perturbar Foram encontrados 385 resultados Foram analisados portanto 530 resultados que aparecem em um primeiro momento no formato de ementas descritivas que indicam às vezes com sucesso outras não o conteúdo do processo Através da leitura individual das ementas foi possível a aproximação quanto ao objeto de estudo descartandose eventualmente determinados termos já de início o que será justificado no relato de casa pesquisa Também foi possível inferir de acordo com o inteiro teor dos julgados sobre o que se tratava A análise dos processos a partir desse ponto se deu de maneira ampla e foram colhidos apenas os casos que cabem nos seguintes critérios a Foram excluídos da análise processos em que a vítima não obstante ter sofrido com o assédio do stalker também sofreu violência doméstica casos em que o agressor é exnamorado exmarido etc ou violência sexual Isso porque nesses casos normalmente o pedido de consideração de perturbação de tranquilidade relativa à contravenção do art 65 do Decreto Lei 368841 era considerada indevida em detrimento na grande maioria dos casos dos crimes do Código Penal ou da Lei Maria da Penha b Não foram considerados os processos relativos à estupro de vulnerável cujos pedidos incluíam muitas vezes o enquadramento da contravenção de perturbação de tranquilidade normalmente rejeitada pelos juízes pela sobreposição dos crimes em detrimento da contravenção c Não foram considerados os processos de caráter político trabalhista negocial policial etc isto é processos em que não figurasse uma mulher adulta como vítima de um homem stalker em situação cuja justificativa não é mediada diretamente por trabalho compra etc isto é cujos motivos são normalmente relacionados à rejeição amorosa ou sexual d Não foram considerados os processos relativos à perseguição em que apenas homens configuravam como alvo por alguns motivos não são as maiores vítimas de stalking conforme Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 69 dados FINCH 20013 são menos impactados psicologicamente e fisicamente por eventual stalking os resultados que foram encontrados nas pesquisas estavam associados exclusivamente aos casos elencados no item c No entanto há casos em que os cônjuges sofreram consequências do stalking às suas companheiras O objetivo da escolha de tais critérios para a leitura dos casos se pauta na ideia de que é necessária e pertinente uma legislação específica para o stalking isto é que a legislação atual não dá conta de proteger a mulher de assédios antes que se transformem em violência física contra ela 22 Resultados da pesquisa pela palavra stalking Apenas dois resultados surgiram dessa busca sendo relativos ao mesmo caso BRASIL 2017 Foi o único caso o Acórdão n 00041178220118240041 encontrado na jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que fez referência direta ao termo inglês e trouxe seu conceito A perseguição obsessiva e insistente de alguém é conhecida pelo termo stalking derivada do verbo inglês to stalk que pode ser livremente traduzido como seguir ficar à espera referindose à ação dos animais em busca de suas presas A conduta é uma forma de violência psicológica em que a vítima sentese subjugada e tolhida em sua liberdade Tratandose de violência de gênero a Lei n 1134006 prevê expressamente a vigilância constante e a perseguição contumaz como formas de violação aos direitos humanos das mulheres arts 6º e 7º III Acórdão n 0004117 8220118240041 BRASIL 2017 p 17 Nesta decisão afirmase que tal comportamento costumase enquadrar como contravenção prevista pelo DecretoLei de 1941 No entanto se a perseguição obsessiva e insistente é de tal gravidade a ponto de causar ofensa à integridade corporal ou à saúde da vítima a prática será o modo de execução do crime previsto no art 129 do CP que ao contrário do que sustentado nas razões não se configura apenas por meio de agressão física mas também de violência psicológica e moral Acórdão n 0004117 8220118240041 BRASIL 2017 p 17 Em uma tentativa de incluir no conceito de saúde também a saúde mental da vítima de stalking o magistrado considera a aplicação do art 129 do Código Penal a fim de trazer o problema para além de uma mera perturbação de tranquilidade mas uma conduta que pode 3 Em tradução livre A ênfase da pesquisa empírica existente sobre vítimas de perseguição quase uniformemente aponta que stalking é um crime cometido por homens contra mulheres Original The emphasis of existing empirical research into stalking victimisation almost uniformly asserts that stalking is a crime committed by men against women FINCH 2011 p 6 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 70 causar de fato danos psicológicos que estariam no espectro de proteção da norma não se tratando de interpretação extensiva como afirmado nas razões recursais No presente caso a mulher que sofreu perseguição era sobrinha do sujeito No caso foi devidamente descrito na inicial que a conduta do apelante ofendeu a saúde mental e psicológica da vítima Como esta era sobrinha por afinidade do réu a situação enquadrouse no 9º do referido dispositivo Levantouse também o art 7 da Lei Maria da Penha que dentro do contexto familiar e doméstico protege contra perseguição contumaz BRASIL 2006 Foi questionado durante o processo se seria preciso provas por meio de exame de corpo de delito para verifica danos psicológicos BRASIL 2017 pois a Defensoria Pública encarregada da defesa do réu entendeu em seu recurso dentro outras coisas que o crime do art 129 do Código Penal não se aplicaria já que não houve lesões físicas BRASIL 2017 Sobre o argumento de que faltavam provas o juízo considerou que a palavra da vítima seria o fator mais importante a ser analisado nos casos de violência doméstica Assim afirmou o relator em divergência à procuradoria de Justiça que exigir outras provas além das constantes nos autos como o exame de corpo de delito impossibilitaria a própria efetivação da norma protetiva Lei n 1134006 e implicaria uma nova vitimização de S É o caso portanto de flexibilizarse a exigência à luz do art 167 do CPP Isso porque os reflexos da conduta do réu e os danos dela decorrentes são perceptíveis nos próprios documentos acostados aos autos e no relato detalhado feito pela ofendida em seu depoimento Acórdão n 00041178220118240041 BRASIL 2017 p 18 A vítima havia desenvolvido em sintomas físicos o quadro de bruxismo e por conta do assédio por emails e por mensagens indiretas a conhecidos em comum mesmo após reiteradas negativas por parte da autora da ação o réu permaneceu perseguindo e mais difamando seu nome o que não é segundo apontam as pesquisas incomum dentre os stalkers A autora chegou a se mudar para a Índia no intuito de se afastar do sujeito Conforme depoimento da vítima estaria emocionalmente frágil abalada o que afetou seus estudos e trabalho bem como amizades e família o que constituiu enquadramento segundo o TJ no art 129 do CP BRASIL 2017 É interessante ainda analisar o voto vencido do Excelentíssimo Desembargador Sérgio Rizelo De acordo com a denúncia M S B teria ofendido a saúde mentalpsicológica da Vítima S L K encaminhando a ela uma série de emails com conteúdo impertinente com a intenção de manter com a Ofendida relacionamento amoroso É inconteste pois que a integridade física de S L K não foi afetada pelas atitudes do Denunciado Sua anatomia Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 71 remanesceu intacta mesmo após as investidas de M S B A lesão seria imaterial concernente à saúde mental e psíquica da Vítima E é justamente neste ponto que a impropriedade passa a existir na minha compreensão A adequação típica foi feita em razão da expressão saúde no caput do art 129 do Código Penal Mas com o devido respeito não acredito que a norma tenha sido criada com o escopo de proteger a incolumidade psíquica nestes termos O propósito da norma pois é proteger a incolumidade física e psíquica dos cidadãos proibindo a prática de condutas que provoquem modificações em suas características tanto anatômicas quanto psicológicas Por isso é que se pune o indivíduo que amputa violentamente o membro da vítima assim como aquele que causa hematoma no ofendido mas não se pune não nos termos do art 129 do Código Penal o sujeito que desfere golpe que malgrado atinja o oponente não lhe deixa marcas visíveis De modo semelhante se a conduta do agente causar abalo anímico que alcance nível constatável que tenha influência aferível na existência da vítima e provoque alteração de função fisiológica do organismo é de se reconhecer a ocorrência do crime por ofensa à saúde Mas o impacto anímico deve ser passível de delimitação precisa como se exige no caso de lesão física Soame perfeitamente possível reconhecer a ocorrência do delito de lesão corporal se o ofendido em razão da conduta do agente desenvolve transtorno de estresse póstraumático bulimia neurastenia síndrome de Briquet fuga dissociativa ou qualquer outro distúrbio da mesma forma que uma equimose um hematoma um corte ou uma fratura podem permitir o decreto condenatório Isso com a devida vênia configura a contravenção penal de perturbação da tranquilidade e só BRASIL Acórdão n 00041178220118240041 2017 p 27 Por fim apesar de vencido o voto o autor da apelação foi imputado da acusação com relação ao art 129 do Código Penal por ter sido atestada sua insanidade mental 23 Pesquisa relacionada à palavra perseguição Nessa pesquisa encontrouse uma apelação BRASIL 2014 que resultou em condenação por danos morais para a autora Apesar de ser evidente que todo o caso se trata de stalking inclusive com testemunhas vítimas do mesmo réu apenas em um momento da sentença se fala sobre sensação de angústia e perseguição da autora No caso o stalker foi responsabilizado civilmente pelo fato já que segundo a decisão o dano moral cobre prejuízos de natureza relacionada ao físico e ao psicológico levandose em consideração que a vítima passou a viver estado de pânico com a perseguição de um desconhecido e aos detalhes que conhecia sobre sua vida e de sua família Nesse caso o stalker foi apenas posteriormente descoberto porque se utilizava de números sem identificação ou perfis falsos nas redes sociais o que não impediu que o depoimento da vítima se tornasse suficiente A reparação por danos morais foram aplicados a fim de compensar o dano psicológico e alertar o stalker sobre sua conduta e a fixação da reparação por não ter referência legal foi feita conforme a razoabilidade do Tribunal Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 72 Em outro caso BRASIL 2013 a perseguição do exnamorado de 8 anos da autora nos lugares em que ela frequentava acompanhada por ofensas públicas como vagabunda adicionadas a caretas tomandolhe pelo braço foi tratada como contravenção penal ou delito de menor potencial ofensivo isto é julgada de acordo com o art 65 da Lei de Contravenções Penais Nesse caso também entendeuse que ainda que o réu não tenha sido visto por testemunhas praticando tais atos a palavra da vítima se sobrepunha 24 Pesquisa relacionada ao art 65 do DecretoLei 368841 A perseguição que a vítima sofre muitas vezes aparece como algo decorrente de outras situações ou crimes como estupro ameaça BRASIL 2011a e outras violências Nesse sentido os processos acabam por vezes desconsiderando o art 65 da Lei de 1941 por considerarem serem as mulheres vítimas de outros atos associados a essa conduta Verificouse que há portanto poucos casos em que há punição exclusivamente a partir desse artigo ou ele é suprimido por outros tipos penais ou é administrado em consonância com eles BRASIL 2015 Em um dos casos a Lei de Contravenções Penais foi utilizada em associação à Lei Maria da Penha BRASIL 2018 No caso o réu recorreu pela inconstitucionalidade da aplicação da Lei de 1941 que foi julgada improcedente Segundo o Acórdão a tipificação da mencionada contravenção necessita prova de elemento subjetivo resultante de perturbação da vítima por acinte ou motivo reprovável circunstância evidenciada no caso porque o acusado insistentemente perturbou a vítima procurandoa no trabalho bloqueando seu caminho fazendo declarações amorosas e entregando presentes que sempre foram recusados mesmo após boletim de ocorrência e medida protetiva No geral as sentenças analisadas foram uníssonas quanto à força da palavra da vítima BRASIL 2011b BRASIL 2012 CONSIDERAÇÕES FINAIS A leitura dos casos encontrados na jurisprudência do Tribunal de Justiça indica que há uma série de formas de apresentar casos em que haja a ocorrência de stalking e casos em que a perseguição se mesclou a outros tipos de violência Na ausência de lei específica os advogados e os juízes se dirigem à Lei de Contravenções Penais que superada em muitos sentidos por avanços que possibilitaram a Lei Maria da Penha fica evidentemente aquém de garantir proporcionalmente reparação de danos Nos casos em que a perseguição foi considerada como Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 73 um elemento foram adicionadas outras normas que não servem imediatamente às particularidades do stalking Além disso quando é verificada a sobreveniência de violência física o stalking por vezes é ignorado Através da análise foi possível verificar que a grande maioria dos casos traz outros tipos de violência como as mencionadas acima raramente os processos pelo menos os que chegam à segunda instância judicial tratam somente de stalking É possível pensar em algumas hipóteses É muito provável que esse tipo de demanda não seja judicializado em razão da pouca credibilidade de uma denúncia contra homens que insistam obsessivamente tendo em vista que essa postura é muitas vezes considerada socialmente normal ou ainda que uma mulher que diz não se fez de difícil ou não soube dizer não Nesse sentido até mesmo a denúncia na delegacia pode repelir a vítima É possível também que as mulheres que atravessando os obstáculos dos costumes que muitas vezes chegam até os procedimentos das Delegacias de Polícia acabem em Audiências de Conciliação pouco conciliatórias Questões porém a serem trabalhadas em outro momento Parece que dificilmente o caso será judicializado até que culmine em violência física É preciso aparentemente que haja elementos como ameaças de morte lesões físicas estupros etc a fim de que venham finalmente à tona e possam seus perpetrantes correrem o risco de sofrer algum tipo de sanção No caso encontrado na pesquisa pela palavra stalking observase que há ainda de acordo com o voto vencido para o único processo encontrado uma resistência de considerar os possíveis e prováveis danos psicológicos como medo repulsa opressão vergonha causados pelo stalker Foi nesse sentido que foram escolhidos os critérios para analisar os processos é preciso ter uma dimensão sobre como é recebida a acusação de perseguição antes que se transforme em outros tipos de violência devido a sua própria nocividade pelo Judiciário bem como os seus números as suas minúcias procurar o elo entre o social e o judicial que criou um espaço vazio e uma proteção jurídica débil cuja extensão vai dos procedimentos à ausência de lei específica para mulheres que sofrem ou sofreram por conta disso Será muito pertinente e necessária uma legislação que tipifique o stalking REFERÊNCIAS BOEN Mariana T LOPES Fernanda L Vitimização por stalking um estudo sobre a prevalência em estudantes universitários Revista Estudos Feministas vol27 n 2 Florianópolis 2019 Disponível em Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 74 httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0104 026X2019000200218lngptnrmisotlngpt Acesso em 25 ago 2019 BRASIL CÓDIGO PENAL Brasília Senado Federal Coordenação de Edições Técnicas 2017 138 p Disponível em httpswww2senadolegbrbdsfbitstreamhandleid529748codigopenal1edpdfsequence 1 Acesso em 25 ago 2019 BRASIL LEI DAS CONTRAVENÇÕES PENAIS DecretoLei nº 3688 de 3 de outubro de 1941 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03decretoleidel3688htm Acesso em 25 ago 2019 BRASIL LEI MARIA DA PENHA Lei N11340 de 7 de Agosto de 2006 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Ato201920222019LeiL13827htm Acesso em 25 ago 2019 BRASIL TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA APELAÇÃO CRIMINAL 20110267556 Acórdão contravenção penal de perturbação da tranquilidade decretolei n 368841 art 65 alegada insuficiência probatória materialidade e autoria comprovadas palavras da vítima corroboradas pelo depoimentos de testemunhas e em consonância com a realidade dos autos absolvição inviável condenação mantida recurso desprovido Relator Salete Silva Sommariva Origem Timbó Orgão Julgador Segunda Câmara Criminal Julgado em 29112011 2011a Disponível em httpbuscatjscjusbrjurisprudenciaformularioancora Acesso em 25 ago 2019 BRASIL TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA APELAÇAO CRIMINAL 20110348760 Acórdão violência doméstica ameaça art 147 do código penal pleito absolutório materialidade e autoria devidamente comprovadas declarações firmes e coerentes da ofendida corroboradas pelos demais elementos de prova agente em estado emocional exaltado crime que se consuma no momento em que a ofensa alcança a vítima bastando seu potencial intimidador desclassificação para a contravenção penal de perturbação da tranquilidade art 65 da lei n 368841 delito de ameaça configurado inviabilidade recurso não provido Relator Moacyr de Moraes Lima Filho Origem Brusque Orgão Julgador Terceira Câmara Criminal Julgado em 23082011 2011b Disponível em httpbuscatjscjusbrjurisprudenciaformularioancora Acesso em 25 ago 2019 BRASIL TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA APELAÇÃO CRIMINAL 20120547378 Acórdão Crime contra a liberdade individual Ameaça art 147 cc art 61 ii f ambos do cp Almejada absolvição ao argumento de ausência de provas e não caracterização do delito Palavras da vítima que narram ter o denunciado a ameaçado de morte verbalmente e por meio eletrônico Versão confirmada por testemunhas Conjunto probatório apto a demonstrar a materialidade a autoria e a caracterização do crime Condenação mantida Relator Alexandre dIvanenko Origem Lages Orgão Julgador Terceira Câmara Criminal Julgado em 04092012 Disponível em httpbuscatjscjusbrjurisprudenciaformularioancora Acesso em 25 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 75 BRASIL TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA APELAÇÃO CRIMINAL 20130131910 Acórdão contravenção penal Delito de menor potencial ofensivo Trâmite no juízo comum Competência para o julgamento do recurso de apelação da câmara criminal Art 65 do decretolei n 368841 Pretensão absolutória Inviabilidade Materialidade e autoria devidamente comprovadas Prova oral que dá amparo às declarações da vítima Réu que após rompimento de namoro passou a perturbar dolosamente a tranquilidade da ofendida com perseguição em bailes palavras grosseiras caretas etc Condenação mantida Relator Jorge Schaefer Martins Origem Campo Erê Órgão Julgador Quarta Câmara Criminal Julgado em 15082013 Disponível em httpbuscatjscjusbrjurisprudenciaformularioancora Acesso em 25 ago 2019 BRASIL TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA APELAÇÃO CÍVEL 20130823422 Acórdão Responsabilidade civil e processual civil Ações ordinárias de indenização por dano moral Supostas ligações efetuadas pelo réu sem identificação de número assediando sexualmente a primeira autora Réu que teria ainda em uma das ligações afirmado que o esposo da autora segundo autor estaria mantendo relações extraconjugais Fatos que teriam causado abalo na relação conjugal dos autores bem como acarretado sensação de angústia e perseguição à primeira autora Sentença de procedência Irresignação Alegação de que não restaram comprovados os fatos constitutivos do direito dos autores Afirmação ademais de que não poderia o magistrado formar sua convicção a partir de presunções ou exclusivamente do depoimento pessoal da autora Insubsistência Inexistência de impedimento ao magistrado para formar sua convencimento com base em prova indiciária Inteligência do art 335 do cpc Depoimento pessoal ademais que também é fonte de prova Magistrado que segundo seu livre convencimento motivado pode utilizar o depoimento como fonte probatória inclusive em benefício da própria depoente Doutrina Existência nos autos de indícios suficientes para formar o convencimento acerca da veracidade das afirmações de fato delineadas na exordial Relator Marcus Tulio Sartorato Origem Araranguá Órgão julgador Terceira câmara de Direito Civil Julgado em 11022014 Disponível em httpbuscatjscjusbrjurisprudenciaformularioancora Acesso em 25 ago 2019 BRASIL TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA APELAÇÃO CRIMINAL 20140797027 Acórdão Ameaça art 147 caput do código penal por três vezes e contravenção de perturbação da tranquilidade art 65 do decretolei n 368841 em concurso material art 69 do código penal com incidência da lei n 1134006 Agente que profere reiteradas ameaças de morte contra excompanheira Palavras da vítima coerentes e corroboradas pelos demais elementos de prova Materialidade e autoria do delito de ameaça devidamente demonstradas Crime formal Consumação no momento em que a ofensa alcança a vítima bastando seu potencial intimidador Contravenção de perturbação da tranquilidade igualmente comprovada Agente que enviou numerosas e seguidas mensagens de texto ao telefone de sua excompanheira e rondou por algumas vezes seu local de trabalho alertando a de sua presença perturbandolhe o sossego Absolvição inviável Condenação que se impõe SENTENÇA MANTIDA RECURSO DESPROVIDO Relator Paulo Roberto Sartorato Origem Caçador Orgão Julgador Primeira Câmara Criminal Julgado em 17032015 Disponível em httpbuscatjscjusbrjurisprudenciaformularioancora Acesso em 25 ago 2019 BRASIL TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA APELAÇÃO CRIMINAL 00041178220118240041 Acórdão crimes de lesão corporal no âmbito da violência doméstica cp art 129 9º cc lei n 1134006 art 7º ii e de desobediência cp art 330 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 76 sentença de absolvição imprópria Recurso da defesa Lesão corporal conduta que independe de agressão física violência psicológica perseguição obsessiva e insistente stalking que resulta em danos à saúde psicológica e emocional da vítima consequências suficientemente demonstradas pela prova oral e documental exame pericial dispensável absolvição própria inviável Relator Getúlio Corrêa Origem Mafra Orgão Julgador Segunda Câmara Criminal Julgado em 26092017 Disponível em httpbuscatjscjusbrjurisprudenciaformularioancora Acesso em 25 ago 2019 FINCH Emily The criminalisation of stalking constructing the problem and evaluating the solution Great Britain Cavendish Publishing 2001 NICOL Brian Stalking London Reaktion Books 2006 PATHÉ Michele Surviving Stalking United Kingdom Cambridge University Press 2002 PINALS Debra Stalking Psychiatric Perspectives and Practical Approaches Group for the Advancement of Psychiatry Committee on Psychiatry and the Law Edited by Debra A Pinals New York Oxford Univeersity Press 2007 VICK Mariana O que é stalking E por que ele pode virar crime no Brasil 16 ago 2019 Disponível em httpswwwnexojornalcombrexpresso20190816OqueC3A9 stalkingEporqueelepodevirarcrimenoBrasil Acesso em 20 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 77 TRANSFEMINICÍDIOS E A APLICAÇÃO DA QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO Juliana Andrade da Silva1 José Elias Gabriel Neto2 RESUMO A publicação da Lei nº 13104 de 9 de março de 2015 incluiu o feminicídio ao rol de qualificadoras do artigo 121 do Código Penal Brasileiro ao adicionar ao inciso VI do 2º o homicídio cometido contra mulher por razões da condição do sexo feminino Por haver na legislação a previsão de aplicação da qualificadora somente quando houver condição de sexo feminino o homicídio de mulheres transgêneras mulheres que se identificam como pertencentes ao gênero feminino embora sejam do sexo masculino não seria alcançado pela qualificadora do feminicídio Nesse sentido por haver uma lacuna legislativa o estudo em tela analisa a possibilidade de aplicar a referida qualificadora quando forem praticados crimes desta natureza contra mulheres transgêneras Diante disso realizou se revisão bibliográfica apontandose as diferenças entre os conceitos de sexo e gênero assim como se examinou as estatísticas de assassinato da comunidade transgênera e informações acerca do homicídio de mulheres transgêneras denominado como transfeminicídio Após realizouse ainda revisão bibliográfica acerca da legislação do feminicídio e a da possibilidade da sua aplicação em face de mulheres transgêneras Por último concluiuse pela aplicabilidade da qualificadora em casos de transfeminicídios diante dos entendimentos colacionados que indicam a necessidade de proteger as mulheres transgêneras que assim como as mulheres cisgêneras também são vítimas de violência de gênero Palavraschave Qualificadora do feminicídio Mulher transgênera Transfeminicídio INTRODUÇÃO Em 9 de março de 2015 foi publicada a Lei 131042015 que incluiu ao rol de qualificadoras do artigo 121 do Código Penal o homicídio cometido contra a mulher por razão da condição de sexo feminino Referido normativo também trouxe o 2ºA que considera as razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve I violência doméstica e familiar II menosprezo ou discriminação à condição de mulher BRASIL 2015 A qualificadora do feminicídio ao impor uma sanção mais severa ao homicídio praticado contra a mulher por razão da condição de sexo feminino pretende inibir a violência de gênero No entanto embora a intenção da reprimenda seja a contenção da violência de 1 Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Email juliana7andradegmailcom 2 Professor de Processo Penal e Execução Penal na IESPLANDF Mestre e Especialista em Direito Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul FMPRS Coautor do livro Medidas de Segurança Aspectos Jurídicos Médicos e Psicológicos Articulista de artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais Lattes httplattescnpqbr6238282657336937 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 78 gênero o que se observa da redação da lei é de fato tão somente a proteção ao sexo feminino Isso porque a utilização do termo condição de sexo feminino delimita a aplicação do feminicídio ao sexo isto é às características biológicas de forma a obstar a aplicação da qualificadora às mulheres transgêneras3 pertencentes ao gênero feminino mas não ao sexo Nesse sentido o hiato legislativo desconsidera que o público transgênero é alvo constante de violência e assassinatos no Brasil sendo este o país onde ocorrem 46 das mortes de pessoas transgêneras do mundo TRANSGENDER EUROPE 2018 Apesar do número alarmante no Brasil não há qualquer legislação ou atendimento especializado visando à proteção deste grupo Dentro do contexto social e cultural as mulheres transgêneras transexuais e travestis sofrem com o mesmo papel reservado às mulheres cisgêneras4 Vale dizer são submetidas à violência de gênero violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à sua condição de mulher de modo que se torna pertinente a discussão acerca da qualificadora do feminicídio a sua abrangência e a possibilidade de sua aplicação no caso de vítimas transgêneras Pretendese portanto analisar a possibilidade de aplicação da qualificadora de feminicídio no caso de mulheres transgêneras por meio de pesquisa bibliográfica que foi limitada a publicações que tratam de gênero e feminicídio de modo a entender os limites da aplicação da nova qualificadora O presente trabalho apresenta primeiramente definições de gênero orientação sexual e sexo a construção da identidade e dos papéis de gênero e ainda aspectos da mulher transgênera e da transfobia diante das estatísticas levantadas por organizações não governamentais Após apresentase a redação do projeto e da lei que deu origem à qualificadora e a análise da possibilidade de aplicar a qualificadora às mulheres transgêneras como objetivo de responder o problema acima apresentado 1 SEXO GÊNERO E IDENTIDADE DE GÊNERO O sexo é definido biologicamente e referese às variações anatômicas fisiológicas genéticas e hormonais existentes em ambas as espécies macho e fêmea enquanto o gênero é produzido moldado enraizado e expressado por instituições como por exemplo a mídia a 3 A palavra transgênero ainda não pode ser encontrada nos dicionários da língua portuguesa contudo seu uso cada vez mais frequente abriu margens à derivação Assim admitemse adjetivos que se utilizam do radical do termo variando em gênero e grau eg pessoas transgêneras comunidade transgênera grupo transgênero homens transgêneros conforme a norma culta da língua 4 Cisgênero é característica atribuída àquela pessoa cujo gênero é compatível com o sexo biológico Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 79 religião e outros sistemas sociais através de diferentes reações valores expectativas papéis e responsabilidade atribuídos a indivíduos e grupos que compõem o feminino ou o masculino JOHNSON e REPTA 2012 O sistema binário de gênero organiza a vida social divide as pessoas em homens e mulheres e produz e reproduz a ideia de que o gênero reflete e espelha o sexo Assim criase a concepção que o gênero é determinado pelo sexo de forma que pessoas que nascem com vagina são mulheres sujeitas aos comportamentos definidos como femininos e aqueles nascidos com pênis são homens sujeitos aos comportamentos definidos como masculinos Assim esperase que a natureza construa a sexualidade e posicione os corpos de acordo com as supostas disposições naturais gerando as condições vaginafeminino e pênismasculino BENTO 2008 Este sistema por vezes tem seus limites rompidos ou pelo menos questionados por pessoas transgêneras isto é travestis transexuais e pessoas que não se identificam com o gênero atribuído ao seu sexo biológico não binárias que se recusam a produzir a masculinidade ou feminilidade condicionada ao seu órgão genital e em razão da sua expressão identitária quebram a causalidade entre sexogênerodesejo Portanto uma pessoa transgênera reivindica o reconhecimento do gênero geralmente atribuído ao sexo oposto do seu Essas experiências de trânsito entre os gêneros demonstram que não somos predestinados a cumprir os desejos de nossas estruturas corpóreas BENTO 2008 p 38 Não raramente as mulheres transgêneras são equivocadamente tratadas como homens homossexuais entretanto não pode se fazer confusão entre a identidade de gênero e a orientação sexual uma vez que esta última é a atração emocional afetiva e sexual para relações íntimas e sexuais TRANSGENDER EUROPE 2011 Ou seja é possível que uma pessoa nascida com a genitália masculina e que se identifique como mulher sinta atração por mulheres sendo neste caso uma mulher transgênera lésbica Portanto é necessário que todas as pessoas transgêneras sejam tratadas da forma com que se identificam Mulheres transgêneras adotam nome aparência e comportamentos femininos querem e precisam ser tratadas como quaisquer outras mulheres JESUS 2012 Ressaltase que nem todas as pessoas transgêneras sentem necessidade de adaptar seus corpos para que se assemelhem com o sexo geralmente atribuído ao gênero com o qual se identificam Esta necessidade de modificar o corpo muitas vezes é motivada por desconforto e vergonha da aparência que não está em congruência com o entendimento dicotômico de gênero estabelecido pela sociedade A propósito Koyama 2003 p 6 explica Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 80 Muitos de nós nos sentimos tão desconfortáveis e envergonhados de nossas aparências que optamos por permanecer no armário ou suportar eletrólises terapia hormonal e intervenções cirúrgicas para modificar nossos corpos em congruência com a nossa identidade como mulheres Estes procedimentos são caros dolorosos e demorados e podem provocar a perda permanente de fertilidade e outras sérias complicações como o aumento do risco de câncer Por que alguém optaria por tais práticas aparentemente desumanas Enquanto gostaríamos de acreditar que a necessidade de combinar nossos corpos à nossa identidade de gênero é natural ou essencial não podemos honestamente negligenciar os fatores sociais e políticos contribuintes das nossas decisões pessoais Um desses fatores é a coação da sociedade de papéis dicotômicos de gênero Porque nossas identidades são construídas em um meio social no qual nascemos poderia se argumentar que a descontinuidade entre a identidade de gênero e o sexo é problemática tão somente porque a sociedade está ativamente mantendo o sistema dicotômico de gênero tradução nossa FaustoSterling 2000 afirma que na maioria das discussões públicas e científicas o sexo e a natureza são considerados reais enquanto o gênero e a cultura são vistos como construídos entretanto este entendimento trata de falsas dicotomias Para exemplificar faz referência ao intersexo que é uma pessoa cuja anatomia não é facilmente identificável como masculina ou feminina e que geralmente passa por intervenções cirúrgicas para apropriar seus órgãos genitais ao contexto social em que inserida removendo eou criando partes de sua anatomia A partir da modificação dos órgãos genitais marcadores visíveis e exteriores do sexo o sexo é literalmente construído A adaptação dos corpos para melhor se encaixar nos papéis dicotômicos vagina femininopênismasculino traz a ideia de que o sexo assim como o gênero é também construído socialmente A realidade da experiência trans demonstra que o sexo físico é sentido pelas pessoas trans como mais artificial e mutável do que seu sentimento interno de quem são As pessoas transgêneras constroem suas próprias identidades de gênero baseado naquilo que lhes parece genuíno confortável e sincero enquanto vivem e se relacionam com outros dentro da coerção social e cultural KOYAMA 2003 2 TRANSFOBIA E TRANSFEMINICÍDIO Entre janeiro de 2008 e setembro de 2018 foram contabilizados 2982 homicídios de pessoas transgêneras em todo o mundo sendo que deste número total 1238 foram cometidos no Brasil consoante o relatório do projeto Transrespect versus Transphobia Worldwide iniciado pela ONG Transgender Europe TRANSGENDER EUROPE 2018 Os dados levantados pelo referido projeto além de revelar que o Brasil é o país com o maior número absoluto de homicídios de pessoas transgêneras também o coloca na terceira posição entre os Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 81 países com as maiores taxas de assassinato de transgêneros por milhão de habitantes 468 atrás apenas de Guiana 50 e Honduras 1077 TRANSGENDER EUROPE 2017 No Brasil uma pessoa transgênera tem 14 quatorze vezes mais chances de ser assassinada quando comparada a um homem cisgênero homossexual sendo que a chance da sua morte ser violenta é 9 nove vezes maior Estes números embora já espantosos tendem a ser ainda maiores uma vez que casos de homicídios de pessoas transgêneras são subnotificados e são frequentemente registrados de forma equivocada qualificando a vítima mulher transgênera como homossexual ou homem NOGUEIRA et al 2017 No ano de 2018 foram reportados 163 assassinatos de pessoas transgêneras no país segundo o Dossiê dos Assassinatos e da violência contra travestis e transexuais ocorridos no país Salientase que esses assassinatos são praticados com frequência de forma cruenta em relação aos assassinatos notificados em 2018 em 6 seis deles não se tem dados acerca do meio utilizado no cometimento do homicídio entretanto 83 dos casos apresentam requintes de crueldade com uso excessivo de violência esquartejamentos afogamentos e outras formas de violência sendo que em 28 assassinatos foi usada mais de uma ferramenta ou meio para que se consumasse a morte e em 11 onze casos em que utilizada a arma de fogo foi constatado número elevado de disparos BENEVIDES e NOGUEIRA 2019 O Dossiê aponta que em 42 dos casos reportados havia alguma ligação entre a vítima e o agressor sendo que o agressor e a vítima em 29 dos casos tinham relação de cliente e profissional do sexo em 10 dos casos se conheciam e em 3 dos casos o agressor era ex companheiro da vítima Temse também que 975 das vítimas são mulheres transgêneras BENEVIDES e NOGUEIRA 2019 Constatase que mulheres transgêneras estão particularmente vulneráveis à violência de gênero porque além de viverem em uma sociedade misógina como mulheres KOYAMA 2003 rompem publicamente com o destino do seu corpo generificado BENTO 2014 A feminilidade expressada pelas mulheres transgêneras e a descoberta de sua anatomia masculina quando em situação de violência sexual estimulam a agressividade do agressor que motivado pelo desvio do sistema binário eou por aversão ao corpo da vítima acaba por agir de forma brutal resultando muitas vezes na sua morte Segundo Bento 2014 p 1 Se o feminino representa aquilo que é desvalorizado socialmente quando este feminino é encarnado em corpos que nasceram com pênis há um transbordamento da consciência coletiva que é estruturada na crença de que a identidade de gênero é uma expressão do desejo dos cromossomas e dos hormônios O que este transbordamento significa Que não existe aparato Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 82 conceitual linguístico que justifica a existência das pessoas trans Mesmo entre os gays é notório que a violência mais cruenta é cometida contra aqueles que performatizam uma estilística corporal mais próxima ao feminino Portanto há algo de poluidor e contaminador no feminino com diversos graus de exclusão que precisam ser melhor explorados O assassinato é motivado pelo gênero e não pela sexualidade da vítima Conforme sabemos as práticas sexuais estão invisibilizadas ocorrem na intimidade na alcova O gênero contudo não existe sem o reconhecimento social Não basta eu dizer eu sou mulher é necessário que o outro reconheça este meu desejo de reconhecimento como legítimo O transfeminicídio seria a expressão mais potente e trágica do caráter político das identidades de gênero A pessoa é assassinada porque além de romper com os destinos naturais do seu corpogenerificado faz isso publicamente Verificase portanto que mulheres trans possuem uma identificação feminina e vivenciam os mesmos papéis tidos como pertencentes ao gênero feminino perante o meio social e assim para efeitos de violência de gênero elas também são alvos de ideias e práticas misóginas COSTA e MACHADO 2016 Nomear estes assassinatos implica reconhecêlos como expressão extrema de violência de gênero em consequência ampliar a noção desta violência expandindo seu conceito em modalidades e vítimas identificar as mulheres transgêneras como um grupo diferenciado permitindo reconhecêlas por suas identidades e expressões de gêneros e entender as particularidades dos crimes perpetrados contra elas RADI e SARDÁCHANDIRAMANI 2016 3 FEMICÍDIO VERSUS FEMINICÍDIO Nomear a morte de mulheres é um gesto político que a faz existir e revela o fenômeno escondido na neutralidade do verbete homicídio Tratase em verdade de uma forma de apreender ou tornar inteligível a matança de mulheres como uma violência de gênero DINIZ et al 2015 Nessas condições as expressões femicídio e feminicídio surgiram como alternativa à palavra homicídio tendo como objetivo político o reconhecimento e visibilidade da discriminação opressão desigualdade e violência sistemática contra a mulher ONU MULHERES 2014 Femicídio e feminicídio são termos que foram cunhados para designar o assassinato de mulheres cometidos em razão do gênero isto é por serem mulheres Estes dois termos entretanto se diferenciaram e ganharam diferentes significados ao longo do tempo Diana Russell escritora e ativista feminista foi a primeira pessoa a utilizar publicamente o termo femicídio quando prestou seu depoimento sobre estes crimes no Tribunal Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 83 Internacional de Crimes contra Mulheres na Bélgica em 1976 RUSSELL 1992 Nesta ocasião Russell 2012 afirmou que parte dos homicídios é de fato um femicídio Nós devemos reconhecer a política sexual de assassinato Da queima de bruxas no passado ao mais recente e propagado costume de infanticídio feminino em várias sociedades ao assassinato de mulher por honra nós percebemos que o femicídio acontece há muito tempo Mas uma vez que envolve somente mulheres não havia nome para isso antes do termo femicídio ser cunhado Tradução nossa Ainda que tenha sido a primeira a usar publicamente o termo Russell afirma que a primeira vez que se deparou com a palavra femicídio foi em 1974 quando um conhecido disse a ela que uma escritora americana estava preparando uma antologia sobre femicídio O livro nunca foi publicado e Russell nunca soube como a escritora definiu o termo mas ela afirma que a nova palavra ressoou poderosamente como referência ao assassinato de mulheres por homens por elas serem mulheres RUSSELL 2012 Posteriormente o termo foi definido no livro publicado por Russell e Radford em 1992 que já em seu prefácio expõe o femicídio como o assassinato misógino de mulheres por homens O termo feminicídio surge com a antropóloga Marcela Lagarde Y de Los Ríos quando faz a diferenciação entre femicídio e feminicídio Lagarde afirma que em castelhano femicídio é uma palavra homônima de homicídio e apenas significa homicídio de mulheres enquanto feminicídio seria o genocídio de mulheres que acontece quando as condições históricas geram práticas sociais que permitem atentados violentos contra a integridade a saúde as liberdades e a vida de meninas e mulheres LAGARDE 2008 Afirma ainda a antropóloga que todos os feminicídios têm em comum que as mulheres são usadas maltratadas e descartadas além de coincidirem em sua infinita crueldade de forma que se caracterizam como crimes de ódio contra as mulheres forjados na desigualdade estrutural entre mulheres e homens na dominação dos homens sobre as mulheres e na violência de gênero enquanto mecanismo de reprodução da opressão das mulheres LAGARDE 2008 A antropóloga mexicana deu ainda uma importante definição política ao feminicídio ao denunciar o Estado como parte estrutural do problema diante de seu caráter patriarcal por não dar garantias suficientes para as mulheres e nem criar condições de segurança que garantam sua simples sobrevivência nos mais diversos âmbitos de suas vidas além de não haver eficiência na realização das funções das autoridades LAGARDE 2008 Portanto Russell dá ao termo femicídio uma definição baseada apenas na violência de gênero ao passo que Lagarde surge com o termo feminicídio atribuindo a ele não apenas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 84 a misoginia mas também a inércia do Estado e a impunidade quanto à morte das mulheres Segato 2006 revela a importância estratégica da politização dos feminicídios que mostra a especificidade dos assassinatos de mulheres e os retira da classificação geral de homicídios apresentando a ideia de que existem crimes cujos sentidos plenos somente podem ser vislumbrados quando pensados no contexto de poder patriarcal Aponta que a reação de ódio se desata quando a mulher exerce autonomia sobre o uso do seu corpo desacatando regras de fidelidade e celibato ou quando a mulher ascende nas posições de autoridade ou de poder econômico ou político tradicionalmente ocupadas por homens desafiando este equilíbrio assimétrico Neste sentido Segato afirma que os crimes do patriarcado são claros crimes de poder cujas duplas funções são simultaneamente a retenção ou manutenção e a reprodução do poder Através da negligência do Estado da impunidade do domínio masculino da desigualdade de gênero e da culpabilização e vulnerabilidade da vítima criase a noção de que o assassinato destas mulheres tratase de fato de um femicídio sistêmico MONÁRREZ 2004 No Brasil o entendimento hodierno é de que há distinção entre os significados das palavras femicídio e feminicídio Com a Lei 131042015 diversos juristas em suas publicações acerca do tema têm distinguindo o significado dos termos afirmando que femicídio seria a morte de uma mulher enquanto o feminicídio seria a morte de uma mulher por razões de gênero Assim nem todo femicídio seria um feminicídio BIANCHINI e GOMES 2015 Temse por isso que não basta que a vítima seja mulher para que reste configurado o feminicídio havendo necessidade da presença da violência de gênero CAVALCANTE 2015 Rodrigues 2017 descreve o termo femicídio como uma versão morfologicamente deficiente de feminicídio sendo este último a terminologia preferível Afirma ainda que a palavra é derivada do étimo latino femina que deu origem às palavras feminilidade e feminismo ressaltando a morfologia torta de femicídio Apesar de não haver consenso doutrinário sobre o termo a ser utilizado foi a definição de Lagarde e o contexto das mortes de mulheres mexicanas que popularizou o conceito de feminicídio na América Latina5 5 A palavra homicídio vem do latim homicidium tendo sido composto por dois elementos homo e caedere O primeiro elemento homo significa homem que provém de húmus terra país ou do sânscrito bhuman enquanto o sufixo caedere significa matar O sufixo cídio é comumente utilizado na língua portuguesa para atribuir significado às diversas categorias de assassinatos parricídio matricídio fratricídio feticídio infanticídio etc Os termos femicídio e feminicídio carregam este mesmo sufixo cídio entretanto os seus prefixos são distintos Mesmo que os termos não tenham sido cunhados pensandose em sua etimologia femicídio carrega o sufixo femina em latim fêmea enquanto feminicídio é formado por femininus também do latim feminino Este Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 85 4 A QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO NO BRASIL Em 1984 com a ratificação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher6 o Brasil passou a incorporar em seu ordenamento jurídico a definição de discriminação contra a mulher e comprometeuse a adotar medidas necessárias inclusive de caráter legislativo para eliminála PANDJIARJIAN 2006 Além da definição de discriminação contra a mulher o Brasil adotou também a definição de violência contra a mulher ao incorporar ao seu ordenamento jurídico a Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher conhecida como Convenção de Belém do Pará em 1995 Assim foi incorporado à legislação nacional o conceito de violência contra a mulher como qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte dano ou sofrimento físico sexual ou psicológico à mulher tanto na esfera pública como na esfera privada CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER 1994 Ambas as ratificações representam um avanço para as mulheres brasileiras tendo em vista que foi em decorrência do monitoramento destas Convenções que o Brasil foi responsabilizado por negligência omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra a mulher tendo a Convenção Interamericana de Direitos Humanos estabelecido recomendações de adoção de medidas legislativas e de políticas públicas mediante a Convenção de Belém do Pará o que originou a Lei 1134006 também conhecida por Lei Maria da Penha PADJIARJIAN 2006 Diante do cenário da tendência na América Latina em reconhecer a morte misógina das mulheres como um delito específico a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito de Violência Contra a Mulher propôs como uma continuidade da Lei Maria da Penha a criminalização do feminicídio através do Projeto de Lei do Senado nº 292 de 2013 Na justificativa da apresentação do projeto é ressaltada a importância de tipificar o entendimento é confirmado por Russell em seu discurso The origin and importance of the term femicide que afirma que femicídio vem de fêmea e entende que a etimologia da palavra feminicídio pressupõe a feminilidade O dicionário Houaiss define fêmea como ser humano do sexo feminino isto é genitália feminina Logo femicídio ao sugerir a palavra fêmea limita a utilização do termo aos sujeitos passivos de genitália feminina enquanto feminicídio derivado de feminino isto é gênero abrange todos os sujeitos passivos de gênero feminino Reconhecendose que a morte misógina de mulheres é motivada pelo seu papel de gênero e não por sua genitália no presente trabalho optase pela utilização do termo feminicídio uma vez que se pressupõe de seu prefixo a característica do feminino isto é do gênero sendo por isso mais abrangente do que simplesmente femicídio 6 A Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher é um tratado internacional de 1979 aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas descrito como uma declaração internacional de direitos das mulheres tendo sido ratificada por 188 Estados Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 86 feminicídio para expor a fratura de desigualdade de gênero persistente na nossa sociedade combater a impunidade e evitar que feminicídios sejam beneficiados por interpretações de crime passional de forma a também proteger a dignidade da vítima O projeto apresentado inicialmente pretendia incluir o feminicídio como causa da aumento de pena do artigo 121 do Código Penal e descrevia o delito como a forma extrema de violência de gênero que resulta na morta da mulher O projeto apresentava ainda as circunstâncias do feminicídio que eram a relação íntima ou familiar entre a vítima e o agressor e a violência sexual ou mutilação ou desfiguração da vítima antes ou após a sua morte BRASIL 2013 O parecer de autoria da Senadora Ana Rita que votou pela constitucionalidade juridicidade regimentalidade e aprovação do projeto da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito suprimiu da redação a expressão que resulta na morte da mulher para que fosse possível o enquadramento na forma tentada e inserido como circunstância o emprego de tortura ou qualquer meio cruel ou degradante caracterizando o feminicídio como a morte da mulher por razões de gênero além de colocar o feminicídio como qualificadora ao invés de causa de aumento de pena BRASIL 2013 Entretanto a redação do projeto limitou para o segundo turno de votações as circunstâncias do feminicídio à violência doméstica e familiar e ao menosprezo ou discriminação à condição de mulher por entender que a violência sexual e a mutilação ou desfiguração estariam sob a fórmula de menosprezo ou discriminação à condição de mulher além de eliminar a circunstância de meio cruel ou tortura pois já constava nos homicídios qualificados na forma do 2º inciso III do artigo 121 do Código Penal BRASIL 2014 Em dezembro de 2014 o projeto de Lei 292 de 2013 do Senado passou a tramitar na Câmara dos Deputados sob o nº 8305 de 2014 tendo sido aprovada a emenda nº 1 em 04 de março de 2015 para que o termo por razões de gênero fosse substituído por por razões da condição de sexo feminino apenas 5 dias antes da legislação ser publicada Feminicídio VI contra a mulher por razões da condição de sexo feminino 2º A Considerase que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve I violência doméstica e familiar II menosprezo ou discriminação à condição de mulher BRASIL 2015 Esta mudança não se trata de mera emenda de redação uma vez que visou restringir a aplicabilidade do feminicídio de forma a não abranger mulheres transexuais ao excluir a palavra gênero que é perigosa por subverter a ordem dita da natureza do binarismo sexual de machos e fêmeas CASTILHOS 2015 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 87 Com esta redação em 9 de março de 2015 foi publicada a Lei nº 1310415 que incluiu ao rol de qualificadoras do artigo 121 do Código Penal o homicídio cometido contra mulher por razão da condição de sexo feminino sendo considerado razão de sexo feminino o crime que envolve violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição da mulher conforme o texto legal define Além da qualificadora o legislador criou ainda majorantes feminicistas86 BITENCOURT 2015 que preveem o acréscimo de 13 até a metade se o crime for praticado durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto contra a pessoa menor de 14 anos maior de 60 anos ou com deficiência e na presença de descendente ou de ascendente da vítima Greco 2015 e Bitencourt 2015 observam que não basta que o sujeito passivo do homicídio seja mulher para seja caracterizada a qualificadora do feminicídio de forma que nem toda morte de mulher é necessariamente um feminicídio sendo necessária a presença de violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher Já Cunha critica a redação do 2ºA da qualificadora ao afirmar que o menosprezo ou discriminação da condição de mulher é pressuposto do feminicídio não havendo necessidade de indicação destas circunstâncias inerentes ao delito o que somente alimenta a confusão acerca os conceitos de feminicídio e do homicídio de vítima mulher não motivado pelo gênero CUNHA 2015 Acerca do segundo inciso do 2A Capez e Prado 2015 ressaltam que para buscar o real alcance da expressão violência doméstica e familiar contra a mulher é necessário se valer do conceito expresso no artigo 5º caput da Lei Maria da Penha ou seja configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte lesão sofrimento físico sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial 5 A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO NO CASO DE TRANSFEMINICÍDIOS Ainda não há consenso entre os juristas se seria possível aplicar a qualificadora do feminicídio no caso de assassinato de mulheres transgêneras Mendes 2016 e Ela Wiecko V de Castilhos 2015 afirmam que a redação da qualificadora tem a intenção de proteger tão somente as mulheres biológicas uma vez que o legislador substituiu gênero por sexo pretendendo propositalmente excluir as mulheres transgêneras da proteção da lei Assim a manobra legislativa que substituiu a categoria gênero por sexo faz com que se entenda que a violência praticada contra as mulheres estaria ligada intrinsecamente aos cromossomos e à anatomia genital tradicionalmente entendida como feminina COSTA e Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 88 MACHADO 2016 de forma que o que se protege com a legislação se torna a genitália feminina ao invés da mulher em situação de vulnerabilidade em razão do gênero e misoginia Procurando estabelecer diferentes entendimentos acerca da aplicabilidade Barros 2015 estabeleceu três correntes diferentes que definiriam a mulher protegida pela qualificadora o critério psicológico considera mulher aquela que se identifica como tal o critério jurídico cível considera mulher aquela cujo documento consta como sexo o feminino independente de ter sido retificado ou não e o critério biológico considera mulher a fêmea nata isto é com genitália genética e hormônios femininos Greco 2015 entende que o critério que deveria ser utilizado é o jurídico cível pois seria o único que teria a segurança necessária exigida pelo direito Logo defende a aplicabilidade da qualificadora às mulheres cisgêneras e às mulheres transgêneras que obtiveram a retificação do registro civil para sexo feminino Por outro lado Mello 2015 entende que a qualificadora do feminicídio deveria ser aplicada de acordo o critério psicológico isto é de acordo com a identidade de gênero pois entende que a legislação não se refere a uma questão de sexo como categoria pertencente à biologia mas a uma questão de gênero Destacase que apesar do preocupante número de homicídios de pessoas transgêneras ocorridos no Brasil desde a publicação da lei que incluiu o feminicídio ao rol de qualificadoras do homicídio são poucos os casos em que os assassinatos de mulheres trans foram tratados como feminicídio Em junho de 2016 o Ministério Público do Estado de São Paulo foi pioneiro ao oferecer denúncia por feminicídio de mulher transgênera SÃO PAULO 2016 No caso concreto Michele mulher transgênera que não realizou a cirurgia de readequação sexual e tampouco retificou seu registro civil foi morta a facadas por seu companheiro com quem coabitava havia 10 anos BOMFIM 2016 Em sentença publicada em 28 de fevereiro de 2018 o juízo da 3ª Vara do Júri no Foro Central Criminal de São Paulo pronunciou o réu como incurso no artigo 121 2º incisos I e VI 2ºA inciso I e artigo 211 tendo entendido que a vítima estaria compreendida no conceito de mulher possibilitando assim a incidência da mencionada qualificadora SÃO PAULO 2018 A denúncia ter sido aceita pelo Poder Judiciário para o Promotor de Justiça atuante no feito foi um importante avanço uma vez que não houve questionamento jurídico quanto à inclusão da qualificadora Afirma o autor da denúncia que a perspectiva de gênero é fundamental uma vez que as discriminações por trás de muitos casos se baseiam em comportamentos sociais e não em características biológicas e portanto atingem as mulheres trans Segundo ele esta perspectiva é reforçada pela aplicabilidade da Lei Maria da Penha uma Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 89 vez que a qualificadora do feminicídio prevista no artigo 121 2º inciso VI 2ºA inciso I do Código Penal é norma penal que necessita de complementação pela legislação especifica qual seja a Lei nº 113402006 Lei Maria da Penha pois o conceito de violência doméstica nela está previsto Assim entendese por violência doméstica qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte lesão sofrimento físico sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial ocorrida dentro do ambiente doméstico familiar ou de sua intimidade podendo ser violência física psicológica sexual patrimonial moral e tantas outras Portanto não há que se questionar o caráter de violência doméstica empregada pelo denunciado à vítima visto que eram companheiros e coabitavam há 10 anos SÃO PAULO 2016 Até o momento de conclusão do presente trabalho o referido processo encontravase com o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para julgamento do Recurso em Sentido Estrito interposto pela defesa do réu Temse notícia de apenas um julgamento de segunda instância acerca da aplicação da qualificadora do feminicídio em um caso em que a vítima é uma mulher transgênera No julgamento suprarreferido a 3ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios decidiu à unanimidade pelo desprovimento dos recursos em sentido estrito interpostos pelos réus acusados pela tentativa de homicídio da vítima Jéssica mulher trans que dentro de uma lanchonete em Taguatinga no Distrito Federal foi atingida com socos e pontapés aos xingamentos de viado e travesti enquanto alguns dos agressores diziam que a mataria A defesa postulava a exclusão da qualificadora relativa ao feminicídio tendo argumentado estar ausente a circunstância objetiva de a vítima ser mulher uma vez que a ofendida havia sido designada homem ao nascer Entretanto a 3ª Turma manteve a qualificadora do feminicídio afirmando que no caso os elementos probatórios indicavam que o homicídio tentado teria sido praticado por repúdio ao gênero da ofendida que apesar de ostentar o sexo biológico masculino adota a identidade de gênero feminina com a correspondente alteração do registro civil sendo portanto uma mulher transgênero DISTRITO FEDERAL 2019 Além dos casos de Michele e Jéssica temse notícia de pelo menos mais dois casos em que homicídios de mulheres trans foram tratados como feminicídio tendo ambos os delitos ocorrido em São Paulo ISTOÉ 2019 e MARTINS 2019 Segato 2012 no texto Femigenocidio y feminicidio una propuesta de tipificación ao reforçar a necessidade de reconhecer o femigenocídio aponta a circunstância em que este ocorre um grupo restrito de perpetradores vitimam mulheres e homens feminizados em perseguição depredadora a corpos feminizados Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 90 O assassinato misógino nas mulheres cisgêneras decorre da vulnerabilidade do gênero feminino diante das relações de poder do patriarcado enquanto o assassinato de mulheres transgêneras ocorre em rejeição à feminilidade exteriorizada em corpos natos masculinos O que torna estes corpos natos masculinos vulneráveis aos olhos do agressor é justamente a expressão de sua identidade e adoção de comportamentos atribuídos ao gênero feminino de forma que resta claro que o feminicídio cometido tanto contra a mulher cisgênera quando contra a mulher transgênera é na realidade a forma mais violenta contra aquilo que é feminino Até mesmo nos casos de agressões cometidas contra homens cisgêneros homossexuais observase que a vítima se torna alvo do agressor quando torna visível características e comportamentos atribuídos ao gênero feminino BENTO 2014 De forma brilhante Bento 2017 ainda discorre sobre o tema Mas as mulheres trans e as travestis não têm vagina foi um dos comentários que li na reportagem sobre o caso Dandara publicado no New York Times Então posso deduzir que ter uma vagina assegura as mulheres não trans a certeza de que não sofrerão violência Mas elas também são brutalmente assassinadas Tanto as mulheres trans as transexuais as travestis e outras corporalidades sofrem vários níveis de violência de gênero Por quê Há um ponto de unidade fundamental entre as múltiplas feminilidades e incluo neste campo as bichas os femininos estão condenados a padecer no paraíso Está na bíblia no livro Gênesis Parir sofrer as dores do parto é uma metáfora que unifica as múltiplas corporalidades e performances femininas Talvez não tenhamos nos dado conta que há uma sinistra coincidência países onde há elevado índice de feminicídio lá também as mulheres trans e as travestis são corriqueiramente assassinados É o caso do Brasil e do México Há portanto pontos de unidade entre o feminicídio e o transfeminicídio que revelam nos empurram para uma conclusão óbvia A motivação dos assassinatos das mulheres trans e das travestis é por performatizarem o gênero feminino Ainda podese dizer que é possível relativizar a redação da qualificadora uma vez que o conceito de sexo sob a luz do entendimento desenvolvido por transfeministas pode ser construído socialmente assim como o gênero Desta forma a qualificadora não seria aplicável somente às mulheres natas com genitália feminina mas também a todas que construíram socialmente seu sexo eou seu gênero feminino Assim seria possível a aplicação da qualificadora em face de mulheres transgêneras mesmo que a redação tenha pretendido afastá las do seu respaldo A exclusão proposital das mulheres transgêneras do alcance da qualificadora não condiz com a atual conjuntura de violência de gênero no Brasil tampouco com a necessidade concreta de se amparar legalmente todas as mulheres COSTA e MACHADO 2016 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 91 CONSIDERAÇÕES FINAIS A qualificadora do feminicídio foi claramente redigida para que não alcançasse as mulheres transgêneras ao impor a limitação do seu alcance ao sexo feminino deixando de observar o atual quadro de violência sofrida por pessoas transgêneras As mulheres transgêneras representam 975 das vítimas de assassinatos da comunidade trans no Brasil BENEVIDES e NOGUEIRA 2019 Uma porcentagem significativa destes assassinatos é cometida por companheiros e ex companheiros familiares conhecidos e clientes o que configuraria as categorias de feminicídio íntimo familiar e por ocupação estigmatizada fatos que fundamentam a afirmação de que suas mortes não são motivadas tão somente por transfobia mas também porque como mulheres transgêneras são vulneráveis à violência de gênero por viver em uma sociedade misógina KOYAMA 2003 O que se nota é que quanto mais exteriorizada a feminilidade deste corpo abjeto maior a chance deste corpo se tornar alvo de violência pois por ser feminino em uma sociedade misógina este corpo é vulnerável Assim o agressor de mulheres transgêneras e muitas vezes de homens homossexuais cuja estilística corporal se aproxima do feminino se vale da vulnerabilidade do feminino Não há portanto como se reduzir as vítimas do feminicídio somente às mulheres cisgêneras visto que o feminicídio não está intrinsecamente ligado ao sexo feminino Isto é não é a genitália ou os demais aspectos biológicos que motivam o feminicida ou que fazem da mulher mais vulnerável O feminicídio é motivado pela posição de vulnerabilidade que a mulher ocupa na sociedade o que independe do órgão genital que sua anatomia apresenta Assim o bem jurídico penalmente tutelado deve ser a vida da mulher vulnerável em decorrência do seu gênero em uma estrutura social de poder patriarcal Portanto concluise pela rejeição do critério biológico proposto por Barros porque deixaria de cingir as mulheres transgêneras que ocupam posição de vulnerabilidade e do critério jurídicocível uma vez que este ignora o contexto do feminicídio e para fins de aplicação da qualificadora considera o registro civil o que não necessariamente retrata a forma como a pessoa se comporta ou posiciona socialmente diante dos papéis de gênero uma vez que não são todas as pessoas transgêneras que têm seu sexo retificado em registro civil como no caso de Michele É possível a relativização da redação da legislação por ser também o sexo o resultado de uma construção social e porque é necessário olhar para as mortes das mulheres transgêneras sob a perspectiva de violência de gênero como é retratada na Lei Maria da Penha que protege as mulheres independentemente do sexo Entretanto ainda que assim fosse entendimento Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 92 jurisprudencial uniforme se faz necessária a retificação da qualificadora para que adotando o termo gênero no lugar de sexo abranja as mulheres que assim se identificam e que sofrem em razão de sua vulnerabilidade como mulher O quadro de violência contra a população transgênera no Brasil evidencia a necessidade de haver políticas públicas que alcancem esta já fragilizada parcela da sociedade REFERÊNCIAS BARROS Francisco Dirceu Feminicídio e neocolpovulvoplastia As implicações legais do conceito de mulher para os fins penais Publicado em 2015 Disponível em httpsfranciscodirceubarrosjusbrasilcombrartigos173139537feminicidioe neocolpovulvoplastiaasimplicacoeslegaisdoconceitodemulherparaosfinspenais Acesso em 9 set 2019 BENEVIDES Bruna G NOGUEIRA Sayonara Naider Bonfim Dossiê dos assassinatos e violência contra travestis e transexuais no Brasil em 2018 Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil Instituto Brasileiro Trans de Educação Brasil 2019 Disponível em httpsantrabrasilfileswordpresscom201901dossiedosassassinatose violenciacontrapessoastransem2018pdf Acesso em 20 ago 2019 BENTO Berenice Brasil país do transfeminicídio Centro Latino Americano 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Federal e Territórios 3ª Turma Criminal Recurso em Sentido Estrito 20180710019530RSE Processo nº 0001842 9520188070007 Direito penal e processual penal Recurso em Sentido estrito Pronúncia Feminicídio tentadoVítima mulher transgênero Menosprezo ou discriminação à condição de mulher Materialidade e indícios de autoria presentes Pedido de desclassificação Improcedente Teses a serem apreciadas pelos jurados Princípio in dubio pro societate Exclusão da Qualificadora Improcedente Recursos conhecidos e desprovidos Relator Desembargador Waldir Leôncio Lopes Júnior 04 de julho de 2019 FAUSTOSTERLING Anne Dualismos em duelo In FAUSTOSTERLING Anne Sexing the Body Gender Politics and the Construction of Sexuality Nova Iorque Basic Books 2000 capítulo 1 GRECO Rogério Feminicídio Comentários sobre a Lei nº 13104 de 9 de março de 2015 Publicado em 2015 Disponível em httprogeriogrecojusbrasilcombrartigos173950062feminicidiocomentariossobrealei n 13104de9demarcode2015 Acesso em 9 set 2019 ISTO É Da 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SOUZA Sarah Oliveira de A atuação da ONU Mulheres nos casos de feminicídios Anais do III Seminário de RI Caruaru 2016 Disponível em httprepositorioascesedubrbitstream1234567892051SOUZA20A20atuaC3A7 C3A3o20da20ONU20Mulheres20nos20casos20de20feminicC3ADdios pdf Acesso em 9 set 2019 TRANSGENDER EUROPE Direitos Humanos e Identidade de Gênero Relatório Temático de Thomas Hammarberg Comissário de Direitos Humanos Transrespect versus Transphobia TVT série de publicações vol 5 dez 2011 TRANSGENDER EUROPE Transrespect versus transphobia worldwide new TvT TMM Update Trans Day of Remembrance 2018 Disponível em httpstransrespectorgwp contentuploads201811TvTTMMTDoR2018TablesENpdf Acesso em 20 ago 2019 TRANSGENDER EUROPE Transrespect versus transphobia worldwide new TvT 30th March 2017 Trans Day of Visibility Press Release Disponível em httptransrespectorgentdov2017tmmupdate Acesso em 9 set 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 97 EFETIVIDADE DA LEI MARIA DA PENHA NA DEFESA DOS DIREITOS DAS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA Janice Merigo1 Karine Kerkhoff 2 Maira Gabriela Anschau 3 Clarete Trzcinski4 RESUMO A Lei Maria da Penha foi instituída em 2006 com intuito de proteger e amparar as mulheres da violência doméstica e familiar buscando ações e mecanismos que visam coibir a violência de gênero Este estudo tem por objetivo analisar a efetividade da Lei Maria da Penha na defesa da cidadania e dos direitos das mulheres Pesquisa de cunho qualitativo que teve como técnica a entrevista semiestruturada aplicada a quatro mulheres vítimas de violência abrigadas na Casa Abrigo da Mulher e questionário enviado para duas Assistentes Sociais da Delegacia de Proteção à Criança Adolescente Mulher e Idoso DMCAMI Os resultados mostram que os tipos de violência sofrida pelas mulheres abrigadas foram Violência Psicológica Física e Sexual O principal agressor e abusador sexual foram seus companheiros Os principais motivos das agressões foram o ciúme negligência no cumprimento das tarefas domésticas e a utilização do álcool e drogas As informações coletadas demonstraram que as mulheres não compreendem a Lei Maria da Penha e suas medidas protetivas As profissionais da DPCAMI apresentaram como maior demanda a violência em suas mais diversas manifestações A atuação profissional com as vítimas se dá através de orientação acolhimento encaminhamento e empoderando das mulheres Concluise que se faz necessário o fortalecimento da rede de atendimento para que mulheres vítimas de violência encontrem amparo e possam enfrentar a situação de violência Palavraschave Violência contra a Mulher Lei Maria da Penha Delegacias especiais Casa abrigo para mulheres INTRODUÇÃO Este estudo tem por objetivo analisar a efetividade da Lei Maria da Penha na defesa da cidadania e dos direitos das mulheres Pois a violência doméstica e familiar na particularidade da violência contra a mulher é um dos mais graves problemas a serem enfrentados pela sociedade contemporânea que ocorre diariamente no Brasil e em outros países Velhos padrões de submissão vêm se consolidando através das práticas culturais que acabaram por definir papéis sociais a homens e mulheres propiciando a força como elemento 1 Assessora em Políticas Públicas Fecam Mestre em Serviço Social PUCRS 2004 2 Graduada em Serviço Social Unochapecó 2018 3 Graduada em Serviço Social Unochapecó 2018 4 Docente do Programa de Mestrado em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais Unochapecó Doutora em Engenharia de Produção UFRGS 2014 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 98 constitutivo de poder e de autoridade cujos detentores eram e continuam sendo os homens Esse modelo de força se firmou instituindo a dominação como atributo dos homens e a submissão imposta às mulheres A relação entre os sexos estabelecida através da oposição homemmulher dominadordominada hierarquizou posições e funções no mundo social sexualizando espaços e atividades garantindo aos homens posição de poder consagrada pelos espaços que ele passou a ocupar na vida pública e para as mulheres o espaço privado a casa Em relação aos princípios sexualizantes associavamse os sentimentos e as honras aos homens a bravura a força a provisão da família a razão Ás mulheres a decência a fidelidade a obediência a submissão a dona de casa a mãe de família Portanto podemos compreender que ao longo dos séculos a violência em todas as suas formas de expressão esteve muito presente no cotidiano feminino impondose como prática institucionalizada e historicamente determinada de dominação masculina Souza 2009 A violência em seu significado mais frequente Quer dizer uso da força física psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não está com vontade é constranger é tolher a liberdade é incomodar é impedir a outra pessoa de manifestar seu desejo e sua vontade sob pena de viver gravemente ameaçada ou até mesmo ser espancada lesionada ou morta É um meio de coagir de submeter outrem ao seu domínio é uma violação dos direitos essenciais do ser humano TELES MELO 2002 p 15 Em face do grande número de violência contra a mulher em 2006 foi sancionada a a Lei n 113402006 conhecida como Lei Maria da Penha que criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra as mulheres sendo esta uma perspectiva de mudança da realidade No entanto mesmo com o advento da Lei Maria da Penha inúmeros ainda são os casos de violência praticados contra as mulheres no âmbito doméstico e familiar No Brasil de acordo com Pesquisa Datasenado em dois anos o número de mulheres que declararam terem sido vítimas de algum tipo de violência passou de 18 para 29 Desde 2005 este percentual se mantinha relativamente constante entre 15 e 19 Também houve crescimento no percentual de entrevistadas que disseram conhecer alguma mulher que já sofreu violência doméstica ou familiar Este índice saltou de 56 em 2015 para 71 em 2017 Datasenado 2017 Esses dados são alarmantes e mostram que mesmo com uma ampla legislação o índice de violência só aumenta Entendemos que discutir a problemática da violência é muito importante pois as mulheres vítimas de violência precisam estar preparadas para quebrar o silêncio e realizar a denúncia A denúncia é registrada a partir do registro do boletim de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 99 ocorrência em uma delegacia Nessa fase é importante que a vítima queira representar o caso Posterior é possível pedir medidas protetivas sendo que as mais comuns são proibição de aproximação de qualquer tipo de contato e de o agressor frequentar a residência e local de trabalho da vítima afastando o agressor do lar e suspensão de visita aos filhos Brasil 2006 Neste sentido o tema da violência contra a mulher é desafiador e precisa ser aprofundado Assim o objetivo do estudo ora apresentado é analisar a efetividade da Lei Maria da Penha na defesa da cidadania e dos direitos das mulheres vítimas de violência Para responder ao objetivo definiuse por realizar uma pesquisa de cunho qualitativo como técnica de coleta de dados a entrevista semiestrutrada e o questionário As entrevistas foram realizadas a quatro 04 mulheres abrigadas na Casa Abrigo da Mulher Vítima de Violência Doméstica Maria Maria de Chapecó gravadas e transcritas na íntegra posteriormente pelas pesquisadoras O questionário após contato pessoal com duas assistentes sociais da DPCAMI foi encaminhado via email para o seu preenchimento Cabe ressaltar que o questionário foi respondido em comum acordo entre duas profissionais e a devolutiva se deu de apenas um questionário por isso será utilizado nos resultados Profissionais A coleta de dados foi realizada após a Assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido TCLE com base na Resolução n5102016 do Conselho Nacional de Saúde A Casa Abrigo da Mulher Vítima de Violência Doméstica Maria Maria de Chapecó foi indicada pelas profissionais da DPCAMI como local de pesquisa por entenderem que seria mais fácil o contato com as mulheres lá abrigadas do que realizar a pesquisa na delegacia especial As casasabrigo de acordo com Senado Federal 2019 constituem locais seguros para o atendimento às mulheres em situação de risco de vida iminente em razão da violência doméstica O serviço ofertado possui caráter sigiloso e temporário onde as usuárias poderão permanecer por um período determinado após o qual deverão reunir condições necessárias para retomar o curso de suas vidas Para a análise das entrevistas optamos pela descrição análise e interpretação dos dados Nessa ótica pretendemos trazer nossas próprias implicações nas análises enquanto mulheres investigando outras mulheres Se conseguiremos não sabemos Porque essa será a primeira tentativa a partir da abordagem de Grossi 1992 o que ela quer dizer é que quando uma mulher analisa outra mulher a partir da sua subjetividade é possível repensar a produção do conhecimento para além do que pensar no ponto de vista da outra Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 100 1 POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER O Estado brasileiro após ratificar os documentos internacionais de proteção à mulher assumiu obrigações no plano internacional aonde se comprometeu a adotar medidas para garantir os direitos humanos das mulheres em seu contexto doméstico e familiar protegendo as de qualquer forma de negligência discriminação exploração violência crueldade e opressão Para que isso ocorra deve haver políticas de prevenção Um exemplo de política pública para as mulheres é o projeto que foi desenvolvido pelo governo federal que criou o chamado disque 180 aonde mulheres podem ligar para este número que fazem atendimentos específicos em cada unidade da Federação As atendentes são capacitadas para dar orientações e registrar as denúncias advindas Cunha Pinto 2007 As políticas públicas implantadas no combate à violência no Brasil implicam a coexistência de diferentes práticas sociais e diferentes atores em contextos institucionais variados As categorias profissionais que representam as instituições do Estado são policiais e delegadosas das Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher DEAMs e também de outras delegacias onde foi registrado a ocorrência profissionais que fazem parte de equipes técnicas de centros de atendimento para mulheres vítimas operadores de Direito representantes do Poder Judiciário etc A parte representativa da sociedade civil é composta por organizações feministas que foram personagens ativas no processo de elaboração e fiscalização destas políticas Moraes Ribeiro 2012 As práticas sociais e as condutas dos agentes que participam dessa política pública vêm sendo continuamente estudadas em especial as expectativas as ambiguidades e os caminhos percorridos pelas mulheres vítimas que decidem tornar pública a violência conjugal e doméstica MORAES RIBEIRO 2012 p 42 Conforme FINNEMORE 2009 apud MORAES RIBEIRO 2012 estudos contemporâneos sobre as políticas públicas em diferentes áreas e partes do mundo têm mostrado que as ideias e os valores estão tendo um papel relevante no âmbito à proteção das mulheres Atualmente as políticas não são mais concebidas somente a partir do Estado também podem ser fortalecidas através da participação de outros setores da sociedade por exemplo os movimentos sociais e as organizações nãogovernamentais ONGs Com a participação destes é possível realizar ações e programas considerados inovadores consequentemente aumentando a diversidade de novos atores envolvidos na produção das políticas públicas além de disseminar novas ideias e valores que adentram nas rotinas de sua implementação Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 101 No que tange as políticas públicas desenvolvidas pela Secretaria de Políticas para as Mulheres SPM Martins Cerqueira e Matos 2015 p 9 apontam que elas têm o objetivo de superar as desigualdades e combater todas as formas de preconceito e discriminação Assim a atuação destas políticas está definida em três linhas principais de ação sendo elas Políticas do Trabalho e da Autonomia Econômica das Mulheres Enfrentamento à Violência contra as Mulheres Programas e Ações nas áreas de Saúde Educação Cultura Participação Política Igualdade de Gênero e Diversidade Antes da criação da política sobre o enfrentamento à violência contra as mulheres a institucionalização da SPM encaminhava as mulheres especialmente para Delegacias Especiais de Atendimento a Mulher desenvolvida no ano de 1985 e encaminhava para Casas Abrigo Esses órgãos eram a porta de entrada e acolhimento das mulheres em situação de violência Foi a partir do ano de 2003 que a Secretaria de Políticas para as Mulheres passou a induzir políticas públicas de enfrentamento à violência criando normas e padrões de atendimento aperfeiçoamento da legislação incentivando à constituição de redes de serviços projetos educativos e culturais para prevenção à violência e ampliou o acesso das mulheres à justiça e serviços de segurança pública Martins Cerqueira e Matos 2015 Entretanto essas políticas públicas precisam ser monitoradas conforme apontam Martins Cerqueira e Matos 2015 p 89 Monitoramento das ações desenvolvidas nos estados e municípios brasileiros O acompanhamento das políticas e de sua efetividade requer um processo eficaz de comunicação contínua entre os entes federativos Além disso necessita de sistemas de informação capazes de gerar dados que contribuam para o gerenciamento dos serviços e a compreensão das dimensões da violência assim como possibilitem avaliar os esforços institucionais empreendidos Para que as políticas destinadas ao enfrentamento da violência doméstica e familiar sejam eficazes demanda a integração de várias instituições das quais citam o sistema de Justiça a assistência social a segurança pública as instituições de ensino e hospitalares Para a real efetivação dessas políticas necessita da articulação entre os diversos órgãos governamentais não governamentais e também da comunidade através da transversalidade de gênero por meio da intersetorialidade e da capilaridade de todos os serviços públicos que são destinados ao combate da violência às mulheres Martins Cerqueira e Matos 2015 No estado de Santa Catarina existe uma rede de atendimento que pode ser acionada por mulheres vítimas de violência doméstica e familiar funcionando 24 horas por dia sendo elas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 102 Central de Atendimento à Mulher Disque 180 Polícia Civil Disque 181 Polícia Militar Disque 190 SAMU Disque 192 e Bombeiros Disque 193 TJSC 2018 Cabe ressaltar que a partir da aprovação da Norma Operacional Básica do Sistema único de Assistência Social NOBSUAS em 2005 os municípios catarinenses passaram a ofertar serviços continuados ao atendimento das mulheres Os Centros de Referência de Assistência Social CRAS ofertam acompanhamento familiar quando os vínculos familiares estão fragilizados o que prevê a violação de direitos Conta ainda com o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos SCFV o qual atua com grupos de crianças e adolescentes e de mulheres O serviço atua no fortalecimento e na autoestima empodera as mulheres a assumirem seu importante papel na sociedade Em resumo a proteção social básica que é executada nos Centro de Referência de Assistência Social atua na prevenção e proteção da violência contra as mulheres Cabe ressaltar que em Santa Catarina existem 364 CRAS implantandos Quando a proteção e prevenção não é possível existem os Centros de Referência Especializado de Assistência Social CREAS que atendem mulheres que foram vítimas de violência física sexual psicológica patrimonial entre outras Em Santa Catarina contamos com 100 CREAS Nos demais 195 municípios que não possuem o CREAS o fluxo deve funcionar da seguinte forma os casos de violência contra a mulher são encaminhados para a Secretaria de Assistência Social e a equipe técnica da secretaria realiza os atendimentos Quando se faz necessário o afastamento da mulher vítima de violência de casa elas são encaminhadas para os abrigos institucionais que acolhem mulheres e seus filhos 11 Implementação da Lei Maria da Penha Antes da Lei Maria da Penha existia os Juizados Especiais Criminais JECRIMs que era um dispositivo legal utilizado para proteger a mulher de violência Doméstica Os JECRIMs passaram a receber os casos de contravenção e aqueles considerados de menor potencial ofensivo tipificados como ameaça lesão corporal leve entre outros Dentre estes últimos um grande número era oriundo de conflitos e de violências que envolviam homens que agrediam as mulheres nas relações conjugais MORAES RIBEIRO 2012 p 40 A partir de então estudos e organizações feministas passaram a solicitar a incorporação de uma criminologia feminista CAMPOS 2003 na atuação destas instituições Para Moraes e Ribeiro 2012 p40 as críticas ao encaminhamento dos casos de violência contra a mulher Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 103 aos JECRIMs estavam pautadas na ideia de que na prática social incorporada às rotinas destes Juizados os crimes estavam sendo despenalizados As críticas realizadas pelo movimento feminista levaram à articulação de uma rede formada por organizações não governamentais feministas sendo elaborada uma nova proposta de lei objetivando encaminhar os casos de violência contra a mulher para a Justiça No ano de 2004 foi enviado um projeto à Secretaria Especial de Políticas para às Mulheres SPM propondo a alteração dos procedimentos instituídos pelos JECRIMs no tratamento dos crimes de violência conjugal Todas as manifestações e articulações ajudaram para a criação da Lei Maria da Penha que dispõe sobre a criação de Varas e Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher com autoridade para executar as medidas cabíveis em casos de violência conjugal Dessa forma foi retirada a atuação dos JECRIMs em casos de violência doméstica Moraes Ribeiro 2012 Dias 2007 aponta que a denominada Lei Maria da Penha tem uma história dolorosa afinal a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes foi mais uma mulher vítima de violência doméstica em nosso país Seu marido professor universitário e economista M A H V tentou matála com uma espingarda o resultado da tentativa de homicídio fez com que a farmacêutica ficasse paraplégica Dias depois houve uma nova tentativa de homicídio Desta vez tentou eletrocutála através de uma descarga elétrica enquanto Maria tomava banho Diante do ocorrido Maria não se calou e denunciou as agressões sofridas As investigações iniciaram em junho de 1983 no município de Fortaleza Ceará contudo a denúncia só foi oferecida em setembro de 1984 No ano de 1991 o réu foi condenado a oito anos de prisão pelo tribunal do júri porém recorreu em liberdade e um ano depois foi anulado seu julgamento Frente a inércia da Justiça Maria da Penha escreveu um livro no ano de 1994 chamado Sobrevivi posso contar Após uniuse a um movimento de mulheres e juntas manifestaram suas indignações Em 1996 ocorreu um novo julgamento para M A H V aonde foi imposto a pena de dez anos e seis meses e mais uma vez pode recorrer em liberdade Somente em 2002 19 anos e 6 meses após a ocorrência dos fatos ele foi preso mas permaneceu por apenas dois anos Dias 2007 relata que a história de Maria da Penha teve uma repercussão tão grande que o Centro pela Justiça e o Direito Internacional CEJIL juntamente com o Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher CLADEM efetuaram denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos OEA A Comissão precisou solicitar quatro vezes informações ao governo brasileiro sendo que não obtiveram retorno Por conta do ocorrido em 2001 o Relatório da OEA condenou o Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 104 Brasil internacionalmente a pagar indenização no valor de 20 mil dólares para Maria da Penha e também responsabilizou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica Também recomendou a adoção de algumas medidas com o propósito de simplificar procedimentos judiciais penais reduzindo o tempo processual Dentre as medidas implantadas pela OEA 2001 para o enfrentamento da violência encontramse a capacitação e sensibilização de policiais e servidores da Justiça b simplificação dos procedimentos judiciais penais para promover celeridade c estabelecimentos de formas alternativas às judiciais rapidez e efetividade na solução de conflitos intrafamiliares d multiplicação de delegacias de mulheres e inclusão da temática nos planos pedagógicos OEA Relatório 54 2001 A Lei Maria da Penha LMP é uma das mais importantes conquistas legais do feminismo das mulheres e da sociedade brasileira pois representou um avanço na legislação de enfrentamento à violência doméstica e familiar no Brasil rompendo com a visão meramente punitivista Incorporou as perspectivas da prevenção assistência e contenção da violência além de criar medidas protetivas de urgência e juizados especializados para o julgamento dos crimes praticados com a violência doméstica e familiar Ela é direcionada a proteção de todas as mulheres indiferente de classe social raça etnia orientação sexual renda cultura nível educacional idade e religião buscando preservar sua saúde física e mental A mulher que tem medida protetiva ou seja que é protegida pela Lei Maria da Penha não pode ser entendida somente no viés biológica homem x mulher afinal a Lei combate a violência de gênero feminino x masculino no sentido do sexo socialmente construído TJSC 2018 De acordo com Moraes e Ribeiro 2012 desde os anos 1980 no Brasil os movimentos feministas protagonizaram mudanças significativas na luta contra a violência de gênero atingindo esferas governamentais legislações sociedade civil e as formas de representação de governos O apoio dos governos por esta movimentação civil gerou a criação de conselhos assessorias e coordenadorias de nível local e nacional Nessa ótica a Lei Maria da Penha é executada principalmente nas Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher DEAMs considerada ainda uma inovação institucional brasileira na área da violência repercutindo inclusive em outros países da América Latina Martins Cerqueira e Matos 2015 afirmam que no Brasil a primeira delegacia deste tipo foi criada no ano de 1985 na cidade de São Paulo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 105 As Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher DEAMs compõe a estrutura da Polícia Civil e são encarregadas de realizar ações de prevenção apuração investigação e enquadramento legal Nessas unidades é possível registrar o Boletim de Ocorrência BO e solicitar medidas protetivas de urgência nos casos de violência doméstica contra a mulher MARTINS CERQUEIRA MATOS 2015 p 19 No Brasil visando à relação complexa entre o Estado e as mulheres vítimas no momento em que ocorre o encaminhamento da violência conjugal na esfera policial estas delegacias são parte importante no processo chamado por Soares 1996 de vitimização afirmativa As DEAMs personalizaram seus atendimentos reduzindo assim o receio que muitas mulheres tinham de ir à polícia Com isso as mulheres conseguem se reconhecer como vítimas e constroem novos discursos e subjetividades fundamentados nessa experiência Para Pinheiro 2005 p 31 a existência das Delegacias por si só não consegue garantir o atendimento e o suporte necessário às mulheres que vivem situações de violência por parte de seus companheiros São necessários outros serviços programas e projetos como por exemplo casas de acolhimento ou abrigos para que as mulheres possam receber auxílio especializado e não sejam discriminadas além de serviços jurídicos onde elas possam ter acesso às informações sobre os seus direitos Portanto na compreensão de Pinheiro 2005 havendo outros serviços nesta mesma lógica das Delegacias contribuiria para que houvesse um atendimento mais eficiente e de maior qualidade às mulheres vítimas de violência doméstica Até hoje no Brasil as delegacias da mulher constituem a principal política pública para enfrentamento na conjuntura de violência contra mulheres 2 RESULTADO E DISCUSSÕES 21 Perfil das mulheres entrevistadas de violência e seus agressores Nos dados referente à pesquisa empírica indicam que a idade das mulheres pesquisadas variou entre 26 e 39 anos demonstrando que são adultas Três possuem ensino fundamental incompleto e uma superior completo Em relação ao estado civil três são solteiras e uma convivente todas possuem filhos em média 2 filhos cada uma Três são donas de casa e uma é agricultora A idade dos agressores variou entre 30 e 49 anos No que se refere à escolaridade dos agressores observase níveis escolares diversificados sendo um analfabeto um possui ensino fundamental incompleto um possui curso superior completo Uma das pesquisadas não sabia responder sobre a escolaridade do companheiro Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 106 22 Situações de violência Nos dados referente aos tipos de violência sofrida elas relataram que vivenciaram situações de violência psicológica física e sexual com diferentes combinações O maior índice foi a de violência psicológica 04 mulheres em segundo a física 03 mulheres e a violência sexual 01 mulher Percebemos que a violência sofrida pelas pesquisadas segue o ciclo da violência apresentada por Alves e Diniz 2005 inicialmente vêm à fase da tensão na qual ocorrem os insultos humilhações provocações ameaças que são perpetradas através da violência psicológica Na próxima fase geralmente acontece o episódio agudo de violência com as agressões físicas Este ciclo mostra que a violência contra a mulher acontece na maioria das vezes de forma combinada violência psicológica e física Completa Alves e Diniz 2005 o ciclo vai evoluindo com repetições de situações em momentos de tensão que se estabelecem entre a vítima e o agressor O conflito entre o casal se inicia no campo psicológico e às vezes material São discussões que resultam em ameaças e em alguns casos na destruição de objetos da casa É incomum que a mulher perceba a possibilidade da escalada da violência que pode ocorrer após esses eventos e acredita ter controle da situação Todavia a tensão do conflito pode aumentar e as ameaças dão lugar a empurrões tapas chutes socos podendo chegar ao cárcere privado ou a lesões corporais graves e em última instância no feminicídio Diante disso num primeiro momento a mulher vítima de violência doméstica e intrafamiliar enfrentam a violência psicológica Na literatura de Hirigoyen 2006 Levert 2011 Miller 1999 Montminy 2005 Pimentel 2011 as quais foram citadas por Machado e Grossi 2015 a violência psicológica faz parte das técnicas de controle e terrorismo instaurando prejuízos a pessoa que sofre violência Como é uma prática repetitiva e sutil ela estabelece um estado de confusão mental em que o agressor faz com que sua vontade prevaleça Por ser uma prática sutil parece que a violência psicológica não traz sérios danos a vítima por não deixar marcas visíveis Mas causa grande sofrimento a pessoa Em um estudo apresentado por Machado e Grossi 2015 em que analisam a violência psicológica a luz da Lei Maria da Penha é visualizado nos dados dos policiais que atendem em uma delegacia especial o sofrimento psicológico das mulheres que chegam é algo evidente mas que para elas mesmas é imperceptível na maior parte do tempo 565 A Violência Física de acordo com o artigo 7º inciso I da Lei Maria da Penha é qualquer conduta que ofenda a integridade ou a saúde corporal da mulher BRASIL Art 7 2006 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 107 Cunha 2012 descreve que a violência física é manifestada através do uso da força mediante socos tapas pontapés empurrões arremesso de objetos queimaduras dentre outros visando ofender a integridade ou a saúde corporal da mulher deixando ou não marcas aparentes Neste sentido quando se trata da integridade física da mulher considerase a violência comportamentos que irão prejudicar a saúde do seu corpo através de atitudes que possam causar resultados negativos A violência sexual faz parte da violência intrafamiliar mas pode ocorrer em outros espaços e em diferentes tipos de relacionamentos Ministério da Saúde 2001 No caso da entrevistada foi cometido por seu companheiro no seu espaço doméstico A violência sexual compreendida como sendo toda ação na qual uma pessoa em situação de poder obriga uma outra à realização de práticas sexuais contra a vontade por meio da força física da influência psicológica intimidação aliciamento sedução ou uso de armas ou drogas MINISTÉRIO DA SAÚDE 2001 p20 Também questionamos se as mulheres tinham entendimento sobre os motivos da violência sofrida e os principais apresentados por elas foram o ciúme a negligência no cumprimento das tarefas domésticas bem como a utilização do álcool e drogas por seus companheiros A fala da entrevistada Maria 03 mostra como se expressava o ciúme do companheiro Aí ele dizia que eu tinha outro que eu tava traindo ele que não sei o quê e que ele ia me matar tudo era motivo para ele dizer vou te matar se tu não fizer isso eu vou te matar Sabe Aquilo todo dia eu pensava meu Deus do céu mas minha vida é será que vai ser pra sempre assim aí resolvi tomar uma atitude Em estudo de MACHADO 1999 apud SOUZA 2003 o ciúme apareceu como desencadeador da violência pois é uma reação masculina de repreensão à mulher Nesse sentido os homens violentos na maioria das vezes têm necessidade de controlar todos os aspectos da vida da mulher seja os horários as amizades o dinheiro etc e o ciúme que muitas vezes não é dirigido a outros possíveis homens mas é em relação aos filhos a família ao trabalho aos amigos Muitas vezes o marido quer que a mulher não deseje nada além dele NUNES 1999 apud SOUZA 2003 A negligência no cumprimento das tarefas domésticas enquanto um dos motivos da violência foi apresentado pela Entrevistada 01 porque só ele faz tudo só ele trabalha faz tudo paga aluguel paga luz compra comida essas coisas ele faz tudo Eu nunca trabalhei aqui no Brasil porque aqui no Brasil eu não consegui nada e daí só ele faz tudo É só ele Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 108 que a mulher sou eu faz tudo ele tá cansado do trabalho só ele faz tudo compra comida paga aluguel paga luz ENTREVISTADA 01 Entendemos que a negligência é um tipo de violência complexa pois ela se manifesta de diversas formas Parece que na fala da entrevistada 1 ela acaba por se culpabilizar pelo fato de não trabalhar fora e pela sobrecarga do marido consequência de suas queixas faz sentirse negligente Entretanto nos parece violência psicológica e não negligência Para tanto buscamos a compreensão do que vem a ser negligência Para o Ministério da Saúde 2001 a negligência acontece em situações de abandono por falta de cuidados de atenção de proteção e de desinteresse Logo a fala da entrevistada não é negligência e sim violência Psicológica BERENICE 2002 apud SOUZA 2003 traz uma importante contribuição ao descrever a agressão do homem em relação à mulher quando ela não cumpre o seu papel de dona de casa educadora Os homens se sentem cobradores e elas devedoras o que acaba se tornando um espaço propício para a violência As mulheres têm consciência que agiram mal e se sentem merecedoras da agressão Então recebem a agressão como uma justa punição o que ajuda a aplacar sua culpa por não ter se comportado dentro do papel que deveria desempenhar A agressão vem redimir sua culpa É um raciocínio absolutamente equivocado e de absoluta e injustificável subordinação Não existem tarefas definidas As pessoas devem manter sua plena liberdade e a relação afetiva deve ser de absoluta cumplicidade de amizade sem cobranças Quem sabe eu tivesse a obrigação de estar em casa cuidando dos meus filhos Mas estou aqui e ninguém pode me cobrar por isso No entanto normalmente os 50 homens cobram e as mulheres se sentem devedora A causa da violência é essa uniformidade de pensamento entre os dois ele bate porque acha que tem direito de bater e ela apanha achando que merece apanhar A entrevista da Maria 1 remete para a questão da migração um casal Haitiano que mora na cidade a pouco mais de 1 ano Duarte e Oliveira 2012 contribuem quando afirmam que a violência doméstica sobre mulheres não deve ser analisada tendo em conta somente a categoria gênero nem a luta contra o patriarcado Não está em questão a menor relevância destes aspetos em última análise a mulher é vítima de violência por ser mulher mas apenas se contesta a sua exclusividade p 224 Para explicar essa análise as autoras apontam que as mulheres vítimas de violência experienciam simultaneamente diferentes formas de opressão e de controlo social uma vez que estão imersas em contextos sociais que se cruzam com diferentes sistemas de poder como a raça a etnia a classe social o gênero e a orientação sexual Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 109 A violência praticada contra as mulheres negras para Passos e Rosa 2016 se apresenta como uma relação de dominação de exploração e de opressão que se manifesta nas simetrias de classe e nas relações sociais e interpessoais O que permite identificar que as mulheres negras são vítimas de diversos tipos de violência que vão compondo um roteiro desigual de suas trajetórias nos aspectos de trabalho saúde lazer afetos uso do tempo educação na produção acadêmica entre outras Evidenciado como o terceiro motivo de violência o uso de álcool e drogas conforme relata a Entrevistada Maria 03 Era de tudo um pouco Um tempo um ano atrás ele usava droga e bebida e daí ele queria que fizesse com ele se refere ao sexo quando ele tivesse drogado que ele gostava e eu por tanto de parte que eu sofri isso também com o meu pai quando eu tinha sete 07 anos então eu ficava com aquele trauma e daí pedia pra ele não fazer daí como eu implorava e pedia chorando pra ele que não que eu não queria né quando ele tava assim drogado e bêbado aí ele dizia que era um prazer fazer aí que ele me agredia A Maria 3 foi vítima de violência desde criança sendo perpetrada também depois de adulta ao constituir sua família Para ela o uso de drogas e de bebidas foi a causadora da violência num primeiro momento pelo seu pai e depois pelo seu companheiro Silva 2009 argumenta que as mulheres que foram vítimas de violência durante a infância são mais susceptíveis a vivenciar agressões por parte de seus parceiros Na visão de MACHADO 1999 apud SOUZA 2003 Grossi 2001 o álcool por si só não é causador da violência mas potencializa a violência na medida em que atinge toda a família causando traumas separação podendo acarretar perturbações no desenvolvimento das crianças que crescem no meio das situações de violência MACHADO 1999 apud SOUZA 2003 Quando se trata de violência doméstica o risco se duplica pois o abuso do álcool pode gerar uma constante relação conflituosa potencializando a violência Dos problemas sociais ligados ao abuso do álcool as questões familiares são as que mais preocupam uma vez que atinge toda a família indistintamente causando separação traumas perturbações do desenvolvimento da criança e conflitos violentos MACHADO 1999 apud SOUZA 2003 Outro questionamento realizado foi em relação a Lei Maria da Penha se na visão delas elas sentiamse protegidas Percebemos que elas não conheciam a Lei O que cabe descrever é que dentre elas uma não possuía medida protetiva uma não se sentia segura após a aplicabilidade da medida uma sabia que tinha uma medida protetiva porque a profissional relatou depois sobre o assunto e uma relatou que se sentia totalmente segura Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 110 Cabe apontar que para as mulheres estarem na Casa Abrigo da Mulher Vítima de Violência Doméstica Maria Maria não se faz necessário terem medidas protetivas Elas são encaminhadas ao abrigo por diversos setores da rede municipal tais como Delegacia de Proteção à criança adolescente mulher e idoso Conselho Tutelar Polícia Civil e Militar Centro de Referência Especializado de Assistência Social e Centro de referência de Assistência Social 23 Demandas e desafios no atendimento a mulheres vítimas de violência Pretendemos aqui trazer análises referentes aos dados apresentados pelas assistentes sociais da DPCAMI onde o objetivo foi reconhecer demandas e desafios ao trabalho profissional no atendimento às mulheres em situação de violência Cabe aqui ressaltar que o questionário foi encaminhado para as duas assistentes sociais com prévio contato A devolutiva foi de um questionário respondido em comum acordo entre duas profissionais De acordo com o Dossiê das delegacias da Mulher elas existem em 79 das cidades brasileiras São 461delegacias especializadas e existem 76 mil mulheres que sofreram agressões ou ameaças por parte de parceiros ou exparceiros A Delegacia da Mulher representa a porta de entrada em uma rede de apoio para sair da situação de violência Revista AzMina 2019 De acordo com Senado Federal 2019 as delegacias especializadas são Unidades especializadas da Polícia Civil para atendimento às mulheres em situação de violência As atividades das DEAMs têm caráter preventivo e repressivo devendo realizar ações de prevenção apuração investigação e enquadramento legal as quais dever ser pautadas no respeito pelos direitos humanos e pelos princípios do Estado Democrático de Direito Com a promulgação da Lei Maria da Penha as DEAMs passam a desempenhar novas funções que incluem por exemplo a expedição de medidas protetivas de urgência ao juiz no prazo máximo de 48 horas As profissionais que atuam nas delegacias especiais são de diferentes áreas Para as assistentes sociais pesquisadas questionamos quais as demandas que chegam Violência em suas diversas manifestações PROFISSIONAIS Os instrumentos mais utilizados pelas profissionais da delegacia nos atendimentos social são orientações acolhimento encaminhamentos e empoderamento das mulheres que vivem em situação de violência Nossa atuação se dá através de orientação acolhimento encaminhamento e empoderamento das vítimas buscando encorajálas para que elas busquem alternativas de superarem saírem do ciclo de violência PROFISSIONAIS Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 111 Entendese que a orientação e o empoderamento das vítimas se faz necessário numa sociedade em que muitas mulheres desconhecem seus direitos Sobre a categoria empoderamento apresentado na resposta das profissionais A literatura apresenta diferentes interpretações e polêmicas nas abordagens Para isso apresentamos as contribuições do Fórum Econômico Mundial 2005 que definiu cinco dimensões para o empoderamento e oportunidade das mulheres que são 1 participação econômica a presença da mulher no mercado de trabalho em termos quantitativos é importante não só para reduzir os níveis desproporcionais de pobreza mas também como medida importante para aumentar a renda familiar e estimular o desenvolvimento econômico dos países 2 oportunidade econômica diz respeito à qualidade do envolvimento econômico das mulheres e extrapola a mera presença feminina em sua condição de trabalhadora 3 empoderamento político diz respeito não só à representação equitativa de mulheres em estruturas de tomada de decisão tanto formais quanto informais mas também ao seu direito à voz na formulação de políticas que afetam a sociedade na qual estão inseridas 4 avanço educacional entendido como o principal requisito para o empoderamento das mulheres em todas as esferas da sociedade pois sem educação de qualidade e conteúdo comparável à recebida por meninos e homens as mulheres não conseguem acesso a empregos bem pagos do setor formal nem avanços na carreira participação e representação no governo e influência política 5 saúde e bemestar são conceitos relacionados às diferenças substanciais entre mulheres e homens foi considerado aqui o acesso à nutrição adequada cuidados de saúde e facilidades reprodutivas e a questões de segurança indispensáveis à integridade pessoal O Instrumento do acolhimento implica em escuta qualificada Conforme Guerrero et al 2013 expressa as relações que se estabelecem entre usuário e profissionais Para Nichnig 2016 p 43 o acolhimento das mulheres tem a intenção de que elas busquem a justiça mesmo que sofram um constante descrédito na sociedade em geral fazendo com que seja estimulado o registro de ocorrência O encaminhamento é um recurso instrumental que manifesta o conhecimento da rede e do direcionamento da mulher vítima de violência para o local mais apropriado Para Almeida 2010 o encaminhamento é peça fundamental para que o trabalho do assistente social seja efetivado Silva 2019 aponta que o profissional utiliza de seus instrumentos e técnicas para minimizar os impactos sofridos pela vítima e consequentemente que não seja reproduzida aos filhos fazendo com que essa vitima seja orientada e respaldada de seus direitos para que consiga assim deixar de aprisionarse da atual situação vivida Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 112 Questionadas sobre as condições objetivas criadas para que as mulheres possam prevenir e superar as dinâmicas de violência A resposta foi direcionada para o trabalho socioeducativo pois somente através de uma mudança cultural teremos avanço haja vista que independente da condição socioeconômica muitas vezes elas se submetem a situações de violência Os profissionais que atuam nas delegacias especiais precisam ter especialidades na área da violência para que seus discursos não sejam baseados em preconceito em narrativas naturalizantes que constituem hierarquicamente as relações de gênero Para SantAnna 2018 os assistentes sociais ao atuarem na garantia de um direito sem violência podem contribuir para a redução da condição de vulnerabilidade sejam essas vulnerabilidades fruto da contradição entre capital e trabalho ou de outras formas de desigualdade como as de gênero Por fim ao serem questionadas sobre os desafios presentes na atuação profissional foi apontado que No nosso caso enquanto DPCAMI o maior desafio é a vulnerabilidade nada tomada de decisão da vítima Por que as mulheres chegam na Delegacia vulneráveis ou seja sem saber qual decisão tomar e muitas vezes não querem representar por medo do que a família vai pensar de se arrepender do julgamento dos amigosfilhos e por vezes necessitam de um tempo para refletir PROFISSIONAIS SantAnna 2018 p 311 aponta que é tarefa dos profissionais que atuam com mulheres vítimas de violência investigarem o que está por detrás do discurso dessas mulheres enunciados nas instituições de proteção às vítimas além de buscar através dos seus instrumentos de trabalho as raízes do problema CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo mostra que a violência faz parte da história de muitas mulheres há séculos estando relacionada principalmente a cultura patriarcal que expressa desigualdades sociais políticas econômicas e culturais além da subordinação de colocar os homens no poder no trabalho bem como em casa Dessa forma a mulher sempre foi vista pela sociedade como responsável pela casa e pelos filhos ou seja o espaço doméstico é visto como responsabilidade inerente à mulher Essas diferenças que perfazem a realidade aumentam as desigualdades nas relações de gênero pois apontam o que é dever do homem e o que é dever da mulher naturalizando assim os papéis atribuídos a cada um Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 113 Essa realidade associada com a luta de movimentos feministas e vítimas de violência permitiram que o Estado atuasse de forma a combater as formas de violências existentes resultando na Lei 1134006 conhecida como Lei Maria da Penha Têm por objetivo coibir atos de violência protegendo as mulheres indiferente de classe social raça etnia orientação sexual renda cultura nível educacional idade e religião buscando preservar sua saúde física e mental Entretanto contribui Nichnig 2016 que a existência das leis ainda não proporciona a mudança simbólica e cultural necessária para que a igualdade de gênero seja efetiva Para alcançar a igualdade social se faz necessário a implementação e manutenção das leis vigentes vigilância e movimentos feministas atentos para a sua efetivação A literatura mostra que a violência é uma das formas mais graves violação de direitos Essa violência perpassa um ciclo que vai evoluindo iniciando normalmente na violência psicológica passando para a fase da violência física Os dados referente a pesquisa empírica realizada com mulheres abrigadas na Casa Maria mostra que são todas adultas com diversos níveis de ensino sendo seus agressores seus companheiros todas possuem filhos e donas de casa Seus agressores são seus companheiros o que perpetua a violência doméstica Os tipos de violência sofrida foram a violência psicológica física e sexual e combinadas não acontecendo apenas uma isoladamente Os motivos de sofrerem violência de seus companheiros foi o ciúme negligência no cumprimento das tarefas domésticas e a utilização do álcool e drogas Mesmo estando numa casa de abrigo por situações de violência percebemos que ela não tem conhecimento da lei Maria da Penha O que indica a necessidade de abordar o tema da violência em diferentes instituições sociais para que a população conheça seus direitos As profissionais da delegacia relataram que sua atuação se dá nas situações de violência em suas mais diversas manifestações Nas demandas de violência são utilizados diversos instrumentos como a orientação o acolhimento O trabalho socioeducativo foi indicado como uma das formas de prevenir a violência E como desafio no atendimento foi apontado a vulnerabilidade das mulheres no sentido de realizar a denúncia Concluímos que há ainda muito que se fazer para que a Lei Maria da Penha tenha a efetividade pretendida pelo legislador A Lei foi criada para proteger as vítimas da violência e também erradicar toda a forma de violência doméstica e familiar Para que isso aconteça entendemos que se faz necessário fortalecer a rede de atendimento para que as mulheres já fragilizadas encontrem amparo e possam enfrentar a situação Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 114 Coibir a violência numa sociedade tão desigual alienada pelos meios de comunicação e pela ideologia dominante em que a mulher é submissa que possui salário mais baixo que a dos homens dupla ou tripla jornada de trabalho passa por uma questão ética de todas as estruturas sociais REFERÊNCIAS ALVES S B DINIZ N M FEu digo não ela diz sim a violência conjugal no discurso masculino Revista Brasileira de Enfermagem Brasília v 58 n 4 julago p 387392 2005 ALMEIDA Livia Os instrumentais técnicooperativos na prática profissional do serviço social2010 Disponível em httpswwwwebartigoscomartigososinstrumentaistecnico operativosnapraticaprofissionaldoservicosocial36921 Acesso em 29 ago 2019 AZMINA Dossie das delegacias das mulheres 2016 Disponível em httpsazminacombrespeciaisdossiedasdelegaciasdamulher Acesso em 20 ago 2019 BRASIL Lei n 11340 de 07 de agosto de 2006 Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher altera o Código de Processo Penal o Código Penal e a Lei de Execução Penal e dá outras providências Brasília Diário Oficial da República Federativa do Brasil 2006 CAMPOS Carmen 2003 Juizados Especiais Criminais e seu déficit teórico Revista Estudos Feministas Junho de 2003 Vol 11 nº 1 p 155170 CUNHA Rogério Sanches PINTO Ronaldo Batista Violência doméstica Lei Maria da Penha Lei 113402006 Comentada artigo por artigo São Paulo Revista dos Tribunais 2007 CUNHA Rogério Sanches Violência Doméstica Lei Maria da Penha Lei 113402006 comentado artigo por artigo Rogério Sanches Cunha Ronaldo Batista Pinto São Paulo Revista dos Tribunais 2012 DATASENADO Violência doméstica e familiar contra a mulher Junho2017 Disponível em httpswww12senadolegbrinstitucionaldatasenadoarquivosaumentanumerode mulheresquedeclaramtersofridoviolencia Acesso em 20 out 2018 DIAS Maria Berenice A Lei Maria da Penha na justiça a efetividade da Lei 113402006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher São Paulo Editora Revista dos Tribunais 2007 DUARTE Madalena OLIVEIRA Ana Mulheres nas margens a violência doméstica e as mulheres imigrantes Sociologia Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto Vol XXIII 2012 pág 223237 Disponível em httpslerletrasupptuploadsficheiros10303pdf Acesso em 28 ago 2019 FÓRUM ECONÔMICO MUNDIAL Empoderamento de mulheres avaliação das disparidades globais de gênero Genebra 2005 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 115 GUERREIRO Patrícia et al O acolhimento como boa prática na atenção básica à saúde Texto contexto enferm vol22 no1 Florianópolis JanMar 2013 Disponível em httpwwwscielobrscielophppids010407072013000100016scriptsciarttexttlngpt Acesso em 29 ago 2019 GROSSI Patrícia Krieger Violência e Gênero coisas que a gente não gostaria de saber Porto Alegre EDIPUC 2001 GROSSI Miriam Pillar Trabalho de Campo Subjetividade Florianópolis UFSC Programa de PósGraduação em Antropologia Social 1992 70 p MACHADO Isadora Vier GROSSI Miriam Pillar Da dor no corpo à dor na alma o conceito de violências psicológicas da Lei Maria da Penha Estudos Feministas Florianópolis 232 561576 maioagosto2015 Disponível em httpwwwscielobrpdfrefv23n20104026Xref230200561pdf Acesso em 30 ago 2019 MARTINS Ana Paula Antunes CERQUEIRA Daniel MATOS Mariana Vieira Martins A institucionalização das políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres no Brasil Brasília n 13 março de 2015 MINISTÉRIO DA SAÚDE Secretaria de Políticas de Saúde Direitos Humanos e Violência Intrafamiliar informações e orientações para agentes comunitários de Saúde Brasília Ministério da Saúde 2001 MORAES Aparecida Fonseca RIBEIRO Letícia As políticas de combate à violência contra a mulher no Brasil e a responsabilização dos homens autores de violência Sex Salud Soc Rio J Rio de Janeiro n11 p3758 Ago 2012 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1984 64872012000500003lngennrmiso Acesso em 10 out 2018 NICHNIG Claudia Regina Experiências e práticas jurídicas no combate à violência a partir da Lei Maria In VEIGA Ana M WOLFF Cristina S LISBOA Teresa K Org Gênero e Violências diálogos interdisciplinares Florianópolis Edições do BosqueCFHUFSC 2016 OEA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Relatório Anual 2000 Relatório n 5401 Caso 12051 Maria da Penha Maia Fernandes Brasil 4 de abril de 2001 Disponível em httpwwwsbdporgbrarquivosmaterial299Relat20npdf Acesso em 13 ou 2018 PASSOS Joana Célia ROSA Stela Violência de Gênero e Racismo In VEIGA Ana M WOLFF Cristina S LISBOA Teresa K Org Gênero e Violências diálogos interdisciplinares Florianópolis Edições do BosqueCFHUFSC 2016 PINHEIRO E A Serviço Social e violência contra a mulher questões para o debate 2005 Dissertação Mestrado Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 2005 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 116 SANTANNA Thiago F O empoderamento das mulheres e a Lei Maria da Penha como tecnologia de gênero Possibilidades com os estudos feministas e de Gênero para o Serviço Social Temporalis Brasília DF ano 18 n 35 janjun 2018 SILVA Juscilene Galdino da Violência doméstica contra a mulher e Serviço Social espaço de atuação e intervenção profissional 2019 Disponível em httpwwwesedhprgovbrmodulesinscritquestuploads823032016160341ASPOSSIV EISINTERVENCOESPROFISSIONAISNASQUESTOESDAVIOLENCIADOMES TICACONTRAMULHERpdf Acesso em 26 ago 2019 SENADO FEDERAL Serviços Especializados de Atendimento à Mulher 2019 Disponível em httpswww12senadolegbrinstitucionalomvacoescontra violenciaservicosespecializadosdeatendimentoamulher Acesso em 30 ago 2019 SOUZA Patrícia Alves de Os possíveis motivos do adiantamento da denúncia de mulheres vítimas de violência conjugal Estudo em Grupo de Mulheres atendidas no CEVIC Florianópolis 2003 Florianópolis UFSC Centro de Ciências da Saúde Pós Graduação em Saúde Pública SOUZA Maria Clarice Rodrigues de Violência contra a mulheres uma questão de gênero Montes Claros 19851994 2009 258f Dissertação Programa de PósGraduação em História Universidade Federal de Uberlândia Uberlândia 2009 TELES Maria Amélia de Almeida MELO Monica de O que é violência conta a mulher São Paulo Brasiliense 2002 TJSC TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar Dê um basta na violência 5ª ed 2018 Disponível em httpswwwtjscjusbrcoordenadoriadamulheremsituacaode violenciadomesticaefamiliarcevid Acesso em 19 out 2018 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 117 A JUDICIALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES Ísis de Jesus Garcia1 RESUMO Este artigo pretende discutir algumas questões relativas aos processos de judicialização da violência contra as mulheres especialmente no que se refere à Lei nº 11340 de 2006 conhecida como Lei Maria da Penha LMP Se por um lado a judicialização pode criar ambiente propício para reivindicação de direitos por parte das mulheres que tenham sofrido violência doméstica por outro a idealização da eficácia do Poder Judiciário quanto a essa demanda se manifesta como fator inviabilizador Assim a invasão do direito nas relações sociais sobretudo a propósito da violência contra as mulheres será descrita enfatizandose seus entrelaçamentos com a semântica jurídica e problematizandose noções préfixadas a respeito do tema Pretendese verificar como a Lei Maria da Penha tem contribuído para a judicialização da violência contra as mulheres Tratandose de uma pesquisa com objetivo teórico será realizada uma revisão da bibliografia referente às matrizes teóricas do tema e sua relação com a violência contra as mulheres Salientase que o trabalho não pretende esgotar a matéria mas à elucidação de um panorama social vigente com o objetivo de incentivar a reflexão sobre o tema Palavraschave Judicialização da violência contra as mulheres Lei Maria da Penha Violência contra as mulheres INTRODUÇÃO As reivindicações dos movimentos feministas brasileiros intensificaramse e passaram a ganhar maior visibilidade em meados da década de 1970 o que acarretou a inclusão da violência doméstica2 contra as mulheres na agenda política como uma das prioridades de atuação do poder público GROSSI 1994 1998a GROSSI MINELLA LOSSO 2006 BANDEIRA SUARÉZ 1999 HEILBORN 1996 GREGORI 1993 No cenário internacional em 1979 é aprovada pelas Nações Unidas a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Contra a Mulher CEDAW ratificada pelo Brasil em 1984 Tratase de um momento importante para a implementação das políticas públicas que visavam o combate à violência contra a mulher Diversas conferências foram realizadas ao redor do mundo e incentivaram a implementação de políticas para as mulheres 1 Professora da UnisociescJoinville Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Direito inscrito no CNPq e vinculado à UniSociesc Email hycsoyahoocombr Link do lattes httplattescnpqbr5771771050380898 2 Saliento que utilizarei a expressão violências entre aspas pois se trata de uma categoria descritiva qualificadora conforme tem definido Theophilos Rifiotis 1997 1999 2008 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 118 dentre as quais se destacam a II Conferência Mundial sobre Direitos Humanos realizada em Viena no ano de 1993 que reconheceu a violência contra a mulher como uma violação dos direitos humanos a Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a violência contra a Mulher ocorrida em Belém do Pará em 1994 e no ano seguinte a Conferência Mundial sobre a mulher em Beijing VIANNA LACERDA 2004 No Brasil o processo de resistência se fortaleceu por meio de estratégias de luta como por exemplo o emprego reiterado da expressão violência contra a mulher com a posterior implementação de políticas públicas com o objetivo de coibila BANDEIRA 2009 PASINATO SANTOS 2005 O objetivo deste trabalho é problematizar as noções préfixadas a respeito da judicialização da violência contra as mulheres Assim à invasão do direito nas relações sociais especialmente naquelas que dizem respeito à violência contra as mulheres será descrita enfatizandose seus entrelaçamentos com a semântica jurídica VIANNA et al 1999 DEBERT 2010 RIFIOTIS 2008 2014 2016 1 A LEI MARIA DA PENHA Em 1983 Maria da Penha Maia Fernandes sofreu duas tentativas de homicídio perpetradas por seu marido Em um primeiro momento o agressor atirou em suas costas enquanto ela dormia deixandoa paraplégica posteriormente tentou eletrocutála no banho PANDJIARJIAN 2007 Muito embora tenha havido duas condenações judiciais em 1991 e em 1996 não se alcançava uma decisão definitiva no âmbito do processo e o acusado continuava em liberdade Passados mais de 10 anos sem uma resposta efetiva por parte do Poder Judiciário por meio de uma petição conjunta de Maria da Penha do Centro pela Justiça e o Direito Internacional CEJILBRASIL e do Comitê LatinoAmericano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher CLADEMBrasil o caso foi apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos OEA Em 2001 18 anos após o fato a Comissão Interamericana responsabilizou o Brasil por negligência tolerância e omissão em relação à violência contra a mulher violaramse afinal os direitos estabelecidos na Convenção Americana de Direitos Humanos e na Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a violência contra a Mulher Convenção de Belém do Pará3 O Brasil sofre afinal em decorrência da denúncia de Maria da Penha Maia Fernandes 3 Em 1995 o Brasil ratifica a Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher a chamada Convenção de Belém do Pará que reconheceu a violência contra a mulher como fato BRASIL 2004 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 119 uma condenação inédita por parte da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA A decisão da OEA recomendou ao Estado brasileiro que a concluísse rápida e efetivamente o processo penal envolvendo o responsável pela agressão b investigasse séria e imparcialmente irregularidades e atrasos injustificados do processo penal c pagasse à vítima uma reparação simbólica decorrente da demora na prestação jurisdicional sem prejuízo da ação de compensação contra o agressor e d promovesse a capacitação de funcionários da Justiça em direitos humanos especialmente no que toca aos direitos previstos na Convenção de Belém do Pará OEA 1995 Esta decisão foi considerada inédita pois foi a primeira vez que um caso de violência doméstica acarretou a condenação de um país no âmbito internacional PIOVISAN PIMENTEL 2011 Após a decisão da OEA diversas organizações não governamentais ONGs feministas se reuniram com o objetivo de organizar um consórcio de ONGs feministas para redigir uma lei específica sobre a temática da violência contra a mulher Depois de muitas discussões e estudos a respeito de legislações internacionais específicas sobre a violência contra a mulher no final de 2003 o Consórcio de ONGs Feministas apresentou o resultado da pesquisa à bancada feminina do Congresso Nacional e à Ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres SPM Nilcéa Freire a quem encaminharam o anteprojeto Em seguida Freire elaborou um grupo de trabalho interministerial que acolheu grande parte da proposta do Consórcio Após diversas reuniões em diferentes esferas do Governo Federal o Projeto de Lei da Câmara PLC de nº 372006 foi aprovado pelo Senado e encaminhado para a sanção presidencial MATOS CORTES 2011 A Lei Maria da Penha foi consequência de uma série de fatores dentre os quais se destacam a pressão dos movimentos feministas que passaram a criticar constantemente a atuação dos Juizados Especiais Criminais JECrim e o Informe nº 542001 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA CIDH que após ter recebido a denúncia de Maria da Penha Maia Fernandes chegou à conclusão de que o Brasil estava violando direitos e garantias à proteção judicial da autora Com o advento da Lei nº 11340 de 2006 um novo marco na luta pelo respeito aos direitos das mulheres foi alcançado CORTIZO GOYENECHE 2010 p103 Para Cortizo e Goyeneche tratase de um avanço legal já que previa um tratamento diferenciado aos casos de violência contra a mulher Isto é a violência contra a mulher deixou de ser considerada crime de menor potencial ofensivo e consequentemente não deveria mais ser remetida aos JECrim Além disso a lei apresenta disposição a respeito da criação dos Juizados de violência Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 120 doméstica e familiar contra a mulher JVDFM e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar segundo o seu artigo 1º Dentre as principais modificações destacadas por Guita Debert e Marcella Beraldo de Oliveira 2007 p331 citamse o aumento da pena máxima que passa a ser de três anos de detenção o que retira essa violência da tipificação dos crimes de menor potencial ofensivo não podendo por conseguinte ser mais enviada aos Juizados Especiais Criminais JECrim passa também a admitir a prisão em flagrante para os casos de violência doméstica contra as mulheres e impede a aplicação de pena de cesta básica passando a exigir novamente como antes da Lei 909995 a instauração do inquérito policial É importante salientar que a LMP propôs a criação de uma ampla rede extrapenal de proteção às mulheres ou seja medidas de proteção educação e apoio às mulheres cujo objetivo seria a redução da violência doméstica e familiar contra a mulher A LMP apostou em alternativas de redução prevenção e repressão da violência doméstica e familiar contra a mulher que não passam exclusivamente pelo campo do Direito Penal ainda que não atendam às expectativas decorrentes das críticas à atuação dos JECrim no tratamento oferecido aos casos de violência contra as mulheres Para Amorim 2008 com a Lei Maria da Penha correse o risco dos mesmos erros da Lei nº 909995 A autora AMORIM 2008 p 123 questiona Se o Jecrim falhou por falta de políticas auxiliares no combate desta violência a Lei nº 1134006 amparouse em uma rede de proteção do Judiciário do Ministério Público estará esse extenso manto protetor suficientemente articulado para conceder proteção à mulher vítima da violência doméstica e familiar Depois de mais de 4 anos de vigência da LMP as resistências em relação à sua aplicação foram constatadas por algumas pesquisas CAMPOS CARVALHO 2011 GOMES 2010 LEMOS 2010 MACHADO 2013 VITÓRIO 2010 Além disso a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito CPMI da violência contra a mulher do Congresso Nacional averiguou entre março de 2012 e julho de 2013 inúmeros obstáculos à efetividade da LMP no cenário nacional descrevendo particularidades regionais muito distintas mas que possuíam em comum a dificuldade em implementar suas medidas Os dados da CPMI foram recentemente analisados por Carmen Hein de Campos 2015 e as constatações da autora não são animadoras Em resumo muito embora não tenha descoberto a roda o seu mérito da CPMI está em traçar um panorama da rede de atendimento em todo o País ampliando os estudos e as pesquisas realizados em localidades específicas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 121 Estamos diante de uma legislaçãoálibi isto é de uma lei positivada para satisfazer a demanda dos movimentos feministas sem que haja contudo a existência de condições mínimas para a sua efetivação 2 A JUDICIALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO O aumento da intervenção do Poder Judiciário em várias instâncias da vida pública e privada sugere que tudo pode ser resolvido através de uma decisão judicial Ao magistradamagistrado tem sido convocadaconvocado em número cada vez mais extenso de questões da vida política o que os norteamericanos há muitos anos chamam de judicial activism e também da vida econômica internacional comunitária moral social e até mesmo da vida privada VIANNA 1999 Esta demanda crescente pelo Poder Judiciário demonstrase contraditória pois ao mesmo tempo que os sujeitos exigem a desregulamentação clamam por regulamentação Segundo Raul Henrique Rojo 2001 p299 este poder crescente da Justiça oculta dois fenômenos aparentemente muito diferentes senão contraditórios cujos efeitos convergem e se reforçam mutuamente o enfraquecimento do Estado sob a pressão do mercado de uma parte e o abalo simbólico do homem e da sociedade democráticos por outra Campilongo 1995 apontava para um duplo movimento uma crescente valorização do Poder Judiciário e o surgimento de locais alternativos para a resolução dos conflitos Esta oscilação é denominada por Rojo 2001 2003 de jurisdicionalização em outras palavras tratase tanto da judicialização quanto da desjudicialização além de definir a procura por uma instância simbólica apta a dizer o que é a justiça Ao juízajuiz surge como a última figura legítima de autoridade Dessa forma a sociedade tem promovido uma demanda inédita por Justiça tanto quantitativa quanto qualitativamente já que o Poder Judiciário tem que não apenas multiplicar suas intervenções mas passa também a responder a requerimentos de extrema complexidade Ao magistradamagistrado tem se tornado intérprete das mais diversas questões Por exemplo vimos inúmeras reivindicações por direitos travadas no Supremo Tribunal Federal STF questões relativas à adoção por casais homossexuais à pesquisa com célulastronco à interrupção do parto quando se trata de feto anencéfalo etc Tratase do que François Ost 1993 p 179 denominou de Juiz Hércules ou seja mais que umaum mulherhomem da lei umaum verdadeiraverdadeiro engenheiraengenheiro social Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 122 Para Luiz Werneck Vianna et al 1999 p 24 ao juízajuiz tem se tornado o portavoz da Justiça nas relações sociais Dessa forma a ideia de supremacia da função dado magistradamagistrado é consequência da democratização social pósdécada de 1970 e do desmonte dos regimes autoritáriocorporativos do mundo europeus e americanos Com a promulgação das constituições que positivaram direitos fundamentais o Poder Judiciário passou paulatinamente a substituir a política Como consequência ao juízajuiz passou a tomar suas decisões com base em premissas mais complexas em relação à quando julgava conforme os enunciados normativos Nesse sentido a judicialização aparece como consequência das próprias constituições democráticas a exemplo da Constituição Brasileira de 1988 Segundo Vianna et al 1999 p149 o Estado passa a regular todas as relações sociais criando diversas leis como por exemplo leis referentes à violência contra a mulher aos grupos vulneráveis meio ambiente crianças e adolescentes dependentes de drogas e consumidores Os autores advertem que é o Direito que passa a invadir a vida dos sujeitos É todo um conjunto de práticas e de novos direitos além de um continente de personagens e temas até recentemente pouco divisável pelos sistemas jurídicos das mulheres vitimizadas aos pobres e ao meio ambiente passando pelas crianças e pelos adolescentes em situação de riso pelos dependentes de drogas e pelos consumidores inadvertidos os novos objetos sobre os quais se debruça o Poder Judiciário levando a que as sociedades contemporâneas se vejam cada vez mais enredadas na semântica da justiça É enfim a essa crescente invasão do direito e organização da vida social que se convencionou chamar de judicialização das relações sociais VIANNA et al 1999 p 149 grifei A judicialização para além de uma demanda crescente pela concretização de direitos através do Poder Judiciário evidencia algumas peculiaridades Em primeiro lugar ela pode ser considerada um fato decorrente da própria Constituição Federal de 1988 BRASIL 1988 que conferiu uma maior liberdade interpretativa e criativa às juízas e aos juízes Com o constitucionalismo moderno parece não ser mais necessário dizer que magistradas e magistrados não são a boca da lei como no positivismo lato sensu No entanto isso não quer dizer que juízas e juízes possam flexibilizar as normas com total autonomia Para Carlo Guarnieri 1993 p 25 se não há como negar que a criatividade dasdos juízasjuízes hoje é um fato amplamente reconhecido isso não significa que sua atuação possa ocorrer com total liberdade A crítica ao formalismo vinculada à negação do papel dado magistradamagistrado como o de meramero aplicadoraaplicador da lei encontra suas bases em uma série de fatores mais complexos Segundo a tradição constitucionalista ao juízajuiz deveria agir segundo as leis que eram ao mesmo tempo o fundamento e o limite de seu poder No entanto atualmente Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 123 o vínculo com a lei ganha uma outra dinâmica e dessa maneira o reflexo social gerado é uma desvalorização das próprias legislações do que seria exemplo a Lei Maria da Penha O menosprezo ao papel da legalidade no âmbito estatal é transposto ao âmbito das relações interpessoais Para Carlos M Cárcova 1996 p 151 os compromissos não são assumidos as convenções não são cumpridas e uma sensação de desproteção e de impunidade percorre os interstícios da vida social No Brasil José Eduardo Faria 1994 p17 salienta que a brecha cada vez mais profunda entre o sistema jurídico e os interesses em conflito de uma sociedade em transformação potencializada pelas tradicionais dificuldades do Poder Judiciário para adaptarse a novos tempos conduziu a uma progressiva desconfiança tanto na objetividade das leis como critério de justiça quanto em sua efetividade como instrumento de regulamentação e direção da vida Deriva daí uma certa banalização da ilegalidade e da impunidade que passou a caracterizar a imagem do Brasil contemporâneo A imagem de que os códigos haviam se transformado em simples ficção e de que sua violação sistemática se havia convertido em regra geral expressando as falências das instituições jurídicasjudiciais A incapacidade dos demais Poderes Legislativo e Executivo de oferecer respostas às demandas pela concretização dos direitos constitucionais ou seja por Justiça levou a uma crescente expectativa quanto ao papel do Poder Judiciário enquanto concretizador desses direitos VIANNA et al 1999 p 152 Na ausência de Estado ou de outras formas de regulação social coube ao Poder Judiciário a função de regulador social Conforme Antoine Garapon apud VIANNA et al 1999 p 149 a justiça se torna um lugar em que se exige a realização da democracia Vianna et al 1999 p 155 enfatizaram que a crescente invasão do Direito na vida social que no Brasil pode ser exemplificada pela criação dos juizados especiais cíveis e criminais Assim nesse processo contemporâneo de crescente invasão do direito na vida social e que no Brasil teve seu caminho ditado pelo movimento de auto reforma do Poder Judiciário a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais talvez represente um significativo divisor de águas Ainda que integrem o conjunto mais geral de modificações técnicas concebidas no sentido de aproximar lei e sociedade a singularidade da sua aposta se prende ao contexto em que eles emergem já então respondendo às crescentes demandas por justiça de uma parcela da sociedade submersa e até aquele momento sem representação Contudo Garapon 1999 alerta que a função de guardião da moralidade pública ocupada hoje pelapelo juízajuiz traz em contrapartida a preocupação quanto ao exercício da função por profissionais pouco qualificados Segundo o autor Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 124 Almejam ser considerados como o último refúgio da moral e do desinteresse em uma República abandonada pelos seus servidores Essa demanda desperta o velho demônio inquisitório sempre presente no imaginário latino São novas expectativas que surpreendem uma magistratura ainda pouco preparada para o exercício desse papel provocando os exageros em número reduzido é verdade mas que ainda assim merecem ser analisados ao menos para que sejam conjurados GARAPON 1999 p 55 Além de uma maior presença do Poder Judiciário para dirimir conflitos sociais a judicialização expõe um rompimento com as estruturas simbólicas dos indivíduos e da sociedade democrática Nesse sentido Garapon 1999 dirá que o Poder Judiciário passa a ser invocado para dizer o justo numa democracia ao mesmo tempo inquieta e desencantada No entanto não se trata nem do triunfo da magistratura nem do direito mas de uma aposta em uma outra forma de democracia Segundo Rojo 2003 p 39 Ao mesmo tempo em que julgar adquire por fim o estatuto de verdadeiro poder democrático se transforma no poder de ninguém O lugar de destaque ocupado pelaspelos magistradasmagistrados caracterizase não somente pela demanda efetiva mas principalmente pela sua dimensão simbólica Conforme Denise Duarte Bruno 2006 p 37 O que se coloca para o guardião das promessas é a função simbólica da autoridade autoridade esta que o leva ao exercício da magistratura do sujeito Em outras palavras asos juízasjuízes têm substituído outros árbitros sociais conquistando lugar de destaque na função de internalizar normas É nesse sentido que Garapon 1999 dirá que ao juízajuiz tem ocupado a figura de um guardião da moralidade pública Contudo o autor questiona Não seria prudente anteciparmos o mal e procurar imunizarmo nos E de que maneira GARAPON 1999 p 55 Regina Lúcia Teixeira Mendes 2008 p 250 em sua tese de doutorado a respeito do princípio do livre convencimento dos juízes destacou que asos juízasjuízes conferem respostas diferentes para casos semelhantes o que leva as partes processuais a desenvolverem um sentimento de insegurança em relação às instituições jurídicas Além disso a autora salienta que a fragilidade do reconhecimento atribuído aos tribunais contribui para aumentar o afastamento entre o direito a Justiça e a sociedade no Brasil MENDES 2008 p 250 Para Theóphilos Rifiotis 2004 no que diz respeito à judicialização dos conflitos conjugais essa não nos colocaria diante de um acesso direto à Justiça e nem de uma nova forma de democratização muito embora faça parte das sociedades democráticas Em casos específicos este fenômeno limita ou ameaça a cidadania e a democracia Especialmente em relação às questões que envolvem a violência conjugal o autor salienta que Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 125 A Judiciarização é apresentada como conjunto de práticas e valores pressupostos em instituições como a Delegacia da Mulher e que consiste fundamentalmente em interpretar a violência conjugal a partir de um ponto de uma leitura criminalizante e estigmatizada contida na polaridade vítima agressor ou na figura jurídica do réu A leitura criminalizadora apresenta uma série de obstáculos para a compreensão e intervenção nos conflitos interpessoais RIFIOTIS 2004 p89 Segundo Rifiotis 2004 a violência conjugal passa a ser interpretada pelo Judiciário a partir da dualidade vítima versus agressor esquecendose da complexidade que envolve os conflitos conjugais Para Rifiotis a judicialização aparece como uma soluçãoproblema já que o jurídico é ao mesmo tempo uma solução e um problema uma soluçãoproblema Ele não deve ser considerado um fim em si mesmo e tampouco os objetivos sociais projetados sobre ele se realizam automaticamente devendo ser objeto de monitoramento contínuo como condição necessária para a sua efetividade RIFIOTIS 2008 p 230 grifei Por outro lado a judicialização da violência contra as mulheres pode ser uma forma de garantir maior acesso à justiça e de promover a visibilidade de problemas considerados privados Para Lilia Guimarães Pougy 2010 p 82 a judicialização da violência contra a mulher contribui para a alteração das relações de força entre os sujeitos bem como para a concretização da Lei Maria da Penha e para a realização da Justiça Essas considerações encontram respaldo nos apontamentos de Cinthia de Mello Vitório 2010 p 86 No que tange à judicialização da vida privada cabe ressaltar que o enfrentamento da violência de gênero não pode ser considerado como um fenômeno negativo mas como uma conquista para as mulheres vítimas de violência Debert e Gregori 2008 p166 salientam que apesar das críticas realizadas em relação à judicialização da violência de gênero no sentido de que este movimento estimularia certa dissolução da cultura cívica é importante lembrar que as Delegacias Especializadas de atendimento à Mulher DEAMs assim como a própria Lei Maria da Penha são fruto das reivindicações dos movimentos feministas Em outras palavras a judicialização da violência de gênero foi uma consequência das reivindicações dos movimentos feministas por uma lei específica para os casos de violência contra a mulher Dessa forma não há como dizer que estaríamos diante do poder de ninguém mas sim de uma outra forma de exercício da cidadania Além disso tratase de evidenciar na esteira de movimentos feministas que afirmam que o privado é público a problemática decorrente da dicotomia públicoprivado ainda presente no imaginário de muitos juristas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 126 CONSIDERAÇÕES FINAIS As peculiaridades que envolvem a judicialização da violência contra as mulheres têm demonstrado ser este um fenômeno complexo Se por um lado a judicialização pode estar proporcionando um palco propício para que as mulheres vítimas de violência doméstica reivindiquem seus direitos por outro uma possível idealização da eficácia do Poder Judiciário frente a essas demandas poderá servir para inviabilizar outras questões O objetivo não é destacar se por um lado a judicialização é positiva e por outro ela é negativa mas compreender a complexidade que envolve estes processos a partir das práticas jurídicas em suas relações com os sujeitos de direito tendo em vista principalmente que a judicialização da violência contra as mulheres evidencia uma soluçãoproblema RIFIOTIS 2008 Ainda que possamos fazer reflexões generalistas somente as pesquisas empíricas dos modos de produzir Justiça nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher poderão demonstrar suas singularidades E dessa forma realizar uma nova leitura das nossas teorias sobre a judicialização da violência contra a mulher Esta tem sido a agenda tanto acadêmica analítica quanto dos movimentos feministas REFERÊNCIAS AMORIM Maria Stella A administração da violência cotidiana no Brasil a experiência dos Juizados Especiais Criminais In AMORIM Maria Stella LIMA Robert Kant de Juizados Especiais Criminais Sistema Judicial e Sociedade no Brasil Niterói Intertexto 2003 AMORIM Maria Stella Despenalização e penalização da violência contra a mulher R SJRJ Rio de Janeiro n 22 p 111128 2008 BANDEIRA Lourdes Três décadas de resistência feminista contra o sexismo e a violência feminina no Brasil 1976 a 2006 Sociedade Estado n2 v 24 p 401 438 2009 BANDEIRA Lourdes SUÁREZ Mireya Org violência Gênero e Crimes no Distrito Federal Brasília Paralelo 15Editora UNB 1999 BRASIL Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos Lei nº 11340 de 07 de agosto de 2006 Portal da Legislação Disponível em wwwplanaltogovbr Acesso em 10 maio 2010 BRUNO Denise Duarte Jurisdicionalização racionalização e carisma As demandas de regulação das relações familiares ao poder judiciário gaúcho 2006 174f Tese Doutorado Curso de Sociologia UFRGS Rio Grande do Sul 2006 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 127 CAMPILONGO Celso Apresentação realizada na sessão O judiciário e o acesso à justiça In SADEK Maria Teresa Org O Judiciário em debate São Paulo IDEPS Editora Sumaré 1995 p 930 CAMPOS Carmen Hein de Razão e sensibilidade Teoria Feminista do Direito e Lei Maria da Penha In Campos Carmen Hein de Org Lei Maria da Penha Comentada em uma perspectiva jurídicofeminista Rio de Janeiro Lumen Juris 2011 p112 CAMPOS Carmen Hein de A CPMI da violência contra a Mulher e a implementação da Lei Maria da Penha Revista de Estudos Feministas Florianópolis n 2 v 23 n 2 maioago 2015 p 519 531 CÁRCOVA Carlos Maria Direito Política e Magistratura Trad de Rogério Viola Coelho Marcelo Ludwig Dorneles São Paulo LTR 1996 CORTIZO María del Carmem GOYENECHE Priscila Larratea Judiciarização do privado e violência contra a mulher Revista Katál Florianópolis n 1 v13 p 102109 janjun 2010 DEBERT Guita Grin Desafios da politização da Justiça e a Antropologia do Direito Revista de Antropologia São Paulo USP n 2 v 53 p 476 492 2010 DEBERT Guita Grin BERALDO DE OLIVEIRA Marcella Os Modelos Conciliatórios de Solução de conflitos e a violência doméstica Cadernos Pagu n 29 p 305 337 juldez 2007 DEBERT Guita Grin GREGORI Maria Filomena violência e gênero novas propostas velhos dilemas Revista brasileira de Ciências Sociais online n 66 v 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às Mulheres o futuro dos direitos à nãoviolência Boletim Cndm Brasília DF v1 p 3353 2001 MACHADO Isadora Vier Da Dor no corpo à dor na alma uma leitura do conceito de violência psicológica da Lei Maria da Penha 2013 282f Tese Doutorado no Programa de PósGraduação Interdisciplinar em Ciências Humanas Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 2013 MATOS Myllena Calazans CORTES Iáris O Processo de criação aprovação e implementação da Lei Maria da Penha In CAMPOS Carmen Hein de Org Lei Maria da Penha Comentada em uma perspectiva jurídicofeminista Rio de Janeiro Lumen Juris 2011 p3964 OST François Júpiter Hércule Hermes Tres modelos de juez Doxa Cuadernos de Filosofía del Derecho Alicante v VI n 14 p 170194 1993 PASINATO Wânia SANTOS Cecília MacDowell violência contra as Mulheres e violência de Gênero Notas sobre Estudos Feministas no Brasil 2005 Disponível em httpwwwnevusporgdownloadsdown083pdf Acesso em out de 2011 PIMENTEL Silvia PIOVESAN Flavia A Lei Maria da Penha na perspectiva da responsabilidade internacional do Brasil In Campos Carmen Hein de Org Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídicofeminista Rio de Janeiro Lumen Juris 2011 p101118 POUGY Lilia Guimarães Desafios políticos em tempos de Lei Maria da Penha Rev Katál Florianópolis n 1 v 13 p 76 85 janjun 2010 RIFIOTIS Theophilos Nos campos da violência diferença e positividade In Antropologia em Primeira Mão Programa de PósGraduação em Antropologia Social UFSC 19130 1997 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 129 RIFIOTIS Theophilos As delegacias especiais de proteção à mulher no Brasil e a judiciarização dos conflitos conjugais Sociedade e Estado Brasília n 1 v 19 p 85119 janjun 2004 RIFIOTIS Theophilos Judiciarização das relações sociais e estratégias de reconhecimento repensando a violência conjugal e a violência intrafamiliar Rev Katál Florianópolis n 2 v 11 p 225236 juldez 2008 ROJO Raúl Enrique La Justicia como instancia simbólica y la reconstrucción del sujeto de derecho Revista da Faculdade de Direito da UFRGS Porto Alegre nº 20 p 293304 2001 ROJO Raúl Enrique Jurisdição e civismo a criação de instâncias para dirimir conflitos no Brasil e no Quebec In ROJO Raúl Enrique Sociedade e direito no Quebec e no Brasil Porto Alegre Programas de Pósgraduação em Direito e em Sociologia da UFRGS 2003 p 2142 TEIXEIRA MENDES Regina Lúcia Dilemas da decisão judicial As representações de juízes brasileiros sobre o princípio do livre convencimento motivado 2008 267f Tese Doutorado em Direito Universidade Gama Filho Programa de Pósgraduação em Direito Rio de Janeiro 2008 VIANNA Luiz Werneck CARVALHO Maria Alice Rezende de MELO Manuel Palacios Cunha BURGOS Marcelo Baumann A Judicialização da política e das relações sociais no Brasil Rio de Janeiro Revan 1999 VITÓRIO Cinthia de Mello A aplicabilidade da Lei Maria da Penha no enfrentamento da violência de gênero Uma análise da suspensão condicional do processo 2010 157f Dissertação Mestrado Curso de História História Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2010 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 130 PRÁTICAS PROFISSIONAIS E SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS À VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES NA PERSPECTIVA DE PROFISSIONAIS DE UMA CASA ABRIGO Scheila Krenkel1 Carmen Leontina Ojeda Ocampo Moré2 RESUMO O objetivo deste estudo qualitativo foi compreender as práticas profissionais e os significados atribuídos à violência contra mulheres no contexto de uma casaabrigo Foram entrevistadas 10 profissionais de uma casaabrigo localizada da Região Sul do Brasil A organização e análise dos dados tiveram como base a Grounded Theory e contaram com o auxílio do software Atlasti 70 Os resultados mostraram que a prática profissional é influenciada tanto pela qualidade nas relações cotidianas de trabalho quanto pelas intercorrências diárias e estrutura física da casaabrigo A violência em si foi significada a partir de adjetivos quanto ao não reconhecimento da condição humana da pessoa e também referida diretamente à violência contra a mulher Os desencadeadores da violência foram relacionados a estereótipos de gênero e violência na família de origem O retorno ou manutenção da relação com o autor da violência ocorreu principalmente por questões familiares e culturais provocando posturas distintas entre as profissionais Considerase necessário o desenvolvimento de programas de capacitação para profissionais que atuam no contexto da violência contra a mulher sobre questões que sustentem a multideterminação do fenômeno da violência visando seu aperfeiçoamento técnico instrumental Palavraschave Violência contra a mulher Práticas profissionais Casaabrigo Violência INTRODUÇÃO A violência contra a mulher é definida como todo o ato de violência de gênero que resulte ou possa resultar em dano físico sexual ou psicológico por ameaça coação ou privação da liberdade tanto na esfera pública quanto privada ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS ONU 1993 online Este tipo de violência é considerado uma violação dos direitos humanos e um problema de saúde pública No mundo 30 das mulheres que vivem em uma relação íntimaafetiva relatam já terem sofrido violência física ou sexual ao longo da relação e 38 dos assassinatos de mulheres são cometidos por seus parceiros ou ex ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE OMS 2016 No contexto nacional estimase que nove mulheres sofram violência física por minuto e que ocorrem 13 feminicídios a cada dia WAISELFISZ 1 Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC 2018 PósDoutoranda pelo Programa de PósGraduação em Psicologia UFSC Bolsista PNPDCAPES scheilakrenkelgmailcom 2 Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUCSP 2000 PósDoutora pela Universidade de Lisboa ULisboa 2018 Professora Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC carmenloomgmailcom Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 131 2015 Os principais autores da violência são os parceiros ou exparceiros íntimos e na sua maioria utilizam arma de fogo objeto cortante ou estrangulamento para consumar seu crime WAISELFISZ 2015 No Brasil o problema da violência contra mulheres passou a ter mais visibilidade a partir da década de 1980 sendo pauta de debate nas áreas políticas e sociais Dentre as ações e medidas criadas para enfrentar este problema destacamse a Delegacia Especializada para o Atendimento de Mulheres DEAM 1985 a Secretaria de Políticas para Mulheres SPM 2003 a Lei Maria da Penha LMP 113402006 e a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulheres 2011 A Lei Maria da Penha foi um marco importante em termos de legislação contra a impunidade dos autores da violência e elaboração de mecanismos para reduzir a violência contra as mulheres integrando políticas públicas e órgãos responsáveis pela proteção da mulher BRASIL 2011 Neste âmbito está a criação de casasabrigo para mulheres em situação de violência que estão sob risco iminente de morte BRASIL 2011 Estes locais fazem parte do conjunto de setores que compõem a rede de suporte social destinada ao enfrentamento deste tipo de violência Entendese por rede de suporte social as práticas realizadas pelas instituições e organizações formais dirigidas à prestação de serviços e às ações de prevenção e promoção da saúde no contexto comunitário ORNELAS 2008 As casasabrigo são recursos institucionais de alta complexidade e tem por objetivo garantir a integridade física e psicológica das mulheres e seus filhos menores de 18 anos que estão em situação de violência e sob risco iminente de morte BRASIL 2011 No Brasil existem 64 casasabrigo 21 delas na região Sul onde foi realizado este estudo São locais temporários seguros e que ficam em endereço sigiloso BRASIL 2011 A equipe mínima da casaabrigo deve ser composta por psicóloga assistente social pedagoga profissional de educação infantil educadora social cozinheira e motorista BRASIL 2005 Os atendimentos realizados pelas profissionais da área da Psicologia Serviço Social e pelas educadoras sociais visam proporcionar informação e acesso a serviços instruindo as mulheres a reconhecerem seus direitos como cidadãs e os meios para efetiválos BRASIL 2011 O trabalho profissional desta equipe pautase no resgate da autoestima no favorecimento do exercício e reconstrução de cidadania na ruptura da violência e na busca pela igualdade de direitos das mulheres como protagonistas de sua própria história BRASIL 2005 2011 O acesso às casasabrigo ocorre por meio do encaminhamento de diferentes portas de entrada por serviços especializados ou não que compõem a rede de suporte e enfrentamento da violência contra a mulher Para serem encaminhadas para a casaabrigo as mulheres devem Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 132 necessariamente realizar a denúncia contra o autor da violência Boletim de Ocorrência Sua permanência no local é determinada de acordo com cada caso considerando o estado psicológico e condições de segurança necessárias para retomar socialmente suas vidas BRASIL 2005 Estudos realizados com profissionais que atendem mulheres em situação de violência eou com as próprias mulheres revelam que os principais desencadeadores da violência estão relacionados ao uso de álcool e outras drogas KRENKEL et al 2015 VIEIRA HASSE 2017 VILLELA et al 2011 ao fato de ter vivenciado violência na família de origem BEZERRA et al 2016 SANTOS CASTRO LIMA 2017 por ciúmes desconfiança dificuldades financeiras SANTOS et al 2017 e por estereótipos de gênero principalmente o machismo ACOSTA et al 2015 BEZERRA et al 2016 SANTOS et al 2017 Já os motivos elencados que levam as mulheres a manter ou retornar à relação com o autor da violência são terem filhos pequenos não conseguirem ou não acreditarem que podem viver sozinhas eou por terem um sentimento de afeto pelo companheiro COHEN IMACH 2013 KRENKEL et al 2015 OTHMAN GODDARD PITERMAN 2014 PORTO BUCHERMALUSCHKE 2014 Diante da situação da violência contra mulheres a importância do trabalho articulado e intersetorial desenvolvido pelos setores da rede de suporte social foi sinalizado como uma das principais medidas práticas para o enfrentamento da violência constatado em várias pesquisas teóricas e empíricas sobre o tema CANTERA CABEZAS 2002 LISBOA PINHEIRO 2005 MENEZES et al 2014 SANTOS FREITAS 2017 VIEIRA HASSE 2017 No estudo de Osis Pádua e Faúndes 2013 foram evidenciadas as barreiras que dificultavam o atendimento dos profissionais para com as mulheres em situação de violência nas DEAM tais como falta de reciclagem e treinamento de estrutura física de integração entre os órgãos responsáveis e a necessidade de abertura de mais casasabrigo Já o estudo de Vieira e Hasse 2017 mostrou diferentes sentimentos dos profissionais em torno da sua prática nesse contexto impotência frustração medo tristeza estresse e ansiedade além de se sentirem despreparados para lidarem com o tema da violência contra mulheres Ao realizar a revisão de literatura para este estudo nas bases de dados BVSPsi Pepsic Scopus e Social Service Abstract ambas por meio do Portal CAPES observouse que há maior número de artigos empíricos com profissionais da área da saúde sobretudo os da atenção primária Poucos artigos realizados com profissionais vinculados à rede de assistência social para o atendimento de mulheres em situação de violência foram encontrados o que revela uma lacuna na produção científica nesta área Assim diante do exposto o objetivo deste estudo foi Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 133 compreender as práticas profissionais e os significados atribuídos à violência contra mulheres no contexto de uma casaabrigo Esperase com esta pesquisa evidenciar o funcionamento de uma casaabrigo para mulheres em situação de violência como parte integrante do conjunto de setores da rede de suporte social e conhecer o que pensam as profissionais que atuam nesse contexto Também contribuir para ampliar a produção do conhecimento na área e fomentar reflexões sobre a importância da formação profissional em torno das questões que sustentem a multideterminação do fenômeno estudado Por meio deste estudo almejase ainda oferecer possibilidades de problematização quanto à desconstrução de significados que possam estar fundamentados em questões culturais fortemente influenciadas pelo sistema patriarcal enraizado nas diferentes estruturas sóciopolíticas da sociedade 1 MÉTODO Participaram desta pesquisa qualitativa 10 profissionais que trabalhavam em uma casa abrigo para mulheres em situação de violência localizada na Região Sul do Brasil Os critérios para inclusão das participantes neste estudo foram a Compor a equipe interdisciplinar permanente psicóloga assistente social coordenação local e pedagoga ou profissional de educação infantil ou educadora social de apoio técnico enfermeira nutricionista e advogada ou operacional da casaabrigo agente administrativo cozinheira auxiliar de conservação e limpeza segurança e motorista Brasil 2005 E b Ter pelo menos um ano de atuação profissional no atendimento de mulheres abrigadas por situação de violência Das 10 participantes oito eram educadoras sociais uma psicóloga e uma assistente social As educadoras sociais trabalhavam na casaabrigo em turnos de 12h por dia com jornada de trabalho 12x36 trabalha 12 horas descansa 36 A psicóloga e a assistente social trabalhavam em regime de 40 horas semanais na Secretaria de Assistência Social do município atendendo às mulheres abrigadas de duas a três vezes por semana enquanto estas permaneciam na casaabrigo eou conforme necessidade depois que saíam do local Todas as participantes eram do gênero feminino e tinham idade entre 23 e 64 anos Com relação à formação sete participantes tinham Ensino Superior Completo Destas somente duas a psicóloga e a assistente social atuavam na sua área Três profissionais tinham especialização mas em nenhum caso era voltada para o trabalho com situações de violência Quanto ao estado civil três eram casadas três solteiras duas divorciadas uma vivia em união estável e outra era viúva Seis profissionais tinham filhos e todas relataram ter uma crença religiosa com predomínio da religião católica sete participantes duas se declararam espíritas e uma cristã Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 134 Em cinco casos as profissionais começaram a trabalhar na casaabrigo por designação institucional ou seja por estarem trabalhando em outro setor da prefeitura e em razão da necessidade de profissionais no local elas foram transferidas As outras cinco participantes mencionaram que puderam escolher trabalhar na casaabrigo ao serem chamadas para assumir o cargo decorrente do concurso público no qual foram aprovadas Considerase importante mencionar que a escolha por trabalhar na casaabrigo para mulheres em situação de violência esteve pautada nos seguintes motivos trabalhar em algum setor do Centro de Referência de Assistência Social CRAS estar na área de formação conseguir conciliar trabalho e faculdade e em dois casos pela casaabrigo ficar próxima à residência das profissionais O tempo de atuação das 10 profissionais na casaabrigo variou entre três e 11 anos Para a coleta das informações utilizouse a entrevista semiestruturada composta por um roteiro de perguntas baseado no objetivo central do estudo Os itens norteadores da entrevista foram a dados sociodemográficos b prática profissional na casaabrigo c violência contra a mulher d relação das mulheres com o autor da violência As oito educadoras sociais foram convidadas pessoalmente na casaabrigo após o período de observação participante realizada pela primeira autora do estudo A psicóloga e a assistente social foram convidadas por telefone Todas as profissionais aceitaram o convite Com as educadoras sociais as entrevistas ocorreram na casaabrigo em local reservado durante seu horário de trabalho a pedido das participantes A coleta realizada com a psicóloga ocorreu na prefeitura e com a assistente social na biblioteca de uma universidade ambas fora de seu horário de trabalho Todas as entrevistas foram gravadas transcritas e posteriormente analisadas A organização e análise das informações coletadas foram com base na Grounded Theory CHARMAZ 2006 a qual propõe a utilização de diferentes referenciais teóricos associados à observação e análise do pesquisador A Grounded Theory também foi utilizada para a organização das informações seguindo uma proposta de etapas de codificação aberta axial e seletiva STRAUSS CORBIN 2008 Para auxiliar neste processo utilizouse o software para análise de dados qualitativos Atlasti 70 o qual possibilitou a leitura organização e sistematização dos dados em categorias de análise Por meio do processo descrito os resultados provenientes da análise realizada foram reunidos em três categorias e suas respectivas subcategorias conforme mostra a Figura 1 Após serem estabelecidas inicialmente as categorias passaram pela análise de uma pesquisadora experiente em pesquisa qualitativa e processo de categorização de dados a fim de revisar a adequação e coerência entre os resultados obtidos e o objetivo do estudo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 135 Figura 1 Categorias e subcategorias de análise Fonte Elaborado pelas autoras Esta pesquisa teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos Parecer consubstanciado nº 1183146 e todos os preceitos éticos da profissão foram seguidos Para manter o sigilo das informações e anonimato das participantes ao longo deste artigo elas serão identificadas pela letra P seguida do número gerado pela ordem de entrevista função e tempo de atuação TA na casaabrigo Por exemplo P1 educadora social TA 10 anos 2 RESULTADOS Diante das peculiaridades da casaabrigo onde foi realizada esta pesquisa e dos preceitos da pesquisa qualitativa tendo o contexto como gerador de significado para melhor compreensão dos resultados descritos nesta seção considerase importante apresentar o local em que trabalhavam as profissionais participantes deste estudo A casaabrigo em questão tem capacidade para acolher sete mulheres e seus filhos até 18 anos A Equipe é composta por uma coordenadora oito educadoras sociais uma faxineira uma cozinheira um motorista uma psicóloga e uma assistente social Quando chegam ao local as mulheres em situação de violência são recebidas pelas educadoras sociais que lhes oferecem alimentação banho e roupascalçados se necessário Após são chamadas para conversar e relatar os motivos que levaram ao encaminhamento para a casaabrigo Neste momento também são tiradas cópias Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 136 dos documentos das mulheres e filhos se estes as acompanham e é preenchida uma ficha com dados pessoais informações sobre sua saúde autor da violência filhos configuração familiar e pedese contato de pessoas que serão avisadas sobre a estada da mulher na casaabrigo e que eventualmente possam auxiliála de alguma maneira Os pertences das mulheres são revistados no intuito de ver se há objetos perfuro cortantes medicamentos eou drogas Além disso o celular é retirado e só é devolvido quando as mulheres saem da casaabrigo Isto para evitar contato com o autor da violência ou que este as localize tendo em vista a função protetiva da casaabrigo que fica em endereço sigiloso Caso as mulheres queiram conversar com amigos ou familiares elas podem telefonar diretamente da casaabrigo ou solicitar uma visita que ocorre na Secretaria de Assistência Social Após o relato sobre o motivo do encaminhamento para a casaabrigo são passadas para as mulheres abrigadas as regras da casa horários para acordar 7h e dormir 21h horário das refeições café da manhã almoço café da tarde e jantar e distribuição das tarefas lavar e secar a louça limpar a cozinha lavar sua própria roupa As crianças em idade escolar são matriculadas em uma escola próxima à casaabrigo e uma educadora social as acompanha no trajeto de ida e volta As demais crianças ficam com a mãe na casaabrigo Quanto à rotina de trabalho das profissionais do local listamse as seguintes atividades abrigamento das mulheres em situação de violência organização da casa atividades dascom as mulheres e refeições acompanhamento das mulheres a médicos advogados assistência social administração de medicamentos conforme horário prescrito atendimento psicológico e assistencial registro diário no livro de plantão As profissionais também auxiliam as mulheres abrigadas a buscar emprego e local para morar este último caso desejarem se separar do autor da violência As mulheres abrigadas saem da casaabrigo em duas situações quando estão em condições psicológicas e de segurança após aval das profissionais da psicologia e do serviço social ou por vontade própria tendo neste caso que assinar um termo de responsabilidade Em ambos os casos são encaminhadas para atendimento no Centro de Referência Especializado de Assistência Social CREAS recebem o número de telefone do CREAS e da casaabrigo e uma educadora social acompanha as mulheres até o local onde irão morar Com base nessa contextualização a seguir serão descritas as categorias e subcategorias que integram este artigo as quais apresentam a prática profissional na casaabrigo os significados atribuídos à relação das mulheres com o autor da violência além dos significados Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 137 da violência em si Cabe mencionar que neste estudo considerase autor da violência o parceiro ou exparceiro íntimo das mulheres abrigadas 21 Desenvolvimento da prática profissional frente à violência contra a mulher Esta categoria aborda as relações cotidianas de trabalho das profissionais entre elas e com os profissionais dos demais setores da rede de suporte social os aspectos que influenciam no seu trabalho e as práticas de autocuidado presentes no contexto do trabalho com mulheres em situação de violência Quanto às Relações cotidianas de trabalho as participantes relataram que existe uma ajuda mútua entre si trocas de favores e que trabalham unidas para fazer o melhor que podem No que tange à relação com profissionais dos demais setores da rede de suporte social foi mencionado sobre a boa relação com os profissionais da DEAM Escola Secretaria de Assistência Social e com a Polícia Civil Por outro lado a falta de conhecimento sobre a casaabrigo por parte dos demais profissionais dos Setores da Rede Ministério Público Conselho Tutelar p ex dificulta o trabalho na casaabrigo Estes profissionais nem sempre conhecem o fluxo de encaminhamento para a casaabrigo quando encaminhar e qual o funcionamento do local fazendo promessas às mulheres que não poderão ser cumpridas como por exemplo afirmar às mulheres que poderão sair da casaabrigo para trabalhar Conforme disseram as participantes esta situação acontece devido à alta rotatividade de profissionais nestes setores e por não serem passadas todas as informações necessárias a eles o que dificulta a relação com as mulheres abrigadas e sua adaptação no local As profissionais também mencionaram Aspectos que influenciam na prática profissional como a estrutura física precária da casaabrigo com mofos falta de pintura fiação antiga brinquedoteca inacabada além de não receberam insalubridade Ao serem questionadas sobre as principais intercorrências no cotidiano de trabalho as participantes citaram sobre a dificuldade que as mulheres abrigadas têm de falar sobre o que aconteceu eventuais brigas entre as mulheres que estão na casaabrigo e o não cumprimento das regras do local Também a mistura de demandas que são os casos em que não ocorreu violência contra mulheres e o fato de não ter espaço físico adequado para realizar atividades com as crianças e as mulheres abrigadas Ao serem questionadas sobre a percepção do trabalho em si as respostas das participantes variaram entre positiva e negativa A percepção positiva referiuse a gostarem de desempenhar seu trabalho doação ao trabalho a percepção do olhar sobre a violência que antes não tinham influenciar de maneira positiva a vida das mulheres após saírem do local e o Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 138 sentimento de gratificação quando o trabalho é reconhecido O relato a seguir ilustra a percepção positiva do trabalho tu poder ajudar um pouquinho botar uma sementinha às vezes ela cresce ela germina ela vai outras não mas é saber que se encontra uma pessoa na rua ela te agradece e tu nem sabe o que fez P7 educadora social TA 3 anos Por outro lado as participantes mencionaram percepções negativas como ter dificuldades de tratar cada mulher de maneira singular mediar as brigas que existem entre as abrigadas sentimento de frustração e falta de suporte psicológico para as profissionais Tendo em vista o contexto de trabalho que envolve situações de violência contra mulheres foi questionado às participantes sobre as Práticas de autocuidado sobre as quais foram relatadas féoração leitura sobre autoajuda atividades físicas jogos cantar e deixar as situações da porta pra dentro Como sugestões para contribuir com a melhora do desempenho e prática profissional as participantes referiramse à reforma da casaabrigo revisão das regras e da ficha de acolhimento qualificação profissional nas questões de violência de gênero e atendimento psicológico para as profissionais do local 22 Significados atribuídos à violência Esta categoria trata sobre os significados que as profissionais atribuem à violência por meio de adjetivos a ela vinculados e também se remetendo especificamente à violência contra mulheres No que se referem à Adjetivação da violência subcategoria esta nomeada no sentido do não reconhecimento da condição humana de uma pessoa as participantes mencionaram os diferentes tipos de violência que ocorrem na relação entre parceiros íntimos e entendem este fenômeno como a reunião de múltiplos fatores não como uma causa única Assim a violência foi adjetivada como falta de amor aquilo que causa impotência angústia eou opressão sofrimento humano cruel negar ajuda e tudo o que causa dor física ou emocional a outrem O relato a seguir ilustra esta subcategoria É uma forma de roubar a identidade uma forma de menosprezar o outro uma forma de oprimir de cercear e acho que não deve acontecer de jeito nenhum Enfim fazer o outro de joguete muitas vezes de controlar o outro por força ou poder de persuasão e pode se aparecer de diversas formas P10 psicóloga TA 3 anos As participantes também atribuíram o significado da violência voltada especificamente Contra a mulher Disseram que tudo o que influencia na autoestima da mulher é uma violência ou seja na percepção das profissionais aquilo que cause mal estar que faça com que a mulher não acredite em si mesma formas de reprimir ou de menosprezar é violência É tudo que traga Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 139 qualquer mal estar à mulher ou seja fazer com que não acredite em si mesma fazer pensar que ela não é capaz de nada acho que isso é a pior violência P6 educadora social TA 3 anos As participantes mencionaram ainda que para elas tudo o que faça uma mulher se sentir impotente ofendida maltratada ou que lhe cause dor também se caracteriza como violência Além disso o significado atribuído à violência remeteuse ao julgamento falsa mensagem de proteção e ao controle exercido pelo autor da violência 23 Significados atribuídos à relação da mulher com o autor da violência Esta categoria apresenta informações sobre os significados que as participantes atribuem ao desencadeamento da violência e ao retorno ou manutenção da relação das mulheres com o autor da violência quando estas saem da casaabrigo Para as participantes os Desencadeadores da violência ocorrem pelo fato da violência já acontecer na família de origem ou seja por já fazer parte da história de vida dessas mulheres e por terem este modelo de resolução de conflito submissão Também foram mencionados baixa autoestima e isolamento social da mulher provocado pelo autor da violência uso de álcooldrogas ciúmes desconfiança e infidelidade por parte do parceiro e dificuldades financeiras falta de tolerância e de saber ceder como uma dificuldade do casal Ainda sobre os desencadeadores da violência foram citados os estereótipos de gênero como machismo desorganização da casa falta de rotina correria do dia a dia e disputa pelo controle O depoimento a seguir exemplifica algumas dessas características Como a gente vive numa sociedade machista e paternalista que acaba vendo a mulher como objeto o homem se sente muito mais empoderado de fazer o que bem entende com ela e achar que isso não vai ter consequências E por outro lado a mulher que sofreu uma criação que foi machista por parte dos pais também acha que deve se submeter porque esse é o papel da mulher e é a vida que é assim mesmo e tem que aturar e nada pode ser feito P2 educadora social TA 3 anos Sobre o Retorno ou manutenção da relação com o autor da violência as participantes responderam de acordo com sua experiência no tema Disseram que o retorno ocorre após as mulheres saírem da casaabrigo por terem filhos pequenos porque acreditam que não são capazes de viver sozinhas e porque gostam do companheiro eu percebo que a mulher ela se esquece muito dela pelos filhos geralmente eu acho ou pelo medo de não conseguir ficar sozinha ou coisa assim mas eu acho que se ela quer dar uma chance todo mundo merece uma chance P8 educadora social TA 9 anos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 140 Nessa direção as participantes também se posicionaram sobre como se sentem na condição de profissionais em caso de retorno ou manutenção da relação com o autor da violência quando as mulheres saem da casaabrigo Para algumas participantes houve uma mudança de compreensão a respeito desde quando iniciaram o trabalho na casaabrigo até o momento da entrevista Para elas no início eram contra o retorno da relação depois com o tempo perceberam que com ajuda profissional é possível ter uma boa relação porque entendem que muitas vezes existe amor entre o casal Outras disseram que é uma decisão da mulher e que precisa ser respeitada que não cabe às profissionais julgar o que a mulher entende que seja melhor para ela tal como ilustra o relato a seguir Quem é gente pra julgar Ela é que tem que saber o que é melhor pra ela e a gente sabe que algumas mulheres elas não conseguem às vezes tem um vínculo emocional elas realmente gostam do parceiro elas amam então a gente trabalha com todas as suas angústias Eu particularmente acho que nem todas as pessoas tão prontas para certos tipos de mudança e às vezes nem querem P6 educadora social TA 3 anos Duas participantes relataram que sentem como se todo o seu trabalho fosse em vão Há a sensação de não ter ajudado e de ter feito um trabalho de conscientização que não serviu para nada e que invés de ser um trabalho que ajudasse as mulheres seguirem em frente o fato de elas voltarem a viver com o autor da violência é como caminhar para trás tal como ilustra o seguinte relato Eu acho que é caminhar para trás porque quando elas chegam aqui elas estão no fundo do poço e aqui é que elas têm a chance de seguir uma nova vida Aí sinto que o nosso serviço não valeu pra nada sabe P4 educadora social TA 3 anos 3 DISCUSSÃO Conforme os resultados expostos as profissionais da casaabrigo se referem à boa relação interpessoal que há entre elas e com alguns setores da rede de suporte social como ferramentas que auxiliam no desempenho de suas atividades laborais cotidianas Por outro lado a rotatividade de profissionais de alguns setores e a falta de articulação e conhecimento sobre as atribuições e fluxo da casaabrigo dificulta o trabalho dessas profissionais Este resultado corrobora com o estudo de Santos e Freitas 2017 em que a desarticulação entre os setores da rede foi apontada como um dos principais motivos que pode prejudicar a continuidade da assistência às mulheres em situação de violência por parte de seus parceiros ou ex Quanto ao desconhecimento da prática ter um fluxo que defina o trabalho em rede auxilia no conhecimento do trabalho de cada ator envolvido no processo e no melhor encaminhamento das mulheres que procuram ajuda diante de uma situação difícil como é o caso da violência Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 141 SANTOS FREITAS 2017 Só é possível haver interação adequada entre a rede de suporte social se houver um fluxo de atendimento em que todasos asos profissionais conheçam a atribuição competência e encaminhamento depara cada setor da rede MENEZES et al 2014 visando uma prática integrada com a proposta da política de enfrentamento da violência contra mulheres Nessa direção os profissionais da assistência social participantes do estudo de Vieira e Hasse 2017 apontam para a importância da intersetorialidade e articulação em rede no contexto de trabalho de combate à violência o que dificulta a intervenção profissional quando não ocorre A articulação entre os setores é fundamental pois quando essa intersetorialidade não existe os problemas das mulheres acabam por ser tratados de maneira isolada e parcial o que pode gerar efeitos indesejáveis diante das inúmeras vezes que sua história é repetida CANTERA CABEZAS 2002 Ou seja o fato de as mulheres não sentirem que sua demanda foi atendida e que não houve apoio por parte dos setores da rede pode aumentar a descrença nesses setores e na resolução do problema contribuindo para a permanência na situação de violência Além disso observouse nos resultados do presente estudo que não houve uma formação específica dessas profissionais para atenderem às demandas de violência contra mulheres e com base nos relatos podese inferir que também não existe uma formação específica para as os demais profissionais que atuam nesta rede de enfrentamento A capacitação profissional e formação continuada permitem que asos profissionais conheçam melhor o seu trabalho e aquele desenvolvido nos diferentes setores da rede visando a ampliação de recursos de enfrentamento da violência Ademais auxilia a garantir um atendimento de qualidade às mulheres com o cuidado de não realizar práticas machistas que a revitimizem pois o que acontece é um aprender a partir da prática cotidiana sem um espaço para reflexão sobre a situação de violência Os resultados desta pesquisa mostraram que a falta de estrutura física e a mistura de demandas influenciam na prática profissional corroborando com outros estudos similares OSIS PÁDUA FAÚNDES 2013 VIEIRA HASSE 2017 De acordo com Lisboa e Pinheiro 2005 as condições institucionais precárias estrutura física inadequada e dificuldades para o trabalho em rede dificultam a prática dos profissionais que atuam nesta área Esta é uma realidade não só desta mas de outras casasabrigo e de outros setores da rede de assistência ao enfrentamento da violência contra mulheres que não estão entre as prioridades de investimento nas agendas políticas do Estado Os programas e setores de atendimento da violência contra a mulher não são considerados como prioridade de investimento do poder público o que justifica Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 142 o pouco apoio técnico e financeiro na área LISBOA PINHEIRO 2005 Embora algumas das participantes deste estudo mencionaram percepções positivas sobre o seu trabalho a falta de uma estrutura física adequada afeta as condições de trabalho gera tensão no cotidiano laboral em que além de influenciar no desempenho da prática profissional também influencia no processo de autocuidado das profissionais que trabalham com uma demanda difícil e complexa e que não tem respaldo técnico adequado e acolhimento psicológico que as auxiliem no cotidiano de trabalho Outras participantes citaram percepções negativas sobre o trabalho desempenhado na casaabrigo principalmente no que se refere ao sentimento de frustração relacionado tanto à falta de recursos e condições de trabalho quanto para algumas delas ao se referirem ao retornomanutenção da mulher com o autor da violência O sentimento de frustração e impotência também foi mencionado pelos participantes das pesquisas de Vieira e Hasse 2017 e Villela et al 2011 relacionandoos ao despreparo para trabalhar com o tema da violência e à falta de capacitação que impacta no encaminhamento equivocado No que tange aos desencadeadores da violência observouse que foram relatados aqueles que são externos à relação e confirmados por outros estudos similares uso de álcool e outras drogas KRENKEL et al 2015 VIEIRA HASSE 2017 VILLELA et al 2011 violência na família de origem BEZERRA et al 2016 SANTOS et al 2017 ciúmes desconfiança e dificuldades financeiras SANTOS et al 2017 Destacase ainda características que marcam os estereótipos de gênero como o machismo ACOSTA et al 2015 BEZERRA et al 2016 SANTOS et al 2017 disputa pelo controle falta de rotina e desorganização da casa estas duas últimas atribuídas à mulher que fica em casa e que poderia se responsabilizar por isso Diante desses resultados por um lado conforme apontam Santos et al 2017 se percebe a violência como algo negativo mas ainda há a tendência de justificar o comportamento violento com fatores externos desresponsabilizando o autor da violência pelo ato Assim quando a soberania do homem se sente ameaçada tal como exemplificam os resultados desta pesquisa ciúmes desconfiança infidelidade a violência contra mulheres surge como forma de poder para manter a ordem LISBOA PINHEIRO 2005 Por outro evidenciam significados relacionados a estereótipos de gênero baseado em uma relação de poder caracterizada pela dominação do homem e submissão da mulher violência de gênero As participantes deste estudo são mulheres que cuidam de outras mulheres e sem perceber reproduzem padrões estereotipados sobre a violência que podem sustentar a repetição do seu ciclo Esses padrões de comportamento foram construídos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 143 culturalmente por meio de uma educação que diferencia os papéis de homens e mulheres na sociedade De acordo com o depoimento das participantes os principais motivos que levam as mulheres a permanecerem com o autor da violência são filhos dificuldade de acreditar que conseguem viver sozinhas ou por gostarem do companheiro confirmados também pelas pesquisas de Cohen Imach 2013 Krenkel et al 2015 e Othman Goddard e Piterman 2014 As psicólogas participantes do estudo de Porto e BucherMaluschke 2014 relataram ainda que a permanência na relação pelos filhos está atribuída mais uma vez a um papel social a ser cumprido pela mulher o de manter a família unida Como apontando por uma das participantes do presente estudo não cabe ao profissional julgar as mulheres mas respeitar sua decisão já que existem diferentes razões para a mulher retornar a conviver com o autor da violência O que se evidencia nos relatos das profissionais é que pela sua experiência observam que nem sempre as mulheres querem se separar do autor da violência elas querem apenas que a violência acabe ou seja romper com a violência e não necessariamente com a relação O papel profissional nesse contexto não é o de escolher pelas ou concordar com a decisão das mulheres mas fortalecêlas para estarem cientes dos seus direitos como cidadãs e de que há uma rede de proteção disposta a ajudálas caso venham a sofrer violência novamente Para entender os motivos que levam as mulheres a manter a relação com o autor da violência asos profissionais precisam compreender suas experiências e sentimentos SANTOS FREITAS 2017 além da história de vida das mulheres Assim ser empático à dor e à história do outro faz parte de um atendimento humanizado auxilia na construção do vínculo e gera um atendimento mais eficaz quanto às orientações encaminhamentos e à própria prevenção da repetição da violência SANTOS FREITAS 2017 Nessa direção os resultados sobre o significado da violência mostraram que a adjetivação dada ao fenômeno se remete a termos tanto de quem a pratica por exemplo falta de amor controle negar ajuda ao outro causar dor física ou emocional a outrem quanto de quem a sofre o que causa impotência angústia e opressão As participantes também relacionaram a violência com aquela praticada especificamente contra mulheres Supõese que esta relação tenha ocorrido devido à experiência profissional com a temática em que se coloca a mulher como uma das protagonistas da dinâmica violenta Isto revela que embora se reconheça a complexidade dos elementos em torno da violência e como estes se afetam e retroalimentam a essência da intervenção destas profissionais está relacionada diretamente ao significado que estas atribuem à violência contra a mulher Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 144 Este estudo mostrou que as relações de trabalho crenças sobre o tema da violência bem como a percepção das profissionais em torno dos desencadeadores e relação da mulher com o autor da violência servem de guia para sua prática cotidiana de trabalho e tomada de decisão frente à atuação profissional nesse contexto Nesse sentido a falta de 1 preparação voltada às questões de gênero e sensibilização das profissionais 2 articulação da casaabrigo com os demais setores da rede de suporte social e 3 condições adequadas de trabalho promovem uma prática profissional em que se reproduzem padrões sociais estereotipados e se misturam os conhecimentos adquiridos pela experiência pessoal e outros aprendidos em um cotidiano de trabalho sem treinamento adequado para o atendimento de uma demanda singular como a violência Isto pode resultar na falta de autocuidado gerando tensão estresse e exaustão profissional comprometendo tanto a saúde daquelas que ali trabalham como a qualidade do próprio acolhimento e fortalecimento das mulheres em situação de violência objetivo principal da casaabrigo CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente estudo buscou compreender as práticas profissionais e os significados atribuídos à violência contra mulheres no contexto de uma casaabrigo Os resultados mostraram que as condições relacionais e de estrutura física influenciam o desempenho das práticas profissionais podendo por um lado auxiliar a partir das boas relações interpessoais e por outro gerar tensão pela falta de condições estruturais adequadas A violência em si foi adjetivada por características de quem a sofre de quem a pratica e da violência praticada diretamente contra a mulher Quanto aos desencadeadores da violência as profissionais se referiram principalmente às questões quanto à presença de violência na família de origem Já ao retornomanutenção da relação com o autor da violência estiveram relacionados ao fato de terem filhos das mulheres acharem que não conseguem viver sozinhas ou por gostarem do companheiro O avanço e ineditismo deste estudo residem na possibilidade de dar voz às profissionais de uma casaabrigo tendo em vista que se encontra uma lacuna na literatura de pesquisas com estas es profissionais que embora invisibilizadas os pela produção do conhecimento são as os que em seu trabalho visam diretamente a garantia de direitos das mulheres em situação de violência Além disso esta pesquisa permitiu conhecer o cotidiano de trabalho em uma casa abrigo e os significados que as profissionais que lá estão atribuem à dinâmica presente no ciclo da violência contra mulher A relação entre os significados atribuídos à violência contra as mulheres e a prática profissional ocorre na medida em que conhecer como estas profissionais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 145 entendem a violência e seus desmembramentos permite compreender a implicação disto em seu cotidiano de trabalho e nas tomadas de decisão Cabe salientar que as participantes desta pesquisa são mulheres que cuidam de outras mulheres que não passaram por um processo de preparação ou sensibilização sobre o tema em questão Assim este estudo mostra que a criação de leis e propostas para o enfrentamento da violência devem ser repensadas a partir dos significados que asos profissionais atribuem à violência contra as mulheres e que são invisibilizados culturalmente por estarem sustentados em uma cultura patriarcal enraizada na sociedade Nesse sentido o presente estudo oferece respaldo teóricocientífico para o aperfeiçoamento das políticas públicas tanto no que se refere à inclusão constante da violência contra as mulheres na agenda política quanto às práticas profissionais desempenhadas nos setores da rede de assistência social para o atendimento de mulheres nessa situação O desenvolvimento de modelos de programas de capacitação e formação continuada para profissionais sobre a complexidade e multideterminação da violência e sobre concepção de gênero e aspectos da subjetividade humana seriam úteis visando o aperfeiçoamento técnico instrumental das os profissionais que trabalham com esta demanda específica Além de ampliar o conjunto de recursos para intervenção no cotidiano de trabalho com as capacitações o acolhimento psicológico às aos profissionais pode prevenir o desgaste emocional evitando ou diminuindo o absenteísmo e os afastamentos do trabalho por motivo de saúde Por meio desta pesquisa também foi possível observar um trabalho intersetorial diluído intuitivo e sem protocolos validados Assim ouvir profissionais de outros setores da rede de suporte social seria válido para compreender sua rotina de trabalho os significados atribuídos à violência e as lacunas presentes no atendimento a situações de violência familiar visando o desenvolvimento de estratégias para a melhora do atendimento à população e das condições de trabalho dasos profissionais Ainda acreditase que os resultados apresentados possam contribuir com a criação de indicadores qualitativos servindo como subsídio para que novos estudos possam avaliar as práticas profissionais realizadas em casasabrigo para mulheres em situação de violência Cabe lembrar que este estudo teve como participantes profissionais de uma casaabrigo onde são realizadas práticas específicas em uma determinada região do país Nesse sentido sugerese que os resultados apresentados sejam utilizados considerando o contexto estudado e que novas pesquisas sejam realizadas em outras casasabrigos de outros municípios e regiões a fim de comparar as similaridades e disparidades considerando a multiplicidade social e cultural presentes em todo o país Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 146 REFERÊNCIAS ACOSTA D F GOMES V L O FONSECA A D GOMES G C Violência contra a mulher por parceiro íntimo In visibilidade do problema Texto Contexto Enferm v 24 n 1 1217 2015 BEZERRA J F SILVA R M CAVALCANTI L F NASCIMENTO J L VIEIRA L J E F MOREIRA G A R Conceitos causas e repercussões da violência sexual contra a mulher na ótica de profissionais de saúde Rev Bras Promoç Saúde v 29 n 1 5159 2016 BRASIL Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres Termo de referência Apoio a casas abrigo e centros de referência Brasília DF 2005 BRASIL Secretaria de Políticas para as Mulheres Diretrizes Nacionais para o abrigamento de mulheres em situação de risco e violência Brasília DF 2011 CANTERA L M CABEZAS C La red interprofesional como fundamento para una intervención eficaz en el campo de la violencia de género In M T L Beltrán M J J Tomé E M G Benítez org Violencia y género Espanha Malaga 2002 CHARMAZ K Constructing Grounded Theory A Practical Guide through Qualitative Analysis Introducing Qualitative Methods series Sage Publications Ltd 2006 COHEN IMACH S C Mujeres maltratadas em la actualidad Apuntes desde la clínica y diagnóstico Buenos Aires Paidós 2013 KRENKEL S MORÉ C L O O CANTERA L M E JORGE S S S MOTTA C C L Resonances araing from sheltering in the family dinamics women in situations of violence Universitas Phycologica v 14 n 4 12451258 2015 LISBOA T K PINHEIRO E A A intervenção do Serviço Social junto à questão da violência contra a mulher Katálysis v 8 n 2 199210 2005 MENEZES P R M LIMA I S CORREIA C M SOUZA S S ERDMANN A L GOMES N P Process of dealing with violence against women Intersectoral coordination and full attention Saúde Sociedade v 23 n 3 77886 2014 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS ONU Declaration on the elimination of violence against women General Assembly Resolution nº ARES48104 Geneve United Nations 1993 Disponível em httpwwwunorgdocumentsgares48a48r104htm ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD OMS Violencia contra la mujer Violencia de Pareja y violencia sexual contra la mujer 2016 Disponível em httpwwwwhointmediacentrefactsheetsfs239es ORNELAS J Psicologia Comunitária Lisboa Fim de século 2008 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 147 OSIS M J D PÁDUA K S FAÚNDES A Limitações no atendimento pelas delegacias especializadas das mulheres que sofrem violência sexual Boletim do Instituto de Saúde v 14 n 3 2013 OTHMAN S GODDARD C PITERMAN L Victims Barriers to discussing domestic violence in clinical consultations A qualitative enquiry Journal of Interpersonal Violence v 29 n 8 14971513 2014 PORTO M BUCHERMALUSCHKE J S N F A permanência de mulheres em situação de violência Considerações de psicólogas Psicologia Teoria e Pesquisa v 30 n 3 267 276 2014 SANTOS D F CASTRO D S LIMA E F A NETO L A MOURA M A V LEITE F M C Percepção de mulheres acerca da violência vivenciada Rev Fund Care Online v 9 n 1 193199 2017 SANTOS W J FREITAS M I F 2017 Fragilidades e potencialidades da rede de atendimento às mulheres em situação de violência por parceiro íntimo Rev Min Enferm v 21 n e1048 2017 STRAUSS A CORBIN J Pesquisa qualitativa Técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada Porto Alegre Artmed 2008 VIEIRA E M HASSE M Percepções dos profissionais de uma rede intersetorial sobre o atendimento a mulheres em situação de violência Interface Botucatu v 21 n 60 5162 2017 WAISELFISZ J J Mapa da violência 2015 Homicídio de mulheres no Brasil Brasília DF 2015 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 148 VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA NOS RELACIONAMENTOS AFETIVOS A SUTIL DES ARTE DO ABUSO Mayara de Abreu Stuepp Cardoso1 RESUMO O presente artigo tem o objetivo de levantar aspectos da violência psicológica contra a mulher com recorte metodológico nas relações íntimas de afeto a partir de conceitos teóricos e com base no inciso II artigo 7º da Lei Nº 113402006 Lei Maria da Penha com enfoque nos impactos dessas violências para autodeterminação e autoestima da mulher Através de um estudo bibliográfico primeiramente serão abordados conceitos acerca da desigualdade de gênero e da maneira violenta de lidar com os conflitos conjugais nas relações de poder entre homens e mulheres Em seguida apontase contribuições teóricas sobre essa temática e fazse um recorte da parte legal para trabalhar as categorias definidas como violência psicológica Por fim tecese considerações para identificar possíveis condutas abusivas as consequências na vida da mulher e possiblidades de rompimento com a situação de violência Palavraschave Relacionamento Afetivo Violência Conjugal Violência Psicológica Abuso Psicológico Relacionamento Abusivo INTRODUÇÃO A violência contra a mulher é umas das formas de violação dos direitos humanos e uma questão de saúde pública segundo a ONU LISBOA PINHEIRO 2005 Até meados do século passado a violência contra a mulher praticada por seus esposos era legitimada por uma sociedade patriarcal e machista O espaço doméstico considerado privado era marcado por relações hierarquizadas em que filhos e esposas deviam obediência ao homem provedor e eram considerados relativamente incapazes BIFANO 2009 CUNHA 2015 DIAS 2019 HERMANN 2008 A lei 4121 de 1962 suprimiu a incapacidade relativa da mulher mas ainda colocava o homem como chefe da sociedade conjugal e detentor de maior poder de decisão Com a Lei do Divórcio em 1977 e a presença marcante dos movimentos feministas que lutavam por igualdade de direitos esse cenário começou a mudar Apesar de convenções internacionais que buscavam a eliminação das formas de violência contra a mulher ONU 1979 no Brasil somente com a Constituinte de 1988 é que foi afiançado o princípio da igualdade E somente em 2006 com a Lei Maria da Penha reconhecida pelo Organização das Nações Unidas como umas das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres 1Assistente Social do Poder Judiciário de Santa Catarina PJSC com lotação no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher Comarca da Capital Especialista em Psicopedagogia Institucional pela Faculdade Municipal de Palhoça FMP Especialização em Violência Doméstica em andamento mayaraascardosogmailcom Lattes httpbuscatextualcnpqbrbuscatextualvisualizacvdoidK8067461T7 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 149 e resultante de uma luta histórica dos movimentos feministas e de mulheres BRASIL 2006 é que as mulheres passam a ter assegurado o direito a proteção A violência de gênero e a maneira violenta de lidar com os conflitos conjugais SCHARAIBER et al 2005 apud NETO 2016 é um dos grandes problemas sociais que perpassa as esferas da cultura da segurança pública do sistema de justiça da política de saúde e assistência social e da luta por uma sociedade igualitária Nesse trabalho pretendese trazer alguns aspectos explicativos sobre o conceito de violência nas relações íntimas de afeto a luz da Lei Maria da Penha com enfoque na violência psicológica Um dos objetivos é elucidar aspectos da violência psicológica por vezes sutis naturalizados no cotidiano doméstico e familiar que tornam difícil a detecção de um comportamento abusivo Do mesmo modo a presença de violência conjugal pode acarretar prejuízos psicoemocionais e sociais à mulher em situação de violência ou desencadear processos agravados de violência de gênero Para tanto neste artigo utilizouse como metodologia de pesquisa a análise bibliográfica A construção deste trabalho também foi problematizada e mediada por conhecimentos adquiridos na experiência profissional como Assistente Social do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca da Capital FlorianópolisSC Nessa perspectiva esperase contribuir no campo teórico sobre o tema e na luta pelos direitos das mulheres na nossa sociedade 1 DESENVOLVIMENTO O ambiente doméstico e familiar em tese remete a um lugar de proteção e cuidado Um lugar de afeto tendo em vista que as relações familiares na grande maioria têm origem em um elo de afetividade DIAS 2019 p 28 Todavia a família não é uma mônada e nem uma manada Implica busca da sobrevivência união separação conflitos disputa de autoridade FALEIROS 2014 p 537 Nesse contexto a violência intrafamiliar está ligada a relações hierarquizadas de poder e as dificuldades encontradas pelas famílias na efetivação das suas relações com o trabalho a educação os valores a droga e à trajetória familiar FALEIROS 2014 Segundo Scharaiber et al 2005 apud NETO 2016 p 196 a violência doméstica é proveniente de conflitos de gênero e da maneira violenta de lidar com eles A violência de gênero representa a radicalização da desigualdade nos relacionamentos entre homens e mulheres Nesse contexto os papéis diferenciados de gênero foram durante muitos anos legitimados nos valores associados a separação entre as esferas pública e privada Ao homem sempre coube o espaço público A mulher foi confinada nos limites da família e do lar o que Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 150 ensejou a formação de dois mundos um de dominação externo e produtor Outro de submissão interno e reprodutor DIAS 2019 p 2627 Nessa perspectiva o relacionamento conjugal é uma união que traz consigo muitos fatores a trajetória do indivíduo suas fantasias desejos expectativas e traumas que constituirão o cenário desta relação BIFANO et al 2009 p 102 As manifestações de violência no âmbito da unidade familiar não são tão incomuns como se pressupõe Essas manifestações perpassam as relações entre pais e filhos entre irmãos e irmãs cunhados e cunhadas sogros e sogras Enfim podendo envolver violência contra idosos crianças pessoas com deficiência e mulheres Geralmente contra os seus membros mais frágeis ou fragilizados devido as condições de idade saúde ou até em razão de gênero Contudo nesse artigo daremos enfoque as manifestações de violência entre o próprio casal A palavra casal trazida aqui representa as relações íntimas de afeto incluindo casais conjugais casais de namorados casais em união estável casais homoafetivos enfim independem das configurações estabelecidas Partindo dessas considerações tecese alguns apontamentos sobre a violência psicológica no âmbito das relações íntimas de afeto em seus aspectos conceituais conforme referencial bibliográfico pesquisado e dos aparatos legais 11 Violência Psicológica aspectos conceituais e legais Segundo a Lei Maria da Penha2 BRASIL 2006 configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte lesão sofrimentos físico sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial no âmbito da unidade doméstica no âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto Em seu art 7ª a referida lei trata da violência psicológica que é um dos tipos de violência contra a mulher reconhecida e incorporada ao conceito de violência contra a mulher na Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência Doméstica conhecida como Convenção de Belém do Pará ratificada pelo Brasil em 1984 DIAS 2019 II a violência psicológica entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações comportamentos crenças e decisões mediante ameaça constrangimento humilhação manipulação isolamento vigilância constante perseguição contumaz insulto chantagem violação de sua intimidade ridicularização exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação BRASIL 2018 2 Lei N113402006 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 151 A lei é bastante ampla ao elucidar as condutas que caracterizam esse tipo de violência Apesar disso de acordo com Miller 1999 p 20 a violência nãofísica está lá de formas tão sutis que as mulheres não conseguem reconhecêla o abuso emocional psicológico social e econômico De acordo com Silva et al 2007 p 98 a principal diferença entre violência doméstica física e psicológica é que a primeira envolve atos de agressão corporal à vítima enquanto a segunda forma de agressão decorre de palavras gestos olhares a ela dirigidos sem necessariamente ocorrer o contato físico A violência tem como pano de fundo uma relação que mesmo desfeita ainda deixou questões inacabadas Muitas vezes permanecem vínculos afetivos permeados por mágoas ressentimentos ou dependência psicológica que impedem ou dificultam que a vítima possa identificar uma situação de violência Assim as formas de violência psicológica doméstica nem sempre são identificáveis pela vítima Elas podem aparecer diluídas ou seja não serem reconhecidas como tal por estarem associadas a fenômenos emocionais freqüentemente agravados por fatores tais como o álcool a perda do emprego problemas com os filhos sofrimento ou morte de familiares e outras situações de crise SILVA et al 2007 p 97 Nesse contexto a partir das referências estudadas SILVA et al 2007 DIAS 2019 HERMANN 2008 MILLER 1999 apontase algumas considerações importantes sobre a violência psicológica Um aspecto importante destacado por Silva et al 2007 é que a violência psicológica não afeta somente a vítima de forma direta Ela produz efeitos naqueles que convivem ou presenciam as violências Crianças que presenciam situações de violência sofrem violência pela via reflexa DIAS 2019 Nesse sentido Bocca 2016 p 152 colabora que As consequências dessa modalidade de violência indireta podem afetar todos os aspectos da vida da criança e do adolescente trazendo problemas psicológicos físicos comportamentais acadêmicos sexuais interpessoais e espirituais comprometendo a autoestima e estimulando a ocorrência de violência subsequente Nesse contexto crianças que presenciam violência conjugal enfrentam riscos elevados de apresentar ansiedade depressão baixo rendimento escolar baixa autoestima pesadelos conduta agressiva e probabilidade de sofrer abusos físicos sexuais e emocionais BOCCA 2016 p 152 Hermann 2008 discorre que as formas de violência doméstica não ocorrem de maneira isolada corroborando com Silva et al 2007 que aponta a violência psicológica como um possível fator desencadeante das situações de violência física A violência se inicia de uma forma lenta e silenciosa que progride em intensidade e consequências O autor de violência em suas primeiras manifestações não lança mão de agressões físicas mas parte para o cerceamento da liberdade individual da vítima avançando para o constrangimento e humilhação SILVA et al 2007 p 99 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 152 Os impactos observados na vida da mulher em relacionamentos abusivos vão desde uma autoestima baixa até dificuldades de visualizar possibilidades de saída da situação Aos poucos o companheiro vai destruindo a capacidade de autodeterminação e o poder de decisão da mulher que vivência um sentimento de culpa duplo Sentese culpada por não conseguir romper com o ciclo da violência ao mesmo tempo que atribui a culpa dos abusos e do possível fracasso do relacionamento a si mesma Esse processo vai abalando sua saúde psicológica e fragilizando suas redes sociais Percebese um processo de esvaziamento social em que a mulher em situação de violência vai sendo induzida a acreditar que a manutenção do relacionamento é a única alternativa possível Neto 2016 p 203 ao ouvir mulheres envolvidas em situação de violência afirma que Podese perceber seu esvaziamento social vindo da solidão e também sua fragilidade prevalece a dificuldade de lidar com situações agressivas e com a responsabilidade de denunciar alguém que as maltrata mas também é seu parceiro na educação dos filhos no sustento da casa e no relacionamento amoroso Ao mesmo tempo em que sofrem com os abusos podem dividir os momentos felizes os planos de vidas a criação dos filhos o afeto e a luta diária dificultando a percepção das condutas abusivas ou quando percebidas encontrando dificuldades para romper com o ciclo de violência e motivos para permanecer no relacionamento As razões de as mulheres permanecerem num relacionamento abusivo são tão complexas e tão mal compreendidas que poucas conseguem esclarecêlas para si mesmas MILLER 1999 p 119 Feix 2011 apud DIAS 2019 p 92 afirma que a violência psicológica está relacionada a todas as demais modalidades de violência doméstica Sua justificativa encontra se alicerçada na negativa ou impedimento à mulher de exercer sua liberdade e condições de alteridade em relação ao agressor Nessa direção Miller 1999 p 20 corrobora que a violência física em toda a sua enormidade e horror não é mais um segredo Entretanto a violência que não envolve dano físico ou sofrimentos corporais continua num canto escuro do armário para onde poucos querem olhar Hermann 2008 em sua obra Maria da Penha Lei com nome de Mulher aponta algumas dificuldades no desenvolvimento da investigação científica e quantificação estatística sobre a violência como a própria pesquisa de campo sobrevitimizar a mulher agredida ao relembrar a violência sofrida reprisando dores e sentimentos de vergonha e culpa resultado lógico da perda de autoestima A autora ainda discorre que Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 153 Outro obstáculo reside na própria natureza do conflito amplamente acobertado pelo manto do silêncio imposto tanto pelo temor como pelo amor As diversas formas de violência doméstica e familiar elencadas nos incisos do artigo 7º não ocorrem de maneira isolada A baixa autoestima e insegurança provocadas pela violência psicológica aliada às ofensas morais e às agressões físicas e sexuais secundadas pela negação de direitos patrimoniais propriedade rendam autonomia financeira são habitualmente concorrentes A isto se soma o fato de que a relação entre agressor e agredida é via de regra afetiva HERMANN 2008 p 123 Além disso sabese que condutas violentas em família são normalmente comportamentos aprendidos na família de origem e reproduzidos na vida adulta portanto cíclicos Agressores e vítimas comumente vivenciaram experiências de violência e abuso na infância tendendo a repetir essas vivências na fase adulta HERMANN 2008 p 133 Nesse contexto Gois e Oliveira 2019 trazem alguns aspectos sociais presentes na dinâmica da vivência conjugal A contextualização social da vivência conjugal e a análise dos pactos estabelecidos para a organização familiar na vigência da união conjugal assim como da organização de vida pósseparação podem favorecer a apreensão de possíveis reproduções de desigualdades no âmbito da ocupação profissional de rendimentos das relações de gênero no casamento assimetrias de poder na definição de questões da vida familiar como a administração de atividades domésticas e das relações com o meio social autoritarismo ou até violências nas relações parentais além de outras associadas a questões étnicoraciais GOIS OLIVEIRA 2019 p 52 Esses aspectos sociais são tão significativos quanto os aspetos psicológicos e suas consequências coadunam para a manutenção do ciclo de violência No intento de elucidar a violência psicológica Dias 2019 p 93 traz o conceito de gaslighting3 uma forma muito eficaz de abuso psicológico quando o parceiro distorce omite ou simplesmente inventa fatos com a intenção de fazer a vítima duvidar de seus sentimentos sua memória percepção e sanidade o que dá muito poder ao abusador Como a vítima perde a habilidade de confiar em suas próprias percepções passa a ser muito mais provável que ela permaneça no relacionamento Geralmente o abuso emocional acontece de forma gradual e sem que a vítima perceba Com o passar do tempo esses padrões abusivos aumentam fazendo com que a vítima se torne cada vez mais dependente da relação e muitas vezes se isole de amigos e familiares A violência psicológica na grande maioria das vezes não é trazida à tona no contexto das denúncias realizadas pelas mulheres em delegacias especializadas e no âmbito do Judiciário Existe um pacto velado silencioso e sutil Existe uma incompreensão uma 3 Dias 2019 p 93 com Base em Fernanda Vicente na obra 14 Sinais de que você é vítima de Gaslighting o abuso psicológico Sem dados catalográficos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 154 aceitação Ou será que nós mulheres ainda carregamos o peso do mundo nas costas O peso dos fracassos relacionais A culpa do comportamento do outro A responsabilidade do cuidado da casa e dos filhos É difícil apontar os motivos para o silêncio É difícil porque é justamente isso que a des arte do abuso psicológico faz Limita diminui controla isola Diante das reflexões realizadas apontase conclusivamente que tal categoria é a violência mais frequente e talvez seja a menos denunciada A vítima muitas vezes nem se dá conta de que agressões verbais silêncios prolongados tensões manipulações de atos e desejos configuram violência e devem ser denunciadas DIAS 2019 p 93 Com a explanação dos conceitos trazidos nesta secção esperase contribuir com o debate acadêmico e com a função social que a pesquisa desempenha tendo em vista a escassa produção acadêmica nessa área Diante dessas considerações pretendese trazer a seguir contribuições teóricas e práticas para identificação das condutas abusivas e de situações de violência psicológica assim como pensar possibilidades de saídas para as mulheres em situação de violência 12 Condutas abusivas nos relacionamentos afetivos e possibilidades de saída para mulher Os abusos nãofísicos nos relacionamentos afetivos aqui compreendidos no âmbito das relações íntimas de afeto representam a destruição acumulada do bemestar emocional psicológico social e econômico de uma mulher MILLER 1999 p 21 O que torna muito difícil a detecção da situação e a busca por alternativas de rompimento Segundo Góngora 2015 apud RAMOS 2017 p 104 as agressões emocionais seguem três grandes estratégias submissão pelo medo desqualificação da imagem e bloqueio das formas de sair da situação A presença desses elementos nos relacionamentos normalmente estão interligadas primeiro num processo lento e imperceptível a autoestima da mulher vai sendo destruída posteriormente vem o medo da solidão do abandono de perder os filhos E por fim a mulher não consegue visualizar possibilidades de uma vida diferente não consegue vislumbrar uma vida em que ela tome a direção Por esse lado Miller 1999 p 96 afirma que o abuso é o comportamento sistemático que segue um padrão específico com intenção de obter manter e exercer controle E explica que Assim o golpe emocional abrange uma ampla escala desde a crueldade constante com uma mulher até o trauma emocional Embora os seus ossos nunca sejam quebrados sua carne nunca seja queimada seu sangue nunca seja derramado mesmo assim ela é ferida Sem autoconfiança e autorespeito ela Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 155 vive vazia sem uma identidade pela qual se expressar Cede o controle de sua vida ao seu vitimizador Está impotente MILLER 1999 p 40 Referindose ao ciclo de violência a autora aponta que um dos motivos de permanência em relacionamentos abusivos são as permutas As permutas podem estar relacionadas a bens materiais ao medo da solidão ou na preocupação com o bemestar dos filhos Segundo a Miller 1999 p 123 há explicações conscientes e inconscientes que para ela justificam sua submissão ao abuso constante Por outra perspectiva a despeito das razões inconscientes ou não para a manutenção do ciclo de violência Miller 1999 p 232 acrescenta que a mulher vítima de abuso convive com um estresse tão grande que pode aterrorizála e tornala impotente Marques 2012 apud Dias 2019 p 7 corrobora alguns sinais indicativos que alertam para um possível relacionamento se tornar abusivo Antes mesmo de o relacionamento tornarse abusivo há sinais indicativos de cuidado apego rápido ciúme excessivo controle do tempo isolamento da família e dos amigos uso de linguagem derrogatória culpabilização da mulher e minimização dos abusos A vulnerabilidade própria do enamoramento e do apaixonamento convertese em cegueira Esses sinais podem ser percebidos logo no início do relacionamento mas a dificuldade está na órbita do enamoramento Com base na pesquisa realizada chegouse ao entendimento que perceber sinais tão sutis logo no início quando a paixão do encontro prevalece tratase de um processo difícil A partir da literatura pesquisada foi possível levantar alguns aspectos ainda que sutis presentes em relacionamentos abusivos visando ampliar a percepção tanto dos profissionais quanto das mulheres em situação de violência psicológica Conforme as referências pesquisadas alguns indicativos no comportamento do homem eou no padrão do relacionamento podem evidenciar um processo abusivo os quais intentase que a mulher consiga reconhecer Citase aqui alguns exemplos como resultado da pesquisa realizada comportamento de controle sobre as atitudes da mulher ciúmes excessivos isolamento dos amigos e familiares culpabilização da mulher pelos conflitos conjugais distorção da realidade constrangimento humilhação ofensas entre outros Partindo dessas considerações pretendese elencar algumas possibilidades de intervenção junto a essa problemática objetivando traçar apontamentos e reflexões que auxiliem mulheres em situação de violência a pensar estratégias de saída trazendo contribuições a partir dos referenciais estudados Nessa ótica a partir do estudo de Miller 1999 compreendese que o processo de saída de uma situação abusiva perpassa por três estágios principais O primeiro estágio consiste em Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 156 reestabelecer contatos sociais e sair da situação de isolamento Nessa etapa além da família e dos amigos é importante que a mulher possa compartilhar suas vivências com outras mulheres em situações semelhantes MILLER 1999 Num segundo momento apontado por Miller 1999 como o momento de reassumir o controle de sua vida a mulher passa por um processo de reconhecimento da situação abusiva No terceiro estágio a mulher vivencia uma fase de questionamentos tentando entender por que tal situação aconteceu com ela Nesse momento inúmeras indagações perpassam pela mulher todavia respostas dificilmente serão encontradas pois o sofrimento acontece porque acontece MILLER 1999 p 239 Nessa perspectiva Miller 1999 p 231 aponta que quando os programas começarem a lidar com o abuso nãofísico com a mesma preocupação que atualmente demonstram com a violência física eles começarão a minimizar o abuso físico para o qual inevitavelmente se caminha Como parte do processo de saída de um relacionamento abusivo partindo da leitura aqui empreendida é importante que a mulher possa contar com serviços especializados de atendimento conforme previstos na Lei Maria da Penha em seu art 35 I centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e respectivos dependentes em situação de violência doméstica e familiar II casasabrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em situação de violência doméstica e familiar III delegacias núcleos de defensoria pública serviços de saúde e centros de perícia médicolegal especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar IV programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e familiar V centros de educação e de reabilitação para os agressores BRASIL 2006 Nesse contexto estudado ressaltase uma das estratégias no enfrentamento às situações de violência contra a mulher o trabalho com homens em situação de violência Essa perspectiva visa atuar na reeducação dos homens pensando em promover reflexões sobre as questões de gênero sobre as dificuldades relacionais entre homens e mulheres que coadunam em situações conflituosas e nas maneiras violentas de lidar com elas Apesar da Lei Maria da Penha BRASIL 2006 recomendar a atenção aos homens autores de violência visando sua reeducação e assim prevenindo reincidências e agravamentos das situações poucas experiências tem atuado nessa perspectiva Beiras e Bronz 2016 retratam a metodologia de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 157 trabalho com grupos reflexivos4 no enfrentamento e prevenção da violência contra as mulheres no âmbito das relações familiares e de gênero Nessa direção consideramos importante pensar nos atos de violência sobre uma perspectiva relacional ancorada nas dinâmicas históricas e sociais públicas cotidianas e nos processos de socialização Por este motivo acreditamos na importância do trabalho grupal para promover reflexão sobre as relações que geram violências e as dinâmicas de socialização ligadas à construção de masculinidades feminilidades e a relação entre ambas Conversar sobre gênero implica pensar estas relações e posições diferenciadas observálas e estranhálas conjuntamente trocando experiências e vivências desconstruindo coletivamente ações atos e crenças e propondo outras formas de relação BEIRAS BRONZ 2016 p 21 Com esses apontamentos almejase demonstrar que apesar das inúmeras dificuldades para a mulher romper com a situação abusiva existem possibilidades e avanços em termos históricos legais e institucionais Como um dos resultados observados na pesquisa realizada chegouse ao entendimento que a percepção dos abusos pode ser um processo lento e dolorido trazendo dificuldades de auto reconhecimento das situações e de ações diante da fragilização provocada na mulher Por outro lado vislumbrase lançar mão de oportunidades à mulher Esperase demonstrar que ela pode ser fortalecida por aparatos legais e institucionais que lhe permitam ter uma escolha quando for o momento históricosocial e pessoal dela Com os avanços da legislação e dos serviços especializados temse dado visibilidade a mulher temse mostrado que ela não está só E não estar só pode ser uma semente na vida daquela mulher que um dia poderá criar raízes e se fortificar As portas das delegacias juizados promotorias centros de referência hospitais entre outros precisam estar sempre abertas e com profissionais dispostos e capacitados para a escuta Sem julgamentos sem cobranças apenas com o olhar voltado para um acolhimento humanizado e empático e garantidor de direitos CONSIDERAÇÕES FINAIS As políticas de atenção à Mulher e as legislações que visam garantir a sua proteção perante uma sociedade desigual com relações assimétricas de poder são recentes na história do nosso país Ainda que os aparatos legais sejam fundamentais e contribuam para a eliminação das formas de violência contra a mulher é imprescindível demarcar espaços de luta no cenário político Para tanto diante da pesquisa realizada ficou evidente que a necessidade de se estruturar e articular a rede de serviços para as mulheres em situação de violência capacitando 4 A partir da experiência de vinte anos de atuação do Instituto Noos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 158 equipes nas delegacias especializadas ampliando e capacitando equipes multidisciplinares nos juizados especializados pensando novas estratégias na rede de enfrentamento às violências promovendo ações de reeducação aos homens como forma de evitar a reincidência da violência ou de seus agravamentos Tendo em vista o estudo realizado apontase que a violência contra a mulher é uma das expressões da questão social na sociedade capitalista e é preciso atuar no enfrentamento dessa expressão assim como no fortalecimento da mulher Desta forma intencionase que este trabalho contribua para uma reflexão crítica sobre as violências contra a mulher buscando ampliar a pesquisa sobre a temática da violência psicológica por vezes invisível ou vista como sútil Diante da literatura pesquisada ficou evidente que a violência psicológica apesar de não deixar marcas visíveis trás consequências graves para a vida da mulher Esperase que esse trabalho possa dar visibilidade para as formas de violência psicológica contra a mulher bem como demonstrar para a sociedade o quão difícil é para uma mulher em situação de violência opressão com sua autoestima e autodeterminação sendo constantemente destruídas romper com um ciclo de violência e sair de um relacionamento abusivo É importante destacar que nessa pesquisa foi dada maior ênfase às discussões sobre violência psicológica nos relacionamentos afetivos Todavia alguns aspectos pesquisados demonstraram que essas violências podem conduzir a mulher para uma situação de vulnerabilidade e isolamento social desencadeando processos subjetivos de sofrimento eou se apresentando como um primeiro cenário antes de uma situação agravada de violência física A partir dos referencias pesquisados observouse que essas violências por um lado podem deixar marcas não visíveis e por outro podem ser tão marcantes quantos as violências físicas causando danos emocionais e diminuição da autoestima Outro indicativo levantando a partir dos estudos realizados relacionase com os demais sujeitos envolvidos em situações de violência conjugal A pesar de não ser o objetivo desse estudo esperase estimular a pesquisa sobre as violências afetando crianças e suas consequências Assim não se pretende esgotar a discussão sobre a temática e sim estimular a pesquisa e o desenvolvimento de projetos e serviços que possam contribuir com a efetivação dos direitos das mulheres e traçar novas possibilidades no enfrentamento à problemática da mulher em situação de violência REFERÊNCIAS BEIRAS Adriano BRONZ Alan Metodologia de grupos reflexivos de gênero Rio de Janeiro Instituto Noos 2016 Disponível em httpnoosorgbrwp contentuploads201808MetodologiaNoosPDFfinalpdf Acesso em 09 set 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 159 BIFANO A H et al Vulnerabilidade do feminino homicídios contra a esposa In Filhos vítimas do tempo da violência a família a criança e o adolescente 2 ed rev e atual Curitiba Juruá 2009 p 89 104 BOCCA A M A violência conjugal e as consequências para crianças e adolescentes na interpretação das assistentes sociais do Poder Judiciário de Santa Catarina In O serviço social no Poder Judiciário de Santa Catarina caderno III Florianópolis Insular 2016 p 151160 BRASIL Lei no 4121 DE 27 de agosto de 1962 Dispõe sobre a situação jurídica da mulher casada Brasília DF Presidência da República 1962 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03leis19501969l4121htm Acesso em 16 ago 2019 BRASIL Lei nº 6515 DE 26 de dezembro de 1977 Regula os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento seus efeitos e respectivos processos e dá outras providências Brasília DF Presidência da República 1977 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03LEISL6515htm Acesso em 16 ago 2019 BRASIL Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 Lei Maria da Penha Brasília DF Presidência da República 2006 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato200420062006leil11340htm Acesso em 17 maio 2019 BRASIL Lei Nº 13772 de dezembro de 2018 Altera a Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 Lei Maria da Penha e o DecretoLei nº 2848 de 7 de dezembro de 1940 Código Penal Brasília DF Presidência da República 2018 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Ato201520182018LeiL13772htm Acesso em 17 maio 2019 CUNHA Rogério Sanches PINTO Ronaldo Batista Violência doméstica Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo 6 ed rev atual e ampl São Paulo Revista dos Tribunais 2015 335 p DIAS Maria Berenice A Lei Maria da Penha na Justiça 5ª ed rev ampl e atual Salvador Editora Juspodivm 2019 FALEIROS Vicente de Paula A Violência Contra a Pessoa Idosa entrevista especial com Vicente de Paula Faleiros In R Pol Públ São Luís v 18 n 2 p 535538 juldez 2014 Disponível em httpswwwprefeituraspgovbrcidadesecretariasuploadassistenciasocialaula20320F aleiros20sobre20VIOLENCIACONTRAAPESSOAIDOSApdf Acesso 27 jun 2019 GOIS Dalva de Azevedo de OLIVEIRA Rita C S Serviço Social na Justiça da Família demandas contemporâneas do exercício profissional São Paulo Cortez 2019 Coleção temas sociojurídicos coordenação Maria Liduína de Oliveira e Silva Silvia Tejadas HERMANN Leda Maria Maria da Penha lei com nome de mulher violência doméstica e familiar considerações à Lei nº 113402006 comentada artigo por artigo CampinasSP Servanda 2008 232 p Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 160 LISBOA Teresa Kleba PINHEIRO Eliane Aparecida A intervenção do Serviço Social junto à questão da violência contra a mulher Katálysis v 8 n 2 juldez 2005 FlorianópolisSC p 199210 Disponível em httpsperiodicosufscbrindexphpkatalysisarticleview61115675 Acesso em 27 jun 2019 MILLER Mary S Feridas Invisíveis Abuso não físico contra mulheres São Paulo Summus 1999 NETO M S de S O atendimento psicossocial na área da violência doméstica no fórum de justiça In O serviço social no Poder Judiciário de Santa Catarina caderno III Florianópolis Insular 2016 p 195204 RAMOS A L S Dano Psíquico como crime de lesão corporal na violência doméstica Florianópolis Empório do Direito 2017 SILVA Luciane L COELHO Elza B S CAPONI Sandra N C Violência silenciosa violência psicológica como condição da violência física doméstica In Interface Comunic Saúde Educ v11 n21 p93103 janabr 2007 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS141432832007000100009 Acesso em 08 set 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 161 SERVIÇO SOCIAL NO SOCIOJURÍDICO E ATENDIMENTO ÀS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR Emilly Marques Tenorio 1 RESUMO O enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher ganha maior densidade jurídica no Brasil com a promulgação da Lei 113402006 Lei Maria da Penha a qual prevê a possibilidade de intervenção de equipe multidisciplinar nessas ações judiciais O artigo objetiva identificar direcionamentos da proteção social oferecida às mulheres que acionam a Lei Maria da Penha e as possíveis contribuições do Serviço Social diante dessas situações de violência Metodologicamente realizamos pesquisa documental em processos judiciais de medidas protetivas de urgência indicados por informanteschave no âmbito do judiciário Como resultados apontamos à limitação das respostas judiciais e o direcionamento dado prioritariamente às medidas de contenção doa agressora Consideramos que o exercício profissional doa assistente social pode fortalecer outros encaminhamentos direcionados à assistência da mulher e de sua família e à prevenção de novas violências sem perder de vista o horizonte do enfrentamento estrutural dessas opressões para além das instituições Palavraschave Serviço Social Lei Maria da Penha Medidas de proteção de urgência Proteção social INTRODUÇÃO O presente texto é fruto de reflexões desenvolvidas em dissertação de mestrado em Política Social cujo objetivo foi a partir do debate acerca da proteção social analisar ações de requisição judicial de medidas protetivas de urgência MPUs tipificadas na Lei 113402006 conhecida como Lei Maria da Penha LMP A pesquisa ocorreu em uma vara especializada no enfrentamento à violência familiar e doméstica contra a mulher e suas análise e resultados foram aprofundadas e publicadas em obra posterior TENORIO 2018 Considerando que essa legislação prevê a possibilidade de intervenção de equipe multidisciplinar nas ações judiciais nesse artigo a partir dos elementos trazidos no livro citado voltamonos a pensar principalmente quanto aos dilemas do trabalho doa assistente social frente à essa demanda judicial Ou seja os desafios do exercício profissional no sociojurídico e as limitações da proteção social não oferecida às mulheres bem como quanto das próprias contradiçõeslimites quando ao acionamento do Direito para uma transformação social radical 1 Assistente Social do Tribunal de Justiça do Espírito Santo Mestra em Política Social pela Universidade Federal do Espírito Santo 2017 Email emillypmarquesgmailcom Link do lattes httplattescnpqbr6527136870926431 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 162 Compreendemos a violência e a desigualdade entre homens e mulheres em uma perspectiva antinaturalista ou seja enquanto fenômeno socialmente construído e estrutural de um sistema heteropatriarcalracistacapitalista que embora se expresse nas relações interpessoais está dialeticamente articulado na estrutura e superestrutura dessa sociedade Dessa forma tal fenômeno não é apenas uma questão jurídica que se resolveria apenas com o aprimoramento de leis ou com a criação de melhores projetos de enfrentamento à violência sendo esses necessários e relevantes mas insuficientes sem a compreensão da totalidade da vida social e das raízes desse sistema De acordo com Santos 2009 p 77 Muitos segmentos entram constantemente no beco sem saída dos projetos de eliminação de todas as formas de violência contra a mulher pela eliminação do racismo por um mundo com liberdade de orientação e expressão sexual sem acenar para as determinações do tipo de sociabilidade vigente que fundada na afirmação do valor de troca na desigualdade e na exploração do trabalho eximese do atendimento às reais necessidades humanas Foi nesse caminho acompanhada pela crítica marxista do Direito que percorremos o debate acerca da proteção social oferecida judicialmente às mulheres que requisitaram medidas de proteção de urgência MPUs em virtude de violência doméstica ou familiar No processo de sucessivas aproximações com a realidade buscamos dar voz a esses anseios e necessidades materializados nas histórias de muitas Marias2 Em outras palavras pretendemos trazer uma discussão sobre o direito em uma crítica ontológica que vai abordálo na análise de situações concretas Nesse artigo nos limitaremos aos elementos suscitados pelas trajetórias dessas mulheres principalmente aqueles em que visualizamos possíveis contribuições do Serviço Social Dessa forma suas histórias não serão abordadas de forma narrativa nesse artigo3 mas sim as sínteses reflexivas que elas provocaram No que diz respeito à metodologia realizamos uma pesquisa documental de natureza qualitativa em processos de requisição de MPUs Nossa amostragem foi formada a partir da indicação de informanteschave de uma vara especializada em violência doméstica e familiar contra a mulher Dentre osas informantes contemplamos oa magistradoa servidora do cartório da vara e a equipe técnica especializada composta por profissionais do Serviço Social e da Psicologia Após o processo de inclusãoexclusão da amostra obtivemos vinte processos incluídos para análise 2 Utilizamos o pseudônimo de Marias para identificar nossos sujeitos da pesquisa 3 As histórias das nossas Marias encontramse narradas em Tenorio 2018 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 163 Na maioria das situações estudadas quinze a violência envolvia indivíduos que têm ou tinham uma relação afetiva namoradosas companheirosas cônjuges o que está de acordo com os elementos trazidos pelo Mapa da Violência de 2015 de que nas agressões cujas vítimas são mulheres preponderam os parceiros e exparceiros na taxa de 351 WAISELFISZ 2015 Em menor número quatro no universo estudado tratavase de outras relações de parentesco mãefilho madrasta paiavô e enteadafilha e neta Além desses o caso de uma idosa onde as filhas requereram a medida para a mãe No entanto nessa situação a idosa manifestou que não sofreu nenhum tipo de violência no relacionamento conjugal Consideramos que embora a pesquisa trouxe alguns elementos do estado do Espírito Santo eles não estão dissociados e nem são tão distintos do cenário brasileiro em geral podendo trazer importantes subsídios reflexivos para asos que pesquisam atuam ou acessam à LMP Especialmente para osas assistentes sociais mesmo osas que trabalham em outras áreas tendo em vista conforme afirmado por Borgianni 2013 p 410 que a profissão é uma só e atua em diferentes espaços sociocupacionais entre eles os que têm interface com o jurídico e tal situação pode perpassar os diferentes serviços e políticas sociais 1 ÁREA SOCIOJURÍDICA PROTEÇÃO SOCIAL E LEI MARIA DA PENHA Achar a porta que esqueceram de fechar O beco com saída A porta sem chave A vida Paulo Leminski Buscamos nesse item fornecermos elementos para pensar a profissão no judiciário e com isso buscar um trabalho profissional direcionado para o possível fortalecimento da proteção social considerando a particularidade do atendimento às mulheres em situação de violência que chegam a esse espaço jurídico O poder judiciário compõe ao lado de instituições como o Ministério Público Delegacias Instituições de Acolhimento dentre outras o que se convencionou chamar de área sociojurídica pela sua interface com o Direito com o jurídico BORGIANNI 2013 Diante disto quando propomos refletir sobre o trabalho profissional resgatamos as reflexões de Iamamoto 2005 p79 de que Não se pode pensar a profissão no processo de reprodução das relações sociais independente das organizações institucionais a que se vincula como se a atividade profissional se encerrasse em si mesma e seus efeitos sociais derivassem exclusivamente da atuação profissional Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 164 Sendo assim para abordarmos a atuação profissional problematizamos o próprio Direito considerandoo como área de conhecimento que também ganha materialidade nas instituições do sistema de justiça Borgianni 2013 p 412 nos aponta para a preocupação tanto com a crescente judicialização dos conflitos sociais quanto com a justiciabilidade dos direitos sociais ou seja as demandas sociais os litígios os conflitos cada vez mais estão sendo resolvidos ou acionados judicialmente Tais elementos demonstram que as expressões da questão social não podem ser reduzidas a problemas jurídicos tendo em vista que sua base material de existência de encontra na esfera econômica e material Portanto sem alterações nessas estruturas não obtemos transformações substantivas Por isso compreender os limites de desproteção dessa esfera é fundamental para sairmos tanto de uma análise endógena fatalista ou messiânica4 da profissão quanto de uma perspectiva salvacionista do acionamento do direito Santos 2016 também nos alerta que começar pela lei é o ponto de partida da análise liberal e para nós ao utilizarmos o método materialista históricodialético precisamos partir da realidade concreta do cotidiano para portanto problematizarmos as leis Fazse necessário tecer mediações entre as mulheres que atendemos diariamente e a totalidade da vida social para procurar entender que algumas legislações são conquistas advindas de lutas legítimas e no caso da lei em tela fruto dos movimentos feministas Entretanto urge demarcar que o acionamento do sistema jurídico classista racista e androcêntrico tende também a oferecer risco a nós mulheres O Direito aqui é entendido a partir de uma perspectiva lukácsiana enquanto um complexo social parcial que compõe a totalidade complexo de complexos da reprodução do ser social Nessa direção Iasi 2005 afirma que as formas jurídicas se vinculam às formas societárias de que fazem parte Sendo assim o Direito enquanto complexo institucionalizado na sociedade capitalista manifesta o interesse burguês como interesse universal mantendose aparentemente coeso homogêneo frente às diferenciações sociais Porém frente às contradições o seu anverso também se realiza como espaço de disputa Portanto passível de ser penetrado eou redirecionado para outras possibilidades de realização na perspectiva de conquistas civilizatórias da classe trabalhadora Cisne 2015b considerando essas questões reafirma a importância da luta por direitos humanos e portanto pelos legítimos direitos das mulheres embora advirta que os direitos 4 As posturas críticas fatalistas ou messiânicas da profissão foram sinalizadas por IAMAMOTO 2000 2013 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 165 formalmente legalizados não podem ser um fim em si mesmo e que todos os seus limites e contradições devem ser considerados em uma sociedade que possui desigualdades de classes raçaetnia e sexo Em decorrência disso precisamos refletir que a subjugação feminina é funcional ao capitalismo e como o Direito é uma das instituições que ideologicamente protege este sistema possivelmente muitos serão os limites em seu acionamento na superação da violência contra a mulher Sendo assim temos uma contradição fundamental entre a existência dos direitos sociais e a realidade capitalista permeada por explorações apropriações e opressões Para tanto analisamos a Lei Maria da Penha LMP numa perspectiva de totalidade histórica pensando na proteção social via judicialização conferida a essas mulheres em um determinado tempo histórico sob condições socialmente determinadas Tradicionalmente o judiciário brasileiro tem atuado principalmente no Direito Penal com o viés coercitivo punitivo conforme denúncias principalmente de autoresas da criminologia crítica Trazemos primeiramente a reflexão de Andrade 2012 p 131 em alusão ao sistema penal ao afirmar que ele além de estruturalmente incapaz de oferecer alguma proteção à mulher como a única resposta que está capacitado a acionar o castigo é desigualmente distribuída e não cumpre as funções preventivas intimidatória e reabilitadora que se lhe atribuem Com as inovações legais da LMP são exigidas do judiciário nessa temática atribuições em articulação com as políticas públicas Partimos da premissa que a LMP prevê um tripé em sua operacionalização contenção prevenção e assistência conforme apontado em Tenorio 2018 p 36 grifos nossos as decisões de contenção são aquelas que englobam ações repressivas de afastamento privação de direitos e de responsabilização voltadas para as pessoas que perpetraram a violência as de assistência são aquelas que fortalecem a rede de atendimento deferem ações assistenciais e garantia de outros direitos ademais contemplam encaminhamento a benefícios políticas e serviços públicos assistência judiciária acolhimento institucional e abrangem decisões cíveis como separação guarda e alimentos e as de prevenção são aquelas que contemplam ações educativas que interferem nos padrões sexistas orientações às pessoas atendidas ou inserção em grupos reflexivos e serviços de acompanhamento tratamento Diante dessa classificação dos encaminhamentos fornecidos às mulheres em situação de violência tipificadas na Lei Maria da Penha e na análise das histórias de vida das Marias elencamos algumas premissas que precisam ser pensadas no atendimento feito pelo Serviço Social a a violência atinge mulheres de todas as classes sociais embora suas trajetórias sejam diferenciadas b a violência doméstica e familiar é de difícil rompimento mas dependendo da Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 166 classe social se pode ter mais suportes para saída c a permanência nos relacionamentos não decorre apenas da dependência econômica apesar de esse ser um grande fator para as mulheres pobres d o rompimento da violência via sistema penal não é indolor gera angústias e expectativas e a mulher por vezes é exposta e questionada ao prosseguir com uma denúncia ao precisar comprovar o que vivenciou e precisa estar amparada e fortalecida De acordo com o Instituto de Pesquisa DataSenado 2017 dentre as entrevistadas apenas 26 consideram que a Lei Maria da Penha protege as mulheres enquanto 53 disseram que protege apenas em parte e 20 responderam que não protege Essa percepção da desproteção se amplia entre aquelas que afirmam terem vivenciado algum tipo de violência doméstica ou familiar quando o percentual é de 29 e de 17 dentre as que disseram não ter sofrido violência A pesquisa não traz uma conceituação de qual concepção de proteção se refere porém consideramos que esses dados denotam a importância de ultrapassarmos apenas o reconhecimento da relevância dessa lei e cada vez mais identificar quais avanços concretos tivemos na proteção das mulheres em nossa sociedade e quais lacunas a serem problematizadas e resolvidas em direção à ampliação da proteção social De acordo com Pasinato 2017 em referência a essa pesquisa ainda há sobrevalorização de que proteção equivale à punição Vale observar por exemplo essa discrepância entre a crença na capacidade da Lei de oferecer proteção para as mulheres 26 das entrevistadas afirmam isso e uma sobrevalorização da resposta punitiva 97 consideram que o agressor deve ser processado independentemente da vontade da vítima Esses números sugerem que estamos falhando em contar para a sociedade que a Lei oferece muito mais oportunidades de proteção prevenção e acesso a direitos para as mulheres que podem contribuir para que saiam da situação de violência Há uma potencialidade transformadora na Lei que não tem sido aplicada e que permanece também desconhecida para a população Consideramos que o Serviço Social inserido nesse espaço institucional reconhecidamente seletivo de acordo principalmente com os pertencimentos referentes à raçaetnia e classe social e punitivista deve atuar em direção ao fortalecimento às ações de assistência e prevenção embora vivencie conforme apontado por Borgianni 2013 p 413 As determinações complexas que emanam das polaridades antitéticas próprias da esfera jurídica por exemplo aquelas que considero uma das mais marcantes garantir direitos em um espaço ou sistema que é também aquele onde se vai responsabilizar civil ou criminalmente alguém Contudo em tal atuação também estão imbricados os limites da função da própria instituição e dos demais serviços ofertados às mulheres as condições de trabalho vivenciadas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 167 pelosas profissionais que as atendem e a própria estrutura da sociedade Concluímos que a violência possui dimensões culturais no entanto não se limita a estas Reproduzse também via discursos em ações e no direcionamento das políticas sociais fundamentase nas relações sociais estabelecidas nessa sociedade perceptíveis no espaço doméstico no trabalho no espaço público no governo e nas decisões políticas tomadas No próximo item adentramos mais nesses elementos que impactam o exercício profissional e refletimos sobre algumas questões que consideramos relevantes para o atendimento a essa demanda social 2 APONTAMENTOS PARA O EXERCÍCIO PROFISSIONAL NO ATENDIMENTO À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA Tem uma verdade que se carece de aprender do encoberto e que ninguém não ensina o beco para a liberdade se fazer Guimarães Rosa Inicialmente ressaltamos que o que pretendemos indicar são alguns elementos para propiciar a reflexão e a sistematização de uma práxis profissional no atendimento às mulheres que chegam aos serviços e especialmente ao espaço sociojurídico Cabe a cada profissional individual e coletivamente como tarefa social e política questionar ou aprofundar tais elementos Dessa forma não há receituários ou modelos a serem seguidos o que iria de encontro a nossa perspectiva materialista históricadialética que analisa os fenômenos em sua totalidade histórica em movimentos permeados por contradições Quando assumimos esse entendimento de compreender as determinações sóciohistóricas podemos entender que já que a desigualdade sexual racial e de classes não é ontológica do ser social ela também pode ser socialmente superada contudo nosso horizonte precisa ser a alteração estrutural desse sistema Nessa análise tomamos como referencial a produção do feminismo materialista francófono e sua teorização sobre relações sociais de sexo FERREIRA et al 2014 DEVREUX 2011 que busca uma compreensão crítica da realidade para nela intervir na luta contra as relações patriarcalracistacapitalistas e em defesa da emancipação humana CISNE 2014 p 135 Gurgel 2015 também revela a natureza contraditória entre os movimentos feministas e o Estado pois embora tenham conseguido conquistas via políticas públicas e direitos sociais estas são limitadas e provisórias no processo de emancipação das mulheres Na contemporaneidade identificamos mudanças e continuidades nas formas de opressão pois como os demais fenômenos sociais também o patriarcado está em permanente Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 168 transformação SAFFIOTI 2004 p4546 Alguns avanços da luta feminista podem ser compatíveis com este sistema de opressão já que se restringem à esfera legaltécnica normativa ou seja a emancipação política que se adapta às necessidades do modo exploratório capitalista garantindo alguns poucos direitos para se conservar Chamamos atenção ainda que no cotidiano profissional oa assistente social precisa desenvolver seu trabalho em uma perspectiva de desessencializar e desuniversalizar as mulheres conhecer suas histórias trajetórias expectativas frente essa busca pelo judiciário porém não em uma perspectiva individualizante mas sim dialeticamente articulada com esses elementos estruturantes desse sistema Borgianni 2013 nos sinaliza os diversos desafios para o trabalho profissional nessa área sociojurídica como desafio e possibilidade aosas assistentes sociais que atuam nessa esfera em que o jurídico é a mediação principal ou seja nesse lócus onde os conflitos se resolvem pela impositividade do Estado é trazer aos autos de um processo ou a uma decisão judicial os resultados de uma rica aproximação à totalidade dos fatos que formam a tessitura contraditória das relações sociais nessa sociedade em que predominam os interesses privados e de acumulação buscando a cada momento revelar o real que é expressão do movimento instaurado pelas negatividades intrínsecas e por processos contraditórios mas que aparece como coleção de fenômenos nos quais estão presentes as formas mistificadoras e fetichizantes que operam também no universo jurídico no sentido de obscurecer o que tensiona de fato a sociedade de classes BORGIANNI 2013 p 423 O discurso de que a igualdade foi alcançada também utiliza o comum argumento de que homens e mulheres são iguais perante à lei que é fetichizado e não aduz à realidade Lênin 1920 em um discurso às operárias durante as eleições para o soviete de Moscou já falava que a igualdade diante da lei não é ainda a igualdade efetiva justificando que onde existe exploração não pode existir igualdade e que mesmo na construção de uma nova sociedade sem exploradores só a lei não basta Para pensarmos o atendimento à violência contra a mulher esses elementos são indissociáveis das condições de trabalho e de existência tanto das mulheres atendidas quanto dos trabalhadoresas que as atendem e os investimentos nas políticas sociais que impactam toda a classe trabalhadora bem como as mulheres que a compõem Marques e Mendes 2013 ao pensar a interface entre o capitalismo contemporâneo e a proteção social abordam os impactos nesta última com maior deterioração das condições de trabalho e cortes tanto no acesso quanto na cobertura das políticas sociais O cenário de desfinanciamento das políticas públicas para as mulheres se intensifica diante do governo ultraliberal de Jair Bolsonaro com o desmonte dos mecanismos de controle social defesa da Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 169 privatização dos serviços e adensamento do seu discurso misógino e racista Essas opiniões se expressam concretamente em seu governo quando nomeia Damares Alves declaradamente antifeminista como ministra do recémcriado Ministério da Mulher da Família e dos Direitos Humanos Além desses impactos da falta de investimentos em políticas sociais públicas também trazemos elementos quanto às condições de trabalho do Serviço Social no judiciário que não está isolado das determinações gerais que impactam a classe trabalhadora embora como qualquer espaço socioocupacional possua particularidades Certamente cada ação desenvolvida pela equipe multidisciplinar tem limites do próprio espaço em que atua das relações de poder estabelecidas da natureza das demandas apresentadas e das condições materiais e objetivas da sociedade em que vivemos e dos serviços que são implementados Assim como não podemos alimentar uma perspectiva salvacionista do Direito também não podemos agir nesse sentido em relação ao Serviço Social até porque a profissão dentro de um espaço institucional relacionase com outras instituições e políticas públicas cada vez mais precarizadas Existem ainda asos profissionais que podem não ter análise crítica sobre sua intervenção e seu espaço de trabalho Essa já citada postura messiânica e salvacionista é Marcada por uma visão mágica da transformação social que passa a ser reduzida a uma questão de princípios Muitas vezes esse discurso se reduz ao compromisso individual do Assistente Social como se a nossa vontade e propósitos individuais fossem unilateralmente suficientes para alterar a dinâmica da vida social IAMAMOTO 2013 p146 Essa ausência de reflexão e análise crítica da realidade não significa necessariamente a prevalência de uma visão messiânica Seu anverso pode igualmente imperar como o fatalismo o burocratismo Quanto a isso Barata e Braz 2009 p 196 enfatizam A partir das contradições de classes que determinam a profissão e daí a dimensão política da prática profissional da qual falamos anteriormente osas assistentes sociais podem desde que num ambiente de democracia política o que significa afirmar que tal democracia é um pressuposto para a própria existência do projeto éticopolítico escolher caminhos construir estratégias políticoprofissionais e definir os rumos da atuação e com isso projetar ações que demarquem claramente os compromissos éticopolíticos profissionais É preciso ter a clareza absoluta do que isso significa para não incorrer novamente como diz Iamamoto 1992 nem no voluntarismo políticoprofissional para o qual basta a boa vontade e um ideal para se transformar a realidade e nem no fatalismo para o qual não há alternativas na realidade pois ela seria um dado factual e imutável Mais ainda é necessária a mesma clareza para se compreender as dificuldades que estão postas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 170 cotidianamente para osas assistentes sociais em suas variadas inserções profissionais Consideramos extremamente relevantes as reflexões de Colombi 2016 que abordam a precarização do trabalho no judiciário e seus rebatimentos para osas assistentes sociais A autora destrincha que a precarização perpassa o processo da intensificação do trabalho No sociojurídico pontua que o trabalho precário se apresenta principalmente atrelado às demandas institucional e profissional Inicialmente devido ao seu viés intensamente hierarquizado e ameaças de sanções em caso de descumprimento das determinações feitas Posteriormente devido à incompreensão das especificidades do trabalho dessesas profissionais que permanecem com seu fazer profissional atrelados a curtos prazos para execução o que pode levar ao trabalhadora a atuar superficialmente sobre a realidade dinâmica e complexa COLOMBI 2016 A exiguidade dos prazos prejudica a articulação intersetorial com a rede de enfrentamento e atendimento às situações de violência O baixo quantitativo de profissionais e a sobrecarga de trabalho dificulta a realização dos trabalhos educativos e preventivos A lógica punitivista também adentra as relações trabalhistas com a presença da ameaça do servidora responder administrativa ou penalmente caso não atenda à ordem determinada COLOMBI 2016 Mesmo diante de tantos desafios tecemos alguns apontamentos que consideramos fundamentais para o desenvolvimento de um trabalho que considere essas determinações estruturantes e que embora ciente das limitações seja propositivo atuando nas contradições dos processos sociais I Acolher as mulheres que chegam ao espaço sociojurídico sem juízos de valor mesmo que elas voltem repetidamente ao serviço II Estabelecer mediações a todo tempo entre o caso individual que chega e a totalidade da vida social III Perceber quais são as expectativas da mulher ao buscar o poder judiciário orientála quanto aos seus limites e possibilidades IV Decodificar a legislação e seus direitos bem como as formas de acessá los V Levantar quais são suas necessidades concretas materiais e subjetivas VI Identificar quais serviços políticas programas projetos e benefícios que podem atender tais necessidades VII Denunciar às respectivas instituições responsáveis como por exemplo o Ministério Público e aos mecanismos de controle social caso esses serviços inexistam e o impacto disso para a proteção das mulheres e o rompimento da violência Nesse complexo exercício profissional concluímos que diante das contradições desse sistema também mantido e legitimado pelo Direito a intensificação das desigualdades preconceitos machismo e do conservadorismo dialeticamente também pode fomentar saídas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 171 coletivas e despertar mais sujeitos para construção de uma nova sociedade Tratase então de apreender o sentido político social do Serviço Social para além da superfície da vida social tal como se apresenta como um mero conjunto de ações intermitentes burocratizadas dispersas descontínuas IAMAMOTO 2013 p 142 Mas de apontar outra direção um profissional propositivo e criativo que tenha um Exercício profissional que solidifique laços vivos de solidariedade com os interesses dos segmentos majoritários da população que se traduza em alternativas profissionais que os fortaleçam como sujeitos políticos coletivos que nas suas particularidades e diferenças têm uma esperança e uma utopia a construir na história do presente IAMAMOTO 2013 p 145 Mesmo diante do entendimento dos limites legais a luta por direitos humanos deve se fazer presente e o Serviço Social deve compreendêlos como táticas e travar uma luta anticapitalista antirracista e antipatriarcal 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS POR UM BECO COM SAÍDA As revoluções se produzem nos becos sem saída Bertold Brecht Em cada item desse artigo fizemos alusão nas epígrafes à alegoria do beco pois diante de situações complexas geralmente falamos que estamos em um beco sem saída Diante das situações de exploração e opressão procuramos um beco com saída um beco para a vida para a liberdade e para a revolução Para tanto não podemos perder de vista as raízes desse sistema e de suas expressões desiguais e violentas Sinalizamos que toda proteção social para as mulheres em uma sociedade patriarcal racistacapitalista é limitada e que o Direito estruturalmente compõe esse sistema e o conserva entretanto como tática aliada a um projeto revolucionário pode ser utilizado na luta por direitos mais progressistas a partir da transformação das nossas relações sociais concretas Dessa forma a garantia de leis mais progressistas são conquistas civilizatórias Ressaltamos portanto a importância do feminismo não se distanciar das lutas sociais mesmo com todas as divergências e diferenciações internas do movimento é preciso fortalecêlo enquanto sujeito coletivo total e com vistas ao fortalecimento da consciência militante feminista GURGEL 2011 CISNE 2014 A Lei Maria da Penha prevê a construção e ampliação de serviços especializados situados na rede de enfrentamento e de atendimento à mulher em situação de violência todavia isso ocorre num cenário neoliberal de redução de gastos com políticas sociais públicas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 172 Tratase de uma legislação que aborda a articulação entre as políticas sociais de apoio às mulheres e muitas decisões vinculadas à esfera cível separação guarda alimentos e dentre seus quarenta e seis artigos somente cinco são criminais Art 41 a 45 Contudo é considerada uma lei criminal a ser executada por varas criminais onde não há juizado ou vara especializada em violência doméstica e familiar contra a mulher BRASIL 2006 Percebemos portanto que o eixo coercitivo ainda predomina no poder judiciário em virtude de sua própria condição de existência Diante disso a proteção social ofertada às mulheres é a mais imediatista voltase principalmente para as decisões de contenção com medidas em sua maioria de restrição de direitos em desfavor da pessoa indicada como perpetradora da violência medidas de afastamento e proibição de contato Ademais quando a mulher chega ao judiciário a violência já ocorreu o que denota a importância de se trabalhar com a prevenção Em nossa pesquisa percebemos que as decisões de promoção de direitos voltadas para a assistência e prevenção a novas violências tendem a ser aplicadas caso haja uma intervenção especializada no atendimento aos sujeitos envolvidos Com a escassez de equipes judiciais exclusivas para o atendimento da matéria consideramos que há grande perda para a população atendida Porém não basta a existência dessesas profissionais no serviço especializado sendo importante a direção social e política fornecida em seus atendimentos O desafio enquanto assistente social atuando no sociojurídico é compreender essa sociedade desigual em que vivemos e os limites de qualquer alternativa que não contemple superála ao construir outra forma de sociabilidade Uma atuação para além do direito strictu sensu voltada para a articulação da rede de atendimento possibilitanos articular outras saídas construídas com os sujeitos atendidos Sem romantizar tais serviços que ainda possuem oferta insuficiente e precarizada mas que materializam uma necessidade urgente de ampliar o conceito de proteção e criar condições concretas de rompimento com a violência imediata nas relações interpessoais Mas tal direcionamento deve ser dado sem perder de vista o horizonte do enfrentamento estrutural dessas hierarquizações e violências diversas para além das instituições Para as mulheres atendidas por esses serviços judiciais fica o apontamento de que nossas vidas nossas lutas precisam ir para além das conquistas jurídicoformais e o desafio inclusive de trazer algumas dessas reflexões no cotidiano dos atendimentos Diante disso parafraseamos Simone de Beauvoir Que nada nos defina nem as leis Que nada nos sujeite nem as leis Que a liberdade seja a nossa própria substância já que viver é ser livre Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 173 REFERÊNCIAS AGÊNCIA PATRÍCIA GALVÃO DataSenado mulheres reconhecem mais a violência doméstica mas faltam serviços e informações sobre direitos Instituto Patrícia Galvão 07 de julho de 2017 Disponível em httpagenciapatriciagalvaoorgbrviolenciadatasenado mulheresreconhecemmaisviolenciadomesticamasfaltamservicoseinformacoessobre direitos Acesso em 12 de junho de 2017 BARATA Joaquina Barata BRAZ Marcelo O projeto éticopolítico do Serviço Social In Serviço Social Direitos Sociais e Competências Profissionais Brasília CFESS 2009 BARBIÉRI Luiz Felipe Governo reduz em 61 verba para atendimento à mulher em situação de violência Poder 360 25 de março de 2017 Disponível em httpwwwpoder360combrgovernogovernoreduzem61verbaparaatendimentoa mulheremsituacaodeviolencia Acesso em 27 de março de 2018 BRASIL Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 Lei Maria da Penha Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato200420062006leil11340htm Acesso em 19 de outubro de 2018 BORGIANNI Elisabete Para entender o Serviço Social na área sociojurídica In Serviço Social e Sociedade 2013 n115 p407442 CASTRO Bárbara RONCATTO Mariana Entrevista com Helena Hirata In Revista Ideias Trabalho de Mulheres vol 7 n1 2016 Disponível em httpwwwifchunicampbrojsindexphpideiasarticleview2293 Acesso em 10 de outubro de 2018 CISNE Mirla Feminismo e consciência de classe no Brasil São Paulo Cortez 2014 COLOMBI Bárbara Leite Pereira A precarização do trabalho em foco rebatimentos para os assistentes sociais do judiciário In Serviço Social e Sociedade São Paulo nº 127 p 574 586 setdez 2016 DEVREUX AnneMarie A teoria das relações sociais de sexo um quadro de análise sobre a dominação masculina In Cadernos de Crítica Feminista ano V nº 4 Recife SOS corpo dez 2011 p 06 29 FERREIRA Verônica et al orgs O Patriarcado desvendado teorias de três feministas materialistas Collete Guillaumin Paola Tabet e Nicole Claude Mathieu Recife SOS Corpo 2014 p 27100 FLICK Uwe Plano de pesquisa In Uma introdução à Pesquisa Qualitativa Porto Alegre Bookman 2004 2ª edição p 6988 GURGEL Telma O feminismo como sujeito coletivo total a mediação da diversidade In Cadernos de crítica feminista ano V nº 4 Recife SOS Corpo dez 2011 p 3047 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 174 GURGEL Telma Feminismos e autonomia na América Latina algumas questões estratégicas In TEIXEIRA Marlene ALVES Maria Elaene Rodrigues orgs Feminismo e Gênero desafios para o Serviço Social Brasília Abaré Editorial 2015 p 125138 HIRATA Helena e KERGOAT Daniele Novas configurações da divisão sexual do trabalho In Cadernos de Pesquisa v 37 p 595609 setdez 2007 IAMAMOTO Marilda Vilella O Serviço Social na Contemporaneidade trabalho e formação profissional São Paulo Cortez editora 2000 3ª edição IAMAMOTO Marilda Vilella Capítulo II O Serviço Social no processo de Reprodução das Relações Sociais In IAMAMOTO Marilda Vilella CARVALHO Raul de Relações Sociais e Serviço Social no Brasil esboço de um interpretação históricometodológica São Paulo Cortez editora 2005 18ª edição p 65124 IAMAMOTO Marilda Vilella Renovação e Conservadorismo no Serviço Social ensaios críticos São Paulo Cortez 2013 12ª edição IASI Mauro Luís Direito e Emancipação humana Revista da Faculdade de Direito Universidade Metodista de São Paulo 2005 Vol 2 p170192 LUKÁCS Gyorgy Para uma ontologia do ser social II São Paulo Boitempo editorial 1981 2013 MARQUES Rosa Maria MENDES Áquila A proteção social no capitalismo contemporâneo em crise In Argumentum VitóriaES v 5 p 135163 janjun 2013 MÉSZÁROS István Marxismo e Direitos Humanos In Filosofia ideologia e ciência social São Paulo Boitempo 2008 p 157168 PASINATO Wânia Datasenado Mulheres reconhecem mais a violência doméstica mas faltam serviços e informações sobre direitos Agência Patrícia Galvão 07 de julho de 2017 Disponível em httpsagenciapatriciagalvaoorgbrviolenciadatasenadomulheres reconhecemmaisviolenciadomesticamasfaltamservicoseinformacoessobredireitos Acesso em 25 de agosto de 2019 PEREIRA Camila Potyara Proteção social no capitalismo contribuições à crítica de matrizes teóricas e ideológicas conflitantes Tese de doutorado PósGraduação em Política Social do Departamento de Serviço Social da Universidade de BrasíliaUnB 2013 SALVADOR Evilásio TEIXEIRA Sandra Oliveira Orçamento e políticas sociais metodologia de análise na perspectiva crítica In Revista Políticas Públicas São Luís v 18 n 1 p 1532 janjun 2014 SANTOS Silvana Mara de Morais dos Direitos desigualdade e diversidade In BOSCHETTI Ivanete et al orgs Política social no capitalismo tendências contemporâneas 2ª edição São Paulo Cortez 2009 p 6486 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 175 SANTOS Silvana Mara de Morais dos Ética e Direitos Humanos In Módulo 3 Ética em movimento Curso de Capacitação para agentes multiplicadores 5ª edição Brasília CFESS 2016 TENORIO Emilly Marques Entre a polícia e as políticas Lei Maria da Penha e Medidas de Proteção Coleção Estante Fundamental do Sociojurídico Campinas Papel Social 2018 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da Violência 2015 Homicídios de Mulheres no Brasil Brasília OPASOMS ONU Mulheres SPM e Flacso 2015 Disponível em wwwmapadaviolenciaorgbr Acesso em 20 de novembro de 2018 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 176 CARACTERÍSTICAS DA VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA MULHERES EM INTERFACE COM AS VIOLÊNCIAS SEXUAL E FÍSICA NOTIFICAÇÕES NO SUL DO BRASIL Liandra Savanhago1 Carolina Bolsoni2 Elza Berger Salema Coelho3 Sheila Rubia Lindner4 RESUMO Este estudo descreve os dados de notificação compulsória de violência psicológica contra mulheres adultas comparandoa com outras tipologias de violências como sexual e física As mulheres possuem faixa etária de 20 a 59 anos localizadas na Região Sul brasileira no período de 2009 a 2016 Para isso efetuouse uma pesquisa quantitativa retrospectiva com informações do Sistema de Informação de Agravos de Notificação comparando a violência psicológica com a violência física e sexual Os dados foram coletados por meio do software Stata versão 130 e as análises foram descritivas Constatase que as principais vítimas de violência psicológica são mulheres brancas entre 20 e 39 anos casadas e sem deficiências ou transtornos Os autores de agressão são majoritariamente homens que cometeram o ato violento no ambiente doméstico A violência psicológica foi a segunda maior violência notificada sendo a primeira violência física Quando correlacionadas as violências psicológica e física tiveram maior expressividade contrastando com violência sexual e psicológica Nos resultados problematizase as contradições de raça que refletem no perfil das mulheres vítimas de violência psicológica Além disso ressaltase a importância de considerar a violência psicológica não como um fenômeno isolado mas que também se manifesta como consequência de outras tipologias de violências Concluise que a violência psicológica é um fenômeno multiforme que não pode ser desconsiderada da realidade histórico e cultural Palavraschave Perspectiva de Gênero Violência contra a mulher Notificação Compulsória INTRODUÇÃO 1 Psicóloga do Sistema Único de Assistência Social Mestra em Psicologia Social e Especialista em Saúde Coletiva Universidade Federal de Santa Catarina Email Liandrasavanhagohotmailcom Lattes httplattescnpqbr3430483195764977 2 Pósdoutoranda no Programa de Pósgraduação em Saúde Coletiva Doutora e Mestra em Saúde Coletiva 2017 pela Universidade Federal de Santa Catarina Email carolziinhaflorgmailcom Lattes httplattescnpqbr6654871617906798 3 Professora Adjunta do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina Doutora em Filosofia da enfermagem 2000 Universidade Federal de Santa Catarina Email elzacoelhogmailcom Lattes httplattescnpqbr3980247753451491 4 Professora Adjunta do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina Doutora em Saúde Coletiva 2013 Universidade Federal de Santa Catarina Email sheilalindnergmailcom Lattes httplattescnpqbr3507140374697938 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 177 No Brasil a Lei Federal Nº 11340 de 2006 conhecida como Lei Maria da Penha define como crime cinco tipos de violência contra a mulher física sexual psicológica moral e patrimonial A violência psicológica em especial é definida por tal Lei como um comportamento ou ação causadora de dano emocional e no pleno desenvolvimento do indivíduo As condutas tipificadas como formas de violência psicológica podem ser ameaça constrangimento humilhação manipulação isolamento vigilância constante perseguição contumaz insulto chantagem violação de sua intimidade ridicularização BRASIL 2006 entre outras A violência psicológica por ser a forma mais subjetiva de violência é considerada de difícil identificação INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2018 pois em geral há uma dificuldade de comprovála e de reconhecêla sobretudo por parte de quem a sofre Nesse sentido a violência física é a tipologia mais reconhecida pela sociedade em geral em contrapartida as violências psicológicas ainda que causem danos à saúde são mais naturalizadas e passíveis de subnotificação dificultando assim a efetivação da Lei Nº 113402006 Os dados nacionais lançados pelo Observatório da Mulher Contra a Violência BRASIL 2018 revelaram que a quantidade de violência doméstica registrada no Ligue 180 em 2015 foi de 76651 10 do total de ocorrências Destes relatos de violência a psicológica foi a segunda maior registrada correspondendo a 303 Nos meses de janeiro e fevereiro de 2019 a central registrou 11132 ligações das quais 78 se referem à violência psicológica em números totais esses números tiveram um aumento de 20 em relação ao mesmo período do ano passado BRASIL 2019a Ao longo de 2017 o Instituto de Pesquisa DataSenado em parceria com o Observatório da Mulher Contra a Violência realizou uma pesquisa para ouvir 1116 mulheres brasileiras acerca da violência doméstica no país Nesta pesquisa constatouse um aumento do percentual de mulheres vítimas de violência doméstica perpetuada por homens passando de 18 em 2015 para 29 em 2017 BRASIL 2017 Nesta fonte de informação violência psicológica também foi a segunda maior registrada com 47 das menções Medrado e Lyra 2003 apud Lima Büchele e Clímaco 2008 p 75 ao buscarem compreender a violência de homens contra mulheres a partir de uma perspectiva de gênero defendem a necessidade de analisar os processos de socialização masculinas os quais são condicionados para reprimir suas emoções sendo a agressividade incluindo a violência física formas geralmente aceitas como marcas ou provas de masculinidade Nesse sentido os homens agressores estão presentes no contexto da violência em diferentes lugares sendo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 178 produto e alvo dos padrões de subjetividade orientados pelos modelos de gênero e pelas relações desiguais de poder em nossa sociedade LIMA BÜCHELE CLÍMACO 2008 p 76 Apesar de antigas estas constatações ainda se sustentam visto que as violências contra as mulheres possuem antecedentes enraizados em uma cultura machista que se encontram consolidadas em conceitos primitivos sobre os papeis de gênero PREUSS PESSOA JUNIOR 2016 A inserção das violências psicológica e moral na Lei Maria da Penha foi considerada um avanço legislativo e uma forma de expandir o conceito de violência doméstica uma vez que tais violências provocam danos à saúde e uma violência que pode sinalizar uma futura violência física BRASIL 2015 A violência psicológica pode ser identificada em mulheres de diversas etnias classes sociais idade tempo de relacionamento condição socioeconômica COLOSSI et al 2015 as consequências na saúde psicossocial e física são diversas como transtornos de ansiedade transtornos depressivos transtorno de estresse pós traumático tentativas de suicídio distúrbios alimentares e distúrbios de sono além de interferência na construção da subjetividade e identidade ECHEVERRIA 2018 A mesma autora defende que a violência psicológica pode ser caracterizada como uma das formas mais cruéis de violência visto que deixa sequelas permanentes na subjetividade invadindo os limites do bemestar e causando danos mentais irremediáveis No âmbito da saúde pública a violência contra a mulher é um fenômeno de notificação compulsória ou seja após a ocorrência é obrigatório5 preencher uma ficha de notificação e ser inserido no Sistema de Informação de Agravos de Notificação Sinan O Sinan é um sistema de vigilância epidemiológica administrado pelo Ministério da Saúde MS que objetiva coletar e transmitir dados para o planejamento em saúde delimitações de estratégias e prioridades de intervenção na sociedade BRASIL 2019b ou seja por meio da notificação compulsória é possível classificar e sistematizar as diversas formas de violências possibilitando a construção de políticas públicas de prevenção e combate às violências que mais prevalecem em uma dada região Porém mesmo com a obrigatoriedade da notificação no Sinan Barufaldi et al 2017 e Silva Coelho e Caponi 2007 apontam que osas profissionais que atendem as vítimas se deparam com diversas situações de violência as quais inicialmente manifestamse de forma silenciosa tanto que muitas vezes apenas são notados os casos mais graves Tal fenômeno pode ser denominado como invisibilidade da violência BARUFALDI et al 2017 Nesse 5 A Lei Federal n 10788 de 24 de novembro de 2003 institui a obrigatoriedade da notificação Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 179 sentido a realidade sobre a violência psicológica é que pode estar sendo subnotificada visto que as violências psicológicas são sutis e estão relacionadas com outras tipologias de violências como sexual e física A subnotificação portanto reforça a necessidade de avançar na melhoria da notificação de cada ato de agressão capacitando os profissionais para o atendimento e para identificar casos ocultados RATES et al 2016 p 305 A relevância deste trabalho então está na necessidade de publicizar as informações sobre a violência psicológica e expandir o conhecimento por parte dos profissionais da saúde para identificar casos de violência psicológica contra mulheres principalmente quando atrelada a outras tipologias de violências Diante dessa problemática este estudo tem como objetivo descrever as características das mulheres que sofrem violência psicológica comparandoas com outras violências como a sexual e física baseandose nas notificações da Vigilância de violência interpessoal e autoprovocada do Sistema de Informação de Agravos de Notificação SinanVIVA na região Sul do Brasil entre 2009 e 2016 Esta pesquisa se trata de um estudo quantitativo e retrospectivo a partir dos dados secundários do banco de dados do SINANVIVA referentes a violências psicológicas físicas e sexuais suspeitas ou confirmadas na região Sul do Brasil no período entre 2009 e 2016 Sobre a população do estudo segundo a projeção da população do Brasil disponibilizado pelo IBGE 2019 a região Sul é composta por três estados brasileiros Paraná com 11 410 129 habitantes Santa Catarina com 7139895 habitantes e Rio Grande do Sul com 11363078 habitantes dos quais 509 504 e 513 são mulheres respectivamente IBGE 2010 As mulheres incluídas neste estudo estavam entre 20 e 59 anos de idade delimitado pela Organização Mundial da Saúde 2011 como fase adulta As variáveis selecionadas da Ficha de Notificação de Violência doméstica sexual eou outras violências foram notificação individual idade escolaridade raçacor dados da pessoa atendida situação conjugalestado civil e deficiênciatranstornos dados da ocorrência local da ocorrência e se ocorreu outras vezes tipologia da violência violência física sexual e psicológica informações do possível autor da agressão número de envolvidos grau de parentesco sexo e suspeita de uso de álcool Os dados foram analisados de maneira descritiva através da frequência relativa e absoluta utilizando o programa Stata versão 130 1 RESULTADOS Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 180 Entre 2009 e 2016 foram notificados 89864 casos de violência física psicológica e sexual contra mulheres adultas na região Sul Destas notificações 636 foram registros de violência física 315 registros de violência psicológica e 49 registros de violência sexual O estado do Rio Grande do Sul obteve 35383 notificações de violência enquanto que o estado do Paraná obteve 32545 notificações e Santa Catarina 21936 notificações No que diz respeito às variáveis sociodemográficas das mulheres vítimas de violência psicológica estas são majoritariamente brancas 786 faixa etária entre 20 a 39 anos 678 em relações estáveis 558 e sem deficiências ou transtornos 915 Grande parte das violências ocorreram dentro do ambiente doméstico 80 Em ordem decrescente os estados com maiores notificações de violência psicológica são Rio Grande do Sul 422 Paraná 387 e Santa Catarina 191 quadro 1 Quadro 1 Variáveis sociodemográficas e situações de violência da mulher vítima de violência psicológica Região Sul Brasil 2009 2016 Variáveis N Local de notificação N 28106 Rio Grande do Sul 11875 422 Paraná 10873 387 Santa Catarina 5358 191 Idade N 28106 20 29 9822 349 30 39 9248 329 40 49 5968 212 50 59 3068 109 Raçacor N 27212 Branca 21387 786 Parda 3871 142 Preta 1718 63 Amarelaindígena 236 09 Escolaridade N 22782 0 4 anos 4033 177 5 8 anos 8595 377 9 11 anos 7820 343 12 anos ou mais 2334 102 Situação conjugal N26424 Casadaunião 14757 558 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 181 Solteira 7674 290 Separadaviúva 3993 151 Deficiênciatranstorno N21194 Sim 1805 85 Não 19389 915 Local da ocorrência N 27598 Residência 22070 800 Via pública 3134 113 Outros 2394 87 Notificação de violência física e psicológica N 22588 17087 756 Notificação de violência sexual e psicológica N 27453 2414 88 Fonte Elaborado pelas autoras Sobre o perfil do agressor de violência psicológica 848 são homens e os parceiros íntimos são os maiores perpetradores 688 Metade das mulheres referiram que o autor de violência estava sob suspeita de uso de álcool no momento da agressão quadro 2 Quadro 2 Perfil do agressor de violência psicológica Região Sul Brasil 2009 2016 Variáveis N Sexo N 27583 Masculino 23403 848 Feminino 3462 125 Ambos 718 26 Grau de parentesco Parceiro íntimo 18869 688 Outros 2071 75 Desconhecido 1850 68 Conhecido 1804 66 Família 1317 49 Número de envolvidos N 22153 1 18648 849 2 ou mais 3505 158 Suspeita de abuso de álcool N 23306 Sim 11739 504 Não 11567 496 Fonte Elaborado pelas autoras 2 DISCUSSÕES Os resultados apresentados possibilitaram ter uma visão mais ampla da violência psicológica notificada na Região Sul do Brasil entre os anos de 2009 e 2016 Durante todo o período estudado foram notificados 89864 casos de violência física psicológica e sexual Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 182 Dentre esses casos a violência psicológica foi a segunda maior notificação correspondendo a 315 do total de violências ficando atrás apenas da violência física 636 Alguns estudos vão ao encontro da prevalência conforme a tipologia da violência BRASIL 2017 BORBUREMA et al 2017 Tanto no que diz respeito as três violências psicológica sexual e física quanto apenas a violência psicológica o Rio Grande do Sul teve o maior número de notificações seguido pelo estado do Paraná e de Santa Catarina Em comparação à totalidade dos estados brasileiros em 2016 o Rio Grande do Sul e Santa Catarina juntamente com Distrito Federal Rondônia e Amapá apresentaram maiores índices de ocorrências policiais de atos violentos contra mulheres BRASIL 2018 Diversas possibilidades podem explicar a predominância do Rio Grande do Sul em notificações de violência tanto pelo Sinan quanto por ocorrências policiais acreditase que as mais coerentes se tratam da redução da prática de subnotificação pela capacidade de diagnóstico por parte dos profissionais e o crescimento da capilaridade dos sistemas de saúde BRASIL 2018 Embora as mulheres pretas e pardas não tenham sido majoritárias nos resultados desta pesquisa evidenciase que a taxa média nacional e especificamente nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina as mulheres pretas e pardas possuíram maiores taxas de violência letal nos anos de 2006 2015 e 2016 segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade SIM do Ministério da Saúde disponibilizado pelo Observatório da Mulher Contra a Violência BRASIL 2018 A violência letal ainda atinge de forma diferente as mulheres a depender de sua raça uma vez que enquanto a taxa de homicídios de mulheres brancas em 2015 foi de 30 a mesma taxa entre as mulheres pretas e pardas foi de 52 BRASIL 2018 p 9 A partir destas informações contrastantes Arruzza Bhattacharya e Fraser 2019 ao falarem sobre as leis que criminalizam as violências de gênero afirmam que essas legislações permitiram uma emancipação legal porém sem atuar com eficiência nas transformações sociais e no racismo e sexismo institucionais para garantir que as mulheres abandonem o contexto da violência Em relação a sofrer violência psicológica e violência física os dados apontam que 756 das mulheres que sofreram violência física também notificaram a violência psicologia Em contrapartida apenas 88 das mulheres que sofreram violência sexual tiveram registro de violência psicológica Colocar a violência psicológica em interface com as outras tipologias de violências se faz necessária no sentido de defender a hipótese de que as violências físicas e sexuais também causam danos à saúde mental das mulheres Hirigoyen 2006 ao correlacionar a violência física e a psicológica afirma que não há violência física sem que antes não tenha Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 183 ocorrido violência psicológica ou seja constatase grande parte dos casos a violência psicológica antecede a agressão física PREUSS PESSOA JUNIOR 2016 No que diz respeito à correlação entre violência psicológica e violência sexual a mesma autora afirma que violências sexuais muitas vezes são silenciadas consideradas um dever conjugal em que a relação sexual é tida como uma obrigação da mulher e um direito para o homem em outras palavras tal violência é difícil de ser identificada pois pode ser camuflada por existir vínculo afetivo entre a vítima e o agressor FERREIRA LOPES 2017 As relações de dominação e humilhação por parte do parceiro íntimo são consideradas como variantes da violência psicológica HIRIGOYEN 2006 A partir dos exemplos de Hirigoyen 2006 considerase importante desconstruir a ideia cartesiana de que violência físicasexual e violência psicológica são fenômenos isolados da realidade social visto que elas são interligadas e ocorrem dentro de um contexto histórico e social Um exemplo a ser evidenciado diz respeito as possíveis alterações psicológicas decorrentes da violência física segundo Brasil 2001 as alterações psicológicas resultantes de traumas têm durações variadas podendo durar horas ou dias A mesma fonte indica que a crise de pânico é um sintoma frequente além de ansiedade depressão comportamentos autodestrutivos fobias insônias tentativas de suicídio e sua consumação BRASIL 2001 ECHEVERRIA 2018 Neste sentido a violência psicológica não deve se limitar aos meios de agressão utilizados pelo agressor como xingamentos ameaças humilhações e etc mas também às consequências de tais meios Ou seja considerase importante dar visibilidade não apenas a tipologia da violência utilizada pelo agressor mas o resultado da violência que afeta a saúde mental da mulher Sobre o perfil do agressor destacase que 848 são homens e 688 são parceiros íntimos Estes dados entram em consonância com a situação conjugal da vítima majoritariamente casadas e o local da violência em que 80 dos casos ocorrem no ambiente doméstico com homens que convivem com a vítima Essas informações são corroboradas pela pesquisa de Borburema et al 2017 ao identificarem uma elevada prevalência de violência perpetrada por parceiro íntimo na população estudada em prontuários de instituições de saúde Segundo as autoras a maior ocorrência da violência perpetrada pelo parceiro íntimo expressa subordinação e dominação na qual existe distribuição desigual de privilégios direitos e deveres evidenciando a violência baseada no gênero p 8 A partir das informações sobre o perfil do agressor Lima Büchele Clímaco 2008 ao buscarem explicar algumas causas da violência de homens contra mulheres recorrem à teoria Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 184 feminista a qual coloca as relações de poder e de dominação masculina como um aspecto central que explica as ações violentas Convergindo com essa informação Arruza Bhattacharta e Fraser 2019 problematizam que as violências estão inseridas na sociedade de forma estrutural e sistêmica profundamente ancoradas na ordem social Tais violências são estabelecidas a partir da construção histórica de relações hierárquicas de poder entre os gêneros resultando em normatizações do comportamento violento SAFFIOTI 2001 LIMA SOUZA 2015 GUIMARÃES PEDROZA 2015 BANDEIRA 2014 Outra informação relevante encontrada é a suspeita de uso de álcool por parte do agressor no momento da ação violenta Tal característica teve uma proporção semelhante à ausência de uso de álcool visto que 504 das pessoas estavam em suspeita de uso de álcool ao efetuarem violência psicológica contra a mulher O Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas ao realizar estudos epidemiológicos sobre o uso de álcool na população brasileira constatou em 2002 e 2005 que uma acentuada parcela dos casos de violência doméstica está associada ao consumo de bebidas alcoólicas sendo a mulher a principal vítima MARTINS NASCIMENTO 2017 Para Lindner Coelho Bolsoni Rojas e Boing 2015 o consumo de álcool é uma das mais controversas variáveis estudadas como causadoras da violência pois ao mesmo tempo é um fator que contribui para a ocorrência da violência ele não determina tais condutas Em outras palavras o álcool é um fator que está associado à violência doméstica como facilitador da agressão porém não se pode afirmar uma relação causal e unidirecional entre os dois fenômenos MARTINS NASCIMENTO 2017 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste estudo foram analisadas as notificações de violência psicológica em interface com outras tipologias de violências como a sexual e física A adoção da temática de violências de gênero nos serviços de saúde é de fundamental importância para contribuir com a instrumentação de mulheres a enfrentarem essas situações que podem desencadear uma série de outras doenças Ressaltase que a violência de gênero é uma temática complexa e multiforme o que permite ser compreendida por meio de diferentes campos de conhecimento como a psicologia medicina saúde coletiva direito Recomendase que o ponto de conexão entre os múltiplos campos e abordagens seja a consideração das relações históricas e culturais entre os gêneros suas hierarquias relações de poder e de opressão construídas socialmente Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 185 Vale considerar que os resultados desta pesquisa não abarcaram discussões acerca de violências em uniões homoafetivas bem como de outros grupos de alta prevalência de violência doméstica como crianças adolescentes e idosos Para os próximos estudos sugerese dar ênfase nas violências de gênero a partir de outros marcadores como os de classe social faixa etária e étnicoracial REFERÊNCIAS ARRUZZA C BHATTACHAYA T FRASER N Feminismo para os 99 um manifesto São Paulo Boitempo 2019 BANDEIRA L M Violência de gênero a construção de um campo teórico e de investigação Revista Sociedade e Estado Brasília v 29 n 2 p449469 ago 2014 BARUFALDI L A et al Violência de gênero comparação da mortalidade por agressão em mulheres com e sem notificação prévia de violência Ciênc saúde coletiva Rio de Janeiro v 22 n 9 p 29292938 set 2017 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1413 81232017002902929lngptnrmiso Acesso em 6 set 2019 BORBUREMA T L R PACHECO A P NUNES A A MORÉ C L O O KRENKEL S Violência contra mulher em contexto de vulnerabilidade social na Atenção Primária registro de violência em prontuários Revista Brasileira Medicina de Família e de Comunidade Rio de Janeiro v 12 n 39 p 113 10 out 2017 BRASIL Ministério da Saúde Secretaria de Políticas de Saúde Violência intrafamiliar orientações para prática em serviço Brasília Ministério da Saúde 2001 BRASIL Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 Diário Oficial da União 2006 BRASIL Ministério da Justiça Secretaria de Assuntos Legislativos Violências contra a mulher e as práticas institucionais Brasília 2015 Disponível em httpwwwcompromissoeatitudeorgbrwp contentuploads201508MJVCMeaspraticasinstitucionaispdf Acesso em 18 mar 2019 BRASIL Instituto de Pesquisa DataSenado Observatório da Mulher Contra a violência Secretaria de Transparência Violência doméstica e familiar contra a mulher Pesquisa DataSenado Brasília 2017 BRASIL Senado Federal Observatório da Mulher Contra a Violência Panorama da violência contra as mulheres no Brasil indicadores nacionais e estaduais N 2 Brasília 2018 BRASIL Ministério da Mulher da Família e dos Direitos Humanos Denúncias de violência física moral e psicológica aumentam cerca de 1996 no Ligue 180 2019a Disponível em httpswwwmdhgovbrtodasasnoticias2019marcodenunciasdeviolenciafisica moralepsicologicaaumentamcercade1996noligue180 Acesso em 18 mar 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 186 BRASIL Ministério da Saúde O Sinan 2019b Disponível em httpportalsinansaudegovbrosinan Acesso em 14 mai 2019 COLOSSI P M RAZERA J HAACK K R FALCKE D Violência conjugal prevalência e fatores associados Contextos Clínicos v 8 n 1 p 5566 jan 2015 Disponível em httppepsicbvsaludorgscielophpscriptsciarttextpidS1983 34822015000100007lngptnrmiso Acesso em 2 abr 2019 ECHEVERRIA G B A violência psicológica contra a mulher reconhecimento e visibilidade Cadernos de gênero e diversidade v 4 n 1 p 131145 jan 2018 Disponível em httpsportalseerufbabrindexphpcadgendivarticleview25651 Acesso em 5 set 2019 FERREIRA T B LOPES A O S Alcoolismo Um Caminho para a Violência na Conjugalidade Revista UNIABEU v 10 n 24 p 95110 janabr 2017 Disponível em httpsrevistauniabeuedubrindexphpRUarticleview2527 Acesso em 10 abr 2019 GUIMARÃES M C PEDROZA R L S Violência contra a mulher problematizando definições teóricas filosóficas e jurídicas Psicologia Sociedade v 27 n 2 p 256266 2015 DOI httpdxdoiorg101590180703102015v27n2p256 Acesso em 29 mar 2019 HIRIGOYEN M F A violência no casal da coação psicológica à agressão física Rio de Janeiro RJ Bertrand Brasil 2006 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA IBGE Censo demográfico 2010 Disponível em httpsbrasilemsinteseibgegovbrpopulacaopopulacao porsexosegundoasunidadesdafederacaohtml Acesso em 28 mar 2019 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA IBGE Projeção da população do Brasil e das Unidades da Federação 2019 Disponível em httpswwwibgegovbrappspopulacaoprojecao Acesso em 28 de mar 2019 INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA Orlinda Claudia R de Moraes Flávia Vastano Manso Org Dossiê Mulher 13 ed Rio de Janeiro Rio Segurança ISP RJ 2018 115p Rio Segurança Série Estudos 2 Disponível em httparquivosproderjrjgovbrispimagensuploadsDossieMulher2018pdf Acesso em 18 mar 2019 LIMA D C BÜCHELE F CLÍMACO D A Homens gênero e violência contra a mulher Saúde e Sociedade São Paulo v 17 n 2 p 6981 abr 2008 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0104 12902008000200008lngennrmiso Acesso em 3 abr 2019 LIMA G H A SOUSA S M A Violência psicológica no trabalho da enfermagem Revista Brasileira de Enfermagem sl v 68 n 5 p817823 out 2015 Disponível em httpdxdoiorg101590003471672015680508i Acesso em 15 mar 2019 LINDNER S R COELHO E B S BOLSONI C C ROJAS P F BOING A F Prevalência de violência física por parceiro íntimo em homens e mulheres de Florianópolis Santa Catarina Brasil estudo de base Populacional Caderno de Saúde Pública Rio de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 187 Janeiro v 31 n 4 p 815826 abr 2015 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0102 311X2015000400815lngennrmiso Acesso em 1 abr 2019 MARTINS A G NASCIMENTO A R A Violência doméstica álcool e outros fatores associados uma análise bibliométrica Arquivos Brasileiros de Psicologia Rio de Janeiro v 69 n 1 p 107121 2017 Disponível em httppepsicbvsaludorgscielophpscriptsciarttextpidS1809 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psicológica como condição da violência física doméstica Interface Comunicação Saúde Educação Botucatu v 11 n 21 p 93103 jan 2007 Disponível em httpdxdoiorg101590S141432832007000100009 Acesso em 10 mar 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 188 REFLEXÕES SOBRE A VIOLÊNCIA DUAS MULHERES ATENDIDAS POR UMA ORGANIZAÇÃO NÃOGOVERNAMENTAL EM BLUMENAUSC Geórgia Paula Martins Faust 1 Paola Dorozetz 2 Bruna Camila Schuhardt 3 Patrícia Backes 4 RESUMO Objetivase apontar elementos históricos sobre o machismo e com isso demonstrar e analisar dois casos de mulheres agredidas e em situação de fragilidade emocional eou financeira atendidas pelo Instituto Feminista Nísia Floresta na cidade de BlumenauSC e região Este estudo tem natureza qualitativa descritiva Teve como instrumento de coleta de dados a narrativa livre de mulheres usuárias dos programas de amparo à mulher do instituto Conta com a amostra representacional de 2 duas mulheres de 23 a 39 anos Discutese temáticas envolvendo o processo de construção do cenário de desigualdade entre os gêneros baseado na construção cultural política e religiosa entre elas i histórico da inferiorização da mulher na sociedade ii construção social do machismo e violência iii significações da violência iv busca por ajuda e o fim do ciclo de violência v reabilitação e reintegração da pessoa abusada na sociedade Concluise a necessidade de haver cada vez mais iniciativas especialmente através de redes intersetoriais e de organizações da sociedade civil que possibilitem o acolhimento e a autorreflexão entre mulheres PalavrasChave Feminismo Violência contra a mulher Organização NãoGovernamental INTRODUÇÃO A violência contra a mulher é um significativo problema de saúde pública mundial bem como de violação dos direitos humanos fundamentais da mulher WHO 2013 A Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher também conhecida como Convenção de Belém do Pará CONVENÇÃO INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS 1994 define a violência contra mulheres como qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte dano ou sofrimento físico sexual ou psicológico à mulher tanto 1 Mestranda em Educação Programa de Pós Graduação em Educação Universidade Regional de Bllumenau FURB Bolsista CAPESFAPESC Graduada em Pedagogia 2015 Email geofaustgmailcom Lattes httplattescnpqbr4688063589319888 2 Estudante de Psicologia Universidade Regional de Blumenau FURB Email dozoretzpaolagmailcom Lattes httplattescnpqbr0186216940977633 3 Graduada em Serviço Social Uniasselvi 2016 Email bschuhardtgmailcom Lattes httplattescnpqbr5448321407303589 4 Graduada em Psicologia Universidade Federal de Santa Catarina 1999 Email patriciabackesyahoocombr Lattes httplattescnpqbr4479112419422930 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 189 na esfera pública como na esfera privada Esta violência abrange violações no âmbito psicológico físico ou sexual Moreira et al 2008 comentam que a violência configura um fenômeno de múltiplas determinações Referese à hierarquia de poder conflitos de autoridade e desejo de domínio e aniquilamento do outro O relatório da World Health Organization Global and regional estimates of violence against women prevalence and health effects of intimate partner violence and nonpartner sexual violence 2013 diz que o termo violência contra a mulher abrange muitas formas de violência incluindo a violência de um parceiro íntimo e violaçãoagressão sexual e outras formas de violência perpetradas por alguém que não seja um parceiro bem como a mutilação genital feminina assassinatos de honra e tráfico de mulheres Estimativas globais publicadas pela Organização PanAmericana da Saúde 2017 indicam que aproximadamente uma em cada três mulheres 35 em todo o mundo sofreram violência física eou sexual por parte do parceiro ou de terceiros durante a vida A maior parte dos casos é de violência infligida por parceiros Em todo o mundo quase um terço 30 das mulheres que estiveram em um relacionamento relatam ter sofrido alguma forma de violência física eou sexual na vida por parte de seu parceiro Segundo o Atlas da Violência 2019 elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada 2019 em conjunto com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública no Brasil foram registrados 4936 casos de feminicídios em 2017 a maior número em dez anos Isso corresponde a 13 vítimas por dia sendo 66 mulheres negras e o crescimento entre 2007 e 2017 de homicídios de mulheres negras cresceu 299 De 2012 a 2017 a porcentagem de homicídios dentro de casa cresceu 171 Por arma de fogo e dentro da residência cresceu 287 Diante deste cenário com números expressivos a respeito da estrutura social brasileira fazse necessário um estudo histórico sobre o papel da mulher no Brasil e de casos atuais para demonstrar a necessidade de fortalecimento de órgãos já existentes bem como a criação de novos órgãos e políticas que efetivamente contribuam para a superação do quadro de violência e também o fomento e a promoção de discussões profundas sobre o tema violênciamachismo com todas as camadas da sociedade e gêneros Argumentamos que as relações de poder entre homens e mulheres onde os homens detem o poder e as mulheres à ele se submetem é uma construção cultural e não natural tampouco determinista ou biologizante Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 190 A desigualdade longe de ser natural é posta pela tradição cultural pelas estruturas de poder pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais Nas relações entre homens e mulheres a desigualdade de gênero não é dada mas pode ser construída e o é com frequência SAFFIOTI 2015 p 75 Para o presente estudo foram levantados dados sobre dois casos atendidos pelo Instituto Feminista Nísia Floresta de mulheres em alguma situação de vulnerabilidade Esses casos se destacaram por terem demandado maior atenção das voluntárias tanto no sentido do acolhimento às vítimas que além do atendimento pela ONG também tiveram acesso à rede intersetorial delegacia casa abrigo Centro de Referência em Assistência Social Centro de Referência Especializada em Assistência Social quanto em relação às providências a serem tomadas depois que elas saíram da rede de proteção estatal e precisaram caminhar com suas próprias pernas Através desses dois casos em especial em que as referidas mulheres tiveram ao seu dispor praticamente todos os recursos hoje disponíveis pela rede de atendimento pudemos verificar com clareza que a ação estatal através da consolidação de políticas públicas de atendimento às mulheres vítimas de violência não é suficiente para atender todas as necessidades envolvidas em um contexto complexo como o da violência doméstica A vítima de violência doméstica demora muito tempo para reunir força e coragem para tomar uma atitude frente a violência e após esse primeiro passo ainda enfrenta diversas dificuldades para voltar a ter uma vida minimamente funcional como questões relacionadas ao cuidado dos filhos empregabilidade manutenção da casa e formação e consolidação de rede de apoio Apesar de não negarmos a importância das ferramentas estatais e advogarmos pelo fortalecimento das políticas públicas de atendimento o relato dessas experiências demonstra que a participação da sociedade civil organizada ou não é imprescindível para a recuperação plena dessas mulheres O Instituto Feminista Nísia Floresta atua na cidade de Blumenau Santa Catarina há 3 três anos atendendo e amparando mulheres e seus filhos e filhas vítimas de violência de qualquer natureza Voluntárias de diversas áreas de conhecimento contribuem com ajuda jurídica apoio psicológico e manutenção de condições básicas de sobrevivência como alimentação moradia temporária e consultoria de recursos humanos 1 INFERIORIZAÇÃO DA MULHER UM BREVE HISTÓRICO A hipótese da existência de sociedades matriarcais não pode ser aceita por falta de comprovação histórica porém há evidências arqueológicas de que houve uma outra ordem de gênero organizada de forma diferente da que temos hoje caracterizada pela dominação Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 191 masculina SAFFIOTI 2015 O que Saffioti 2015 denomina patriarcado pode ser definido como um pacto masculino para garantir a opressão de mulheres Esse regime ancorase em uma maneira de os homens assegurarem para si mesmo e para seus dependentes os meios necessários à produção diária e à reprodução da vida SAFFIOTI 2015 p 111 Buscando entender o processo social de inferiorização da mulher recorremos a Engels 1984 quando comenta o início da propriedade privada no momento em que os relacionamentos monogâmicos efetivamente começaram De acordo com Fortes 2018 a passagem da família sindiásmica para a monogâmica é consequência do surgimento da propriedade privada como elemento norteador da estrutura social A atenção está na mudança de posição ocupado pela mulher nos dois modelos de família A família sindiásmica ALARCÓN PIETRO 2015 se caracterizava pelo matrimônio entre um homem e uma mulher mas sem a convivência exclusiva união esta que permite o divórcio ou a separação pelo livre arbítrio de ambos marido e mulher ALARCÓN PRIETO 2015 p 341 tradução nossa Já a relação monogâmica se baseia em um matrimônio de um homem com uma mulher com coabitação exclusiva e na família se ergue um sistema independente de consanguinidade ALARCÓN PRIETO 2015 p 341 tradução nossa e caracterizada por uma estrutura de transferência de bens e propriedade herança de pais para filhos FORTES 2018 Segundo Fortes 2018 o maior problema estava em como os bens eram distribuídos na sociedade quando um dos genitores morria na família sindiásmica a linhagem materna definia em várias comunidades a prevalência dessa distribuição Já na família monogâmica encontramos a posição da linha materna inferiorizada Alarcón e Prieto 2015 p 368 comentam A troca da descendência por linhagem feminina à masculina foi prejudicial para a posição e direitos da mulher e da mãe seus filhos trasladados do gens dela para o de seu marido pelo fato de casarse alienava seus direitos agnatícios sem receber uma compensação equivalente antes da troca os membros de seu próprio gens predominavam na casa o que dava pleno vigor ao vínculo materno e para que a mulher estivesse mais ao centro da família que o varão Depois da troca se encontrava só na casa de seu esposo afastada dos parentes do clã Nas classes prósperas seu estado era de reclusão forçada e o objetivo primário do matrimônio a procriação de filhos legítimos Essa perda do direito materno é considerada por Engels 1984 como a grande derrota para o sexo feminino pois enquanto o homem tomava posse da direção da casa a mulher foi colocada em posição de degradação tornandose serva de seu marido e escrava do prazer dele um mero instrumento de reprodução O desprestígio da mulher na configuração familiar pode Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 192 ter características diferentes pode ser maquiado de algumas formas em diferentes lugares mas de jeito nenhum foi eliminado ENGELS 1984 Saffioti 2015 traz outra tese relacionada à divisão sexual do trabalho Relata que nas sociedades de caça e coleta a caça cabia aos homens e correspondia apenas à 40 da provisão dos grupos aos quais pertenciam Além disso enquanto a coleta atribuída às mulheres era certa a caça era extremamente incerta sendo uma atividade executada uma ou duas vezes por semana e não sendo confiável em termos de produto SAFFIOTI 2015 Em não sendo a caça uma atividade diária os homens dispunham de muito tempo livre o que favorecia o exercício da criatividade e a criação de sistemas simbólicos eficientes para passar a dominar suas parceiras SAFFIOTI 2015 Nessa perspectiva ela estima que o patriarcado esteja vigente há cinco mil anos SAFFIOTI 2015 A hipótese mais convincente levantada para justificar a atribuição da caça aos homens e da coleta às mulheres é a do aleitamento materno O trabalho feminino era efetuado com as mulheres carregando seus bebês e a possibilidade de choro certamente inviabilizaria a caça exitosa SAFFIOTI 2015 Ainda que as mulheres provavelmente dispusessem de condições mais igualitárias e de grande importância econômica em sociedades de caça e coleta em todas as sociedades conhecidas as mulheres como categoria social não têm capacidade decisória sobre o grupo dos homens não ditam normas sexuais nem controlam as trocas matrimoniais SAFFIOTI 2015 p 127 o que reforça o afirmado anteriormente apesar de o patriarcado ser um fenômeno relativamente recente na história da humanidade não se pode afirmar que em algum momento houve uma sociedade matriarcal 2 CONSTRUÇÃO E REPETIÇÃO ESTRUTURAL DO MACHISMO Para Drumont 1980 o machismo é definido como um sistema de representações simbólicas que mistifica as relações de exploração de dominação e de sujeição entre o homem e a mulher reduzindoos em sexos hierarquizados divididos em polo dominante e polo dominado Tratase de um problema estrutural nas ideologias que sustentam as relações humanas O machismo apresenta modelos de posição social para ambos os gêneros sexuais e invalida toda a configuração que não obedece a este padrão de relação Ao homem cabe a figura de liderança e poder e à mulher cabe a posição de submissão O poder apresenta duas faces a da potência e a da impotência As mulheres são socializadas para conviver com a impotência os homens sempre vinculados à força são preparados para o exercício do poder SAFFIOTI 2015 p 89 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 193 Desde criança o menino e a menina são submetidos a posições préestabelecidas independentemente de suas vontades e suas consciências vão se construindo a partir deste universo que lhes é apresentado Podemos citar o sentimento de superioridade que o menino experimenta e em contrapartida a de inferioridade em que a menina é colocada como por exemplo os brinquedos destinados às meninas sempre voltados ao cuidado do lar e maternidade enquanto os meninos podem ser astronautas cientistas ou o que bem entenderem desde que não avancem nesta posição feminina de cuidados Até mesmo características tão simples como as cores das vestimentas são consideradas marcadores de feminilidade e masculinidade com a cor rosa sendo atribuída quase que exclusivamente ao sexo feminino e a cor azul ao sexo masculino criando fronteiras de gênero intransponíveis Meninos são constantemente bombardeados com mensagens dizendolhes que homens devem dominar as mulheres que eles estão autorizados a controlar o comportamento das mulheres e até mesmo usar de violência física FRENCH 1992 Essa é uma evidência de que a masculinidade não é uma característica inerente aos homens mas sim algo extremamente instável que necessita ser defendida e que quando ameaçada cria ansiedades externadas pelos homens em forma de raiva e violência FRENCH 1992 A masculinidade é apresentada às crianças como um ideal a ser atingido por todos os homens e invejado pelas mulheres justamente pela posição de poder envolvida na situação DRUMONT 1980 É esta configuração que faz as mulheres assumirem papéis sociais enquanto cúmplices da violência de que são vítimas ainda que não se vincule a uma escolha consciente e contribuam para a reprodução de sua dependência da dominação masculina GREGORI 1992 BOURDIEU 2016 Tal definição também é defendida por Bourdieu 2016 em sua obra A Dominação Masculina Por mais que o senso comum muitas vezes dê a entender que as desigualdades entre homens e mulheres estão superadas apenas porque alguns aspectos de fato demonstraram mudanças nas últimas décadas persiste a existência de espaços sociais ocupados de maneiras distintas por homens e por mulheres E para além dessa mera diferença entre esses espaços há também uma diferença na hierarquia entre eles mulheres estando em posição inferior Esta divisão e desigualdade entre os sexos é tão presente em todo o mundo social nos corpos e nos habitus dos agentes que parece estar na ordem das coisas ser algo tão normal e natural a ponto de ser inevitável BOURDIEU 2016 O que Bourdieu chama de dominação masculina pode ser observado em diferentes sociedades e em diferentes tempos históricos sendo que o invariável é que a discriminação se justifica pela atribuição de qualidades e traços de temperamento diferentes à homens e mulheres Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 194 PISCITELLI 2009 e que tais características que restringem as possibilidades de atuação tanto de uns quanto de outras são consideradas inatas ou biológicas No caso das mulheres soma se a isso a vinculação das qualidades ditas femininas à sua capacidade de gerar filhos de modo que a principal atividade das mulheres esteja atrelada à maternidade e que seu espaço seja o domésticofamiliar Dentro desta dinâmica de dominadordominado se instaura no âmbito familiar social profissional e acadêmico o sentimento de posse da mulher pelo homem Este sentimento é corroborado pelas mais diversas mídias que em seus conteúdos fomentam o sentimento de machismo e misoginia Segundo a secretáriaadjunta de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para Mulheres SPM Rosângela Rigo FERNANDES 2014 a mídia tem grande responsabilidade sobre os casos de violência contra a mulher em especial por transmitir a ideia de que o corpo feminino é um objeto que pode estar à disposição do prazer masculino Bandura 1965 escreve no livro Teoria Social Cognitiva um capítulo intitulado Processos vicários um caso de aprendizado sem julgamento tradução nossa onde apresenta os resultados de seus estudos que mostram que a aprendizagem observacional não depende de respostas ou reforçamento Bandura e Barab 1971 realizaram pesquisas demonstrando que a imitação generalizada é governada por crenças sociais e expectativas de resultados E a expectativa de resultados são aqueles expostos nas mídias como um ideal de homem e ideal de mulher ou de relação entre homens e mulheres sempre visando a venda de algum conteúdo com apelações machistas e misóginas Connell pesquisadora de renome internacional quando o assunto é masculinidades desenvolve seus trabalhos acerca da construção da masculinidade hegemônica da masculinidade de protesto e da feminilidade enfatizada A masculinidade hegemônica segundo Connell e Messerschmidt 2013 p 245 foi entendida como um padrão de práticas ie coisas feitas não apenas uma série de expectativas de papéis ou uma identidade que possibilitou que a dominação dos homens sobre as mulheres continuasse A masculinidade hegemônica não é a masculinidade necessariamente adotada integralmente pela maioria dos homens inclusive é provável que apenas uma minoria de homens realmente a incorpore mas é certo que ela é normativa CONNEL 2013 Mas ela tornase quase que um ideal a ser atingido pelos homens e de maneira ideológica legitima a subordinação das mulheres aos homens CONNEL 2013 A sociedade considera normal e natural que os homens ajam com violência em relação ás mulheres SAFFIOTI 2015 porque o comportamento violento e a dominação fazem parte da masculinidade hegemônica CONNEL 2013 que deve ser almejada e perseguida por eles Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 195 Porém as violências podem se manifestar de diversas formas além da violência física propriamente dita Inclusive na maioria das vezes as violências não ocorrem isoladamente a violência física acontece juntamente com a sexual emocional e moral SAFFIOTI 2015 E a isso somase o fato de que as tecnologias de gênero LAURETIS 1987 naturalizam o feminino como suposta fragilidade do corpo da mulher e o masculino como força e a manifestação dessa força através da agressividade e da violência A constante ameaça de violência funciona como mecanismo de sujeição das mulheres aos homens SAFFIOTI 2015 tornando difícil o caminho para sair de um relacionamento abusivo 3 AS SIGNIFICAÇÕES DA VIOLÊNCIA MEMÓRIA DE CASOS ATENDIDOS PELO INSTITUTO FEMINISTA NÍSIA FLORESTA A partir do momento que o homem enxerga a mulher como um bem este passa por um processo de adoecimento da masculinidade em que estão envolvidos dilemas pessoais algumas vezes o uso de substâncias psicoativas e em alguns casos psicoses já existentes São depositados neste bem todas as frustrações que já existiam e virão a existir minando a autoestima da mulher e sua independência emocional financeira e profissional O homem passa a acreditar ser dono da mulher e tenta controlar todas as esferas da sua vida Neste contexto de adoecimento da posição masculina existe o fenômeno interno feminino onde segundo Nóbrega et al 2019 os conflitos interpessoais vividos diante das situações de violência revelam o homem que de marido idealizado passa à condição de agressor Observouse em estudos de Nóbrega et al 2019 que a violência sofrida pelas mulheres não foi tratada como uma violação dos direitos da mulher o que reforça e até potencializa a aceitação para o comportamento masculino frente às situações vividas como algo que faz parte do convívio entre o casal Além disso outros comportamentos de controle da vida das mulheres chegam a ser em nossa cultura romantizados pela crença relacionada a relacionamentos românticos O ciúme que muitas vezes se manifesta como ações de administração simbólica da vida e do corpo das mulheres é comumente visto como uma demonstração de amor Muito se ouve que o homem ciumento é aquele que ama demais e tem medo de perder o objeto de seu afeto Ações como determinar quais roupas sua companheira pode ou não usar a cor de seu batom o acesso irrestrito a privacidade dela como ter a senha de suas redes sociais ou livre acesso ao seu telefone celular são ações cujos danos são minimizados pelo discurso romântico e geralmente são apenas a ponta do iceberg de um relacionamento abusivo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 196 A violência doméstica ocorre numa relação afetiva cuja ruptura demanda via de regra intervenção externa Raramente uma mulher consegue desvincular se de um homem violento sem auxílio externo Até que este ocorra descreve uma trajetória oscilante com movimentos de saída da relação e de retorno a ela Este é o chamado ciclo da violência Mesmo quando permanecem na relação por décadas as mulheres reagem à violência variando muito as estratégias A compreensão deste fenômeno é importante porquanto há quem as considere nãosujeitos e por via de consequência passivas SAFFIOTI 2015 p 84 As violências de gênero em suas modalidades familiar e doméstica não acontecem de maneira aleatória mas derivam de uma organização social generificada organização essa que privilegia o masculino em detrimento do feminino SAFFIOTI 2015 As mulheres que suportam a violência de seus companheiros são codependentes da compulsão masculina e a rotinização da violência contribui grandemente para essa codependência SAFFIOTI 2015 o que amplia a duração em que essas mulheres permanecem no ciclo de violência Um dos desafios enfrentados pelas voluntárias do Instituto Feminista Nísia Floresta é o de compreender essas relações complexas de dependência e de violência e nesse sentido relatar neste trabalho os percursos vividos pelas mulheres atendidas é um passo importante para que a compreensão se aprofunde e que o fenômeno da violência doméstica possa ser melhor endereçado 31 Mulher em situação de violência MC5 MC mulher 39 anos vítima de violência doméstica Conhecemos a Sra MC após egresso do Abrigo de mulheres do município de Blumenau A mesma conheceu o Instituto Feminista Nísia Floresta porque uma colega do abrigo o indicou e fez contato conosco após retornar à sua casa Relata que passou anos sofrendo violência doméstica Nas últimas vezes que sofreu violência correu risco de vida sendo ameaçada com faca Em visita pudemos constatar seu sofá todo cortado e teve coragem de denunciar o agressor após conhecer outro homem por quem se interessou Uma mulher guerreira como você não merece viver assim foi o que ela ouviu desse homem Nunca mais encontrou o tal homem mas precisou ouvir de outra pessoa que ela merecia mais Realizou Boletim de Ocorrência e solicitou medida protetiva foi abrigada por aproximadamente três meses e hoje de volta ao seu lar está amparada pela lei e também pela comunidade Os traficantes não querem polícia aqui falaram que vão cuidar de mim e que meu exmarido não entra mais no prédio Seu exmarido faz uso abusivo de substâncias psicoativas crack MC diz que 5 Foram usadas apenas as iniciais para preservar a identidade da mulher atendida Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 197 também fazia mas está limpa há algum tempo Relata que teve umas recaídas por conta dele mas foram poucas vezes Tem dois filhos pequenos de 4 e 2 anos a avó paterna é quem paga a pensão mas paga só o quanto quer e quando quer diz que quando ela estava como pai das crianças a avó dava tudo nunca faltou nada para eles agora que me separei ela não quer mais me ajudar porque não estou com o filho dela ela acha que estou rica por causa do benefício de R 40000 por mês do CRAS Sra MC conta sua história teve 7 filhos perdeu a guarda dos 5 primeiros quando estava enfrentando problemas com uso abusivo de substâncias psicoativas O primeiro filho cresceu num abrigo hoje é adulto trabalha vive sozinho e tem contato com ela O segundo filho permanece em abrigo mas o irmão mais velho está buscando para morar com ele A terceira e quarta filha foram adotadas juntas ela soube que estão em um município vizinho e já viu fotos em redes sociais porém não pode fazer contato O quinto filho foi o primeiro deste excompanheiro fala que ele foi adotado por um juiz e sabe que está com uma vida muito melhor Disse que nem poderia saber dessa informação mas as profissionais contaram para ela Os últimos dois filhos estão com ela mas relata que sente medo que descubram porque ela não perdeu apenas a guarda das crianças e sim o poder familiar diz que não pode mais ser mãe Atualmente após sair do abrigo enfrenta todas as dificuldades do mercado de trabalho que uma mãe solo pode ter Passaramse dois meses e continua na busca por um emprego Seus filhos estão na creche passa dias inteiros na rua preenchendo fichas em várias empresas andando longas distâncias a pé porque não possui recurso para vale transporte e muitas vezes sem comer devido à ausência de recurso financeiro Em seu momento mais crítico recebeu doações do instituto e de algumas conhecidas atualmente tem uma madrinha que tem auxiliado muito mas relata que não quer ficar dependendo de ninguém eu quero trabalhar eu sempre trabalhei sempre fui independente por favor me ajudem a conseguir um emprego 32 Mulher em situação de violência AS6 AS é egressa da Casa Eliza abrigo para mulheres em situação de violência e tem uma filha de 1 ano e 8 meses Está sendo acompanhada pelo CREAS 2 PAEFI e pelo Insituto Nisia Floresta devido a dificuldades de reinserção no mercado de trabalho Saiu com benefício da Casa Eliza para custear aluguel última parcela em agosto2019 e está tramitando processo de 6 Foram usadas apenas as iniciais para preservar a identidade da mulher atendida Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 198 pensão para a filha Foi conseguida a vaga na creche através da defensoria Pública processo que levou cerca de 2 meses O Instituto Nísia Floresta forneceu orientações referentes a busca de direitos crechepensão e forneceu também auxílio material alimentosfraldas Após seu acolhimento na Casa Eliza houve quebra de vínculo com sogros que lhe prestavam suporte nos cuidados da neta Em agosto de 2019 começou a trabalhar como manicure Assim que começou a trabalhar AS relatou que o pai da filha mostrouse mais participativo na função paterna vai levála para fazer exames para investigar possível déficit de crescimento e se dispôs a buscar a filha na creche nos dias em que AS pudesse vir a se atrasar Porém um mês depois AS entrou em contato conosco para informar que sua filha perdeu o exame de raio x porque o pai dela recusouse a levála AS estava muito nervosa porque dias depois seria a audiência para pensão alimentícia e seu excompanheiro afirmou que iria detonála perante o juiz AS afirma que ele não tem intenção de obter a guarda Conversamos no sentido de acalmála Além da recusa em levar a filha para fazer o exame o excompanheiro afirmou que não buscaria mais a filha na creche o que comprometeria o horário de trabalho de A S Orientamos para que expusesse essas questões na audiência da necessidade de manter seu emprego e da participação do pai na vida da filha 4 A BUSCA POR AJUDA E O FIM DA VIOLÊNCIA Labronici 2012 p 629 fala da percepção da mulher de estar no ciclo de violência e o limiar entre amor e medo que estas mulheres vivem o que muitas vezes é difícil pelo fato da naturalização da violência Comenta que A partir do momento em que as mulheres mesmo estando em processo de sujeição e desestruturação da própria vida e da família em função da violência sofrida durante a trajetória existencial foram surpreendidas por um comportamento de violência extrema no qual o agressor concretamente tentou matálas agredir eou matar os filhos O enfrentamento que é primeiro momento do processo de resiliência foi iniciado visto que se deparam com a possibilidade da finitude humana E adiciona A percepção da destruição da família e da finitude humana vivida pelas mulheres vítimas de violência doméstica as fez perceber que estavam acorrentadas ao ciclo de violência e risco na temporalidade do aqui e agora e isso poderia fazer da existência delas uma trajetória sem sentido insípida Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 199 deixando na memória um passado marcado pelo acúmulo de sucessivas manifestações de agressões LABRONICI 2012 p 628 A denúncia muitas vezes não é feita por motivo do sentimento de vergonha inclusive as vítimas evitavam falar aos profissionais de saúde que as atendem sobre a situação de violência MOREIRA 2008 Além desses fatores podemos elencar também a culpabilização da vítima tanto por parte da sociedade quando por ela mesma As mulheres são culpabilizadas por quase tudo que não dá certo Se ela é estuprada a culpa é dela porque sua saia era muito curta ou o decote ousado SAFFIOTI 2015 p 67 As mulheres também muitas vezes permanecem nos relacionamentos abusivos por acreditarem na possibilidade de recuperação de seus parceiros Talvez pelo fato de serem encarregadas da educação dos filhos as mulheres em geral sejam tão onipotentes Julgamse capazes de mudar o companheiro quando a rigor ninguém muda outrem SAFFIOTI 2015 p 70 Também são comuns os casos em que mulheres buscam a Delegacia Especializada com o objetivo de dar um susto em seu companheiro esperando que o relacionamento volte a ser harmonioso SAFFIOTI 2015 Considerando dados de estudos de Nóbrega et al 2019 o estar com o outro em redes de apoio social permite a continuidade do processo de ruptura com a violência e seu agressor Desta forma quando a vítima consegue falar e expor sua subjetividade a partir da sua experiência traumática ela pode atribuir novo significado à vivência armazenada e ao fazêlo será possível mudar a significação do sofrimento e assim superálo LABROCINI 2012 p 629 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O que temos percebido em nossas práticas como voluntárias de uma organização não governamental que trabalha com o atendimento de vítimas de violência é que as consequências da violência não se encerram quando a violência em si cessa As mulheres vítimas seguem necessitando não apenas de suporte financeiro como também de acolhimento psicológico e dependendo grandemente de uma rede de apoio Essa rede de apoio muitas vezes é formada pelo próprio agressor ou por sua família como pudemos ver no caso de MC que recebia pensão dos sogros e de AS que depende do excompanheiro para buscar a filha na creche levála para consultas médicas etc O sexismo conforme Saffioti 2015 não é apenas um preconceito mas também a possibilidade de agir sobre o preconceito Ou seja o machista é investido de poder habilitado pela sociedade a tratar legitimamente as pessoas sobre quem recai o preconceito da maneira Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 200 como este as retrata SAFFIOTI 2015 p 131 O fenômeno do sexismo não é individual mas social e autoriza a sociedade como um todo a discriminar e marginalizar as mulheres privando as do convívio social comum SAFFIOTI 2015 que é o que vemos em nosso cotidiano acontecendo com as mulheres vítimas de agressão e especialmente as mulheres mães À elas é permitida uma integração subordinada Essas mulheres retratadas neste estudo por serem mães solo em sua maioria e sem formação qualificada encontram muitas dificuldades para se reinserirem no mercado de trabalho que é bastante hostil com a maternidade Os dois casos relatados aqui são exemplos dessa dificuldade porém devemos destacar que essa condição é verdadeira para todas as mulheres atendidas O município de Blumenau conta com uma rede de atendimento que pode ser considerada eficaz com relativa intersetorialidade entre os serviços Existe um Comitê de Atenção a Pessoas em Situação de Violência Sexual Doméstica Institucional e Familiar que busca articular os serviços e otimizar os protocolos de atendimento Desse Comitê participam representantes da maior parte dos serviços como Centro de Referência em Assistência Social CRAS Centro de Referência Especializado em Assistência Social CREAS Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social SEMUDES Serviço de Atendimento à Vítimas de Violência Sexual SAVS Conselho Tutelar Delegacia de Proteção a Criança Mulher e Idoso Promotoria Pública Rede Catarina Polícia Civil hospitais e organizações nãogovernamentais como o Instituto Feminista Nísia Floresta Blumenau dispõe de uma Delegacia Especializada é um dos poucos municípios que possui uma casa abrigo Porém avaliamos que as dificuldades enfrentadas pelas mulheres não são supridas integralmente por esses serviços porque ainda pesa sobre elas a pressão social e o estigma relacionado à violência sofrida Por mais que elas encontrem acolhimento mesmo que por vezes com alguns atendimentos problemáticos ainda sofrem com a falta de amparo psicológico e muitas vezes financeiro Elas percorrem um longo caminho para terem coragem de denunciar e tomar uma atitude frente a violência e depois desse importante passo sofrem com a dificuldade de voltarem a ter uma vida considerada normal Muitas delas devido à violência psicológica que sofreram durante o relacionamento não contam com uma rede de apoio com amigas ou mesmo familiares dispostos a prestarem auxílio Uma verdadeira política de combate à violência doméstica exige que se opere em rede englobando a colaboração de diferentes áreas SAFFIOTI 2015 p 96 Uma parceria entre as delegacias especializadas a magistratura o ministério público defensoria pública hospitais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 201 profissionais de saúde educação serviço social são fundamentais Mas defendemos o trabalho da sociedade civil organizada através de organizações nãogovernamentais no sentido de prestar suporte nas áreas em que o poder público não alcança Especialmente o trabalho de orientação acolhimento emocional e empoderamento7 podem ser determinantes para que as vítimas possam quebrar o ciclo de violência e consigam se recuperar e seguirem suas vidas da melhor maneira possível REFERÊNCIAS ALARCÓN Silvia de PRIETO Vicente Ed Karl Marx Escritos sobre la Comunidad Ancestral 2 ed La Paz Vicepresidencia del Estado Plurinacional Presidencia de la Asamblea Legislativa Plurinacional 2015 BANDURA Albert AZZI Roberta Gurgel POLYDORO Soely Teoria social cognitiva conceitos básicos Porto Alegre Artmed 2008 BANDURA Albert Vicarious processes a case of notrial learning In BERKOWITZ Leonard Ed Advances in experimental social psychology New York Academic Press 1965 v2 p155 BANDURA Albert BARAB Peter G Conditions governing nonreinforced imitation Developmental Psychology v5 p244255 1971 BOURDIEU Pierre A dominação masculina A condição feminina e a violência simbólica 3ª ed Rio de Janeiro Bestbolso 2016 COMISSÃO INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra A Mulher Convenção de Belém do Pará 1994 Disponível em httpswwwcidhoasorgbasicosportuguesmBelemdoParahtm Acesso em 11 set 2019 CONNELL Raewyn MESSERSCHMIDT James W Masculinidade hegemônica repensando o conceito Estudos Feministas Florianópolis 211 424 2013 DRUMONT Mary Pimentel Elementos para uma análise do machismo Perspectivas São Paulo 38185 1980 ENGELS Friedrich A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado 9 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1984 FERNANDES Sarah Mídia tem responsabilidade diz Secretária de Política para Mulheres Rede Brasil Atual São Paulo 25 de Nov de 2014 Disponível em 7 Empoderarse equivale num nível bem expressivo do combate a possuir alternativas sempre na condição de categoria social O empoderamento individual acaba transformando as empoderadas em mulheresálibi o que joga água no moinho do neoliberalismo se a maioria das mulheres não conseguiu uma situação proeminente a responsabilidade é delas porquanto são pouco inteligentes não lutaram suficientemente não se dispuseram a suportar os sacrifícios que a ascensão social impõe num mundo a elas hostil SAFFIOTI 2015 p 121 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 202 httpswwwredebrasilatualcombrcidadania201411midiatemresponsabilidadena violenciadegenerodizsecretariadepoliticasparamulher568 Acesso em 23 ago 2019 FORTES Ronaldo Vielmi Gênese social e atualidade dos processos de inferiorização da mulher em Marx Engels e Lukács Rev katálysis Florianópolis v 21 n 3 p 441451 Dec 2018 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1414 49802018000300441lngennrmiso Acesso em 22 ago 2019 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA Anuário brasileiro de segurança pública Ano 12 São Paulo 2018 ISSN 19837364 Disponível em httpwwwforumsegurancaorgbrwpcontentuploads201903AnuarioBrasileirode SeguranC3A7aPC3BAblica2018pdf Acesso em 23 ago 2019 FRENCH Marilyn A guerra contra as Mulheres uma denúncia devastadora da situação da mulher no mundo de hoje São Paulo Editora Best Seller 1992 GREGORI Maria Filomena Cenas e queixas um estudo sobre mulheres relações violentas e a prática feminista São Paulo ANPOCS 1992 HOWARD Louise M et al Domestic Violence and Perinatal Mental Disorders A Systematic Review and MetaAnalysis PLoS Med 105 2013 INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA Brasília Rio de Janeiro São Paulo Fórum Brasileiro de Segurança Pública Atlas da Violência 2019 2019 Disponível emhttpwwwipeagovbrportalimagesstoriesPDFsrelatorioinstitucional190605atlasd aviolencia2019pdf Acesso em 11 set 2019 LABRONICI L M Processo de resiliência nas mulheres vítimas de violência doméstica um olhar fenomenológico Texto Context Enferm 2012 213625632 Disponível em httpswwwredalycorgpdf71471424779018pdf Acesso em 24 ago 2019 LAURETIS Teresa de Technologies of gender Bloomington e Indianapolis Indiana University Press 1987 MOREIRA Simone da Nóbrega Tomaz et al Violência física contra a mulher na perspectiva de profissionais de saúde Rev Saúde Pública São Paulo v 42 n 6 p 10531059 Dec 2008 NOBREGA Vannucia Karla de Medeiros et al Renúncia violência e denúncia representações sociais do homem agressor sob a ótica da mulher agredida Ciênc saúde coletiva Rio de Janeiro v 24 n 7 p 26592666 Jul 2019 ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DA SAÚDE Organização Mundial da Saúde Folha informativa Violência contra as mulheres 2017 Disponível em httpswwwpahoorgbraindexphpoptioncomcontentviewarticleid5669folha informativaviolenciacontraasmulheresItemid820 Acesso em 11 set 2019 PISCITELLI Adriana Gênero a história de um conceito In ALMEIDA Heloisa Buarque SZWAKO José Orgs Diferenças igualdade São Paulo Berlendis Vertecchia 2009 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 203 SAFFIOTI Heleieth Gênero Patriarcado Violência 2 Ed São Paulo Expressão Popular 2015 SCOTT Joan Wallach Gênero uma categoria útil de análise histórica Educação Realidade Porto Alegre vol 20 nº 2 juldez 1995 pp 7199 SENADO FEDERAL Panorama da violência contra as mulheres no Brasil indicadores nacionais e estaduais Brasília Senado Federal Observatório da Mulher Contra a Violência 2016 WHO Global and regional estimates of violence against women prevalence and health effects of intimate partner violence and nonpartner sexual violence Geneva WHO Press 2013 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 204 APONTAMENTOS ACERCA DO HISTÓRICO DE VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES E SEU ENFRENTAMENTO NA CIDADE DE IMPERATRIZMA Fernanda Miler Lima Pinto1 Jéssica Painkow Rosa Cavalcante2 Regina Célia Costa Lima3 RESUMO O presente artigo tem como objetivo realizar uma breve exposição do trabalho de enfrentamento à violência contra a mulher na cidade de Imperatriz localizada no Estado do Maranhão passando pelo reconhecimento da luta histórica dos movimentos sociais e do estabelecimento de políticas públicas de combate às agressões de gênero Para tanto essa pesquisa se forma a partir de um estudo bibliográfico para atingir seu objetivo e confrontar sua hipótese O problema aqui investigado é se a cidade de Imperatriz contribui no enfrentamento e combate de violência contra mulheres de forma eficaz considerando que esta cidade é uma das poucas no Brasil que possui uma rede especializada considerada completa no enfrentamento à esse tipo de problema O trabalho se propõe em primeiramente familiarizar o leitor com aspectos marcantes da história dessa cidade e região para em seguida expor como os movimentos que lutam pela causa das mulheres e a Rede Especializada de Atendimento à Mulher em Situação de Violência se formaram nessa cidade Ao final levantase a reflexão acerca de como as políticas públicas desenvolvidas na cidade contribuíram de forma efetiva para o combate a violência doméstica Palavraschave Imperatriz Maranhão Violência contra a Mulher Rede Especializada de Atendimento à Mulher em Situação de Violência INTRODUÇÃO Infelizmente a história nos mostra que desde os primórdios da humanidade a violência contra a mulher tem estado presente No entanto esse é um problema que não pode prosperar em uma sociedade que preza pelo estado de direito pela democracia e pelos direitos humanos Portanto enfrentar avidamente esse problema é de uma necessidade fundamental No sentido de se combater a violência contra mulher o Brasil adotou diversas medidas de proteção às vítimas e de combate à violência doméstica e familiar como a criação de uma 1 Advogada inscrita na OABMA Mestranda em Direito Público na Universidade Vale do Rio Sinos UNISINOS Email fernandamlp1206gmailcom Lattes httplattescnpqbr1672312046277512 2 Advogada inscrita na OABTO Doutoranda em Direito Público na Universidade Vale do Rio dos Sinos UNISINOS Mestra em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás UFG Pósgraduada lato sensu em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes Pósgraduada lato sensu em Direito Agrário e Agronegócio pela Faculdade Casa Branca Facab Email jessicapainkowhotmailcom Lattes httplattescnpqbr4024280261959707 3 Docente do Curso de História da Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão UEMASUL Doutoranda pelo Programa de Pósgraduação em História da Universidade do Vale do Rio Sinos UNISINOS Mestra em Ciências Ambientais e Saúde pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás PUCGO Email regnaceliahotmailcom Lattes httplattescnpqbr1384692968984742 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 205 lei com competência civil e criminal a Lei nº 1134006 em virtude de uma condenação em plano internacional pelo Caso Maria da Penha Fernandes Essa lei determina que o poder público tome diversas atitudes de modo a promover políticas públicas e gerir instituições que atuem no combate à violência contra a mulher e na proteção às vítimas nesse processo sendo resultado de grande mobilização de movimentos feministas realizados à época No Brasil a violência de gênero persiste sob números alarmantes comprometendo a vida de inúmeras pessoas Acerca de injustiça de gênero Nancy Fraser 2006 p 234 compreende que a principal característica se faz no androcêntrismo que é a construção autorizada de normas que privilegiam os traços associados à masculinidade Sendo assim a violência doméstica4 e familiar contra a mulher é um problema de gênero amparado em conceitos históricos e culturais de dominação masculina subvertendo identidades e cristalizandose como verdades inabaláveis por anos a fio devendo ser combatidos através de políticas de reconhecimento e redistribuição5 ou seja através de mudanças econômicas políticas e culturais FRASER 2006 Nesse sentido Nancy Fraser 2006 p 235 compreende que tais problemas não podem ser remediados apenas pela redistribuição econômico política mas precisam de medidas independentes e adicionais de reconhecimento O androcêntrismo e sexismo predominantes exigem a mudança dos valores culturais assim como de suas expressões legais e práticas que privilegiam a masculinidade e negam respeito às mulheres Exigem o descentramento das normas androcêntricas e a revalorização de um gênero desprezado A lógica do remédio é semelhante à lógica relativa à sexualidade conceder reconhecimento positivo a um grupo especificamente desvalorizado As feministas devem buscar remédios que dissolvam a diferenciação de gênero enquanto buscam também remédios culturais que valorizem a especicidade de uma coletividade desprezada Desse modo atuando na forma de reconhecimento de direitos com inspiração na Lei Maria da Penha foi criado um conjunto de órgãos que atuam de forma interligada e harmônica no enfrentamento à violência contra a mulher conhecido como Rede Especializada de Atendimento à Mulher em Situação de Violência 4 Entendese por violência doméstica neste trabalho a conceituação fornecida pelo artigo 5 o da Lei Maria da Penha sendo qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte lesão sofrimento físico sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial 5 Parte aqui do pressuposto de conexão entre ideias de reconhecimento e distribuição que conforme compreende Nancy Fraser 2006 se reforçam por remédios afirmativos e transformativos Para mais informações sobre o tema FRASER Nancy Da redistribuição ao reconhecimento dilemas da justiça numa era póssocialista Cadernos de Campos São Paulo v 15 n 14 p231239 jan 2006 Tradução de Julio Assis Simões Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 206 Nessa pesquisa o objeto deste estudo focase na situação de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher em Imperatriz a segunda maior cidade do Estado do Maranhão considerado um dos poucos lugares que possuem uma rede completa de enfrentamento e combate de violência doméstica Este artigo busca realizar uma análise de como a cidade de Imperatriz atua no combate e na adoção das políticas de reconhecimento e se estas são consideradas suficientes para o enfrentamento eficaz de violência contra mulheres Sob uma análise singularmente bibliográfica o trabalho se divide em primeiramente familiarizar o leitor com aspectos marcantes da história dessa cidade e região em segundo lugar expor como os movimentos que lutam pela causa das mulheres e a Rede Especializada de Atendimento à Mulher em Situação de Violência se formaram nessa cidade e ao final levantar a reflexão acerca de como as políticas públicas desenvolvidas na cidade contribuíram de forma efetiva para o combate a violência doméstica 1 IMPERATRIZ UMA CIDADE ENTRE O RIO O SERTÃO E UMA RODOVIA A Cidade de Imperatriz está localizada na porção ocidental da região amazônica Situada no sudoeste do Maranhão sendo um polo econômico cultural político e populacional que aglutina o sul do Maranhão parte do Tocantins e do Pará que lhe fazem fronteira Estendese pela margem direita do rio Tocantins um dos mais importantes rios da região norte do Brasil sendo atravessada pela Rodovia BR010 conhecida como rodovia BelémBrasília situada na divisa com o Estado do Tocantins LIMA 2015 Para Franklin 2005 a história da ocupação e colonização de Imperatriz e região tem as condições geográficas como um dos fatores preponderantes Pelo rio Tocantins os colonizadores em meados do século XIX adentraram na região para se apropriarem do cerrado e da Amazônia utilizando violências diversas contra as diferentes tribos indígenas nativas da região como os Canela Gaviões e Krikati O surgimento da cidade se deu pelos bandeirantes que desbravavam o norte do país em busca de riquezas e apoderamento territorial e pelas entradas religiosas que objetivavam a reafirmação da força da religião católica no país Assim podese dizer que O surgimento de Imperatriz começou a ser desenhado nos fins do Século XVI e início do século XVII com a iniciativa dos bandeirantes que partindo de São Paulo buscavam nos confins do Norte a riqueza o desconhecido e a aventura Enquanto os bandeirantes navegavam da nascente em busca da foz paralelamente as entradas governamentais eou religiosas subiam o rio tentando alcançar suas nascentes Das entradas realizadas a que mais nos interessa foi a que se realizou no ano de 1658 pelos jesuítas Padre Manoel Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 207 Nunes e Padre Francisco Veloso que teriam sido os primeiros a utilizar o sítio onde hoje está Imperatriz IMPERATRIZ online Segundo Franklin 2005 nessa região foi fundada a povoação de Santa Teresa em 16 de julho de 1852 por Frei Manoel Procópio do Coração de Maria que comandou uma expedição militar por encomenda do Governo do Pará com o objetivo de aldear os indígenas da região bem como o alargamento territorial do Estado A emancipação política da povoação se deu em 27 de agosto de 1856 pela lei nº 398 quando elevouse à categoria de vila intitulandose Vila de Santa Teresa Em 1862 passou a se denominar Vila Nova de Imperatriz em homenagem à esposa de Dom Pedro II a imperatriz Teresa Cristina e tornouse para a categoria de cidade no ano de 1924 quando passou a se chamar simplesmente Imperatriz A partir da década de 1960 juntamente com o processo de aceleração da vida urbana brasileira Imperatriz passou por várias transformações na redefinição de seu perfil O número de habitantes da cidade passou de 39 mil em 1960 para 80 mil em 1970 o que tornou Imperatriz o segundo município mais populoso do Estado do Maranhão somente ficando atrás da capital São Luís LIMA 2015 Em 1958 o congresso nacional autorizou o início da construção da rodovia BelémBrasília com isso a cidade sofreu um súbito crescimento populacional A partir de 1960 Imperatriz experimenta um surto de desenvolvimento com abertura de ruas e construção de praças LIMA et al 2016 p 721 Em Imperatriz a inauguração da produção historiográfica local foi feita por uma mulher que ousou penetrar no universo literário LIMA et al 2016 p 718 Essa foi Edelvira Marques de Moraes Barros influente professora e responsável por escritos que visaram dar visibilidade ao município de Imperatriz e região aproximando as novas gerações e a história do lugar estimulando o sentimento de pertença LIMA 2016 Desse modo essa professora afirma que no final da década de 1950 Imperatriz passou por grandes transformações com a chegada dos migrantes que vieram revitalizar a pequena cidade e iniciar o ciclo da produção de arroz Os terrenos baldios foram ocupados as poucas ruas e travessas cresceram e frentes de colonização eram abertas BARROS 1996 p 105 Portanto as grandes obras de desenvolvimento implantados na região que tem como marco inicial a construção da BelémBrasília mudam o destino da cidade pois era de agora em diante um novo centro de povoamento para o trabalho para a agricultura e a pecuária para a indústria e o comércio ponto avançado de uma civilização nova NETTO 1979 p168 Esse histórico de progresso iniciado em meados do século passado fazem de Imperatriz a segunda maior cidade do Maranhão em desenvolvimento econômico e de infraestrutura Em Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 208 termos populacionais ocupa a segunda colocação no Maranhão e a 101ª no Brasil com 247505 habitantes segundo o censo de 2010 sendo que desse total 128278 5183 são mulheres e 119227 4817 são homens IBGE online Além disso a cidade possui várias demandas sociais e um crescente desenvolvimento econômico que nas últimas quatro décadas tem atraído grandes investimentos como o crescimento do comércio e a expansão industrial notadamente pela implantação de uma fábrica filial da empresa Suzano Papel e Celulose em terras imperatrizenses A cidade funciona como entreposto comercial e de serviços no qual se abastecem mercados locais em um raio de 400 km e forma com AraguaínaTO MarabáPA BalsasMA e AçailândiaMA uma importante província econômica O município situase na área de influência de grandes projetos como a mineração da Serra dos Carajás MarabáParaupebas a mineração do igarapé Salobro MarabáParaupebas a Ferrovia CarajásItaqui a Ferrovia NorteSul as indústrias guzeiras Açailândia a indústria de celulose da Celmar Cidelândia que pela proximidade destes projetos de algum modo condicionam seu desenvolvimento IMPERATRIZ online A história de desenvolvimento de Imperatriz lhe concedeu títulos como Princesa do Tocantins Portal da Amazônia Capital Brasileira da Energia e até Metrópole da Integração Nacional IMPERATRIZ online No entanto essa cidade não é conhecida somente pelo seu crescimento mas também por um histórico de violência o qual lhe estigmatizou durante 30 anos como a Capital da Pistolagem Ainda hoje Imperatriz conserva os traços da violência sendo as taxas de homicídio durante o período entre 2000 e 2010 maiores que a própria capital São Luís Segundo o Mapa da Violência WAISELFISZ 2011 p 130 Os municípios de maior porte apresentaram elevado crescimento na década como a Capital São Luís que passa de 166 para 561 homicídios em 100 mil com aumento de 2388 ou o segundo município em população Imperatriz que passa 126 para 558 com crescimento de 3433 na década Desse modo Imperatriz está elencada como 163ª cidade mais violenta do país acima da capital São Luís que ocupa o 165ª posição BRETAS 2015 online De acordo com dados extraídos do Mapa da Violência 2015 Homicídios de Mulheres no Maranhão o número da população agredida por pessoa conhecida é de 126867 sendo 86189 correspondentes a mulheres e 40678 homens Em valores percentuais a população masculina equivale a 19 e a feminina o dobro disso 38 Ademais o mesmo estudo apresenta outra tabela expondo que 644 dos locais de ocorrência de violência contra a mulher por pessoa conhecida é na própria residência da vítima Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 209 Diante desse panorama percebese que a violência doméstica e familiar contra a mulher ainda é um enorme problema a ser enfrentado sendo em Imperatriz uma realidade não diferente O município conta com índices alarmantes nesse tipo de violência contra a mulher em especial a doméstica e familiar Fontes diversas alertam para esses números que ao longo do tempo não deixam de ser uma preocupação para os órgãos públicos que lidam com esse tipo de violência e também para a população em geral Em 2015 o site do Ministério Público do Estado do Maranhão 2015 online publicou reportagem na qual a promotoria de justiça com atribuição para os casos envolvendo esse tipo de violência afirma que somente em 2014 mais de 1000 boletins de ocorrência foram registrados acerca desse problema nesse município Em 2018 o site do G1 2018 online publicou uma matéria na qual alerta para o aumento do número de registros de agressão contra mulheres em Imperatriz Segundo essa reportagem jornalística em todo o ano de 2017 a Delegacia da Mulher registrou 567 inquéritos policiais sendo que em meados de 2018 355 inquéritos já estavam abertos para investigar casos de violência contra a mulher em Imperatriz ou seja mais da metade do total de inquéritos abertos no ano de 2017 Esse histórico de violência não é algo recente por isso o problema motivou as discussões sobre gênero nessa região que tomaram forma e força há mais de três décadas pelos movimentos feministas com reivindicações de políticas a serem implementadas pelo Estado de modo a combater a violência contra a mulher Hoje Imperatriz conta com praticamente todos os órgãos da Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher porém apesar de todo esse esforço os números de ocorrências com esse tipo de agressão ainda são desproporcionalmente altos Mary Ferreira 2013 p 29 ressalta essa dificuldade no Estado do Maranhão para a implementação de políticas públicas que combatam a violência de gênero sendo no geral medidas descontínuas e desarticuladas Embora os movimentos sociais estejam vigilantes e demandando ações concretas e efetivas ao Estado para o enfrentamento do problema as respostas nem sempre são a contento Conforme observase Ao longo desse período os documentos encaminhados ao governo do Estado e aos governos municipais pelos movimentos organizados reivindicando mudanças na gestão estadual e municipal buscando alterar as relações de gênero no sentido de construir uma sociedade de iguais As respostas não têm sido satisfatórias e muitas vezes há equívocos na visão dasos gestorases na compreensão do que seja política programa e ação É visível por parte dos movimentos de mulheres as dificuldades dessesas gestorases em articular as ações do governo a médio e longo prazo FERREIRA 2013 p 29 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 210 Nesse sentido fazse mister apresentar aqui um breve histórico da luta dos movimentos organizados em Imperatriz por reformas que reduzam as desigualdades sociais sendo uma importante contribuição para isso a redução da violência de gênero 2 DOS MOVIMENTOS SOCIAIS E FEMINISTAS ATÉ A FORMAÇÃO DA REDE ESPECIALIZADA NO ATENDIMENTO À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA Como outrora foi exposto Imperatriz é uma cidade ascendente economicamente sendo um atrativo para empresas de grande renome nacional e internacional Situada no interior do Maranhão numa região com intensa atividade extrativista com enorme concentração fundiária e tensões sociais constantes De acordo com Amorim 2013 p 43 o processo histórico da cidade e região e o fato de Imperatriz estar na rota dos interesses capitalistas enquanto polo de atração para diversos projetos desenvolvimentistas contribuíram não apenas para o seu crescimento desordenado mas também favoreceu o surgimento de diversas mazelas sociais violências urbanas e rurais das quais destacamse os crimes por encomenda que tanto marcaram a história da cidade nas últimas décadas do século XX Imperatriz teve ciclos econômicos diversos tendo por consequência disso uma população mista oriunda de diversos lugares do país que buscaram nessas terras oportunidades de trabalho e estudo Imperatriz viveu ciclos econômicos que demandaram a vinda de muitos homens para a região oriundos de todos os cantos do país entre eles o ciclo do ouro vivido pela região em função da Serra Pelada este período houve também a vinda de muitas jovens para a cidade a maioria delas eram trazidas de interiores rurais do Maranhão e do Pará estas eram convencidas a vir para a cidade trabalhar em casas de famílias onde poderiam vislumbrar um futuro estudar no entanto eram levadas para boates e bares para trabalharem na prostituição AMORIM 2013 p 43 Atualmente a maior parte da população imperatrizense é de mulheres e a violência de gênero em especial a violência contra a mulher é tangível apesar dos números e estatísticas não serem organizados e contabilizados propriamente pelas instituições responsáveis AMORIM 2013 p 43 44 assim como no resto do país6 6 Várias fontes comprovam que o Brasil ainda é muito deficiente na organização de estatísticas na área de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher A exemplo disso podese citar o Relatório Final da CEPIA Violência Contra a Mulher e Acesso à Justiça Estudo comparativo sobre a aplicação da Lei Maria da Penha em cinco capitais Não existem estatísticas ou indicadores numéricos que permitam comparar a quantidade de casos de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 211 Para Formiga 2013 a história dos movimentos sociais de Imperatriz andam lado a lado com as influências religiosas sendo que na década de 1970 os primeiros grupos organizados e engajados nas causas das mulheres surgiram organizados pela Igreja Católica Conforme essa autora o Clube de mães de Imperatriz é uma organização pioneira nessa trajetória dos movimentos de mulheres na região Se estruturando inicialmente como organização meramente religiosa com ações que giravam em torno da espiritualidade da promoção de lazer e da assistência o Clube de Mães apesar de seu caráter assistencial moral e educativo é inegável constatar o seu papel histórico enquanto espaço pioneiro na organização e representatividade das mulheres na cidade de Imperatriz Isso quer dizer que refletiu em um lugar onde as mulheres podiam se reconhecer como uma coletividade FORMIGA 2013 p47 No entanto o Clube de Mães não se demonstrava suficiente para o enfrentamento dos maiores problemas que as mulheres encaravam na época sobretudo não configurava ferramenta cabível para combater a violência de gênero Nesse sentido Sueli Brito Barbosa 2013 p 125 explica que o estatuto do Clube de Mães de Imperatriz acabava por reafirmar vários estereótipos da mulher perfeita para esse período definindo as mães como mulheres cuidadosas que zelam e promovem a educação dos filhos Questões políticas e sociais não tinham espaço reservado para essas mães que por esse projeto acabavam por ter papel de cuidadoras exemplares com responsabilidade primeira na educação dos filhos sem criticar em momento algum a divisão de tarefas domésticas entre os pais Segundo esses documentos pesquisados nos núcleos dos Clubes de Mães de Imperatriz são desenvolvidas atividades espirituais palestras encontros com objetivo de valorizar as festas familiares promoção das festas religiosas como páscoa casamentos batizados confraternização no dia das mães e dos pais atividades culturais vários cursos de artesanatos corte e costura beleza arranjos florais e palestras educativas e atividades recreativas encontros musicais apresentações teatrais em datas cívicas festas dançantes visitas e passeios entre os núcleos para troca de experiência e confraternização Entretanto é importante mencionar o papel importante do Clube de Mães na organização das mulheres sendo responsável pela eleição de uma vereadora No decorrer dos processos emancipatórios das mulheres o Clube de Mães se engaja na luta por direitos passa a incorporar as comemorações do 8 de março como atividades a partir dos anos noventa BARBOSA 2013 p 126 violência doméstica e familiar entre as capitais selecionadas A única referência para comparações entre capitais é o Mapa da Violência 2012 cujos números têm sido usados para refletir sobre a violência contra as mulheres no Brasil Sua elaboração utiliza o único documento nacional registros de óbito que permite ter uma visão comparativa e segura a partir de um registro administrativo Outras fontes de informações são ainda deficitárias e não padronizadas dificultando que se possa ter um bom dado sobre essa violência8 e sua captação pelas instâncias públicas responsáveis por seu enfrentamento CEPIA 2013 p 16 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 212 Seguindo a trajetória histórica proposta por Barbosa 2013 o segundo grupo organizado de mulheres em Imperatriz foi a Pastoral das Prostitutas em 1975 sendo também a exemplo do clube de mães iniciativa da Igreja Católica Juntamente com o processo de urbanização a partir do final da década de 1950 vieram as mazelas próprias dessa forma de desenvolvimento entre estas se destaca a exploração sexual de mulheres e jovens vindas de várias partes dos interiores do Maranhão e do Pará que acabaram encontrando em terras imperatrizenses uma forma de sustento com trabalhos noturnos em boates e bares e na prostituição As regiões da Farra Velha e Mangueirão ficaram conhecidas pelo meretrício e era nesses locais que freiras e grupos de senhoras da Igreja Católica uma vez por semana visitavam com a intenção de evangelizar as prostitutas no próprio local de trabalho Depois uma casa foi adquirida na área da Farra Velha onde foi montada uma escola para as filhas e filhos das mulheres e oferecidos vários cursos de artesanato corte e costura bordados arte culinária visando favorecer novas formas de sobrevivência econômica e o rompimento das mesmas com a prática da prostituição BARBOSA 2013 p 126 Percebese que esses dois grupos se limitavam a reunir mulheres e realizar atividades de acordo com o estereótipo feminino como artesanato costura e culinária Somente em meados da década de 1980 com a instalação do Centro de Educação dos Trabalhadores Rurais CENTRU é que questões como a organização das mulheres saúde e sexualidade começaram a ser efetivamente discutidas em cursos seminários e debates BARBOSA 2013 p 127 Destacase ainda a presença do Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu MIQCB criado na década de 1980 como resultante do processo de enfrentamento de tensões e conflitos específicos pelo acesso e uso comum das áreas de ocorrência de babaçu Com uma base consistente na região tocantina o movimento reúne mulheres da zona rural do município tendo como principal reivindicação a aplicação da lei do babaçu livre MOVIMENTO INTERESTADUAL DE QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU 2013 Outro movimento importante foi a Plenária Urbana de Imperatriz PLURI fundada no final da década de 1980 a PLURI que reunia a sociedade civil organizada em torno da luta por equipamentos urbanos lutas setoriais por saúde educação moradia transporte público e por cidadania envolvendo a questão da mulher na sociedade a homossexualidade a acessibilidade e a participação política No começo dos anos 90 em entrevista ao Jornal E Agora Lima 1992 já defendia a ampliação dos espaços de participação popular na luta por políticas públicas e o engajamento de mulheres na vida política sobretudo no poder legislativo Essas pautas ainda hoje são atualíssimas e necessárias Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 213 Barbosa 2013 p 127 assegura que na década de 1990 novos grupos surgiram aliados a outros movimentos da região como o Movimento dos Sem Terra a Coordenação dos Povos Indígenas do Maranhão as entidades sindicais o Comitê Permanente de Combate à Violência e à Negligência Médica e o Movimento Fagulha Em 1996 houve a unificação desses dois últimos movimentos ficando conhecido como somente Movimento Fagulha que sob a influência da ativista imperatrizense na causa feminista Conceição Amorim passou a discutir demandas políticas e sociais com os demais grupos de mulheres no município Ainda de acordo com Barbosa 2013 p 127 em 2001 o Movimento Fagulha passou a se chamar Centro de Promoção da Cidadania e Defesa dos Direitos Humanos Padre Josimo em homenagem ao pároco coordenador da Comissão Pastoral da Terra CPT que foi executado a mando dos latifundiários da região enquanto subia as escadas do prédio da Mitra Diocesana de Imperatriz em 1986 Em 2002 o primeiro grupo a se reconhecer feminista na cidade surgiu como Coordenadoria de Mulheres Esse grupo tinha o objetivo de atuar frente à violação dos direitos humanos numa perspectiva política de defesa dos direitos das mulheres BARBOSA 2013 p 128 No processo de unificação das lutas entre movimentos de mulheres e de feministas em 2005 foi criado o Fórum de Mulheres de Imperatriz com a participação de entidades que atuam direta ou indiretamente na defesa dos direitos das mulheres BARBOSA 2013 p 128 A intenção desse fórum era se desvencilhar de alguns posicionamentos ligados aos grupos da Igreja Católica e defender a liberdade sexual e reprodutiva das mulheres com foco para a descriminalização do aborto A partir do estudo de Barbosa 2013 p 129 extraise que os debates fomentados pelo movimento feminista na cidade provavelmente alteraram a percepção da luta das mulheres e o modo de intervir dos demais grupos o que antes se limitava a práticas de caridade problemas domésticos e evangelização por exemplo depois das feministas os grupos passaram a participar de discussões envolvendo temas políticos e sociais como políticas públicas e saúde reprodutiva No contato pessoal com as militantes foi possível mensurar o potencial político e intelectual de cada grupo e perceber que as militantes feministas elaboram e pensam os problemas vividos politicamente propõem e desenvolvem ações radicais no contexto real da palavra e se enxergam como sujeito político capaz de intervir e transformar a realidade vivida enquanto que as militantes dos grupos de mulheres têm uma visão limitada do mundo da compreensão política dos fatos que envolvem o seu cotidiano de elaborar propostas básicas para a resolução de seus problemas e em especial dos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 214 problemas coletivos e o mínimo de senso crítico Enquanto a maioria das militantes feministas demonstra o hábito da leitura e do estudo esta é uma prática de poucas do movimento de mulheres Outro elemento observado ao longo desse estudo é que enquanto as feministas são estimuladas a pensar e dar respostas simples ou complexas para as suas lutas a maioria das militantes do movimento de mulheres tendem a buscar respostas prontas na liderança maior de seu grupo BARBOSA 2013 p 129 130 Agora é de se questionar o que une essas mulheres A resposta está nas conquistas efetivas fruto das reivindicações dos movimentos sociais que acarretaram a criação e instalação dos serviços de atendimento à mulher em Imperatriz Essas estruturas quando trabalham de forma articulada e interligada formam uma rede a qual é conhecida nacionalmente como Rede de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher O conceito de rede de enfrentamento à violência contra as mulheres diz respeito à atuação articulada entre as instituiçõesserviços governamentais nãogovernamentais e a comunidade visando ao desenvolvimento de estratégias efetivas de prevenção e de políticas que garantam o empoderamento das mulheres e seus direitos humanos a responsabilização dos agressores e a assistência qualificada às mulheres em situação de violência Já a rede de atendimento faz referência ao conjunto de ações e serviços de diferentes setores em especial da assistência social da justiça da segurança pública e da saúde que visam à ampliação e à melhoria da qualidade do atendimento à identificação e ao encaminhamento adequados das mulheres em situação de violência e à integralidade e à humanização do atendimento A rede de enfretamento é composta por agentes governamentais e nãogovernamentais formuladores fiscalizadores e executores de políticas voltadas para as mulheres organismos de políticas para as mulheres ONGs feministas movimento de mulheres conselhos dos direitos das mulheres outros conselhos de controle social núcleos de enfretamento ao tráfico de mulheres etc serviçosprogramas voltados para a responsabilização dos agressores universidades órgãos federais estaduais e municipais responsáveis pela garantia de direitos habitação educação trabalho seguridade social cultura e serviços especializados e nãoespecializados de atendimento às mulheres em situação de violência que compõem a rede de atendimento às mulheres em situação de violência SPM online As principais características entre a Rede de Enfretamento e a Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência são bem explicadas no quadro extraído da cartilha Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres 2011 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 215 Figura 1 Características da Rede de Enfrentamento e Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência Fonte Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres 2011 Dessa maneira observase que a Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência possui duas categorias serviços especializados e nãoespecializados Esses são os serviços que constituem a porta de entrada na Rede como os hospitais em geral os serviços de atenção básica delegacias comuns polícia militar polícia federal Centros de Referência de Assistência Social CRAS Centros de Referência Especializados de Assistência Social CREAS Ministério Público e Defensoria Pública SPM 2011 p 15 No lado oposto os serviços especializados são os que atendem exclusivamente as mulheres em situação de violência e possuem a maestria nesse assunto São esses Centros de Atendimento à Mulher em situação de violência Centros de Referência de Atendimento à Mulher Núcleos de Atendimento à Mulher em situação de Violência Centros Integrados da Mulher Casas Abrigo Casas de Acolhimento Provisório CasasdePassagem Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher Postos ou Seções da Polícia de Atendimento à Mulher Núcleos da Mulher nas Defensorias Públicas Promotorias Especializadas Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher Central de Atendimento à Mulher Ligue 180 Ouvidoria da Mulher Serviços de saúde voltados para o atendimento aos casos de violência sexual e doméstica Posto de Atendimento Humanizado nos aeroportos tráfico de pessoas e Núcleo de Atendimento à Mulher nos serviços de apoio ao migrante SPM 2011 p 1516 Desse modo observase que em Imperatriz há provimento de praticamente todos os serviços da Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência estruturados e em funcionamento Isso se confirma porque os números que indicam a existência de serviços especializados no restante do país ainda são muito baixos conforme se observa no quadro da Rede Especializada de Atendimento à Mulher Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 216 Figura 2 Rede Especializada de Atendimento à Mulher no Brasil Fonte CMPI da Violência contra a Mulher apud CAMPOS 2015 p 395 Considerando que o Brasil tem 5570 municípios o valor de 977 serviços de atendimento especializado à mulher em situação de violência ainda é irrisório Além disso vale se reconhecer que a maioria desses serviços encontrase nas capitais e regiões metropolitanas o que dificulta o acesso das mulheres que moram em bairros afastados ou mesmo em regiões distantes como na zona da mata rural floresta etc CAMPOS 2015 p 395 Por esse motivo é possível entender o porquê de Imperatriz estar em posição favorecida sendo no Maranhão a pioneira na implantação de políticas públicas para as mulheres BARBOSA 2013 Segundo Barbosa 2013 p 130131 o município de Imperatriz conta hoje com os seguintes serviços Quadro 1 Serviços da Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência em ImperatrizMA 1 Delegacia Especializada da Mulher DEM Criada através da Lei 11540 de 15 de agosto de 1990 2 Conselho Municipal dos Direitos da Mulher CMDM Criada em 1998 3 Política de Atenção Integral à Saúde da Mulher PAISM Implantado em março de 2001 4 Casaabrigo Dra Ruth Noleto Instalada em 2007 5 Vara Especializada de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher Criada pela Lei Complementar nº 104 de 26 de dezembro de 2006 instalada no dia 23 de agosto de 2007 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 217 6 Promotoria de Justiça de Defesa da Mulher Criada no final de 2008 e instalada em janeiro de 2009 7 Secretaria Municipal de Políticas para a Mulher SMPM Criada em 08 de março de 2009 e implantada em 15 de abril de 2009 8 Centro de Referência e Atendimento à Mulher CRAM Implantado em 25 de outubro de 2010 9 Notificação Compulsória de Violência Doméstica Criada sob a Lei nº 10778 de 24 de novembro de 2003 foi implantado através de um Termo de Ajuste de Conduta em 2010 10 Atendimento à Mulher em Situação de Violência pelo Núcleo Regional da Defensoria Pública Estadual DPE Instalado em julho de 2010 Fonte Elaborado pelas autoras com informações extraídas da obra de Sueli Brito Barbosa 2013 p 130 131 Apesar da cidade de Imperatriz ser uma das pioneiras na adoção de políticas de reconhecimento visando o combate à violência doméstica é ainda possível notar crescente índice no número de casos registrados no primeiro semestre do ano de 2019 tendo o Centro de Referência e Assistência a Mulher CRAM já realizado atendimento para 182 mulheres G1 2019 Tais dados levam a reflexão acerca da eficácia da Lei Maria da Penha e de suas consequentes políticas públicas tendo em vista que após treze anos da promulgação ainda é possível perceber crescentes níveis de denúncias por violência doméstica e familiar De acordo com Nancy Fraser 2006 p 230 é possível perceber que o movimento social que trata sobre questões de gênero feminino careceria tanto de medidas redistributivas quanto de medidas por reconhecimento BARBOZA 2009 Sendo essa perspectiva compatível com as mulheres de ImperatrizMA conforme uma matéria jornalística publicada pelo G1 2019 online a coordenadoria do CRAM Centro de Referência em Atendimento à Mulher afirma que a maioria das mulheres precisam ir mais de uma vez embora muitas desistam e não levam o processo adiante7 grande parte por questões financeiras Junto a esse aspecto chama atenção o fato de que o cuidado dos filhos e da casa é atribuído principalmente à figura feminina inclusive os companheirosmaridosnamorados agressores costumam utilizarse desse fato para tentar fragilizálas creditando a elas culpa por alguma falha na criação dos filhos no momento em que a pretora questiona o contexto em que se deram as agressões Ou seja questões de renda e reconhecimento estariam 7 Entrevista concedida de Suely Barbosa Coordenadora do Cram ao Jornal G1 disponível em G1 182 casos de violência doméstica são registrados em Imperatriz Disponível em httpsg1globocommamaranhaonoticia20190508182casosdeviolenciadomesticasaoregistradosem imperatrizghtml Acesso em 08 maio 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 218 imbricadas nessa perspectiva que seria enfatizada por Fraser BARBOZA 2009 Ainda segundo o CRAM o aumento de número de denúncias não necessariamente corresponde ao aumento de violência já que com o acompanhamento se percebe que as mulheres já vem sofrendo violência por mais de cinco anos assim sendo um outro possível motivo para o aumento de denúncias o fato de haver uma maior conscientização por parte das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar A conscientização dessas mulheres pode ser considerada o maior objetivo dos órgãos que visam defender a mulher vítima de violência doméstica e familiar conforme pontua Suely Barbosa atual coordenadora do CRAM em entrevista ao site G1 2019 online O nosso objetivo é conscientizar essa mulher de que ela não precisa chegar ao extremo ela pode buscar por ajuda antes e o objetivo não é fazer com que ela acabe com a família é simplesmente fazer com que ela tenha saúde para manterse bem junto com a família independente do agressor independente ou não Nós temos essa preocupação porque muitas não estão percebendo isso G1 2019 online Contudo é evidente que no plano de remédios afirmativos de reconhecimento que a Lei Maria da Penha é de extrema importância podendo ser considerada um remédio que visa uma estratégia de feminismo cultural FRASER 2006 p 275 Porém quando se analisa a questão cultural parece que realmente a lei não consegue alterar os padrões hierarquizados de masculinidade que estão ainda presentes na sociedade esse indício se reafirma a partir das constantes reiterações dos agressores nas mesmas práticas contra as mesmas vítimas BARBOZA 2009 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em linhas gerais a violência doméstica e familiar se faz em uma medida de discriminação pois afeta de forma desproporcional as mulheres o que impede a paridade de gênero na participação social com homens Assim a Lei Maria da Penha que é o principal instrumento de coibição da violência contra mulher pode ser considerada um remédio afirmativo de reconhecimento nos termos de Nancy Fraser Percebese que tal legislação é importante na medida em que incentivou a criação de políticas públicas que visavam o combate a violência doméstica e familiar trazendo para o campo jurídico também o reconhecimento de direitos de proteção em níveis constitucionais e internacionais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 219 Nesse seguimento a cidade de ImperatrizMA é considerada a pioneira na adoção das medidas que visam proteger as mulheres de violência doméstica e familiar Apesar de não possuir um Centro do Agressor Lei nº 11340 artigo 35 V Imperatriz tem sua rede especializada praticamente completa o que a coloca em lugar privilegiado em relação a muitas cidades brasileiras No entanto essa vantagem é motivada tendo em vista os altos índices de violência contra a mulher que são registrados na cidade e região o que faz constatar a necessidade e importância de se ter uma rede forte e interligada no enfrentamento a esse problema principalmente quando se depara com o paradoxo existente entre trabalho e família Analisando os números crescentes de denúncias e os casos de desistência na continuidade da mesma percebese que há uma falha na implementação das políticas podendo ela se relacionar às questões de renda e reconhecimento que enfatiza Nancy Fraser A efetividade e os impactos da ação dessa rede podem servir de tema de pesquisas futuras visto que o assunto não se esgota com esse trabalho pelo contrário a ideia aqui é de contribuir e inspirar outras pesquisas nesse debate tão essencial REFERÊNCIAS AMORIM Conceição de Maria Desafios Enfrentados pelas Mulheres na Luta contra a Violência Doméstica uma análise na Delegacia Especializada da Mulher em Imperatriz MA 2013 88f Monografia especialização em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça Curso de PósGraduação em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça Universidade Federal do Maranhão Imperatriz 2013 BARBOSA Sueli Brito Movimento Feminista e Movimento de Mulheres em Imperatriz ação nas políticas públicas de gênero In FERREIRA Mary org Políticas Públicas de Gênero o pensar e o fazer em Imperatriz Imperatriz Artegraf 2013 BARBOZA Priscila da Silva Uma leitura da lei maria da penha a partir da teoria do reconhecimento de fraser e honneth In Fazendo gênero 9 diásporas diversidades deslocamentos 9 Florianópolis UFSC 2009 BARROS Edelvira Marques de Moraes Imperatriz memória e registro Imperatriz Ética 1996 BRETAS Valéria As 250 cidades mais violentas do Brasil S l Grupo Abril 18 nov 2015 Disponível em httpsexameabrilcombrbrasilas250cidadesmaisviolentasdo brasil Acesso em 18 ago 2019 CAMPOS Carmen Hein de Desafios na implementação da Lei Maria da Penha Rev direito GV São Paulo v 11 n 2 p 391406 Dez 2015 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1808 24322015000200391lngennrmiso Acesso em 2412 2016 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 220 CEPIA Cidadania Estudos Pesquisa Informação e Ação Violência Contra a Mulher e Acesso à Justiça Estudo comparativo sobre a aplicação da Lei Maria da Penha em cinco capitais Relatório final Rio de Janeiro CepiaFord 2013 FERREIRA Mary Mulher e Políticas Públicas reflexões sobre como pensar políticas de igualdade de gênero In FERREIRA Mary org Políticas Públicas de Gênero o pensar e o fazer em Imperatriz Imperatriz Artegraf 2013 FORMIGA Maria da Conceição Medeiros 40 anos do Clube das Mães história e memória de Imperatriz In FERREIRA Mary org Políticas Públicas de Gênero o pensar e o fazer em Imperatriz Imperatriz Artegraf 2013 FRANKLIN Adalberto Breve História de Imperatriz Imperatriz Ética 2005 FRASER Nancy Da redistribuição ao reconhecimento dilemas da justiça numa era pós socialista Cadernos de Campos São Paulo v 15 n 14 p231239 jan 2006 Tradução de Julio Assis Simões G1 Aumenta o número de registros de agressão contra a mulher em Imperatriz S l p 9 ago 2018 Disponível em httpsg1globocommamaranhaonoticia20180809aumentaonumeroderegistrosde agressaocontraamulheremimperatrizghtml Acesso em 18 ago 2019 G1 182 casos de violência doméstica são registrados em Imperatriz São Luís 2019 Disponível em httpsg1globocommamaranhaonoticia20190508182casosde violenciadomesticasaoregistradosemimperatrizghtml Acesso em 25 ago 2019 IBGE CIDADES Cidade de Imperatriz 2010 Disponível em httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplangcodmun210530searchinfogrE1ficos informaE7F5escompletas Acesso em 18 ago 2019 IMPERATRIZ Portal da Prefeitura de Imperatriz Disponível em httpwwwimperatrizmagovbrportalimperatrizhistoriahtml Acesso em 18 ago 2019 LIMA Regina Célia Costa Precisamos disputar o parlamento In Experiências opiniões e propostas de participação popular precisamos disputar o parlamento E Agora FaseSp Cpv Sof E Polis Nº 7 Nov 1992 p 1112 LIMA Regina Celia Costa Saúde e Meio Ambiente no currículo de escolas públicas do ensino fundamental em Imperatriz MA Dissertação mestrado Pontifícia Universidade Católica de Goiás Goiânia 2014 LIMA Regina Celia Costa SANTOS Margarida Chaves dos PEREIRA Bruna Lopes Edelvira Marques de Moraes Barros Eu Imperatriz no prelúdio da historiografia local In FÓRUM INTERNACIONAL DE PEDAGOGIA Cristiane Maria Nepomucemo Maria Lúcia Pessoa Sampaio Tania Serra Azul Machado Bezerra Witembergue Gomes Zaparoli orgs Educação empara os direitos humanos diversidade ética e cidadania Imperatriz Ethos 2016 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 221 MOVIMENTO INTERESTADUAL DE QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU MIQCB São Luís MA 2013 Disponível em httpwwwmiqcborgmiqcb Acesso em 25 dez 2016 MPMA reivindica melhorias no atendimento à mulher em Imperatriz Ministério Púbico do Estado do Maranhão MPMA S l 8 jan 2015 Disponível em httpsmpmampbrindexphplistadenoticiasgerais9698mpmareivindicamelhoriasno atendimentoamulheremimperatriz Acesso em 18 ago 2019 NETTO Eloy Coelho História do Sul do Maranhão Terra homens e acontecimentos Belo Horizonte MG Ed São Vicente 1979 SPM Secretaria de Políticas para Mulheres Diretrizes para Implementação dos Serviços de Responsabilização e Educação dos Agressores Disponível em httpwwwspmgovbrsobreasecretariasubsecretariadeenfrentamentoaviolenciacontra asmulherespactoservicoderesponsabilizacaodoagressorposworkshoppdf Acesso em 25 dez 2016 SPM Secretaria de Políticas para Mulheres Diretrizes para Implementação dos Serviços de Responsabilização e Educação dos Agressores Disponível em httpwwwspmgovbrsobrepublicacoespublicacoes2011rededeenfrentamento Acesso em 25 dez 2018 SPM Secretaria de Políticas para Mulheres Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher Disponível em httpsistema3planaltogovbrspmuatendimentoatendimentomulherphp Acesso em 25 dez 2018 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da violência 2012 os novos padrões da violência homicida no Brasil São Paulo Instituto Sangari 2011 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 222 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA COMARCA DE ARARANGUÁ LEVANTAMENTO DE DADOS DO SISTEMA DE AUTOMAÇÃO DA JUSTIÇA DE PRIMEIRO GRAU SAJ Nínive Degasperi Poffo1 Fabio Mattos2 RESUMO O artigo ora apresentado fruto de pesquisa elaborada durante a graduação em Direito apresenta aspectos conceituais sobre violência apresenta breves conceitos sobre a violência e sua classificação a repercussão inicial da judicialização da violência doméstica através da Lei 909995 Em seguida apresentamos dados disponíveis para a compreensão da realidade local bem como o percurso metodológico para a elaboração da pesquisa exploratória mediante consulta de dados estatísticos do Sistema de Automação da Justiça de Primeiro Grau SAJ no período de 2014 a 2018 identificando as classes processuais na Lei Maria da Penha e junto a base de dados SciELO com o uso das palavras chave violência doméstica perfil agressores de violência e perfil vítimas de violência com foco conflitos no âmbito de relacionamentos conjugais A conclusão apresenta a síntese dos resultados alcançados indicando a necessidade de refinamento das informações extraídas do SAJ visto que o sistema não possibilita a identificação do perfil dos agressores e vítimas de forma automatizada Palavraschave Violência doméstica Dados estatísticos Comarca de Araranguá INTRODUÇÃO A temática da violência de gênero e particularmente de violência doméstica passou a ser foco de discussões de políticas sociais setoriais como a saúde a segurança pública e a assistência social enquanto se ampliavam as respostas sociais e jurídicas em torno desta demanda como ações de combate prevenção e atendimento aos sujeitos nela envolvidos Neste sentido a prática jurídica e a esfera de atuação do sistema de justiça se aproximam de eventos relacionados a violência doméstica em situações críticas de violação de direitos mediante a ocorrência de crimes de diversas naturezas Assim a partir de questionamentos que emergiram durante a prática forense enquanto assistente social bem como da atuação da Vara competente pelo processamento dos crimes de violência doméstica na Comarca de Araranguá em ações preventivas e de caráter de aplicação 1Assistente social do Poder Judiciário de Santa Catarina Bacharel em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina Mestra em Serviço Social pela Universidade de Santa Catarina em 2013 Email ninivedegasperitjscjusbr 2 Professor horista da Universidade do Sul de Santa Catarina Especialização em MBA em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas 2015 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 223 de medidas previstas na Lei Maria da Penha se observou a necessidade de obtenção de informações mais concretas sobre o tema na realidade local Desta forma este artigo é fruto de pesquisa elaborada no trabalho de conclusão de curso de graduação em Direito Inicialmente nele é evidenciado um breve panorama conceitual sobre a violência enquanto fenômeno social bem como a repercussão inicial da judicialização da violência doméstica através dos Juizados Especiais Criminais com a aplicação da Lei nº 909995 e suas implicações na garantia dos direitos das mulheres vítimas de violência Na continuidade é apresentado a pesquisa exploratória sobre a violência doméstica na Comarca de Araranguá através da consulta de dados estatísticos do Sistema de Automação da Justiça de Primeiro Grau SAJ no período de 2014 a 2018 identificando as classes processuais de competência na Lei Mara da Penha A pesquisa também ocorreu na base de dados SciELO com o uso das palavras chave violência doméstica perfil agressores de violência e perfil vítimas de violência tendo como foco conflitos no âmbito de relacionamentos conjugais O objetivo inicial se constituiu em traçar alguma correspondência dos perfis já identificados em pesquisas anteriores com os possíveis dados a serem extraídos do SAJ Nesta fase foram localizados seis artigos sendo que três deles versavam sobre o perfil de agressores e três sobre o perfil das vítimas A pesquisa utilizou como fonte informativa dados quantitativos da violência doméstica disponíveis no sitio eletrônico da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Santa Catarina de onde foi possível extrair informações quanto aos registros de violência doméstica no âmbito estadual bem como local no período de 2014 a 2018 Na conclusão apresentamos a síntese dos resultados alcançados no qual se identifica a parca visibilidade da produção cientifica da ciência jurídica e do direito sobre a temática violência doméstica em bancos de dados científicos como a SciELO 1 ASPECTOS CONCEITUAIS SOBRE VIOLÊNCIA A violência doméstica presente em tantos lares brasileiros deixa cicatrizes profundas na vida de suas vítimas que são predominantemente mulheres É um tema que por muitos anos esteve classificado como um tabu social explicitado em ditados populares como em briga de marido e mulher não se mete a colher Compreendese que se trata de um fenômeno social que se tornou visível através do movimento feminista que expôs as marcas da violência contra as mulheres Nas últimas décadas posteriormente a ratificação pelo Estado brasileiro de tratados internacionais de garantia dos direitos humanos e da mulher e especialmente após a promulgação da Lei Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 224 1134006 Lei Maria da Penha discussões sobre o tema violência doméstica alcançaram lugares de destaque e relevância social e jurídica possibilitando estudos de diversas áreas do conhecimento principalmente das ciências sociais aplicadas como é o caso da Ciência Jurídica Acerca do tema violência doméstica Siqueira 2016 p 182 em levantamento sobre as áreas de conhecimento dos artigos científicos sobre violência contra a mulher a partir da base de dados eletrônica Scientific Eletronic Library Online SciELO no período de 2011 a 2013 a partir das grandes áreas de concentração do conhecimento e seus achados demostraram que 6857 dos artigos localizados estavam vinculados a grande área da saúde e apenas um relacionado a área do direito A pesquisa publicada em 2016 dez anos após a promulgação da Lei Maria da Penha indicou que embora os operadores do direito tenham discutido acerca de seus dispositivos ou até mesmo a eficácia da norma estas discussões não estavam presentes na base de dados pesquisada No entanto se observa que a atuação dos operadores do direito se funda na aplicação dos dispositivos legais ignorando outras questões importantes como o perfil das vítimas e agressores entre outros dados estatísticos E diante desta constatação ainda que empírica sobre a reincidência da violência pedidos de desistência de prosseguimento de ação judicial e até mesmo a retratação das vítimas em audiência coloca em questionamento a eficácia dos dispositivos visto que estes dados por vezes são ignorados ou desconhecidos pelo sistema de justiça Desta forma entendese que a unificação de dados relativos ao fenômeno da violência doméstica traz aos operadores do direito elementos importantes para a melhor aplicação da Lei Maria da Penha entre outras normativas bem como lançar alternativas mais eficazes a prevenção de sua ocorrência 2 VIOLÊNCIA COMO FENÔMENO SOCIAL Para a compreensão do fenômeno da violência doméstica e sua repercussão social o que detém no âmbito jurídico a atuação dos operadores do direito é necessário a apresentação em termos conceituais da categoria violência e de modo breve a definição de fato e fenômeno social No âmbito do estudo da sociologia o conceito de fato social que passou a ser adotado pela ciência jurídica é conceituado por Durkheim 1973 apud Gil 2019 p 27 como toda a maneira de fazer fixada ou não suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coação exterior que é geral no conjunto de uma dada sociedade tendo ao mesmo tempo uma existência própria Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 225 independente de suas manifestações individuais No entendimento de Gil 2019 p 28 os fenômenos deveriam ser sempre considerados em suas manifestações coletivas se diferenciando dos acontecimentos individuais Sendo a generalidade o fator essencial que se difere do acidental ou individual e especificaria a natureza sociológica dos fenômenos Para Dias 2014 p 27 os fenômenos sociais possuem uma interlocução com o direito na medida que a disciplina de sociologia do direito procura explicar as causas e os efeitos sociais das normas jurídicas e sua função social No tocante a compreensão conceitual sobre violência a Organização Mundial da Saúde OMS no Relatório Mundial sobre Violência e Saúde KRUG 2002 p 5 propõe a compreensão deste fenômeno como problema de saúde pública Esta definição elenca impactos em diferentes âmbitos como o financeiro como consequência dos altos custos em assistência à saúde decorrentes de lesões não fatais provocadas por violência além de prejuízos à ordem econômica pelo afastamento do trabalho Em relação ao alcance do tema a OMS ao problematizar o fenômeno em termos de saúde pública afirma que este se trata de uma questão interdisciplinar devendo ser abordado a partir de bases científicas que se utiliza do conhecimento de diversas disciplinas incluindo medicina epidemiologia sociologia psicologia criminologia educação e economia o que em nosso entendimento não escapa a intervenção investigativa das ciências jurídicas e dos operadores do direito KRUG 2002 p 3 O desafio ainda existente à identificação das causas de ocorrência da violência contra as mulheres enquanto um fenômeno social se concentra no âmbito da intensificação de pesquisas a serem efetuadas pelos diferentes ramos das ciências sociais aplicadas Neste caminho investigatório o relatório da OMS aponta para alguns eixos norteadores para o aprofundamento das pesquisas Investigar por que a violência ocorre ou seja realizar pesquisas para determinar as causas e os fatores relacionados à violência os fatores que aumentam ou diminuem o risco de violência os fatores que podem ser modificados por meio de intervenções Explorar formas de evitar a violência utilizando as informações obtidas elaborando implementando monitorando e avaliando intervençõesImplementar em diversos cenários intervenções que pareçam promissoras divulgando amplamente as informações e determinando a relação custoefetividade dos programas KRUG 2002 p 4 Neste mesmo entendimento Bandeira 2017 p 16 afirma que em se tratando de uma Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 226 análise da violência se faz necessário considerar que ela se constitui como um fato social que permite ser abordado sob três pontos estritamente interdependentes i evidenciar as situações de violências ii tentar explicálas iii mostrar seus danos devastadores e o perigo que representa NunesScardueli 2018 p 11 ao discorrer sobre o conjunto de fatores que estão relacionados ao fenômeno da violência e dos crimes a ela vinculado e aponta para o papel relevante das estruturas sociais e dos momentos históricos para a sua compreensão E afirma Neste sentido é preciso observar que os atos violentos acontecem com a junção e três fatores a características psicológicas das pessoas vítimas e agressores b a situação c o sistema ou seja o contexto em que a violência é praticada NUNESSCARDUELI 2018 p 11 Ainda tratando sobre a dinâmica da violência sob uma perspectiva de fato social Rifiotis 2015 p 265 chama atenção para os efeitos da judicialização das demandas relacionadas as violências de gênero como a doméstica e familiar e sustenta que Sabemos que no sistema de justiça penal a judicialização implica numa leitura criminalizante e estigmatizada contida na polaridade vítimaagressor introduzindo uma série de obstáculos para a compreensão e intervenção não penal Afinal a intervenção penal nem sempre corresponde às expectativas dos sujeitos atendidos em instituições como as delegacias da mulher e tampouco aos serviços nelas realizados Esse ponto é relevante sobretudo na perspectiva da abordagem relacional da violência de gênero já amplamente desenvolvida Gregori 1993 Grossi 1994 1998 a qual temos procurado incorporar nas nossas pesquisas e que é central no nosso entendimento para a problematização da judicialização das relações sociais RIFIOTIS 2015 p 265 Neste sentido o autor coloca em destaque as expectativas sociais depositadas frente a intervenção estatal na vida privada dos sujeitos enredados pela violência doméstica de gênero o que recai na efetividade dos serviços prestados bem como o real alcance das políticas e programas desenvolvidos a fim de atender tais demandas Para Rifiotis 2015 p 266 há necessidade de aprofundamento das pesquisas no âmbito das intervenções que têm sido realizadas sobre violência de gênero sobretudo aquelas que alcançam a interferência do estado através do sistema de justiça vez que projetam a possibilidade de avaliação de forma crítica do protagonismo dos sujeitos envolvidos e sua capacidade de ressignificação da violência na sua vida cotidiana Na esteira dos processos de intervenção do poder judiciário o mesmo autor afirma que as pesquisas ainda são insipientes e carecem de maior aprofundamento em vista do crescente chamamento desta esfera do Estado para a solução de conflitos sociais sobretudo na busca pela Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 227 garantia dos direitos fundamentais Há de se compreender ainda que a violência de gênero pode ser retratada como uma condição sine qua non para uma crítica cultural que tem sido construída a partir da desvalorização do papel feminino dentro da sociedade MORERA ESPÍNDOLA CARVALHO MOREIRA PADILHA 2014 p 56 Assim a violência contra as mulheres está enraizada em fatores sócio históricos e culturais que remetem a uma estrutura social que foi organizada e legitimada para a manutenção de papeis de poder e submissão Para Moterani e Carvalho 2016 p 166 169 observase que a violência de gênero é misógina e pode ser entendida como o como ódio e o desprezo para com as mulheres pelo fato de elas serem mulheres onde acabam sendo oprimidas subalternizadas e subordinadas aos homens Para os autores a misoginia é um prejuízo que sobrevive ao tempo muito antes de ter nome e está presente na sociedade desde o início de seu processo civilizatório deixando marcas na cultura religião e até mesmo nas construções filosóficas reforçando o traço de inferiorizarão do gênero feminino Desta forma espaço de atuação da esfera judiciária do Estado se mostra atualmente como locus privilegiado para a produção de conhecimento sobre a violência de gênero por concentrar as demandas a ela relacionadas Esta esfera enquanto área de intervenção propicia a busca de alternativas para a superação das violências através da aplicação dos dispositivos legais e chamamento à atuação dos agentes do Estado inseridos nas demais políticas públicas relacionadas a proteção de direitos 3 A JUDICIALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER A partir da condenação do Estado brasileiro pelo caso Maria da Penha bem como pela atuação dos movimentos de lutas das mulheres se tronou visível na sociedade a necessidade de discussão sobre o tema que passou a cobrar uma efetiva atuação dos órgãos de garantia de direitos principalmente na esfera policial e judicial Desde então se observa um movimento de constituição de um arcabouço normativo que propiciou a judicialização dos conflitos domésticos de violência contra a mulher Neste sentido Rifiottis 2015 nos indica que o cainho da judicialização desta demanda foi lento e gradual De modo sintético diremos que as lutas feministas produziram nos últimos dez anos importantes mudanças institucionais e normativas no Brasil das quais podemos destacar pelo menos três momentos Um primeiro com a criação da Delegacia da Mulher que teve lugar em pleno processo de redemocratização O segundo sem dúvida alguma foi a promulgação da Lei Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 228 Maria da Penha Entre os dois tivemos a Lei 9099 de 1995 RIFIOTIS 2015 p 269 Neste cenário o autor discorre que o caminho percorrido para o atual tratamento judiciarizante da violência doméstica teve início nas Delegacias da Mulher a partir e 1985 período quem não haviam normativas adequadas ao tratamento e processamentos destas demandas E partir desta identificação tece algumas críticas quanto ao uso da Lei 90991995 como rito processual visto que equiparava esta modalidade de violência com contravenções penais de menor potencial ofensivo sugerindo um tratamento para a violência contra a mulher como desimportante tolerável desqualificando os impactos individuais e sociais que esta demanda alcança O autor ainda sustenta que durante o período e quem a Lei 9099 foi utilizada para o processamento dos casos de violência doméstica na tentativa de dar celeridade ao atendimento desta demanda bem como simplificando os procedimentos da atuação judiciária ocorreu um movimento de escamoteamento da violência de gênero nos órgãos de justiça tornando mais uma vez o agressor favorecido pela desresponsabilização e aceitação social de suas condutas Assim entendese que os modos de produção de justiça não se restringem ao campo das práticas jurídicas estando sempre atravessados pela dimensão política própria do campo das lutas sociais por direitos RIFIOTIS 2015 p 289 e como se pode constatar nos argumentos em defesa da Lei Maria da Penha a qual é entendida como uma politização da justiça no tratamento da violência de gênero RIFIOTIS 2015 p 270 No tocante a constituição de espaços adequados para o processamento e julgamento dos crimes de violência doméstica a Lei Maria da Penha em um salto evolutivo a aplicação da Lei 9099 95 elege o tratamento desta demanda de forma qualificada para Pasinato 2015 na esfera do Judiciário a recomendação da lei para que aos Tribunais de Justiça Estaduais e do Distrito Federal que criem os Juizados de Violência Doméstica e Familiar para aplicação exclusiva e integral da Lei Maria da Penha Essa estrutura inclui a composição das equipes multidisciplinares que atuem de forma a assessorar os magistrados na tomada de decisões particularmente aquelas relacionadas com as medidas protetivas PASINATO 2015 p 415 Ao ser reconhecido como questão de relevância social a violência doméstica e contra a mulher passa a instigar diferentes áreas de produção de conhecimento que possuem interface com a atuação sobre o tema identificar cientificamente elementos e dados que possam contribuir no desenvolvimento de estratégias adequadas para o seu enfrentamento Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 229 4 SOBRE O PERCURSO METODOLÓGICO Assim o estudo ora apresentado tratase de uma pesquisa exploratória sobre os dados da violência doméstica na Comarca de Araranguá através da consulta de dados estatísticos do Sistema de Automação da Justiça de Primeiro Grau SAJ Os dados foram coletados mediante autorização formal da magistrada titular da 1ª Vara Criminal da Comarca de Araranguá que detém a competência das ações relativas a violência doméstica e familiar e Lei Maria da Penha O período de 2014 a 2018 escolhido para o levantamento de dados está relacionado a implantação do SAJ visto que identificamos não ser possível extraídas informações estatísticas referentes a períodos anteriores bem como desde o advento da Lei Maria da Penha Para Gil 2010 p 27 as pesquisas exploratórias são desenvolvidas com o objetivo de proporcionar visão geral de tipo aproximativo acerca de determinado fato Para o autor este tipo de pesquisa geralmente é realizado quanto o tema escolhido para a pesquisa é pouco explorado tornandose difícil a elaboração de hipóteses Assim pesquisas exploratórias constituem a primeira etapa de uma investigação mais ampla O produto final deste processo passa a ser um problema mais esclarecido passível de investigação mediante procedimentos mais sistematizados Neste sentido também em pesquisa realizada junto a base de dados SciELO com o uso das palavras chave violência doméstica perfil agressores de violência e perfil vítimas de violência buscouse localizar artigos sobre o perfil de vítimas de violência doméstica tendo como foco conflitos no âmbito de relacionamentos conjugais com a finalidade de encontrar alguma correspondência com os dados extraídos do SAJ Nesta pesquisa foram localizados três artigos versar sobre o perfil de agressores e três sobre o perfil das vítimas Em levantamento de dados realizado por meio do Sistema Automatizado de Justiça de Primeiro Grau SAJ da Primeira Vara Criminal de Araranguá foram localizados o quantitativo de processos distribuídos no período de 2014 a 2018 Para tanto identificamos as seguintes classes processuais de cadastradas no sistema de competência da Lei Maria da Penha Auto de Prisão de Flagrante Inquérito Policial Ação Penal Ordinário Ação Penal Sumário Medidas Protetivas de Urgência Ação Penal de Competência do Júri e Feminicídio Também foi utilizado como fonte de pesquisa os dados estatísticos da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Santa Catarina disponíveis no site Segurança em Números SSPSC onde foi possível localizar dados relativos a atuação das delegacias das cidades que integram a Comarca de Araranguá sobre o tema violência doméstica e violência contra a mulher sendo utilizado como referência para extração dos dados o período de 2014 a 2018 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 230 5 ESTUDOS SOBRE O PERFIL DO AGRESSOR E DA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Sobre a identificação do perfil dos agressores Vasconcelos Holanda e Albuquerque 2016 analisaram dados existentes na Secretaria da Mulher na cidade de Vitória de Santo Antão no estado de Pernambuco após identificação de um grande número de homicídios cometidos contra mulheres onde identificaram associação entre a violência contra as mulheres com o tipo de relação afetiva idade estado civil renda e uso abusivo de álcool O perfil do agressor caracterizouse por ser homem jovem que vive em união estável maridocompanheiro com a vítima e que possui renda própria A violência de gênero mostrouse ser um evento frequente na vida dessas mulheres vivenciado por um ciclo vicioso entre os casais com maior tempo de relacionamento sendo o parceirocompanheiro íntimo apontado como principal agressor Destacaramse as violências física e psicológica entre os tipos mais prevalentes desse estudo O uso de álcool foi frequentemente associado aos atos violentos VASCONCELOS HOLANDA ALBUQUERQUE 2016 p 8 Em estudo realizado por Brasileiro e Melo 2016 caracterizaram agressores na cidade de Campina Grande no estado da Paraíba os autores utilizaram como categorias de análise idade religião estado civil profissão escolaridade motivo da agressão defesa do agressor relação com a vítima turno do fato meses em que mais ocorreram crimes dia da semana infrações penais prisão em flagrante medidas protetivas e modalidades de violência segundo a lei 113402006 a partir de dados coletados em Inquéritos Policiais devidamente instaurados na Delegacia mediante portaria eou flagrante BRASILEIRO MELO 2016 p 193 Quanto aos resultados obtidos os autores apontaram que Além das bebidas alcóolicas e dos ciúmes amplamente abordados nas pesquisas sobre violência doméstica os fatos verificados com frequência neste perfil de agressores referemse aos motivos de discussão e de não aceitar a separação com a vítima Com relação às causas e situações dos crimes praticados observouse que não precisa haver motivos fortes que provoquem as agressões mas sim simples atos e palavras Os agressores praticaram múltiplos e variados tipos de violência doméstica tendo a violência psicológica a maior frequência e a sexual como menor BRASILEIRO MELO 2016 p 205 Em pesquisa de tipo retrospectiva documental realizada mediante apreciação de 130 Autos de Prisão de um município da região central do estado Paraná MADUREIRA 2014 p 602 identificou que os agressores eram adultos jovens casados com baixa escolaridade e trabalho remunerado 893 foram libertados sob pagamento de fiança Eram majoritariamente cônjuges que sob efeito de álcool praticaram violência Um número significativo já possuía Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 231 outros registros de violência doméstica No tocante as vítimas Mota Vasconcelos e Assis 2007 p 1 identificaram um perfil em relação à gravidade da violência sofrida Assim As vítimas de lesão grave de origem sexual associaramse ao ensino médio incompleto e com mais de três residentes trabalhadores As vítimas de lesão grave de origem física e psicológica estão relacionadas ao ensino superior e pósgraduação e declaradas como chefes de família O grupo das vítimas de lesões leves de origem física e psicológica se relaciona com tempo de união inferior a cinco anos ensino médio completo da mulher agressor mais novo trabalhador e com até três residentes trabalhadores MOTA VASCONCELOS e ASSIS 2007 p 1 Para Labronici Ferraz Trigueiro e Fegadoli 2010 p 5 as vítimas alcançavam idade variada entre 18 e 88 anos possuíam baixa escolaridade e sofreram violência física psicológica sexual e estrutural perpetrada principalmente pelos companheiros e pessoas com quem conviviam ou pertenciam ao círculo de convivência Demonstraram que estas mulheres conviviam com a violência para manter a união familiar mas buscaram romper com o ciclo de violência a partir da oferta de programas sociais e abrigos Nos estudos realizados por Amaral 2016 p 1 identificou que as mulheres agredidas eram em sua maioria jovens 535 pardas 472 sem união estável 680 com baixa escolaridade 914 sem renda mensal fixa 305 que residem em casa própria 355 com familiares 137 são beneficiárias de algum programa de transferência de renda 269 e não possuem trabalhos formais 691 E em relação aos agressores identificou que e sua maioria eram jovens desenvolvem trabalho manual consumiam álcool drogas ilícitas e cigarro e após a implantação da LMP os agressores possuem mais antecedentes criminais Desta forma os estudos localizados apontam que as vítimas de violência são mulheres jovens que mantem relação cotidiana com seus agressores possuem baixa escolaridade e de um modo geral dependem economicamente de seus agressores 6 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER EM SANTA CATARINA Os dados da violência doméstica contra a mulher estão contabilizados pela Secretaria de Segurança Pública e disponibilizados no site Segurança em Números SECREARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA DE SANTA CATARINA 2019 p 1 As informações são elaboradas pela Gerência de Estatística e Análise Criminal da Diretoria de Informação e Inteligência No referido sitio eletrônico é possível acessar boletins semanais de dados sobre os corridos em todas as cidades do estado bem como painel de dados estatísticos Contudo as Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 232 informações lá disponibilizadas são referentes ao período de 2010 a agosto de 2018 após este período o sitio não foi mais alimentado Para tanto os dados localizados no sitio da Secretaria de Segurança Pública referemse a períodos parciais mensais que para a melhor apresentação e visualização do leitor foram somados e apontam para os seguintes dados anuais de violência doméstica no Estado em registos efetuados Tabela 1 Violência Doméstica Santa Catarina Fonte tabela elabora pelo autor a partir de dados da SSPSC 2019 Os números apresentados indicam que há uma manutenção dos registros de dos crimes de violência doméstica sendo os crimes de ameaça e lesão corporal dolosa que possuem maior incidência Em relação crime de estupro a Secretaria de Segurança Pública contabiliza aqueles cometidos contra crianças e adolescentes menores de 14 anos crime capitulado no artigo 217 A do Código Penal Brasileiro como estupro de vulnerável Já o crime de feminicídio crime capitulado no artigo 121 do Código Penal como qualificadora do crime de homicídio a pela Lei nº 13104 de 2015 localizamos os seguintes dados Gráfico 1 Feminicídio em Santa Catarina Fonte gráfico elaborado pelo autor a partir de dados da SSPSC 2019 CRIME 2014 2015 2016 2017 2018 Ameaça 22898 22237 21061 24828 15844 Calúnia 266 307 450 551 326 Dano 1416 1422 1404 1638 1184 Difamação 826 934 1229 1571 931 Estupro consumado 452 459 504 636 486 Estupro tentado 114 132 123 144 103 Homicídio doloso tentado 105 105 103 118 49 Injúria 5636 5729 6724 8932 5734 Lesão corporal dolosa 11916 11430 11463 11774 8157 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 233 Em relação ao crime de feminicídio o gráfico aponta para a estabilidade dos índices no período não havendo incremento nos números após a alteração legislativa que configurou o feminicídio como crime hediondo No tocante ao perfil das vítimas de violência doméstica no Estado no ano de 2018 segundo informações divulgadas pela Secretaria de Segurança Pública em análise feita pela Gerência de Estatística e Análise Criminal da SSP apurou ainda a relação da vítima com o autor Segundo o estudo 75 das mulheres foram mortas pelo atual companheiro já as 25 restantes perderam a vida nas mãos de exnamorados ou excompanheiros SSPSC 20019 p1 Os dados ainda apontaram que 50 das vítimas tinham até 30 anos125 entre 31 e 40 anos 375 entre 41 e 50 anos Destas vítimas 50 possuíam filhos como autor da agressão 75 eram companheiras do autor 25 haviam rompido o relacionamento com o agressor E ainda que 875 das agressões ocorreram dentro do ambiente doméstico SSPSC 2019 p 1 Quanto aos agressores a pesquisa informa que 50 deles possuíam alguma passagem policial anterior por infrações penais diversas SSPSC 2019 p 1 Em relação ao meio empregado para o cometimento da violência 375 utilizaram faca 25 arma de fogo e 375 empregaram outros meios contra suas vítimas SSPSC 2019 p 1 Em uma breve análise quanto ao perfil das vítimas de feminicídio no ano de 2018 apresentado pelo órgão estadual ainda que carente de pesquisa mais rigorosa é possível identificar que se assemelha com os dados apresentados nas pesquisas sobre o perfil de agressores e vítimas de violência doméstica de Brasileiro e Melo 2016 p 1 Labronici Ferraz Trigueiro e Fegadoli 2010 p 1 Vasconcelos Holanda e Albuquerque 2016 p 1 Outros dados importantes para a compreensão da dinâmica da violência doméstica não foram tratados pelo órgão como o uso de substâncias psicoativas grau de dependência econômica das vítimas em relação aos agressores grau de escolaridade e território onde estão presentes a maior incidência das ocorrências 7 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA COMARCA DE ARARANGUÁ Assim com violência doméstica do Estado foi realizado levantamento dos relatórios estatísticos mensais das cidades que integram a Comarca de Araranguá a partir do sitio eletrônico Segurança em Números da Secretaria de Segurança Pública do estado de Santa Catarina A Comarca de Araranguá é composta pelas cidades de Araranguá sede Balneário Arroio do Silva e Maracajá que juntas somam aproximadamente 83 mil habitantes Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 234 Para melhor compreensão do leitor os dados mensais de cada cidade foram somados gerando a tabela com os dados anuais da Comarca para o período de 2014 a 2018 Desta forma com os dados compilados foi possível identificar os seguintes números Tabela 2 Violência doméstica na comarca de Araranguá Fonte tabela elaborada pelo autor a partir de dados da SSPSC 2019 Os números identificados apontam para o mesmo padrão de ocorrência de violência doméstica na comarca de Araranguá daquele verificado em âmbito estadual Sendo os principais registros para os crimes de ameaça lesão corporal dolosa e injúria Em relação ao perfil das vítimas e agressores para estas tipificações penais não há dados disponíveis no sitio eletrônico da Secretaria de Segurança Pública estadual 8 A JUDICIALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA COMARCA DE ARARANGUÁ Na busca de informações sobre judicialização da violência doméstica na Comarca de Araranguá foi realizada pesquisa de relatórios do SAJ para processos distribuídos a partir do ano de 2014 até 2018 utilizando como referência a competência processual Lei Maria da Penha Anteriormente a este período no sistema não foram localizados processos cadastrados por esta competência somente sendo possível sua localização após a atualização do sistema ocorrido em 2014 que inaugura no Poder Judiciário catarinense a era dos processos digitais A partir da competência Lei Maria da Penha foi possível identificar classes processuais auto de prisão em flagrante inquérito policial ação penal ordinário ação penal sumário e medidas protetivas de urgência Embora esteja presente no sistema a classe processual feminicídio não foram localizados processos distribuídos com esta classificação processual CRIME 2014 2015 2016 2017 2018 Ameaça 369 367 434 425 180 Calúnia 1 3 11 11 6 Dano 32 45 36 35 25 Difamação 7 7 19 26 25 Estupro consumado 9 13 13 11 10 Estupro tentado 3 3 0 3 3 Homicídio doloso tentado 1 1 1 2 2 Injúria 169 187 239 257 121 Lesão corporal dolosa 197 171 206 199 95 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 235 Tabela 3 Dados estatísticos extraídos do SAJ Fonte tabela elaborada pelo autor a partir de dados extraídos do SAJ Os dados apresentados na tabela indicam que apenas pequena parcela dos procedimentos iniciados por meio de inquérito policial e autos de prisão em flagrante foram convertidos em ações penais Classe process ual 2014 Situaçã o process ual 2015 Situaçã o process ual 2016 Situaçã o process ual 2017 Situaçã o process ual 2018 Situaçã o process ual Auto de prisão em Flagran te 12 11 arquivo 1 tramita ndo 32 31 arquivo 1 tramita ndo 33 31 arquivo 2 tramita ndo 30 26 arquivo 4 tramita ndo 37 10 arquivo 27 tramita do Inquéri to policial 87 85 arquivo 2 tramita ndo 341 Todos arquiva dos 365 349 arquivo 14 tramita ndo 2remeç a outro tribunal 373 253 arquivo 120 tramita ndo 353 109 arquivo 244 tramita ndo Ação Penal Ordinár io 13 10 arquivo 3 tramita ndo 7 4 arquivo 1 suspens o 1remeç a outro tribunal 1 tramita ndo 10 Todos arquiva dos 13 1 arquivo 3 remeça outro tribunal 9 tramita ndo 9 1 arquivo 8 tramita ndo Ação Penal Sumári o 49 33 arquivo 4 suspens o 12 tramita ndo 18 9 arquivo 2 suspens o 7 tramita ndo 45 5 arquivo 4 suspens o 35 tramita ndo 91 3 arquivo 5 suspens o 83 tramita ndo 64 Todos em tramita ção Medida s Proteti vas de Urgênc ia 162 161 arquivo 1 tramita ndo 189 Todos arquiva dos 226 244 arquivo 2 tramita ndo 242 236 arquivo 1 cancela do 1 remeça outro tribunal 4 tramita ndo 238 165 arquivo 1 cancela do 72 tramita ndo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 236 Levando em consideração que a maioria dos registros policiais que formam apontados nos itens anteriores estavam relacionados aos crimes de ameaça injúria e lesão corporal em que os dois primeiros tipos penais são passíveis de representação por parte da vítima bem como de retratação no curso do procedimento inquisitório pode ser esta uma das causas do não oferecimento das denúncias e até mesmo da extinção dos processos em curso Em relação a quantidade de medidas protetivas deferidas se observa que não houve um aumento de requisições ao longo dos últimos anos nem sua diminuição ocorrendo certa estabilidade anual Neste sentido poderia se problematizar quanto a manutenção destes dados hipóteses sobre a efetividade das medidas deferidas existência ou não de medidas preventivas a violência doméstica entre outras na comarca Embora o SAJ propõem ser um sistema capaz de reunir dados possíveis de serem extraídos para a geração de relatórios estatísticos a fim de produzir dados apurados inclusive quanto ao tipo de crimes relacionados a violência doméstica perfil dos jurisdicionados número de processos vinculados as partes seja na qualidade vítima ou de autor de algum delito e sua possível reincidência estes não são gerados de forma automatizada sendo necessária a realização de busca manual destas informações por meio do nome dos sujeitos Em relação aos crimes de violência doméstica de competência do Tribunal do Júri estes dados não são possíveis de serem extraídos por classe de competência Lei Maria da Penha visto que são competências autônomas dentro do sistema onde a primeira alcança todos os crimes contra a vida independente da lei especial Desta forma para identificação dos processos classificados como feminicídio na comarca pronunciados e encaminhados a sessão do Tribunal do Júri foi necessária a busca de informações através da contabilização pessoal realizada pelo Promotor de Justiça titular da 4ª Promotoria de Justiça da Comarca de Araranguá Os dados são referentes ao período de sua investidura na referida promotoria iniciado no ano de 2016 conforme indicamos na tabela seguinte Tabela 4 Feminicídios submetidos ao Tribunal do Júri Comarca Data Pronúncia Resultado Crime Pena 1 Araranguá 18112016 Art 121 2º inciso II cc os art 14 II e 61 inciso II f ambos do CP na forma do artigo 5º inciso III da Lei n 1134006 Condenado Forma tentada 7 anos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 237 2 Araranguá 30112016 Art 121 2º incisos I e III cc o artigo 14 inciso II e o artigo 61 inciso II f todos do CP na forma do artigo 5º da Lei n 1134006 Condenado Forma tentada 12 anos e 10 meses 3 Araranguá 29062017 Art 121 2º incisos I IV e VI e 347 parágrafo único ambos do CP Absolvido Consumado 4 Araranguá 13092018 Art129 9º e do art 121 2º inciso I cc o art 14 caput na forma do art 69 caput todos do CP Condenado Consumado 2 anos e 6 meses de reclusão e 2 meses e 15 dias de detenção 5 Araranguá 09042019 Art 121 2º incisos I III IV e VI do CP cc 2ºA inciso I Condenado Consumado 20 anos Fonte tabela elaborada pelo autor partir de dados fornecidos pelo promotor de justiça Dentre os cinco casos levados a sessão do Tribunal do Júri cabe destacar que o crime ocorrido em 13092018 o feminicídio foi desqualificado em grau de recurso Desta forma os desde o ano de 2016 até 2019 apenas quatro juris por feminicídio sendo dois na forma tentada e dois na forma consumada Porém cabe destacar que a realização destas sessões não retrata o ano de ocorrência dos casos de feminicídio visto que a fase instrutória até a decisão de pronúncia depende de fatores diversos para além do rigor dos prazos processuais Em relação ao número de feminicídio ocorridos na Comarca de Araranguá no período de 2014 até 2018 dados disponíveis através do sito eletrônico da Secretaria de Segurança Pública informam a ocorrência de apenas três mortes decorrentes deste tipo penal Contudo no mesmo sitio é possível identificar numericamente mortes de mulheres pela ocorrência de outros tipos penais como latrocínio e homicídio doloso sem especificação de motivos CONSIDERAÇÕES FINAIS Com as informações obtidas para a elaboração do trabalho foi possível identificar inicialmente em relação as pesquisas na área da ciência jurídica e do direito são inexpressivas nos bancos de dados científicos como o SciELO Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 238 A dificuldade de localização de dados atuais se mostrou um desafio para a elaboração deste trabalho visto que não há unificação destes em um banco de dados e que possa estar disponível a possíveis interessados pesquisadores e acadêmicos em geral Os dados levantados apontam como crimes mais comuns o âmbito da violência doméstica a ameaça lesão corporal dolosa a injúria e o dano A violência sexual e os feminicídio não apresentar números expressivos Os dados estaduais encontram correspondência com os dados da Comarca para o mesmo período Não sendo evidenciado o aumento dos registros de ocorrência com o passar dos anos e nem a sua redução assim a ocorrência da violência doméstica tanto em nível estadual como local de manteve estável Em relação aos dados extraídos do Sistema de Automação do Judiciário foi possível identificar que os números da judicialização da violência doméstica na Comarca de Araranguá acompanham os números registros de mesma natureza informados pela Secretaria de Segurança Pública estadual contudo por se tratar de uma pesquisa exploratória não foi possível identificar a relação dos registros por crimes e sua relação com as tipificações contidas nas ações penais que tramitaram no período Visto que o sistema não permite a extração de dados refinados que podem oferecer tanto ao magistrado como a outros órgãos informações que possam ser utilizadas para a prevenção de atendimento dos sujeitos que se tornam objeto da atuação judiciária Nesse sentido ressaltase que a importância da produção do conhecimento cientifico pelas ciências jurídicas e pelo direito sobre o tema visto que há uma crescente necessidade de interlocução entre a dogmática jurídica com seus fundamentos teóricos e a sua concretização na prática operativa cotidiana Visto que os sujeitos enredados pela violência doméstica clamam por decisões adequadas e justas que atendam seus interesses sejam as vítimas os agressores e todos aqueles que os circundam principalmente quando estão presentes nestes contextos pessoas em processo de desenvolvimento emocional cognitivo e social como crianças e adolescentes Assim acreditase que os dados obtidos através da pesquisa realizada floresçam novos questionamentos que possam contribuir para a compreensão deste fenômeno social bem como para a melhor atuação dos operadores do direito REFERÊNCIAS ALVES Maria da Conceição Lima DUMARESQ Mila Landin SILVA Roberta Viegas As lacunas no enfrentamento à violência contra a mulher análise dos bancos de dados existentes acerca da vigilância doméstica e familiar Brasília Núcleo de Estudos e Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 239 PesquisasCONLEG Senado abril2016 Texto para Discussão nº 196 Disponível em wwwsenadolegbrestudos Acesso em 22 mar 2019 AMARAL Luana Bandeira de Mello et al Violência doméstica e a Lei Maria da Penha perfil das agressões sofridas por mulheres abrigadas em unidade social de proteção Rev Estud Fem Florianópolis v 24 n 2 p 521540 ago 2016 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0104 026X2016000200521lngptnrmiso Acesso em 20 maio 2019 BANDEIRA Lourdes Maria Violência gênero e poder múltiplas faces Organização Cristina Stevens Susane Oliveira Valeska Zanello Edlene Silva Cristiane Portela Mulheres e violências interseccionalidades Brasília DF Technopolitik p 1435 2017628 BRASIL Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 Lei Maria da Penha 2019 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Ato200420062006LeiL11340htm Acesso em 30 mar 2019 BRASIL Lei nº 9099 de 26 de setembro de 1995 Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03leisl9099htm Acesso em 20 abr 2019 BRASILPolítica Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres e Secretaria de Políticas para as Mulheres Presidência da República Brasília 2011 Disponível em httpswww12senadolegbrinstitucionalomventendaaviolenciapdfspoliticanacionalde enfrentamentoaviolenciacontraasmulheres Acesso em 23 abr 2019 BRASILEIRO Anaïs Eulálio e MELO Milena Barbosa de Agressores na violência doméstica um estudo do perfil sóciojurídico Revista de Gênero Sexualidade e Direito Curitiba 2016 Disponível em httpswwwindexlaworgindexphprevistagsdarticleview1373 Acesso em 30 fev 2019 COMISSÃO INTERAMERICADA DE DIREITOS HUMANOS Relatório Anual 2000 Relatório N 5401 Caso 12051 Maria da Penha Maia Fernandes Brasil 4 de abril de 2001 Disponível em httpsassetscompromissoeatitude ipgsfo2digitaloceanspacescom201208OEACIDHrelatorio542001casoMariadaPenha pdf Acesso em 5 de maio de 2019 GUIMARÃES Isaac Sabbá MOREIRA Rômulo De Andrade Lei Marida Penha Aspectos criminológicos de política criminal e do procedimento penal 3ed Curitiba Juruá p 4249 2014 GIL Antonio Carlos Métodos e técnicas de pesquisa social 6ed São Paulo Atlas 2010 KRUG Etienne G et al Relatório Mundial sobre Violência e Saúde Genbra World Health Organization 2002 Disponível em httpswwwopasorgbrwp contentuploads201509relatoriomundialviolenciasaudepdf acesso em 30 mar 2019 LABRONICI Liliana Maria FERRAZ Maria Isabel Raimondo TRIGUEIRO Tatiane Herreira FEGADOLI Débora Perfil da violência contra mulheres atendidas na Pousada de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 240 Maria Rev esc enferm USP online 2010 vol44 n1 pp126133 ISSN 00806234 Disponível em httpdxdoiorg101590S008062342010000100018 Acesso em 20 maio 2019 MADUREIRA Alexandra Bittencourt et al Perfil de homens autores de violência contra mulheres detidos em flagrante contribuições para o enfrentamento Esc Anna Nery Rio de Janeiro v 18 n 4 p 600606 dez 2014 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1414 81452014000400600lngptnrmiso Acesso em 07 abr 2019 MORERA Jaime Alonso Caravaca ESPÍNDOLA Daniela CARVALHO Juliana Bonetti de MOREIRA Adriana Rufino PADILHA Maria Itayra Violência de gênero um olhar histórico In HIST ENF REV ELETR HERE v 5 n 1 p 5466 janjul 2014 Disponível emhttpwwwabennacionalorgbrcentrodememoriaherevol5num1artigo5pdf Acesso em 20 fev 2019 MOTA Jurema Corrêa da VASCONCELOS Ana Gloria Godoi e ASSIS Simone Gonçalvez de Análise de correspondência como estratégia para descrição do perfil da mulher vítima do parceiro atendida em serviço especializado Ciênc saúde coletiva online v12 n3 p799 809 2007 ISSN 14138123 Disponível em httpdxdoiorg101590S1413 81232007000300030 Acesso em 3 mar 2019 MOTERANI Geisa Maria Batista CARVALHO Felipe Mio de Misoginia a violência contra a mulher numa visão histórica e psicanalítica In Avesso do avesso v14 n14 p 167 178 nov 2016 Disponível em httpwwwfeataedubrdownloadsrevistasavessodoavessov14artigo11misoginiapdf Acesso em 30 mar 2019 NUNES SCARDUELI Márcia Cristiane Lei Maria da Penha e violência conjugal discursos sujeitos e sentidos Rio de Janeiro Lumen Juris 2018 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL ADA SAÚDE Prevenção da violência sexual e da violência pelo parceiro íntimo contra a mulher Ação e produção de evidência Disponível em httpsappswhointirisbitstreamhandle10665443509789275716359porpdfjsessionidE 9EC38A4BDDC5643C9823E618331ADCDsequence3 Acesso em 12 abr 2019 PASINATO Wânia Acesso à justiça e violência doméstica e familiar contra as mulheres as percepções dos operadores jurídicos e os limites para a aplicação da Lei Maria da Penha Rev direito GV São Paulo v 11 n 2 p 407428 dez 2015 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1808 24322015000200407lngennrmiso Acesso em 19 maio 2019 POLICIA MILITAR DE SANA CATARINA Rede Catarina Disponível em httpwwwpmscgovbrnoticiaspmsclancarrredecatarinadeprotecaoa mulherrrhtml acesso em 30 abr 2019 RIFIOTIS Theophilos Judiciarização das relações sociais e estratégias de reconhecimento repensando a violência conjugal e a violência intrafamiliar Rev katálysis Florianópolis v 11 n 2 p 225236 dez 2008 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1414 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 241 49802008000200008lngennrmiso Acesso em 19 maio 2019 RIFIOTIS Theophilos Violência justiça e direitos humanos reflexões sobre a judicialização das relações sociais no campo da violência de gênero Cad Pagu Campinas n 45 p 261 295 dez 2015 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0104 83332015000200261lngptnrmiso Acesso em 07 abr 2019 SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA DE SANTA CATARINA Segurança Em Números Disponível em httpwwwsspscgovbrindexphpcomponentcontentarticle88 servicos184segurancaemnumeros2Itemid437 Acesso em 20 abr 2019 SIQUEIRA Vitória de Barros Violência baseada em gênero um fenômeno social de abordagem interdisciplinar Disponível em httpsperiodicosufpebrrevistasrevistaenfermagemarticledownload1093612234 Acesso em 25 abr 2019 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA Informatização no Poder Judiciário catarinense Disponível em httpswwwtjscjusbrwebprocessoeletronicosajhistorico Acesso em 19 maio 2019 VASCONCELOS Marilena Silva de HOLANDA Viviane Rolim de e ALBUQUERQUE Thaíse Torres de Perfil do agressor e fatores associados à violência contra mulheres Revista Cogitare Enfermagem v21 n1 janmar 2016 Disponível em httpsrevistasufprbrcogitarearticleview41960 Acesso em 10 out 2018 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da Violência 2015 homicídios de mulheres no Brasil Disponível em wwwmapadaviolenciaorgbr Acesso em 25 mar 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 242 MARÉ MULHERES EM ACOLHIMENTO REFLEXÃO E ESCUTA RELATO DE EXPERIÊNCIA DE UM PROJETO DE EXTENSÃO COM MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA Amanda Ferreira da Silva1 Letícia Cisne Branco2 Luana Limberger Marques3 Marília dos Santos Amaral4 RESUMO O presente relato de experiência objetiva descrever o processo de desenvolvimento implementação e prática do Projeto de Extensão MARÉ Mulheres em Acolhimento Reflexão e Escuta O MARÉ cujo propósito é o acolhimento e fortalecimento comunitário com mulheres em situação de violência residentes no norte de Florianópolis tem como bases teóricas a psicologia comunitária e as teorias feministas Neste capítulo apresentarseá o modo como o projeto se construiu e as intervenções grupais foram realizadas em um contexto comunitário A partir de uma análise teórica e crítica sobre a violência de gênero e na aposta por um compromisso ético político e científico da psicologia com as mulheres em diferentes processos de vulnerabilidade discutese a potência do encontro grupal como promotor de espaços de acolhimento e fortalecimento de vínculos entre mulheres Com base no trabalho de intervenção grupal e também de orientação escuta e articulação com a rede socioassistencial concluise que o Projeto MARÉ se constrói com o fortalecimento das políticas públicas que atuam na prevenção assistência e atendimento às mulheres em situação de violência do município de Florianópolis Ademais essa prática coletiva possibilita uma ampla experiência de atuação no campo psicossocial na qual a promoção da autonomia a valorização do saber comunitário e a ressignificação do sofrimento éticopolítico por parte das mulheres se apresenta como resultados da potência do encontro grupal Palavraschave Psicologia comunitária Feminismo Mulheres em situação de violência INTRODUÇÃO O presente texto é o relato de experiência das intervenções do grupo MARÉ Mulheres em Acolhimento Reflexão e Escuta um projeto de extensão com mulheres em situação de violência na cidade de Florianópolis Esse projeto se desenvolve desde agosto de 2018 a partir de um amplo mapeamento das redes de assistência a mulheres em situação de violência na 1 Graduanda em Psicologia pela Faculdade CESUSC amandaweengmailcom Lattes httplattescnpqbr4195948309061726 2 Graduanda em Psicologia pela Faculdade CESUSC lecisnebrancogmailcom Lattes httplattescnpqbr3980136037904245 3 Graduanda em Psicologia pela Faculdade CESUSC limbergerluanagmailcom Lattes httplattescnpqbr5566152871393999 4 Psicóloga Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Professora de Psicologia da Faculdade CESUSC mariliapsicohotmailcom Lattes httplattescnpqbr7359263849723109 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 243 cidade em que se constatou a carência de espaços para que mulheres que passam ou passaram por situações de violência pudessem receber assistência psicológica especialmente na região do norte da ilha Nesse contexto buscase apresentar neste capítulo o processo de criação desenvolvimento e execução do projeto de extensão que culminou em intervenções grupais com mulheres em situação de violência A atuação deste grupo se baseia tanto em teorias feministas quanto na perspectiva da psicologia comunitária objetivando uma práxis que possibilite a autonomia e fortalecimento de vínculos comunitários Para o relato desta experiência inicialmente é traçado um panorama geral do movimento feminista no Brasil uma vez que são essas as conquistas que possibilitam a criação de novos espaços de luta e garantia de direitos Em seguida apresentase uma breve discussão sobre a violência contra a mulher e os avanços obtidos a partir da Lei Maria da Penha e por fim descrevese detalhadamente o processo de criação do Projeto MARÉ e o modo como se constroem as intervenções grupais em um contexto comunitário Dessa maneira a partir de uma análise teórica e crítica sobre a violência de gênero e na aposta por um compromisso ético político e científico da psicologia com as mulheres em vulnerabilidade analisaramse as intervenções deste projeto que visa promover espaços de acolhimento escuta e fortalecimento comunitário contribuindo assim com a articulação das políticas públicas do município de Florianópolis que atuam na prevenção assistência e atendimento às mulheres em situação de violência 1 MOVIMENTO FEMINISTA NO BRASIL Historicamente diversas pesquisas científicas sobre a violência contra as mulheres têm sido produzidas no Brasil e isso permite variadas leituras sobre o tema Todavia estudar e analisar a violência de gênero como fenômeno de articulação psicossocial é um desafio teórico necessário principalmente para asos profissionais que atuam no acolhimento e escuta de mulheres seja de forma individual ou coletiva Conforme as contribuições de Pinto 2003 a violência contra a mulher e a violência doméstica se tornaram as principais pautas do movimento feminista influenciado pelo movimento europeu no final dos anos 1960 Deste período em diante cada vez mais a globalização das lutas pelos direitos das mulheres passou a ganhar novas pautas e atingir novos horizontes caracterizando assim as chamadas ondas do feminismo CAETANO 2017 Atualmente descrevemse três ondas uma divisão de cunho histórico que nos permite entender que suas pautas não são ciclos que se encerraram mas que foram transversalizadas e interseccionadas por outras e Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 244 consequentemente emergiram de acordo com as condições sociais políticas econômicas e culturais de cada momento e local Sob esse viés Caetano 2017 menciona que a primeira onda cuja visibilidade beira o fim do século XIX até meados do século XX é caracterizada pela reivindicação do direito ao voto à vida pública e à participação política Já a segunda onda que emerge em alguns países nos anos 1950 e se estende até os anos 1990 teve como uma de suas importantes problematizações a naturalização e distinção entre o sistema sexogênero Nesse momento o movimento feminista também tornou visível pautas como a dos direitos reprodutivos do mercado de trabalho e a maternidade Ou seja as formas de intervenção e lutas tomaram como foco o fortalecimento da coletividade das mulheres como meio de acesso a direitos e à consciência crítica sobre o papel do Estado no que se refere aos direitos das mulheres e portanto sobre a importância de se problematizar as fronteiras entre o público e privado A terceira onda por sua vez abarca de forma mais ampla as pautas e reivindicações que se referem à interseccionalidade das formas de opressão experienciadas pelas mulheres como efeito das reverberações do feminismo negro que desde a segunda onda tensionou as múltiplas formas de subordinação às quais sujeitos com diferentes experiências estão submetidos Segundo Conceição Nogueira 2013 p 231 a perspectiva da interseccionalidade examina como as várias categorias social e culturalmente construídas interagem a múltiplos níveis para se manifestarem em termos de desigualdade social Isto é tratase de uma abordagem que parte do pressuposto de que os modelos clássicos de compreensão dos fenômenos de opressão tais como sexogênero raçaetnia classe religião nacionalidade orientação sexual e deficiência não agem de forma independente um do outro pelo contrário essas formas de opressão interrelacionamse criando um sistema que reflete a intersecção de múltiplas formas de discriminação NOGUEIRA 2013 p 231 Nesse sentido a abordagem interseccional mostrase uma resposta teórica à diversidade de perspectivas que compõem os feminismos tais como os estudos acerca da igualdade ou as abordagens centradas na diferença Em virtude de ser um movimento transnacional as lutas do feminismo tiveram grande repercussão política e cultural no Brasil pois possibilitaram às mulheres que antes eram vistas como inferiores e incapazes de tomar decisões sobre seus corpos e suas vidas que não podiam realizar qualquer atividade sem a autorização de um homem bem como àquelas proibidas a ocuparem lugares de poder a questionarem seus direitos enquanto sujeitos implicados numa sociedade Em outras palavras o movimento feminista foi o marco necessário para as mulheres lutarem por seus direitos ocupandointervindo em espaços com vistas à transformação social e Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 245 ao combate a todas as formas de violações destes direitos especialmente no que refere às violências de gênero Por estes caminhos é a partir da emergência do movimento feminista que o patriarcado sistema que estrutura as relações sociais passou a ganhar importância como categoria de análise Por meio da análise das formas pelas quais o patriarcado subjuga violenta adapta e naturaliza determinados modos de ser mulher é que o feminismo baliza suas ações Assim as pautas de luta se fundamentam na busca por equidade para que homens e mulheres possam usufruir de uma sociedade mais justa com direitos assegurados sejam eles judicialmente ou culturalmente instituídos RIBEIRO 2018 Nessa perspectiva as intervenções frente às violências passam a apontar para a necessidade de uma análise histórica que atente para os modos pelos quais as relações os discursos e os sujeitos se produzem e se sustentam pela lógica patriarcal discutindo assim a violência como um problema social pois além de agravos físicos e psicológicos uma análise cuidadosa e crítica como esta denuncia a urgência de atenção intervenção e problematização por parte do Estado Estas intervenções portanto passam a sinalizar para a criação de novas políticas que além de defender e prevenir funcionem balizadas pela importância da autonomia e da garantia de direitos às mulheres Nesse contexto em meados dos anos de 1979 a Organização das Nações Unidas ONU debate a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher que fortalece as lutas do feminismo sendo promulgada no Brasil em 1981 ONU MULHERES 2019 Esse foi o primeiro tratado internacional que defende os direitos humanos das mulheres e propõe reprimir toda e qualquer discriminação promovendo a busca pela igualdade de gênero Essa convenção da ONU inclui uma série de tratados tais como o direito ao casamento por consenso a liberdade ao divórcio direitos políticos econômicos sociais e culturais ONU MULHERES 2019 Assim os efeitos das pautas feministas no campo político e de Estado a partir de 1979 podem ser examinadas de três perspectivas complementares a conquista de espaços no plano institucional por meio de Conselhos e da delegacia da mulher a presença de mulheres nos cargos eletivos e as formas alternativas de participação políticas PINTO 2003 Tais conquistas repercutiram na mudança e implementação de novas políticas que se legitimaram a partir de importantes tratados e convenções como a da ONU em 1979 Entre essas conquistas uma das principais que hoje se tem no Brasil é a Lei Maria da Penha que garante o direito e a proteção às mulheres vítimas de violências implicando o Estado como responsável por políticas públicas que previnam atendam e protejam as mulheres Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 246 2 MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA E LEI MARIA DA PENHA No que se refere às políticas públicas que amparam as mulheres em situação de violência é possível observar que houve grandes avanços desde a implementação da Lei Maria da Penha sancionada em 2006 Mesmo após a criação das delegacias especializadas para mulheres em 2001 ocorre no Brasil o caso da Maria da Penha trazendo à tona a gravidade da violação dos direitos humanos perpetrado contra as mulheres brasileiras A cearense Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima de duas tentativas de homicídio pelo marido e seu caso ganhou grande repercussão após a denúncia do descaso da justiça brasileira na penalização do agressor feita à Comissão Internacional de Direitos Humanos dos Estados Americanos OEA PARANÁ 2019 Além disso a denúncia fez com que o Estado Brasileiro fosse questionado sobre como se tratava a violência doméstica no país Naquele momento a penalização em casos de violência doméstica era considerada crime de menor potencial ofensivo culminando na aplicação de penas alternativas e sua sanção se dava por meio do pagamento de cestas básicas ou prestação de serviço sociocomunitário não garantindo a segurança dos direitos humanos da mulher uma vez que não se garantia a medida protetiva Após a intervenção de órgãos internacionais no que se refere à garantia de proteção às mulheres em situação de violência no Brasil publicouse a Lei nº 11340 de 2006 conhecida como Lei Maria da Penha que cria mecanismos que coíbem a violência doméstica e familiar contra a mulher Essas violências se configuram como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte lesão sofrimento físico sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial É importante salientar que a violência psicológica é entendida como qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento Também se considera violência qualquer ação que vise degradar ou controlar as ações comportamentos crenças e decisões mediante ameaça constrangimento humilhação manipulação isolamento vigilância constante perseguição contumaz insulto chantagem ridicularização exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação BRASIL 2006 Entre as propostas dessa lei destacase o fato de que ela visa resguardar de forma mais próxima a segurança das vítimas e por este motivo também dispõem das chamadas medidas protetivas que podem ser concedidas a partir de um Boletim de Ocorrência Dessa forma as delegacias especializadas no atendimento a mulheres além de agir diretamente na punição em relação à agressão no ambiente doméstico também contam com as redes de apoio que em conjunto garantem que a mulher em situação de violência possa obter o direito à assistência Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 247 para o tratamento de questões envolvendo a saúde mental e o amparo psicológico BRASIL 2006 Conforme aponta Saffioti 1997 a violência contra as mulheres não se restringe à violência doméstica pois mulheres são violentadas dentro e fora de suas casas o tempo todo A grande questão é que a cultura brasileira patriarcal é sustentada por uma visão em que o homem é dominante e reconhecido em seu grupo familiar como o protetor do território simbólico Esse caráter simbólico dos laços que permitem a exploraçãodominação exercida pelo patriarca que extrapola o território famíliagrupo domiciliar e se ancora em todos os domínios da sociedade SAFFIOTI 1997 sp Isso nos remete ao fato de que as violências praticadas contra as mulheres não dependem de um território físico pois estão constantemente correlacionadas com a estrutura social vigorante em nosso país em que são reproduzidos papéis cristalizados de gênero A consequência dessa estrutura social pode ser vista através do alto número de casos reportados de violência contra as mulheres como mostram os dados de uma pesquisa feita em 2015 que demonstra que a taxa de feminicídio no Brasil foi a quinta maior do mundo ONU 2016 Em um contexto regional as informações do Ministério Público de Santa Catarina MPSC apontam que no ano de 2018 entre janeiro e novembro registraramse 105474 casos de violências domésticas e outros 21077 de violência contra as mulheres no estado Dentre as violências cometidas incluemse os crimes de estupro tentativa de estupro tentativa de homicídio lesão corporal e roubo Os números de violência doméstica envolvem ameaça calúnia difamação estupro tentativa de estupro tentativa de homicídio injúria e lesão corporal que normalmente se relacionam ao ambiente doméstico da vítima SANTA CATARINA 2019 Na capital de Santa Catarina Florianópolis por exemplo os dados também preocupam pois a cidade ocupa o segundo lugar no ranking da violência contra as mulheres quando comparada a outras capitais brasileiras É nesse cenário crítico que o relato de experiência deste artigo se insere pois foi a partir destes dados e deste contexto local que se realizou um levantamento inicial das políticas públicas às mulheres no qual se observou a carência de mais espaços de escuta e acolhimento às mulheres em situação de violência tal como se discutirá a seguir 3 MULHERES EM ACOLHIMENTO REFLEXÃO E ESCUTA A partir de um levantamento realizado no território de Florianópolis acerca das redes de atendimento e assistência a mulheres em situação de violência identificouse a carência de mais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 248 lugares destinados à escuta e ao acolhimento dessas mulheres especialmente na região norte da Ilha Atualmente o norte da ilha é um dos locais mais populosos da capital sendo inclusive de acordo com os dados oficiais obtidos junto aos órgãos públicos do município a região com o maior número de mulheres com medidas protetivas expedidas Com o intuito de articular e estabelecer vínculo entre o ensino e a extensão e neste caso entre a Faculdade CESUSC e a comunidade do norte da ilha iniciouse um movimento de aproximação com as redes já existentes a fim de analisar as possibilidades de criação de um projeto de extensão que visasse à promoção de autonomia e de vínculos comunitários com mulheres em situação de violência Neste contexto realizaramse os primeiros movimentos que apontaram para a necessidade de um trabalho diferenciado no que tange às questões de violência contra às mulheres em Florianópolis Os primeiros passos foram marcados pelo mapeamento e conhecimento das redes que protegem e atendem mulheres na cidade fundamentando assim os delineamentos iniciais do projeto de extensão e intervenção que veio a ser intitulado como MARÉ Mulheres em Acolhimento Reflexão e Escuta Inicialmente o projeto contou com a parceria feita entre o Ministério Público de Santa Catarina e o 21 Batalhão da Polícia Militar responsável pela fiscalização das medidas protetivas e com isso planejouse como intervenção acolhimentos individuais e a criação de um grupo para acolhimento coletivo exclusivamente com mulheres que estivessem sob medida protetiva A ideia era que os acolhimentos fossem realizados em grupo no Centro de Produção de Saberes e Práticas em Psicologia CEPSI do curso de Psicologia localizado dentro da Faculdade CESUSC Porém desde o início observaramse dificuldades de adesão das participantes e frente a isso compreendeuse que era necessário repensar as estratégias Até este momento do projeto os convites eram feitos diretamente pelo 21 Batalhão da Polícia Militar por meio de divulgação impressa entregue durante as rondas e visitas domiciliares de fiscalização das medidas protetivas o que de certo modo distanciava a equipe do projeto de um contato mais próximo com as mulheres Pensando neste e em demais pontos a serem revisados direcionaramse os objetivos do projeto de forma que viabilizasse uma maior aproximação das mulheres e para uma melhor identificação de suas demandas Nesta revisão e avaliação das formas de intervenção identificouse a importância de uma aproximação ainda maior com as redes de políticas públicas já atuantes no município de Florianópolis para que assim fosse possível também a familiarização com as necessidades específicas desta população de mulheres Essa estratégia conduziu o projeto MARÉ a ampliar o acolhimento a todas as mulheres que se interessam em conversar sobre os diversos tipos de violência proporcionando um espaço Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 249 de acolhimento e reflexão A partir disso o grupo passou a ter início efetivamente no mês de abril de 2019 desta vez nas dependências do Centro de Referência e Assistência Social CRAS de Canasvieiras cujos convites passaram a ser feitos pela própria equipe técnica Cabe também ressaltar que esses convites são mediados pelasos funcionáriasos do CRAS em função do acesso restrito às informações das usuárias cadastradas e principalmente pela importância da atuação e da sensibilidade dasos profissionais em identificar em seus serviços mulheres que poderiam vir a participar do grupo Desde o começo das atividades do grupo no CRAS Canasvieiras realizaramse dez encontros quinzenais nos quais 14 mulheres já participaram Sendo algumas mais assíduas do que outras Esse movimento retrata a construção gradativa do grupo naquele espaço nas quais os primeiros encontros foram marcados por um número mais restrito de participantes no entanto à medida que continuaram as divulgações do projeto juntamente com o entrosamento da equipe com asos profissionais do CRAS observouse um aumento considerável no número de participantes assim como na assiduidade dessas mulheres Atualmente o grupo acontece das 14h30 às 17h30 dependendo sempre da disposição de tempo e demanda das participantes A equipe de mediadoras é composta por três estudantes do curso de Psicologia sob supervisão de uma professora de Psicologia da Faculdade CESUSC Como ferramentas para atuação utilizamse as técnicas de Grupo Reflexivo BEIRAS BRONZ 2016 cujo objetivo configurase em possibilitar coletivamente um espaço de questionamento e reflexão crítica a respeito das construções normativas e desiguais de gênero Também faz parte da metodologia adotada o acolhimento coletivo intercalado com dinâmicas vídeos informativos sobre direitos e violências e orientações a respeito dos equipamentos públicos Toda a mediação das atividades da escuta e da reflexão no grupo conflui nos pressupostos da psicologia comunitária que visa ao fortalecimento dos vínculos coletivos à promoção da autonomia e à potencialização de espaços que possibilitem o acesso e a garantia de direitos Além disso os encontros iniciam com uma breve explicação sobre o objetivo daquele espaço e sobre a importância do contrato de sigilo e do não julgamento em relação às histórias que serão contadas no grupo Observase que a maioria das participantes não denunciaram as violências experienciadas por medo falta de informação ou por diferentes condições que as impossibilitam de fazer isso Após esse contrato o grupo é aberto para que as mulheres se sintam à vontade para falarem sobre suas histórias e experiências de modo espontâneo se quiserem e como quiserem Além dos relatos o espaço possibilita às participantes a troca de informações e esclarecimentos sobre questões que envolvem assistência social saúde Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 250 segurança e questões jurídicas Nestes casos quando necessário asos profissionais do CRAS são acionadasos para contribuírem com esclarecimentos mais específicos Após a realização do contrato grupal do momento de apresentações e dos relatos das integrantes servese o lanche momento em que muitas vezes as mulheres com mais dificuldades de se expressar se sentem mais à vontade para se aproximar das outras assim como também é o momento em que compartilham outras experiências como o que mais gostam de fazer onde trabalham o que sabem cozinhar e o que gostam de ouvir É neste espaço mais descontraído no qual os vínculos se fortalecem para além da experiência de violência em comum Atualmente são as mulheres participantes do grupo que elaboram os lanches de acordo com o que gostam e sabem fazer Algumas delas por exemplo já se mobilizam com outras integrantes do grupo para participarem das oficinas de geração de renda e horta comunitária oferecidas pelo CRAS Os encontros têm sido divulgados por meio de cartazes e flyers distribuídos em visitas constantes da equipe do projeto a instituições de ensino unidades básicas de saúde UBS e centros de assistência social CRAS no norte da Ilha Outra ferramenta utilizada são as mídias sociais como WhatsApp Facebook e Instagram pois funcionam como modo de ampliar a divulgação mas principalmente para manter um contato constante com a rede Por conseguinte após o início das atividades do grupo realizaramse visitas e divulgação de materiais do Projeto MARÉ na Delegacia da Polícia Especializada para Mulheres DPCAMI no CRAS dos Ingleses nas Unidades Básicas de Saúde no Norte da Ilha no Ministério Público de Santa Catarina na Defensoria Pública de Santa Catarina e no Centro de Referência a Mulheres em Situação de Violência CREMV Neste momento com o aumento da procura pelo projeto por parte das mulheres usuárias do CRAS Canasvieiras mas também por profissionais interessadasos pertencentes a outros equipamentos públicos planejase a ampliação da frequência dos grupos para encontros semanais abrindose com isso a possibilidade de formação de novas equipes para a realização do grupo em outros locais como UBS e Associações Comunitárias 41 Violência contra a mulher interlocuções entre feminismo e psicologia comunitária Podemos afirmar que todas as mulheres que foram acolhidas no grupo relataram terem passado ou estar passando por alguma situação de violência seja ela física psicológica moral sexual ou patrimonial cometidas por companheiros pais padrastos amigos e colegas de trabalho Muitas dessas mulheres passam por sofrimentos e angústias mas se mantêm na situação por diferentes motivos eou processos de vulnerabilidade ou até mesmo por Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 251 desconhecerem seus direitos ou recursos neste sentido Sob esse viés Jong et al 2008 afirmam que para algumas mulheres a violência cotidiana nem mesmo é percebida como violação dos seus direitos para muitas ainda é considerada normal no contexto familiar o que não as exime dos sentimentos de culpa e vergonha Neste sentido As mulheres relatam sentir vergonha ou humilhação culpa ou medo de serem culpadas pela violência temor pela sua segurança e a de seus filhos falta de controle sobre suas vidas esperança de que o agressor mude dado que ele promete medo de perder os filhos vontade de proteger o parceiro por razões econômicas ou afetivas SCHRAIBER DOLIVEIRA COUTO 2009 p 209 Bader Sawaia 2007 aponta que historicamente as emoções têm sido usadas como estratégia de exclusão e manutenção da ordem social Nesse sentido sentimentos como culpa e vergonha em mulheres que sofreram violência atuam como forma de reafirmar a opressão imposta pelo patriarcado gerando sofrimento que transpassa a dor inerente ao ser humano em suas afetações cotidianas pois esse sofrimento é o resultado de diversas injustiças sociais Esse sentimento denominado como sofrimento éticopolítico mutila o cotidiano e de certa forma ceifa a autonomia e reproduz a exclusão O sofrimento éticopolítico retrata o contexto históricosocial de seu tempo especialmente a dor que surge de ser tratado como inferior subalterno sem valor apêndice inútil da sociedade SAWAIA 2007 p 104 Por meio dos relatos feitos no grupo fica claro que muitas mulheres percorreram um longo e doloroso caminho na busca por seus direitos marcado por rejeições burocracias julgamentos falta de informações precisas e de espaços onde pudessem falar livremente de seus medos e angústias impossibilitandoas de expressar seus desejos afetos e até mesmo de circular livremente pelos espaços públicos Nesse sentido o conceito de sofrimento éticopolítico nos auxilia a pensar que os afetos quando aumentam ou diminuem a potência de ser dos sujeitos SAWAIA 2007 também constroem subjetividades e singularidades e para além disso cada afetação reverbera no que se constituiu ao longo da história do sujeito Assim a práxis dao psicólogao ao entender a violência contra as mulheres e seus efeitos subjetivos não reduz as questões à individualização de problemas mas amplia para um esfera psicossocial e valoriza um acolhimento e escuta que possam também abordar a subjetividade do sofrimento a ponto do sujeito ter recursos de rede para diminuir a intensidade do sofrimento É perceptível a partir dos relatos do grupo que a violência de gênero é atravessada por diversos marcadores sociais que legitimam práticas sociais de opressão De acordo com Silveira e Nardi 2014 são três os maiores marcadores sociais que se interseccionam e atravessam o Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 252 processo de subjetivação a raça a classe e o gênero Entretanto podemos ainda adicionar alguns outros marcadores importantes de diferença como a sexualidade a etnia a geração e a deficiência nas quais a violência se desenha acarretando a essas mulheres múltiplas formas de opressão Como já mencionado a terceira onda do feminismo abarca de forma mais ampla o que se pode chamar de interseccionalidade pois expande a visibilidade do feminismo no sentido de acolher todas essas formas opressão e sofrimento A decepção com modelos e discursos realizados por feministas brancas levaram outros coletivos de mulheres a utilizarem suas próprias experiências de exclusão opressão e discriminação bem como de resistência relacionadas à raça e sexualidade principalmente para desenvolver formas próprias de trabalhar com os conceitos de gênero e feminismo já que o enfoque dado pelo feminismo ao gênero como exclusiva fonte de opressão das mulheres não logra estabelecer relações entre sexismo e outras formas de dominação MAYORGA 2014 p 226 Para além da perspectiva feminista no cotidiano do grupo é possível ver em ato os conceitos comunitários da práxis da libertação NEPOMUCENO et al 2008 pois as mulheres relatam seu sofrimento e são acolhidas umas pelas outras construindo nesse processo de identificação e afeto as potencialidades e virtudes de cada uma estreitando laços de solidariedade e sororidade entre elas Ainda que o grupo tenha como temática central a violência contra as mulheres as conversas sempre são atravessadas por outros assuntos como mercado de trabalho autoestima e relações familiares pois tal como refere MartínBaró Essa população não só tem necessidades materiais sérias de alimentação teto saúde e trabalho mas também tem outras necessidades que embora não tão prementes não por isso menos graves de desenvolvimento pessoal e relações humanizadoras de amor e esperança em sua vida de identidade e significação social MARTÍNBARÓ 1997 p 19 Neste sentido de escuta e acolhimento feito por e com mulheres a modalidade de grupo reflexivo possibilita trabalhar coletivamente variados temas de maneira a valorizar o que o próprio grupo enuncia como saberes comunitários além de conduzir a reflexão para um processo de desnaturalização da violência considerando seus diversos tipos e o modo como atravessam as histórias e o cotidiano das mulheres Logo a potencialidade do grupo está na capacidade de promover bons encontros entre as participantes possibilitando o fortalecimento do vínculo entre elas e a ampliação de seu território existencial contribuindo assim com processos coletivos e singulares de promoção e reconhecimento da autonomia A partir dessa leitura das vulnerabilidades das mulheres em situação de violência como um modo de sofrimento éticopolítico é possível repensar as direções éticas e políticas da Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 253 atuação dao psicólogao inclusive compreendendo o sofrimento de uma forma mais ampla sem reduzilo à lógica psicologizante Além disso as experiências vivenciadas no Projeto MARÉ apontam para importância de analisar e ampliar a práxis dasos psicólogasos nas políticas públicas principalmente em espaços como o da assistência social da saúde e da educação nas quais as violências de gênero podem ser prevenidas identificadas e discutidas Para Ximenes Paula e Barros 2009 o desenvolvimento de práticas críticas éticas e políticas implicam ao psicólogao em um trabalho de rede envolvendo diversos atores sociais incidindo no contexto comunitário considerando seus saberes complexidades e multidimensionalidades 32 A importância da atuação em rede para o fortalecimento das políticas públicas Os encontros do Projeto MARÉ ocorrem no Centro de Referência de Assistência Social CRAS de Canasvieiras na cidade de Florianópolis em Santa Catarina O espaço potencializa os encontros grupais pois se destina a um serviço público do Sistema Único de Assistência Social SUAS que atua nas áreas de vulnerabilidade e riscos sociais do município Asos profissionais que atuam no CRAS possuem como objetivo principal a execução e planejamento de ações com a finalidade de garantir direitos amenizar situações de vulnerabilidade social e consequentemente de risco social configurando assim ações de atuação preventiva na proteção social básica O CRAS conta com assistentes sociais psicólogasos e profissionais capacitadasos para esse tipo de demanda cuja principal função é a oferta de trabalho social com as famílias através do serviço de Proteção e Atendimento Integral às Famílias PAIF além da gestão territorial da rede de assistência social de proteção básica O projeto MARÉ trilhou diversos caminhos acumulando uma experiência significativa sobre as formas de articulação com a rede municipal de políticas públicas que prestam atendimento às mulheres em situação de violência O mapeamento de rede as reuniões e conversas com gestorases e profissionais de diferentes equipamentos proporcionaram reflexões inclusive sobre a atuação ética e política como estagiárias e profissionais de psicologia Uma das principais reflexões levantou questões envolvendo as diversas formas de violências vivenciadas na história ou no cotidiano de algumas mulheres cujas muitas dessas violências o próprio Estado é quem comete ou reproduz no momento em que os atendimentos específicos para mulheres em situação de violência são negligenciados ou até mesmo negados Nesse sentido as atividades desenvolvidas com as mulheres e o espaço construído com elas para acolhimento apresentamse como uma grande potência comunitária à medida em que os relatos expostos pelas participantes passam por verbalizações significativas de sofrimentos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 254 que até então nenhum outro espaço seja ele oferecido pelo Estado ou não se designavam à capacidade de escuta qualificada Isso significa que o Projeto MARÉ tem acessado mulheres que inclusive não se veem ou não se viam pertencentes à rede de apoio psicossocial seja por não obterem o conhecimento necessário sobre as políticas públicas e garantia de direitos seja por simplesmente compreenderem o próprio Estado como o produtor das violências Para Gesser 2013 a psicologia ao atuar nos espaços de políticas públicas tem como proa de sua práxis o conhecimento sobre os múltiplos atores sociais acolhendo assim os diversos modos de ser a potencialização dos sujeitos e a inclusão das diversidades Além disso ao psicólogao neste contexto de atuação também visa contribuir com a garantia de direitos para além da judicialização e da medicalização da vida uma vez que são constantes os relatos das mulheres e de profissionais sobre a inclusão da justiça como única forma possível de resolução de conflitos e do uso de medicamentos como forma de aliviar a dor diante dos processos de vulnerabilidade Pelos motivos apontados além do espaço de escuta e reflexão a atuação do projeto MARÉ primou por abarcar as subjetividades e nos casos que assim cabiam aproximar estas mulheres aos equipamentos das políticas públicas como forma de envolver a rede de serviços e ampliar as possibilidades de garantias de direitos assim como também de suporte simbólico Percebese que para muitas mulheres que passaram e passam pelo MARÉ a busca pela garantia de direitos e por um espaço na qual se sintam acolhidas fomenta uma rede que proporciona um suporte de diminuição do desamparo e consequentemente do sofrimento Com isso a parceria feita com o CRAS possibilitou um tipo de aproximação bastante efetiva e articulada entre políticas públicas intervenção acadêmica e comunidade CONSIDERAÇÕES FINAIS Entendese que em função do tema e das vulnerabilidades sociais e psíquicas que atravessam o falar sobre a violência são comuns as dificuldades de permanência a longo prazo em atividades em grupo por parte das mulheres que buscam acolhimento Muitas vezes participar uma única vez sentirse acolhida e não retornar tão logo é o modo encontrado por muitas mulheres que se aproximaram aos poucos da reflexão e da escuta sobre as violências experienciadas por outras participantes e pelas suas próprias situações Porém é perceptível que gradualmente essas mulheres que encontram no MARÉ um espaço de confiança e respeito se vinculam ao grupo e passam também a ser participantes ativas sendo protagonistas no processo de reflexão e escuta Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 255 Nesse sentido evidenciase também a importância de estar sempre em articulação com outras redes de apoio pois como já se discutiu anteriormente a violência é uma temática complexa que abarca diversas consequências e direitos violados Portanto seu entendimento precisa levar em conta que uma mulher nessa situação precisa muitas vezes circular por diversos equipamentos públicos para receber atendimento e essas idas e vindas também precisam ser lidas como produtoras de sofrimento físico e emocional Logo participar do grupo na posição de mediadoras em conjunto com essas mulheres proporciona um aprendizado imensurável por poder estar em contato com tamanha diversidade de histórias de vida marcadas por sofrimento mas especialmente por um potente processo de resistência e existência cotidianas Dessa maneira a identificação da violência e das diferentes formas de atuação a partir dos discursos trazidos exige posicionamento e a incansável busca por literatura e ferramentas de intervenções cabíveis e contextualizadas com compromisso ético e reconhecimento do lugar de fala e de saber das mulheres Portanto uma psicologia que se ocupe dos processos de vulnerabilização e das formas coletivas de resistência e promoção de vida Concluise com isso que as experiências coletivas e emancipadoras do Projeto MARÉ se delineia como uma intervenção política de uma psicologia engajada afinal tal como propõe MartinBaró realizar uma psicologia da libertação exige primeiro conquistar uma libertação da psicologia MARTÍNBARÓ 2009 p 191 REFERÊNCIAS BEIRAS Adriano BRONZ Alan Metodologia de grupos reflexivos de gênero Rio de Janeiro Instituto Noos 2016 BRASIL Lei nº 11340 de 07 de agosto de 2006 Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher Brasília Casa Civil 2006 Disponível em httpspresrepublicajusbrasilcombrlegislacao95552leimariadapenhalei1134006 Acesso em 10 jun 2019 CAETANO Ivone Ferreira O feminismo brasileiro uma análise a partir das três ondas do movimento feminista e a perspectiva da interseccionalidade Revista do Curso de Especialização em Gênero e Direito Rio de Janeiro n 1 p 0124 2017 Disponível em httpwwwemerjtjrjjusbrrevistasgeneroedireitoedicoes12017pdfDesIvoneFerreiraC aetanopdf Acesso em 14 mai 2019 GESSER Marivete Políticas Públicas e Direitos Humanos Desafios à Atuação do Psicólogo Psicologia Ciência e Profissão Brasília n 33 p 6677 2013 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1414 98932013000500008lngennrmiso Acesso em 23 jun 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 256 JONG Lin Chau SADALA Maria Lucia Araujo TANAKA Ana Cristina DAndretta Desistindo da denúncia ao agressor relato de mulheres vítimas de violência doméstica Revista da Escola de Enfermagem USP São Paulo v 32 p 14451 2008 Disponível em httpwwwscielobrscielophppidS0080 62342008000400018scriptsciabstracttlngpt Acesso em 25 jul 2019 MARTÍNBARÓ Ignácio O papel do Psicólogo Estudos de Psicologia Natal v 1 n 1 p727 fev 1997 Disponível em httpwwwscielobrscielophppidS1413 294X1997000100002scriptsciabstracttlngpt Acesso em 15 mai 2019 MARTÍNBARÓ Ignácio Desafios e perspectivas da psicologia latinoamericana In GUZZO Raquel LACERDA Jr Fernando eds Psicologia Social para a América Latina O resgate da Psicologia da Libertação Campinas Editora Alínea 2009 p 199219 MAYORGA Claudia Algumas contribuições do feminismo à psicologia social comunitária Athenea Digital Barcelona v 1 n 14 p 221236 mar 2014 Disponível em httpswwwrediborgrecursosRecordoaiarticulo401343contribuiC3A7C3B5es feminismopsicologiasocialcomunitC3A1ria Acesso em 16 ago 2019 NEPOMUCENO Léo Barbosa et al Por uma psicologia comunitária como práxis de libertação 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Direitos Humanos Violência Doméstica sa Disponível em httpwwwdireitompprmpbrpagina269html Acesso em 20 mai 2019 PINTO Céli Regina Jardim Feminismo história e poder Revista de Sociologia e Política Curitiba v 8 n 36 p 1523 jun 2010 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS010444782010000200003 Acesso em 10 abr 2019 RIBEIRO Djamila Quem tem medo do feminismo negro São Paulo Companhia das letras 2018 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 257 SAFFIOTI Heleieth Violência de Gênero Lugar da práxis na construção da subjetividade Revista Lutas Sociais São Paulo n 2 p5979 1997 Disponível em httpwww4pucspbrneilsdownloadsv2artigosaffiotipdf Acesso em 04 abr 2019 SANTA CATARINA Ministério Público de Santa Catarina GEVIM do MPSC prepara ações de combate a violência contra a mulher para 2019 MPSC Santa Catarina 04 fev 2019 Disponível em httpswwwmpscmpbrnoticiasgevimdompscpreparaacoesdecombate aviolenciacontraamulherpara2019 Acesso em 16 ago 2019 SAWAIA Bader O sofrimento éticopolítico como categoria de análise da dialética exclusãoinclusão In SAWAIA Bader org As artimanhas da exclusão uma análise éticopsicossocial da desigualdade 7 ed Petrópolis Vozes 2007 p 97119 SCHRAIBER Lilia Blima D OLIVEIRA Ana Flávia Pires Lucas COUTO Márcia Thereza Violência e saúde contribuições teóricas metodológicas e éticas de estudos da violência contra a mulher Cad Saúde Pública online Rio de Janeiro v25 supl2 p 205 s216 2009 SILVEIRA Raquel da Silva NARDI Henrique Caetano Interseccionalidade gênero raça e etnia e a lei Maria da Penha Psicologia Sociedade Belo Horizonte v 26 p 1424 jan 2014 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0102 71822014000500003lngpttlngpt Acesso em 16 ago 2019 XIMENES Verônica Morais PAULA Luana Rego Colares de BARROS João Paulo Pereira Psicologia comunitária e política de assistência social diálogos sobre atuações em comunidades Psicologia ciência e profissão Brasília v 28 n 4 p 686699 2009 Disponível em httpwwwscielobrscielophppidS1414 98932009000400004scriptsciabstracttlngpt Acesso em 08 mai 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 258 SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA AS MULHERES SOB A PERSPECTIVA DE AGRESSORES SENTIDOS E DISCURSOS Márcia Cristiane NunesScardueli1 RESUMO Ao se tratar do enfrentamento das violências praticadas contra mulheres tornase necessário incluir os agressores nesse contexto Para além da atenção voltada às mulheres em situação de violência que estejam na condição de vítimas também se faz pertinente refletir sobre o papel dos sujeitos agressores e a sua concepção sobre a violência Este estudo amparado nos pressupostos teóricos da Análise do Discurso de linha francesa teve por objetivo analisar os efeitos de sentido que se reproduzem a partir das manifestações de dois homens que foram denunciados à polícia por suas companheiras por situações de violência conjugal A análise discursiva aqui produzida apontou para sentidos que negam a existência de violência por parte dos denunciados desqualificam silenciam e banalizam a violência ocorrida tendem a atribuir às companheiras a responsabilidade pelos conflitos do casal além de reforçar os lugares de dominação e subordinação ocupados por mulheres e homens no cenário das relações conjugais Palavraschave Violência contra mulheres Discursos de agressores Sentidos Análise do Discurso INTRODUÇÃO Ao se discutir sobre o enfrentamento das violências praticadas contra mulheres uma necessidade atual é incluir os agressores nesse contexto Para além dos cuidados e discussões sobre as práticas que inserem as mulheres na condição de vítima falar sobre os sujeitos agressores e a sua concepção de violência também se faz necessário a fim de que se possa refletir sobre os sentidos que emergem nas falas desses sujeitos quando interpelados sobre situações de violência em especial da modalidade doméstica O fenômeno da violência mantém estreita relação com a linguagem que é uma das grandes disseminadoras de ideologias e padrões culturais Nesse sentido a reflexão do ponto de vista discursivo sobre as falas dos sujeitos envolvidos em situações de violência contra mulheres pode revelar os valores culturais construídos mantidos eou alterados e transmitidos de geração em geração Além disso a análise discursiva também pode evidenciar as crenças estereotipadas sobre as relações entre mulheres e homens que estão na origem das violências de gênero 1 Agente de Polícia Civil da Delegacia de Proteção à Criança Adolescente Mulher e Idoso de AraranguáSC Doutora em Ciências da Linguagem pela Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL Professora do Curso de Tecnologia em Segurança Pública da UNISUL Virtual e da PósGraduação em Gestão da Segurança Pública e Investigação Criminal Aplicada da ACADEPOLSC Email nunesmarciacristianegmailcom Lattes httplattescnpqbr2713794238194532 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 259 Baseada na premissa de que não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia conforme manifestado por Michel Pêcheux 1997 p 17 a abordagem teórica de referência aqui é a da Análise do Discurso AD de origem francesa cujas contribuições propõem a reflexão sobre as maneiras de ler o mundo e os discursos que circulam nele Neste capítulo apresento e discuto em uma perspectiva linguística trechos de duas entrevistas realizadas com homens acusados de violência doméstica por suas companheiras e que responderam a processos judiciais em uma comarca do Estado catarinense Por meio do recorte de sequências discursivas das entrevistas realizadas em que se abordou as situações pelas quais eles foram denunciados uma análise sobre os efeitos de sentido reproduzidos nesses discursos será aqui apresentada Tal análise visa contribuir com o contexto de enfrentamento da problemática da violência contra as mulheres sob a perspectiva dos sujeitos agressores e foi conduzida pela seguinte questão Que efeitos de sentidos podem ser depreendidos das falas de dois homens acusados de violência doméstica conjugal em uma Delegacia de Polícia de Proteção à Mulher do Estado de Santa Catarina 1 CENÁRIO TEÓRICO E METODOLÓGICO DA PESQUISA Para Helena Brandão 2004 p 11 a linguagem enquanto discurso é interação é um modo de produção social ela não é neutra mas elemento de mediação entre o ser humano e sua realidade Nesse sentido a linguagem manifestada pelas pessoas em suas falas ou escritos tornase lugar de conflito de confronto ideológico e não pode ser estudadaanalisada fora de contextos sociais já que os processos que a constituem são históricosociais Segundo Eni Orlandi 2010 p 10 discurso é movimento de sentidos errância dos sujeitos lugares provisórios de conjunção e dispersão de unidade e de diversidade de incerteza de trajetos de ancoragem e de vestígios A autora ainda diz que o discurso é o ritual da palavra mesmo daquelas que não se dizem A Análise de Discurso como disciplina surgiu na França na década de 1960 sendo um dos maiores expoentes Michel Pêcheux Para o autor a significação não pode ser apreendida sistemicamente pois é da ordem da fala e assim relativa ao sujeito e não à língua A significação sofre alterações de acordo com as posições sociais ocupadas pelos sujeitos alterações essas históricas e ideológicas PÊCHEUX 2014 Para Orlandi a preocupação da Análise de Discurso é com o discurso produzido ou seja procurase compreender a língua fazendo sentido enquanto trabalho simbólico parte do trabalho social 2010 p 15 O discurso constitui e é constitutivo do sujeito e da sua história Nesse sentido a linguagem é concebida como mediação necessária entre o homem e a Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 260 realidade natural e social 2010 p 17 Assim a AD se ocupa da língua significando o mundo sendo falada e produzindo sentidos Ainda para Orlandi 2010 p 16 o discurso é um objeto sóciohistórico em que o lingüístico intervém como pressuposto Por isso não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia e o sujeito que enuncia não é o falante o indivíduo mas uma posição discursiva um lugar em que o sujeito é interpelado capturado pela ideologia que naturaliza e evidencia certos sentidos no discurso A ideologia definida por Althusser é um sistema de representações às vezes no formato de imagens às vezes de conceitos que se impõem às pessoas sem passar pela consciência apud MUSSALIM 2003 ela fornece as evidências pelas quais se estabelece aos sujeitos o significado de uma palavra ou enunciado Por conseguinte ideologia pode ser também entendida como uma concepção de mundo para determinado grupo social em uma dada circunstância histórica Sobre os sentidos encontrados nos discursos Sírio Possenti 2004 orienta sobre não se agregar a eles a noção de um conceito estável contido de forma fixa no significante Para o autor o sentido é um efeito de sentido porque resulta de uma enunciação p 134 Assim o papel da enunciação é mais relevante que o papel do significante posto que a enunciação anuncia o significante em determinadas condições em situações históricas mais ou menos precisas O sentido então para a AD tem uma perspectiva histórica que envolve ações e conflitos materializados na língua indicando que o sentido não é o de uma palavra mas de uma sequência de palavras que mantêm umas com as outras relações de sentido Ciente de que nas pesquisas em Análise do Discurso o emprego de entrevistas como objeto de análise não é recorrente essa tarefa foi tomada como um desafio A aposta foi de que mesmo em entrevistas semiestruturadas em que as perguntas por mais abertas que sejam conduzem as respostas e os enunciados o sujeito não é dono de seu dizer e os efeitos de sentido e os demais operadores do discurso também estão presentes A entrevista segundo Fábio Rauen 2015 p 323 é uma interação verbal não convencional e controlada pois a relação entre entrevistador e entrevistado é orientada por determinado fim e delimitada por uma área temática Na entrevista é preciso respeitar a forma do sujeito construir a sua narrativa captando a interpretação dele da realidade Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 261 As pessoas aqui entrevistadas foram localizadas por meio dos dados pessoais telefone e endereço que constavam nos inquéritos policiais de que faziam parte e que compunham a parte documental da pesquisa maior que originou este capítulo2 A tarefa de proceder às entrevistas foi desafiadora e complexa em função da dificuldade de encontrar pessoas que quisessem participar Alguns homens procurados para participar não aceitaram e outros não foram localizados Da relação de nomes disponíveis composta de 18 apenas dois concordaram falar3 sobre as situações de violência que vivenciaram com suas companheiras que as levaram a procurar a polícia para denunciálos No que concerne ao perfil social dos dois homens entrevistados e que responderam aos processos criminais na condição de autores de violência contra mulheres ambos tinham por profissão serem pedreiros e trabalhavam de forma autônoma Quanto ao estado civil os dois tinham mantido união estável por doze anos com as excompanheiras que registraram ocorrência policial contra eles A escolaridade de ambos era ensino fundamental incompleto Quanto a terem filhos com as mulheres que os denunciaram o Entrevistado 1 aqui identificado como Pedro tinha dois um filho de quatro anos e outro de dez Júlio o Entrevistado 2 tinha três filhos um de doze anos outro de cinco e uma filha à época com cinquenta dias de vida Quanto à idade Pedro tinha 50 anos enquanto que a excompanheira tinha 38 e Júlio tinha 35 e a excompanheira dele 27 Por ocasião das entrevistas4 ambos alegaram estar separados das companheiras de quem já tinham se separado outras vezes antes dos processos judiciais 2 A VIOLÊNCIA NA PERSPECTIVA DOS AGRESSORES 2 As discussões trazidas neste texto compõem parte da tese de Doutorado defendida pela autora em 2015 no Programa de PósGraduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL intitulada Lei Maria da Penha e violência conjugal análise discursiva dos efeitos de sentido nas instituições e nos sujeitos envolvidos que gerou também a publicação do livro Lei Maria da Penha e violência conjugal discursos sujeitos e sentidos pela editora Lumen Juris do Rio de Janeiro em 2018 3 Essas duas entrevistas foram gravadas em áudio com autorização das participantes e operacionalizadas a partir de um roteiro previamente organizado que continha perguntas sobre o perfil idade profissão escolaridade etc além de conhecimento prévio sobre a Lei Maria da Penha sobre a reação que tiveram ao saber que responderiam judicialmente pela violência doméstica praticada sobre as medidas protetivas requeridas pela mulher se entediam que eram necessárias se cumpriram a determinação judicial se entendiam como justo o processo judicial que responderam se se sentiam punidos pela violência praticada se depois daquele processo já teriam se envolvido em outra situação de violência doméstica bem como foram questionados sobre como estava a situação entre eles e as mulheres que os denunciaram e se o fato de terem respondido a um processo criminal por violência doméstica contra suas companheiras teria modificado algo na vida deles 4 Esses homens foram entrevistados pela autora por ocasião da pesquisa de Doutorado concluída em 2015 com o devido encaminhamento ao Comitê de Ética da Plataforma Brasil sob nº 32422414000005369 com aprovação em 30062014 Para garantir o anonimato deles neste trabalho foram adotados os pseudônimos Pedro e Júlio para fazer referência a essas entrevistas cuja autorização para publicação e divulgação dos resultados foi garantida à pesquisadora por meio de termo de consentimento livre e esclarecido assinado pelos participantes Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 262 A situação criminal envolvendo Pedro era decorrente de uma denúncia de lesão corporal praticada contra a excompanheira A decisão judicial desse processo foi de improcedência do pedido de denúncia em face da inexistência de prova suficiente para a condenação do acusado pelo delito o que implicou a absolvição de Pedro Júlio por sua vez estava envolvido em dois processos dos vinte que compuseram o corpus da pesquisa Um dos processos era de lesão corporal e o outro de injúria A sentença proferida no processo referente à lesão corporal também foi de improcedência do pedido de denúncia pela inexistência de provas e a sentença do processo de injúria foi de extinção da punibilidade em função da decadência do direito de ação5 Importante dizer ainda que na sentença do processo referente à lesão corporal além de julgar improcedente o pedido de denúncia contra Júlio o juiz do caso também determinou o encaminhamento de cópia à delegacia de polícia para instauração de procedimento policial contra a excompanheira dele em função de denunciação caluniosa ou seja por ter o magistrado entendido que ela havia cometido o crime previsto no artigo nº 339 do Código Penal Esse artigo referese a acionar indevidamente a máquina estatal de persecução penal delegacia fórum ministério público para instauração de inquérito ou processo imerecido A situação em que Pedro foi denunciado à polícia de acordo com o teor do boletim de ocorrência registrado pela excompanheira dele6 anunciava que eles estavam separados há cerca de nove meses e que ele queria que os dois voltassem a conviver Segundo a esposa Pedro sempre a ameaçava de morte se ela arrumasse outro homem e a lesão corporal se deu em ocasião em que ele estivera na casa dela e a agredira fisicamente Sobre essa situação Pedro alega que eles estavam morando separados mas mantinham contato frequente e traz a versão a seguir A gente saía ela ligava e a gente saía fazia lanche só que ela bebia A última vez que nós saímos nós fomos embora para a casa dela daí eu saí e ela perguntou já vai Ela tava no banheiro Vem cá ela me chamou Aí eu fui lá ela tava sentada no vaso bêbada O que tu quer ele perguntou Não vai embora tu vai embora já Vou Tu vais prá casa da outra porque não sei o quê não sei o quê porque isso porque aquilo porque tu tens 5 De acordo com o disposto no artigo 103 do Código Penal brasileiro se o direito de apresentar a queixa ou a representação criminal exigida em casos de ação penal privada que é a situação para os crimes cometidos contra a honra calúnia injúria e difamação não for exercido no prazo de seis meses a contar do dia em que se soube quem foi o autor do crime decai o direito de ação 6 O boletim de ocorrência é um texto que enuncia a partir do ponto de vista do comunicante pessoa que vai à polícia comunicar uma situação criminal e do redator do documento policial em função da utilização de termos referenciais inclusive os elementos dêiticos e emprego do discurso indireto O uso recorrente de conjunções conformativas como segundo a comunicante de acordo com a vítima e estruturas indiretas relata a vítima a vítima disse que a comunicante informou que marcam a participação dos envolvidos no que diz respeito à responsabilidade do conteúdo das informações e registram a natureza heterogênea desse discurso uma vez que o discurso do eu se mistura com o discurso do outro dentro do contexto enunciativo podendo se caracterizar tanto como um discurso referido como um discurso relatado Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 263 outra Aí ela avançou em mim me arranhou entendeu Daí eu peguei prá me coisá defender eu não machuquei a verdade tem que ser dita se eu machucasse assumiria Eu assumo o que eu faço a pessoa tem que assumir o que faz só não pode é mentir Daí eu dei dois tapas assim ó demonstrando com gestos Para Tu tá louca Aí ela veio me arranhou o braço aqui quem viu foi o meu guri de dez anos Daí foi assim no ela se abaixar no vaso ela veio prá frente assim e bateu com isso aqui mostrando o rosto no armarinho dela Ela bateu Eu não bati na cara jamais eu ia fazer isso O guri disse oh pai o que é isso O pai tá todo arranhado A tua mãe convidei ela prá sair fazer lanche e tal Depois acontece isso aí Daí o que aconteceu eu fui embora Ela tava muito bêbada E ela tava com o pequeno lá Daí eu pensei assim bah eu vou lá em casa e depois vou voltar lá na casa dela Por nada essa mulher vai sair beber mais e tal Aí eu voltei lá De boa Tava chovendo Ela disse dorme aí não sei o quê Não falou com ela eu vou embora não tem dormir aí eu vou embora Só quero que tu cuide do menino Tu não vai sair mais Eu peguei e fui embora No outro dia se reuniu ela a mãe dela a outra cunhada dela e foram e me denunciaram Eles falaram que eu dei soco nela eu não Não bati nela Eu bati dei dois tapas aqui assim mostrando o braço porque ela me arranhou todinho me arranhou todo todo todo Pedro7 Na fala do entrevistado percebese certa preocupação em contextualizar o cenário de forma que não fiquem dúvidas sobre como as coisas aconteceram e de que ele não teve culpa pela lesão que ela apresentou Para isso elementos externos são trazidos a bebida a presença do filho a influência de outras pessoas na decisão dela de denunciar que se configuram como formas marcadas de uma heterogeneidade mostrada conforme definida por AuthierRevuz 1990 O emprego desses elementos desconfigura um cenário homogêneo quanto à versão da excompanheira de Pedro sobre os fatos Ao fazer uso da expressão oral só que que gramaticalmente opera como uma conjunção adversativa o entrevistado já apresenta um cenário de contraste ou mesmo de compensação à situação que estava sendo descrita Ou seja eles estavam separados e se davam bem já que saíam juntos mas quando ela bebia nem sempre as coisas funcionavam com normalidade Assim ao dizer que ela bebia e estava bêbada naquela noite Pedro estimula efeito de dúvida sobre o que a excompanheira contou na delegacia e até desqualifica a versão dela pois se estava bêbada poderia não estar consciente sobre as atitudes Essa menção à bebida retoma a memória discursiva dos contextos de violência doméstica em que o álcool se configura como um dos elementos motivadores dos conflitos familiares e traz à luz esse material interdiscursivo A noção de interdiscurso é formulada a partir das memórias discursivas que pela junção de cadeias discursivas aproxima saberes diversos Segundo Pêcheux 1999 a memória discursiva desempenha o papel de oportunizar 7 Trecho da entrevista realizada em 5 de junho de 2014 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 264 um encontro efetivo entre temas diferentes Para o autor essa memória não deve ser entendida no sentido psicologista da memória individual mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica da memória social PÊCHEUX 1999 p 50 Essa memória então se vale de outras vozes de outros ditos para compor um pano de fundo interdiscursivo a fim de abordar uma temática que subjaz àquela cadeia discursiva como se viu na fala do entrevistado sobre a questão da bebida e a função dela naquele acontecimento discursivo Ainda quando Pedro diz que eles falaram que ele havia batido na excompanheira ele atribui a outras pessoas a acusação feita e não a ela à companheira Isso também permite a interpretação de que ela nada dissera talvez porque entendera que a lesão não fora causada por ele mas na batida contra o armário como ele relatou É possível pensar também que nesse eles o entrevistado esteja incluindo o filho posto que as outras pessoas eram a mãe dela e uma cunhada o que requeria o uso apenas do pronome feminino elas Ao dizer eles a ideia de plural composto por ao menos um elemento do sexo masculino é retomada o que permite pensar que tenha sido o menino Pedro mencionou que o filho o teria visto arranhado o que talvez justificasse para a criança naquele momento a agressão dele contra ela admitida por ele em dei dois tapas assim ó O menino viu o pai arranhado e viu a mãe machucada mas talvez não tenha visto a mãe bater com a cabeça no armário como o entrevistado alegou Assim talvez o menino tenha dito que o pai bateu na mãe para a avó e a tia mobilizandoas a orientar a vítima a registrar ocorrência policial O que importa observar é a preocupação de Pedro em apontar um outro registrando uma alteridade para além da excompanheira que enuncia por ela talvez com mais propriedade e que se distancia dele do entrevistado Perguntado sobre a reação que teve ao saber que responderia na justiça por violência doméstica Pedro assim respondeu Não me incomodou nem um pouquinho Porque eu simplesmente fui lá e falei a minha versão a verdade Não menti Falei eu dei dois socos nela Não adianta mentir que adianta mentir Aí eu fui lá e falei a verdade Pedro Nesse trecho o entrevistado diz têla agredido com socos enquanto que anteriormente disse que eram tapas Transitando de tapas para socos também seria possível produzir efeito de dúvida sobre a fala dele porém a maneira enfática com que ele disse eu dei dois socos nela além de eliminar qualquer dúvida ainda produz efeito de legitimação da fala dele Sabese que socos têm maior probabilidade de causar lesões e costumam deixar marcas o que pode então justificar a lesão que ela apresentava e que foi descrita no exame médicolegista Muito comum nas investigações de violência doméstica conjugal em que não há testemunhas do fato é que as versões dos envolvidos sejam conflitantes se não opostas Na fala Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 265 de Pedro vêse que ele disse não ter se incomodado com o fato de ter sido denunciado pois foi lá à polícia e ao fórum e contou sua versão Ele traz então a verdade como um complemento de sua versão sugerindo que a versão dele era a verdadeira ou ainda que era a versão dele que continha a verdade Observase na contextualização dos fatos descritos pelo entrevistado que o dizer dele busca montar uma cena e sobre essa cena se opera a sua fala Isso remete aos escritos de Dominique Maingueneau 2008 sobre a cena enunciativa Para o autor durante a enunciação um conjunto de elementos que compõem a situação de comunicação se estabelece formando uma cena que é composta pelo lugar social assumido pelo destinador do discurso e pelo seu destinatário pelo espaço e pelo momento da enunciação Essa cena compõe o quadro da enunciação e se desdobra em outras três cenas cena englobante cena genérica e cenografia Segundo Maingueneau 2008 a cena englobante é a que define o tipo de discurso o discurso jurídico o discurso religioso por exemplo mas ela não é suficiente para a compreensão das atividades discursivas nas quais se encontram os sujeitos É preciso observar então a cena genérica que refere o gênero discursivo daquele discurso As cenas englobante e genérica definem em conjunto o espaço estável no qual o enunciado ganha sentido formando o tipo e o gênero do discurso a cenografia por sua vez interpela o sujeito e possibilita a compreensão do lugar social ocupado por ele A cenografia é então construída no texto mas instituída pelo discurso e fonte dele No caso da entrevista com Pedro que vem sendo discutida as cenas ali descritas inseremse no gênero entrevista em que o indivíduo identificado socialmente no contexto da violência doméstica contra as mulheres como agressor se posiciona como nãoagressor e até como vítima É pela cenografia porém que ele se legitima nessa condição pois ao dar voz a um enunciado anteriormente já legitimado a condição para contar uma história se estabelece No caso da entrevista realizada quanto mais Pedro enunciava e avançava no texto mais se persuadia a respeito do discurso ali configurado especialmente pelo emprego do discurso direto De acordo com Gregolin 1995 através de ilusões discursivas construídas pelo emprego do discurso direto os fatos contados podem ganhar status de reais de coisas acontecidas de fato Ele é empregado para fazer o enunciatário crer na verdade do discurso uma vez que tem efeito persuasivo e dá mais credibilidade à narrativa pois permite supor que se tem memória clara sobre todos os fatos ocorridos Assim o uso recorrente durante a entrevista do discurso direto para recontar os fatos é um recurso para construir e garantir a construção dessa verdade A verdade porém é o real o inatingível e a versão uma forma Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 266 simbólica de representar esse real contada a partir de um ponto de vista de um sujeito todo envolvido em um contexto sóciohistóricoideológico Esse é o sujeito referido na Análise do Discurso AD um sujeito do discurso marcado pelo social pelo ideológico e pelo histórico que tem a ilusão de ser a fonte do seu dizer Assim compreendido o sujeito não pode ser origem de sentido posto que ele está determinado à reprodução de sentidos já internalizados O lugar do sujeito para a Análise do Discurso se dá no entremeio das noções de linguagem ideologia e inconsciente pelas quais o sujeito é afetado simultaneamente e nas quais também deixa um furo conforme referido por Ferreira 2010 o furo da linguagem representado pelo equívoco o furo da ideologia manifestado pela contradição e o furo do inconsciente Em função disso é que a incompletude é tão percebida no campo do discurso Essa incompletude vai tornarse o lugar do possível para o sujeito da análise do discurso interpelado ideologicamente Mesmo depois de ter ido embora Pedro disse que voltou mais tarde naquela noite e estava tudo de boa A excompanheira até o teria convidado para dormir na casa indicando que ela o teria deixado entrar novamente A expressão de boa significando que as coisas já estavam bem quando ele voltou naquela noite possibilita considerações pontuais É possível especular que o emprego dela tenha efeito de tentativa de demonstração de normalidade da situação durante a entrevista para reforçar a ideia de que a discussão entre eles não fora grave eou séria que justificasse o registro da ocorrência Isso mantém a imagem de bomhomem que se preocupa com a companheira e o filho mesmo diante de situações adversas Mas o fato de ela têlo deixado entrar de boa conforme ele mencionou pode indicar também outras coisas como por exemplo vontade de não brigarem mais ou desejo de não apanhar mais ou ainda poderia ter sido uma estratégia empregada para que ele não desconfiasse que ela procuraria a polícia no dia seguinte Ocorre que se ele voltou é porque queria mais ou dela ou da briga com ela Esse discurso retoma também a memória discursiva dos contextos de violência conjugal em que o masculino se sobressai ao feminino impondose na relação de poder Essa memória discursiva inscreve os sentidos já produzidos o que já foi simbolizado nas práticas sociais das relações de gênero historicamente desiguais entre homens e mulheres De acordo com Pêcheux 1999 a memória discursiva seria aquilo que surge da leitura de um texto para estabelecer préconstruídos discursos transversos de que a leitura do texto necessita Assim é possível se pensar na retomada do discurso machista na fala do entrevistado Ao voltar e dizer que as coisas estão de boa ele dá a palavra final sobre a questão ocorrida entre eles fazendose perceber que a voz masculina se sobressaiu no cenário da violência Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 267 conjugal operando ali como a voz da razão tão comum aos discursos de uma formação discursiva machista que não exclui a mulher e que pode estar em toda parte em qualquer gênero Ainda quanto à agressão física à excompanheira Pedro nega com ênfase que a tenha agredido no rosto eu não bati na cara jamais eu ia fazer isso O efeito de bater no rosto então parece ser diferente do de bater em outras partes do corpo Jaime Souza 2007 diz que o rosto tem uma importância simbólica significativa no contexto das violências conjugais pois historicamente esteve associado à vergonha e à honra Para o autor ser honrado tradicionalmente significa ter vergonha na cara portanto qualquer dano ao rosto representa uma humilhação para aquele que o suporta bem como o respeito à honra implica também necessariamente respeito ao rosto SOUZA 2007 p 125 Nesse sentido quando o entrevistado diz que jamais ia fazer isso referindose a bater no rosto da excompanheira ele produz efeito de homem honrado que respeita a mulher que não a humilharia mesmo que ela estivesse embriagada Nessa fala ele alega não ser um agressor tal qual o cenário da violência doméstica o define e por isso mereceria que fosse dado crédito a sua versão dos fatos Esse cenário de homem honrado se fortalece para Pedro quando a decisão judicial do processo a que ele respondeu foi de improcedência pois reflete a credibilidade que foi conferida a ele e desconsiderou a versão da mulhervítima que ficou silenciada Quanto ao entrevistado Júlio a situação era referente a uma denúncia à polícia cujo teor do boletim de ocorrência registrado pela excompanheira dele informava que eles viviam juntos há onze anos e já tinham se separado algumas vezes por conta de agressões físicas por parte dele mas que depois reatavam o relacionamento A motivação para o registro da ocorrência teria sido o anúncio dela de que outra separação aconteceria em função de que a convivência estaria insuportável Não tendo aceitado a decisão dela de separarse novamente ele a teria agredido fisicamente na presença dos filhos Esse cenário alegado por ela depois na fase judicial acabou sendo desfeito ou desmentido revertendo o processo contra ela por ter sido considerado uma falsa alegação Questionado sobre os fatos descritos acima Júlio alegou que não tinham se dado da maneira como estavam descritos no boletim de ocorrência Na versão dele se deram assim Houve uma discussão bem pesada Houve empurrões e ela tava e sempre que ela ficava nervosa ela saía ela perde totalmente a noção da realidade entende E nessas discussões ela se atirava coisas ela quebrava coisas se um filho tivesse na frente ela passava por cima Por exemplo se a filha tivesse no chão na frente a hora que ela saía naquele rompante talvez de nervosismo ela passava por cima não tava nem aí Simples reação de nervosismo de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 268 distúrbio Nós brigamos quatro horas da tarde a polícia teve no local viu que eu tava machucado eu mostrei ela não mostrou machucado nenhum porque não tinha Oito horas da noite ela vindo prá casa da mãe dela alguém pegou ela e trouxe até a delegacia para registrar esse BO Os policial tiveram lá na hora e viram que um homem do meu tamanho se eu tivesse espancado a nome com certeza ela não taria bem né Os policial chegaram entraram nós conversamos por um bom tempo eles pediram prá ela se retirar aí os meus dois filhos tavam no meu colo um tava aqui grudado e outro aqui no meu colo Ele me explicou tudo vamos lá fazer um BO que amanhã se ela ir na Lei vai ser a palavra dela contra a tua Eu disse pro policial assim eu não vou na Lei porque tem muitas coisas pra ser resolvidas na Lei e não precisa duas pessoas que se discutiram chamar a polícia envolver um mundo de gente sendo que tem outras coisas importantes que aquilo ali podia ser resolvido com uma simples conversa Uma discussão interna de um casal que podia ser resolvido ali Júlio8 O entrevistado inicia o relato descrevendo a excompanheira como uma pessoa descontrolada o que é corroborado pelas construções linguísticas nervosa perde a noção da realidade atirava coisas quebravas coisas nervosismos e distúrbio Todos esses vocábulos e expressões desenham um cenário em que ela a companheira é louca e causam efeito de histeria de loucura ou de insanidade Talvez essa descrição fosse necessária para se encaixar no contexto maior em que se pode vêla denunciando uma agressão física que não tenha acontecido atitude que acabou sendo penalizada com a reversão do processo contra ela Há de se considerar porém que dessa loucura ele também fazia parte Ao admitir que houve uma discussão pesada o entrevistado diz que participou do cenário visto que não há discussão de uma só pessoa O termo pesada indica que a situação foi séria difícil de sustentar talvez Possivelmente tenha havido agressões verbais típicas dos cenários de brigas conjugais em que uma série de ofensas são proferidas pelos companheiros na presença dos filhos o que torna a cena pesada para as crianças assistirem Mas o pesada pode indicar também a ocorrência de violência física significando o peso da mão dele eou dela durante as agressões ou nos empurrões que ele alega terem ocorrido O advérbio de frequência empregado para dizer que ela sempre ficava nervosa e perdia a noção da realidade sugere a regularidade das brigas do casal Além disso o número de vezes que ele alegou em outra parte da entrevista já ter se separado dela e retomado a relação também configura essa frequência Sempre ela que resolveu sair de casa que foi mais ou menos umas trinta vezes no nosso relacionamento prá mais não é exagero não é isso aí mesmo Júlio 8 Trecho da entrevista realizada em 14 de outubro de 2014 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 269 O término do relacionamento pode indicar a decisão de apenas um dos dois sujeitos envolvidos na relação mas a decisão de reatar e voltar a conviver indica que os dois aceitaram Isso significa que se de fato eles se separaram tantas vezes ele também partilhava desse desequilíbrio que ele atribui a ela pois se permitia viver naquela turbulência de brigas e separações Na reprodução da fala de Júlio acima apresentada é possível visualizar algumas imagens que o entrevistado constrói ao falar de si e da excompanheira Quando ele diz Aí os meus dois filhos tavam no meu colo um tava aqui grudado e outro aqui no meu colo a imagem que parece se destacar é dos filhos funcionando com um escudo para protegêlo da polícia caso houvesse necessidade de uma intervenção policial no sentido de leválo detido por exemplo A visualização de duas crianças grudadas ao pai possivelmente com aparência de espanto pela chegada da viatura policial que via de regra costuma causar desconforto tem efeito de tentativa de sensibilizar aquela guarnição e contribuir para a caracterização da mulher como causadora do conflito Para Pêcheux 2014 as formações imaginárias resultam de processos discursivos anteriores e se manifestam através de antecipações de relações de força e sentido Por meio delas o enunciador projeta uma representação imaginária do enunciatário Acima na fala do entrevistado podese perceber a construção da imagem do atendimento policial a que ele foi submetido e supor a tentativa dele de projetar ao seu interlocutor os policiais primeiro e depois a mim durante a entrevista a imagem de um jádito possivelmente bem conhecido Ainda para fortalecer esse sentido de sensibilização sobre a situação vivida por ele o entrevistado atribuiu juízo de valor ao cenário descrito Ele o policial viu que eu tava machucado ele viu que os meus filhos estavam no meu colo e não no dela Porque geralmente quando eu vou lá e espanco a mãe os filhos vão lá socorrer a mãe né Eles nunca vêm pro colo do pai se o pai é um bicho entendesse Júlio Observase que o entrevistado traz para a sua fala uma alegação sobre o comportamento de filhos de casais em que há violência doméstica Ainda que o cenário descrito por ele seja mesmo possível de que os filhos prefiram ficar com quem está mais frágil na situação também há outro efeito de sentido que circula nessa cena o de que as crianças assim se comportam para que não ocorra com elas o que aconteceu com a mãe ou com o pai que tenha sido agredido Ou seja não há como afirmar que se as crianças estão ao lado do pai é porque a mãe é a causadora da violência Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 270 Em função da alegação de Júlio de que não havia motivos para acionar a polícia ele foi questionado sobre o tipo de situação em que ele entendia que seria necessário chamar a polícia ou fazer denúncia à justiça A resposta dele foi Quando realmente há agressões dizer assim uma pessoa agrediu a outra agrediu Isso indica que tanto para Júlio quanto para Pedro a violência doméstica se efetiva no formato de agressões físicas possivelmente aquelas que deixam marcas Júlio admitiu ter havido uma discussão pesada e empurrões mas não considera isso como violência e entende que a violência doméstica não requer intervenção da políciajustiça Pedro admitiu ter dado uns tapas na excompanheira e também não entendia que se tratava de agressão Questionado sobre a reação que teve ao saber que responderia judicialmente por violência doméstica e se a notícia o teria incomodado preocupado ou causado sentimento de raiva Júlio assim se manifestou Não não fiquei com raiva não fiquei Tanto que depois disso nós dois voltamos Uma discussão de um casal ela pode ficar dentro de uma casa ela não precisa sair Loucuras certo Se por exemplo a minha mulher me chamar de feio eu não vou sair espalhando pra vizinhança não eu posso guardar pra mim tentar dizer pra ela não mas eu não sou feio Então eu não ia me espantar de uma coisa eu tinha certeza que eu não agredi a nome pra ela vim na lei entendesse Júlio Dessa fala de Júlio ecoa um dito popular sobre as brigas entre casais que circunda o imaginário social e justifica a fala anterior dele sobre a nãonecessidade da denúncia da briga deles à polícia roupa suja se lava em casa Além disso a menção à loucura sugere que o estilo de vida daquele casal era esse de descontrole bem como reforça a ideia inicial que ele fez sobre a excompanheira de desequilibrada Também nessa fala percebese a lei funcionando como a metáfora de um lugar para onde o entrevistado diz que a excompanheira foi procurar ajuda O ir na lei implica pensar que uma atitude precisava ser tomada e diante do cenário em que eles estavam inseridos doméstico familiar conjugalidade acionar a polícia e recorrer à lei específica sobre as questões de violência doméstica parecia ser o ideal a ser feito Ocorre porém que o entrevistado desconfigura essa necessidade de recorrer à lei fazendo uma analogia da situação ocorrida entre eles que simplifica e banaliza o contexto das brigas entre marido e mulher Vêse ainda que além de banalizar a questão o entrevistado sugere que o assunto não deva ser tornado público de forma que se possa argumentar no ambiente privado sobre a questão e tentar convencer o cônjuge de que a situação não é como eleela entende Essa analogia criada pelo entrevistado reforça o dito popular mencionado antes roupa suja se lava em casa que parece ser algo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 271 naturalizado para o entrevistado e desqualifica a violência conjugal como uma questão séria e que de fato requeria a intervenção estatal Perguntado se já conhecia a Lei Maria da Penha quando foi procurado pela equipe de policiais da delegacia para ser interrogado sobre os fatos que tinham sido denunciados Júlio alegou que sim Já conhecia a Lei Maria da Penha Eu tinha ouvido essa questão de por exemplo o homem não pode encostar na mulher né Porque por exemplo se ele encostou é agressão mas se a mulher encostar no homem não é agressão certo Porque o homem é mais forte concordei até aí Mas tem homens que não usam a força então isso teria que ser visto né Júlio A manifestação do entrevistado no trecho acima exposto tem efeito de contrariedade sobre a lei É possível perceber na fala dele a compreensão de senso comum de que a lei só se refere à agressão ali entendida como física provavelmente Além disso o entrevistado aborda a questão das mulheres que agridem os parceiros e que a lei9 não considera como agressão Também na fala dele ecoa o interdiscurso sobre as relações de poder exercidas por meio da força masculina para com a feminina 3 EQUÍVOCOS QUE O DISCURSO REVELA Quanto ao aspecto dos equívocos uma reflexão sobre os sentidos que pode ser feita sobre a sequência discursiva em que Pedro diz ela cansou de me abandonar apresentada anteriormente é de que ela o abandonou muitas vezes Porém retomando os estudos de AuthierRevuz 1990 em que a autora se refere aos atos falhos amparada na Psicanálise alegando a heterogeneidade dos discursos já que sob as palavras outras palavras são ditas percebese uma ressonância não intencional na estrutura material da língua Quando o entrevistado diz que ela cansou de abandonálo é porque ela sempre fazia aquilo mas se ela sempre fazia ela não cansou pois se tivesse cansado teria parado o que não ocorreu O que fica reverberando nesse discurso é que quem cansou foi ele e por isso decidiu sair Vêse então que o discurso o denuncia ou ao menos deixa marcas do que ele quer apagar estabelecendo uma relação tensa entre o dito que ela cansou de abandonar e o não dito ele que cansou e a abandonou Essa falha rompe a suposta homogeneidade do discurso já que para Authier Revuz 1990 é na fala normal que o inconsciente insiste e trabalha 9 A agressão de mulheres contra homens também é penalizada mas não no contexto da Lei Maria da Penha para a qual a pergunta era direcionada Quando denunciadas por violência doméstica as mulheres respondem criminalmente ante os artigos correspondentes do Código Penal brasileiro no rito instituído pela Lei 90991995 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 272 Adiante na entrevista quando Pedro foi questionado sobre entender ter sido justo responder a um processo judicial ele assim se manifestou Não precisava do processo eu simplesmente fui prá lá por uma coisa eu fui prá lá eu perdi serviço por causa dela foi errado sim Se a pessoa fez errado a pessoa tem que ir lá e eu não fiz errado porque se fizesse Ela me machucou bastante Pedro Nessa fala do entrevistado vêse o emprego do verbo machucar referindose a ele No início da entrevista ele disse que ela o teria arranhado então supõese que esse machucar usado agora se refere aos arranhões que ela teria feito nele Isso confirma a suspeita inicial de que para ele o verbo machucar remete a uma lesão aparente Ou seja ela o machucou porque deixou marcas de arranhões ele não a machucou porque a agrediu com tapas que não deixam marcas ou seria com socos Mas a expressão ela me machucou bastante promove outro sentido com efeito de mágoa dele com ela sobre toda a situação vivida pelo casal10 Essa mágoa pode ser decorrente de ele ter sido abandonado várias vezes por ela ter preferido uma vida mais difícil com outra pessoa a permanecer com ele por ela ter deixado os filhos aos cuidados dele e agora ele estar sendo pai e mãe como ele mencionou e por ela ter se deixado influenciar por outras pessoas para denunciálo Esse cenário configura o quanto ela o teria machucado Segundo Pêcheux 2014 o sentido de uma palavra de uma expressão de uma proposição não está em si mesmo colado ao significante mas é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sóciohistórico no qual as palavras expressões e proposições são reproduzidas Ainda segundo o autor todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornarse outro diferente de si mesmo se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para outro PÊCHEUX 2008 p 53 Assim quando o entrevistado diz ela me arranhou todinho me arranhou todo todo todo citado anteriormente esse arranhar desliza do seu significado de marcar o corpo com as unhas para marcar o eu desse entrevistado Não seria possível arranhálo todo se a ideia fosse de que ela o teria arranhado com as unhas O efeito de sentido gerado ali é de machucar a alma que dói e ecoa com a repetição fazendo doer mais e mais o que pode ser percebido pelas expressões todo todo todo 10 Por ocasião da entrevista Pedro contou que a excompanheira estava vivendo com outra pessoa que teria envolvimento com tráfico de drogas Ela teria deixado os filhos com Pedro e estaria vivendo em condições precárias também por conta da dependência de drogas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 273 Questionado sobre o que teria modificado em sua vida depois de ter sido denunciado à justiça Pedro assim se manifesta Eu gastei com advogado prá fazer a minha defesa lá e sobre as crianças também entendeu Paguei advogado gastei Hoje não tá fácil prá se equilibrar A única coisa que mudou é que é o seguinte eu não tô conseguindo me aprumar mais eu tô trabalhando eu tô me virando com os meus guris lá É roupa comida eu tô sozinho eu sou pai e mãe entendeu Pedro Nas palavras dele percebese certa ênfase nos gastos financeiros que teve com o processo porém é possível se cogitar que há ali também uma tentativa de mascarar a falta que a companheira faz em casa Pode se suscitar ainda que o efeito de sentido seja de mascarar a própria ressignificação daquela posição sujeitomarido construída na formação ideológica do poder patriarcal familiar em que homens casados e com filhos tinham mulheres em casa para manter a ordem a limpeza a educação e os cuidados para com filhos e marido Uma especulação possível aqui seria de que essa falta de identificação da posição sujeitomarido nos moldes idealizados para as relações conjugais do modelo patriarcal se deva ao fato de que agora esse entrevistadosujeito esteja fazendo um movimento de reformulação dessa posiçãosujeito De acordo com Pêcheux 2014 p 161 no espaço de reformulação paráfrase se constitui a ilusão necessária de uma intersubjetividade já que o discurso de cada um reproduz o discurso do outro cada um é o espelho dos outros Pensando assim refirome a essa posiçãosujeito agressor estar já afinada discursivamente com a posição sujeitovítima também construída sóciohistoricamente como a parte submissa ou que se imaginava submissa na relação A frase eu não tô conseguindo me aprumar mais não corresponde à expressão a única coisa que mudou pois em eu não tô conseguindo me aprumar mais há muitas coisas envolvidas O verbo aprumar denota ideia de colocar no eixo endireitar o que está torto Talvez ele esteja se referindo à vida de forma geral à indecisão sobre aceitála de volta ou não uma vez que ele diz que ela continua procurando por ele Também se pode especular sobre a falta de compreensão do porquê ela teria preferido outra vida já que a vida que ele oferecia a ela no ponto de vista dele era boa Além disso é possível que ele também estivesse se referindo ao aspecto financeiro do prejuízo que teve com a denúncia dela que o fez gastar com advogado e da dificuldade que estaria tendo para equilibrar as contas Mas há no discurso dele uma contradição entre o que ele tenta dizer e o que ele efetivamente diz ou seja se por um lado ele se apresenta como senhor do seu dizer dentro de um discurso ilusório da estabilidade por outro não consegue mais se aprumar destacando o discurso que aparece na falha Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 274 O discurso de bom pai que o entrevistado quer deixar revelar sobre si também fica evidente no trecho acima Pedro se diz ser pai e ser mãe e estar se virando para isso indicando o sacrifício que tem sido ocupar essas duas funções Ele ostenta a posição pai e mãe e isso lhe custa caro tanto que ele menciona os gastos financeiros De fato ser esse eu ideal que ele quer demonstrar ser custa caro As manifestações de Pedro permitem a percepção de que o cenário descrito por ele inverte o discurso regular da violência contra a mulher em que os homens ocupam papel de agressor e as mulheres de vítima e revela um cenário em que as mulheres desempenham a função de protagonistas do cenário da violência desconstruindo a imagem da mulher vítima em potencial CONSIDERAÇÕES FINAIS O enfrentamento de situações de violência doméstica em que mulheres se encontram na situação de vítimas no cenário da justiça criminal desde 2006 tem sido feito basicamente pela aplicação da Lei 113402006 nacionalmente conhecida como Lei Maria da Penha A partir de denúncias via de regra das próprias mulheres a violência ocorrida passa a ser apresentada linguisticamente possibilitando que efeitos de sentidos sobre a violência doméstica e a aplicação da lei possam ser discutidos e interpretados Neste texto abordouse entrevistas com dois homens que tinham sido denunciados por suas companheiras por situações de violência doméstica conjugal A análise discursiva realizada apontou a negativa da existência de violência por parte deles e a preocupação em atribuir às companheiras a responsabilidade pelos conflitos do casal Os discursos manifestados por Pedro e Júlio apontaram uma memória discursiva sobre a banalização da violência doméstica que desqualifica a violência conjugal como uma questão séria e que de fato requeira a intervenção estatal Mas esses discursos também apontam para uma tendência à descontinuidade do discurso do homem que domina a mulher com a qual mantém a relação de conjugalidade por meio de violência e agressividade promovendo talvez certa cisão nessa ideologia patriarcal que regia e ainda rege essas relações Uma observação específica sobre as situações envolvendo Júlio e Pedro é a alegação de ambos de que as denúncias das excompanheiras tinham sido estimuladas por outras pessoas não tendo sido iniciativa delas Um interdiscurso que opera aqui é do lema já se mete a colher em briga de marido e mulher que tem sido empregado por grupos sociais que militam no enfrentamento das violências contra mulheres no Brasil desde os anos 80 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 275 Nas duas entrevistas analisadas também se observou a disposição de Pedro e Júlio para participarem do estudo Os discursos que circundaram essas duas entrevistas permitem a constatação de uma ressignificação da posiçãosujeito ocupada por esses homens Talvez essa ressignificação aqui entendida como uma ruptura desestabilização da posição sujeitomarido bom que eles tentaram demonstrar que eram é que tenha estimulado a participação deles Havia nos discursos dos participantes certo interesse de anunciar que já não ocupavam mais só a posição sujeitomaridoagressor mas também já se encaixavam na posição sujeito maridovítima e como tal também precisavam enunciar Assim a decisão desses dois homens agressores de participarem desse estudo parece ter efeito de ser portavoz de outros homens e anunciar nas relações conjugais as agressões não são sempre praticadas pelos homens as mulheres também agridem os companheiros Elas não são sempre só vítimas e nós nem sempre só agressores Ainda assim o processo discursivo aqui analisado possibilitou a observação de práticas discursivas que tendiam a invalidar os discursos das mulheres em situação de violência e validar o dos homens o que indica que os sentidos reproduzidos nessas falas ainda são bastante impregnados por relações ideológicas e de poder referente às questões de gênero que mantém a desigualdade entre homens e mulheres em especial no contexto doméstico e conjugal REFERÊNCIAS AUTHIERRÉVUZ Jacqueline Heterogeneidades Enunciativas Trad C M Cruz e J W Geraldi Cadernos de Estudos Linguísticos Campinas SP n 19 p 2541 1990 BRANDÃO Helena H Nagamine Introdução à análise do discurso Campinas SP UNICAMP 2004 BRASIL Código Penal 15ed São Paulo Saraiva 2000 BRASIL Lei Maria da Penha Lei Federal n11340 de 07 de gosto de 2006 Coíbe a violência doméstica e familiar contra mulher Brasília Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres Ministério Justiça 2006 FERREIRA Maria Cristina Leandro Análise do discurso e suas interfaces o lugar do sujeito na trama do discurso Organon Porto Alegre n 48 p1734 2010 Disponível em httpseerufrgsbrorganonarticleview2863617316 Acesso em 20 ago 2019 GREGOLIN Maria do Rosário Valencise A Análise do Discurso conceitos e aplicações Alfa São Paulo v 39 p 1321 1995 MAINGUENEAU Dominique As cenas da enunciação São Paulo Parábola 2008 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 276 MUSSALIM Fernanda Análise do Discurso In MUSSALIM Fernanda BENTES Anna Christina orgs Introdução à lingüística domínios e fronteiras v 2 3 ed São Paulo Cortez 2003 p 101142 NUNESSCARDUELI Márcia Cristiane Lei Maria da Penha e violência conjugal análise discursiva dos efeitos de sentido nas instituições e nos sujeitos envolvidos 2016 180 f Tese Doutorado Programa de PósGraduação em Ciências da Linguagem Universidade do Sul de Santa Catarina Tubarão 2015 Disponível em httpswwwriuniunisulbrbitstreamhandle12345494110921Marciapdfsequence1is Allowed Acesso em 20 ago 2019 ORLANDI Eni P Análise de Discurso Princípios e Procedimentos 9 ed Campinas SP Pontes 2010 PÊCHEUX Michael FUCHS C A A propósito da análise automática do discurso atualização e perspectivas In GADET Françoise HAK Tony orgs Por uma análise automática do discurso uma introdução à obra de Michel Pêcheux Trad Bethania S Mariani et al Campinas editora da UNICAMP 1997 p 163252 PÊCHEUX Michael Papel da Memória In ACHARD Pierre et al Papel da memória Trad José Horta Nunes 2 ed Campinas São Paulo Pontes 1999 p 4958 PÊCHEUX Michael O Discurso estrutura ou acontecimento 5 ed Campinas SP Pontes 2008 PÊCHEUX Michael Semântica e Discurso uma crítica à afirmação do óbvio Trad Eni Puccineli Orlandi et ali 5 ed Campinas Editora da UNICAMP 2014 POSSENTI Sirio Os limites do discurso 2 ed Curitiba Criar 2004 RAUEN Fábio José Roteiros de investigação científica os primeiros passos da pesquisa científica desde a concepção até a produção e a apresentação Palhoça Editora Unisul 2015 SOUZA Jaime Luiz Cunha Violência otélica a agressão masculina nas relações conjugais 2007 Tese Doutorado em Ciências Sociais Programa de PósGraduação em Ciências Sociais Universidade Federal do Pará Belém 2007 Disponível em httprepositorioufpabrjspuibitstream201130341TeseViolenciaOtelicaAgressaopdf Acesso em 20 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 277 UM OLHAR PARA O AUTOR DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA PERSPECTIVA DA REDUÇÃO DE DANOS Vilma Pimentel Siqueira 1 RESUMO O presente artigo visa trazer à discussão o conceito de Violência Doméstica com base nos atendimentos de autores de violência doméstica oriundos das audiências da Maria da Penha de uma cidade do Rio Grande do Sul Para tanto a proposta deste estudo é analisar a percepção de homens encaminhados dessas audiências para atendimento psicossocial sobre situações de violência doméstica Este estudo caracterizase como uma pesquisa exploratória Para a coleta de dados aplicouse um questionário com perguntas objetivas e fechadas a 20 homens que participavam do atendimento psicossocial junto ao grupo de Redução de Danos no município em questão no período de dezembro de 2017 a junho de 2018 Para a análise dos dados utilizou se da estatística descritiva Dezessete 17 questionários retornaram respondidos evidenciou se que 8824 dos pesquisados têm acima de 36 anos grande parte presenciou atos de violência na infância e 58 10 homens admitiram que praticaram alguma violência contra sua parceira sendo que 80 8 destes praticaram violência física eou verbal Quanto às atividades do atendimento psicossocial 4705 8 consideraramnas muito interessantes e que aprenderam muito e 4117 7 consideraram interessante e que aprenderam algumas coisas Concluise que com os atendimentos a semente foi plantada nesses homens para que possam refletir sobre suas ações se arrepender de seus atos de violência e não mais cometêlos Palavraschave Violência Doméstica Lei Maria da Penha Atendimento Psicossocial Autor de Violência INTRODUÇÃO As políticas públicas na atualidade têm se convertido a atendimentos a mulheres vítimas de violência Isso tem ocorrido em virtude da seriedade e da gravidade de situações de violências que as mulheres têm vivido em suas relações amorosas que segundo Guimarães e Pedroza 2015 vêm ganhando destaque nos últimos 50 anos De acordo com a Organização PanAmericana da Saúde OPAS 2017 aproximadamente uma em cada três mulheres 35 do mundo inteiro já sofreram violência física eou sexual Sendo que a maior parte desses casos de violência é cometida pelos companheiros das vítimas Para Silva e Oliveira 2015 a forma mais prevalente de violência contra a mulher é a cometida pelo seu parceiro no interior do ambiente doméstico Apesar desse 1 Assistente Social Especialista em Gestão Pública pela Universidade Federal de Santa Maria UFSM em 2018 Especialista em Gestão Social Políticas Públicas Redes e Defesa de Direitos pela Universidade Norte do Paraná UNOPAR Assistente Social do Centro de Referência de Assistência Social CREAS da cidade de Alegrete RS Presidente do Conselho Municipal de Assistência Social CMAS de Alegrete RS Email vilsiqueirahotmailcom Lattes httplattescnpqbr8246852342747510 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 278 contexto o atendimento aos homens que cometem atos de violência ainda é praticamente inexistente Dessa forma o presente artigo visa trazer à discussão o conceito de violência doméstica na realidade dos atendimentos aos autores homens desse tipo de violência recebidos no Centro de Atenção Psicossocial CAPS em uma cidade da fronteira oeste do Rio Grande do Sul A partir do momento que a violência contra a mulher começa a configurar como problema social e de saúde pública no Brasil as articulações dos movimentos sociais e de mulheres passam a ser vistos como fundamentais para as ações e políticas sociais destinadas ao enfrentamento desse tipo de violência e para o fortalecimento e criação de políticas públicas específicas para atendimento às mulheres vítimas de violência A proposta deste estudo contudo é analisar a percepção de homens oriundos de encaminhamentos das audiências da lei Maria da Penha de um município do Rio Grande do Sul sobre as situações de violência doméstica atendidas no CAPS do referido município já que pouco se observam articulações voltadas ao atendimento do causador dessa violência Portanto esta pesquisa tem caráter reflexivo objetivando ampliar as concepções do senso comum sobre o trabalho voltado ao homem autor de violência doméstica e familiar a fim de tentar reduzir essa violência Também se propõe a combater o preconceito existente em relação ao atendimento ao autor da violência 1 A IMPORTÂNCIA DA DISCUSSÃO A RESPEITO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA No Brasil o conceito da violência doméstica se baseia especialmente em dois importantes documentos a Convenção Belém do Pará BRASIL 1996 e a Lei 11340 BRASIL 2006 A Lei 113402006 mais conhecida como Lei Maria da Penha criou mecanismos para intimidar prevenir e punir qualquer tipo de violência doméstica e familiar contra a mulher BRASIL 2006 A criação dessa lei estimulou a consolidação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres Essa Política consiste em um acordo entre os governos federal estaduais e municipais para planejar ações para prevenir e combater a violência contra mulheres e também para atender esse público oferecendolhe diversos serviços de saúde casasabrigo delegacias da mulher entre outros BRASIL 2011a As discussões aqui apresentadas sobre violência doméstica pretendem nortear reflexões em torno das complexas realidades que se apresentam nessa temática Apesar de haver pouco espaço para discussão a respeito dos cuidados aos autores de violência há serviços voltados ao Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 279 atendimento deste público como o Serviço de Responsabilização e Educação do Agressor2 BRASIL 2011b que embora não constitua um espaço de tratamento faz um acompanhamento dos homens processados criminalmente apenados ou não com base na Lei Maria da Penha Campanhas como o Laço Branco uma iniciativa de homens contra a violência dirigida às mulheres e campanhas ou projetos desenvolvidos pelo Centro de Atendimento à Vítima de Crime CEVIC em datas como 18 de maio Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes 24 de setembro Dia Estadual em Santa Catarina de Mobilização Pelo Fim da Violência e Exploração Sexual InfantoJuvenil e o dia 25 de novembro Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher são apenas alguns exemplos de ações que dão visibilidade à questão e auxiliam a conscientizar os homens e a também mobilizálos a combater a violência contra a mulher Contudo essas ações ainda são insuficientes frente ao universo de violências cometidas em especial a denominada silenciosa Verificase que há falta de informação em relação às formas de violência que ocorrem diariamente contra as mulheres e à existência de serviços para atendimento às vítimas e aos agressores Quando se trata da violência psicológica esse desconhecimento tornase ainda mais grave pois ela não raro culmina na violência física Reconhecer as consequências da violência pode auxiliar o profissional a encontrar saídas para o fortalecimento do usuário da política pela qual foi buscar atendimento Seria desejável também que os organismos financiadores do Estado incentivassem a produção científica no campo do cuidado ao autor de violência doméstica já que se encontra pouca produção com essa temática Devido ao alto índice de violência doméstica existente hoje no país buscamos incitar a reflexão dos autores de violência doméstica e familiar e a responsabilizaremse por suas ações de violência a ampliar as concepções do senso comum sobre o trabalho voltado ao homem autor de violência doméstica e familiar a fim de combater o preconceito existente em relação a este trabalho Assim não só é necessário fazer com que a mulher vítima de violência doméstica conheça e busque seus direitos como também é preciso que o homem autor desse tipo de 2 Esse serviço tem o objetivo de acompanhar as penas e as decisões do juízo competente quanto aos autores de violência contra a mulher O referido serviço é de extrema importância no enfrentamento a esse tipo de violência pois nele são realizadas atividades educativas e pedagógicas que contribuem para conscientizar os agressores sobre a violência de gênero como uma violação dos direitos humanos das mulheres e para responsabilizálos pela violência cometida A equipe multidisciplinar composta por profissionais de Ciências Sociais Pedagogia Psicologia ou Serviço Social que atua nesse serviço realiza as atividades de maneira interdisciplinar orientando o autor de violência a partir de uma abordagem responsabilizante e de uma perspectiva feminista de gênero Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 280 violência tenha atendimento adequado e eficaz para que não volte a cometer atos de violência contra a sua companheira 11 Os diferentes tipos de violência O Ministério da Saúde MS BRASIL 2001 divide a violência doméstica em violência física violência sexual negligência e violência psicológica Contudo embora o MS faça essa diferenciação estes tipos de violência se misturam e se entrelaçam de diferentes maneiras Além disso há também a violência patrimonial que está mencionada na lei 113402006 como uma das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher e mais especificamente no Artigo 7 Inciso IV é caracterizada como qualquer conduta que retenha subtraia destrua parcial ou totalmente objetos instrumentos de trabalho documentos pessoais bens valores e direitos ou recursos econômicos BRASIL 2006 Contudo aqui nos interessa avaliar de que maneira quando se investiga a violência doméstica a violência psicológica e a violência física também se articulam Neste artigo entendese por violência doméstica contra a mulher toda e qualquer violência cometida por um homem contra a mulher com a qual tenha ou tivera relacionamento afetivosexual De acordo com Silva Coelho e Caponi 2007 a violência geralmente tem como cenário uma relação que embora desfeita deixou questões mal resolvidas Muitas vezes vínculos afetivos permanecem mas cercados de mágoas ressentimentos ou dependência psicológica o que impede ou dificulta a vítima de identificar uma situação de violência Dessa forma as maneiras de violência psicológica doméstica ainda segundo os autores nem sempre são facilmente identificadas pela vítima Elas podem estar associadas a fenômenos emocionais geralmente agravados por outros fatores ou outras situações de crise como o uso de álcool ou luto familiar por exemplo Por isso muitas vezes são difíceis de serem reconhecidas como violências psicológicas Conforme Azevedo e Guerra 2001 p 25 O termo violência psicológica doméstica foi cunhado no seio da literatura feminista como parte da luta das mulheres para tornar pública a violência cotidianamente sofrida por elas na vida familiar privada O movimento políticosocial que pela primeira vez chamou a atenção para o fenômeno da violência contra a mulher praticada por seu parceiro iniciouse em 1971 na Inglaterra tendo sido seu marco fundamental a criação da primeira CASA ABRIGO para mulheres espancadas iniciativa essa que se espalhou por toda a Europa e Estados Unidos meados da década de 1970 alcançando o Brasil na década de 1980 Para a Organização Mundial de Saúde OMS 1998 p 07 a violência psicológica Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 281 inclui maustratos repetidos verbalmente assédio prisão e privação de recursos materiais financeiros e pessoais Para algumas mulheres insultos incessantes e a tirania que constituem abuso emocional talvez são mais dolorosos que ataques físicos porque eles efetivamente minam a segurança e a confiança da mulher em si mesma Um único episódio de violência física pode intensificar grandemente o significado e impacto do abuso emocional As mulheres consideram que o pior aspecto do abuso não é a violência em si mas a tortura mental e viver com medo e aterrorizada Tradução minha Assim para Silva Coelho e Caponi 2007 este tipo de violência tem que ser avaliado como um grande problema de saúde pública merecendo espaço de discussão ampliação da prevenção além de criação de políticas públicas específicas para o seu enfrentamento Profissionais que atendem às vítimas de violência provavelmente se deparam com situações de violência doméstica que no começo se manifestaram de forma silenciosa e que muitas vezes nem foram percebidas como violência pelas vítimas ou seja estas acabam nem percebendo os primeiros sinais de violência manifestados pelo autor de violência doméstica e que embora não aconteça em todos os casos podem acabar se tornando violência aguda grave Assim a violência começa lenta e silenciosamente progredindo em intensidade e consequências SILVA COELHO CAPONI 2007 Sendo assim este artigo pretende avaliar a percepção de homens que cometeram violência doméstica sobre as situações de violência contra as mulheres já que um dos primeiros desafios diz respeito justamente aos cuidados e atendimento ao autor desse tipo de violência na perspectiva da redução de danos 12 Redução de danos Conforme mencionado anteriormente esta pesquisa foi realizada com 20 homens que participaram do atendimento psicossocial no grupo de Redução de Danos no CAPS de uma cidade do Rio Grande do Sul O Plano Municipal de Redutores de Danos é vinculado à Secretaria de Saúde do município em questão O atendimento a esse grupo tem como base a ideia de conscientizar os homens autores de violência doméstica sobre os danos causados por esta e assim tentar reduzir o índice de homens reincidentes nesse tipo de agressão Segundo a Associação Internacional de Redução de Danos 2010 a Redução de Danos reúne políticas programas e práticas que têm como principal objetivo reduzir as consequências danos do uso de drogas lícitas e ilícitas para a saúde para a sociedade e para a economia sem necessariamente reduzir o seu consumo ou seja a Redução de Danos foca na prevenção às consequências adversas causadas pelo uso de drogas e não na prevenção do uso Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 282 Políticos responsáveis por elaboração de políticas públicas a comunidade em geral pesquisadores e redutores de danos devem conhecer os riscos e consequências associados ao consumo de drogas para buscar o que pode ser feito para reduzir estes riscos e consequências realizando um trabalho conjunto de conscientização dos usuários de drogas ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE REDUÇÃO DE DANOS 2010 Dessa forma as políticas de Redução de Danos podem contribuir para diminuir os casos de reincidência nas ocorrências de agressões às mulheres Isso porque ainda conforme a Associação Internacional de Redução de Danos 2010 p 02 os princípios de redução de danos encorajam o diálogo aberto o processo consultivo e o debate Logo embora originalmente o objetivo da Política de Redução de Danos seja o de reduzir as consequências do uso de drogas a ideia central dessa política pode perfeitamente ser aplicada ao combate à violência doméstica Isso porque o seu foco é prevenir os riscos danos e consequências causados por uma ação negativa neste caso a violência doméstica Também vale destacar que conforme informações disponíveis no site do Centro de Convivência É de Lei3 as estratégias de redução de danos são voltadas a qualquer cidadão Porém as abordagens geralmente são focadas à população em contexto de vulnerabilidade A vulnerabilidade de uma pessoa consoante o Centro de Convivência É de Lei não é restrita a um comportamento ou conduta específicos e sim relacionada não só ao ambiente em que se dá mas também ao contexto sociocultural O aspecto social da vulnerabilidade se refere ao possível acesso às informações e a capacidade de elaborálas e incorporálas no dia a dia isso implica não só na chance de acesso às informações mas também a recursos materiais e às instituições e serviços bem como estar livre de estigmas e preconceitos Para Forteski e Faria 2013 ultimamente o conceito de Redução de Danos e suas estratégias vêm trazendo acirradas discussões entre os que os defendem e os que os combatem Porém o que poucos sabem é que conforme Stronach 2004 no dia a dia todos nós aplicamos os princípios da Redução de Danos como por exemplo na estrada com o uso do cinto de segurança com as barreiras protetoras de zonas de impacto na frente dos carros que diminuem os riscos de ferimentos em caso de acidente Sendo assim a Redução de Danos é um conceito amplo que pode ser aplicado por todos os cidadãos 3 Tratase de uma organização que atua desde o ano de 1998 na promoção redução de riscos e danos sociais e à saúde associados ao uso de drogas Tem o objetivo de promover do ponto de vista ético o cuidado no âmbito das drogas desfazendo preconceitos incentivando uma sociedade garantidora de direitos e que respeite as diferenças Tem como uma de suas missões disseminar estratégias de redução de danos por meio da atuação junto aos usuários de drogas às que trabalham na rede intersetorial à acadêmica e à gestão pública objetivando a incidência política que transforme a realidade de hostilidade a essas pessoas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 283 Dessa forma o atendimento psicossocial no grupo de Redução de Danos no CAPS da cidade pesquisada atua de forma a tentar prevenir a violência contra a mulher Ao encaminhar os autores de violência para atendimentos individuais e em grupos para encontros de caráter reflexivo educativo e de responsabilização da medidasanção busca conscientizar estes homens a não mais repetirem atos de violência contra suas parceiras reduzindo assim as consequências os danos das ações de violência doméstica 2 METODOLOGIA DA PESQUISA O presente estudo caracterizase como uma pesquisa exploratória já que existem poucas pesquisas sobre o assunto visto que o próprio programa de Redução de Danos é recente no Brasil Já para a coleta de dados como instrumento de pesquisa utilizouse um questionário com perguntas objetivas e fechadas a 20 homens que participavam do atendimento psicossocial no grupo de Redução de Danos voltado ao combate à violência doméstica no CAPS de um município da fronteira oeste do Rio Grande do Sul A análise dos dados foi realizada utilizando se a estatística descritiva 21 Lócus da pesquisa A proposta de atender os homens que praticaram atos de violência doméstica iniciouse devido à reflexão dos servidores do Centro de Referência Especializado em Assistência Social CREAS do referido município sobre a experiência em atendimentos às mulheres vítimas de violência que não estavam apresentando o resultado almejado Estas mulheres embora atendidas no CREAS tinham dificuldade de assumir o controle de suas vidas sendo que grande parte delas retornavam aos companheiros e para não relatarem aos assistentes sociais acabavam abandonando o atendimento Conforme informações do CAPS da cidade em questão 80 das mulheres acabavam desistindo de prosseguir com a denúncia ao companheiro autor de violência e retornavam ao convívio com este desistindo da proteção do estado Nesse contexto então surgiu a ideia de tratar os homens autores de violência doméstica almejandose romper o ciclo de violência Assim ao proporcionar a esses homens atendidos no CAPS acesso a políticas públicas buscase com que eles façam uma reflexão quanto à violência que cometem além de proporcionar a reintegração social deste indivíduo de maneira cidadã Logo o atendimento psicossocial aos autores de violência doméstica busca reduzir o índice desse tipo de violência ou seja diante da alta porcentagem de mulheres vítimas que retornavam ao convívio com seu agressor percebeuse necessária uma política pública que buscasse com que estes homens não mais fossem reincidentes na prática de violência contra sua companheira Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 284 Os atendimentos aos autores de violência doméstica iniciaram com a participação de 32 homens sendo que destes 20 permaneceram participando das atividades ao longo dos meses os outros 12 desistiram de frequentar 7 abandonaram os encontros sem esclarecer os motivos e 5 acabaram mudando de cidade o que inviabilizou a participação deles nos encontros Logo a população pesquisada é formada por um grupo de 20 homens que participaram do atendimento psicossocial no grupo de Redução de Danos no CAPS de um município do Rio Grande do Sul no período de dezembro de 2017 a junho de 2018 A equipe de profissionais que atuava no atendimento a esse grupo era composta por uma assistente social uma psicóloga e 2 profissionais especialistas na política de Redução de Danos Os encontros eram semanais com duração de cerca de 1h30 cada um e ocorriam no turno noturno Vale destacar que a proposta da existência deste grupo é a redução do índice de reincidência destes homens em novos processos referentes à Lei Maria da Penha 3 RESULTADOS E DISCUSSÕES Primeiramente analisaramse dados gerais referentes à temática da violência doméstica Posteriormente realizouse a análise das respostas dos questionários que foram aplicados aos homens que participaram do atendimento psicossocial no grupo de Redução de Danos no CAPS da cidade pesquisada 31 Análise de dados gerais referentes à violência doméstica Primeiramente são apresentados os dados quanto ao número de registros de ocorrências de violência doméstica no período de 4 anos na delegacia civil do referido município Também é demonstrado o registro do número de audiências judiciais de violência doméstica Lei Maria da Penha na Vara de Família do município no período de 3 anos demonstrados na tabela 1 Tabela 1 Registro de boletins de ocorrências de violência doméstica e registro de audiências judiciais de violência doméstica Ano Boletins de Ocorrências Audiências 2015 470 2016 428 1212 2017 433 1028 2018 231 460 Fonte Delegacia Civil e Vara de Família do município no qual foi realizada a presente pesquisa Legenda Não foram obtidos dados do ano de 2015 pois a juíza da vara de família assumiu o cargo em dezembro de 2015 não tendo os números de audiências anteriores a sua posse4 Até a data de 30 de junho de 2018 4 A autora da presente pesquisa não conseguiu contato com o Juiz que atuava anteriormente ao ano de 2015 na Vara de Família do município em questão Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 285 Além disso buscouse junto ao CREAS do município o registro do número de atendimentos a mulheres vítimas de violência doméstica e também o registro de atendimentos aos homens autores de violência doméstica mas essa instituição informou que não poderiam passar estas informações Analisandose a tabela 1 percebese que o número de audiências judiciais de violência doméstica Lei Maria da Penha nos anos de 2016 e 2017 foi mais do que o dobro de registros de boletins de ocorrência no mesmo período e no ano de 2018 foi praticamente o dobro ou seja a cada boletim de ocorrência são realizadas em média duas audiências Outro dado relevante é o de que o número de boletins de ocorrência registrados nos 4 anos analisados pouco oscilou Já o número de audiências de violência doméstica vem apresentando queda de acordo com os dados dos últimos 3 anos Destacase a importância da atuação do Poder Judiciário na efetividade da aplicação da Lei Maria da Penha pois segundo Martins Cerqueira e Matos 2015 as medidas protetivas que configuram uma das inovações dessa lei dependem da concessão dos juízes sendo uma das principais ferramentas de prevenção de agressões mais graves e até mesmo de homicídios Apesar desses resultados não apresentarem grande crescimento no índice de violência doméstica no município em nível nacional a violência contra a mulher tem demonstrado um aumento cada vez mais preocupante Dados revelados pelo Ligue 180 serviço oferecido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres SPM evidenciaram que foram realizados 749024 atendimentos de relatos de violência contra a mulher no ano de 2015 no país contra 485105 realizados em 2014 No Rio Grande do Sul em 2014 foram mais de 58 atendimentos de violência a cada 100 mil mulheres Porém o estado com maior índice de violência contra a mulher foi o Distrito Federal com o dobro de casos do Rio Grande do sul 136 a cada 100 mil mulheres BRASIL 2016 Em relação aos registros de ocorrência de violência contra a mulher no Rio Grande do Sul em 2016 foram registradas 1914 ocorrências a cada 100 mil mulheres Comparando com outros estados brasileiros o estado gaúcho é o 2º com maior índice desse tipo de registro ficando atrás somente do estado do Amapá com 3090 boletins a cada 100 mil mulheres BRASIL 2016 Relatório do Poder Judiciário da aplicação da Lei da Maria da Penha que traz os resultados de um mapeamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça CNJ 2017 no período de 2016 com base nos dados registrados pelos tribunais de justiça estaduais revelou que no estado do Rio Grande do Sul foram abertos 54833 novos inquéritos policiais quanto à Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 286 violência doméstica no ano de 2016 sendo que foram emitidas 9940 sentenças de processos de conhecimento criminal relativas a esse tipo de violência mas houve apenas 267 processos de execução penal sobre violência doméstica no mesmo ano no estado Este relatório aponta ainda que no Brasil esses números foram 290423 novos inquéritos 194304 sentenças emitidas e infelizmente somente 13446 processos de execução penal Conforme determina a Lei Maria da Penha em seu Artigo 12 Inciso I na delegacia a autoridade policial diante do relato de ocorrência de violência doméstica deverá dentre outras ações ouvir a ofendida lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo se apresentada BRASIL 2006 A partir da representação é instaurado o inquérito policial para a apuração da ocorrência que embora seja conduzido pela polícia civil em fase anterior à constituição do processo na esfera judicial é distribuído à Vara competente e é registrado pelo Poder Judiciário Estadual Fato interessante revelado por uma pesquisa da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça realizada no período de junho de 2013 a fevereiro de 2014 80 das mulheres agredidas não quer que o autor da violência com quem ela mantém ou manteve uma relação doméstica familiar ou íntima de afeto seja punido com prisão Entre as alternativas apontadas por essas vítimas 40 disseram que os agressores devem fazer tratamento com psicólogos eou com assistentes sociais 30 acham que eles deveriam frequentar grupos de agressores para se conscientizarem 10 acham que a prestação de serviços à comunidade é a melhor alternativa penal BRASIL 2015 Isso corrobora a ideia de nosso estudo o agressor também precisa de atendimento e cuidado 32 Análise dos dados dos questionários Dos 20 questionários aplicados 17 deles foram respondidos5 ou seja 85 dos sujeitos da pesquisa responderam ao questionário Com a análise dos dados dos questionários foi possível verificar informações referentes ao perfil dos participantes dentre outras informações relevantes Dos homens que responderam grande parte 4117 07 homens têm entre 46 e 50 5 Conforme mencionado anteriormente os sujeitos da pesquisa são homens autores de violência doméstica encaminhados das audiências da Maria da Penha de uma cidade do Rio Grande do Sul para atendimento psicossocial no grupo de Redução de Danos no CAPS do referido município O questionário com 16 perguntas objetivas e fechadas foi entregue impresso diretamente pelo pesquisador a todos os 20 sujeitos da pesquisa em um dos encontros de atendimento coletivo do grupo sendo disponibilizado o tempo de 1h30 para responderem Foi permitido que os que assim desejassem levassem o questionário para responder em suas casas ou onde preferissem devendo retornálos respondidos no encontro da semana seguinte era realizado 1 encontro por semana com duração de 1h30 cada Sendo assim 12 homens optaram por responder no próprio encontro destes 05 levaram consigo para terminar de responder visto que não conseguiram finalizar no encontro e 8 preferiram levar o questionário para respondêlo em casa destes 3 não entregaram os questionários respondidos nem mesmo nos encontros seguintes mesmo tendo sido oferecida esta oportunidade Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 287 anos 2352 4 têm entre 51 e 55 anos e 1764 3 estão na faixa etária entre 36 e 40 anos 1176 2 têm entre 21 e 25 anos e apenas 588 1 tem idade entre 41 a 45 anos Percebe se então que o maior índice de violência praticada contra as companheiras encontrase entre os homens de meia idade ou seja entre 41 e 55 anos 7057 do total Além disso o menor índice desse tipo de violência ficou entre os homens mais jovens uma vez que 8824 dos pesquisados agressores tem 36 anos ou mais Índices similares aos encontrados na pesquisa de Scott e Oliveira 2018 em que a grande maioria 60 dos homens autores de violência doméstica tinha entre 36 e 55 anos e o menor índice estava entre os homens mais jovens entre 19 e 30 anos estes representavam menos de 205 do total de homens que praticaram violência doméstica Quanto ao nível de escolaridade menos da metade 4117 7 possui nível médio bem como 4117 7 têm apenas o nível fundamental e 1 deles 588 não é alfabetizado um familiar auxiliouo a responder o questionário e 1176 2 não responderam essa questão É importante destacar o fato de nenhum dos homens que responderam os questionários ter curso técnico ou superior o que demonstra que nesta pesquisa os agressores denunciados eou que respondem a processos têm baixo nível escolar Índice similar a este estudo foi encontrado na pesquisa de Silva Coelho e Njaine 2014 43 dos homens autores de violência tinham apenas o ensino fundamental Audi et al 2008 afirmam que o fato de ter 8 anos ou menos de escolaridade aumenta em 15 vezes a chance de se cometer violência psicológica e quase dobra a probabilidade de cometer violência física e sexual Esses dados corroboram a informação da OPAS 2017 de que a baixa escolaridade é um dos fatores associados ao aumento do risco de perpetração de da violência Contudo Scott e Oliveira 2018 salientam que nos níveis mais altos de escolaridade a violência também acontece mas muitas vezes não é denunciada Quanto ao estado civil grade parte 4117 7 são solteiros 1764 3 são divorciados 1764 3 são casados enquanto que 1176 2 têm união estável 588 1 são viúvos e 588 1 não marcaram qual era o seu estado civil A literatura SILVA COELHO NJAINE 2014 indica que homens cujo estado civil é divorciado ou viúvo são os que mais cometem violência contra a companheira em relação aos homens casados Oliveira e Scott 2018 também evidenciaram que o menor índice de violência praticado contra as parceiras ficou entre os homens casados Quanto à ocupação profissional 4117 7 são autônomos 1176 2 são aposentados 588 1 são funcionários de empresa privada bem como 588 1 são profissionais liberais e também 588 1 são funcionários públicos 294 5 escreveram no campo outro sua ocupação profissional 588 1 construção civil 588 1 agricultor 588 1 pecuarista 588 1 exército brasileiro e 588 1 estavam Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 288 em licença Oliveira e Scott 2018 também identificaram ocupações bem diversas entre os sujeitos de sua pesquisa e assim afirmam que há homens autores de violência doméstica nas mais variadas classes sociais e profissionais Dos homens que responderam ao questionário quanto à alternativa você presenciou algum ato de violência na infância Oito homens 4705 marcaram a alternativa que sim sendo que destes 625 5 presenciaram agressão física eou verbal Dos 8 homens que presenciaram cenas de violência em sua infância metade deles ou seja 4 deles quanto à questão como era a relação dos seus pais marcou a alternativa que as agressões físicas ou verbais sempre estiveram presentes na relação 2 dos 4 que marcaram essa alternativa marcaram também a alternativa que um dos pais usava bebidas alcoólicas eou consumia drogas 125 1 deles relatou que a mãe era muito agressiva 25 2 não mencionaram que tipo de violência presenciaram na infância e um dado interessante é que um dos pesquisados complementou a questão escrevendo que os seus pais batiam muito nos filhos que ele e seus irmãos apanhavam muito É interessante destacar que desses 8 homens que presenciaram agressões na infância a maioria 625 5 acredita que praticou alguma violência contra sua parceira enquanto apenas 3 375 que foram testemunhas de cenas de agressões na infância marcaram não quanto a esta questão Nesse sentido a OPAS 2017 afirma que a violência principalmente a sofrida na infância ou seja a exposição ao maltrato infantil além da experiência de violência no contexto familiar estão associados à perpetração da violência pelos homens na fase adulta Estas informações corroboram a afirmação do Centro de Convivência É de Lei apresentado na revisão de literatura as estratégias de redução de danos devem ser voltadas a qualquer cidadão contudo as abordagens geralmente são focadas às pessoas em contexto de vulnerabilidade como os homens participantes deste estudo Sendo que conforme esse mesmo centro a vulnerabilidade não se restringe a um comportamento ou conduta específicos mas sim ao ambiente em que se dá e ao contexto sociocultural Dos outros 5295 9 homens que marcaram não ter presenciado situação de violência em sua infância é interessante destacar que a maior parte 6666 6 quanto à pergunta como era a relação de seus pais marcaram a alternativa havia diálogo 1111 1 não marcaram nenhuma alternativa 1111 1 relataram no campo destinado a especificar caso quisessem que a mãe gritava muito e 1111 1 relataram que os pais eram separados desde seus 2 anos de idade ou seja não lembravam de ter presenciado situações de violência Observase que dos 09 homens acusados de agredirem as mulheres e que não presenciaram atos de violência em sua infância 6 conviveram em contexto de diálogo nos lares aonde cresceram sendo assim Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 289 entendese que não estavam reproduzindo uma realidade vivenciada em casa já que este ambiente hostil não era presente na vida destes agressores Salientase que dos 09 homens que não presenciaram cenas de violência em sua infância somente 4 deles 4444 responderam sim quanto à questão que perguntava se cometiam violência contra suas companheiras já que 5 homens 5556 responderam que não quanto a esta mesma pergunta De posse desses dados podese observar que o índice de homens que presenciaram atos de violência em sua infância 4705 e que admitiram que praticaram violência contra sua companheira 625 destes é maior que o índice dos que não presenciaram 5295 e cometeram violência contra a parceira 444 o que pode ser observado no gráfico 1 Sendo assim confirmouse que o fato de presenciar ações de violência doméstica na infância pode ser um fator que contribui para que na fase adulta reproduzam estas situações em suas vidas Gráfico 1 Índice de quem presenciou violência na infância e agrediu a companheira x índice de quem não presenciou atos de agressão e agrediu a companheira Fonte Elaborado pela autora Nesse sentido quanto à questão você acredita que praticou alguma violência contra a sua parceira do total de homens que responderam o questionário a maioria 5882 10 respondeu que sim logo 4118 7 responderam não Por questão de clareza primeiramente daremos sequência aos resultados da análise dos questionários dos homens que marcaram sim como resposta a essa questão Posteriormente apresentaremos os resultados da análise dos questionários respondidos pelos homens que marcaram não como resposta a esta mesma pergunta Dos 10 homens que responderam sim à pergunta você acredita que praticou alguma violência contra a sua parceira 50 5 praticaram violência verbal 20 2 praticaram violência física e verbal 10 1 cometeram violência física 10 1 cometeram violência 0 2 4 6 8 10 Presenciou atos de violência na infância x agressão à companheira Não presenciou atos de violência na infância x agressão à companheira Presenciou ato de violência na infância Cometeu ato de agressão contra a companheira Não presenciou atos de violência na infância Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 290 psicológica e verbal também 10 1 praticaram violência psicológica contra sua parceira ou seja pelos dados verificase que pelo menos 80 dos homens que cometeram violência praticaram violência física eou verbal contra sua parceira Desses 10 homens que admitiram ter agredido suas companheiras quanto à pergunta quando você praticou a violência você não sabiam que aquela ação era uma violência foi a resposta de 60 6 homens 20 3 marcaram estava sob efeito de alguma substância química e apenas 10 1 responderam que sabia que era violência e a praticou deliberadamente este foi o único que marcou que cometeu somente violência física Nesse sentido no estudo de Silva Coelho e Njaine 2014 o uso de drogas também aparece como uma das causas da violência além de destacar questões culturais e de gênero que perpetuam a ideia de posse dos parceiros homens em relação às mulheres Quanto à questão com que frequência você as praticou 60 6 marcaram raramente 30 3 esporadicamente e apenas 10 1 marcaram diariamente Quanto à questão você acredita que voltará a praticar violência grande parte 70 7 homens marcaram a alternativa não hoje entendo melhor o que é uma agressão e suas consequências 20 2 marcaram talvez e somente 10 1 marcaram sim pois é muito difícil me controlar Aqui evidenciase que a mudança demonstrada por estes homens está diretamente relacionada ao trabalho realizado pelo CAPS destacando a importância da criação de grupos de reflexão que debatam e tenham como foco a conscientização do autor da violência O alto índice de homens que marcaram a alternativa de que não voltariam a praticar agressão porque hoje entendiam melhor o que é uma agressão e suas consequências demonstra que está sendo positivo o resultado do Plano Municipal de Redutores de Danos da Secretaria de Saúde do município Apesar de a Política de Redução de Danos segundo a Associação Internacional de Redução de Danos 2010 originalmente ser voltada a reduzir consequências danos do uso de drogas vimos na prática que sua filosofia pode perfeitamente ser aplicada ao combate à violência doméstica como visto anteriormente Isso porque o objetivo da Redução de Danos é prevenir os riscos danos e consequências causados por uma ação negativa neste caso a violência doméstica Isso é o que tem sido feito no atendimento psicossocial no grupo de Redução de Danos no CAPS o atendimento ao autor de violência doméstica conscientizandoo de que seus atos de agressão afetam negativamente ou seja causam danos consequências nocivas a sua companheira aos seus filhos à sociedade e também a ele próprio Dessa forma observase que a maioria dos homens não sabia ou não considerava como violência as agressões que praticava principalmente a verbal e que o índice de quem Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 291 cometeu violência neste caso foi a violência física consciente de que estava cometendo uma violência e cometeu mesmo assim foi baixo Quanto a isso Paixão et al 2018 afirmam que há uma naturalização da violência por parte dos homens no relacionamento o que fazem com que não entendam motivo de serem indiciados Para os autores essa falta de entendimento dos homens sobre o ato de violência cometido contra a parceira contribui para a responsabilização da companheira evidenciando que o modelo patriarcal e machista ainda vigente na sociedade incita a desigualdade de poder dos gêneros nas relações e a perpetuação da violência Quanto à questão em relação às agressões você acredita que 40 4 homens marcaram também foi agredido e a agressão que sofreu foi tão intensa quanto a agressão que você fez 30 3 marcaram também foi agredido mas a agressão que sofreu foi menor que a agressão que você fez 20 2 não marcou nenhuma alternativa e apenas 10 1 marcou que não foi agredido Ou seja observase que na maioria dos casos conforme as respostas dos questionários dos homens que cometeram agressão as agressões eram mútuas Quanto a isso Silva Coelho e Njaine 2014 p 1260 ressaltam que muitas vezes o homem autor de violência contra a mulher justifica seus atos mencionando que também sofrem agressões no ambiente doméstico porém os autores reforçam que esse ato de violência contra o homem é desencadeado após algum ato de violência cometido por ele Ademais embora alguns homens sejam realmente humilhados desqualificados e agredidos física e verbalmente por uma mulher é difícil imaginálos permanentemente aterrorizados ou devastados em sua autoestima Do total de 7 homens que marcaram que também foram agredidos quanto à pergunta se você acha que também foi agredido você considera que 4285 3 marcaram a alternativa que a lei não o protege e você está desamparado 2857 2 marcaram que os homens são fisicamente mais fortes por isso as mulheres realmente precisam de uma lei que as proteja 1428 1 marcaram 2 alternativas a lei não o protege e você está desamparado e os homens são fisicamente mais fortes por isso as mulheres realmente precisam de uma lei que as proteja assim como 1428 1 não marcaram nenhuma alternativa e também 1428 1 marcaram a alternativa outro mas não especificaram no campo destinado a considerações Passandose agora para a análise dos questionários dos 7 homens 4117 do total que responderam não quanto à pergunta você acredita que praticou alguma violência contra a sua parceira quanto à questão se na sua opinião você não praticou violência você acredita que 2857 2 marcaram a alternativa não praticou nenhuma violência e acha que a denúncia foi injusta assim como 2857 2 marcaram não considerava violência alguns atos que gerou a medida 1 destes marcou violência patrimonial na questão 11 em caso Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 292 afirmativo quais tipos de violência praticou e especificou por escrito quebrei o telefone seguido de 1428 1 que responderam ela mente muito e inventou esta história de 1428 1 que marcaram outro e escreveram do lado a violência verbal existia entre ambas partes e 1428 1 não marcaram nenhuma alternativa Quanto à penúltima pergunta do questionário na sua opinião o atendimento e as atividades realizadas no atendimento psicossocial junto ao grupo de Redução de Danos no CAPS é do total dos 17 participantes que responderam o questionário 4705 8 marcaram a alternativa muito interessante aprendi muito 4117 7 marcaram interessante aprendi algumas coisas apenas 588 1 não marcou nenhuma alternativa da mesma forma 588 1 marcou a alternativa outro mas não especificou no campo destinado a considerações Destaco o que o único participante que escreveu na última questão do Existe alguma coisa que gostaria de comentar sobre o assunto eis que um dos entrevistados escreveu me sinto triste de ter cometido esta agressão mas como acompanhamento psicológico está me fazendo ver tudo de outra forma para nunca mais acontecer Sendo assim é fundamental que sejam implementadas políticas públicas na área de atendimento ao autor de violência contra a mulher e discutir sobre esse tema e não apenas julgar esse atendimento Nesse sentido Santos e Lima 2013 salientam que é preciso proporcionar ajuda ao autor de violência e não apenas censurálos isso contribuirá para a redução da violência cometida contra as mulheres Assim o que se pode depreender pelas respostas dessas 2 últimas questões é que o trabalho em grupo no CAPS foi visto como positivo pela maioria dos homens atendidos e embora 1 tenha se declarado arrependido e disposto a mudar e não mais cometer violência contra a sua parceira acreditase que a semente foi plantada nos demais principalmente nos que através das respostas admitiram que cometeram violência contra sua companheira CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta pesquisa trouxe dados alarmantes quanto à violência doméstica Esta muitas vezes acompanha o agressor desde a infância Neste estudo evidenciouse que grande parte dos homens denunciados por agressão presenciaram algum ato de agressão em sua infância conviveram com pais agressivos que se agrediam tanto física quanto verbalmente A maioria desses homens admitiram que cometeram ato de violência contra a parceira ou seja reproduziram uma realidade vivenciada em casa quando crianças Sendo assim são necessárias políticas públicas que tratem a raiz do problema ou seja atender o agressor conscientizálo de que seus atos de agressão afetam negativamente não só sua companheira mas seus filhos e também a sociedade A Lei Maria da Penha é fundamental Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 293 na garantia de direitos a mulheres que sofreram violência doméstica Porém é necessário sanar o problema antes de ele ser instaurado para que se busque que não ocorra novamente ou seja é preciso combater a violência doméstica para que ela não se repita além de dar assistência e apoio às mulheres agredidas É preocupante o fato de 4118 dos participantes deste estudo ou seja homens denunciados por agressão e encaminhados de audiências da Lei Maria da Penha para atendimento psicossocial não admitirem ou não considerarem que cometeram ato de violência contra a companheira visto que grande parte demonstrou desconhecer que violência verbal psicológica eou patrimonial também são formas de violência Dessa maneira o movimento da violência aqui descrito remete a algumas questões que se observadas e divulgadas pelos profissionais que atendem as vítimas em centros especializados podem contribuir para gerar um conhecimento acerca da violência doméstica e também acerca de como se trabalhar com o agressor Neste sentido é imprescindível que os profissionais que atendem a essa nova demanda bem como a população estejam preparados para direcionar um olhar atento que possibilite à pessoa se identificar como também vítima de uma sociedade que culturalmente muitas vezes entende esse processo de agressão como algo normal Prestar um atendimento respeitoso de modo a contribuir para que o agressor e vítima possam se expressar livremente propiciando a clara exposição dos fatos tendo como consequência o entendimento da dinâmica da violência é uma excelente oportunidade para solução da situação pela qual passam tanto agressor quanto agredido Nesse sentido o profissional deve propiciar o resgate dos mesmos uma vez que oportuniza um espaço de escuta e de valorização da pessoa como um todo Seria desejável também que os organismos financiadores do Estado incentivassem a produção científica no campo do cuidado do agressor da violência doméstica haja vista a pouca produção encontrada com essa temática Assim podese concluir que as estratégias de prevenção da violência seja ela doméstica urbana ou institucional devem levar em consideração o fato de a violência doméstica ser o ponto inicial que deflagra muitas das situações violentas que chegam ao judiciário há a necessidade de uma compreensão de que todas as manifestações violentas como a violência psicológica moral física entre outras venha a ser contida e a servir como estratégia de redução de danos O presente estudo apresentou limitações importantes quanto à população por não ter uma amostragem maior de homens encaminhados e atendidos pelo atendimento psicossocial CAPS do município pesquisado Fica como sugestão para estudos futuros pesquisar a eficácia Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 294 desse programa de atendimento ao agressor analisar se com os atendimentos o índice de violência doméstica reduziu e se caíram os casos de reincidência REFERÊNCIAS ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE REDUÇÃO DE DANOS O que é Redução de Danos Londres GrãBretanha 2010 Disponível em httpswwwhriglobalfiles20100601 BriefingwhatisHRPortuguesepdf Acesso em 02 de novembro de 2018 AUDI C A F et al Violence against pregnant women prevalence and associated factors Revista de Saúde Pública v 42 n 5 p 877885 AZEVEDO M A GUERRA V N A Violência psicológica doméstica vozes da juventude São Paulo Laboratório de Estudos da Criança 2001 BRASIL Decreto 1973 de 1º de agosto de 1996 Promulga a Convenção Interamericana para prevenir punir e erradicar a violência contra a mulher concluída em Belém do Pará em 9 de junho de 1994 Disponível httpwwwplanaltogovbrccivil03decreto1996d197 Acesso em 02 de novembro de 2018 BRASIL Lei 11340 de 7 de agosto de 2006 Cria Mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e dá outras providências Diário Oficial da União 8 de agosto de 2006 BRASIL Ministério da Justiça Secretaria de Assuntos Legislativos Violência contra a mulher e as práticas institucionais Brasília Ministério da Justiça 2015 BRASIL Ministério da Saúde Violência intrafamiliar orientações para a prática em serviço Brasília Ministério da Saúde 2001 BRASIL Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres Brasília Secretaria de Políticas Públicas para as mulheres 2011a BRASIL Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres Diretrizes gerais dos serviços de responsabilização e educação do agressor Serviço de responsabilização e educação do agressor In BRASIL Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres Rede de enfrentamento à violência contra as mulheres Brasília Secretaria de Políticas para as Mulheres 2011b BRASIL Senado Federal Panorama da violência contra as mulheres no Brasil indicadores nacionais e estaduais Brasília Senado Federal 2016 CENTRO DE CONVIVÊNCIA É DE LEI Redução de Danos S d Disponível em httpedeleiorghomesobrenos Acesso em 07 de setembro de 2019 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA O Poder Judiciário na aplicação da Lei Maria da Penha 2017 Disponível em httpwwwcnjjusbrflesconteudoarquivo201710ba9a59 b474f22bbdbf7cd4f7e3829aa6pdf Acesso em 20 de agosto de 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 295 FORTESKI R FARIA J G Estratégias de redução de danos um exercício de equidade e cidadania na atenção a usuários de drogas Revista de Saúde Pública de Santa Catarina Florianópolis v 6 n 2 p 7891 abrjun 2013 GUIMARÃES M C PEDROZA R L S Violência contra a mulher problematizando definições teóricas filosóficas e jurídicas Psicologia Sociedade v 27 n 2 p 256266 2015 MARTINS A P A CERQUEIRA D MATOS M VM A institucionalização das políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres no Brasil Brasília Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPEA 2015 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE Organização PanAmericana de Saúde La unidad de salud de la mujer de la OMS Violencia contra la mujer un tema de salud prioritario Ginebra 1998 Disponível em httpwwwwhointgenderviolenceviolencia infopack1pdf Acesso em 10 de novembro de 2018 ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DA SAÚDE Violência contra as mulheres 2017 Disponível em httpswwwpahoorgbraindexphpoptioncomcontentviewarticleid 5669folhainformativaviolenciacontraasmulheresItemid820 Acesso em 07 de setembro de 2019 PAIXAO G P do N et al Naturalization reciprocity and marks of marital violence male defendants perceptions Revista Brasileira de Enfermagem Brasília v 71 n 1 p 178184 fev 2018 SANTOS A C B dos LIMA V L A O perfil do homem autor de violência cometida contra as mulheres na versão da mídia impressa Paroara Contribuições para a enfermagem In XXVII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA Natal RN 22 a 26 de julho de 2013 SCOTT J B OLIVEIRA I F de Perfil de homens autores de violência contra a mulher uma análise documental Revista de Psicologia da IMED v 10 n 2 juldez 2018 SILVA L L COELHO E B S CAPONI S N C Violência silenciosa violência psicológica como condição da violência física doméstica Interface Botucatu v11 n 21 janabr 2007 SILVA A C L G COELHO E B S NJAINE K Violência conjugal as controvérsias no relato dos parceiros íntimos em inquéritos policiais Ciência Saúde Coletiva v 19 n 4 abr 2014 SILVA L E L OLIVEIRA M L C Violência contra a mulher revisão sistemática da produção científica nacional no período de 2009 a 2013 Ciência Saúde Coletiva v 20 n11 p 35233532 2015 STRONACH B Álcool e redução de danos In BRASIL Ministério da Saúde Álcool e redução de danos uma abordagem inovadora para países em transição Brasília 2004 Disponível em httpbvsmssaudegovbrbvspublicacoesalcoolreducaodanos2004pdf Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 296 LACUNAS E ABISMOS ENTRE HOMENS E SERVIÇOS IMPASSES NO COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES Adriano Beiras1 Caio Henrique de Mendonça Chaves Incrocci2 Amanda Alexandroni3 Marina Williamson Touro4 RESUMO Esse texto é oriundo de uma pesquisa realizada na região de Grande Florianópolis e foi elaborado a partir da compreensão da importância do debate acerca de masculinidades na esfera da violência contra mulheres tal como o trabalho com homens autores de violência HAVs nesse âmbito Buscamos identificar as possibilidades e empecilhos no atendimento com HAVs em profissionais de delegacias especializadas e assistência social No total foram realizadas cinco entrevistas individuais e duas rodas de conversa analisadas segundo análise temática de narrativas As dificuldades encontradas para a realização deste serviço foram observadas em três âmbitos referentes à estrutura organizacional das redes de segurança pública e assistência social às práticas dos profissionais envolvidos que não envolvem pensar esse serviço as construções sociais acerca de gênero e masculinidades Como conclusão o estudo visibiliza a complexa relação em rede dos aparelhos do Estado que pode ser analisada com um olhar analítico de gênero Demonstra a importância de ações integradas que considerem aspectos específicos de gênero e masculinidades como limitadores de possibilidades de ação assim como questões integradas a aspectos políticos culturais e interseccionais Pontos estes que precisam ser problematizados na prática em capacitações e intervenções para ações eficazes e permanentes neste setor Palavraschave Homens Violências Assistência social Segurança pública INTRODUÇÃO A violência contra a mulheres se manifesta em diversos âmbitos e de diversas formas acarretando na ação de pessoas físicas movimentos sociais instituições governamentais e não 1 Professor Adjunto do Departamento de Psicologia e do Programa de Pósgraduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC PósDoutor pela UFSCBrasilUniversidade de GranadaEspanhaUniversidade de Brighton Inglaterra Doutor Europeu em Psicologia Social pela Universidade Autônoma de Barcelona UAB Espanha em 2012 adrianobeirasufscbr Lattes httplattescnpqbr8261091589447794 2 Mestrando no Programa de pósgraduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina PPGPUFSC área de concentração 2 Psicologia Social e Cultura Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC em 2018 Bolsista de pósgraduação financiamento CAPES caioincroccihotmailcom Lattes httplattescnpqbr1231220464460867 3 Graduanda do curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Bolsista PIBICCNPq marinawtourogmailcom Lattes httplattescnpqbr4317724250219344 4 Graduanda do curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Bolsista PIBICCNPq amandaaalexandronigmailcom Lattes httplattescnpqbr2146172711712598 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 297 governamentais para o enfrentamento desse problema Dentre estes a atuação dos movimentos feministas tem sido fundamental sendo a violência contra mulheres uma de suas principais bandeiras de modo a denunciar as diferentes formas em que ocorre e articulando possibilidades de enfrentamento Segundo Bandeira 2014 os esforços do movimento feminista também situaram a violência de gênero como problema político e de saúde pública não mais da esfera privada representando um grande avanço nos direitos humanos das mulheres No entanto a perspectiva indicada pela autora não é de vitimização mas de compreensão sobre uma realidade que assim como as origens deste tipo de violência é complexa Dentro desta complexa problemática há necessidade de explorar ações tanto no âmbito das vítimas como dos autores de violência contra as mulheres No entanto trabalhar com homens diante deste tema é um desafio instigante não isento de questionamentos diversos Além disso é importante problematizar o lugar dicotômico e por vezes visto como fixo de vítima e agressor dando lugar a um olhar que traga a complexidade relacional da violência e do gênero Neste artigo pesquisamos esta temática focando no ângulo de trabalho e intervenção com os homens autores de violências e explorando desafios dificuldades e potencialidades de trabalho no âmbito da assistência social e da segurança pública na região de Florianópolis Na perspectiva de Bandeira 2014 a violência de gênero é resultante das relações assimétricas de poder que estão presentes na sociedade Para Rifiotis 2015 a violência contra as mulheres está articulada com noções de normatividade que agenciam possibilidades e impossibilidades ao comportamento dos indivíduos coagindoos e limitandoos em suas condições de vida Por outro lado ainda segundo o autor o Estado enquanto mediador da sociedade civil agência múltiplas ações via sistema judiciário de saúde educacional assistencial entre outros para tratar da assimetria dessas relações A Lei 113402006 exemplifica uma ação do Estado via judiciário para esses fins Conhecida popularmente como Lei Maria da Penha a lei dispõe dos mecanismos vinculados ao aparelho do Estado para coibir a violência doméstica contra a mulher Tal como a categorização dos tipos de violência física psicológica sexual patrimonial e moral e das medidas protetivas assistenciais e de urgência relacionadas às mulheres em situação de violência BRASIL 2006 Desse modo a medida lança mão de importantes recursos como a supressão de medidas alternativas para cumprimento de pena e a possibilidade de autores de violência serem presos em flagrante Além disso também está prevista o incentivo a estudos e pesquisas acerca da temática visando a construção de projetos com intuito de erradicar a violência doméstica Ademais da Lei Maria da Penha outros progressos judiciais foram conquistados nos últimos anos A exemplo em 2015 foi sancionada a lei 131042015 a Lei do Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 298 Feminicídio que passa a classificar o assassinato de mulheres como crime hediondo e com agravantes de acordo com situações específicas de vulnerabilidade A judicialização acompanha a crescente preocupação com a superação deste tipo de violência como requisito para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária Todavia ainda há uma lacuna em políticas públicas para a prevenção efetiva deste tipo de agressão assim como a coibição de sua recorrência e agravos envolvidos Dados oficiais demonstram que mesmo com a criação de diversas legislações o número de mulheres agredidas e vítimas de feminicídio não recuou Segundo dados da Organização Mundial de Saúde presentes no Mapa da Violência WAISELFISZ 2015 em um grupo de 83 países o Brasil é o quinto com maior número de mulheres assassinadas A nível nacional segundo os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública no ano de 2017 houve um aumento de 84 de casos de estupros em relação ao ano anterior contabilizando 60018 casos registrados No ano passado houve ainda 1133 casos de feminicídios contabilizados nos registros da segurança público INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2018 Esses dados apontam que as atuais estratégias punitivistas não estão conseguindo administrar o alto número de demandas relacionadas às violências de gênero Regionalmente em Santa Catarina preocupa o crescimento de casos os quais se posicionam acima da média nacional No Brasil entre 2003 e 2013 o número de vítimas do sexo feminino passou de 3937 para 4762 Um aumento de 210 na década Já no estado de Santa Catarina o número de mulheres mortas foi de 69 para 102 cristalizando um crescimento consideravelmente acima da média nacional 478 WAISELFISZ 2015 Esses dados apontam para a necessidade de compreender a forma como se expressam particularidades em distintos estados e municípios ressaltando a importância de promover ações específicas segundo as demandas apresentadas Outra questão preocupante é a reincidência que acontece em 492 dos casos de atendimento feminino tendo prevalência especialmente entre as mulheres adultas e idosas Já os atendimentos a indivíduos do sexo masculino a proporção de 305 o que permite supor que a violência contra a mulher é mais sistemática e repetitiva do que a que acontece contra os homens Esse nível de recorrência da violência deveria ter gerado mecanismos de prevenção o que não parece ter acontecido WAISELFISZ 2015 Portanto é necessário pensar em novas abordagens que possam abarcar as dimensões diversas que o fenômeno possui para além de uma perspectiva meramente jurídica e punitivista Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 299 Cabe ressaltar que dentre as medidas de enfrentamento à violência contra a mulher além dos mecanismos direcionados às mulheres nomeadas vítimas de violência o artigo 35 inciso V da Lei 113402006 dispõe das possibilidades interventivas com os homens autores de violência Apontase a articulação entre entidade federal e governos de estado e município para criar e promover projetos de reabilitação e de caráter educativo para os agressores BRASIL 2006 É considerada um marco justamente por prever ações de contenção dos sujeitos que cometem violências diferenciandose das leis anteriores por considerar além da repressão e penalização assistência e prevenção Deste modo Beiras et al 2012 e Billand e Paiva 2017 apontam para a importância de trabalhar com o público masculino principalmente com aqueles autores de violência de gênero contra as mulheres como uma importante estratégia orientada ao combate à violência de gênero contra as mulheres Com o objetivo de estabelecer estratégias públicas de combate à violência de gênero e de cumprir com o estabelecido pelas legislações acima apontadas diferentes aparelhos do Estado devem se articular e desenvolver ações e serviços Como foco desta pesquisa optamos por investigar como se dão estas estratégias e ações especificamente no âmbito da assistência social e da segurança pública Segundo Cardoso e Beiras 2018 a Assistência Social é um espaço de cuidado e fortalecimento de vínculos comunitários O público alvo dos Centros de Referência de Assistência Social CRAS e Centros de Referência Especializada em Assistência Social CREAS são sujeitos que estão em condição de vulnerabilidade social ou que tiveram seus direitos humanos gravemente violados Portanto diferenciase dos espaços de delegacia tribunais e defensorias públicas por não carregarem o legado de punição possibilitando a construção de vínculos de outra ordem com todas as partes envolvidas na questão As Delegacias de Polícia fazem parte dos dispositivos da Polícia Civil administrados pela Secretaria de Estado de Segurança Pública Elas têm como função a apuração de infrações penais que não estão previstos no exercício da Polícia Federal e suas competências estão submetidas a um delegado de polícia subordinado aos Governadores dos Estados GHISI OLIVEIRA e OLIVEIRA 2017 As delegacias especializadas integram ações para adolescentes mulheres e idosos sendo chamadas de DPCAMI Delegacias de Proteção à Criança Adolescente Mulher e Idoso Diante de todo o exposto neste estudo temos o objetivo de compreender como é realizada a atenção ao HAVs nas redes de segurança pública nas delegacias especializadas e na assistência social CRAS e CREAS de modo a observar como se dá o trato deste público nestes serviços segundo as experiências dos profissionais entrevistados Tentaremos desse Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 300 modo explorar algumas das potencialidades tensões limites e empecilhos encontrados colocandoos em debate a partir de uma leitura orientada pelos estudos de gênero e feministas 1 ESTUDOS DE GÊNERO MASCULINIDADES E HOMENS AUTORES DE VIOLÊNCIA Compreendendo a complexidade da temática diversos estudiososas e pesquisadoresas têm se debruçado sobre a violência de gênero contra mulheres de forma a abordar os fenômenos causas efeitos e problemáticas que cercam essa questão Partindo dos estudos de gênero e feministas o campo das masculinidades tem oferecido preciosas contribuições no âmbito das violências Partindo de uma noção mais estruturalista Connell 1997 argumenta que há entre os homens diferentes relações de poder e que estas são definidas a partir de padrões e normas de masculinidades que vão orientar leituras de homens que se beneficiam mais ou menos do sistema de gênero imposto Em outras palavras há o estabelecimento de uma hierarquia entre homens orientando uma leitura social daqueles que se adequam às prerrogativas de gênero e dos que não aplicando a eles as respectivas sanções e benefícios Todavia cabe ressaltar que estes padrões são localizados geograficamente e historicamente variando entre regiões e no tempo embora haja semelhanças que possam ser percebidas por um longo período e inter regionalmente Deste modo há a necessidade de pensar em múltiplas masculinidades CONNELL 1997 Ainda segundo a autora essa relação de poder que se estabelece entre homens e mulheres coloca esses primeiros enquanto um grupo estruturalmente interessado na conservação dessas formas de relação ao passo que as mulheres estariam motivadas em promover mudanças no tocante a essas relações Seguindo esta mesma linha Muszkat 2008 aborda a naturalização de condutas violentas por parte de homens Argumenta que são consideradas naturais em lugar de entendidas como práticas violentas ou que visem a manutenção do lugar de poder Isso impede que sejam reconhecidas como inapropriadas dificultando o seu enfrentamento Partindo de algumas dessas reflexões tornase relevante evidenciar outras formas de masculinidades ou de ser homem fazendo desse esforço um importante instrumento interventivo e transformando esses conceitos em formas de ação política Essas intervenções são possibilidades de mudanças macroestruturais acerca das posições de masculino e feminino ressignificando visões essencialistas e violentas A partir da pesquisa com um grupo reflexivo com Homens Autores de Violência na cidade de São Paulo Prates e Alvarenga 2014 debatem acerca das potencialidades dessa forma Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 301 de trabalho Na experiência estudada os participantes puderam pensar criticamente acerca das posições hegemônicas da organização de gênero na sociedade o que potencializou a reflexões sobre as possibilidades tanto homens como mulheres atuarem para a transformação dessas relações Assim essa experiência ressignificou a relação dos homens com essa masculinidade hegemônica urgindo uma implicação destes sujeitos nessa problemática PRATES e ALVARENGA 2014 Tendo isso em vista buscouse refletir sobre as dificuldades e desafios do trabalho com homens autores de violência na rede de segurança pública e assistência social da região de Florianópolis apontando possíveis ações de enfrentamento das violências contra as mulheres a partir dos estudos sobre feminismos e masculinidades Procuramos produzir aqui um conhecimento localizado e específico desta região de maneira a problematizar e contribuir para a prática local assim como criar potencias de ação e enfrentamentos futuros Inspiramonos também na busca de saberes localizados HARAWAY 2009 do movimento feminista como estratégia de ação e reflexão para este estudo 2 ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS E DE ABORDAGEM Primeiramente identificamos profissionais da segurança pública e da assistência social por meio da rede de contatos dosas pesquisadoresas Em um segundo momento estes profissionais foram contatados pela equipe de pesquisadoresas e entrevistas foram agendadas Entrevistamos 5 psicólogos dentre estes três trabalhadores da assistência social e dois da segurança pública profissionais de DPCAMIs seguindo um roteirosemiestruturado Posteriormente duas rodas de conversa sobre o tema Homens e Violência foram conduzidas em um CREAS da região Esse grupo contou com a presença de 10 de profissionais 3 psicólogas e 5 assistentes sociais 1 administradora e 1 Estagiária de assistência social é importante ressaltar que todas as participantes eram mulheres Destacamos que a pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética local portanto contempla todas as medidas e cuidados éticos e de anonimato A análise do material transcrito das entrevistas foi realizada a partir do estudo temático de narrativas entendidas não apenas como um conjunto de palavras articuladas mas sim ações verbais que possuem a potência de construir manter e alterar realidades Deste modo foram explorados aspectos críticos direcionados ao contexto e à interação social O foco do estudo está em identificar falas momentos ou episódios que proporcionem reflexões críticas sobre discursos dominantes e suas relações com a construção de subjetividades e relações de poder nos campos analisados RIESSMAN 2008 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 302 Partindo das noções e teorias apontadas na introdução deste texto as entrevistas foram transcritas analisadas e posteriormente divididas em três grandes temas a saber organização e rede a prática profissional b e construções sociaisc No primeiro tema identificado organização e rede a foram condensadas as questões referentes à estrutura organizacional financeira e física tal como os atravessamentos institucionais do serviço representado pelos sujeitos entrevistados e seus impactos no atendimento de HAVs No segundo práticas profissionais b foram identificados desafios que permeiam a prática profissional como a falta de capacitações e os desconfortos no trabalho com os HAVs No que se refere ao último tema construções sociais c foram categorizados os desafios encontrados na atuação destes profissionais no tocante às construções sociais acerca de gênero e masculinidades e seus impactos na atuação com estes homens Adicionalmente também foram levantadas importantes problemáticas no tocante aos atravessamentos da construção dos sujeitos que trabalham na articulação dessa rede Em um segundo momento buscamos abordar as potencialidades no atendimento de HAV pelas redes de segurança pública e assistência social abordando as possibilidades de serviços com essa população indicativos da importância desse trabalho tal como os caminhos apontados pelos profissionais para que estes atendimentos possam se concretizar 3 DESAFIOS ORGANIZACIONAIS E DE REDE No decorrer das entrevistas uma das questões emergentes se refere aos desafios relacionados à organização e rede a São dificuldades relacionadas à falta de verbas e de profissionais limitações do espaço físico e à organização da rede Está apresentase dicotomizada ou seja dividida entre o caráter punitivista de rede de segurança pública e o caráter assistencialista da rede de assistência social O principal ponto levantado nas entrevistas referente a este assunto foi a falta de atendimento aos HAVs na rede de assistência ponto que guia a discussão a seguir Sobre a organização e rede uma caracterização dos serviços da assistência social se faz necessária Conforme apontam as próprias políticas de assistência social esta visa proteger sujeitos em situação de vulnerabilidade social e violação de direitos Segundo o artigo 2º da Lei 12435 que dispõe sobre a organização política do SUAS os dispositivos de Assistência Social possuem como finalidade garantir a reprodução da vida diminuindo e prevenindo a incidência de riscos BRASIL 2011 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 303 Neste caráter de prevenção a incidência de riscos os profissionais da assistência social ao serem questionados acerca do trabalho com situações de violência discorreram que o perfil dos trabalhos é o de atendimento com a população tida como vítima da situação Além disso relatam o número elevado de demandas diversas para este público e situações que chamam de apagar incêndio que dificultam aprofundamentos ou ações que se ampliem para outros públicos como o de homens autores de violência A exemplo apresentamos a seguinte fala Acho que pela por a gente estar envolvido com tantas outras demandas que é não só público alvo com homens a gente acaba apagando incêndio dessas outras demandas e deixando de lado o que possivelmente é crucial nessa de quem promove faz acontecer a violência Psicólogo CREAS Fazse pertinente reconhecer que a assistência social atravessa diversos desafios devido aos baixos recursos e poucos profissionais Isso gera demanda reprimida limitando a viabilidade das propostas interventivas dispostas nas políticas da rede Apontase que os HAVS acabam não sendo incluídos na agenda de prioridades da organização além disso parece haver uma naturalização dos destinos desses corpos tidos como violentos o encaminhamento ao setor judiciário para punição e judicialização do tema que enxerga em uma diferente perspectiva o direcionamento do trabalho com estes homens Conforme aponta um psicólogo da segurança pública para além dos impedimentos de ordem material o acolhimento centrado nas mulheres agredidas revelase como uma escolha necessária a saber Se for atender todos os casos daquela pessoa em que ela é citada como autora a gente vai ter que deixar de atender aquelas que recorrem como vítimas Então nesse nesse sentido a gente tá fazendo essa escolha néPsicólogo da Segurança PúblicaDelegacias Essa escolha revela um direcionamento dicotômico e pouco sistêmico e relacional da questão ao optar por intervir apenas com as mulheres nomeadas vítimas Isto denuncia um despreparo por parte do Estado em olhar para esses autores fora da esfera criminal característica que não é apenas encontrada no Brasil Na América Latina e Portugal após a realização de mapeamentos acerca das políticas públicas de combate à violência de gênero foi possível constatar que existe uma priorização ao atendimento de vítimas de violências TONELI BEIRAS e RIED 2017 Mudar esta lógica de atenção seria uma mudança de paradigma complexo institucionalmente pela forma que o aparelho do Estado está estruturado e pela maneira de lidar com estes sujeitos diante de diversos valores e desejos de punição e soluções rápidas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 304 Essa forma de negar aos homens uma posição de cuidado revela a reprodução dos moldes da masculinidade hegemônica na estrutura do Estado e seus funcionários Connell 1997 define masculinidade hegemônica como uma forma de exercer a masculinidade que utilizase de estratégias para manter a ordem patriarcal a qual proíbe certas formas de emoções e afetos aos homens Assim essa masculinidade hegemônica permeia culturalmente a rede de combate e prevenção a violência limitando a possibilidade do cuidado apenas às mulheres Aos homens portanto restaria a alternativa penal e às mulheres as consequências da violência E ao se tratar da alternativa penal um grande ponto de destaque na discussão acerca da organização e da rede é o distanciamento dos modos de trabalho entre as redes de segurança pública e de assistência social no trato com seu público segurança e assistência social acho que é quase contraditório as duas relações uma mais garantista a outra legalista uma querendo sempre mais acusar e a outra ou um pouco mais proteger Psicólogo na Segurança PúblicaDelegacias Este distanciamento é algo que precisamos explorar e discutir Poderiam estes serviços funcionar de forma complementar Suas lógicas diferentes não contradizem a possibilidade de ação em rede Seria possível pensar em uma ação da segurança pública pensada para a transformação social e relacional destes sujeitos para além de apenas punir Por outro lado estas reflexões nos trazem a necessidade de refletir sobre o amadurecimento e a reflexão crítica sobre as ações do próprio Estado Compreendendo o Estado como responsável pela organização civil quando ele autoriza a repetição e perpetuação de uma situação de violação de direitos ou divisões a ações excessivamente fragmentadas mantendo práticas individualizantes e dicotômicas há o reconhecimento de uma situação que pode ser entendida como Violência de Estado A própria organização jurídica estatal revela essa omissão Apesar de seu evidente caráter progressista devido ao acesso e proteção das mulheres pela via da sistematização judiciária equilibrando legalmente desigualdades alguns aspectos da Lei Maria da Penha podem ser alvo de críticas Um aspecto fortemente criticado pela área da criminologia crítica é o enrijecimento dos papéis dicotômicos de mulhervítima e homemagressor sobrecarregando as vias penais e criminais Esse limitante pode acarretar em uma dificuldade em se pensar novas possibilidades para o trabalho com esse público Essas perspectivas penalizantes resultam ser insuficientes perante a complexidade do fenômeno da violência Além de conforme apontam os dados a violência não ser erradicada apontase a problemática da reincidência dos casos conforme narradora fala a seguir Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 305 Acontece bastante principalmente a mulher que retira a queixa E aí ela volta a fazer o boletim de ocorrência Tem diversas situações que volta esse boletim de ocorrência no caso que está relacionado à reincidência do mesmo autor Psicólogo na Segurança PúblicaDelegacias Tendo em vista a repetição do ato violento é necessário repensar essas práticas punitivas apontando para alternativas que de fato ressignifique o ato violento e as formas de exercer as masculinidades É neste aspecto que podem se apresentar desafios estruturantes na ação estatal para esta temática que seria relevante problematizar para a busca de ações mais efetivas e eficazes assim como integradas 4 PRÁTICA PROFISSIONAL Neste tema foi trabalhado aspectos referentes à prática profissional dosas trabalhadoresas que têm a possibilidade de realizar o trabalho com os HAVs Destaques foram feitos sobre a possibilidade deste serviço dentro da rede de assistência pontos como as faltas de capacitações para que o trabalho possa ser realizado e as inseguranças acerca do trabalho com HAVs Diversas modalidades de intervenção podem ser realizadas em um CREAS tais como atendimentos com as famílias visitas a domicílio trabalhos de articulação com a rede algumas atividades em grupo BRASIL 2011 Nos casos de violência este trabalho é realizado ao público tido como vítima da situação majoritariamente como foi afirmado pelos profissionais desta unidade No caso da segurança pública podemos dizer que a atual caracterização dos atendimentos tem apresentado dificuldades de suprir as demandas da própria sociedade Há demandas por criminalização e punição de ações violentas porém também há pedidos de ações que sigam por outros rumos em prol a soluções menos punitivas Por diversas vezes as vítimas ao depor nas delegacias de Florianópolis escolhem pela não criminalização dos autores como exposto por um dos entrevistados Existe muitas vezes um interesse que se faça intervenção na outra parte sem que necessariamente ocorra a situação da criminalização né Que são os processos judiciais que por conta da competência essencial da polícia civil é aquilo que a gente faz é aquilo que é a nossa característica nossa função constitucional é fazer a apuração de crimes logo a incriminalização Processos de criminalização preliminar né Então muitas delas acontece de pedirem uma intervenção que não seja nesse nível da punição estatal de políticas de encarceramento penal né Existe isso Psicólogo da Segurança PúblicaDelegacias Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 306 Diversos fatores podem levar a esta escolha atravessamentos econômicos e sociais não podem ser desconsiderados Toneli Beiras e Ried 2017 afirmam que uma mudança radical dentro de uma relação violenta não acontece sem trabalhar a parte agressora Porém esta atuação pode não se restringir apenas a punição ainda que ela seja muito importante em diversos casos e sim também pode incluir trabalhos reflexivos e de transformação social e relacional com estes sujeitos Ambas as pessoas envolvidas na relação devem expressar o desejo da mudança de panorama dentro do relacionamento Embora estes autores afirmem que poucos consideram a necessidade de dar suporte também os autores de violência a posição das vítimas que buscam o trabalho também com estes homens mostra uma percepção de que a judicialização não é a única via desejada Neste sentido não fornecer uma alternativa pode se tornar mais uma violência com estas mulheres já fragilizadas em suas defesas Com uma atenção maior a estes casos e um caminho não judicial um apoio poderia ser dado a esse casal e ambos os lados poderiam trabalhar sobre aspectos relacionais refletindo sobre o fim deste relacionamento ou sobre uma separação judicial Apenas manter este homem preso pode não ser a melhor solução Mas quais os desafios institucionais que estão presentes para efetivamente poder haver ações diferenciadas focadas na relação no autor e na promoção de cidadania e melhora das relações sociais nos espaços de segurança pública Caberiam estas ações em uma instituição que majoritariamente é focada na investigação criminal Há olhares diferentes dentro da segurança pública para ações que possam se aproximar desta demanda São desafios que provocam a necessidade de repensar a função da instituição e as possibilidades inovadoras de ação que possam estar mais integradas às demandas e a complexidade da temática em questão Neste sentido vale apontar a relação que ocorre no Estado de Santa Catarina entre ações de pesquisa e extensão em parceria entre a universidade Universidade Federal de Santa Catarina e a Polícia Civil no sentido de aprimorar ações inovadoras no âmbito do projeto Polícia Civil por Elas Este projeto busca avançar neste desafio institucional propondo ações de grupos reflexivos com homens com mulheres e ações coletivas e preventivas em escolas assim como capacitações profissionais no âmbito das violências e questões de gênero Ações como esta ainda que incipientes podem provocar mudanças importantes nesta realidade e oportunidades de capacitação profissional Seguindo esta temática de formação e capacitação profissional osas entrevistadosas reconhecem a necessidade do trabalha com os HAVs mas afirmam que não saberiam como iniciar este processo Esta afirmação ocorreu especialmente no caso dos profissionais da assistência social Foi levantada a possibilidade do trabalho com grupos reflexivos assim Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 307 algumas preocupações foram trazidas pelos profissionais na roda de conversa realizada no CREAS todo discurso que a gente colocou no começo que a gente vê o homem no contexto familiar como ele está inserido como essa violência o caso dessa violência traz uma família como tirar o homem dessa família e trabalhar ele num grupo Eu não sei eu não consigo ver isso partido ainda isolado de eu trabalhar essa família pronta para trabalhar esse tipo de grupo eu não teria capacidade técnica para mim ficar tocando esse grupo porque a forma de trabalho que eu acredito é nessa o homem agressor dentro do contexto que ele vive Participante Grupo CREAS Roda de Conversa A partir desta fala podemos separar duas questões a dificuldade de se realizar um trabalho focado somente no homem e a de se trabalhar com grupos Essa fala se fez presente tanto nos profissionais da assistência social quanto da segurança pública Muitos encontram dificuldades inclusive nas buscas ativas por materiais acerca da temática Estes dados nos trazem reflexões tais como Por que as capacitações não são feitas E por que materiais não são encontrados Por que o trabalho com os homens autores de violência é posto de lado O que faz com que embora ocorram pesquisas na área e os profissionais percebam a necessidade de realizar um trabalho com os HAVs esses serviços não ocorram Dentro das universidades têm sido realizados estudos voltados aos homens autores de violência porém o dilema da incorporação da produção científica universitária aos serviços públicos se faz presente nesse caso como relatado a seguir Agora algo específico para lidar com o homem agressor né o autor de violência muito pouco inclusive pensar que a gente não tem nenhuma capacitação É zero assim de dizer como acessar essa pessoa de como entrar em contato com ela de como realizar esse encontro ou de como trabalhar as questões que envolvem a violência pouquíssimo né Psicólogo do CREAS Durante as entrevistas também se evidenciou a dificuldade de inserção do homem autor de violência ou não no contexto familiar Um possível efeito dessa fala de incorporação dos homens nas questões de cuidados domésticos e familiares pode ser a não adesão destes aos serviços de assistência social Uma das alternativas para o trabalho com HAVs é o grupo reflexivo Nas entrevistas alguns profissionais da rede afirmaram não se sentirem preparados conceitualmente para realizálos Dentre aqueles que relataram já executar essa metodologia afirmaram não ter disposição para se dedicarem aos grupos tendo em vista principalmente a alta demanda Percebese a necessidade de salientar a importância e eficácia deste trabalho aos profissionais em campo para que estes possam encontrar formas de realizálos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 308 Além disso para estes profissionais a dificuldade de adesão dos usuários baseada em experiências prévias seria um grande impeditivo A gente fez algumas experiências de grupo que acabaram assim as pessoas não aderem vem pouquíssimos né e também uma questão estrutural na maioria das vezes tem que ser à noite tem que ter alguns outros recursos que a gente não acaba acaba não demandando condições assim é que o grupo a gente avalia de um empreendimento grande assim de forças né com pouco resultado nas experiências que a gente já teve assim Participante Grupo CREAS Roda de Conversa A dificuldade de um trabalho de grupos com baixa adesão e as dificuldades vinculadas às próprias naturezas estruturais do serviço como horário equipe disponível entre outros tem impedido esses profissionais de realizarem um trabalho grupal com HAVs ou qualquer outra iniciativa inovadora Entretanto os profissionais têm se mostrado cientes da necessidade de trabalhar com estes homens e também interessados em aprender novas metodologia de trabalhos grupais 5 CONSTRUÇÕES SOCIAIS De volta a algumas das discussões trazidas no início desse texto apontamos como determinados estudos da área de gênero e feminismos têm pensado a questão da violência contra mulheres de modo a compreender como as construções de certas noções de masculinidades e feminilidades sustentam determinadas práticas e orientam estratégias de combate a esse fenômeno Nesse eixo temático buscaremos analisar portanto como alguns dosas entrevistadosas relatam os efeitos e impactos de algumas destas noções no trato com HAVs em sua rotina profissional A partir de autores e autoras abordados no início deste texto buscamos apontar como o sistema de relações de gênero inclusive no Brasil organizase e se mantém de forma a perpetuar determinados privilégios aos lidos enquanto homens e à própria desigualdade entre os gêneros Tal manutenção desse sistema está envolto de diversos aspectos socioculturais e inclui uma série de comportamentos e leituras a partir de noções de gênero Relacionase também com uma certa naturalização de condutas violentas por partes dos homens recuperando Muzcat 2008 até a ideia de cuidado Estas questões recaem e refletem na atuação dos profissionais que lidam direta ou indiretamente com HAVs como podemos exemplificar no trecho a seguir É cultural né É uma cultura que a gente tem né De que o homem tem que ser forte tem que ser poderoso tem que ser a figura mais ativa na família Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 309 e muitas vezes em função de alguma impotencialidade que esse homem se perceba e diante dessa cobrança social tão grande ele vá agir com violência frente a essa situação Né e por outro lado tem uma mulher que está imersa nessa cultura que tem que ser submissa que tem que cuidar dos filhos então é atrelada a questão de gênero ne essa discussão Participante Grupo CREAS Roda de Conversa Neste trecho retirado da roda de conversa reflexiva feita com profissionais da assistência social a profissional nos conta acerca de sua noção de feminilidade e masculinidade o que inclui determinados comportamentos e estilismos concernentes a cada um tal como a divisão de papéis em um determinado modo de família assim como dificuldades e até mesmo ideias de funcionamentos intrapsíquicos de homens Isto nos remete a estudos clássicos como os de Saffioti 1987 quando ela afirma que o homem será lido enquanto macho à medida que for capaz de reprimir e disfarçar seus sentimentos e conseguir seguir rigidamente a noção de que homem não chora Dentro desse modelo de masculinidade posto como modelo cultural ideal estão também incluídos aspectos como ser viril provedor agressivo ativo sexualmente dentre outras características masculinas Este modelo segundo Almeida 1996 em outro estudo de décadas atrás é inatingível e tem um efeito controlador sobre homens e mulheres Ainda que as ideias apresentadas tenham fundamentação em determinados estudos em maior ou menor grau cabe compreender que estas impactam sobre os homens e HAVs e sobre os profissionais refletindo diretamente na sua atuação com esse público Desse modo estas construções sociais acerca de masculinidades orientam as formas de captação desses homens o tipo de atendimento prestado por estes profissionais e até a agenda de serviços voltados para essas pessoas como vemos no trecho a seguir retirado de um dos grupos focais Uma das dificuldades acho que é uma das questões a dificuldade de trazer o homem o possível autor de violência porque uma que é para falar como é que ele se sente culturalmente muitas vezes o homem já é complicado ele falar como se sente a maioria dos atendimentos para eles é difícil mexe muito e aí a questão de que o homem culturalmente trabalha é o provedor e as mulheres possuem mais a característica do cuidado Participante Grupo CREAS Roda de Conversa Cardoso 2018 em sua dissertação já aponta algumas dificuldades de articulação de serviços com HAVs nos serviços de assistência social dentre estas a dificuldade a aproximação com este público de forma a realizar um trabalho que vise ressignificar relações de gênero Algumas dessas noções recaem acerca do cuidado desses sujeitos consigo e com os outros Em seu trabalho ele destaca que o lugar de cuidado não é atribuído à certas noções de masculinidades tanto o cuidado com o outro como consigo o que dificulta em grande parte o Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 310 trabalho destas pessoas Este aspecto aparece de certa forma na fala de um dos entrevistados profissional de um CREAS Tem muita resistência por parte de quem é autor de violência a algum atendimento a alguma acolhida Então pra mim um desafio grande é como promover como estabelecer vínculo com essa pessoa quando não é demanda dela Psicólogo CREAS Todavia cabe ainda destacar que existem serviços os quais compreendendo essas dificuldades e a complexidade da temática têm tentado promover algumas estratégias que visem aproximar esses homens dos serviços de assistência social de modo a promover o acolhimento desse público e trabalhar as questões de gênero em violências a partir das noções já colocadas acima como relatado no estudo de Cardoso 2018 Em vias de comparação no que diz respeito à segurança pública nos serviços que realizam esse tipo de atendimento às estratégias de captação diferem daquelas utilizadas no âmbito da assistência social Em um mapeamento nacional de serviços voltados para HAVs no Brasil Beiras Nascimento e Incrocci 2019 apontam que 14 dos grupos de HAVs no Brasil correspondente a mais de 60 dos grupos investigados oferecidos por parte de instituições policiais e do poder judiciário utilizam a participação de grupos como parte da pena imposta àqueles homens condenados por crimes de violência de gênero Fenômeno que também é encontrado em experiências internacionais Geldshläger et al 2010 Embora esses grupos atestem a efetividade desses métodos é importante ressaltar que uma vez que não implicam uma participação voluntária dos homens ainda recai sobre certa judicialização da violência de gênero contra mulheres denunciando um abismo a ser percorrido em termos culturais e a necessidade de instigar outros âmbitos da rede pública de atuar com esse público CONSIDERAÇÕES FINAIS A fim de sintetizar alguns dos pontos e problemáticas trazidos buscamos identificar alguns questionamentos e reflexões a partir de tensionamentos denunciados em instituições e serviços estaduais que são legalmente vinculados ao combate à violência contra as mulheres de modo a lançar pistas que possibilitem avanços no tema Assim sendo em linhas gerais pudemos observar que muito pouco tem sido feito no âmbito da atenção aos HAVs em Florianópolis e região tanto na segurança pública quando na assistência social Ainda que este não tenha sido um estudo exploratório e exaustivo dos serviços mencionados a partir das entrevistas foi possível identificar que mesmo que estes Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 311 serviços existam não dão conta da proposta uma vez que tem dificuldade de lidar com as outras diversas demandas as quais são localizadas como prioridade Cabe destacar também que ao menos segundo as narrativas analisadas nesse texto a falta de ações e serviços voltados para esse público decorre de problemas institucionais organizacionais e culturais que fogem da competência e controle dos profissionais de modo com que não tenham tempo disponibilidade estrutura ou capacitação para este tipo de serviço ainda que haja desejo destes para trabalhar com HAVs Assim sendo apontamos enquanto possíveis caminhos a serem seguidos de forma a dirimir algumas dessas questões a necessidade de aprimorar a articulação em rede e evidenciar a complexidade desta conexão assim como considerar os limites e possibilidades de interlocuções a partir das missões institucionais de cada aparelho do Estado Ainda que seja um estudo localizado visibiliza aspectos que já vem sendo problematizados academicamente em especial aspectos culturais de construção social do gênero como norteadores dos limites e também possibilidade de ações neste campo Ressalta ainda a importância de melhor conexão dos estudos acadêmicos e da prática profissional para manter inovações de práticas Por outro lado tornase muito relevante a necessidade de pensar relação entre as categorias masculinidades violências e cuidados para que se possa ampliar ações de transformação de relações de gênero e ir além da criminalização e culpabilização destes sujeitos ampliando possibilidades de ações Para isso fazse necessário desnaturalizar algumas préconceitos dicotomias e entendimentos socioculturais sobre a complexa dinâmica entre homens e mulheres evidenciando o gênero como fator analítico interpretativo complexo e relevante para pensar e repensar ações no âmbito da violência contra mulheres REFERÊNCIAS ALMEIDA Miguel Vale de Gênero masculinidade e poder revendo um caso de sul de Portugal Anuário Antropológico Rio de Janeiro n 95 p 161189 1996 BANDEIRA Lourdes Maria Violência de gênero a construção de um campo teórico e de investigação Sociedade e Estado Brasília v 29 n 2 p 449469 Aug 2014 DOI httpdxdoiorg101590S010269922014000200008 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0102 69922014000200008lngennrmiso Acesso em 10 Sept 2019 BASTOS Liliana Cabral BIAR Liana de Andrade Análise de narrativa e práticas de entendimento da vida social DELTA São Paulo v 31 n spe p97126 Aug 2015 DOI httpdxdoiorg1015900102445083363903760077 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0102 44502015000300006lngennrmiso Acesso em 10 Sept 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 312 BEIRAS Adriano NASCIMENTO Marcos INCROCCI Caio Programas de atenção a homens autores de violência contra as mulheres um panorama das intervenções no Brasil Saude e Sociedade São Paulo v 28 n 1 p 262274 Mar 2019 DOI httpdxdoiorg101590s010412902019170995 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0104 12902019000100019lngennrmiso Acesso em 10 Sept 2019 BEIRAS Adriano Relatório mapeamento de serviços de atenção grupal a homens autores de violência contra mulheres no contexto brasileiro Rio de Janeiro Instituto NOOS 2014 67 p BEIRAS Adriano et al Políticas e leis sobre violência de gênero reflexões críticas Psicologia Sociedade v 24 n 1 p 3645 Abr 2012 DOI httpdxdoiorg101590S010271822012000100005 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0102 71822012000100005lngennrmiso Acesso em 10 Sept 2019 BILLAND Jan PAIVA Vera Silvia Facciolla Desconstruindo expectativas de gênero a partir de uma posição minoritária como dialogar com homens autores de violência contra mulheres Ciênc saúde coletiva Rio de Janeiro v 22 n 9 p 29792988 Sept 2017 DOI httpdxdoiorg10159014138123201722913742016 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1413 81232017002902979lngennrmiso Acesso em 10 Sept 2019 BRASIL Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos do 8º do art 226 da Constituição Federal da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher altera o Código de Processo Penal o Código Penal e a Lei de Execução Penal e dá outras providências Brasília Presidência da República 2006 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato200420062006leil11340htm Acesso em 10 set 2019 BRASIL Lei nº 12435 de 6 de Julho de 2011 Altera a Lei no 8742 de 7 de dezembro de 1993 que dispõe sobre a organização da Assistência Social Brasília Presidência da República 2011 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato2011 20142011leil12435htm Acesso em 10 set 2019 CARDOSO David Tiago BEIRAS Adriano Política Pública de Assistência Social Um lugar para o trabalho com homens autores de violência 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Criterios de Calidad Psychosocial Intervention Madrid v 19 n 2 p 181190 Jun 2010 Disponível em httpscieloisciiiesscielophpscriptsciarttextpidS1132 05592010000200009lngesnrmiso Acesso em 10 Sept 2019 GHISI Ana Silvia Serrano OLIVEIRA Ana Claudia Delfini Capistrano de OLIVEIRA Paulo Rogério Melo de Políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres no marco dos 11 anos de Lei Maria da Penha Revista Brasileira de Tecnologias Sociais Itajaí v 4 n 2 p 149161 Dez 2017 DOI httpdxdoiorg1014210rbtsv4n2p149161 Disponível em httpssiaiap32univalibrseerindexphprbtsarticleview125507104 Acesso em 10 Sept 2019 HARAWAY Donna Saberes localizados a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial Cadernos Pagu Campinas n 5 p 741 Jan 2009 Disponível em httpsperiodicossbuunicampbrojsindexphpcadpaguarticleview1773 Acesso em 10 Sept 2019 MUSZKAT Susana Desamparo e violência de gênero Uma Formulação Ide São Paulo v 31 n 47 p 125132 Dez 2008 Disponível em httppepsicbvsaludorgscielophpscriptsciarttextpidS0101 31062008000200023lngptnrmiso Acesso em 10 Sept 2019 PRATES Paula L ALVARENGA Augusta Thereza Grupos reflexivos para homens autores de violência contra a mulher sobre a experiência na cidade de São Paulo In BLAY E A org Feminismos e masculinidades Novos caminhos para enfrentar a violência contra a mulher São Paulo Cultura Acadêmica 2014 p 225246 RIESSMAN Catherine Kohler Narrative methods for the human sciences Los Angeles Sage 2008 RIFIOTIS Theophilos Violência Justiça e Direitos Humanos reflexões sobre a judicialização das relações sociais no campo da violência de gênero Cad Pagu Campinas n 45 p 261295 Dez 2015 DOI httpdxdoiorg10159018094449201500450261 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0104 83332015000200261lngennrmiso Acesso em 10 Sept 2019 SAFFIOTI Heleieth Iara Bongiovani O poder do macho São PauloModerna 1987 TONELI Maria Juracy F BEIRAS Adriano RIED Juliana Homens autores de violência contra mulheres políticas públicas desafios e intervenções possíveis na América Latina e Portugal Revista de Ciências Humanas Florianópolis v 51 n 1 p 174193 Nov 2017 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 314 DOIhttpsdoiorg105007217845822017v51n1p174 Disponível em httpsperiodicosufscbrindexphprevistacfharticleview217845822017v51n1p174 Acesso em 10 Set 2019 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da violência 2015 homicídio de mulheres no Brasil Brasília Flacso Brasil 2015 Disponível em httpwwwonumulheresorgbrwp contentuploads201604MapaViolencia2015mulherespdf Acesso em 10 Set 2019 C R É D I T O S ORGANIZADORAS GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS POLIANA RIBEIRO DOS SANTOS SALETE SILVA SOMMARIVA MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGLL CAPA ATHENA DE OLIVEIRA NOGUEIRA BASTOS ILUSTRAÇÃO DA CAPA BRUNA VETTORI PROJETO EDITORIAL E DESENVOLVIMENTO POLIANA RIBEIRO DOS SANTOS
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GRAZIELLY ALESSANDRA BAGGENSTOSS POLIANA RIBEIRO DOS SANTOS SALETE SILVA SOMMARIVA MICHELLE DE SOUZA GOMES HUGLL O R G A N I Z A D O R A S Não há lugar seguro Estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V O L U M E 1 I S B N o b r a 9 7 8 8 5 6 6 1 4 9 3 9 5 I S B N c o l e ç ã o 9 7 8 8 5 6 6 1 4 9 3 8 8 COLEÇÃO ORGANIZADORAS Grazielly Alessandra Baggenstoss Poliana Ribeiro dos Santos Salete Silva Sommariva Michelle de Souza Gomes Hugill Coleção NÃO HÁ LUGAR SEGURO Estudos e Práticas sobre Violências Domésticas e Familiares Volume 1 Edição Eletrônica Florianópolis 2019 Copyright 2019 by Editora Centro de Estudos Jurídicos CEJUR Diagramação Poliana Ribeiro dos Santos Capa Athena de Oliveira Nogueira Bastos Categoria Produção Editorial Editora Centro de Estudos Jurídicos CEJUR O conteúdo deste livro é de responsabilidade dos autores e não expressa posição técnica ou institucional do Poder Judiciário de Santa Catarina das Organizadoras e da Universidade Federal de Santa Catarina CONSELHO TÉCNICOCIENTÍFICO Desembargador Rodrigo Tolentino de Carvalho Collaço Desembargador Moacyr de Moraes Lima Filho Desembargador Henry Petry Junior Desembargador Luiz Cézar Medeiros Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Vânia Petermann Juiz de Direito Marcelo Pizolati Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta CONSELHO EDITORIAL Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta Juiz de Direito Fernando de Castro Faria Juiz de Direito João Batista da Cunha Ocampo Moré Juiz de Direito Antônio Zoldan da Veiga Os trabalhos que compõe esta coleção foram submetidos à dupla avaliação cega doubleblind review por pareceristas ad hoc pósgraduados CIPBRASIL CATALOGAÇÃONAFONTE B144c Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares Organizadoras Grazielly Alessandra Baggenstoss Poliana Ribeiro dos Santos Salete Silva Sommariva Michelle de Souza Gomes Hugill Florianópolis Editora Centro de Estudos Jurídicos CEJUR 2019 Volume 1 314 p fig gráfs tabs ISBN Obra 9788566149395 ISBN Coleção 9788566149388 1 Violências contra as mulheres 2 Feminismo 3 Direitos das mulheres 4 Mulheres Condições sociais I Baggenstoss Grazielly Alessandra II Santos Poliana Ribeiro dos III Sommariva Salete Silva IV Hugill Michelle de Souza Gomes V Título CDD 340 Ficha catalográfica elaborada por Deise Oliveira de Almeida CRB 113414ª Este livro está sob a licença Creative Commons que segue o princípio básico do acesso público à informação O livro pode ser compartilhado desde que atribuídos os devidos créditos de autoria Não é permitida nenhuma forma de alteração ou a sua utilização para fins comerciais brcreativecommonsorg CENTRO DE ESTUDOS JURÍDICOS CEJUR CONSELHO TÉCNICOCIENTÍFICO Desembargador Rodrigo Tolentino de Carvalho Collaço Desembargador Moacyr de Moraes Lima Filho Desembargador Henry Petry Junior Desembargador Luiz Cézar Medeiros Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Vânia Petermann Juiz de Direito Marcelo Pizolati Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta CONSELHO EDITORIAL Desembargador Volnei Celso Tomazini Juiz de Direito Cláudio Eduardo Regis de Figueiredo e Silva Juíza de Direito Janiara Maldaner Corbetta Juiz de Direito Fernando de Castro Faria Juiz de Direito João Batista da Cunha Ocampo Moré Juiz de Direito Antônio Zoldan da Veiga CEJUR Academia Judicial Rua Almirante Lamego 1386 Centro FlorianópolisSC 88015601 Fone 48 32872801 academiatjscjusbr wwwtjscjusbracademia PARECERISTAS DA COLEÇÃO Os trabalhos que compõe a coleção foram submetidos à dupla avaliação cega doubleblind review por pareceristas ad hoc pósgraduados Adaiana Fátima Almeida UFSC Adailson da Silva Moreira PUCSP Adriana Aparecida da Conceição Santos Sá UNIVALE Adriana De Toni UFSC Adriele Andreia Inacio UEL Alberth Alves Rodrigues UFSC Alessandra Knoll UFSC Alessandro Tonon Câmara Ávila UFSC Alexandre Botelho UFSC Aline Antunes Gomes UNIJUÍ Amanda Muniz Oliveira UFSC Amina Regina Silva UFSC Ana Cláudia Wendt dos Santos USP Ana Cristina Costa Lima UFSC Ana Lúcia Cintra UFSC Ana Maria Justo UFSC Ana Martina Baron Engerroff UFSC Ana Paula Araujo de Freitas UFSC Andréa Martini UFSC Andressa Kikuti Dancosky UEPG Angela Maria Moura Costa Prates UFSC Arisa Ribas Cardoso UFSC Athena de Oliveira Nogueira Bastos UFSC Bettieli Barboza da Silveira UFSC Bianca Bez Goulart UFSC Brune Camillo Bonassi UFSC Camila Damasceno de Andrade UFSC Carla Pires Vieira da Rocha UFSC Carolina Frescura Junges UFSC Charles Raimundo da Silva UFSC Chimelly Louise de Resenes Marcon UNIVALI Christiane Heloisa Kalb UFSC Cinthia Creatini da Rocha UFSC Clara Martins do Nascimento UFPE Clarindo Epaminondas de Sá Neto UFSC Claudia Regina Nichnig UFSC Cristiane Valéria da Silva UFSC Daniela Castamann UEL Daniela Lippstein UNISC Daniela Maysa de Souza UFSC Daniele Beatriz Manfrini UFSC Débora Diana da Rosa UFMG Deborah Cristina Amorim UFSC Diana Piroli UFSC Dnyelle Souza Silva UFSC Edivane de Jesus UFSC Eduardo de Carvalho Rêgo UFSC Elaine Cristina Novatzki Forte UFSC Elton Fogaça da Costa UFSC Emmanuelle Elise Campos de Moraes UFSC Eunice Maria Nazarethe Nonato UNISINOS Ezair José Meurer Junior UFSC Fabiani Cabral Lima UFSC Fernanda Ax Wilhelm UFSC Fernanda Cardozo UFSC Fernanda da Silva Lima UFSC Fernanda Martins UFSC Fernanda Nunes da Rosa Mangini UFSC Frederico Augusto Paschoal UFSC Frederico Ribeiro de Freitas Mendes UFSC Gabriel Silva Costa USP Gabriela Dal Forno Martins UFRGS Gerusa Morgana Bloss UFSC Giácomo Tenório Farias UNISC Giovana Dorneles Callegaro Higashi UFSC Giovana Ilka Jacinto Salvaro UFSC Gisele Garcia Lopes UFSC Henrique Franco Morita UFSC Iara Cristina Corrêa UFSC Idonézia Collodel Benetti UFSC Isabela Martins Nadal UEPG Isabele Bruna Barbieri PUCPR Isabele Soares Parente UFSC Isabella 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Luciana de Fátima Leite Lourenço UFSC Luciana Martins Saraiva UFSC Luciana Ribeiro de Brito UFSC Luciano Jahnecka UFSC Luciany Alves Schlickmann UFSC Luis Irapuan Campelo Bessa Neto UFSC Luiz Eduardo Dias Cardoso UFSC Luiza Landerdahl Christmann UFSC Maiara Pereira Cunha UFSC Maíra Marchi Gomes UFSC Marcel Soares de Souza UFSC Marcia Regina Calderipe Farias Rufino UFSC Marcio Jose Rosa de Carvalho UFSC Mareli Eliane Graupe OSNABRUECK Margarete Maria de Lima UFSC Maria Aparecida Salci UFSC Maria Cecilia Olivio UFSC Maria de Jesus Hernnandez Rodriguez UFSC Maria Eduarda Ramos UFSC María Fernanda Vásquez Valencia UFSC Mariana Aquilante Policarpo UFSC Mariana Caroline Scholz UFSC Marilande Fátima Manfrin Leida UFSC Marília dos Santos Amaral UFSC Marília Nascimento de Sousa UFSC Marina da Silva Sanes FURG Maris Stela da Luz Stelmachuk UFSC Marluce Dias Fagundes UFRGS Maurício da Cunha Savino Filó UFSC Melina de la Barrera Ayres UFSC Mirian Carla Cruz UFSC Monica Ovinski de Camargo Cortina UFSC Morgani Guzzo UFSC Natalia Fonseca de Abreu Rangel UFSC Nayala Lirio Gomes Gazola UFSC Noa Cykman UFSC Odisséia Fátima Perão UFSC Paula Helena Lopes UFSC Paula Pinhal de Carlos UFSC Paulo Ricardo Maroso Pereira UFRGS Poliana Ribeiro dos Santos UFSC Priscila Schacht Cardozo UNESC Priscilla Stuart da Silva UFSC Rafael de Almeida Pujol UFSC Rafaela Luiza Trevisan UFSC Renata Andrade de Oliveira UEM Renata Guimarães Reynaldo UFSC Renata Nunes UFSC Rene Erick Sampar UEL Roberto Wöhlke UFSC Rosana Sousa de Moraes Sarmento UFSC Roselete Fagundes de Aviz UFSC Rudá Ryuiti Furukita Baptista UEL Sabrina Aparecida da Silva UFSC Sabrina Blasius Faust UFSC Samanta Rodrigues Michelin UFSC Samira de Moraes Maia Vigano UFSC Samuel Martins dos Santos UFSC Sandra Iris Sobrera Abella UFSC Sérgio Cabral dos Reis UFSC Sheila Cristina Silva Ferraz UFSC Silvana Marta Tumelero UFSC Silvia Araújo Dettmer PUCSP Silvia Cardoso Rocha UFSC Simone Lolatto UFSC Simone Vidal Santos UFSC Soraia Carolina de Mello 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Silveira UFSC Bianca Louise Wagner UFSC Bruna Adames UNIFEBE Bruna Amato UGF Bruna Boldo Arruda UNIVALI Bruna Camila Schuhardt UNIASSELVI Bruna Carolina Bernhardt UFSC Bruna Luisa Macelai UNIVALI Bruna Luiza de Souza Pfiffer de Oliveira UFSC Bruna Marques da Silva UNISINOS Caio Henrique de Mendonça Chaves Incrocci UFSC Camila Maffioleti Cavaler UFSC Camila Trindade UFSC Carla Julia da Silva UFRN Carla Roberta Carnette UNOESC Carmen Leontina Ojeda Ocampo Moré ULISBOA Carolina Carvalho Bolsoni UFSC Carolina Carvalho Bolsoni UFSC Carolina Orquiza Cherfem UNICAMP Carolina Young Yanes UFSC Charlene Fernanda Thurow FURB Christiane Heloisa Kalb UFSC Clarete Trzcinski UFRGS Clarindo Epaminondas de Sá Neto UFSC Cláudio Macedo de Souza UFMG Cristiane Floriano Rieg UFSC Cristiane Tonezer UFRGS Dábine Caroene Capitanio UFSM Daiane dos Santos Possamai UNESC Daniela Queila dos Santos Bornin ITE Daniela Urtado PUCPR Danielle Alves da Cruz UFSC Deise Warmling UFSC Deisemara Turatti Langoski UFSC 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Mondardo Cardoso UFSC Hildemar Meneguzzi de Carvalho UNIVALI Íris de Carvalho PUCRS Isabele Bruna Barbieri UEL Ísis de Jesus Garcia UFSC Ismê Catureba Santos UCAM Ivone Maria Mendes Silva USP Janice Merigo PUCRS Jeanine Dewes de Oliveira UNISUL Jéssica Janine Bernhardt Fuchs UFSC Jéssica Painkow Rosa Cavalcante UFG João Antonio da Cruz dos Santos UNIVALI João Fillipe Horr UFSC José Dias Santana UFPA José Elias Gabriel Neto FMPRS Josilaine Antunes Pereira UNISINOS Júlia Farah Scholz CATÓLICASC Júlia Sleifer Alonso UNIPAMPA Juliana Alice Fernandes Gonçalves UFSC Juliana Andrade da Silva PUCRS Karine Grassi UFSC Karine Kerkhoff UNOCHAPECÓ Karla Fernanda Pereira UFMA Karolyna Marin Herrera UFSC Karopy Ribeiro Noronha UFSM Kelly Cristina Schäfer Batistella UNISUL Kimberly Gianello Studer UFSC Laís Castro UEM Larissa Emília Guilherme Ribeiro IESP Larisse de Oliveira Rodrigues UERJ Lauriana Urquiza Nogueira UFSC Letícia de Cisne Branco CESUSC Lia Gabriela Pagoto UFFS Liandra Savanhago UFSC Lívia Dornelles Madrid URI Liziane da Silva Rodríguez PUCRS Luana Limberger Marques CESUSC Luana Marina dos Santos UNISINOS Lucas Francisco Neto DOCTUM Lucely Ginani Bordon UFRN Luciana Bittencourt Gomes Silva UNIDERP Luciele Mariel Franco UEM Lucienne Martins Borges UQÀM Luisa Chaves de la Rosa UNIPAMPA Luísa Neis Ribeiro UFSC Luiza Alano de Almeida UNESC Luiza Niehues Bonetti UNESC Maiara Leandro UFSC Mainara Gomes Cândida Coelho UFSC Maira Gabriela Anschau UNOCHAPECÓ Márcia Aline Pacheco de Medeiros CESUSC Márcia Cristiane NunesScardueli UNISUL Mareli Eliane Graupe UFSC Mareli Eliane Graupe UNIPLAC Mariana Silvino Paris CLACSO Mariane Pires Ventura UFSC Mariane Vanderlinde da Silva UFSC Mariella Kraus FURB Marília de Nardin Budó UFPR Marília dos Santos Amaral UFSC Marina Williamson Touro UFSC Marja Mangili Laurindo UFSC Mayara de Abreu Stuepp Cardoso FMP Mayara Zimmermann Gelsleichter UFSC Michelle de Souza Gomes Hugill UFSC Milena Barbi UFSC Miliane dos Santos Fantonelli UFSM Mirenchu Maitena dos Santos Rivas UNIPAMPA Miriam Olivia Knopik Ferraz PUCPR Monica Ovinski de Camargo Cortina UFSC Nádia Maria Gonçalves Krüger CEGSC Natália Aparecida Antunes UFSC Natielle Machado Santos UNIPLAC Nínive Degasperi Poffo UFSC Pamela de Gracia Paiva UNINTER Paola Dozoretz FURB Patrícia Backes UFSC Patrícia Borba Marchetto UB Paulo José Mueller UNIVALI Paulo Thiago Fernandes Dias PUCRS Paulo Thiago Fernandes Dias UNISINOS Poliana Ribeiro dos Santos UFSC Priscila Fernanda Santiago Ferreira UFMA Raul da Silveira Santos UFPA Regina Célia Costa Lima PUCGO Roberta Logobuco de Araujo Pereira PUC Sabrina Nerón Balthazar UFSC Sara Alacoque Guerra Zaghlout PUCRS Scheila Krenkel UFSC Sheila Rúbia Lindner UFSC Stella Scantamburlo de Mergár UCAM Sthefanie Aguiar da Silva UFSC Tainá Malinski UNISUL Thamyres Cristina da Silva Lima UFSC Thays Berger Conceição UFSC Vanessa Martinhago Borges Fernandes UFSC Vilma Pimentel Siqueira UFSM Wellington Lima Amorim UFRJ William Hamilton Leiria UFSC Vítimas sublimes projetos de sujeitos Não Sistema e sistemas Estrutura e estruturas Hierarquia e hierarquias Vários sub Subsistemas subestruturas Dentro disto sujeitOs Fora sujeitAs Há entrecruzamentos logo não há universalismo Num espaço como o Brasil seus contextos históricopolíticoeconômicocultural jurídico importam Invasão genocídio dos povos originários escravidão ditadura militar golpes políticos Poder descentralizado nas mãos dos que observados os períodos e cenários já o detinham e o detém Pequenos desvios dentro destes ciclos perpétuos Luta muita luta Contra o genocídio escravidão ditaduras golpes políticos retiradas de direitos Negação muita negação De todos estes eventos e características próprias No atravessamento as periferias Os territórios e corpos periféricos Ditos periféricos A marginalização do outrO Da outrA Sufocamento A construção de uma mentalidade social hierarquizada sob moldes coloniais na organização de mundo dividida entre Sul e Norte Global A trama do desenho do sujeito Do que é o sujeito Do sujeito de direito Quem tem direitos E do outrO Da outrA Que não o do direito Quem não tem direitos Nesta composição articulada secularmente sem descanso num território não recuperado de seus traumas a SujeitA boa é aquela que se mantém como a outrA sem direitos isto é a não sujeitO Ocorre que em vários pontos do globo dentre contextos sociais surgem reflexões e mobilizações destas sujeitAs mulheres Novamente luta muita luta e negação muita negação Se estrutura a sujeitA para que seja boa Uma boa vítima SujeitA vítimA A negação do gênero como arma feminicida Entrecruzamentos interseccionalidades descolonizações enfrentamentos Desconstruções morais e reconstruções de alianças políticas Desfazimento da desumanização dos projetos de sujeitos como vítimas sublimes Nem boa Nem vítima Sujeita de direito Sujeitas de direitos Em oposição às violências perpetradas contra as sujeitas mulheres as margens desde e para as margens ou seja desde os corpos periféricos para um país construído como periferia Brasil por teorias e práticas desde e para as periferias do mundo Disputas narrativas e materiais pelas e para as sujeitas mulheres Juliana Alice Fernandes Gonçalves APRESENTAÇÃO A violência contra as mulheres remonta dos tempos primitivos da humanidade cuja desigualdade entre os gêneros aqui no sentido das relações de poder entre homens e mulheres é observada em todo os campos da vida humana baseada nas diferenças biológicas e com isso na divisão do trabalho e funções em uma sociedade patriarcal Às mulheres era atribuído um papel secundário e de submissão ao domínio dos homens sob o argumento de serem seres frágeis física e intelectualmente como também da sociedade e da religião que lhes limitava as atribuições à esfera privada tais como a família reprodução e afazeres domésticos enquanto aos homens era permitida a atuação na esfera pública associada à liberdade à produção à política Tal situação foi sendo alterada por meio dos movimentos feministas e dos avanços normativos em especial a partir do século XX em que foram firmados Tratados e Convenções Internacionais assim como a promulgação da Constituição Cidadã de 1988 e das leis Maria da Penha e do Feminicídio os quais não só alçaram as mulheres à condição de sujeitos de direito e não mais de objeto como também reconheceram que as violações esses direitos são violações aos direitos humanos colocando as mulheres em patamar de igualdade com os homens Por outro lado temse que os avanços sociais não acompanharam a evolução formal uma vez que por conta da manutenção da desigualdade na divisão sexual do trabalho as mulheres passaram a assumir uma sobrecarga de responsabilidades Mesmo trabalhando fora de casa permanecem como as principais responsáveis pelos afazeres domésticos cuidados com os filhos e familiares Assim as limitações existentes para as mulheres no âmbito profissional contribuem para a manutenção das desigualdades e das violências sobre elas exercidas Como se vê o mundo atual ainda não é um lugar seguro para as mulheres pois as mulheres continuam a sofrer vários tipos de violências no âmbito doméstico e familiar no trabalho e na esfera pública Em pleno século XXI mulheres continuam sendo vitimadas subjugadas e morrendo pelas mãos de seus ex parceirosmaridosnamorados permanecem com medo de sair nas ruas à noite sendo julgadas pelo seu comportamento social ou pelas roupas que vestem Diante de tudo isso é que se denota da importância desta obra cujo título da Coleção Não há lugar seguro reflete a busca dosas pesquisadoresas de diversas áreas em trazer panoramas argumentos críticas e sugestões para possíveis caminhos e soluções para a problemática da violência de gênero Com toda a certeza as reflexões aqui apresentadas contribuirão para o desenvolvimento de ideias e ações sejam elas no âmbito público ou privado para o aprimoramento da Justiça e dos serviços públicos de proteção às mulheres E por que não dizer contribuirão para que se dê mais um passo rumo à efetivação dos direitos humanos das mulheres e para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária Boa leitura Salete Silva Sommariva Desembargadora do Tribunal de Justiça de Santa Catarina TJSC PREFÁCIO O presente livro integra a Coleção Não Há Lugar Seguro constituída por estudos científicos aprovados na I Mostra de Pesquisa Científica sobre Violências Contra as Mulheres Sendo uma parceria entre o Tribunal de Justiça de Santa Catarina e o Lilith Núcleo de Pesquisas em Direito e Feminismos da Universidade Federal de Santa Catarina devidamente certificado pelo CNPq O presente volume contempla pesquisas sobre violências domésticas e familiares que acometem as mulheres no território brasileiro A violência de forma genérica consubstanciase como desvios comportamentais a partir de uma referência de expectativa relacional positiva ao sujeito Assim compreendida é tida como um dilema humano sustentada por processos históricos relacionais e culturais que acometem a sociedade Por isso inclusive inserese com extrema relevância no contexto mundial da área inserida por se consubstanciar como um problema de saúde pública conforme posicionamento da Organização Mundial da Saúde OMS especialmente no que se refere à violência relacionada às mulheres No Brasil a temática é tratada pela Lei n 113402006 denominada Lei Maria da Penha que definiu política pública para o enfrentamento das violências domésticas e familiares contra as mulheres a partir da criação de instrumentos de tutela com viés protetivo e da proposta de implementação de um sistema interdisciplinar de combate e prevenção à violência além do endurecimento no sistema penal tradicional com medidas punitivas Importante destacar que a Lei Maria da Penha foi resultado além de movimentos por direitos humanos e feministas da condenação do Estado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos CIDH da Organização dos Estados Americanos OEA A condenação ocorreu por motivo de violação de direitos humanos relacionada à violência de gênero em referência ao caso da farmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes em descumprimento dos tratados internacionais ratificados pelo País estabelecidos pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos e pela Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência Contra Mulher chamada de Convenção de Belém do Pará Os fatos que justificaram a condenação são relativos à morosidade do Estado brasileiro em punir Marco Antonio Heredia Viveros exmarido de Maria da Penha que praticou violências sistemáticas contra ela deixandoa paraplégica em 1983 Especificamente a prisão do acusado somente se deu em 2002 quase no termo final da prescrição dos crimes e depois de ainda Marco tentar matála duas vezes Assim a aprovação de uma legislação específica preocupada não apenas com a dimensão punitiva mas também atenta à dimensão reflexiva dos atos que atingem os direitos humanos das mulheres apresentam o potencial de promover mudanças de consciência individual e coletiva e consequentemente de estrutura na organização social Nesse sentido ainda estamos caminhando para a implementação efetiva das prescrições de tal política pública e para tanto fazse imprescindível as pesquisas sobre a temáticas as quais cumprem a função de direcionar concretamente as ações a serem estabelecidas para o cumprimento da lei bem como para fazer refletir sobre dispositivos que eventualmente não estejam em compasso com a proposta legal Em tal esforço seguemse estudos que apresentam a sensibilidade para tal mote e que resistem para a manutenção dos direitos humanos das mulheres e consequentemente para a concretização de uma sociedade mais saudável para todas e para todos Grazielly Alessandra Baggenstoss SUMÁRIO A PERPLEXIDADE INSTAURADA PELA LEI 138272019 NO SISTEMA DE GARANTIAS PROCESSUAIS ÀS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E INTRAFAMILIAR 17 Eduardo Passold Reis A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E A NECESSÁRIA COMPETÊNCIA HÍBRIDA DOS JUIZADOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER UMA ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E A POSIÇÃO DO FONAVID 32 Stella Scantamburlo de Mergár Lucas Francisco Neto LEI MARIA DA PENHA E A MANUTENÇÃO DA ORDEM FAMILIAR UMA ANÁLISE SOBRE A CONCESSÃO JUDICIAL DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE ALIMENTOS PROVISIONAIS E DE SUSPENSÃORESTRIÇÃO DO DIREITO DE VISITA DOSAS FILHOSAS 45 Luiza Alano de Almeida Mônica Ovinski de Camargo Cortina STALKING SOBRE A PERTINÊNCIA DE UMA LEI ESPECÍFICA A PARTIR DA ANÁLISE DE CASOS JURISPRUDENCIAIS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA 65 Marja Mangili Laurindo Karine Grassi TRANSFEMINICÍDIOS E A APLICAÇÃO DA QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO 77 Juliana Andrade da Silva José Elias Gabriel Neto EFETIVIDADE DA LEI MARIA DA PENHA NA DEFESA DOS DIREITOS DAS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA 97 Janice Merigo Karine Kerkhoff Maira Gabriela Anschau Clarete Trzcinski A JUDICIALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES 117 Ísis de Jesus Garcia PRÁTICAS PROFISSIONAIS E SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS À VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES NA PERSPECTIVA DE PROFISSIONAIS DE UMA CASA ABRIGO 130 Scheila Krenkel Carmen Leontina Ojeda Ocampo Moré VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA NOS RELACIONAMENTOS AFETIVOS A SUTIL DES ARTE DO ABUSO 148 Mayara de Abreu Stuepp Cardoso SERVIÇO SOCIAL NO SOCIOJURÍDICO E ATENDIMENTO ÀS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR 161 Emilly Marques Tenorio CARACTERÍSTICAS DA VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA MULHERES EM INTERFACE COM AS VIOLÊNCIAS SEXUAL E FÍSICA NOTIFICAÇÕES NO SUL DO BRASIL 176 Liandra Savanhago Carolina Bolsoni Elza Berger Salema Coelho Sheila Rubia Lindner REFLEXÕES SOBRE A VIOLÊNCIA DUAS MULHERES ATENDIDAS POR UMA ORGANIZAÇÃO NÃOGOVERNAMENTAL EM BLUMENAUSC 188 Geórgia Paula Martins Faust Paola Dorozetz Bruna Camila Schuhardt Patrícia Backes APONTAMENTOS ACERCA DO HISTÓRICO DE VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES E SEU ENFRENTAMENTO NA CIDADE DE IMPERATRIZMA 204 Fernanda Miler Lima Pinto Jéssica Painkow Rosa Cavalcante Regina Célia Costa Lima VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA COMARCA DE ARARANGUÁ LEVANTAMENTO DE DADOS DO SISTEMA DE AUTOMAÇÃO DA JUSTIÇA DE PRIMEIRO GRAU SAJ 222 Nínive Degasperi Poffo Fabio Mattos MARÉ MULHERES EM ACOLHIMENTO REFLEXÃO E ESCUTA RELATO DE EXPERIÊNCIA DE UM PROJETO DE EXTENSÃO COM MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA 242 Amanda Ferreira da Silva Letícia Cisne Branco Luana Limberger Marques Marília dos Santos Amaral SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA AS MULHERES SOB A PERSPECTIVA DE AGRESSORES SENTIDOS E DISCURSOS 258 Márcia Cristiane NunesScardueli UM OLHAR PARA O AUTOR DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA PERSPECTIVA DA REDUÇÃO DE DANOS 277 Vilma Pimentel Siqueira LACUNAS E ABISMOS ENTRE HOMENS E SERVIÇOS IMPASSES NO COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES 296 Adriano Beiras Caio Henrique de Mendonça Chaves Incrocci Amanda Alexandroni Marina Williamson Touro Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 17 A PERPLEXIDADE INSTAURADA PELA LEI 138272019 NO SISTEMA DE GARANTIAS PROCESSUAIS ÀS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E INTRAFAMILIAR Eduardo Passold Reis1 RESUMO A Lei 113402006 apresentou às mulheres vítimas de violência intrafamiliar com as medidas protetivas de urgência um sistema de garantias processuais de natureza cautelar As cautelares processuais tem entre outros pressupostos o da judiciariedade qual seja a reserva de jurisdição para sua prévia análise e concessão A Lei 138272019 trouxe novidade e permitiu a concessão e execução imediata de medida protetiva por policiais no exercício da função O objetivo do artigo é a reflexão sobre a integridade endonormativa do sistema de garantias processuais às mulheres vítimas de violência com vistas à promoção dos interesses destas pessoas Propõese um exame crítico da nova possibilidade a partir de uma ideia de integridade do sistema de garantias e de proibição de proteção deficiente Os resultados direcionamse a demonstrar os riscos ao sistema de garantias que podem decorrer da manutenção da norma notadamente em razão dos conflitos de regras de competência de ordem constitucional que se evidenciam As considerações finais convidam a uma análise sobre a viabilidade da manutenção da norma na forma posta diante dos riscos interpretativos envolvidos O trabalho é desenvolvido a partir das técnicas de revisão bibliográfica e de análise legislativa e seu método é o dedutivo Palavraschave Direito Violência Doméstica Garantias Processuais Tutela Cautelar Medidas Protetivas INTRODUÇÃO O quadro de violências à Mulher por sua condição e sua subjugação ao arquétipo Homem são traços de violência e desigualdade que acompanham há séculos nossa civilização Na contemporaneidade alguns passos tem sido buscados para reverter esse cenário no campo institucional e legislativo Precedida por outras legislações de cunho protecionista mais restritivo a Lei 113402006 conhecida como Lei Maria da Penha é um marco histórico no corpo de leis do Brasil acerca do tema Enunciando a temática da violência doméstica e intrafamiliar contra a Mulher com coragem e vigor e possibilitando a intervenção estatal com políticas públicas e práticas institucionais de promoção de igualdade material e discrímen positivo esta legislação trouxe 1 Magistrado membro do Poder Judiciário de Santa Catarina atuante na Comarca de Curitibanos Aluno do Curso de Mestrado Profissional em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Especialista em Direito e Gestão Judiciária pela Academia Judicial do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina 2012 Emaileduardopassoldreistjscjusbr Lattes httplattescnpqbr3345257600221255 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 18 consigo um sistema de garantias entre elas de cunho processual no âmbito do Processo judicial onde constam mulheres como vítima de violência intrafamiliar O sistema de proteção processual ainda que não ideal conta com inegáveis avanços e tem dentre outras ferramentas a utilização da técnica cautelar e inibitória como um de seus principais elementos de estruturação nomeadamente na concessão de medidas protetivas de urgência A pesquisa objetiva demonstrar a natureza processual cautelar destes pleitos com seus pressupostos e garantias Afirmase que sem os pressupostos característicos das medidas cautelares estes provimentos podem correr o risco de se tornarem inefetivos com riscos diretos e indiretos imediatos e futuros à proteção das vítimas e em desrespeito à sistematização de garantias instaurada originalmente pela Lei 113402006 e em ofensa ao princípio à proibição de retrocesso Quanto à metodologia a elaboração do trabalho pautouse pelo método dedutivo Objetivase apresentar argumentos que se compreende bem estabelecidos no estágio atual do tratamento científico da matéria para a partir deles estruturar conclusões válidas MEZZAROBA MONTEIRO 2017 p 93 A exploração de conceitos e premissas preliminares farão avançar o conteúdo do trabalho para a conclusão crítica proposta A utilização das técnicas do referente do fichamento e de pesquisa bibliográfica e legislativa foram essenciais para empreender o desenvolvimento dos estudos e das conclusões do artigo No que concerne à divisão estrutural do trabalho após esse introito a primeira subdivisão visa descrever o Processo Judicial como caminho para realização de direitos fundamentais Para esta realização é imprescindível que as técnicas processuais sejam adequadas e diferenciadas a depender do objeto de tutela pretendida A importância da tutela cautelar em sede civil e penal também é abordada Após buscase equacionar as medidas protetivas de urgência e relacionálas no âmbito penal às medidas cautelares penais com todas suas características e atributos Às mulheres vítimas de violência devese dar proteção plena com instrumentos processuais efetivos e garantida a seriedade e certeza das sanções em caso de descumprimento dos preceitos cautelares tomados para tutelar seus direitos e interesses A segunda seção aborda a norma trazida à lume pela Lei 138272019 e denuncia a perplexidade interpretativa que se erige a partir de então É que referida Lei deferiu a agentes administrativos como policiais civis militares e delegados de polícia a atribuição de também poderem determinar e executar de imediato provimentos cautelares de cunho processual penal no âmbito da proteção doméstica e familiar contra a mulher A ofensa à natureza jurisdicional dos provimentos cautelares e ao caráter de juridicidade desta injunção que terá efeitos tanto Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 19 no Processo quanto no âmbito relacional e no direito Material dos envolvidos é que clama por atenção e cuidado As considerações finais são um chamado à reflexão crítica sobre essa nova possibilidade apresentada pelo legislador 1 AS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA INSTITUÍDAS PELA LEI 113402006 E SUA NATUREZA JURÍDICA DE PROVIMENTO CAUTELAR À cena jurídica contemporânea é evidente o cariz de primeira necessidade que se emprestam aos direitos e garantias fundamentais A luta pelos direitos no decorrer da História transformouse de uma dimensão inicialmente política primeiro em fase de afirmação de direitos individuais e depois coletivos para uma dimensão sistêmica em que a inclusão e o acesso são elementos essenciais CAPELLETTI GARTH 1988 A Constituição Federal de 1988 e suas luzes trouxe evolução da prática jurídica abarcando princípios garantias e fundamentos que servem de base e direcionamento na resolução dos conflitos processuais Não sem razão afirmouse que um dos desafios atuais da teoria do processo é afeiçoar seus conceitos à realidade constitucional e mais que isso visualizar a jurisdição sob o prisma político incorporando no exercício jurisdicional os princípios e valores que qualificam o processo como instrumento da democracia no Estado Democrático de Direito ABREU 2011 p 409 Sob esse prisma os meios processuais são meios implementos garantias formas de cumprir promessas constitucionais e de Direito substantivo Segundo Lamy 2007 só cabe falar em real prestação de jurisdição quando garantido pelos órgãos judiciários responsáveis pela tutela do direito um mandamento de efetividade ao direito material vez que diante de lesão ou ameaça grave este deve realizarse plenamente Situados neste referencial prévio sabese que dentro da legislação processual há medidas que funcionam como forma de alcance rápido acautelamento de situações e também de resguardo de direitos Dentro dessas medidas encontrase a tutela cautelar que possui a função de proteção na relação processual sejam de direitos de provas ou de bens A partir disso entendese a aplicação do direito processual como vínculo entre a parte que necessita o resguardo de determinado bemdireito e o somatório de requisitos para que isso se aplique de forma rápida justa e viável dentro do âmbito processual seja no âmbito cível seja na seara penal O papel dos aplicadores do direito nesse contexto é o de verificar qual o bemdireito está em risco e qual a urgência e necessidade de protegêlo A atividade de conhecer Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 20 e analisar pleitos de provimentos de urgência feitos no Processo tem como notas imprescindíveis a reflexão o estudo detida análise e interpretação acurada Esta ponderação torna essencial a análise jurisdicional das tutelas de urgência em geral entre elas as medidas cautelares Daí há de se lembrar do princípio da reserva da jurisdição fundado constitucionalmente Acerca do tema a doutrina especializada afirma a Constituição Federal de 1988 estabelece abrangência do princípio da inafastabilidade da jurisdição de modo que passa a proteger lesões e ameaças a direitos e não somente restringir tal garantia às situações jurídicas que envolvam a proteção de direitos individuais o que vem alcançar as cautelares em geral POLASTRI 2014 p 26 Não se olvide que as cautelares civis ou penais terão efeitos espraiados em todo procedimento a partir de sua implementação Um provimento de natureza cautelar cria obrigações erige interditos implica consequências ao seu descumprimento adjudica posição de vantagem processual ou de reequilíbrio material em favor de quem foi tomado Dessa forma é preciso se pensar em eficácia de uma determinada decisão e na função social do processo ou seja a cautelaridade processual contribui para que o resultado de uma determinada demanda seja cíclico integrado e cumpra seu objetivo maior a entrega da tutela jurisdicional justa útil adequada Nessa tessitura como se verá adiante uma das características de maior substância dos provimentos cautelares é a judiciariedade isto é o de ser um provimento com carga jurisdicional e emanado de autoridade judiciária no cumprimento de seu viés constitucional O provimento cautelar para ser deferido deve guardar equacionamento aos vetores de urgência e verossimilhança que em sentido pragmático resumemse nos elementos fumus boni iuris ou em sede criminal fumus comissi delicti e periculum in mora na seara crime o periculum libertatis O primeiro possui a tradução juridicamente conhecida como fumaça do bom direito ou seja indícios de que o direito requerido possui embasamento legal e existe O segundo se dá em razão do perigo na demora indicando que se a medida não for analisada e tomada com certa urgência correse o risco de uma das partes não alcançar o direito tutelado ou submergir algum bem importante para a causa Igualmente na específica sede processual penal as medidas cautelares também tem o objetivo de proteger direitos bens provas pessoas e o andamento processual como um todo resguardando um resultado eficaz para a lide criminal Em sede processual penal as medidas cautelares serão pessoais relacionadas à pessoa do investigado ofensor ou da vítima ou Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 21 reais relacionada a bens ou objetos relacionados à prova ou cuja custódia se faça necessária para outros fins como ressarcimento de danos causados pelo crime por exemplo Situandonos no objeto específico deste estudo a Lei n 11340 de 07 de agosto de 2006 popularmente conhecida como Lei Maria da Penha trouxe contribuição importante ao campo do Processo notadamente na aplicação e implementação de cautelares que obrigam o agressor art22 e que visam a integridade física e psicológica art 23 e patrimonial da vítima art 24 É alarmante o número de mulheres vítimas de violência doméstica intrafamiliar seja ela física ou psicológica Para esses casos as medidas cautelares funcionam de maneira imediata visando com o provimento de urgência salvaguardar os bens que são mais caros naquela situação a dignidade humana a liberdade a propriedade individual a vida As medidas protetivas de urgência são pleitos de natureza civil ou penal apresentados pela autoridade policial pelo Ministério Público ou pela própria ofendida que tem por objetivo resguardar condição de integridade mínima aos direitos da ofendida frente à situação de violência doméstica ou intrafamiliar São provimentos de cunho situacional e pragmático cuja intenção é especificamente fazer cessar quadro de violência ou evitar que se erijam no mundo dos fatos situações para novas violências contra a ofendida Por se tratar de direito fundamental a cautelaridade encontrase na preservação da vítima seja sua saúde patrimônio integridade física ou vida A atuação dos órgãos estatais responsáveis pela coleta dos informes e apuração dos fatos é essencial para que se efetive a medida cautelar e principalmente que seja ela concretizada o mais rápido possível Segundo doutrina majoritária as medidas protetivas de urgência são cautelares processuais cujo caráter poderá ter abrangência cível ou penal dependendo do direito material violado e do provimento jurisdicional que se visa obter CUNHA PINTO 2015 Nesse sentido também é a lição de PORTO 2014 Não é possível nos determos especificamente sobre o ponto mas é certo que as medidas protetivas tem caráter cautelar pois há clara relação de comutatividade entre as medidas protetivas de urgência e demais medidas cautelares previstas na legislação de regência Isto é as medidas protetivas podem ser reforçadas ou substituídas por outras medidas de cunho cautelar previstas na legislação processual penal art 19 2º e 3º Lei 113402006 Sob o ponto de vista de comando legislativo e aplicabilidade pragmática endoprocessual a questão parece resolvida sob os prismas da relação de comutatividade e possibilidade de fungibilidade Só são fungíveis ou adesivas medidas de mesma natureza jurídicoprocessual Assim se as medidas protetivas podem ser complementadas por outras e em caso de descumprimento Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 22 podem ser substituídas ou desafiar medidas mais gravosas como a prisão preventiva segundo o art 313 IV CPP é certo que ambas tem a mesma natureza jurídica a de medidas cautelares Pelas especificidades do estudo proposto direcionamonos especificamente para a natureza processual penal dos pleitos de medidas protetivas de urgência Esta natureza erigir seá quando houver no mundo fenomênico ocorrência de fato tipificado como crime em que a ofendida busque auxílio denunciando o fato na seara criminal Presentes os requisitos formais passíveis a iniciar o procedimento simplificado de promoção de medidas protetivas art 18 Lei 11340 e concedidas as medidas protetivas com fundamento cautelar pelo Juiz esta contará com os requisitos próprios das medidas cautelares penais sendo estes acessoriedade preventividade instrumentalidade hipotética provisoriedade revogabilidade referibilidade e jurisdicionalidadesic POLASTRI 2014 p 330 Após intimado da concessão das medidas que lhe interpõe interditos é possível e infelizmente ocorre com frequência DIAS 2015 p 2830 que o ofensor torne a importunar a vítima Sua conduta nesse caso desqualifica o diálogo inter partes e o desrespeita a própria relação processual estabelecida motivo pelo qual poderá ser sancionado com medidas graves e específicas Novas medidas protetivas ou outas cautelares em complementação poderão ser ordenadas arts 19 2 e 3º Lei 11340 podendo chegar à decretação da prisão preventiva art 20 Lei 11340 e art 313 IV CPP contra o ofensor recalcitrante Não fosse a medida protetiva de urgência tomada em seara de persecução penal uma cautelar criminal típica não tivesse ela essa natureza jurídica não poderiam haver em substituição ou complemento a ela outras medidas cautelares penais Lembremos que tomadas as medidas previstas nos arts 22 a 24 da Lei Maria da Penha em ação de esfera cível o que é perfeitamente possível esta sede não poderá ordenar cautelares criminais típicas sem que haja persecução penal instaurada Em um sistema que tem no discrímen positivo uma política afirmativa de inclusão e promoção de valores e condutas o sistema processual e suas garantias devem ser interpretados e aplicados em consonância com os vetores que iluminam a legislação de regência Sem descurar do rigor metodológicointerpretativo próprios da Ciência Jurídica isso quer dizer que o sistema tem de estar preparado e colmatado para funcionar e trazer resultados para quem dele se utiliza e necessita Por isso as medidas protetivas de urgência como as demais cautelares criminais tem de ter efeito célere prático e vívido e não sendo bastantes impõese sua complementação ou substituição por medidas mais drásticas a fim de cessar danos e reparar situações de ilicitude cometidas donde se pode enxergar um viés claramente inibitório Isto porque Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 23 quando se requer com base na legislação processual a observância do fazer exigese o cumprimento do dever imposto pela norma para a prevenção do direito a realização do desejo preventivo de direito material significa tutela jurisdicional preventiva e portanto tutela jurisdicional inibitória MARINONI 2010 p 201 Mister neste ponto reforçar apontamento acerca de pressuposto essencial para ter lugar essas medidas que é a judiciariedade a reserva de jurisdição ou noutros termos que estas medidas sejam analisadas e aplicadas por membro do Poder Judiciário Não só em razão dos mandamentos constitucionais e legais que adiante serão trabalhados é ao Judiciário que o legislador originário depositou estas competências e atribuições A regra havendo notícia de crime e denúncia por parte da vítima é que a relação seja judicializada procedimentalizada processualizada SOUZA 2015 Conceituase judiciariedade como a função típica jurisdicional na resolução do conflito a juris dictio princípio pelo qual toda questão que envolva apreciação de legalidade deva ser submetida a um juiz FERREIRA FILHO 1984 p 37 As medidas protetivas de urgência pela natureza jurídica cautelar que tem e pelos efeitos severos jurídicos e materiais que delas podem advir tem pressupostos e atributos bem marcados sendo um dos mais marcantes como visto a competência judicial exclusiva para sua decretação O cisma promovido pela Lei 138272019 nessa atribuição de competências gera quebra de raciocínio sistêmico o que pode redundar risco sério às garantias processuais da mulher vítima de violência doméstica em ofensa ao princípio da proibição da proteção deficiente BIANCHINI 2014 2 A PERPLEXIDADE CRIADA NO SISTEMA DE GARANTIAS PROCESSUAIS À MULHER VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA A PARTIR DA EDIÇÃO DA LEI 138272019 Como se viu o sistema processual penal tal qual o processual civil possui formas diferenciadas de tutelas de urgência no Processo Essa gestão no Processo Penal é problematizada a partir de vetores vários como entre outros a repercussão social de dada conduta tomada como crime em determinada comunidade como a gravidade concreta da conduta e reação dos atores sociais envolvidos ou a partir da possibilidade franca de reiteração de condutas tidas como crime com risco iminente às vítimas No caso específico de nosso objeto de estudo é este último aspecto que visamos abordar Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 24 As práticas de violência e desrespeito contra as mulheres em nossa sociedade é estado de coisas não situação episódica A par disso o recorte da Lei 113402006 é específico e limitado à relação intrafamiliar e às violências oriundas de uma relação pessoal de afetividade De todo modo é certo que se trata de violação a garantias mínimas art 6º da Lei 11340 porque ela caracterizase principalmente na cultura machista do menosprezo pela mulher bem como na ideia de perpetuação da mulher ao mando do homem autorizando a equivocada e nefasta disseminação da inferioridade do gênero feminino em relação ao masculino permitindo a coisificação da mulher numa afronta direta à doutrina da dignidade da pessoa humana SOUZA 2016 p 71 O retrato da História revela que as premissas socioeconômicas psicológicas e antropológicas em que se desenvolvem as violências contra o gênero feminino tornam esse ciclo sempre de novo repetido e repetível em multiformes maneiras DIAS 2015 Num âmbito mais situacional é sabido que a reiteração de condutas violentas contra a mulher pelo mesmo companheiro mesmo já tendo sido denunciado anteriormente não é infelizmente nenhuma novidade As Varas judiciais específicas já contam num misto de pasmo icônico e inoperância e incompetência na gestão de políticas públicas específicas com clientes com cadeira cativa que já tem ajuizados contra si mais de dezena de procedimentos criminais instaurados por violências contra a mesma ou contra várias mulheres Esse retrato empírico não é mero recurso pictórico mas real vivenciado e faz concluir a reiteração das condutas de violência intrafamiliar é muito mais frequente que se imagina mesmo após a primeira denúncia e o tratamento judiciário da matéria A discussão sobre a efetividade da Lei e das políticas públicas no âmbito de proteção judiciária merecem reflexão em sede apartada e mais específica Nosso recorte é mais pragmático agora É que diante da constatação da reiteração da violência é preciso trazer à lume instrumentos efetivos e sérios ainda que gravosos para manutenção da regularidade do sistema de garantias Entre outros para os caso de reiteração de condutas de violência contra a mulher temos os meios de possibilidade de aplicação de medidas protetivas em complementação às primeiras art 22 caput in fine Lei 11340 de punição do agressor por novo crime art 24A Lei da Maria da Penha e da possibilidade de decretação de medidas cautelares penais previstas no Código de Processo Penal tomando aqui o exemplo da prisão preventiva porque disposta textualmente a hipótese pelo legislador em dois diplomas legais art 20 da Lei 11340 e art 313 IV Código de Processo Penal com a redação dada pela Lei 124032011 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 25 Ainda que as medidas de restrição impostas pela Lei Maria da Penha e Código Penal ao infrator sejam medidas de exceção como são e devem ser as medidas de restrição de quaisquer liberdades num Estado Democrático de Direito sua aplicação deve ser fomentada para evitar ainda mais abusos e reiteração de condutas de violência contra a mulher vítima de violência intrafamiliar Longe de ser o único ou mais eficaz meio de auxílio na proscrição desse tipo de violência as medidas cautelares processuais de toda ordem tem dimensão específica e importante aqui A mulher que está em sujeição de ameaça de direitos e reiteração de violência precisa de uma resposta rápida urgente para ontem porque isso pode custarlhe a própria vida Denunciada a violência e retratada institucionalmente através da persecução judicial criminal e seu Processo o Estado tem o dever de implementar medidas justas adequadas e eficazes mesmo que duras para evitar a perpetuação do estado de violência denunciado Daí novamente a importância das medidas protetivas e das cautelares processuais penais como um instrumento de equilibrar o diálogo processual Processo é diálogo equilibrado Se um dos debatedores no caso o ofensor advertido de condutas desditosas anteriores e com interditos impostos por exemplo concessão de medidas protetivas como afastamento do lar reitera em condutas de violência no plano real e com isso desequilibra o diálogo e a relação processual é justo e adequado para segurança da vítima e zelo ao procedimento que medidas institucionais e legais mais gravosas lhe sejam impostas prisão preventiva por exemplo Daí que esse sistema de garantias precisa ser coeso e fazer sentido Sem um ferramental de garantias de auto conservação um sistema não pode ser concebido corretamente como sistema Um sistema de garantias processuais de natureza cautelar precisa guardar conformidade constitucional ter operabilidade e ser de aplicação relativamente simples Entram aqui especificamente nossas críticas ao novel legislador que na Lei 138272019 inserindo o art 12C com parágrafos ao texto da Lei 113402006 previu expressamente a possibilidade de aplicação de medida protetiva de urgência cautelar processual penal conforme se viu por agente policial civil ou militar ou delegado de polícia Sem qualquer ranço de viés corporativista e sem demérito aos valorosos trabalhos prestados pelas Corporações militares de polícia e ao preparo técnico da Polícia Judiciária o que temos aqui é uma quebra na sistematização legal do quadro de garantias processuais penais implementadas em favor da mulher vítima de violência intrafamiliar E essa quebra gera perplexidade notadamente se cotejarmos a possibilidade novel com as disposições dos arts 20 e 24A da Lei Maria da Penha e art 311 do Código de Processo Penal Ainda que o primeiro parágrafo do art 12C venha a aludir a prazos para a medida cautelar ordenada por autoridade não judicial ser comunicada e por assim dizer homologada Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 26 ou não pela autoridade judiciária a sistematização de regras e garantias processuais inicialmente vislumbrada tem princípio de rotura inegavelmente Há uma clara contradição entre as regras implementadas o que permite concluir que se avizinha estado de perplexidade na interpretação perplexidade que pode redundar em crise e ruptura sistêmicas Para ÁVILA 2018 p 105 regras são normas imediatamente descritivas primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência A atribuição de competência para ordens de natureza processual é de matiz constitucional de viés constitutivo É uma questão ontológica tais medidas são apenas existentes válidas e eficazes porque passam por procedimento específico de produção e edição que passa iniludivelmente pela competência primordial da autoridade que as edita Na síntese de ÁVILA 2018 p 102 dispositivos relativos à atribuição de competência são regras constitutivas Temos portanto duas regras de atribuição de competência para decretar medidas cautelares em sentido absolutamente dissonante E não é possível resolver a antinomia por hermenêutica de princípios porque de um lado a Lei 11340 e o Código de Processo Penal impõe regra com um sentido cautelar como medida processual com controle e crivo jurisdicional e a Lei 138272019 dispõe nova situação com regra em sentido diverso cautelar de natureza processual e com efeitos penais e processuais penais emitida por autoridade administrativa e sem crivo jurisdicional Há claro conflito de regras de competência portanto A perplexidade denunciada ou se resolve pelas vias de declaração de inconstitucionalidade ou se corre sério risco de criar um tertium genus uma cautelar processual penal à brasileira emitida sem os essenciais controle e análise jurisdicional prévios e tendo como resultado a possibilidade de criar ainda maiores riscos ao sistema de garantias à mulher vítima de violência por permitir a porosidade e a insegurança jurídica nas garantias Sob um prisma de sistematização completude conexão e coerência do sistema de garantias ainda uma vez recordando a lição de ÁVILA 2018 p 145 e 165 ss imperioso que se atribua leitura cuidadosa do novo instituto Diante do conflito de regras evidenciado e a perplexidade que resulta a superação da regra novel deve ter lugar visando tanto promoverse o objeto imanente à regra definidora isto é um sistema de garantias processuais adequado e que a mulher vítima de violência possa contar quando houver reiteração de atos processuais de violência quanto o valor formal de segurança jurídica do sistema e das relações processuais e pessoais que se interpenetram nesse sistema Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 27 CONSIDERAÇÕES FINAIS À vista do exposto quernos parecer que a judiciariedade é e ainda deva ser atributo das medidas cautelares ordenadas em sede processual penal Tanger direitos de tantos envolvidos que não se resumem aos papéis de agressor e vítima mas de toda construção de relações pessoais por eles previamente estabelecida afiguranos medida que não deva ser tomada ao calor dos acontecimentos de bate pronto à queima roupa A imposição de deveres de cunho material e processual decorrência da decretação das medidas protetivas por seu caráter cautelar deve ser precedida de elementos justificados e explícitos processualmente a ordem deve ser clara e fundamentada isso é da essência de todo provimento injuntivo proferido no diálogo processual Como as partes ou o Juiz saberão por qualis motivos o policial militar no curso da ocorrência atribuíram ou deixaram de atribuir determinada medida protetiva Isso estará fundamentado além dos formulários de praxe utilizados pelas corporações O policial estará habilitado para fazer esse juízo e fundamentálo para ter efeitos processuais no correr do feito criminal Por fim perguntase é realmente papel dele diante de seus atributos constitucionais seja na ótica da polícia judiciária seja na atividade policial operacional ostensiva A ordem jurídica justa e adequada pressupõe como se disse acesso democrático e efetivo O equacionamento positivo que a norma faz em proveito das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar é inegável passo de evolução a favor de uma sociedade mais igualitária e equânime Mas há de se atender com cuidado para certas intenções legislativas que a pretexto de auxiliar mais baralham que contribuem com o progresso do estado das coisas com prejuízos que podem rebentar de novo para a mulher vítima de violência Explicase Se a Lei 138272019 possibilita a agentes não membros de Poder Judiciário uma atividade típica deste poder é permitido falar francamente em uma medida cautelar declarada por autoridade constitucionalmente incompetente E ordem emanada de autoridade competente não é pressuposto básico no plano de validade de qualquer ato administrativo Seguimos A exclusão da reserva da jurisdição por certo aliviará a pletora de trabalho judiciário nas Varas Criminais e nos Juizados de Violência Doméstica Mas o argumento pragmático não é suficiente As garantias de publicidade transparência isenção fundamentação e conformidade que se tem e se pode exigir dos juízes competentes para análise destes pleitos também poderão ser exigidas de policiais que precisam decidir questões muito mais graves e prementes que dizem respeito por vezes ao risco de suas próprias vidas e dos envolvidos na ocorrência Há de se exigir tal sangue frio que diante de ameaça a vida de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 28 terceiros e da própria em situação de cautelaridade fragorosa do combatente seja dado aplicar medida tão gravosa e de tal repercussão processual e material Lembremos que há previsão específica de prazos de validade formas e sanções pelo descumprimento de medidas protetivas estas medidas quando ordenadas por autoridade não judiciária podem constituir crime Não nos parece porque a a autoridade que as ordena não tem legitimação constitucional a tanto Por ser medida cautelar processual penal com reserva de jurisdição como observado se não for analisada previamente e proferida por Magistrado competente seus efeitos não se espraiarão para o surgimento de novos gravames ao ofensor em caso de reiteração Desprovida de judiciariedade isto é não emanada de Juiz competente em caso de reiteração pelo ofensor não poderemos falar em possibilidade de prisão preventiva art 313 IV CPP ou em incidência de novo crime art 24A Lei Maria da Penha Ora se a medida não foi previamente submetida e analisada fundamentada explicitamente e nem ordenada por quem de direito segundo a ordem constitucional seu descumprimento não poderá acarretar novo crime nem ensejará prisão preventiva E nem se alegue que uma interpretação de caráter ampliativo fundado em princípios maximizadores do discrímen outrora referido poderia possibilitar os gravames de repressão do contempt nesses casos Tais princípios operam em questão de implementação de direitos materiais e sob premissa metodológica interpretativa geral Mas não há como negar a existência de regras constitucionais e infraconstitucionais que estariam sendo ofendidas diametralmente A colisão entre regras é diferente da colisão de princípios e a forma para sua resolução é também diversa Daí de novo precisamos duvidar da razoabilidade da intentio legis nesse caso Outorga se possibilidade novel sem garantia de que as premissas ordenadas possam ser cumpridas à saciedade para evitar novos danos E isso só faz soçobrar os interesses e anseios da pessoa que deveria ser o sujeito da proteção a mulher vítima de violência doméstica ou familiar A pessoa nesta condição tem o direito de ter seu pedido analisado e o pleito determinado por um juiz competente tem direito de ter garantias amplas dadas pela legislação processual que a reiteração nestes atos será punida com elementos processuais adequados e efetivos E não descuremos que o ofensor também é pessoa sujeita de direitos que lhe garantem a Constituição Federal Ele tem direito de saber quais que efeitos e prazos tem as medidas contra ele tomadas bem como as sanções de seu descumprimento Deverá conhecer por escrito em documentação essencial para o debate judiciário a fundamentação das ordens que lhe foram emanadas e suas justificativas legais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 29 O que se teme e nosso objetivo é mais o do vigilante atalaia que do o letrado escriba é que o Direito seja usado garantias alvitradas e promessas institucionais empenhadas sem contrapartida A nada serve para a mulher vítima de violência que o agressor retorne a incomodála e que não seja punido por isso ou que a atividade hermenêutica não desautorizada porque pro reo e se trata de matéria penal venha n futura a catalogar as medidas protetivas em judiciais oriundas de análise prévia de membro do Poder Judiciário e não judiciais advindas da decretação de autoridades administrativas meramente homologadas pelo Juiz sendo que às primeiras atribua meios de coerção e cumprimento amplos e às segundas não Isso não é responsável com o direito das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar Elas precisam de proteção de cuidado objetivo de empenho de políticas públicas de resultado E isso perpassa também a atuação processual mas com critérios metodológicos e técnicos porque o Direito é ciência que perpassa e influencia a vida das pessoas O ofensor que reitera atos de violência deve ser punido criminalmente com a possibilidade de decretação de sua prisão preventiva porque isso garante à vítima proteção processual e material é um reforço à suas garantias legais Há um perigo sério e grave novamente anunciado a pretexto de prodigalizar as medidas protetivas outorgando sua concessão a autoridades administrativas mesmo que profissionais de carreira jurídica de estado e retirando o caráter de reserva de jurisdição correse risco de fazer troça com o direito de quem mais precisa As mulheres estariam protegidas por uma medida cautelar inconstitucional e processualmente inválida e o descumprimento a estas medidas não sofreria sanção alguma E prejuízos incontáveis à coerência e ordem do sistema processual penal de garantias se avizinham Aguardemos o testemunho da História Teremos medidas protetivas de duas classes em breve futuro a permanecer assim o status quo aquelas ordenadas pelo Juiz que contará com os pressupostos típicos e poderá levar a consequências jurídicas e processuais sérias em casos de descumprimento crime de descumprimento de medidas protetivas eou decretação de prisão preventiva por exemplo e aquelas ordenadas por agente administrativo que advindas de agente constitucionalmente incompetente serão inválidas e não terão qualquer efeito além de sua execução imediata no mundo fenomênico sem que redunde qualquer proteção ou garantia processual prospectiva à mulher vítima de violência A novidade legislativa implementada no art 12C da Lei 11340 pode fazer mais mal que bem às mulheres vítimas de violência as medidas serão tomadas ao calor dos acontecimentos por profissional constitucionalmente incompetente para analisálas e que está Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 30 em execução de tarefas que lhe demandam por vezes vigor físico e tirocínio mental incompatíveis com a atividade de ponderação jurídica de valores em discussão Além disso há o risco de enxergarse na novel legislação por via interpretativa pro reo uma cautelar menor com âmbito protetivo mais restrito e que não trará à mulher vítima de violência a possibilidade de uma resposta efetiva em caso de reiteração de condutas pelo ofensor Esse é o acesso à ordem jurídica justa íntegra e conforme que queremos para as pessoas envolvidas nesse cenário Não estaremos aviltando ainda mais as mulheres que estão sob essa difícil condição fazendoa ouvir e crer em mais esta promessa legislativa e institucional descumprida Concluise com um chamado à reflexão detida e assertiva sobre a conveniência da manutenção dessa via transversa de medida cautelar ordenada sem o prévio exame jurisdicional apropriado REFERÊNCIAS ABREU Pedro Manoel Processo e democracia o processo jurisdicional como locus da democracia participativa e da cidadania inclusiva no estado democrático de direito Coleção Ensaios de Processo Civil vol 3 São Paulo Conceito Editorial 2011 ÁVILA Humberto Bergmann Teoria dos Princípios da definição à aplicação dos princípios jurídicos 18ª ed rev atual São Paulo Malheiros 2018 BIANCHINI Alice Lei Maria da Penha Lei 113402006 Aspectos assistenciais protetivos e criminais da violência de gênero Coleção Saberes Monográficos 2ª ed São Paulo Saraiva 2014 BRASIL Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 texto compilado Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos Brasília DF Disponível em httpplanaltogovbr Acesso em 14082019 BRASIL DecretoLei 3689 de 3 de outubro de 1941 Institui o Código de Processo Penal texto compilado Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos Brasília DF Disponível em httpplanaltogovbr Acesso em 14082019 BRASIL Lei 11340 de 7 de agosto de 2006 texto compilado Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos Brasília DF Disponível em httpplanaltogovbr Acesso em 14082019 BRASIL Lei 138272019 de 13 de maio de 2019 Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos Brasília DF Disponível em httpplanaltogovbr Acesso em 14082019 CAPELLETTI Mauro GARTH Bryan Acesso à Justiça Trad De Ellen Gracie Northfleet Porto Alegre Fabris 1988 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 31 CUNHA Rogério Sanches PINTO Ronaldo Batista Violência Doméstica Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo 6ª ed rev atual ampl São Paulo Revista dos Tribunais 2015 DIAS Maria Berenice Lei Maria da Penha a efetividade da Lei 113402006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher 4ª ed rev atual e ampl São Paulo Revista dos Tribunais 2015 FERREIRA FILHO Manoel Gonçalves Estado de Direito e Estado Legal Revista de Direito Administrativo n 157 julset 1984 Rio de Janeiro Fundação Getúlio Vargas 1984 LAMY Eduardo de Avelar Princípio da Fungibilidade no processo civil São Paulo Dialética 2007 MARINONI Luiz Guilherme Técnica Processual e Tutela dos Direitos 3ª ed rev e atual São Paulo Revista dos Tribunais 2010 MEZZAROBA Orides MONTEIRO Cláudia Servilha Manual de metodologia da pesquisa no direito 6 ed São Paulo Saraiva 2014 POLASTRI Marcellus A tutela cautelar no processo penal 3ª ed São Paulo Atlas 2014 PORTO Pedro Rui da Fontoura Violência Doméstica e Familiar contra a mulher Lei 1134006 análise crítica e sistêmica 3ª ed rev atual e de acordo com a ADI 4424 Porto Alegre Livraria do Advogado Editora 2014 SOUZA Sérgio Ricardo Lei Maria da Penha comentada sob a perspectiva dos direitos humanos 5ª ed Curitiba Juruá 2016 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 32 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E A NECESSÁRIA COMPETÊNCIA HÍBRIDA DOS JUIZADOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER UMA ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E A POSIÇÃO DO FONAVID Stella Scantamburlo de Mergár1 Lucas Francisco Neto2 RESUMO O artigo objetiva analisar a competência híbrida dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher que permite o trâmite conjunto de processos criminais e civis decorrentes da prática de violência contra a mulher almejando esclarecer a atual posição adotada pelo Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher FONAVID sobre o instituto se em conformidade ou desconformidade com a inteligência da Lei Maria da Penha e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça O estudo está dividido em três partes sendo que a primeira fará uma breve análise na história sobre a violência contra a mulher no Brasil com enfoque a partir dos anos 1970 a segunda parte se debruçará sobre uma revisão dos principais instrumentos nacionais e internacionais de proteção aos direitos humanos das mulheres e por fim na terceira será abordada especificamente a competência cumulativa cível e criminal realizandose ponderações sobre a determinação do Enunciado nº 3 do FONAVID A pesquisa é do tipo teórica mediante o uso de levantamento bibliográfico documentos legislativos e entendimentos jurisprudenciais Palavraschave Lei Maria da Penha Mulher Violência Competência híbrida Revitimização INTRODUÇÃO O art 14 da Lei nº 11340 de 07 de agosto de 2006 prevê que os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher possuem competência híbrida cível e criminal destinada a julgar e executar causas que decorram da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher O Informativo nº 654 do Supremo Tribunal Federal STF com base na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19 reafirmou a intenção legislativa por detrás do supracitado art 14 no sentido de que a Lei Maria da Penha buscou deixar facultado aos Estados a criação desses Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e atribuiu às varas criminais a competência híbrida para o julgamento de ações cíveis e criminais oriundas de 1 Advogada Especialista em Direito de Família pela Universidade Cândido Mendes UCAM Mestranda do Programa de PósGraduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo UFES Membra do Laboratório de Estudos de Gênero Poder e Violência LEGUFES Email stellasmergargmailcom 2 Advogado Mestrando do Programa de PósGraduação em História Social das Relações Políticas da Universidade Federal do Espírito Santo UFES Bolsista da FAPES Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo Email lucasguaraparigmailcom Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 33 situações de violência doméstica contra a mulher diante da necessidade de conferir tratamento uniforme especializado e célere em todo território nacional às causas sobre a matéria ADC 19DF rel Min Marco Aurélio 09022012 A Tese nº 8 da Edição nº 41 de Direito Penal sobre Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Jurisprudência em Teses do Superior Tribunal de Justiça STJ define muito bem essa competência Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher têm competência cumulativa para o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos do art 14 da Lei n 113402006 No entanto apesar de tal previsão legal e confirmada pelo STJ e pelo STF o Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em seu Enunciado nº 03 de novembro de 2018 prevê que a competência cível dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher se restringiriam aos pedidos de medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha e as ações cíveis deveriam tramitar perante as Varas Cíveis e de Família Logo há um descompasso da legislação federal e da jurisprudência do STF e do STJ com o entendimento dos juízes atuantes nas Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher Diante disso foram colacionados 04 acórdãos proferidos pelo STJ acerca da competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher demonstrando a necessidade de se analisar conjuntamente as questões cíveis referentes às situações de violência doméstica contra a mulher como o divórcio guarda e alimentos por exemplo a fim de se evitar a revitimização da mesma no âmbito jurisdicional Para tanto foram utilizados no campo de busca de jurisprudência do sítio eletrônico do STJ os seguintes termos competência cumulativa juizado especializado e violência doméstica A partir dessa busca foram encontrados os seguintes processos 1 REsp nº 1550166DF de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze Terceira Turma e julgado em 21112017 2 RHC nº 69334SC de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior Sexta Turma e julgado em 24052016 3 REsp nº 1496030MT de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze Terceira Turma e julgado em 06102015 e 4 REsp nº 1475006MT de relatoria do Ministro Moura Ribeiro Terceira Turma e julgado em 14102014 A violência doméstica e familiar contra a mulher está intrinsecamente ligada às questões judiciais envolvendo dissolução de união estável e divórcio guarda dos filhos e fixação de alimentos Não se pode dissociar tais questões uma vez que quando uma mulher está em uma situação de violência em seu relacionamento ela precisa aliar o pedido de providências na Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 34 esfera criminal medidas protetivas de urgência instauração de inquérito policial etc com o divórcio ou dissolução de união estável e regulamentação da guarda e alimentos sendo que o pedido de pensão alimentícia pode ser voltado para si eou para seus filhos dependendo do seu grau de vulnerabilidade Acresçase a isso o fato de que a violência doméstica contra a mulher é uma violência de gênero No Brasil verificase que a problemática da violência contra a mulher encontrase intrinsecamente atrelada à ideologia patriarcal de modo que apenas recentemente por volta dos anos 1970 é que o país passou a fazer parte de tratados e convenções internacionais acerca do tema bem como passou a produzir instrumentos legislativos direcionados a prevenir e reprimir esse tipo de violência de gênero como a Lei Maria da Penha no ano de 2006 Assim também é de fundamental importância fazer em um primeiro momento um breve apanhado na história do Brasil a partir da década de 1970 objetivando explicar a posição de submissão e violência a que tantas mulheres se encontram submetidas Atrelada à história serão apresentados os dados referentes à violência contra mulher no Brasil baseandose na 2ª edição do relatório produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública FBSP em 2019 conhecido como Visível e Invisível a vitimização de mulheres no Brasil Em seguida será abordada a questão dos direitos humanos das mulheres em plano internacional e nacional destacandose que tardiamente é que a mulher foi reconhecida enquanto sujeito de direitos Por fim é preciso delinear acerca da competência híbrida da Lei Maria da Penha e o descompasso da legislação federal e da jurisprudência do STF e do STJ com o entendimento dos juízes atuantes nas Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher trazendo reflexões sobre os prováveis impactos ocasionados às mulheres em situação de violência provocando em grande parte das situações a revitimização 1 REFERENCIAL TEÓRICO 11 A violência contra mulher no Brasil breve contextualização histórica e dados O combate à violência contra a mulher é recente no Brasil Tratase de um problema social que permaneceu invisibilizado por muito tempo e que somente a partir dos anos 1970 é que passaram a ser elaborados tratados e convenções internacionais a fim de buscar conscientizar governos e sociedades sobre essa situação e apenas no ano de 2006 é que foi promulgada uma lei destinada à proteção das mulheres a Lei nº 11340 mais conhecida como Lei Maria da Penha Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 35 Lima e Nader 2016 em seu artigo intitulado Da legitimação à condenação social afirmam que no Brasil a violência praticada contra as mulheres não se tratava e nem era encarada como um problema social a demandar atuação estatal uma vez que legitimado por ocorrer no espaço doméstico e dentro das relações conjugais e familiares É preciso enfatizar que a violência era legitimada por se tratar de fruto da ideologia patriarcal base das relações conjugais e familiares advinda do período colonial e oriunda do estilo de vida das minorias predominantes Assim essas ideias passaram a permear as demais camadas sociais espraiando se entre os homens o sentimento de posse do corpo feminino tornando vinculado à honra masculina o comportamento das mulheres que estavam sob a sua tutela Desse modo corroborada pela ideologia patriarcal a dominação masculina imperava tendo se tornada institucionalizada e legalizada fazendo com que o espaço doméstico se transformasse em local de privilégio para a prática da violência contra a mulher tida como necessária para a manutenção da família e o bom funcionamento da sociedade LIMA E NADER 2016 As autoras apontam que a sociedade era regida por uma moral sexual dupla permissiva para com os homens e repressiva com relação às mulheres de modo que era requisito para a honestidade da mulher uma vida sexual abstêmia até o casamento e após o casamento relações sexuais somente com o seu marido detentor da sexualidade da esposa Logo as mulheres que fugissem a esse padrão apresentando condutas desonestas poderiam ser corrigidas através da violência física sendo ao final culpada pelas agressões Tanto era assim que todos os códigos penais brasileiros desde o Código Criminal do Império até o Código Penal de 1940 faziam menções ao comportamento ideal da mulher como o termo mulheres honestas que esteve presente neste último até o ano de 2003 quando foi retirado Além disso é importante destacar a questão da criminalização do adultério que penalizava em maior grau a mulher que o cometesse pois seria aplicada à mulher casada adúltera uma pena de um a três anos de prisão enquanto que o homem casado que praticasse somente seria punido com a mesma pena caso tivesse uma concubina a quem fornecesse sustento LIMA E NADER 2016 Atentandose a esse breve histórico é possível identificar uma das muitas causas que resultam na violência do homem contra a mulher sendo no entanto ainda a relação de posse do homem para com o corpo feminino sempre legitimada pela lógica patriarcal que a sociedade ainda se encontra inserida uma das mais significativas É necessário abordar os dados existentes na 2ª edição do relatório produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública FBSP em 2019 conhecido como Visível e Invisível a Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 36 vitimização de mulheres no Brasil referentes à violência contra a mulher demonstrando como a ideologia patriarcal continua permeando as relações conjugais e familiares Segundo a pesquisa no ano de 2019 no Brasil os tipos de agressores mais apontados foram pessoas conhecidas 764 divididas em cônjuge companheiro namorado 238 vizinhoa 211 excônjuge excompanheiro exnamorado 152 e pai mãe 72 somase a isso o fato de que a maior parte das agressões sofridas pelas mulheres foi dentro de casa 42 Além disso é preciso considerar que a maioria das mulheres não busca ajuda com relação à violência sofrida num total de 52 e apenas 222 buscaram órgãos oficiais e 296 delas buscaram órgãos não oficiais como igreja família e amigos Além desses dados é preciso destacar que foram vítimas de violência 274 das mulheres dentre as abaixo elencadas ofensas verbais reportadas por 218 das mulheres agressões físicas que conglomeram bater empurrar chutar jogar objetos espancar tentar estrangular e que somadas alcançaram 165 das mulheres ameaça de agressão incluindo ameaça com faca ou arma de fogo e de amedrontamento e perseguição atingiram 225 das mulheres ofensa sexual foram reportados por 89 das mulheres esfaqueamento ou tiro alcançaram 17 das mulheres 12 Direitos Humanos das mulheres e sua proteção A Declaração Universal dos Direitos Humanos DUDH proclamada pela Organização das Nações Unidas ONU em 1948 é a principal referência quando se trata da proteção de bens e valores fundamentais para que as pessoas tenham uma vida digna Partindose desse documento internacional e de tantos outros tratados internacionais destinados à preservação de direitos há uma ampla gama voltada para a salvaguarda específica dos direitos das crianças dos idosos das mulheres e de outras minorias TRINDADE 1997 Buscando tornar a mulher sujeito de direitos situação que lhe foi negada durante muitos séculos COSTA 2014 em 1975 a ONU realizou a I Conferência Mundial sobre a Mulher na Cidade do México e os temas principais discutidos foram i a igualdade entre os sexos ii a integração da mulher no desenvolvimento e iii a promoção da paz Como resultado foi elaborada em 1979 a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres mais conhecida como Convenção da Mulher tendo restado como obrigação aos signatários o compromisso com a eliminação da discriminação e a garantia da igualdade de gênero COSTA 2014 O Brasil levou anos para se tornar signatário de tal Convenção de modo que somente em 1º de fevereiro de 1984 é que a subscreveu mas com reservas e apenas a ratificou Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 37 plenamente em 1994 com o Decreto Legislativo nº 2694 e promulgada em 2002 pelo Presidente da República através do Decreto nº 4377 Brasil 2002 Este último documento definiu pela primeira vez a discriminação contra a mulher juridicamente sendo a expressão discriminação contra a mulher significará toda a distinção exclusão ou restrição baseada no sexo e que tenha por objeto ou resultado prejudicar ou anular o reconhecimento gozo ou exercício pela mulher independentemente de seu estado civil com base na igualdade do homem e da mulher dos direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político econômico social cultural e civil ou em qualquer outro campo Outro documento de extrema importância tratase da Declaração de Viena e seu Programa de Ação resultados da Conferência das Nações Unidas sobre Direitos Humanos ocorrida na cidade de Viena na Áustria em 1993 Decorreu dela a prescrição de que cabe como objetivo primordial aos países participantes da comunidade internacional o fomento da participação da mulher na vida civil política social econômica e cultural em âmbito nacional e internacional a fim de que sejam erradicadas todas as formas de discriminação baseadas no gênero Dessa Declaração verificase que foi definida a violência contra a mulher como uma forma de violação de direitos humanos DIAS 2010 de modo que o documento conferiu maior visibilidade aos direitos das mulheres sendo enxergada como um sujeito pleno de direitos PIOVESAN 2012 Em 27 de novembro de 1995 foi ratificada pelo Brasil através do Decreto Legislativo nº 107 e promulgada pelo Presidente da República por meio do Decreto nº 197396 a Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência Doméstica adotada pela Organização dos Estados Americanos OEA mais conhecida como Convenção de Belém do Pará DIAS 2010 Esse documento veio reconhecer ainda mais os direitos humanos das mulheres ao enumerar direitos básicos bem como elencou medidas punitivas ações preventivas e apoio jurídico e psicológico às mulheres deixando claro que uma vida sem violência é um direito devendo os signatários adotarem políticas públicas no sentido de prevenir punir e erradicar a violência PIOVESAN 2012 A Constituição Federal tratase de marco jurídico no que se refere ao reconhecimento de direitos e garantias fundamentais tendo como princípio basilar a dignidade da pessoa humana Além disso fincou suas bases no princípio da igualdade restando o mesmo estabelecido como valor essencial do ordenamento constitucional de modo que visa a igualdade formal e material entre homens e mulheres objetivando igualdade de oportunidades e tratamento isonômico havendo até mesmo previsão de ações afirmativas como por exemplo na Lei Maria da Penha Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 38 Outra previsão da Constituição de 1988 e um dos objetivos da República é a promoção do bem de todos sem preconceitos referentes à origem raça sexo cor idade crença religiosa almejando uma mudança da realidade brasileira que ainda possui altas taxas de discriminação em razão de gênero excluindo as pessoas e indo em direção contrária ao ideal de inclusão Além disso previu que a família é a base da sociedade e por conta disso deveria receber especial atenção do Estado tendo assegurado a cada membro familiar a devida assistência e meios para evitar a violência no âmbito de suas relações GONÇALVES 2011 Ainda que se tenha tido diversos avanços no ordenamento jurídico brasileiro com a Constituição da República de 1988 a violência contra as mulheres é um problema estrutural no Brasil e que tem inúmeras consequências para elas Diante do cenário estarrecedor somente em 2006 com a Lei nº 11340 mais conhecida como Lei Maria da Penha é que se pode afirmar que o país passou a ter um mecanismo previsto em lei para combater a violência doméstica contra a mulher Alguns de seus avanços podem ser destacados tais como tutela penal somente para as mulheres exclusão dos crimes praticados em situação de violência doméstica do rol daqueles considerados de menor potencial ofensivo e suas consequências criação das medidas protetivas de urgência criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher com competência civil e criminal e ainda previsão de tratamento integral intersetorial e interdisciplinar da vítima CAMPOS 2017 A Lei Maria da Penha buscou atuar de três maneiras visando a prevenção da violência e a sua repressão bem como fornecendo tratamento para o agressor de maneira que é uma das leis de maior eficácia vigente no Brasil 13 A competência híbrida da Lei Maria da Penha o entendimento do STJ e o enunciado do FONAVID A Lei Maria da Penha originária de compromissos assumidos em tratados internacionais pelo Brasil e do disposto no art 226 8º da Constituição Federal estabeleceu em seu art 14 a criação de órgãos jurisdicionais que deteriam competência para conhecer processar julgar e executar causas cíveis e criminais advindas da violência doméstica e familiar contra a mulher deixando à cargo da União e dos Estados a sua criação O objetivo do legislador foi tornar mais acessível e rápida a resolução das questões cíveis inerentes às questões criminais certamente ocasionadas pela violência Tal competência híbrida tratase de um avanço legislativo sem precedentes já que possibilita que a mulher em situação de violência não sofra ainda mais ao ter que buscar todas as esferas judiciais para que tenha a sua demanda atendida Resta clara a intenção do legislador em evitar que mulheres fragilizadas com a violência sofrida tenham que além de buscar as Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 39 delegacias e varas criminais ingressar nas varas de família também realizando uma verdadeira peregrinação nos fóruns judiciais em busca de justiça Além disso existe uma grande chance de a mulher sofrer uma revitimização sofrer novamente a violência ao relembrála ao ter que enfrentar seu agressor em eventual audiência em um ambiente onde o juiz e serventuários desconhecem a situação de violência e medo existente Logo é de suma importância a previsão legal referente à competência cumulativa cível e criminal dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher A sua inobservância acarreta além da violência doméstica e familiar já sofrida a violência institucional contra a mulher ao condenála a perambular pelos fóruns atrás de seus direitos há muito já violados Ocorre que apesar de previsão legal e realmente necessária o Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher em seu Enunciado nº 03 de novembro de 2018 previu que a competência cível dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher se restringiriam aos pedidos de medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha e as ações cíveis deveriam tramitar perante as Varas Cíveis e de Família claramente limitando o escopo legislativo almejado Antes de tal enunciado ser elaborado o Superior Tribunal de Justiça já havia decidido em 04 acórdãos acerca da competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher demonstrando a necessidade de se analisar conjuntamente as questões cíveis referentes às situações de violência doméstica contra a mulher como o divórcio guarda e alimentos por exemplo a fim de se evitar a revitimização da mesma no âmbito jurisdicional Os processos respectivos são 1 REsp nº 1550166DF de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze Terceira Turma e julgado em 21112017 2 RHC nº 69334SC de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior Sexta Turma e julgado em 24052016 3 REsp nº 1496030MT de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze Terceira Turma e julgado em 06102015 e 4 REsp nº 1475006MT de relatoria do Ministro Moura Ribeiro Terceira Turma e julgado em 14102014 É preciso também trazer à baila o Informativo nº 654 do Supremo Tribunal Federal STF com base na Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 19 que reafirmou a intenção legislativa por detrás do supracitado art 14 no sentido de que a Lei Maria da Penha buscou deixar facultado aos Estados a criação desses Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e atribuiu às varas criminais a competência híbrida para o julgamento de ações cíveis e criminais oriundas de situações de violência doméstica contra a mulher diante da Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 40 necessidade de conferir tratamento uniforme especializado e célere em todo território nacional às causas sobre a matéria ADC 19DF rel Min Marco Aurélio 09022012 Logo há um descompasso da legislação federal e da jurisprudência do STF e do STJ com o entendimento dos juízes atuantes nas Varas de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher Para dirimir tal controvérsia e descompasso é preciso trazer à colação os fundamentos utilizados nos acórdãos acima enumerados nos quais se reafirma a competência híbrida dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher No acórdão do Recurso Especial nº 1550166DF de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze Terceira Turma e julgado em 21112017 há a exposição do seguinte entendimento O art 14 da Lei n 113402006 preconiza a competência cumulativa criminal e civil da Vara Especializada da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para o julgamento e execução das causas advindas do constrangimento físico ou moral suportado pela mulher no âmbito doméstico e familiar 11 A amplitude da competência conferida pela Lei n 113402006 à Vara Especializada tem por propósito justamente permitir ao mesmo magistrado o conhecimento da situação de violência doméstica e familiar contra a mulher permitindolhe bem sopesar as repercussões jurídicas nas diversas ações civis e criminais advindas direta e indiretamente desse fato Providência que a um só tempo facilita o acesso da mulher vítima de violência familiar e doméstica ao Poder Judiciário e conferelhe real proteção No mesmo sentido o acórdão do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 69334SC de relatoria do Ministro Sebastião Reis Júnior Sexta Turma e julgado em 24052016 prevê ser Totalmente improcedente a alegação de incompetência do Juízo a quo para decidir as medidas protetivas de um lado porque se trata de Vara Única de outro porque quando se trata de Vara Especializada em Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher a Lei n 113432006 preconiza a competência cumulativa criminal e civil para o julgamento e execução das causas advindas do constrangimento físico ou moral suportado pela mulher no âmbito doméstico e familiar de modo a concentrar em uma única autoridade judicial todo o plexo de providências medidas e decisões judiciais sejam de natureza cível ou criminal aptas a debelar a violência de gênero O Recurso Especial nº 1496030MT de relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze Terceira Turma e julgado em 06102015 aduz 1 O art 14 da Lei n 113402006 preconiza a competência cumulativa criminal e civil da Vara Especializada da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para o julgamento e execução das causas advindas do constrangimento físico ou moral suportado pela mulher no âmbito doméstico e familiar 11 A amplitude da competência conferida pela Lei n 113402006 à Vara Especializada tem por propósito justamente permitir ao mesmo magistrado o conhecimento da situação de violência doméstica e familiar Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 41 contra a mulher permitindolhe bem sopesar as repercussões jurídicas nas diversas ações civis e criminais advindas direta e indiretamente desse fato Providência que a um só tempo facilita o acesso da mulher vítima de violência familiar e doméstica ao Poder Judiciário e conferelhe real proteção Por fim e na mesma toada o Recurso Especial nº 1475006MT de relatoria do Ministro Moura Ribeiro Terceira Turma e julgado em 14102014 apresenta o seguinte entendimento 1 Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher órgãos da justiça ordinária têm competência cumulativa para o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos do art 14 da Lei nº 113402006 2 Negar o julgamento pela Vara especializada postergando o recebimento dos provisionais arbitrados como urgentes seria não somente afastar o espírito protetivo da lei mas também submeter a mulher a nova agressão ainda que de índole diversa com o prolongamento de seu sofrimento ao menos no plano psicológico CONSIDERAÇÕES FINAIS A violência doméstica contra a mulher é uma dura realidade no Brasil apesar de todos os instrumentos internacionais e nacionais visando a sua prevenção e repressão ainda ceifa muitas vidas e deixa severas sequelas na alma e corpo de quem a sofre A estrutura social embasada na ideologia patriarcal continua produzindo severos danos à sociedade fomentando relações abusivas e agressivas contra as mulheres valendose constantemente da lógica da dominação masculina Diante disso percebese a necessidade da real implantação da competência híbrida nos juizados de violência doméstica e familiar contra a mulher uma vez que a dissonância das esferas cível e criminal apenas gera mais prejuízos às mulheres vitimizadas pelos seus cônjugescompanheirosnamorados Seria possível evitar que as mulheres fragilizadas com a violência sofrida tivessem que realizar uma peregrinação pela justiça indo em delegacias varas criminais varas de família etc Evitaria também que a mulher ficasse suscetível ao ter que encarar o seu agressor em audiência na Vara de Família em um ambiente onde o juiz e serventuários desconhecem a situação de violência e medo existente Diante dos argumentos acima apresentados verificase que a previsão legal e confirmada pela jurisprudência pátria demonstram a necessidade e a validade da competência híbrida dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher As disposições contrárias existentes bem como decisões judiciais entendendo por separar as competências estão em clara afronta à lei e ao entendimento da Corte Superior Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 42 REFERÊNCIAS BADINTER Elisabeth Um Amor conquistado o mito do amor materno Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 BESSE Susan K Modernizando a Desigualdade reestruturação da ideologia de gênero no Brasil 19141940 São Paulo Editora da Universidade de São Paulo 1999 BRASIL Decreto nº 4377 de 13 de setembro de 2002 Disponível em httpwwwplanalto govbrccivil03decreto2002d4377htm Acesso em 10 maio 2019 BRASIL Superior Tribunal de Justiça Tese nº 8 Edição nº 41 de Direito Penal sobre Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Jurisprudência em Teses Os Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher têm competência cumulativa para o julgamento e a execução das causas decorrentes da prática de violência doméstica e familiar contra a mulher nos termos do art 14 da Lei n 113402006 Brasília DF Superior Tribunal de Justiça 2015 Disponível em sconstjjusbrSCONjttocjsp Acesso em 02 set 2019 BRASIL Superior Tribunal de Justiça Recurso Especial nº 1550166DF Pedido de suprimento judicial de autorização paterna para que a mãe possa retornar ao seu país de origem Bolívia com o seu filho realizado no bojo de medida protetiva prevista na Lei n 113402006 Lei Maria da Penha Brasília DF Superior Tribunal de Justiça 2017 Disponível em sconstjjusbrSCONpesquisarjsp Acesso em 02 set 2019 BRASIL Superior Tribunal de Justiça Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 69334SC Lei Maria da Penha Medidas protetivas de urgência Alegação de negativa da vítima em representar contra o agressor Prejudicado Incompetência da autoridade judicial Não ocorrência Parecer acolhido Brasília DF Superior Tribunal de Justiça 2016 Disponível em sconstjjusbrSCONpesquisarjsp Acesso em 02 set 2019 BRASIL Superior Tribunal de Justiça Recurso Especial nº 1496030MT Ação de divórcio distribuída por dependência à medida protetiva de urgência prevista na Lei n 113402006 Lei Maria da Penha Brasília DF Superior Tribunal de Justiça 2015 Disponível em sconstjjusbrSCONpesquisarjsp Acesso em 02 set 2019 BRASIL Superior Tribunal de Justiça Recurso Especial nº 1475006MT Ação de execução de alimentos Lei Maria da Penha Medida protetiva de urgência em trâmite junto à Vara Especializada de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher Art 14 da Lei nº 113402006 Competência híbrida Possibilidade de julgamento pelo JVDFM Acórdão estadual mantido Recurso improvido Brasília DF Superior Tribunal de Justiça 2014 Disponível em sconstjjusbrSCONpesquisarjsp Acesso em 02 set 2019 CAMPOS Carmen Hein de Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídicofeminista Rio de Janeiro Lumen Juris 2011 CAMPOS Carmen Hein de Lei Maria da Penha necessidade de um novo giro paradigmático Revista Brasileira de Segurança Pública São Paulo v 11 n 1 1022 FevMar 2017 Disponível em httprevistaforumsegurancaorgbrindexphprbsparticledownload778248 Acesso em 25 abr 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 43 CÂNDIDO Antônio The Brazilian Family In SMITH T L ed Brazil Portraitof a Half Continent Nova Iorque Marchant General 1951 p 291311 COSTA Elder Lisboa Ferreira da O gênero no direito internacional discriminação violência e proteção Belém PakaTatu 2014 COLLING Ana Maria Tempos Diferentes Discursos Iguais a construção histórica do corpo feminino Dourados UFGD 2014 DIAS Maria Berenice A Lei Maria da Penha na justiça a efetividade da Lei 113402006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher 2 ed rev atual e ampl São Paulo Revista dos Tribunais 2010 FREYRE Gilberto Casa Grande Senzala formação da família brasileira sob o regime de economia patriarcal Rio de Janeiro J Olympio 1969 GONÇALVES Ana Paula Schwelm Secretaria especial de políticas para mulheres um instrumento indispensável para o empoderamento das mulheres em situação de violência In CAMPOS Amini Haddad COSTA Lindinalva Rodrigues Dalla Coord Sistema de justiça direitos humanos e violência no âmbito familiar Curitiba Juruá 2011 p 7588 LIMA Lana Lage da Gama Mulheres e sexualidade no Brasil colonial In SAMARA Eni de Mesquita Org Mulheres na América e no Mundo Ibérico São Paulo Humanitas 2011 LIMA Lana Lage da Gama NADER Maria Beatriz Da legitimação à condenação social In PINSKY Carla Bassanezi Org PEDRO Joana Maria Org Nova História das Mulheres no Brasil São Paulo Contexto 2016 MONTEBELLO Marianna A proteção internacional aos direitos da mulher Revista da EMERJ v 3 n 11 p 155170 2000 Disponível em httpwwwemerjtjrjjusbrrevistaemerjonline edicoes revista 11revista11 155 pdf Acesso em 12 dez 2018 MURARO Rose Marie Breve Introdução Histórica In Malleus Maleficarum O Martelo das Feiticeiras Rio de Janeiro Rosa dos Tempos 1991 MURARO A mulher no Terceiro Milênio uma história da mulher através dos tempos e suas perspectivas para o futuro Rio de Janeiro Rosa dos Tempos 1992 NADER Maria Beatriz Paradoxos do Progresso a dialética da relação mulher casamento e trabalho Vitória Edufes 2008 PEDRO Joana Maria Corpo prazer e trabalho In PINSKY Carla Bassanezi org PEDRO Joana Maria org Nova História das Mulheres São Paulo Contexto 2016 PINTO Célia Regina Jardim Feminismo história e poder Rev Sociol Polít Curitiba v 18 n 36 p 1523 jun 2010 Disponível em httpwwwscielobrpdfrsocpv18n3603pdf Acesso em 25 set 2018 PINTO Uma história do feminismo no Brasil São Paulo Fundação Perseu Abramo 2003 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 44 PIOVESAN Flávia A proteção internacional dos direitos humanos das mulheres Revista da EMERJ Rio de Janeiro v 15 n 57 Edição Especial p 7089 janmar 2012 Disponível em httpwwwescoladegovernoorgbrattachments1314AproteC3A7C3A3ointernac ionaldosdireitosdasmulherespdf Acesso em 12 abr 2019 SAMARA Eni de Mesquita As mulheres o poder e a família São Paulo século XIX São Paulo Editora Marco Zero 1989 SCHMITTPANTEL Pauline A criação da mulher um ardil para a história das mulheres In MATOS Maria Izilda S de E SOIHET Rachel O corpo feminino em debate São Paulo Editora UNESP 2003 SOIHET Rachel O que acham da mulher In Condição Feminina e formas de violência mulheres pobres e ordem urbana 18901920 Rio de Janeiro Forense Universitária 1989 SOIHET A conquista do espaço público In PINSKY Carla Bassanezi org PEDRO Joana Maria org Nova História das Mulheres São Paulo Contexto 2016 TRINDADE Antônio Augusto Cançado Dilemas e desafios da proteção internacional dos direitos humanos no limiar do século XXI Revista brasileira de política internacional Brasília Jun 1997 vol 40 n 1 p 167177 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsci arttextpid S003473291997000100007 Acesso em 10 maio 2018 VISÍVEL e invisível a vitimização de mulheres no Brasil 2 ed Fórum Brasileiro de Segurança Pública Instituto Datafolha 2019 Disponível em httpwwwifffiocruzbrpdfrelatoriopesquisa2019v6pdf Acesso em 04 set 2019 WALBY Sylvia Theorizing Patriarchy Oxford Blackwell 1990 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 45 LEI MARIA DA PENHA E A MANUTENÇÃO DA ORDEM FAMILIAR UMA ANÁLISE SOBRE A CONCESSÃO JUDICIAL DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE ALIMENTOS PROVISIONAIS E DE SUSPENSÃORESTRIÇÃO DO DIREITO DE VISITA DOSAS FILHOSAS Luiza Alano de Almeida 1 Mônica Ovinski de Camargo Cortina 2 RESUMO A Lei n 113402006 ou Lei Maria da Penha inovou ao criar as medidas protetivas de urgência que têm a finalidade de proteger as mulheres e prevenir a prática de novas violências especialmente quando houver o rompimento da relação conjugal Diante desse contexto o objetivo da pesquisa é analisar a aplicação de medidas protetivas de caráter civil como as de alimentos provisionais e restriçãosuspensão de visitas dosas filhosas para verificar se há a tendência de indeferimento dessas medidas no âmbito judicial e seus impactos para a manutenção da gestão e estrutura familiares Para tanto utilizouse a análise de dados de outras pesquisas realizadas no Brasil além de acórdãos do Tribunal de Justiça de Santa Catarina publicados entre os anos de 2013 e 2018 O método de abordagem foi o dedutivo em pesquisa do tipo teórica e qualitativa com etapa quantitativa de dados de acórdãos a partir do emprego de material bibliográfico e documental legal Pesquisas apontam que as práticas judiciárias revelam um padrão de concessão de algumas medidas protetivas em detrimento de outras de forma seletiva como as medidas de rearranjo familiar de restriçãosuspensão de visitas dos filhos e alimentos provisionais Os resultados apontam para a resistência dosas magistradosas em deferir medidas que importam na alteração da gestão familiar o que dificulta o rompimento da relação violenta pois obriga as mulheres em situação de violência a ingressar com outras ações judiciais nas varas de família Por conseguinte resultam na limitação do acesso à justiça destas mulheres e na manutenção do ciclo da violência Palavraschave Lei Maria da Penha Medidas protetivas Rearranjo familiar Poder Judiciário INTRODUÇÃO A luta dos movimentos feministas acerca da questão da violência contra as mulheres no Brasil foi intensificada na década de 1980 com slogans de Quem ama não mata que culminaram na criação das Delegacias da Mulher em 1985 no Estado de São Paulo Esse modelo logo foi replicado em outros estados por alinhar a escuta psicológica e o atendimento social às mulheres que denunciavam as violências sofridas Muitas pesquisas foram feitas nesse 1 Pósgraduanda em Direito Civil e Processo Civil pela Faculdade de Educação São Luís FESL Bacharela em Direito pela Universidade do Extremo Sul Catarinense UNESC 2018 Email almeidaluizaahotmailcom 2 Professora do Curso de Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinense onde leciona as disciplinas de Direitos Humanos das Mulheres e Criminologia Mestra em Direito pelo PPGDUFSC 2001 Doutoranda em Direito pelo PPGDUFSC Membro do NIEGen Núcleo Interdisciplinar de Estudos de Gênero da UNESC E mail monicaovinskigmailcom Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 46 período trazendo conhecimento sobre as particularidades da violência doméstica e familiar contra as mulheres Na década de 1990 a formulação da categoria de gênero trouxe uma nova compreensão sobre as nuances desse tipo de violência demarcada pela assimetria de poder nas relações sociais especialmente no contexto da conjugalidade3 designada de violência de gênero A Lei 113402006 é um marco legislativo no Brasil por ter sido elaborada em um contexto democrático de intensa participação dos movimentos feministas na questão da violência contra as mulheres Ao absorver as demandas desses movimentos a Lei emergiu como uma resposta às recomendações recebidas da Comissão Interamericana de Direitos Humanos no caso Maria da Penha Maia Fernandes que cunhou o nome para a Lei A Lei prescreveu também o alinhamento normativo com a CEDAW Convenção para Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres e a Convenção de Belém do Pará Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher A Lei 113402006 chamada de Lei Maria da Penha adiante LMP inovou no enfrentamento da violência de gênero praticada no âmbito doméstico familiar e em relações de afeto por não se ater à problemática resposta punitiva do sistema de justiça criminal De fato a Lei contém determinações voltadas para a prevenção assistência e punição apresentando as medidas protetivas de urgência como diferencial que se constituem em um instrumento normativo voltado à proteção das mulheres em situação de violência prevenindo a reiteração de novas violências e propiciando às mulheres a possibilidade de romper com as relações violentas especialmente as conjugais Dados do Conselho Nacional de Justiça CNJ sobre a litigiosidade das medidas protetivas de urgência no Poder Judiciário brasileiro apontam que em 2017 foram expedidas 236141 medidas protetivas representando um incremento de 21 em relação a 2016 quando foram deferidas 194812 medidas protetivas entre as que obrigam o agressor e as que são voltadas à proteção das mulheres BRASIL 2018 Mesmo diante de tal magnitude quantitativa pesquisas apontam que há medidas protetivas que são mais aplicadas em detrimento de outras como será visto no desenvolver no trabalho 3 Para a melhor compreensão de conjugalidade esta advém de um processo de transformações de sentimentos e intimidades nas relações De acordo com Magalhães e FéresCarneiro 2003 p 23 a conjugalidade definese como dimensão psicológica compartilhada que possui uma dinâmica inconsciente com leis e funcionamento específico Para as autoras com o passar do tempo a conjugalidade passou a fundamentarse no complemento entre companheiros materializando assim do termo eu para o termo nós Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 47 Nesse contexto o objetivo que se propõe nessa pesquisa é examinar a aplicação de medidas protetivas de caráter civil especificamente as de alimentos provisionais e restriçãosuspensão de visitas dos filhos para verificar os índices de indeferimento dessas medidas no âmbito judicial e compreender as implicações dessas decisões para a prevenção da violência no contexto das relações de conjugalidade A partir da análise das decisões judiciais será possível verificar se as medidas protetivas que alteram a gestão familiar estão sendo de fato aplicadas pelo Poder Judiciário e como a atuação judicial tem contribuído para garantir o acesso à justiça para as mulheres em situação de violência especialmente diante da possibilidade de ruptura das relações violentas resultando em maior vulnerabilidade das mulheres Para cumprir com tal objetivo o trabalho examinará pesquisas realizadas no Brasil as quais apresentam dados sobre a concessão de medidas protetivas em distintos locais e também será feita a coleta e análise de acórdãos publicados pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina sobre o recorte das medidas protetivas de rearranjo familiar4 entre o mês de janeiro de 2013 e o mês de setembro de 2018 Acerca do tema é importante evidenciar que o Brasil não possui dados unificados em relatórios ou pesquisas acadêmicas que abordem especificamente as medidas protetivas de urgência ou mapeamento de suas aplicações de forma a abranger todo o território nacional5 Como foi explicitado no parágrafo anterior as poucas pesquisas que existem com dados judiciais sobre a concessão de medidas protetivas são investigações locais e não nacionais Desta forma mesmo tendo em conta a previsão do artigo 8 II da LMP que determina a existência de um banco de dados nacional sobre a violência doméstica e familiar no Brasil a análise desse artigo será realizada a partir de pesquisas com dados locais feitas de maneira esparsa em alguns municípios ou regiões do país Justificase a pesquisa na necessidade de se compreender a importância da aplicação da LMP especialmente no Poder Judiciário como resposta estatal de proteção às mulheres em situação de violência que buscam no sistema de justiça o suporte necessário para a efetivação do direito a uma vida livre de violência conforme disposto no artigo 3 da Convenção de Belém do Pará OEA 1994 4 Esclarecese que nas linhas que seguem as medidas protetivas de alimentos provisionais dos filhos e restriçãosuspensão de visitas pelo Judiciário serão designadas como medidas de rearranjo familiar expressão definida por Vieira 2016 p 29 5 A única base de dados nacional que especifica as medidas protetivas deferidas pelo poder judiciário brasileiro é a do Conselho Nacional de Justiça CNJ sobre a litigiosidade da LMP Contudo essa base de dados não especifica os tipos de medidas requeridas deferidas e indeferidas nem outros dados sobre as violências Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 48 1 O PODER JUDICIÁRIO E A LEI MARIA DA PENHA A APLICAÇÃO DAS MEDIDAS PROTETIVAS DE URGÊNCIA DE ALIMENTOS PROVISIONAIS E GUARDA PROVISÓRIA DOSAS FILHOSAS As medidas protetivas põemse distintas dentro da Lei Maria da Penha Inicialmente no artigo 22 estão previstas medidas protetivas de urgência que obrigam o agressor Já no artigo 23 há a previsão das medidas protetivas de urgência em favor da ofendida As medidas previstas no rol do artigo 22 não são exaustivas e de acordo com o seu parágrafo primeiro o magistrado pode adotar outras providências previstas em lei sempre que a segurança da mulher ou outras circunstâncias o exigirem conforme adiante se explanará BELLOQUE 2011 BRASIL 2004 No entanto são os respectivos incisos IV e V do artigo 22 da LMP que elencam as medidas protetivas de rearranjo familiar merecendo aqui o devido destaque Isto porque segundo estudiosasos do tema as medidas protetivas de restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores de 18 anos e a de prestação de alimentos provisionais ou provisórios não possuem natureza cautelar penal mas sim natureza civil MENEGHEL et al 2011 DIDIER OLIVEIRA 2008 PASINATO 2009 Dentre as medidas protetivas de urgência categorizadas como de rearranjo familiar estão a prestação de alimentos provisionais e a restrição de visitas aos dependentes menores de 18 dezoito anos Percebese que o deferimento judicial de tais medidas modifica a ordem familiar estabelecida fornecendo meios financeiros para que as mulheres possam romper com a situação de violência bem como a proteção dos filhos e filhas sendo que o exercício do direito de visita é por vezes usado pelos acusados de agressão para manter contato com as mulheres VIEIRA 2016 A consideração dessas medidas acima citadas como de rearranjo familiar ocorreu devido as semelhanças propósitos e efeitos entre estas medidas protetivas dispostas na LMP para que se torne mais clara a análise de dados acerca de seus requerimentos e deferimentos pelosas magistradosas VIEIRA 2016 Destas medidas protetivas de urgência atípicas ou também consideradas híbridas conforme conceituadas por Didier e Oliveira 2008 os alimentos provisionais ou provisórios artigo 22 V LMP merecem destaque no sentido de que para seu requerimento além dos pressupostos necessários do artigo 1695 do Código Civil há necessidade de configurarse também cumulativamente a situação de urgência decorrida da prática da violência doméstica e familiar Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 49 As mulheres que se encontram com a guarda dos filhos e dependentes enfrentam dificuldades após prática da violência Ou seja a obrigação alimentar possui grande importância no contexto doméstico e familiar pois as mulheres que pretendem manter o sustento de seus filhos sentemse pressionadas sendo possivelmente silenciadas sobre a violência que sofrem em prol da subsistência da prole BELLOQUE 2011 Da mesma forma mesmo ciente de que a medida de restrição de visita dosas filhosas é questão sensível de limitação dos direitos fundamentais das crianças e adolescentes envolvidos bem como dos pais em situações de risco grave de novas violências contra as mulheres a medida deve ser empregada De fato considerase que a exposição dos filhos da mulher ao risco de violência constitui forma de violência psicológica à mulher ÁVILA 2019 p 21 Nesse caso o simples acesso do agressor aos filhos e filhas serve para a mulher em situação de violência como forma de violência psicológica pois esta vê o risco que os filhosas estão submetidosas As crianças e adolescentes comumente presenciam os atos de violência praticados contra a mãe quando não também sofrem a violência junto com ela ÁVILA 2019 Embora o artigo 22 IV da LMP empregue a expressão restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores o uso do termo guarda dos filhos menores no decorrer deste artigo merece elucidação Observase que quando osas magistradosas regulamentam as restrições ou suspensões de visitas aos filhos crianças e adolescentes pressupõese automaticamente que a guarda desses ficará com a mãe ou seja o deferimento desta medida implicará na decisão provisória de guarda dos filhos menores de 18 anos mesmo que de maneira indireta por isso foi atribuído o termo guarda BRASIL 2002 VIEIRA 2016 Assim a LMP ao determinar cumulação de competência cível e criminal aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher ou na inexistência desses ao conceder competência híbrida às varas criminais conforme o art 33 da LMP busca a efetivação do acesso à justiça para as mulheres Portanto conforme elenca Vieira 2016 p31 todas as causas relacionadas ao contexto de violência doméstica que não sejam de cunho penal como ações cíveis de divórcio dissolução de união estável pensão alimentícia visitação e guarda dos filhos deveriam ser julgadas em um mesmo órgão evitando a atuação tradicionalmente compartimentalizada do Judiciário A Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro no ano de 2015 realizou um relatório sobre medidas protetivas de urgência selecionando uma amostra de 294 duzentos e noventa e quatro processos para análise Os processos judiciais foram escolhidos porque contavam com requerimentos de medidas protetivas de urgência além de abranger casos referentes aos delitos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 50 de lesão corporal decorrentes de violência doméstica previstas no artigo 129 9 e 11 do Código Penal No tocante a divisão dos processos para a realização da pesquisa foram separados aqueles nos quais haviam deferimento de medidas protetivas dos outros sendo posteriormente os autos subdivididos novamente entre dois tipos de grupos RIO DE JANEIRO 2016 A pesquisa citada constatou que no que diz respeito ao teor das medidas protetivas deferidas em geral osas magistradosas concederam a maioria das medidas previstas nos incisos II e III do artigo 22 da Lei Maria da Penha sendo estas afastamento do lar proibição da aproximação da ofendida de seus familiares e das testemunhas proibição de contato com a ofendida bem como de seus familiares e testemunhas e proibição de frequentar determinados lugares Importa esclarecer que na pesquisa citada dentre todos os deferimentos não houve nenhuma concessão de medidas de prestação de alimentos provisionais conforme assim evidenciam as tabelas RIO DE JANEIRO 2016 O relatório aponta que as medidas do inciso III são as mais concedidas considerando os resultados das três alíneas dispostas nesse inciso do artigo 22 sendo estes 134 vezes a proibição de frequentação de determinados lugares 193 vezes de proibição de contato com a ofendida e por fim 198 vezes a proibição de aproximação da ofendida e seus familiares e das testemunhas resultando em um total de 525 vezes somente no que diz respeito ao inciso III das medidas protetivas RIO DE JANEIRO 2016 Desta forma reiteradamente percebese um ponto em comum nas pesquisas citadas em que osas magistradosas aplicam as medidas protetivas de urgência elencadas nos incisos II e III do artigo 22 da Lei n 113402006 enquanto as medidas de rearranjo familiar objetos dessa análise estão entre as que possuem menores índices de deferimento É possível destacar também por meio da análise dos gráficos formulados pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro que a medida mais indeferida é a de prestação de alimentos provisionais com a porcentagem de 57 cinquenta e sete por cento dos casos já a restriçãosuspensão de visitas em 29 vinte e nove por cento dos casos é indeferida RIO DE JANEIRO 2016 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 51 Gráfico 1 Medidas protetivas indeferidas Fonte Pesquisa Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro 2015 De igual forma dados examinados por outras investigações apontam no mesmo sentido da pesquisa fluminense como os que figuram na dissertação de mestrado de Sinara Gumieri Vieira 2016 os quais evidenciam novamente que as medidas protetivas de rearranjo familiar têm um baixo padrão de deferimento judicial Consoante as tabelas abaixo é possível observar a diferença de medidas deferidas entre os dois grupos nos quais foram distintas Tabela 1 Medidas protetivas de rearranjo patrimonial e familiar Fonte Pesquisa Implementação de Medidas Protetivas da LMP no DF PNUDSENASP MJAnis 2014 A coleta dos dados acima expostos se referiu ao recorte histórico de seis anos o marco inicial foi o ano de 2006 com a implementação da LMP e o final foi o ano de 2012 Como critérios de análise foram incluídos autos judiciais referentes á Lei Maria da Penha entre ações Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 52 penais requerimentos de medidas protetivas de urgência e inquéritos policiais analisados no Distrito Federal delimitandose ações penais que tivessem sido sentenciadas ou aquelas em que os réus obtiveram o benefício da suspensão condicional do processo determinados até o ano de 2012 ANIS 2014 Tabela 1 Medidas protetivas de rearranjo patrimonial e familiar Fonte Pesquisa de Implementação de Medidas Protetivas da LMP no DF PNUDSENASP MJAnis 2014 Diante dos dados examinados principalmente da tabela acima demonstrada questiona se quais motivos explicam os baixos índices de deferimentos das medidas protetivas de rearranjo familiar bem como de seus requerimentos Segundo aponta a pesquisa realizada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro os motivos para o indeferimento seriam baseados na justificativa de que não há dados suficientes que levem à convicção do Juízo e justamente nos casos de prestação de alimentos provisionais e de restriçãosuspensão de visitas osas juízesas acabam solicitando uma regularização junto ao Juízo de família transferindo a competência ou seja não julgamse competentes para as demandas RIO DE JANEIRO 2016 Com efeito é possível verificar que os motivos apontados para a baixa concessão das medidas protetivas de urgência que implicam em rearranjo familiar revelam o claro descompasso com o que está definido na LMP No tocante aos dados colhidos no Tribunal de Justiça de Santa Catarina a coleta de acórdãos dividiuse em três momentos conforme estão apresentados no gráfico a seguir Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 53 Gráfico 2 Expressões utilizadas nas três etapas para a pesquisa de acórdãos Fonte Gráfico elaborada pelas autoras com base nos dados publicamente publicados no site do Tribunal de Justiça de Santa Catarina Na primeira etapa os 15 julgados foram oriundos de 12 doze Comarcas espalhadas pelo Estado Em uma segunda etapa dos 40 quarenta resultados encontrados 14 quatorze eram de diferentes Comarcas espalhadas pelo Estado E por fim buscouse pelas expressões medidas protetivas de urgência e indeferimento agregando 64 sessenta e quatro resultados provenientes de 38 trinta e oito Comarcas As demais decisões foram descartadas por não se encaixarem no objetivo proposto Acerca das controvérsias dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar o Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial adiante REsp 1475006MT no ano de 2014 estabeleceu e delimitou a competência híbrida dos Juizados bem como das Varas Criminais competentes para julgar os crimes da LMP Esse REsp julgado gerou precedente para o Informativo n 5506 publicado em 19 de novembro de 2014 Desta forma a presente decisão determinou aos órgãos do judiciário uma competência cumulativa para julgar as causas decorrentes de violência doméstica e familiar O REsp explicitou que as decisões judiciais que decidem negar provimento aos alimentos provisionais arbitrados em caráter urgente no âmbito da LMP submetem as mulheres novamente a outra agressão e isso resulta no prolongamento de seu sofrimento já que terá que ingressar em outra jurisdição BRASIL 2018 Cada Estado delimita sua organização judiciária designando as competências dos Juizados de Violência Doméstica Portanto de acordo com a parte final do acórdão acima citado quando uma magistradoa nega a competência cível prejudica a apreciação de medidas 6 Os informativos apresentam teses firmadas pelo STJ toda quinzena e geram repercussões no mundo jurídico 0 10 20 30 40 50 60 70 1ª Etapa Expressões Medidas Protetivas e conflitos de competência 2ª Etapa Expressões Medidas Protetivas de caráter cível e fixação de alimentos 3ª Etapa Expressões Medidas protetivas de urgência e indeferimento Números de julgados quando mencionado as seguintes expressões Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 54 protetivas de alimentos provisionais restrição de visitas e a separação de corpos o que poderá propiciar condições para que a mulher sofra novas agressões Essas controvérsias geram óbice a implementaçãoaplicação integral de medidas protetivas de urgência ANIS 2015 No entanto no mais das vezes não é o que ocorre nas decisões judiciais de Santa Catarina Conforme se verificou osas magistradosas de primeiro grau tendem a não aplicar as medidas protetivas de urgência de rearranjo familiar levando adiante os processos em instância superior para que as mulheres possam obter o deferimento de suas pretensões O seguinte caso ocorreu na Capital de Santa Catarina Florianópolis local onde há Juizado de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher no qual o juízo de primeiro grau indeferiu as medidas de rearranjo familiar solicitadas portanto observase Na comarca da Capital M L P da F requereu a concessão de medidas protetivas Lei n 1134006 art 22 em face de seu companheiro L M A P Não vislumbrando provas contundentes de agressão física a juíza de direito do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher indeferiu o pedido Reconheceu que o casal passa por conturbado processo de dissolução da sociedade conjugal e anotou que a separação de corpos deverá se necessário for ser decidida no juízo da família fls 13v14 e 26v Dessa decisão a requerente interpôs o presente agravo de instrumento Postulou ao final a concessão das medidas protetivas pleiteadas em primeira instância quais sejam a o afastamento do agressor do lar domicílio ou local de convivência com a ofendida b a proibição de aproximação da ofendida e de seus familiares fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor c a proibição de contato com a ofendida seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação d a restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar e e a prestação de alimentos provisionais ou provisórios enquanto durar a ação de dissolução de união estável ou qualquer procedimento perante este juízo SANTA CATARINA 2013 p02 grifo nosso Interposto o agravo de instrumento nº n 20130559053 teve seu provimento negado a partir do voto do relator que fundamentou Conforme já mencionado na decisão denegatória da antecipação da tutela recursal em consulta ao Sistema de Automação do Judiciário SAJ constata se que ambos os envolvidos já formularam pedidos de dissolução da sociedade conjugal Os processos tramitam perante a 2ª Vara da Família da comarca da Capital juízo em que já foi decidido cautelarmente sobre o afastamento do agravado do lar conjugal sobre a regulamentação de visitas à filha do casal bem como sobre os alimentos provisionais SANTA CATARINA 2013 p03 Diante dos dados apresentados em síntese como bem apontou a pesquisa da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro as mulheres em situação de violência obrigamse a ingressarem com ação nas varas de família para obterem a prestação jurisdicional desejada Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 55 Assim causalhes prejuízo tendo em vista que o relatório concluiu que os processos em outras instâncias não seriam resolvidos antes de quatro meses sendo que poderiam ser resolvidos em 48 quarenta e oito horas por meio de medidas protetivas RIO DE JANEIRO 2016 É importante salientar que as principias controvérsias de competência acerca da aplicação de medidas protetivas ocorrem quando não há a presença de Juizados de Violência Doméstica nas Comarcas Portanto nas seguintes situações o Tribunal de Justiça de Santa Catarina tem decidido que a aplicação das medidas protetivas é de competência do juízo criminal nas comarcas em que não houver Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher conforme dispõe seguinte emenda AGRAVO DE INSTRUMENTO AÇÃO DE DISSOLUÇÃO DE UNIÃO ESTÁVEL GUARDA DE MENOR E ALIMENTOS PEDIDO DE CONCESSÃO DE MEDIDA PROTETIVA PREVISTA NA LEI MARIA DA PENHA INCOMPETÊNCIA DAS VARAS DA FAMÍLIA COMPETÊNCIA DOS JUIZADOS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER ARTS 14 E 33 DA LEI N 113402006 RESOLUÇÃO N 182006TJ DECISÃO MANTIDA RECURSO IMPROVIDO A Lei n 113402006 denominada Lei Maria da Penha determinou a criação de juizados especializados de violência doméstica e familiar contra a mulher competindolhe o julgamento das causas decorrentes de sua aplicação Nas comarcas em que ainda não foram criados tais juizados a competência recai sobre as varas criminais conforme disposição da norma de regência Instituído pela Resolução n 182006TJ o Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher na comarca da Capital competelhe o exame do pedido de concessão de medida protetiva à mulher vítima de ameaças por seu excompanheiro SANTA CATARINA 2014 p01 O julgado anterior serviu como fundamento para o voto do relator e decisão no Agravo de Instrumento n 20150253968 de Joinville No caso em tela a agravante asseverou que as Varas de Família possuem competência para aplicação das medidas protetivas da LMP nas ações de dissolução de união estável No entanto o Tribunal de Justiça de Santa Catarina decidiu pacificamente do qual extraise Na hipótese dos autos verificase que a demandante requereu a aplicação de medidas protetivas em ação de dissolução e reconhecimento de união estável em trâmite na Vara da Família da Comarca de JoinvilleSC de modo que acertada a decisão ao reconhecer a incompetência da Vara da Família para processamento e julgamento da medida protetiva Isso porque compete ao juízo criminal em ação própria a adoção de medidas protetivas e de urgência no intuito de coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher de modo que não poderia a agravante pleitear medida de competência criminal nos autos da ação de dissolução e reconhecimento de união estável Dessarte a aplicação das medidas protetivas é de competência do juízo criminal nas comarcas em que não houver Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher conforme se infere dos artigos 14 e Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 56 33 da Lei n 113402006 motivo pelo qual mantém a decisão profligada SANTA CATARINA 2016 p 06 grifo nosso Desta forma cumpre ressaltar a importância da manutenção familiar das mulheres e dos filhos nos casos de violência como se exibirá a seguir bem como a fixação de medidas protetivas de urgência de rearranjo familiar observandose a resistência doas magistradosas de primeira instância em não aplicar as medidas bem como as devidas consequências acerca do não deferimento No Agravo de Instrumento n 40251187120178240000 o requerente almejou a revogação da medida protetiva de afastamento do lar deferida em primeiro grau O caso é referente ao pai que supostamente haveria aplicado querosene na filha de 12 doze anos causandolhe queimaduras de primeiro grau na face e no ombro Neste caso foi aplicada a LMP e não o Estatuto da Criança e Adolescente Tanto a mãe quanto o pai da criança postularam pela revogação da medida protetiva concedida Em sede recursal o agravante alega que não passou de um acidente devido a realização de simpatia também ressaltando que a filha sofre com o afastamento do genitor SANTA CATARINA 2018 Pois bem o fato anteriormente explanado ocorreu na Comarca de Urussanga Santa Catarina e se refere a um caso de violência ocorrida no âmbito familiar Caso fossem deferidas medidas protetivas de rearranjo familiar7 nesta situação8 de vulnerabilidade da adolescente o desfecho do processo e da apelação poderiam ter sido outros ao menos haveria sido garantida condições financeiras e de guarda que em hipótese poderiam propiciar condições para a ruptura da relação Primeiro porque regulamentado a restrição de visitas da filha em situação de violência automaticamente concederia a guarda unilateral da mãe Em segundo porque a mãe responsável pela subsistência familiar neste lapso temporal de afastamento do lar do agressor deveria contar com a fixação de alimentos provisionais tendo em vista a situação familiar e as lesões sofridas pela filha que provavelmente ensejaram despesas Portanto o que se denota é uma despreocupação em relação a manutenção desta família Desse modo evidenciase um confronto entre o Judiciário que afasta o agressor do lar mas não regulamenta questões da entidade familiar Nesse caso como a mulher requereu medidas protetivas em outros autos contra o mesmo agressor é nítida a necessidade de se conceder as 7 Referentes à restrição de visitas e alimentos provisionais 8 É importante esclarecer que neste caso a criança menor de 12 doze anos está em situação de violência e é filha do agressor fruto de uma relação conjugal No entanto observase que a mãe também já requereu medidas protetivas contra o cônjuge o mesmo agressor da filha Com o afastamento do agressor do lar a mãe ficou responsável pela subsistência e neste caso não havendo regulamentação de visitas muito menos de alimentos a mãe devido a dependência financeira emocional requer que o cônjuge retorne ao lar utilizandose do argumento de que a filha estaria sofrendo com a ausência Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 57 medidas de rearranjo familiar porque as práticas de violência são reiteradas e a mulher ao que parece encontrase em uma situação e dependência do agressor SANTA CATARINA 2018 A partir desse ponto da decisão extraemse as partes relevantes Verificase outrossim que já tramita em desfavor do agravante a Ação Penal n 00018155620178240078 na qual lhe é imputada a prática do delito previsto no 129 9º do Código Penal com incidência da Lei n 1134006 Tudo isso revela sem sombra de dívidas a real gravidade dos fatos apurados e sinaliza a necessidade da concessão da medida de afastamento Por outro enfoque ainda que a também ofendida SSCT genitora da vítima MSCT tenha desistido de prosseguir com as medidas protetivas noticiando à p 32 que a filha estaria sofrendo demasiadamente com o afastamento do pai inviável ao menos por ora a cassação da decisão no que tange à menor SANTA CATARINA 2018 p 06 grifo nosso Portanto a concessão unicamente de medida protetiva de afastamento do lar nesta situação não é eficaz inclusive por menção do Relator ao ressaltar a gravidade do caso mereceria análise instantânea de aplicação de outras medidas protetivas principalmente àquelas que regulam as famílias Ainda a respeito da guarda dos filhos principalmente nos casos de relações conjugais em que as mulheres sofrem muitas vezes atos de violência omitindose da situação para o sustento dos filhos não se pode forçar uma convivência entre a mulher em situação de violência e o cônjuge por causa de seus filhos até mesmo causando a esses impactos irrecuperáveis já que em regra presenciam as cenas Neste ínterim é preciso destacar que a competência híbrida não é uma realidade de muitas Comarcas isto porque em diversas localidades não há a implementação de Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar e as Varas Criminais por vezes não deferem as medidas protetivas de rearranjo familiar enviandoas para as Varas de Família Contudo quando os casos são enviados para uma Vara de Família por exemplo estas não estão preparadas para atender as mulheres em situação de violência Em vista disso os processos referentes a LMP quando presentes nas Varas de Família seguem o rito do Código de Processo Civil com a designação da audiência de mediação na qual estarão presentes no ato tanto a mulher em situação de violência quanto o homem agressor procedimento que a LMP veda PARIZOTTO 2018 Sem dúvida submeter uma mulher em situação de violência a participar de uma audiência de mediação perante o agressor mesmo não sendo obrigatória essa realização resulta em duplicar o dano sofrido pelas mulheres Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 58 revitimizandoa além de trivializar a violência sofrida o que se constitui como uma medida de gestão mantenedora da família9 Esclarecese que nesses casos o modelo de solução de conflitos regido pelas Varas de Família não atende às particularidades da violência doméstica e familiar com base em gênero Acaso houvessem as audiências híbridas determinadas pela LMP aos Juizados Criminais os Magistrados poderiam arbitrar amplamente medidas protetivas cíveis e criminais alcançando resultados céleres à mulher que está vivenciado uma situação de violência PARIZOTTO 2018 Com efeito a gestão mantedora da família nas decisões é um obstáculo para o uso de medidas fundamentais na proteção das mulheres É uma forma de reproduzir a violência contra as mulheres e implica em ato de manutençãoexteriorização de discriminação Desta forma conforme elenca Vieira 2016 p 32 uma hipótese para explicar a resistência dosas magistradosas em deferir as medidas protetivas de rearranjo familiar e patrimonial remete a uma possível gestão patriarcal da família na resposta judicial à violência doméstica ANIS 2015 No que tange a defesa dos direitos humanos das mulheres importa evidenciar as recomendações internacionais sobre o tema Nesse sentido o Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra as Mulheres CEDAW emitiu a Recomendação Geral 33 O conteúdo dessa Recomendação que está incluído no texto da CEDAW trata acerca do significado de acesso à justiça para as mulheres como por exemplo a valoração da credibilidade e do peso dado às vozes femininas notadamente nos argumentos e depoimentos das mulheres como partes e testemunhas ONU 2015 Ou seja o descrédito judicial conferido às palavras das mulheres em situação de violência quando se apresentam em juízo seja quando não são ouvidas ou quando se exigem provas adicionais para validar o que dizem especialmente em uma decisão de urgência e temporária implica em clara violação dos direitos humanos previstos no conteúdo da CEDAW Ainda neste ponto cumpre ressaltar também a importância das disposições específicas para as mulheres em situação de violência como por exemplo as Regras de Brasília Sobre Acesso à Justiça das Pessoas em Condição de Vulnerabilidade aprovadas na XIV Conferência Judicial Iberoamericana as quais orientam o judiciário a alertarem as mulheres em especial 9 O termo gestão mantedora da família também pode ser traduzido como familialismo ANIS 2015 e gestão normalizadora da família VIEIRA 2016 remetendo ao objetivo dosas magistradosas de não interferir na ordem doméstica e nas relações de conjugalidade através da não concessão de medidas protetivas de urgência de cunho civil Esse termo foi definido por Vieira 2016 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 59 nos casos de violência doméstica familiar sobres as decisões judiciais que possam lhes trazer riscos ou que interfiram em sua segurança Sendo portanto tanto o esclarecimento quanto as informações sobre os processos jurisdicionais um fator importante para efetivação do acesso à justiça das mulheres em situações de vulnerabilidade CONFERÊNCIA JUDICIAL IBERO AMERICANA 2008 Deste modo as diretrizes as disposições específicas e o objetivo da recomendação são importantes para ressaltarem principalmente o acesso à justiça das mulheres em situação de violência já que o não deferimento das medidas protetivas de rearranjo familiar as conduzem a terem que ingressar em outros juízos com outras ações para terem êxito em seus pedidos causandolhes prejuízos e resultando em revitimização Podese avultar também a questão das Delegacias da Mulher em muitos casos não há menção por estas delegacias sobre as medidas protetivas de urgência de alimentos provisionais e de restrição de visitas Em vários casos o atendimento inicial não esclarece quanto a possibilidade de requerimento ou deferimento pelo Juízo BELLOQUE 2011 PASINATO 2011 Ademais o acesso à justiça para as mulheres em situação de violência pode ser obstaculizado devido a falta de conhecimento acerca de seus direitos e da legislação que as ampara É nesse ponto que se destaca a necessidade de avanços na educação que deve ser orientada pela perspectiva de gênero Da análise dos relatórios periódicos dos Estados Partes o Comitê CEDAW verificou a falha dos Estados na garantia de acesso à informação das pessoas sobre os direitos humanos das mulheres principalmente no ponto de não discriminação e igualdade ONU 2015 Diante desse cenário considerase que o não deferimento de medidas protetivas de urgência traz consequências negativas às mulheres e cria obstáculos na efetivação da Lei 1134006 As mulheres têm o acesso à justiça limitado e assim as questões de direito de família como a fixação de alimentos por exemplo como apontam as pesquisas não são aplicadas por meio de medidas protetivas o que exige que as mulheres recorram a outros Juízos por meio da proposição de novas demandas que ensejam custas e morosidade nas decisões E também porque nestes casos acabase reforçando o ciclo da violência a dependência emocional financeira e a decisão por conta dos filhos questões que dificultam a saída da mulher do relacionamento violento A partir deste ponto põese em questão a eficácia da LMP embora como apontado a lei contenha a previsão de diversas espécies de medidas protetivas de urgência bem como as de rearranjo familiar É preciso elucidar que de certa forma há uma recusa de boa parte dosas magistradosas na compreensão da Lei Maria da Penha como um sistema único que deve ter Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 60 por base de interpretação regras próprias bem como nas aplicações também As mulheres em situação de violência devem ser o centro e o foco da LMP e sua aplicação pelo Judiciário e magistradosas caso não o façam revelam uma resistência fundada na lógica jurídica tradicional opondose à lógica de proteção da mulher CAMPOS 2017 É preciso avançar na implementação de políticas públicas no combate à violência contra as mulheres medida que se faz de extrema importância pois entre os obstáculos encontrados pelas mulheres referentes ao acesso à justiça estão a falta de implementação de Unidades Judiciárias de Violência Doméstica atendimentos psicológicos e abrigamentos ocorridos devido ao contingenciamento econômico e motivos políticos o que têm gerado a manutenção das desigualdades e da violência LOPES et al 2016 CONSIDERAÇÕES FINAIS Indeferir as medidas de rearranjo familiar e conceder outros tipos de medidas é limitar a proteção das mulheres em situação de violência É ignorar que estas mulheres são sujeitos de direitos e precisam da proteção garantida pelas normas para a reorganização de suas casas e de seus recursos É vedar os olhos às recomendações internacionais postas em prol do acesso das mulheres à justiça A insegurança dosas magistradosas em aplicar as medidas protetivas de rearranjo familiar implicam em violação ao direito a uma vida livre de violência e ao mesmo tempo violam a garantia de acesso à justiça pois no mais das vezes desconsideram as palavras das mulheres o que enfraquece a aplicação da LMP É preciso que o Poder Judiciário como um todo compreenda o propósito preventivo da LMP em especial focado nas medidas protetivas de urgência Essas sem dúvida constituemse em um rico instrumental para o enfrentamento da violência de gênero que é pautada na desigualdade de poder nas relações conjugais entre homens e mulheres Reconhecer que há uma desigualdade de gênero na sociedade brasileira atual que resulta em grave assimetria de poder nas relações sociais e conjugais é a base para a aplicação adequada e completa das medidas protetivas Os altos índices de indeferimento das medidas protetivas de rearranjo familiar como as de alimentos provisionais e a restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores expressa a dificuldade que o Poder Judiciário tem de modificar a gestão normalizadora da família Esses indeferimentos além de violarem os ditames protetivos da mulher e preventivos de novas práticas de violência previstos na LMP também servem de obstáculo ao acesso à justiça das mulheres que terão que buscar um defensor e se submeter a propor ação específica na Vara de Família Isso representa uma forma de resistência aos ditames da LMP e dificulta o Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 61 rompimento do ciclo de violência a que as mulheres estão sujeitas o que indiretamente as incentiva a permanecer nas relações violentas Observase também que o rito proposto nas Varas de Família tende a seguir o disposto no Código de Processo Civil o qual ignora as vulnerabilidades resultantes da prática da violência de gênero no âmbito conjugal e expõe as mulheres à situações constrangedoras como o é a participação em sessão de mediação prática rejeitada pela LMP O diferencial da LMP não é a punição do agressor que bem ou mal encontra lastro legal no Código Penal desde 1940 em tipificações que podem ser aplicadas nos casos de violência doméstica e familiar inclusive em relações de conjugalidade A proteção das mulheres em situação de violência é um dos diferenciais da LMP Portanto o deferimento das medidas protetivas representam no mais das vezes o suporte necessário para o rompimento dos relacionamentos violentos ou seja em última instância as medidas protetivas podem salvar vidas e evitar maiores danos não apenas para as mulheres em situação de violência mas também para osas filhosas dependentes menores de 18 anos pessoas em formação que precisam igualmente de proteção e cuidado da lei Após treze anos de vigência da LMP permanece a luta para que seus instrumentos sejam de fato aplicados e assim seja possível desnaturalizar a violência contra as mulheres E essa proteção encontra seu principal emblema nas medidas protetivas de urgência que devem ser viabilizadas pelo Poder Judiciário de forma rápida e adequada REFERÊNCIAS ANIS Instituto de Bioética Direitos Humanos e Gênero Quem somos Disponível em httpwwwanisorgbrsobre Acesso em 15 set 2018 ÁVILA Thiago Pierobom de Medidas protetivas da Lei Maria da Penha natureza jurídica e parâmetros decisórios Revista Brasileira de Ciências Criminais v 157 p 128 jul 2019 Disponível em httpswwwacademiaedu39986181MedidasprotetivasdaLeiMariadaPenhanaturez ajurC3ADdicaeparC3A2metrosdecisC3B3rios Acesso em 27 jul 2019 BELLOQUE Juliana Garcia Das medidas protetivas que obrigam o agressor artigos 22 In CAMPOS Carmen Hein de Lei Maria da Penha comentada em uma perspectivo jurídicafeminista Rio de Janeiro Lumen Juris 2011 p 307314 Disponível em httpthemisorgbrwpcontentuploads201504LMPcomentadaperspectivajuridico ferministapdf Acesso em 20 jan 2019 BRASIL Conselho Nacional de Justiça O Poder Judiciário na aplicação da Lei Maria da Penha 2018a Disponível em httpcnjjusbrfilespublicacoesarquivo5f271e3f54a853da92749ed051cf305918ead26dd2a b9cb18f8cb59165b61f27pdf Acesso em 11 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 62 BRASIL Lei n 10406 de 10 de janeiro de 2002 Institui o Código Civil Brasília DF 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instrumento Lei maria da penha Medidas protetivas Indeferimento Posterior deferimento em ação de dissolução de sociedade conjugal Agravante M L P da F Agravado L M A P Quarta Câmara Criminal Relator Des Roberto Lucas Pacheco 14 de fevereiro de 2013 Disponível em httpsgoogl75rZHP Acesso em 20 fev 2019 SANTA CATARINA Tribunal de Justiça Agravo de Instrumento n 20150253968SC Agravo de instrumento Ação de reconhecimento e dissolução de união estável cc alimentos e pedido de aplicação de medidas protetivas Agravante E C S Agravada F A Segunda Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 64 Câmara de Direito Civil Relator Des Sebastião César Evangelista 10 de Março de 2016 Disponível em httpsgoogl9iUVkf Acesso em 20 fev 2019 SANTA CATARINA Tribunal de Justiça Agravo de Instrumento n 4025118712017SC Recurso interposto contra decisão que indeferiu o pedido de revogação das medidas protetivas de urgência lei n 113402006 aplicadas em desfavor do agravante com relação à filha Genitor que supostamente aplicou querosene na menor provocandolhe queimaduras de primeiro grau na face e no ombro Agravante A C T Agravado Ministério Público do Estado de Santa Catarina Terceira Câmara Criminal Relator Leopoldo Augusto Brüggemann 18 de março de 2018 Disponível em httpsgoogl1R544U Acesso em 20 fev 2019 VIEIRA Sinara Gumieri Lei Maria da Penha e Gestão Normalizadora da Família um estudo sobre a violência doméstica judicializada no Distrito Federal entre 2006 e 2012 Dissertação Mestrado em Direito Faculdade de Direito da Universidade de Brasília 2016 Disponível em httprepositoriounbbrbitstream104821993112016SinaraGumieriVieirapdf Acesso em 20 jul 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 65 STALKING SOBRE A PERTINÊNCIA DE UMA LEI ESPECÍFICA A PARTIR DA ANÁLISE DE CASOS JURISPRUDENCIAIS DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA Marja Mangili Laurindo1 Karine Grassi2 RESUMO O presente trabalho se propôs a perguntar de que forma tem aparecido casos de stalking sofrido por mulheres no Tribunal de Justiça de Santa Catarina TJSC e como o mesmo tem decido sobre Para isso foram analisadas as apelações encontradas em consulta à Jurisprudência do TJSC em pesquisa ao site do Tribunal O objetivo da escolha dos critérios para a leitura dos casos se pautou na necessidade de compreender como tem sido propostas e julgadas as ações na ausência de lei específica a fim de compreender se há necessidade de legislação específica Verificouse que a ausência de critérios seguros de resolução e de compreensão do fenômeno em sua especificidade que criam um cenário jurídico inseguro de sentenças variáveis concluindo ser necessária e pertinente uma legislação específica para o stalking a fim de que se separe de outros tipos de demanda e adquira sua própria especificidade Palavraschave Stalking Criminalização Tribunal de Justiça de Santa Catarina Jurisprudência INTRODUÇÃO Há poucos dados sobre stalking no Brasil No entanto o termo vem sendo usado há muitos anos e tratado por vários países como sério objeto de estudo psicossocial e jurídico Há alguns estudos pontuais no Brasil que vão em consonância com os dados apontados por estudos estrangeiros a maioria das vítimas são mulheres Além disso o dano psicológico causado às vítimas desse gênero parece como em pesquisa apontada recentemente BOEN LOPES 2019 maior do que em comparação aos homens que sofreram stalking A jurisprudência do TJSC por meio de alguns instrumentos de busca permite inferir algumas leituras sobre a situação atual no que diz respeito em primeiro lugar ao tipo de demanda jurídica que é feita ao Tribunal de Justiça e em segundo lugar de que forma são 1 Doutoranda em Direito pelo Programa de Pósgraduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina PPGDUFSC Bolsista CNPq Mestra em Direito 2017 pelo Programa de Pósgraduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina PPGDUFSC Graduada em Direito 2015 pela Universidade Federal de Santa Catarina Contato marjamangiligmailcom 2 Doutoranda em Direito pelo Programa de Pósgraduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina PPGDUFSC Bolsista Capes Mestra em Direito 2015 pelo Programa de Pósgraduação em Direito da Universidade de Caxias do Sul PPGDirUCS Graduada em Direito 2012 pela Universidade do Planalto Catarinense Uniplac Contato grassikggmailcom Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 66 decididos os casos Dá ademais indicativos sobre como o stalking está socialmente posicionado e como se relaciona com outros tipos de violência Não há no Brasil qualquer lei que puna de acordo com as especificidades do ato o stalking Atualmente costumase punir atos que perturbem a tranquilidade da vítima conforme dispõe o art 65 do DecretoLei 3688 de 1941 Lei das Contravenções Penais Molestar alguém ou perturbarlhe a tranquilidade por acinte ou por motivo reprovável Pena prisão simples de quinze dias a dois meses ou multa de duzentos mil réis a dois contos de réis A Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou no dia 14 de agosto de 2019 dois projetos de lei que criminalizam perseguição física ou virtual tornando o seu tipo mais certo e endurecendo a sanção que passaria da prisão simples de quinze dias a dois meses para possivelmente de no mínimo seis meses até três anos com ou sem possibilidade de multa conforme o projeto Em atenção a isso procurase compreender se há necessidade e pertinência de uma legislação específica para o stalking a partir da análise dos processos encontrados na sessão de Jurisprudência do site do Tribunal de Justiça de Santa Catarina com foco nos casos de stalking ou perseguição em que a vítima é mulher critério que será justificado no tópico 3 Não foi encontrada qualquer pesquisa de análise de jurisprudência desse Tribunal no mesmo sentido Acreditase que essa pesquisa possa contribuir em campo que necessita cada vez mais de estudos 1 O QUE É STALKING Entendido como perseguição obsessiva a palavra stalking está em sua origem associada à caça de animais NICOL 2006 e teria sido utilizada pela primeira vez com relação a pessoas em meados da década de 1970 no contexto da perseguição a famosos e por um serial killer estadunidense que teria se usado desse termo para se referir à caça de suas vítimas NICOL 2006 Nicol 2006 p 15 define stalking como uma constelação de comportamentos pelos quais um indivíduo inflige a outro intrusões e comunicações indesejadas repetidamente Segundo o mesmo autor uma definição precisa é difícil de ser alcançada porque normalmente não se constitui através de apenas um ato mas uma multiplicidades deles não sendo necessariamente cada um por si só ilegal NICOL 2006 p 15 Tal comportamento surge em situações em que o stalker foi frustrado de alguma maneira PINALS 2007 Diante de uma expectativa que não se concretizou agem indiferentemente ao consentimento e ao medo dos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 67 seus objetos de obsessão agindo de maneira a desconsiderar o direito do outro em nome de um direito que tem certeza possuir PINALS 2007 Tal conduta adota uma série de métodos de perseguição que persistem e se repetem de maneira indesejada podendo a aproximação ser física ou por meios de comunicação como cartas emails ou até mesmo sinais de que o stalker passou por perto de sua vítima NICOL 2006 p 17 A perseguição pode também vir em forma de flores As vítimas são induzidas diz Nicol a um estado de stress e medo constante de violência física que muito comumente se concretizam 2006 p 17 Pinals 2007 p 5 aponta para pelo menos três características um padrão de conduta indesejado pela vítima que se repete justamente pela imposição da vontade do stalker sobre o desejo do outro uma ameaça implícita ou explícita por fim a geração de medo da vítima No entanto os métodos de aproximação podem variar infinitamente podendo combinar atos legais e ilegais PATHÉ 2002 Pinals 2007 afirma que a perseguição causa sérios efeitos psicológicos nas vítimas e é normalmente anúncio de vários tipos de agressão e por isso os sistemas criminais tem a responsabilidade de controlar e prevenilos É muito comum que o stalking conduza a crimes como homicídio assédio sexual mas as penas talvez não mostrem o crime de stalking PINALS 2007 p 6 É natural que as vítimas desse tipo de perseguição se sintam preocupadas com a possibilidade de uso de outros tipos de violências seja contra si mesma contra seus animais ou sua propriedade PATHÉ 2002 Elas e as pessoas próximas a ela se tornam ansiosas e sentem que estão enlouquecendo manifestando sintomas de stress traumático Há também o sentimento indevido de culpa a vítima pensa no que poderia ter feito para causar tal situação Tal instabilidade pode causar comportamentos estranhos como afastamento do ambiente de trabalho de amigos e pode levar a pensamentos sobre como violentar o stalker ou tomar outras medidas drásticas PATHÉ 2002 Em muitos casos pode haver poucas evidências ou evidências dissimuladas de que está de fato ocorrendo tal situação Há na atividade do stalker uma intenção de se ocupar da vida da vítima de modo a parecer que há de fato um relacionamento amoroso ou envolvimento consentido A leitura dos casos disponibilizados pela jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina evidência tais afirmações como se verá no tópico seguinte 2 ANÁLISE DOS RESULTADOS DA PESQUISA À JURISPRUDÊNCIA DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SANTA CATARINA 21 Procedimentos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 68 Como não há tipificação específica foram realizadas cinco tipos de consulta em busca avançada de jurisprudência no site do TJSC Em um primeiro momento na procura por resultados pela palavra stalking encontrouse 2 resultados relativos ao mesmo caso que será descrito mais à frente Em seguida procurouse pelas palavras stalk e stalker e para essas expressões não se encontrou resultado Em seguida procurouse pela perseguição com exclusão das seguintes palavras patrimônio furto crédito débito política homicídio tráfico policial roubo administrativa servidor e usucapião Essa pesquisa trouxe 143 resultados Além disso sabendose ser comum a aplicação do art 65 do Decreto Lei 368841 pesquisouse tais palavras com o acréscimo das expressões molestar e perturbar Foram encontrados 385 resultados Foram analisados portanto 530 resultados que aparecem em um primeiro momento no formato de ementas descritivas que indicam às vezes com sucesso outras não o conteúdo do processo Através da leitura individual das ementas foi possível a aproximação quanto ao objeto de estudo descartandose eventualmente determinados termos já de início o que será justificado no relato de casa pesquisa Também foi possível inferir de acordo com o inteiro teor dos julgados sobre o que se tratava A análise dos processos a partir desse ponto se deu de maneira ampla e foram colhidos apenas os casos que cabem nos seguintes critérios a Foram excluídos da análise processos em que a vítima não obstante ter sofrido com o assédio do stalker também sofreu violência doméstica casos em que o agressor é exnamorado exmarido etc ou violência sexual Isso porque nesses casos normalmente o pedido de consideração de perturbação de tranquilidade relativa à contravenção do art 65 do Decreto Lei 368841 era considerada indevida em detrimento na grande maioria dos casos dos crimes do Código Penal ou da Lei Maria da Penha b Não foram considerados os processos relativos à estupro de vulnerável cujos pedidos incluíam muitas vezes o enquadramento da contravenção de perturbação de tranquilidade normalmente rejeitada pelos juízes pela sobreposição dos crimes em detrimento da contravenção c Não foram considerados os processos de caráter político trabalhista negocial policial etc isto é processos em que não figurasse uma mulher adulta como vítima de um homem stalker em situação cuja justificativa não é mediada diretamente por trabalho compra etc isto é cujos motivos são normalmente relacionados à rejeição amorosa ou sexual d Não foram considerados os processos relativos à perseguição em que apenas homens configuravam como alvo por alguns motivos não são as maiores vítimas de stalking conforme Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 69 dados FINCH 20013 são menos impactados psicologicamente e fisicamente por eventual stalking os resultados que foram encontrados nas pesquisas estavam associados exclusivamente aos casos elencados no item c No entanto há casos em que os cônjuges sofreram consequências do stalking às suas companheiras O objetivo da escolha de tais critérios para a leitura dos casos se pauta na ideia de que é necessária e pertinente uma legislação específica para o stalking isto é que a legislação atual não dá conta de proteger a mulher de assédios antes que se transformem em violência física contra ela 22 Resultados da pesquisa pela palavra stalking Apenas dois resultados surgiram dessa busca sendo relativos ao mesmo caso BRASIL 2017 Foi o único caso o Acórdão n 00041178220118240041 encontrado na jurisprudência do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que fez referência direta ao termo inglês e trouxe seu conceito A perseguição obsessiva e insistente de alguém é conhecida pelo termo stalking derivada do verbo inglês to stalk que pode ser livremente traduzido como seguir ficar à espera referindose à ação dos animais em busca de suas presas A conduta é uma forma de violência psicológica em que a vítima sentese subjugada e tolhida em sua liberdade Tratandose de violência de gênero a Lei n 1134006 prevê expressamente a vigilância constante e a perseguição contumaz como formas de violação aos direitos humanos das mulheres arts 6º e 7º III Acórdão n 0004117 8220118240041 BRASIL 2017 p 17 Nesta decisão afirmase que tal comportamento costumase enquadrar como contravenção prevista pelo DecretoLei de 1941 No entanto se a perseguição obsessiva e insistente é de tal gravidade a ponto de causar ofensa à integridade corporal ou à saúde da vítima a prática será o modo de execução do crime previsto no art 129 do CP que ao contrário do que sustentado nas razões não se configura apenas por meio de agressão física mas também de violência psicológica e moral Acórdão n 0004117 8220118240041 BRASIL 2017 p 17 Em uma tentativa de incluir no conceito de saúde também a saúde mental da vítima de stalking o magistrado considera a aplicação do art 129 do Código Penal a fim de trazer o problema para além de uma mera perturbação de tranquilidade mas uma conduta que pode 3 Em tradução livre A ênfase da pesquisa empírica existente sobre vítimas de perseguição quase uniformemente aponta que stalking é um crime cometido por homens contra mulheres Original The emphasis of existing empirical research into stalking victimisation almost uniformly asserts that stalking is a crime committed by men against women FINCH 2011 p 6 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 70 causar de fato danos psicológicos que estariam no espectro de proteção da norma não se tratando de interpretação extensiva como afirmado nas razões recursais No presente caso a mulher que sofreu perseguição era sobrinha do sujeito No caso foi devidamente descrito na inicial que a conduta do apelante ofendeu a saúde mental e psicológica da vítima Como esta era sobrinha por afinidade do réu a situação enquadrouse no 9º do referido dispositivo Levantouse também o art 7 da Lei Maria da Penha que dentro do contexto familiar e doméstico protege contra perseguição contumaz BRASIL 2006 Foi questionado durante o processo se seria preciso provas por meio de exame de corpo de delito para verifica danos psicológicos BRASIL 2017 pois a Defensoria Pública encarregada da defesa do réu entendeu em seu recurso dentro outras coisas que o crime do art 129 do Código Penal não se aplicaria já que não houve lesões físicas BRASIL 2017 Sobre o argumento de que faltavam provas o juízo considerou que a palavra da vítima seria o fator mais importante a ser analisado nos casos de violência doméstica Assim afirmou o relator em divergência à procuradoria de Justiça que exigir outras provas além das constantes nos autos como o exame de corpo de delito impossibilitaria a própria efetivação da norma protetiva Lei n 1134006 e implicaria uma nova vitimização de S É o caso portanto de flexibilizarse a exigência à luz do art 167 do CPP Isso porque os reflexos da conduta do réu e os danos dela decorrentes são perceptíveis nos próprios documentos acostados aos autos e no relato detalhado feito pela ofendida em seu depoimento Acórdão n 00041178220118240041 BRASIL 2017 p 18 A vítima havia desenvolvido em sintomas físicos o quadro de bruxismo e por conta do assédio por emails e por mensagens indiretas a conhecidos em comum mesmo após reiteradas negativas por parte da autora da ação o réu permaneceu perseguindo e mais difamando seu nome o que não é segundo apontam as pesquisas incomum dentre os stalkers A autora chegou a se mudar para a Índia no intuito de se afastar do sujeito Conforme depoimento da vítima estaria emocionalmente frágil abalada o que afetou seus estudos e trabalho bem como amizades e família o que constituiu enquadramento segundo o TJ no art 129 do CP BRASIL 2017 É interessante ainda analisar o voto vencido do Excelentíssimo Desembargador Sérgio Rizelo De acordo com a denúncia M S B teria ofendido a saúde mentalpsicológica da Vítima S L K encaminhando a ela uma série de emails com conteúdo impertinente com a intenção de manter com a Ofendida relacionamento amoroso É inconteste pois que a integridade física de S L K não foi afetada pelas atitudes do Denunciado Sua anatomia Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 71 remanesceu intacta mesmo após as investidas de M S B A lesão seria imaterial concernente à saúde mental e psíquica da Vítima E é justamente neste ponto que a impropriedade passa a existir na minha compreensão A adequação típica foi feita em razão da expressão saúde no caput do art 129 do Código Penal Mas com o devido respeito não acredito que a norma tenha sido criada com o escopo de proteger a incolumidade psíquica nestes termos O propósito da norma pois é proteger a incolumidade física e psíquica dos cidadãos proibindo a prática de condutas que provoquem modificações em suas características tanto anatômicas quanto psicológicas Por isso é que se pune o indivíduo que amputa violentamente o membro da vítima assim como aquele que causa hematoma no ofendido mas não se pune não nos termos do art 129 do Código Penal o sujeito que desfere golpe que malgrado atinja o oponente não lhe deixa marcas visíveis De modo semelhante se a conduta do agente causar abalo anímico que alcance nível constatável que tenha influência aferível na existência da vítima e provoque alteração de função fisiológica do organismo é de se reconhecer a ocorrência do crime por ofensa à saúde Mas o impacto anímico deve ser passível de delimitação precisa como se exige no caso de lesão física Soame perfeitamente possível reconhecer a ocorrência do delito de lesão corporal se o ofendido em razão da conduta do agente desenvolve transtorno de estresse póstraumático bulimia neurastenia síndrome de Briquet fuga dissociativa ou qualquer outro distúrbio da mesma forma que uma equimose um hematoma um corte ou uma fratura podem permitir o decreto condenatório Isso com a devida vênia configura a contravenção penal de perturbação da tranquilidade e só BRASIL Acórdão n 00041178220118240041 2017 p 27 Por fim apesar de vencido o voto o autor da apelação foi imputado da acusação com relação ao art 129 do Código Penal por ter sido atestada sua insanidade mental 23 Pesquisa relacionada à palavra perseguição Nessa pesquisa encontrouse uma apelação BRASIL 2014 que resultou em condenação por danos morais para a autora Apesar de ser evidente que todo o caso se trata de stalking inclusive com testemunhas vítimas do mesmo réu apenas em um momento da sentença se fala sobre sensação de angústia e perseguição da autora No caso o stalker foi responsabilizado civilmente pelo fato já que segundo a decisão o dano moral cobre prejuízos de natureza relacionada ao físico e ao psicológico levandose em consideração que a vítima passou a viver estado de pânico com a perseguição de um desconhecido e aos detalhes que conhecia sobre sua vida e de sua família Nesse caso o stalker foi apenas posteriormente descoberto porque se utilizava de números sem identificação ou perfis falsos nas redes sociais o que não impediu que o depoimento da vítima se tornasse suficiente A reparação por danos morais foram aplicados a fim de compensar o dano psicológico e alertar o stalker sobre sua conduta e a fixação da reparação por não ter referência legal foi feita conforme a razoabilidade do Tribunal Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 72 Em outro caso BRASIL 2013 a perseguição do exnamorado de 8 anos da autora nos lugares em que ela frequentava acompanhada por ofensas públicas como vagabunda adicionadas a caretas tomandolhe pelo braço foi tratada como contravenção penal ou delito de menor potencial ofensivo isto é julgada de acordo com o art 65 da Lei de Contravenções Penais Nesse caso também entendeuse que ainda que o réu não tenha sido visto por testemunhas praticando tais atos a palavra da vítima se sobrepunha 24 Pesquisa relacionada ao art 65 do DecretoLei 368841 A perseguição que a vítima sofre muitas vezes aparece como algo decorrente de outras situações ou crimes como estupro ameaça BRASIL 2011a e outras violências Nesse sentido os processos acabam por vezes desconsiderando o art 65 da Lei de 1941 por considerarem serem as mulheres vítimas de outros atos associados a essa conduta Verificouse que há portanto poucos casos em que há punição exclusivamente a partir desse artigo ou ele é suprimido por outros tipos penais ou é administrado em consonância com eles BRASIL 2015 Em um dos casos a Lei de Contravenções Penais foi utilizada em associação à Lei Maria da Penha BRASIL 2018 No caso o réu recorreu pela inconstitucionalidade da aplicação da Lei de 1941 que foi julgada improcedente Segundo o Acórdão a tipificação da mencionada contravenção necessita prova de elemento subjetivo resultante de perturbação da vítima por acinte ou motivo reprovável circunstância evidenciada no caso porque o acusado insistentemente perturbou a vítima procurandoa no trabalho bloqueando seu caminho fazendo declarações amorosas e entregando presentes que sempre foram recusados mesmo após boletim de ocorrência e medida protetiva No geral as sentenças analisadas foram uníssonas quanto à força da palavra da vítima BRASIL 2011b BRASIL 2012 CONSIDERAÇÕES FINAIS A leitura dos casos encontrados na jurisprudência do Tribunal de Justiça indica que há uma série de formas de apresentar casos em que haja a ocorrência de stalking e casos em que a perseguição se mesclou a outros tipos de violência Na ausência de lei específica os advogados e os juízes se dirigem à Lei de Contravenções Penais que superada em muitos sentidos por avanços que possibilitaram a Lei Maria da Penha fica evidentemente aquém de garantir proporcionalmente reparação de danos Nos casos em que a perseguição foi considerada como Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 73 um elemento foram adicionadas outras normas que não servem imediatamente às particularidades do stalking Além disso quando é verificada a sobreveniência de violência física o stalking por vezes é ignorado Através da análise foi possível verificar que a grande maioria dos casos traz outros tipos de violência como as mencionadas acima raramente os processos pelo menos os que chegam à segunda instância judicial tratam somente de stalking É possível pensar em algumas hipóteses É muito provável que esse tipo de demanda não seja judicializado em razão da pouca credibilidade de uma denúncia contra homens que insistam obsessivamente tendo em vista que essa postura é muitas vezes considerada socialmente normal ou ainda que uma mulher que diz não se fez de difícil ou não soube dizer não Nesse sentido até mesmo a denúncia na delegacia pode repelir a vítima É possível também que as mulheres que atravessando os obstáculos dos costumes que muitas vezes chegam até os procedimentos das Delegacias de Polícia acabem em Audiências de Conciliação pouco conciliatórias Questões porém a serem trabalhadas em outro momento Parece que dificilmente o caso será judicializado até que culmine em violência física É preciso aparentemente que haja elementos como ameaças de morte lesões físicas estupros etc a fim de que venham finalmente à tona e possam seus perpetrantes correrem o risco de sofrer algum tipo de sanção No caso encontrado na pesquisa pela palavra stalking observase que há ainda de acordo com o voto vencido para o único processo encontrado uma resistência de considerar os possíveis e prováveis danos psicológicos como medo repulsa opressão vergonha causados pelo stalker Foi nesse sentido que foram escolhidos os critérios para analisar os processos é preciso ter uma dimensão sobre como é recebida a acusação de perseguição antes que se transforme em outros tipos de violência devido a sua própria nocividade pelo Judiciário bem como os seus números as suas minúcias procurar o elo entre o social e o judicial que criou um espaço vazio e uma proteção jurídica débil cuja extensão vai dos procedimentos à ausência de lei específica para mulheres que sofrem ou sofreram por conta disso Será muito pertinente e necessária uma legislação que tipifique o stalking REFERÊNCIAS BOEN Mariana T LOPES Fernanda L Vitimização por stalking um estudo sobre a prevalência em estudantes universitários Revista Estudos Feministas vol27 n 2 Florianópolis 2019 Disponível em Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 74 httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0104 026X2019000200218lngptnrmisotlngpt Acesso em 25 ago 2019 BRASIL CÓDIGO PENAL Brasília Senado Federal Coordenação de Edições Técnicas 2017 138 p Disponível em httpswww2senadolegbrbdsfbitstreamhandleid529748codigopenal1edpdfsequence 1 Acesso em 25 ago 2019 BRASIL LEI DAS CONTRAVENÇÕES PENAIS DecretoLei nº 3688 de 3 de outubro de 1941 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03decretoleidel3688htm Acesso em 25 ago 2019 BRASIL LEI MARIA DA PENHA Lei N11340 de 7 de Agosto de 2006 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Ato201920222019LeiL13827htm Acesso em 25 ago 2019 BRASIL TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA APELAÇÃO CRIMINAL 20110267556 Acórdão contravenção penal de perturbação da tranquilidade decretolei n 368841 art 65 alegada insuficiência probatória materialidade e autoria comprovadas palavras da vítima corroboradas pelo depoimentos de testemunhas e em consonância com a realidade dos autos absolvição inviável condenação mantida recurso desprovido Relator Salete Silva Sommariva Origem Timbó Orgão Julgador Segunda Câmara Criminal Julgado em 29112011 2011a Disponível em httpbuscatjscjusbrjurisprudenciaformularioancora Acesso em 25 ago 2019 BRASIL TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA APELAÇAO CRIMINAL 20110348760 Acórdão violência doméstica ameaça art 147 do código penal pleito absolutório materialidade e autoria devidamente comprovadas declarações firmes e coerentes da ofendida corroboradas pelos demais elementos de prova agente em estado emocional exaltado crime que se consuma no momento em que a ofensa alcança a vítima bastando seu potencial intimidador desclassificação para a contravenção penal de perturbação da tranquilidade art 65 da lei n 368841 delito de ameaça configurado inviabilidade recurso não provido Relator Moacyr de Moraes Lima Filho Origem Brusque Orgão Julgador Terceira Câmara Criminal Julgado em 23082011 2011b Disponível em httpbuscatjscjusbrjurisprudenciaformularioancora Acesso em 25 ago 2019 BRASIL TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA APELAÇÃO CRIMINAL 20120547378 Acórdão Crime contra a liberdade individual Ameaça art 147 cc art 61 ii f ambos do cp Almejada absolvição ao argumento de ausência de provas e não caracterização do delito Palavras da vítima que narram ter o denunciado a ameaçado de morte verbalmente e por meio eletrônico Versão confirmada por testemunhas Conjunto probatório apto a demonstrar a materialidade a autoria e a caracterização do crime Condenação mantida Relator Alexandre dIvanenko Origem Lages Orgão Julgador Terceira Câmara Criminal Julgado em 04092012 Disponível em httpbuscatjscjusbrjurisprudenciaformularioancora Acesso em 25 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 75 BRASIL TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA APELAÇÃO CRIMINAL 20130131910 Acórdão contravenção penal Delito de menor potencial ofensivo Trâmite no juízo comum Competência para o julgamento do recurso de apelação da câmara criminal Art 65 do decretolei n 368841 Pretensão absolutória Inviabilidade Materialidade e autoria devidamente comprovadas Prova oral que dá amparo às declarações da vítima Réu que após rompimento de namoro passou a perturbar dolosamente a tranquilidade da ofendida com perseguição em bailes palavras grosseiras caretas etc Condenação mantida Relator Jorge Schaefer Martins Origem Campo Erê Órgão Julgador Quarta Câmara Criminal Julgado em 15082013 Disponível em httpbuscatjscjusbrjurisprudenciaformularioancora Acesso em 25 ago 2019 BRASIL TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA APELAÇÃO CÍVEL 20130823422 Acórdão Responsabilidade civil e processual civil Ações ordinárias de indenização por dano moral Supostas ligações efetuadas pelo réu sem identificação de número assediando sexualmente a primeira autora Réu que teria ainda em uma das ligações afirmado que o esposo da autora segundo autor estaria mantendo relações extraconjugais Fatos que teriam causado abalo na relação conjugal dos autores bem como acarretado sensação de angústia e perseguição à primeira autora Sentença de procedência Irresignação Alegação de que não restaram comprovados os fatos constitutivos do direito dos autores Afirmação ademais de que não poderia o magistrado formar sua convicção a partir de presunções ou exclusivamente do depoimento pessoal da autora Insubsistência Inexistência de impedimento ao magistrado para formar sua convencimento com base em prova indiciária Inteligência do art 335 do cpc Depoimento pessoal ademais que também é fonte de prova Magistrado que segundo seu livre convencimento motivado pode utilizar o depoimento como fonte probatória inclusive em benefício da própria depoente Doutrina Existência nos autos de indícios suficientes para formar o convencimento acerca da veracidade das afirmações de fato delineadas na exordial Relator Marcus Tulio Sartorato Origem Araranguá Órgão julgador Terceira câmara de Direito Civil Julgado em 11022014 Disponível em httpbuscatjscjusbrjurisprudenciaformularioancora Acesso em 25 ago 2019 BRASIL TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA APELAÇÃO CRIMINAL 20140797027 Acórdão Ameaça art 147 caput do código penal por três vezes e contravenção de perturbação da tranquilidade art 65 do decretolei n 368841 em concurso material art 69 do código penal com incidência da lei n 1134006 Agente que profere reiteradas ameaças de morte contra excompanheira Palavras da vítima coerentes e corroboradas pelos demais elementos de prova Materialidade e autoria do delito de ameaça devidamente demonstradas Crime formal Consumação no momento em que a ofensa alcança a vítima bastando seu potencial intimidador Contravenção de perturbação da tranquilidade igualmente comprovada Agente que enviou numerosas e seguidas mensagens de texto ao telefone de sua excompanheira e rondou por algumas vezes seu local de trabalho alertando a de sua presença perturbandolhe o sossego Absolvição inviável Condenação que se impõe SENTENÇA MANTIDA RECURSO DESPROVIDO Relator Paulo Roberto Sartorato Origem Caçador Orgão Julgador Primeira Câmara Criminal Julgado em 17032015 Disponível em httpbuscatjscjusbrjurisprudenciaformularioancora Acesso em 25 ago 2019 BRASIL TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA APELAÇÃO CRIMINAL 00041178220118240041 Acórdão crimes de lesão corporal no âmbito da violência doméstica cp art 129 9º cc lei n 1134006 art 7º ii e de desobediência cp art 330 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 76 sentença de absolvição imprópria Recurso da defesa Lesão corporal conduta que independe de agressão física violência psicológica perseguição obsessiva e insistente stalking que resulta em danos à saúde psicológica e emocional da vítima consequências suficientemente demonstradas pela prova oral e documental exame pericial dispensável absolvição própria inviável Relator Getúlio Corrêa Origem Mafra Orgão Julgador Segunda Câmara Criminal Julgado em 26092017 Disponível em httpbuscatjscjusbrjurisprudenciaformularioancora Acesso em 25 ago 2019 FINCH Emily The criminalisation of stalking constructing the problem and evaluating the solution Great Britain Cavendish Publishing 2001 NICOL Brian Stalking London Reaktion Books 2006 PATHÉ Michele Surviving Stalking United Kingdom Cambridge University Press 2002 PINALS Debra Stalking Psychiatric Perspectives and Practical Approaches Group for the Advancement of Psychiatry Committee on Psychiatry and the Law Edited by Debra A Pinals New York Oxford Univeersity Press 2007 VICK Mariana O que é stalking E por que ele pode virar crime no Brasil 16 ago 2019 Disponível em httpswwwnexojornalcombrexpresso20190816OqueC3A9 stalkingEporqueelepodevirarcrimenoBrasil Acesso em 20 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 77 TRANSFEMINICÍDIOS E A APLICAÇÃO DA QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO Juliana Andrade da Silva1 José Elias Gabriel Neto2 RESUMO A publicação da Lei nº 13104 de 9 de março de 2015 incluiu o feminicídio ao rol de qualificadoras do artigo 121 do Código Penal Brasileiro ao adicionar ao inciso VI do 2º o homicídio cometido contra mulher por razões da condição do sexo feminino Por haver na legislação a previsão de aplicação da qualificadora somente quando houver condição de sexo feminino o homicídio de mulheres transgêneras mulheres que se identificam como pertencentes ao gênero feminino embora sejam do sexo masculino não seria alcançado pela qualificadora do feminicídio Nesse sentido por haver uma lacuna legislativa o estudo em tela analisa a possibilidade de aplicar a referida qualificadora quando forem praticados crimes desta natureza contra mulheres transgêneras Diante disso realizou se revisão bibliográfica apontandose as diferenças entre os conceitos de sexo e gênero assim como se examinou as estatísticas de assassinato da comunidade transgênera e informações acerca do homicídio de mulheres transgêneras denominado como transfeminicídio Após realizouse ainda revisão bibliográfica acerca da legislação do feminicídio e a da possibilidade da sua aplicação em face de mulheres transgêneras Por último concluiuse pela aplicabilidade da qualificadora em casos de transfeminicídios diante dos entendimentos colacionados que indicam a necessidade de proteger as mulheres transgêneras que assim como as mulheres cisgêneras também são vítimas de violência de gênero Palavraschave Qualificadora do feminicídio Mulher transgênera Transfeminicídio INTRODUÇÃO Em 9 de março de 2015 foi publicada a Lei 131042015 que incluiu ao rol de qualificadoras do artigo 121 do Código Penal o homicídio cometido contra a mulher por razão da condição de sexo feminino Referido normativo também trouxe o 2ºA que considera as razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve I violência doméstica e familiar II menosprezo ou discriminação à condição de mulher BRASIL 2015 A qualificadora do feminicídio ao impor uma sanção mais severa ao homicídio praticado contra a mulher por razão da condição de sexo feminino pretende inibir a violência de gênero No entanto embora a intenção da reprimenda seja a contenção da violência de 1 Bacharela em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Email juliana7andradegmailcom 2 Professor de Processo Penal e Execução Penal na IESPLANDF Mestre e Especialista em Direito Público pela Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul FMPRS Coautor do livro Medidas de Segurança Aspectos Jurídicos Médicos e Psicológicos Articulista de artigos publicados em periódicos nacionais e internacionais Lattes httplattescnpqbr6238282657336937 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 78 gênero o que se observa da redação da lei é de fato tão somente a proteção ao sexo feminino Isso porque a utilização do termo condição de sexo feminino delimita a aplicação do feminicídio ao sexo isto é às características biológicas de forma a obstar a aplicação da qualificadora às mulheres transgêneras3 pertencentes ao gênero feminino mas não ao sexo Nesse sentido o hiato legislativo desconsidera que o público transgênero é alvo constante de violência e assassinatos no Brasil sendo este o país onde ocorrem 46 das mortes de pessoas transgêneras do mundo TRANSGENDER EUROPE 2018 Apesar do número alarmante no Brasil não há qualquer legislação ou atendimento especializado visando à proteção deste grupo Dentro do contexto social e cultural as mulheres transgêneras transexuais e travestis sofrem com o mesmo papel reservado às mulheres cisgêneras4 Vale dizer são submetidas à violência de gênero violência doméstica e familiar e menosprezo ou discriminação à sua condição de mulher de modo que se torna pertinente a discussão acerca da qualificadora do feminicídio a sua abrangência e a possibilidade de sua aplicação no caso de vítimas transgêneras Pretendese portanto analisar a possibilidade de aplicação da qualificadora de feminicídio no caso de mulheres transgêneras por meio de pesquisa bibliográfica que foi limitada a publicações que tratam de gênero e feminicídio de modo a entender os limites da aplicação da nova qualificadora O presente trabalho apresenta primeiramente definições de gênero orientação sexual e sexo a construção da identidade e dos papéis de gênero e ainda aspectos da mulher transgênera e da transfobia diante das estatísticas levantadas por organizações não governamentais Após apresentase a redação do projeto e da lei que deu origem à qualificadora e a análise da possibilidade de aplicar a qualificadora às mulheres transgêneras como objetivo de responder o problema acima apresentado 1 SEXO GÊNERO E IDENTIDADE DE GÊNERO O sexo é definido biologicamente e referese às variações anatômicas fisiológicas genéticas e hormonais existentes em ambas as espécies macho e fêmea enquanto o gênero é produzido moldado enraizado e expressado por instituições como por exemplo a mídia a 3 A palavra transgênero ainda não pode ser encontrada nos dicionários da língua portuguesa contudo seu uso cada vez mais frequente abriu margens à derivação Assim admitemse adjetivos que se utilizam do radical do termo variando em gênero e grau eg pessoas transgêneras comunidade transgênera grupo transgênero homens transgêneros conforme a norma culta da língua 4 Cisgênero é característica atribuída àquela pessoa cujo gênero é compatível com o sexo biológico Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 79 religião e outros sistemas sociais através de diferentes reações valores expectativas papéis e responsabilidade atribuídos a indivíduos e grupos que compõem o feminino ou o masculino JOHNSON e REPTA 2012 O sistema binário de gênero organiza a vida social divide as pessoas em homens e mulheres e produz e reproduz a ideia de que o gênero reflete e espelha o sexo Assim criase a concepção que o gênero é determinado pelo sexo de forma que pessoas que nascem com vagina são mulheres sujeitas aos comportamentos definidos como femininos e aqueles nascidos com pênis são homens sujeitos aos comportamentos definidos como masculinos Assim esperase que a natureza construa a sexualidade e posicione os corpos de acordo com as supostas disposições naturais gerando as condições vaginafeminino e pênismasculino BENTO 2008 Este sistema por vezes tem seus limites rompidos ou pelo menos questionados por pessoas transgêneras isto é travestis transexuais e pessoas que não se identificam com o gênero atribuído ao seu sexo biológico não binárias que se recusam a produzir a masculinidade ou feminilidade condicionada ao seu órgão genital e em razão da sua expressão identitária quebram a causalidade entre sexogênerodesejo Portanto uma pessoa transgênera reivindica o reconhecimento do gênero geralmente atribuído ao sexo oposto do seu Essas experiências de trânsito entre os gêneros demonstram que não somos predestinados a cumprir os desejos de nossas estruturas corpóreas BENTO 2008 p 38 Não raramente as mulheres transgêneras são equivocadamente tratadas como homens homossexuais entretanto não pode se fazer confusão entre a identidade de gênero e a orientação sexual uma vez que esta última é a atração emocional afetiva e sexual para relações íntimas e sexuais TRANSGENDER EUROPE 2011 Ou seja é possível que uma pessoa nascida com a genitália masculina e que se identifique como mulher sinta atração por mulheres sendo neste caso uma mulher transgênera lésbica Portanto é necessário que todas as pessoas transgêneras sejam tratadas da forma com que se identificam Mulheres transgêneras adotam nome aparência e comportamentos femininos querem e precisam ser tratadas como quaisquer outras mulheres JESUS 2012 Ressaltase que nem todas as pessoas transgêneras sentem necessidade de adaptar seus corpos para que se assemelhem com o sexo geralmente atribuído ao gênero com o qual se identificam Esta necessidade de modificar o corpo muitas vezes é motivada por desconforto e vergonha da aparência que não está em congruência com o entendimento dicotômico de gênero estabelecido pela sociedade A propósito Koyama 2003 p 6 explica Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 80 Muitos de nós nos sentimos tão desconfortáveis e envergonhados de nossas aparências que optamos por permanecer no armário ou suportar eletrólises terapia hormonal e intervenções cirúrgicas para modificar nossos corpos em congruência com a nossa identidade como mulheres Estes procedimentos são caros dolorosos e demorados e podem provocar a perda permanente de fertilidade e outras sérias complicações como o aumento do risco de câncer Por que alguém optaria por tais práticas aparentemente desumanas Enquanto gostaríamos de acreditar que a necessidade de combinar nossos corpos à nossa identidade de gênero é natural ou essencial não podemos honestamente negligenciar os fatores sociais e políticos contribuintes das nossas decisões pessoais Um desses fatores é a coação da sociedade de papéis dicotômicos de gênero Porque nossas identidades são construídas em um meio social no qual nascemos poderia se argumentar que a descontinuidade entre a identidade de gênero e o sexo é problemática tão somente porque a sociedade está ativamente mantendo o sistema dicotômico de gênero tradução nossa FaustoSterling 2000 afirma que na maioria das discussões públicas e científicas o sexo e a natureza são considerados reais enquanto o gênero e a cultura são vistos como construídos entretanto este entendimento trata de falsas dicotomias Para exemplificar faz referência ao intersexo que é uma pessoa cuja anatomia não é facilmente identificável como masculina ou feminina e que geralmente passa por intervenções cirúrgicas para apropriar seus órgãos genitais ao contexto social em que inserida removendo eou criando partes de sua anatomia A partir da modificação dos órgãos genitais marcadores visíveis e exteriores do sexo o sexo é literalmente construído A adaptação dos corpos para melhor se encaixar nos papéis dicotômicos vagina femininopênismasculino traz a ideia de que o sexo assim como o gênero é também construído socialmente A realidade da experiência trans demonstra que o sexo físico é sentido pelas pessoas trans como mais artificial e mutável do que seu sentimento interno de quem são As pessoas transgêneras constroem suas próprias identidades de gênero baseado naquilo que lhes parece genuíno confortável e sincero enquanto vivem e se relacionam com outros dentro da coerção social e cultural KOYAMA 2003 2 TRANSFOBIA E TRANSFEMINICÍDIO Entre janeiro de 2008 e setembro de 2018 foram contabilizados 2982 homicídios de pessoas transgêneras em todo o mundo sendo que deste número total 1238 foram cometidos no Brasil consoante o relatório do projeto Transrespect versus Transphobia Worldwide iniciado pela ONG Transgender Europe TRANSGENDER EUROPE 2018 Os dados levantados pelo referido projeto além de revelar que o Brasil é o país com o maior número absoluto de homicídios de pessoas transgêneras também o coloca na terceira posição entre os Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 81 países com as maiores taxas de assassinato de transgêneros por milhão de habitantes 468 atrás apenas de Guiana 50 e Honduras 1077 TRANSGENDER EUROPE 2017 No Brasil uma pessoa transgênera tem 14 quatorze vezes mais chances de ser assassinada quando comparada a um homem cisgênero homossexual sendo que a chance da sua morte ser violenta é 9 nove vezes maior Estes números embora já espantosos tendem a ser ainda maiores uma vez que casos de homicídios de pessoas transgêneras são subnotificados e são frequentemente registrados de forma equivocada qualificando a vítima mulher transgênera como homossexual ou homem NOGUEIRA et al 2017 No ano de 2018 foram reportados 163 assassinatos de pessoas transgêneras no país segundo o Dossiê dos Assassinatos e da violência contra travestis e transexuais ocorridos no país Salientase que esses assassinatos são praticados com frequência de forma cruenta em relação aos assassinatos notificados em 2018 em 6 seis deles não se tem dados acerca do meio utilizado no cometimento do homicídio entretanto 83 dos casos apresentam requintes de crueldade com uso excessivo de violência esquartejamentos afogamentos e outras formas de violência sendo que em 28 assassinatos foi usada mais de uma ferramenta ou meio para que se consumasse a morte e em 11 onze casos em que utilizada a arma de fogo foi constatado número elevado de disparos BENEVIDES e NOGUEIRA 2019 O Dossiê aponta que em 42 dos casos reportados havia alguma ligação entre a vítima e o agressor sendo que o agressor e a vítima em 29 dos casos tinham relação de cliente e profissional do sexo em 10 dos casos se conheciam e em 3 dos casos o agressor era ex companheiro da vítima Temse também que 975 das vítimas são mulheres transgêneras BENEVIDES e NOGUEIRA 2019 Constatase que mulheres transgêneras estão particularmente vulneráveis à violência de gênero porque além de viverem em uma sociedade misógina como mulheres KOYAMA 2003 rompem publicamente com o destino do seu corpo generificado BENTO 2014 A feminilidade expressada pelas mulheres transgêneras e a descoberta de sua anatomia masculina quando em situação de violência sexual estimulam a agressividade do agressor que motivado pelo desvio do sistema binário eou por aversão ao corpo da vítima acaba por agir de forma brutal resultando muitas vezes na sua morte Segundo Bento 2014 p 1 Se o feminino representa aquilo que é desvalorizado socialmente quando este feminino é encarnado em corpos que nasceram com pênis há um transbordamento da consciência coletiva que é estruturada na crença de que a identidade de gênero é uma expressão do desejo dos cromossomas e dos hormônios O que este transbordamento significa Que não existe aparato Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 82 conceitual linguístico que justifica a existência das pessoas trans Mesmo entre os gays é notório que a violência mais cruenta é cometida contra aqueles que performatizam uma estilística corporal mais próxima ao feminino Portanto há algo de poluidor e contaminador no feminino com diversos graus de exclusão que precisam ser melhor explorados O assassinato é motivado pelo gênero e não pela sexualidade da vítima Conforme sabemos as práticas sexuais estão invisibilizadas ocorrem na intimidade na alcova O gênero contudo não existe sem o reconhecimento social Não basta eu dizer eu sou mulher é necessário que o outro reconheça este meu desejo de reconhecimento como legítimo O transfeminicídio seria a expressão mais potente e trágica do caráter político das identidades de gênero A pessoa é assassinada porque além de romper com os destinos naturais do seu corpogenerificado faz isso publicamente Verificase portanto que mulheres trans possuem uma identificação feminina e vivenciam os mesmos papéis tidos como pertencentes ao gênero feminino perante o meio social e assim para efeitos de violência de gênero elas também são alvos de ideias e práticas misóginas COSTA e MACHADO 2016 Nomear estes assassinatos implica reconhecêlos como expressão extrema de violência de gênero em consequência ampliar a noção desta violência expandindo seu conceito em modalidades e vítimas identificar as mulheres transgêneras como um grupo diferenciado permitindo reconhecêlas por suas identidades e expressões de gêneros e entender as particularidades dos crimes perpetrados contra elas RADI e SARDÁCHANDIRAMANI 2016 3 FEMICÍDIO VERSUS FEMINICÍDIO Nomear a morte de mulheres é um gesto político que a faz existir e revela o fenômeno escondido na neutralidade do verbete homicídio Tratase em verdade de uma forma de apreender ou tornar inteligível a matança de mulheres como uma violência de gênero DINIZ et al 2015 Nessas condições as expressões femicídio e feminicídio surgiram como alternativa à palavra homicídio tendo como objetivo político o reconhecimento e visibilidade da discriminação opressão desigualdade e violência sistemática contra a mulher ONU MULHERES 2014 Femicídio e feminicídio são termos que foram cunhados para designar o assassinato de mulheres cometidos em razão do gênero isto é por serem mulheres Estes dois termos entretanto se diferenciaram e ganharam diferentes significados ao longo do tempo Diana Russell escritora e ativista feminista foi a primeira pessoa a utilizar publicamente o termo femicídio quando prestou seu depoimento sobre estes crimes no Tribunal Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 83 Internacional de Crimes contra Mulheres na Bélgica em 1976 RUSSELL 1992 Nesta ocasião Russell 2012 afirmou que parte dos homicídios é de fato um femicídio Nós devemos reconhecer a política sexual de assassinato Da queima de bruxas no passado ao mais recente e propagado costume de infanticídio feminino em várias sociedades ao assassinato de mulher por honra nós percebemos que o femicídio acontece há muito tempo Mas uma vez que envolve somente mulheres não havia nome para isso antes do termo femicídio ser cunhado Tradução nossa Ainda que tenha sido a primeira a usar publicamente o termo Russell afirma que a primeira vez que se deparou com a palavra femicídio foi em 1974 quando um conhecido disse a ela que uma escritora americana estava preparando uma antologia sobre femicídio O livro nunca foi publicado e Russell nunca soube como a escritora definiu o termo mas ela afirma que a nova palavra ressoou poderosamente como referência ao assassinato de mulheres por homens por elas serem mulheres RUSSELL 2012 Posteriormente o termo foi definido no livro publicado por Russell e Radford em 1992 que já em seu prefácio expõe o femicídio como o assassinato misógino de mulheres por homens O termo feminicídio surge com a antropóloga Marcela Lagarde Y de Los Ríos quando faz a diferenciação entre femicídio e feminicídio Lagarde afirma que em castelhano femicídio é uma palavra homônima de homicídio e apenas significa homicídio de mulheres enquanto feminicídio seria o genocídio de mulheres que acontece quando as condições históricas geram práticas sociais que permitem atentados violentos contra a integridade a saúde as liberdades e a vida de meninas e mulheres LAGARDE 2008 Afirma ainda a antropóloga que todos os feminicídios têm em comum que as mulheres são usadas maltratadas e descartadas além de coincidirem em sua infinita crueldade de forma que se caracterizam como crimes de ódio contra as mulheres forjados na desigualdade estrutural entre mulheres e homens na dominação dos homens sobre as mulheres e na violência de gênero enquanto mecanismo de reprodução da opressão das mulheres LAGARDE 2008 A antropóloga mexicana deu ainda uma importante definição política ao feminicídio ao denunciar o Estado como parte estrutural do problema diante de seu caráter patriarcal por não dar garantias suficientes para as mulheres e nem criar condições de segurança que garantam sua simples sobrevivência nos mais diversos âmbitos de suas vidas além de não haver eficiência na realização das funções das autoridades LAGARDE 2008 Portanto Russell dá ao termo femicídio uma definição baseada apenas na violência de gênero ao passo que Lagarde surge com o termo feminicídio atribuindo a ele não apenas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 84 a misoginia mas também a inércia do Estado e a impunidade quanto à morte das mulheres Segato 2006 revela a importância estratégica da politização dos feminicídios que mostra a especificidade dos assassinatos de mulheres e os retira da classificação geral de homicídios apresentando a ideia de que existem crimes cujos sentidos plenos somente podem ser vislumbrados quando pensados no contexto de poder patriarcal Aponta que a reação de ódio se desata quando a mulher exerce autonomia sobre o uso do seu corpo desacatando regras de fidelidade e celibato ou quando a mulher ascende nas posições de autoridade ou de poder econômico ou político tradicionalmente ocupadas por homens desafiando este equilíbrio assimétrico Neste sentido Segato afirma que os crimes do patriarcado são claros crimes de poder cujas duplas funções são simultaneamente a retenção ou manutenção e a reprodução do poder Através da negligência do Estado da impunidade do domínio masculino da desigualdade de gênero e da culpabilização e vulnerabilidade da vítima criase a noção de que o assassinato destas mulheres tratase de fato de um femicídio sistêmico MONÁRREZ 2004 No Brasil o entendimento hodierno é de que há distinção entre os significados das palavras femicídio e feminicídio Com a Lei 131042015 diversos juristas em suas publicações acerca do tema têm distinguindo o significado dos termos afirmando que femicídio seria a morte de uma mulher enquanto o feminicídio seria a morte de uma mulher por razões de gênero Assim nem todo femicídio seria um feminicídio BIANCHINI e GOMES 2015 Temse por isso que não basta que a vítima seja mulher para que reste configurado o feminicídio havendo necessidade da presença da violência de gênero CAVALCANTE 2015 Rodrigues 2017 descreve o termo femicídio como uma versão morfologicamente deficiente de feminicídio sendo este último a terminologia preferível Afirma ainda que a palavra é derivada do étimo latino femina que deu origem às palavras feminilidade e feminismo ressaltando a morfologia torta de femicídio Apesar de não haver consenso doutrinário sobre o termo a ser utilizado foi a definição de Lagarde e o contexto das mortes de mulheres mexicanas que popularizou o conceito de feminicídio na América Latina5 5 A palavra homicídio vem do latim homicidium tendo sido composto por dois elementos homo e caedere O primeiro elemento homo significa homem que provém de húmus terra país ou do sânscrito bhuman enquanto o sufixo caedere significa matar O sufixo cídio é comumente utilizado na língua portuguesa para atribuir significado às diversas categorias de assassinatos parricídio matricídio fratricídio feticídio infanticídio etc Os termos femicídio e feminicídio carregam este mesmo sufixo cídio entretanto os seus prefixos são distintos Mesmo que os termos não tenham sido cunhados pensandose em sua etimologia femicídio carrega o sufixo femina em latim fêmea enquanto feminicídio é formado por femininus também do latim feminino Este Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 85 4 A QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO NO BRASIL Em 1984 com a ratificação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher6 o Brasil passou a incorporar em seu ordenamento jurídico a definição de discriminação contra a mulher e comprometeuse a adotar medidas necessárias inclusive de caráter legislativo para eliminála PANDJIARJIAN 2006 Além da definição de discriminação contra a mulher o Brasil adotou também a definição de violência contra a mulher ao incorporar ao seu ordenamento jurídico a Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher conhecida como Convenção de Belém do Pará em 1995 Assim foi incorporado à legislação nacional o conceito de violência contra a mulher como qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte dano ou sofrimento físico sexual ou psicológico à mulher tanto na esfera pública como na esfera privada CONVENÇÃO INTERAMERICANA PARA PREVENIR PUNIR E ERRADICAR A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER 1994 Ambas as ratificações representam um avanço para as mulheres brasileiras tendo em vista que foi em decorrência do monitoramento destas Convenções que o Brasil foi responsabilizado por negligência omissão e tolerância em relação à violência doméstica contra a mulher tendo a Convenção Interamericana de Direitos Humanos estabelecido recomendações de adoção de medidas legislativas e de políticas públicas mediante a Convenção de Belém do Pará o que originou a Lei 1134006 também conhecida por Lei Maria da Penha PADJIARJIAN 2006 Diante do cenário da tendência na América Latina em reconhecer a morte misógina das mulheres como um delito específico a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito de Violência Contra a Mulher propôs como uma continuidade da Lei Maria da Penha a criminalização do feminicídio através do Projeto de Lei do Senado nº 292 de 2013 Na justificativa da apresentação do projeto é ressaltada a importância de tipificar o entendimento é confirmado por Russell em seu discurso The origin and importance of the term femicide que afirma que femicídio vem de fêmea e entende que a etimologia da palavra feminicídio pressupõe a feminilidade O dicionário Houaiss define fêmea como ser humano do sexo feminino isto é genitália feminina Logo femicídio ao sugerir a palavra fêmea limita a utilização do termo aos sujeitos passivos de genitália feminina enquanto feminicídio derivado de feminino isto é gênero abrange todos os sujeitos passivos de gênero feminino Reconhecendose que a morte misógina de mulheres é motivada pelo seu papel de gênero e não por sua genitália no presente trabalho optase pela utilização do termo feminicídio uma vez que se pressupõe de seu prefixo a característica do feminino isto é do gênero sendo por isso mais abrangente do que simplesmente femicídio 6 A Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher é um tratado internacional de 1979 aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas descrito como uma declaração internacional de direitos das mulheres tendo sido ratificada por 188 Estados Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 86 feminicídio para expor a fratura de desigualdade de gênero persistente na nossa sociedade combater a impunidade e evitar que feminicídios sejam beneficiados por interpretações de crime passional de forma a também proteger a dignidade da vítima O projeto apresentado inicialmente pretendia incluir o feminicídio como causa da aumento de pena do artigo 121 do Código Penal e descrevia o delito como a forma extrema de violência de gênero que resulta na morta da mulher O projeto apresentava ainda as circunstâncias do feminicídio que eram a relação íntima ou familiar entre a vítima e o agressor e a violência sexual ou mutilação ou desfiguração da vítima antes ou após a sua morte BRASIL 2013 O parecer de autoria da Senadora Ana Rita que votou pela constitucionalidade juridicidade regimentalidade e aprovação do projeto da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito suprimiu da redação a expressão que resulta na morte da mulher para que fosse possível o enquadramento na forma tentada e inserido como circunstância o emprego de tortura ou qualquer meio cruel ou degradante caracterizando o feminicídio como a morte da mulher por razões de gênero além de colocar o feminicídio como qualificadora ao invés de causa de aumento de pena BRASIL 2013 Entretanto a redação do projeto limitou para o segundo turno de votações as circunstâncias do feminicídio à violência doméstica e familiar e ao menosprezo ou discriminação à condição de mulher por entender que a violência sexual e a mutilação ou desfiguração estariam sob a fórmula de menosprezo ou discriminação à condição de mulher além de eliminar a circunstância de meio cruel ou tortura pois já constava nos homicídios qualificados na forma do 2º inciso III do artigo 121 do Código Penal BRASIL 2014 Em dezembro de 2014 o projeto de Lei 292 de 2013 do Senado passou a tramitar na Câmara dos Deputados sob o nº 8305 de 2014 tendo sido aprovada a emenda nº 1 em 04 de março de 2015 para que o termo por razões de gênero fosse substituído por por razões da condição de sexo feminino apenas 5 dias antes da legislação ser publicada Feminicídio VI contra a mulher por razões da condição de sexo feminino 2º A Considerase que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve I violência doméstica e familiar II menosprezo ou discriminação à condição de mulher BRASIL 2015 Esta mudança não se trata de mera emenda de redação uma vez que visou restringir a aplicabilidade do feminicídio de forma a não abranger mulheres transexuais ao excluir a palavra gênero que é perigosa por subverter a ordem dita da natureza do binarismo sexual de machos e fêmeas CASTILHOS 2015 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 87 Com esta redação em 9 de março de 2015 foi publicada a Lei nº 1310415 que incluiu ao rol de qualificadoras do artigo 121 do Código Penal o homicídio cometido contra mulher por razão da condição de sexo feminino sendo considerado razão de sexo feminino o crime que envolve violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição da mulher conforme o texto legal define Além da qualificadora o legislador criou ainda majorantes feminicistas86 BITENCOURT 2015 que preveem o acréscimo de 13 até a metade se o crime for praticado durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto contra a pessoa menor de 14 anos maior de 60 anos ou com deficiência e na presença de descendente ou de ascendente da vítima Greco 2015 e Bitencourt 2015 observam que não basta que o sujeito passivo do homicídio seja mulher para seja caracterizada a qualificadora do feminicídio de forma que nem toda morte de mulher é necessariamente um feminicídio sendo necessária a presença de violência doméstica e familiar ou menosprezo ou discriminação à condição de mulher Já Cunha critica a redação do 2ºA da qualificadora ao afirmar que o menosprezo ou discriminação da condição de mulher é pressuposto do feminicídio não havendo necessidade de indicação destas circunstâncias inerentes ao delito o que somente alimenta a confusão acerca os conceitos de feminicídio e do homicídio de vítima mulher não motivado pelo gênero CUNHA 2015 Acerca do segundo inciso do 2A Capez e Prado 2015 ressaltam que para buscar o real alcance da expressão violência doméstica e familiar contra a mulher é necessário se valer do conceito expresso no artigo 5º caput da Lei Maria da Penha ou seja configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte lesão sofrimento físico sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial 5 A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA QUALIFICADORA DO FEMINICÍDIO NO CASO DE TRANSFEMINICÍDIOS Ainda não há consenso entre os juristas se seria possível aplicar a qualificadora do feminicídio no caso de assassinato de mulheres transgêneras Mendes 2016 e Ela Wiecko V de Castilhos 2015 afirmam que a redação da qualificadora tem a intenção de proteger tão somente as mulheres biológicas uma vez que o legislador substituiu gênero por sexo pretendendo propositalmente excluir as mulheres transgêneras da proteção da lei Assim a manobra legislativa que substituiu a categoria gênero por sexo faz com que se entenda que a violência praticada contra as mulheres estaria ligada intrinsecamente aos cromossomos e à anatomia genital tradicionalmente entendida como feminina COSTA e Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 88 MACHADO 2016 de forma que o que se protege com a legislação se torna a genitália feminina ao invés da mulher em situação de vulnerabilidade em razão do gênero e misoginia Procurando estabelecer diferentes entendimentos acerca da aplicabilidade Barros 2015 estabeleceu três correntes diferentes que definiriam a mulher protegida pela qualificadora o critério psicológico considera mulher aquela que se identifica como tal o critério jurídico cível considera mulher aquela cujo documento consta como sexo o feminino independente de ter sido retificado ou não e o critério biológico considera mulher a fêmea nata isto é com genitália genética e hormônios femininos Greco 2015 entende que o critério que deveria ser utilizado é o jurídico cível pois seria o único que teria a segurança necessária exigida pelo direito Logo defende a aplicabilidade da qualificadora às mulheres cisgêneras e às mulheres transgêneras que obtiveram a retificação do registro civil para sexo feminino Por outro lado Mello 2015 entende que a qualificadora do feminicídio deveria ser aplicada de acordo o critério psicológico isto é de acordo com a identidade de gênero pois entende que a legislação não se refere a uma questão de sexo como categoria pertencente à biologia mas a uma questão de gênero Destacase que apesar do preocupante número de homicídios de pessoas transgêneras ocorridos no Brasil desde a publicação da lei que incluiu o feminicídio ao rol de qualificadoras do homicídio são poucos os casos em que os assassinatos de mulheres trans foram tratados como feminicídio Em junho de 2016 o Ministério Público do Estado de São Paulo foi pioneiro ao oferecer denúncia por feminicídio de mulher transgênera SÃO PAULO 2016 No caso concreto Michele mulher transgênera que não realizou a cirurgia de readequação sexual e tampouco retificou seu registro civil foi morta a facadas por seu companheiro com quem coabitava havia 10 anos BOMFIM 2016 Em sentença publicada em 28 de fevereiro de 2018 o juízo da 3ª Vara do Júri no Foro Central Criminal de São Paulo pronunciou o réu como incurso no artigo 121 2º incisos I e VI 2ºA inciso I e artigo 211 tendo entendido que a vítima estaria compreendida no conceito de mulher possibilitando assim a incidência da mencionada qualificadora SÃO PAULO 2018 A denúncia ter sido aceita pelo Poder Judiciário para o Promotor de Justiça atuante no feito foi um importante avanço uma vez que não houve questionamento jurídico quanto à inclusão da qualificadora Afirma o autor da denúncia que a perspectiva de gênero é fundamental uma vez que as discriminações por trás de muitos casos se baseiam em comportamentos sociais e não em características biológicas e portanto atingem as mulheres trans Segundo ele esta perspectiva é reforçada pela aplicabilidade da Lei Maria da Penha uma Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 89 vez que a qualificadora do feminicídio prevista no artigo 121 2º inciso VI 2ºA inciso I do Código Penal é norma penal que necessita de complementação pela legislação especifica qual seja a Lei nº 113402006 Lei Maria da Penha pois o conceito de violência doméstica nela está previsto Assim entendese por violência doméstica qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte lesão sofrimento físico sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial ocorrida dentro do ambiente doméstico familiar ou de sua intimidade podendo ser violência física psicológica sexual patrimonial moral e tantas outras Portanto não há que se questionar o caráter de violência doméstica empregada pelo denunciado à vítima visto que eram companheiros e coabitavam há 10 anos SÃO PAULO 2016 Até o momento de conclusão do presente trabalho o referido processo encontravase com o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo para julgamento do Recurso em Sentido Estrito interposto pela defesa do réu Temse notícia de apenas um julgamento de segunda instância acerca da aplicação da qualificadora do feminicídio em um caso em que a vítima é uma mulher transgênera No julgamento suprarreferido a 3ª Turma Criminal do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios decidiu à unanimidade pelo desprovimento dos recursos em sentido estrito interpostos pelos réus acusados pela tentativa de homicídio da vítima Jéssica mulher trans que dentro de uma lanchonete em Taguatinga no Distrito Federal foi atingida com socos e pontapés aos xingamentos de viado e travesti enquanto alguns dos agressores diziam que a mataria A defesa postulava a exclusão da qualificadora relativa ao feminicídio tendo argumentado estar ausente a circunstância objetiva de a vítima ser mulher uma vez que a ofendida havia sido designada homem ao nascer Entretanto a 3ª Turma manteve a qualificadora do feminicídio afirmando que no caso os elementos probatórios indicavam que o homicídio tentado teria sido praticado por repúdio ao gênero da ofendida que apesar de ostentar o sexo biológico masculino adota a identidade de gênero feminina com a correspondente alteração do registro civil sendo portanto uma mulher transgênero DISTRITO FEDERAL 2019 Além dos casos de Michele e Jéssica temse notícia de pelo menos mais dois casos em que homicídios de mulheres trans foram tratados como feminicídio tendo ambos os delitos ocorrido em São Paulo ISTOÉ 2019 e MARTINS 2019 Segato 2012 no texto Femigenocidio y feminicidio una propuesta de tipificación ao reforçar a necessidade de reconhecer o femigenocídio aponta a circunstância em que este ocorre um grupo restrito de perpetradores vitimam mulheres e homens feminizados em perseguição depredadora a corpos feminizados Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 90 O assassinato misógino nas mulheres cisgêneras decorre da vulnerabilidade do gênero feminino diante das relações de poder do patriarcado enquanto o assassinato de mulheres transgêneras ocorre em rejeição à feminilidade exteriorizada em corpos natos masculinos O que torna estes corpos natos masculinos vulneráveis aos olhos do agressor é justamente a expressão de sua identidade e adoção de comportamentos atribuídos ao gênero feminino de forma que resta claro que o feminicídio cometido tanto contra a mulher cisgênera quando contra a mulher transgênera é na realidade a forma mais violenta contra aquilo que é feminino Até mesmo nos casos de agressões cometidas contra homens cisgêneros homossexuais observase que a vítima se torna alvo do agressor quando torna visível características e comportamentos atribuídos ao gênero feminino BENTO 2014 De forma brilhante Bento 2017 ainda discorre sobre o tema Mas as mulheres trans e as travestis não têm vagina foi um dos comentários que li na reportagem sobre o caso Dandara publicado no New York Times Então posso deduzir que ter uma vagina assegura as mulheres não trans a certeza de que não sofrerão violência Mas elas também são brutalmente assassinadas Tanto as mulheres trans as transexuais as travestis e outras corporalidades sofrem vários níveis de violência de gênero Por quê Há um ponto de unidade fundamental entre as múltiplas feminilidades e incluo neste campo as bichas os femininos estão condenados a padecer no paraíso Está na bíblia no livro Gênesis Parir sofrer as dores do parto é uma metáfora que unifica as múltiplas corporalidades e performances femininas Talvez não tenhamos nos dado conta que há uma sinistra coincidência países onde há elevado índice de feminicídio lá também as mulheres trans e as travestis são corriqueiramente assassinados É o caso do Brasil e do México Há portanto pontos de unidade entre o feminicídio e o transfeminicídio que revelam nos empurram para uma conclusão óbvia A motivação dos assassinatos das mulheres trans e das travestis é por performatizarem o gênero feminino Ainda podese dizer que é possível relativizar a redação da qualificadora uma vez que o conceito de sexo sob a luz do entendimento desenvolvido por transfeministas pode ser construído socialmente assim como o gênero Desta forma a qualificadora não seria aplicável somente às mulheres natas com genitália feminina mas também a todas que construíram socialmente seu sexo eou seu gênero feminino Assim seria possível a aplicação da qualificadora em face de mulheres transgêneras mesmo que a redação tenha pretendido afastá las do seu respaldo A exclusão proposital das mulheres transgêneras do alcance da qualificadora não condiz com a atual conjuntura de violência de gênero no Brasil tampouco com a necessidade concreta de se amparar legalmente todas as mulheres COSTA e MACHADO 2016 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 91 CONSIDERAÇÕES FINAIS A qualificadora do feminicídio foi claramente redigida para que não alcançasse as mulheres transgêneras ao impor a limitação do seu alcance ao sexo feminino deixando de observar o atual quadro de violência sofrida por pessoas transgêneras As mulheres transgêneras representam 975 das vítimas de assassinatos da comunidade trans no Brasil BENEVIDES e NOGUEIRA 2019 Uma porcentagem significativa destes assassinatos é cometida por companheiros e ex companheiros familiares conhecidos e clientes o que configuraria as categorias de feminicídio íntimo familiar e por ocupação estigmatizada fatos que fundamentam a afirmação de que suas mortes não são motivadas tão somente por transfobia mas também porque como mulheres transgêneras são vulneráveis à violência de gênero por viver em uma sociedade misógina KOYAMA 2003 O que se nota é que quanto mais exteriorizada a feminilidade deste corpo abjeto maior a chance deste corpo se tornar alvo de violência pois por ser feminino em uma sociedade misógina este corpo é vulnerável Assim o agressor de mulheres transgêneras e muitas vezes de homens homossexuais cuja estilística corporal se aproxima do feminino se vale da vulnerabilidade do feminino Não há portanto como se reduzir as vítimas do feminicídio somente às mulheres cisgêneras visto que o feminicídio não está intrinsecamente ligado ao sexo feminino Isto é não é a genitália ou os demais aspectos biológicos que motivam o feminicida ou que fazem da mulher mais vulnerável O feminicídio é motivado pela posição de vulnerabilidade que a mulher ocupa na sociedade o que independe do órgão genital que sua anatomia apresenta Assim o bem jurídico penalmente tutelado deve ser a vida da mulher vulnerável em decorrência do seu gênero em uma estrutura social de poder patriarcal Portanto concluise pela rejeição do critério biológico proposto por Barros porque deixaria de cingir as mulheres transgêneras que ocupam posição de vulnerabilidade e do critério jurídicocível uma vez que este ignora o contexto do feminicídio e para fins de aplicação da qualificadora considera o registro civil o que não necessariamente retrata a forma como a pessoa se comporta ou posiciona socialmente diante dos papéis de gênero uma vez que não são todas as pessoas transgêneras que têm seu sexo retificado em registro civil como no caso de Michele É possível a relativização da redação da legislação por ser também o sexo o resultado de uma construção social e porque é necessário olhar para as mortes das mulheres transgêneras sob a perspectiva de violência de gênero como é retratada na Lei Maria da Penha que protege as mulheres independentemente do sexo Entretanto ainda que assim fosse entendimento Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 92 jurisprudencial uniforme se faz necessária a retificação da qualificadora para que adotando o termo gênero no lugar de sexo abranja as mulheres que assim se identificam e que sofrem em razão de sua vulnerabilidade como mulher O quadro de violência contra a população transgênera no Brasil evidencia a necessidade de haver políticas públicas que alcancem esta já fragilizada parcela da sociedade REFERÊNCIAS BARROS Francisco Dirceu Feminicídio e neocolpovulvoplastia As implicações legais do conceito de mulher para os fins penais Publicado em 2015 Disponível em httpsfranciscodirceubarrosjusbrasilcombrartigos173139537feminicidioe neocolpovulvoplastiaasimplicacoeslegaisdoconceitodemulherparaosfinspenais Acesso em 9 set 2019 BENEVIDES Bruna G NOGUEIRA Sayonara Naider Bonfim Dossiê dos assassinatos e violência contra travestis e transexuais no Brasil em 2018 Associação Nacional de Travestis e Transexuais do Brasil Instituto Brasileiro Trans de Educação Brasil 2019 Disponível em httpsantrabrasilfileswordpresscom201901dossiedosassassinatose violenciacontrapessoastransem2018pdf Acesso em 20 ago 2019 BENTO Berenice Brasil país do transfeminicídio Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos Rio de Janeiro 2014 BENTO Berenice Do luto à luta pelo fim do transfeminicídio Publicado em 20 de março de 2017 Disponível em httpoutraspalavrasnetbrasildolutoalutapelofimdo transfeminicidio Acesso em 9 set 2019 BENTO Berenice O que é transexualidade 2 ed São Paulo Brasiliense 2008 BIANCHINI Alice GOMES Luiz Flávio Feminicídio entenda as questões controvertidas da Lei 131042015 Publicado em 2015 Disponível em httpsprofessorlfgjusbrasilcombrartigos173139525feminicidioentendaasquestoes controvertidasdalei131042015 Acesso em 9 set 2019 BITENCOURT Cezar Roberto Código Penal comentado 9 Ed São Paulo Saraiva 2015 BOMFIM Daiane Justiça aceita primeira denúncia de feminicídio de mulher trans em São Paulo Agência AIDS 29112016 Novembro de 2016 Disponível em httpwwwcompromissoeatitudeorgbrjusticaaceitaprimeiradenunciadefeminicidiode mulhertransemsaopaulo Acesso em 9 set 2019 BRASIL Câmara dos Deputados Apresentação da Emenda de Redação n 12015 pela Deputada Jô Moraes Brasília DF Câmara dos Deputados 2015 Disponível em httpwwwcamaragovbrproposicoesWebfichadetramitacaoidProposicao961517 Acesso em 9 set 2019 BRASIL Convenção interamericana para prevenir punir e erradicar a violência contra a mulher Belém do Pará 1994 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 93 BRASIL Comissão de Constituição Justiça e Cidadania Relatório Legislativo da Senadora Ana Rita favorável ao Projeto com a Emenda Substitutiva Brasília DF Comissão de Constituição Justiça e Cidadania 2013 Disponível em httpwww25senadolegbrwebatividademateriasmateria113728 Acesso em 9 set 2019 BRASIL Lei nº 13104 de 09 de março de 2015 Brasília DF Presidência da República 2015 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Ato201520182015leiL13104htm Acesso em 9 set 2019 BRASIL Senado Federal Projeto de Lei do Senado nº 292 de 2013 Comissão Parlamentar Mista de Inquérito de Violência Contra a Mulher no Brasil Brasília DF Senado Federal 2013 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do CP Publicado em 11 de março de 2015 Disponível em httpwwwdizerodireitocombr201503comentariosao tipopenaldohtml Acesso em 9 set 2019 CLOTET Joaquim GOLDIM José Roberto Organizadores Seleção de Sexo e Bioética EDIPUCRS Porto Alegre 2004 COSTA Marília Ferruzzi MACHADO Isadora Vier Direito penal para todas Considerações sobre a aplicabilidade da Lei do feminicídio em favor de mulheres transgênero IV Simpósio Gênero e Políticas Universidade Estadual de Londrina 08 a 10 de junho de 2016 CUNHA Rogério Sanches Lei do feminicídio breves comentários Publicado em 2015 Disponível em httpsrogeriosanches2jusbrasilcombrartigos172946388leido feminicidiobreves comentarios Acesso em 9 set 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 94 DINIZ Debora COSTA Bruna Santos GUMIERI Sinara Nomear feminicídio conhecer simbolizar e punir Revista Brasileira de Ciências Criminais vol 114201 p 225239 maio jun2015 DISTRITO FEDERAL Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios 3ª Turma Criminal Recurso em Sentido Estrito 20180710019530RSE Processo nº 0001842 9520188070007 Direito penal e processual penal Recurso em Sentido estrito Pronúncia Feminicídio tentadoVítima mulher transgênero Menosprezo ou discriminação à condição de mulher Materialidade e indícios de autoria presentes Pedido de desclassificação Improcedente Teses a serem apreciadas pelos jurados Princípio in dubio pro societate Exclusão da Qualificadora Improcedente Recursos conhecidos e desprovidos Relator Desembargador Waldir Leôncio Lopes Júnior 04 de julho de 2019 FAUSTOSTERLING Anne Dualismos em duelo In FAUSTOSTERLING Anne Sexing the Body Gender Politics and the Construction of Sexuality Nova Iorque Basic Books 2000 capítulo 1 GRECO Rogério Feminicídio Comentários sobre a Lei nº 13104 de 9 de março de 2015 Publicado em 2015 Disponível em httprogeriogrecojusbrasilcombrartigos173950062feminicidiocomentariossobrealei n 13104de9demarcode2015 Acesso em 9 set 2019 ISTO É Da redação Morte de trans a pauladas é tratada como feminicídio pela Justiça Publicada em 14 de maio de 2019 Disponível em httpsistoecombrmortedemulher transapauladasetratadacomofeminicidiopelajustica Acesso em 10 st 2019 JESUS Jaqueline Gomes de Orientações sobre identidade de gênero conceitos e termos Brasília 2012 JOHNSON Joy L REPTA Robin Sex and Gender Beyond the Binaries In OLIFFE John L GREAVES Lorraine Designing and conducting gender sex and health research Sage Publications United States of America 2012 KOYAMA Emi The transfeminist manifesto Catching A Wave Reclaiming Feminism for the TwentyFirst Century Northeastern University Press 2003 LAGARDE María Marcela Antrología feminismo y política violencia feminicida y derechos humanos de las mujeres In BULLEN Margaret MINTEGUI Carmen Diez Retos Teóricos y nuevas prácticas Ankulegi España 2008 P 209239 MARTINS Elisa SP registra morte de trans como feminicídio pela primeira vez mas visibilidade do crime ainda é desabado Publicado em 31 de maio de 2019 Disponível em httpsogloboglobocomsociedadespregistramortedetranscomofeminicidiopela primeiravezmasvisibilidadedocrimeaindadesafio23709616 Acesso em 10 set 2019 MELLO Adriana Ramos de Breves comentários à Lei 131042015 Revista dos Tribunais vol 9582015 Ago2015 p 273290 MENDES Soraia da Rosa Feminicídio aula 2 Soraia Mendes Asa Connect 2016 29 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 95 minutos Disponível em httpswwwyoutubecomwatchvF9e0XdmN7o0 Acesso em 9 set 2019 MONÁRREZ Julia Elementos de análisis Del feminicidio sexual sistêmico em Ciudad Juárez para su viabilidad jurídica Seminario Internacional Feminicidio Derecho y Justicia México 2004 NOGUEIRA Sayonara Naider Bonfim AQUINO Tathiane Araújo CABRAL Euclides Afonso Dossiê a geografia dos corpos das pessoas trans Rede Trans Brasil Rio de Janeiro 2017 ONU MULHERES Modelo de protocolo latinoamericano de investigação das mortes violentas de mulheres por razões de gênero femicídiofeminicídio Brasil 2014 PANDJIARJIAN Valéria Balanço de 25 anos da legislação sobre a violência contra as mulheres no Brasil In DINIZ Carmen Simone G SILVEIRA Lenira P da MIRIM Liz Andréa L Org Vinte e cinco anos de respostas brasileiras em violência contra a mulher 19802005 Alcances e limites São Paulo Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde 2006 p 78139 RADI Blas SARDÁCHANDIRAMANI Alejandra Travesticidiotransfemicidio Coordenadas para pensar los crímenes de travestis y mujeres trans en Argentina Boletín del Observatorio de Género 2016 Disponível em httpswwwaacademicaorgblasradi14 Acesso em 9 set 2019 RODRIGUES Sérgio Feminicídio ou femicídio que palavra é essa Publicado em 11 de fevereiro de 2017 Disponível em httpvejaabrilcombrblogsobrepalavrasfeminicidio oufemicidioquepalavraeessa Acesso em 9 set 2019 RUSSELL D E H Defining femicide Speech given at the UN Symposium of Femicide A Global Issue that Demands Action Vienna Austria November 2012 Disponível em 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SOUZA Sarah Oliveira de A atuação da ONU Mulheres nos casos de feminicídios Anais do III Seminário de RI Caruaru 2016 Disponível em httprepositorioascesedubrbitstream1234567892051SOUZA20A20atuaC3A7 C3A3o20da20ONU20Mulheres20nos20casos20de20feminicC3ADdios pdf Acesso em 9 set 2019 TRANSGENDER EUROPE Direitos Humanos e Identidade de Gênero Relatório Temático de Thomas Hammarberg Comissário de Direitos Humanos Transrespect versus Transphobia TVT série de publicações vol 5 dez 2011 TRANSGENDER EUROPE Transrespect versus transphobia worldwide new TvT TMM Update Trans Day of Remembrance 2018 Disponível em httpstransrespectorgwp contentuploads201811TvTTMMTDoR2018TablesENpdf Acesso em 20 ago 2019 TRANSGENDER EUROPE Transrespect versus transphobia worldwide new TvT 30th March 2017 Trans Day of Visibility Press Release Disponível em httptransrespectorgentdov2017tmmupdate Acesso em 9 set 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 97 EFETIVIDADE DA LEI MARIA DA PENHA NA DEFESA DOS DIREITOS DAS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA Janice Merigo1 Karine Kerkhoff 2 Maira Gabriela Anschau 3 Clarete Trzcinski4 RESUMO A Lei Maria da Penha foi instituída em 2006 com intuito de proteger e amparar as mulheres da violência doméstica e familiar buscando ações e mecanismos que visam coibir a violência de gênero Este estudo tem por objetivo analisar a efetividade da Lei Maria da Penha na defesa da cidadania e dos direitos das mulheres Pesquisa de cunho qualitativo que teve como técnica a entrevista semiestruturada aplicada a quatro mulheres vítimas de violência abrigadas na Casa Abrigo da Mulher e questionário enviado para duas Assistentes Sociais da Delegacia de Proteção à Criança Adolescente Mulher e Idoso DMCAMI Os resultados mostram que os tipos de violência sofrida pelas mulheres abrigadas foram Violência Psicológica Física e Sexual O principal agressor e abusador sexual foram seus companheiros Os principais motivos das agressões foram o ciúme negligência no cumprimento das tarefas domésticas e a utilização do álcool e drogas As informações coletadas demonstraram que as mulheres não compreendem a Lei Maria da Penha e suas medidas protetivas As profissionais da DPCAMI apresentaram como maior demanda a violência em suas mais diversas manifestações A atuação profissional com as vítimas se dá através de orientação acolhimento encaminhamento e empoderando das mulheres Concluise que se faz necessário o fortalecimento da rede de atendimento para que mulheres vítimas de violência encontrem amparo e possam enfrentar a situação de violência Palavraschave Violência contra a Mulher Lei Maria da Penha Delegacias especiais Casa abrigo para mulheres INTRODUÇÃO Este estudo tem por objetivo analisar a efetividade da Lei Maria da Penha na defesa da cidadania e dos direitos das mulheres Pois a violência doméstica e familiar na particularidade da violência contra a mulher é um dos mais graves problemas a serem enfrentados pela sociedade contemporânea que ocorre diariamente no Brasil e em outros países Velhos padrões de submissão vêm se consolidando através das práticas culturais que acabaram por definir papéis sociais a homens e mulheres propiciando a força como elemento 1 Assessora em Políticas Públicas Fecam Mestre em Serviço Social PUCRS 2004 2 Graduada em Serviço Social Unochapecó 2018 3 Graduada em Serviço Social Unochapecó 2018 4 Docente do Programa de Mestrado em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais Unochapecó Doutora em Engenharia de Produção UFRGS 2014 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 98 constitutivo de poder e de autoridade cujos detentores eram e continuam sendo os homens Esse modelo de força se firmou instituindo a dominação como atributo dos homens e a submissão imposta às mulheres A relação entre os sexos estabelecida através da oposição homemmulher dominadordominada hierarquizou posições e funções no mundo social sexualizando espaços e atividades garantindo aos homens posição de poder consagrada pelos espaços que ele passou a ocupar na vida pública e para as mulheres o espaço privado a casa Em relação aos princípios sexualizantes associavamse os sentimentos e as honras aos homens a bravura a força a provisão da família a razão Ás mulheres a decência a fidelidade a obediência a submissão a dona de casa a mãe de família Portanto podemos compreender que ao longo dos séculos a violência em todas as suas formas de expressão esteve muito presente no cotidiano feminino impondose como prática institucionalizada e historicamente determinada de dominação masculina Souza 2009 A violência em seu significado mais frequente Quer dizer uso da força física psicológica ou intelectual para obrigar outra pessoa a fazer algo que não está com vontade é constranger é tolher a liberdade é incomodar é impedir a outra pessoa de manifestar seu desejo e sua vontade sob pena de viver gravemente ameaçada ou até mesmo ser espancada lesionada ou morta É um meio de coagir de submeter outrem ao seu domínio é uma violação dos direitos essenciais do ser humano TELES MELO 2002 p 15 Em face do grande número de violência contra a mulher em 2006 foi sancionada a a Lei n 113402006 conhecida como Lei Maria da Penha que criou mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra as mulheres sendo esta uma perspectiva de mudança da realidade No entanto mesmo com o advento da Lei Maria da Penha inúmeros ainda são os casos de violência praticados contra as mulheres no âmbito doméstico e familiar No Brasil de acordo com Pesquisa Datasenado em dois anos o número de mulheres que declararam terem sido vítimas de algum tipo de violência passou de 18 para 29 Desde 2005 este percentual se mantinha relativamente constante entre 15 e 19 Também houve crescimento no percentual de entrevistadas que disseram conhecer alguma mulher que já sofreu violência doméstica ou familiar Este índice saltou de 56 em 2015 para 71 em 2017 Datasenado 2017 Esses dados são alarmantes e mostram que mesmo com uma ampla legislação o índice de violência só aumenta Entendemos que discutir a problemática da violência é muito importante pois as mulheres vítimas de violência precisam estar preparadas para quebrar o silêncio e realizar a denúncia A denúncia é registrada a partir do registro do boletim de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 99 ocorrência em uma delegacia Nessa fase é importante que a vítima queira representar o caso Posterior é possível pedir medidas protetivas sendo que as mais comuns são proibição de aproximação de qualquer tipo de contato e de o agressor frequentar a residência e local de trabalho da vítima afastando o agressor do lar e suspensão de visita aos filhos Brasil 2006 Neste sentido o tema da violência contra a mulher é desafiador e precisa ser aprofundado Assim o objetivo do estudo ora apresentado é analisar a efetividade da Lei Maria da Penha na defesa da cidadania e dos direitos das mulheres vítimas de violência Para responder ao objetivo definiuse por realizar uma pesquisa de cunho qualitativo como técnica de coleta de dados a entrevista semiestrutrada e o questionário As entrevistas foram realizadas a quatro 04 mulheres abrigadas na Casa Abrigo da Mulher Vítima de Violência Doméstica Maria Maria de Chapecó gravadas e transcritas na íntegra posteriormente pelas pesquisadoras O questionário após contato pessoal com duas assistentes sociais da DPCAMI foi encaminhado via email para o seu preenchimento Cabe ressaltar que o questionário foi respondido em comum acordo entre duas profissionais e a devolutiva se deu de apenas um questionário por isso será utilizado nos resultados Profissionais A coleta de dados foi realizada após a Assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido TCLE com base na Resolução n5102016 do Conselho Nacional de Saúde A Casa Abrigo da Mulher Vítima de Violência Doméstica Maria Maria de Chapecó foi indicada pelas profissionais da DPCAMI como local de pesquisa por entenderem que seria mais fácil o contato com as mulheres lá abrigadas do que realizar a pesquisa na delegacia especial As casasabrigo de acordo com Senado Federal 2019 constituem locais seguros para o atendimento às mulheres em situação de risco de vida iminente em razão da violência doméstica O serviço ofertado possui caráter sigiloso e temporário onde as usuárias poderão permanecer por um período determinado após o qual deverão reunir condições necessárias para retomar o curso de suas vidas Para a análise das entrevistas optamos pela descrição análise e interpretação dos dados Nessa ótica pretendemos trazer nossas próprias implicações nas análises enquanto mulheres investigando outras mulheres Se conseguiremos não sabemos Porque essa será a primeira tentativa a partir da abordagem de Grossi 1992 o que ela quer dizer é que quando uma mulher analisa outra mulher a partir da sua subjetividade é possível repensar a produção do conhecimento para além do que pensar no ponto de vista da outra Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 100 1 POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER O Estado brasileiro após ratificar os documentos internacionais de proteção à mulher assumiu obrigações no plano internacional aonde se comprometeu a adotar medidas para garantir os direitos humanos das mulheres em seu contexto doméstico e familiar protegendo as de qualquer forma de negligência discriminação exploração violência crueldade e opressão Para que isso ocorra deve haver políticas de prevenção Um exemplo de política pública para as mulheres é o projeto que foi desenvolvido pelo governo federal que criou o chamado disque 180 aonde mulheres podem ligar para este número que fazem atendimentos específicos em cada unidade da Federação As atendentes são capacitadas para dar orientações e registrar as denúncias advindas Cunha Pinto 2007 As políticas públicas implantadas no combate à violência no Brasil implicam a coexistência de diferentes práticas sociais e diferentes atores em contextos institucionais variados As categorias profissionais que representam as instituições do Estado são policiais e delegadosas das Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher DEAMs e também de outras delegacias onde foi registrado a ocorrência profissionais que fazem parte de equipes técnicas de centros de atendimento para mulheres vítimas operadores de Direito representantes do Poder Judiciário etc A parte representativa da sociedade civil é composta por organizações feministas que foram personagens ativas no processo de elaboração e fiscalização destas políticas Moraes Ribeiro 2012 As práticas sociais e as condutas dos agentes que participam dessa política pública vêm sendo continuamente estudadas em especial as expectativas as ambiguidades e os caminhos percorridos pelas mulheres vítimas que decidem tornar pública a violência conjugal e doméstica MORAES RIBEIRO 2012 p 42 Conforme FINNEMORE 2009 apud MORAES RIBEIRO 2012 estudos contemporâneos sobre as políticas públicas em diferentes áreas e partes do mundo têm mostrado que as ideias e os valores estão tendo um papel relevante no âmbito à proteção das mulheres Atualmente as políticas não são mais concebidas somente a partir do Estado também podem ser fortalecidas através da participação de outros setores da sociedade por exemplo os movimentos sociais e as organizações nãogovernamentais ONGs Com a participação destes é possível realizar ações e programas considerados inovadores consequentemente aumentando a diversidade de novos atores envolvidos na produção das políticas públicas além de disseminar novas ideias e valores que adentram nas rotinas de sua implementação Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 101 No que tange as políticas públicas desenvolvidas pela Secretaria de Políticas para as Mulheres SPM Martins Cerqueira e Matos 2015 p 9 apontam que elas têm o objetivo de superar as desigualdades e combater todas as formas de preconceito e discriminação Assim a atuação destas políticas está definida em três linhas principais de ação sendo elas Políticas do Trabalho e da Autonomia Econômica das Mulheres Enfrentamento à Violência contra as Mulheres Programas e Ações nas áreas de Saúde Educação Cultura Participação Política Igualdade de Gênero e Diversidade Antes da criação da política sobre o enfrentamento à violência contra as mulheres a institucionalização da SPM encaminhava as mulheres especialmente para Delegacias Especiais de Atendimento a Mulher desenvolvida no ano de 1985 e encaminhava para Casas Abrigo Esses órgãos eram a porta de entrada e acolhimento das mulheres em situação de violência Foi a partir do ano de 2003 que a Secretaria de Políticas para as Mulheres passou a induzir políticas públicas de enfrentamento à violência criando normas e padrões de atendimento aperfeiçoamento da legislação incentivando à constituição de redes de serviços projetos educativos e culturais para prevenção à violência e ampliou o acesso das mulheres à justiça e serviços de segurança pública Martins Cerqueira e Matos 2015 Entretanto essas políticas públicas precisam ser monitoradas conforme apontam Martins Cerqueira e Matos 2015 p 89 Monitoramento das ações desenvolvidas nos estados e municípios brasileiros O acompanhamento das políticas e de sua efetividade requer um processo eficaz de comunicação contínua entre os entes federativos Além disso necessita de sistemas de informação capazes de gerar dados que contribuam para o gerenciamento dos serviços e a compreensão das dimensões da violência assim como possibilitem avaliar os esforços institucionais empreendidos Para que as políticas destinadas ao enfrentamento da violência doméstica e familiar sejam eficazes demanda a integração de várias instituições das quais citam o sistema de Justiça a assistência social a segurança pública as instituições de ensino e hospitalares Para a real efetivação dessas políticas necessita da articulação entre os diversos órgãos governamentais não governamentais e também da comunidade através da transversalidade de gênero por meio da intersetorialidade e da capilaridade de todos os serviços públicos que são destinados ao combate da violência às mulheres Martins Cerqueira e Matos 2015 No estado de Santa Catarina existe uma rede de atendimento que pode ser acionada por mulheres vítimas de violência doméstica e familiar funcionando 24 horas por dia sendo elas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 102 Central de Atendimento à Mulher Disque 180 Polícia Civil Disque 181 Polícia Militar Disque 190 SAMU Disque 192 e Bombeiros Disque 193 TJSC 2018 Cabe ressaltar que a partir da aprovação da Norma Operacional Básica do Sistema único de Assistência Social NOBSUAS em 2005 os municípios catarinenses passaram a ofertar serviços continuados ao atendimento das mulheres Os Centros de Referência de Assistência Social CRAS ofertam acompanhamento familiar quando os vínculos familiares estão fragilizados o que prevê a violação de direitos Conta ainda com o Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos SCFV o qual atua com grupos de crianças e adolescentes e de mulheres O serviço atua no fortalecimento e na autoestima empodera as mulheres a assumirem seu importante papel na sociedade Em resumo a proteção social básica que é executada nos Centro de Referência de Assistência Social atua na prevenção e proteção da violência contra as mulheres Cabe ressaltar que em Santa Catarina existem 364 CRAS implantandos Quando a proteção e prevenção não é possível existem os Centros de Referência Especializado de Assistência Social CREAS que atendem mulheres que foram vítimas de violência física sexual psicológica patrimonial entre outras Em Santa Catarina contamos com 100 CREAS Nos demais 195 municípios que não possuem o CREAS o fluxo deve funcionar da seguinte forma os casos de violência contra a mulher são encaminhados para a Secretaria de Assistência Social e a equipe técnica da secretaria realiza os atendimentos Quando se faz necessário o afastamento da mulher vítima de violência de casa elas são encaminhadas para os abrigos institucionais que acolhem mulheres e seus filhos 11 Implementação da Lei Maria da Penha Antes da Lei Maria da Penha existia os Juizados Especiais Criminais JECRIMs que era um dispositivo legal utilizado para proteger a mulher de violência Doméstica Os JECRIMs passaram a receber os casos de contravenção e aqueles considerados de menor potencial ofensivo tipificados como ameaça lesão corporal leve entre outros Dentre estes últimos um grande número era oriundo de conflitos e de violências que envolviam homens que agrediam as mulheres nas relações conjugais MORAES RIBEIRO 2012 p 40 A partir de então estudos e organizações feministas passaram a solicitar a incorporação de uma criminologia feminista CAMPOS 2003 na atuação destas instituições Para Moraes e Ribeiro 2012 p40 as críticas ao encaminhamento dos casos de violência contra a mulher Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 103 aos JECRIMs estavam pautadas na ideia de que na prática social incorporada às rotinas destes Juizados os crimes estavam sendo despenalizados As críticas realizadas pelo movimento feminista levaram à articulação de uma rede formada por organizações não governamentais feministas sendo elaborada uma nova proposta de lei objetivando encaminhar os casos de violência contra a mulher para a Justiça No ano de 2004 foi enviado um projeto à Secretaria Especial de Políticas para às Mulheres SPM propondo a alteração dos procedimentos instituídos pelos JECRIMs no tratamento dos crimes de violência conjugal Todas as manifestações e articulações ajudaram para a criação da Lei Maria da Penha que dispõe sobre a criação de Varas e Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher com autoridade para executar as medidas cabíveis em casos de violência conjugal Dessa forma foi retirada a atuação dos JECRIMs em casos de violência doméstica Moraes Ribeiro 2012 Dias 2007 aponta que a denominada Lei Maria da Penha tem uma história dolorosa afinal a farmacêutica Maria da Penha Maia Fernandes foi mais uma mulher vítima de violência doméstica em nosso país Seu marido professor universitário e economista M A H V tentou matála com uma espingarda o resultado da tentativa de homicídio fez com que a farmacêutica ficasse paraplégica Dias depois houve uma nova tentativa de homicídio Desta vez tentou eletrocutála através de uma descarga elétrica enquanto Maria tomava banho Diante do ocorrido Maria não se calou e denunciou as agressões sofridas As investigações iniciaram em junho de 1983 no município de Fortaleza Ceará contudo a denúncia só foi oferecida em setembro de 1984 No ano de 1991 o réu foi condenado a oito anos de prisão pelo tribunal do júri porém recorreu em liberdade e um ano depois foi anulado seu julgamento Frente a inércia da Justiça Maria da Penha escreveu um livro no ano de 1994 chamado Sobrevivi posso contar Após uniuse a um movimento de mulheres e juntas manifestaram suas indignações Em 1996 ocorreu um novo julgamento para M A H V aonde foi imposto a pena de dez anos e seis meses e mais uma vez pode recorrer em liberdade Somente em 2002 19 anos e 6 meses após a ocorrência dos fatos ele foi preso mas permaneceu por apenas dois anos Dias 2007 relata que a história de Maria da Penha teve uma repercussão tão grande que o Centro pela Justiça e o Direito Internacional CEJIL juntamente com o Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher CLADEM efetuaram denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos OEA A Comissão precisou solicitar quatro vezes informações ao governo brasileiro sendo que não obtiveram retorno Por conta do ocorrido em 2001 o Relatório da OEA condenou o Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 104 Brasil internacionalmente a pagar indenização no valor de 20 mil dólares para Maria da Penha e também responsabilizou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica Também recomendou a adoção de algumas medidas com o propósito de simplificar procedimentos judiciais penais reduzindo o tempo processual Dentre as medidas implantadas pela OEA 2001 para o enfrentamento da violência encontramse a capacitação e sensibilização de policiais e servidores da Justiça b simplificação dos procedimentos judiciais penais para promover celeridade c estabelecimentos de formas alternativas às judiciais rapidez e efetividade na solução de conflitos intrafamiliares d multiplicação de delegacias de mulheres e inclusão da temática nos planos pedagógicos OEA Relatório 54 2001 A Lei Maria da Penha LMP é uma das mais importantes conquistas legais do feminismo das mulheres e da sociedade brasileira pois representou um avanço na legislação de enfrentamento à violência doméstica e familiar no Brasil rompendo com a visão meramente punitivista Incorporou as perspectivas da prevenção assistência e contenção da violência além de criar medidas protetivas de urgência e juizados especializados para o julgamento dos crimes praticados com a violência doméstica e familiar Ela é direcionada a proteção de todas as mulheres indiferente de classe social raça etnia orientação sexual renda cultura nível educacional idade e religião buscando preservar sua saúde física e mental A mulher que tem medida protetiva ou seja que é protegida pela Lei Maria da Penha não pode ser entendida somente no viés biológica homem x mulher afinal a Lei combate a violência de gênero feminino x masculino no sentido do sexo socialmente construído TJSC 2018 De acordo com Moraes e Ribeiro 2012 desde os anos 1980 no Brasil os movimentos feministas protagonizaram mudanças significativas na luta contra a violência de gênero atingindo esferas governamentais legislações sociedade civil e as formas de representação de governos O apoio dos governos por esta movimentação civil gerou a criação de conselhos assessorias e coordenadorias de nível local e nacional Nessa ótica a Lei Maria da Penha é executada principalmente nas Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher DEAMs considerada ainda uma inovação institucional brasileira na área da violência repercutindo inclusive em outros países da América Latina Martins Cerqueira e Matos 2015 afirmam que no Brasil a primeira delegacia deste tipo foi criada no ano de 1985 na cidade de São Paulo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 105 As Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher DEAMs compõe a estrutura da Polícia Civil e são encarregadas de realizar ações de prevenção apuração investigação e enquadramento legal Nessas unidades é possível registrar o Boletim de Ocorrência BO e solicitar medidas protetivas de urgência nos casos de violência doméstica contra a mulher MARTINS CERQUEIRA MATOS 2015 p 19 No Brasil visando à relação complexa entre o Estado e as mulheres vítimas no momento em que ocorre o encaminhamento da violência conjugal na esfera policial estas delegacias são parte importante no processo chamado por Soares 1996 de vitimização afirmativa As DEAMs personalizaram seus atendimentos reduzindo assim o receio que muitas mulheres tinham de ir à polícia Com isso as mulheres conseguem se reconhecer como vítimas e constroem novos discursos e subjetividades fundamentados nessa experiência Para Pinheiro 2005 p 31 a existência das Delegacias por si só não consegue garantir o atendimento e o suporte necessário às mulheres que vivem situações de violência por parte de seus companheiros São necessários outros serviços programas e projetos como por exemplo casas de acolhimento ou abrigos para que as mulheres possam receber auxílio especializado e não sejam discriminadas além de serviços jurídicos onde elas possam ter acesso às informações sobre os seus direitos Portanto na compreensão de Pinheiro 2005 havendo outros serviços nesta mesma lógica das Delegacias contribuiria para que houvesse um atendimento mais eficiente e de maior qualidade às mulheres vítimas de violência doméstica Até hoje no Brasil as delegacias da mulher constituem a principal política pública para enfrentamento na conjuntura de violência contra mulheres 2 RESULTADO E DISCUSSÕES 21 Perfil das mulheres entrevistadas de violência e seus agressores Nos dados referente à pesquisa empírica indicam que a idade das mulheres pesquisadas variou entre 26 e 39 anos demonstrando que são adultas Três possuem ensino fundamental incompleto e uma superior completo Em relação ao estado civil três são solteiras e uma convivente todas possuem filhos em média 2 filhos cada uma Três são donas de casa e uma é agricultora A idade dos agressores variou entre 30 e 49 anos No que se refere à escolaridade dos agressores observase níveis escolares diversificados sendo um analfabeto um possui ensino fundamental incompleto um possui curso superior completo Uma das pesquisadas não sabia responder sobre a escolaridade do companheiro Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 106 22 Situações de violência Nos dados referente aos tipos de violência sofrida elas relataram que vivenciaram situações de violência psicológica física e sexual com diferentes combinações O maior índice foi a de violência psicológica 04 mulheres em segundo a física 03 mulheres e a violência sexual 01 mulher Percebemos que a violência sofrida pelas pesquisadas segue o ciclo da violência apresentada por Alves e Diniz 2005 inicialmente vêm à fase da tensão na qual ocorrem os insultos humilhações provocações ameaças que são perpetradas através da violência psicológica Na próxima fase geralmente acontece o episódio agudo de violência com as agressões físicas Este ciclo mostra que a violência contra a mulher acontece na maioria das vezes de forma combinada violência psicológica e física Completa Alves e Diniz 2005 o ciclo vai evoluindo com repetições de situações em momentos de tensão que se estabelecem entre a vítima e o agressor O conflito entre o casal se inicia no campo psicológico e às vezes material São discussões que resultam em ameaças e em alguns casos na destruição de objetos da casa É incomum que a mulher perceba a possibilidade da escalada da violência que pode ocorrer após esses eventos e acredita ter controle da situação Todavia a tensão do conflito pode aumentar e as ameaças dão lugar a empurrões tapas chutes socos podendo chegar ao cárcere privado ou a lesões corporais graves e em última instância no feminicídio Diante disso num primeiro momento a mulher vítima de violência doméstica e intrafamiliar enfrentam a violência psicológica Na literatura de Hirigoyen 2006 Levert 2011 Miller 1999 Montminy 2005 Pimentel 2011 as quais foram citadas por Machado e Grossi 2015 a violência psicológica faz parte das técnicas de controle e terrorismo instaurando prejuízos a pessoa que sofre violência Como é uma prática repetitiva e sutil ela estabelece um estado de confusão mental em que o agressor faz com que sua vontade prevaleça Por ser uma prática sutil parece que a violência psicológica não traz sérios danos a vítima por não deixar marcas visíveis Mas causa grande sofrimento a pessoa Em um estudo apresentado por Machado e Grossi 2015 em que analisam a violência psicológica a luz da Lei Maria da Penha é visualizado nos dados dos policiais que atendem em uma delegacia especial o sofrimento psicológico das mulheres que chegam é algo evidente mas que para elas mesmas é imperceptível na maior parte do tempo 565 A Violência Física de acordo com o artigo 7º inciso I da Lei Maria da Penha é qualquer conduta que ofenda a integridade ou a saúde corporal da mulher BRASIL Art 7 2006 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 107 Cunha 2012 descreve que a violência física é manifestada através do uso da força mediante socos tapas pontapés empurrões arremesso de objetos queimaduras dentre outros visando ofender a integridade ou a saúde corporal da mulher deixando ou não marcas aparentes Neste sentido quando se trata da integridade física da mulher considerase a violência comportamentos que irão prejudicar a saúde do seu corpo através de atitudes que possam causar resultados negativos A violência sexual faz parte da violência intrafamiliar mas pode ocorrer em outros espaços e em diferentes tipos de relacionamentos Ministério da Saúde 2001 No caso da entrevistada foi cometido por seu companheiro no seu espaço doméstico A violência sexual compreendida como sendo toda ação na qual uma pessoa em situação de poder obriga uma outra à realização de práticas sexuais contra a vontade por meio da força física da influência psicológica intimidação aliciamento sedução ou uso de armas ou drogas MINISTÉRIO DA SAÚDE 2001 p20 Também questionamos se as mulheres tinham entendimento sobre os motivos da violência sofrida e os principais apresentados por elas foram o ciúme a negligência no cumprimento das tarefas domésticas bem como a utilização do álcool e drogas por seus companheiros A fala da entrevistada Maria 03 mostra como se expressava o ciúme do companheiro Aí ele dizia que eu tinha outro que eu tava traindo ele que não sei o quê e que ele ia me matar tudo era motivo para ele dizer vou te matar se tu não fizer isso eu vou te matar Sabe Aquilo todo dia eu pensava meu Deus do céu mas minha vida é será que vai ser pra sempre assim aí resolvi tomar uma atitude Em estudo de MACHADO 1999 apud SOUZA 2003 o ciúme apareceu como desencadeador da violência pois é uma reação masculina de repreensão à mulher Nesse sentido os homens violentos na maioria das vezes têm necessidade de controlar todos os aspectos da vida da mulher seja os horários as amizades o dinheiro etc e o ciúme que muitas vezes não é dirigido a outros possíveis homens mas é em relação aos filhos a família ao trabalho aos amigos Muitas vezes o marido quer que a mulher não deseje nada além dele NUNES 1999 apud SOUZA 2003 A negligência no cumprimento das tarefas domésticas enquanto um dos motivos da violência foi apresentado pela Entrevistada 01 porque só ele faz tudo só ele trabalha faz tudo paga aluguel paga luz compra comida essas coisas ele faz tudo Eu nunca trabalhei aqui no Brasil porque aqui no Brasil eu não consegui nada e daí só ele faz tudo É só ele Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 108 que a mulher sou eu faz tudo ele tá cansado do trabalho só ele faz tudo compra comida paga aluguel paga luz ENTREVISTADA 01 Entendemos que a negligência é um tipo de violência complexa pois ela se manifesta de diversas formas Parece que na fala da entrevistada 1 ela acaba por se culpabilizar pelo fato de não trabalhar fora e pela sobrecarga do marido consequência de suas queixas faz sentirse negligente Entretanto nos parece violência psicológica e não negligência Para tanto buscamos a compreensão do que vem a ser negligência Para o Ministério da Saúde 2001 a negligência acontece em situações de abandono por falta de cuidados de atenção de proteção e de desinteresse Logo a fala da entrevistada não é negligência e sim violência Psicológica BERENICE 2002 apud SOUZA 2003 traz uma importante contribuição ao descrever a agressão do homem em relação à mulher quando ela não cumpre o seu papel de dona de casa educadora Os homens se sentem cobradores e elas devedoras o que acaba se tornando um espaço propício para a violência As mulheres têm consciência que agiram mal e se sentem merecedoras da agressão Então recebem a agressão como uma justa punição o que ajuda a aplacar sua culpa por não ter se comportado dentro do papel que deveria desempenhar A agressão vem redimir sua culpa É um raciocínio absolutamente equivocado e de absoluta e injustificável subordinação Não existem tarefas definidas As pessoas devem manter sua plena liberdade e a relação afetiva deve ser de absoluta cumplicidade de amizade sem cobranças Quem sabe eu tivesse a obrigação de estar em casa cuidando dos meus filhos Mas estou aqui e ninguém pode me cobrar por isso No entanto normalmente os 50 homens cobram e as mulheres se sentem devedora A causa da violência é essa uniformidade de pensamento entre os dois ele bate porque acha que tem direito de bater e ela apanha achando que merece apanhar A entrevista da Maria 1 remete para a questão da migração um casal Haitiano que mora na cidade a pouco mais de 1 ano Duarte e Oliveira 2012 contribuem quando afirmam que a violência doméstica sobre mulheres não deve ser analisada tendo em conta somente a categoria gênero nem a luta contra o patriarcado Não está em questão a menor relevância destes aspetos em última análise a mulher é vítima de violência por ser mulher mas apenas se contesta a sua exclusividade p 224 Para explicar essa análise as autoras apontam que as mulheres vítimas de violência experienciam simultaneamente diferentes formas de opressão e de controlo social uma vez que estão imersas em contextos sociais que se cruzam com diferentes sistemas de poder como a raça a etnia a classe social o gênero e a orientação sexual Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 109 A violência praticada contra as mulheres negras para Passos e Rosa 2016 se apresenta como uma relação de dominação de exploração e de opressão que se manifesta nas simetrias de classe e nas relações sociais e interpessoais O que permite identificar que as mulheres negras são vítimas de diversos tipos de violência que vão compondo um roteiro desigual de suas trajetórias nos aspectos de trabalho saúde lazer afetos uso do tempo educação na produção acadêmica entre outras Evidenciado como o terceiro motivo de violência o uso de álcool e drogas conforme relata a Entrevistada Maria 03 Era de tudo um pouco Um tempo um ano atrás ele usava droga e bebida e daí ele queria que fizesse com ele se refere ao sexo quando ele tivesse drogado que ele gostava e eu por tanto de parte que eu sofri isso também com o meu pai quando eu tinha sete 07 anos então eu ficava com aquele trauma e daí pedia pra ele não fazer daí como eu implorava e pedia chorando pra ele que não que eu não queria né quando ele tava assim drogado e bêbado aí ele dizia que era um prazer fazer aí que ele me agredia A Maria 3 foi vítima de violência desde criança sendo perpetrada também depois de adulta ao constituir sua família Para ela o uso de drogas e de bebidas foi a causadora da violência num primeiro momento pelo seu pai e depois pelo seu companheiro Silva 2009 argumenta que as mulheres que foram vítimas de violência durante a infância são mais susceptíveis a vivenciar agressões por parte de seus parceiros Na visão de MACHADO 1999 apud SOUZA 2003 Grossi 2001 o álcool por si só não é causador da violência mas potencializa a violência na medida em que atinge toda a família causando traumas separação podendo acarretar perturbações no desenvolvimento das crianças que crescem no meio das situações de violência MACHADO 1999 apud SOUZA 2003 Quando se trata de violência doméstica o risco se duplica pois o abuso do álcool pode gerar uma constante relação conflituosa potencializando a violência Dos problemas sociais ligados ao abuso do álcool as questões familiares são as que mais preocupam uma vez que atinge toda a família indistintamente causando separação traumas perturbações do desenvolvimento da criança e conflitos violentos MACHADO 1999 apud SOUZA 2003 Outro questionamento realizado foi em relação a Lei Maria da Penha se na visão delas elas sentiamse protegidas Percebemos que elas não conheciam a Lei O que cabe descrever é que dentre elas uma não possuía medida protetiva uma não se sentia segura após a aplicabilidade da medida uma sabia que tinha uma medida protetiva porque a profissional relatou depois sobre o assunto e uma relatou que se sentia totalmente segura Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 110 Cabe apontar que para as mulheres estarem na Casa Abrigo da Mulher Vítima de Violência Doméstica Maria Maria não se faz necessário terem medidas protetivas Elas são encaminhadas ao abrigo por diversos setores da rede municipal tais como Delegacia de Proteção à criança adolescente mulher e idoso Conselho Tutelar Polícia Civil e Militar Centro de Referência Especializado de Assistência Social e Centro de referência de Assistência Social 23 Demandas e desafios no atendimento a mulheres vítimas de violência Pretendemos aqui trazer análises referentes aos dados apresentados pelas assistentes sociais da DPCAMI onde o objetivo foi reconhecer demandas e desafios ao trabalho profissional no atendimento às mulheres em situação de violência Cabe aqui ressaltar que o questionário foi encaminhado para as duas assistentes sociais com prévio contato A devolutiva foi de um questionário respondido em comum acordo entre duas profissionais De acordo com o Dossiê das delegacias da Mulher elas existem em 79 das cidades brasileiras São 461delegacias especializadas e existem 76 mil mulheres que sofreram agressões ou ameaças por parte de parceiros ou exparceiros A Delegacia da Mulher representa a porta de entrada em uma rede de apoio para sair da situação de violência Revista AzMina 2019 De acordo com Senado Federal 2019 as delegacias especializadas são Unidades especializadas da Polícia Civil para atendimento às mulheres em situação de violência As atividades das DEAMs têm caráter preventivo e repressivo devendo realizar ações de prevenção apuração investigação e enquadramento legal as quais dever ser pautadas no respeito pelos direitos humanos e pelos princípios do Estado Democrático de Direito Com a promulgação da Lei Maria da Penha as DEAMs passam a desempenhar novas funções que incluem por exemplo a expedição de medidas protetivas de urgência ao juiz no prazo máximo de 48 horas As profissionais que atuam nas delegacias especiais são de diferentes áreas Para as assistentes sociais pesquisadas questionamos quais as demandas que chegam Violência em suas diversas manifestações PROFISSIONAIS Os instrumentos mais utilizados pelas profissionais da delegacia nos atendimentos social são orientações acolhimento encaminhamentos e empoderamento das mulheres que vivem em situação de violência Nossa atuação se dá através de orientação acolhimento encaminhamento e empoderamento das vítimas buscando encorajálas para que elas busquem alternativas de superarem saírem do ciclo de violência PROFISSIONAIS Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 111 Entendese que a orientação e o empoderamento das vítimas se faz necessário numa sociedade em que muitas mulheres desconhecem seus direitos Sobre a categoria empoderamento apresentado na resposta das profissionais A literatura apresenta diferentes interpretações e polêmicas nas abordagens Para isso apresentamos as contribuições do Fórum Econômico Mundial 2005 que definiu cinco dimensões para o empoderamento e oportunidade das mulheres que são 1 participação econômica a presença da mulher no mercado de trabalho em termos quantitativos é importante não só para reduzir os níveis desproporcionais de pobreza mas também como medida importante para aumentar a renda familiar e estimular o desenvolvimento econômico dos países 2 oportunidade econômica diz respeito à qualidade do envolvimento econômico das mulheres e extrapola a mera presença feminina em sua condição de trabalhadora 3 empoderamento político diz respeito não só à representação equitativa de mulheres em estruturas de tomada de decisão tanto formais quanto informais mas também ao seu direito à voz na formulação de políticas que afetam a sociedade na qual estão inseridas 4 avanço educacional entendido como o principal requisito para o empoderamento das mulheres em todas as esferas da sociedade pois sem educação de qualidade e conteúdo comparável à recebida por meninos e homens as mulheres não conseguem acesso a empregos bem pagos do setor formal nem avanços na carreira participação e representação no governo e influência política 5 saúde e bemestar são conceitos relacionados às diferenças substanciais entre mulheres e homens foi considerado aqui o acesso à nutrição adequada cuidados de saúde e facilidades reprodutivas e a questões de segurança indispensáveis à integridade pessoal O Instrumento do acolhimento implica em escuta qualificada Conforme Guerrero et al 2013 expressa as relações que se estabelecem entre usuário e profissionais Para Nichnig 2016 p 43 o acolhimento das mulheres tem a intenção de que elas busquem a justiça mesmo que sofram um constante descrédito na sociedade em geral fazendo com que seja estimulado o registro de ocorrência O encaminhamento é um recurso instrumental que manifesta o conhecimento da rede e do direcionamento da mulher vítima de violência para o local mais apropriado Para Almeida 2010 o encaminhamento é peça fundamental para que o trabalho do assistente social seja efetivado Silva 2019 aponta que o profissional utiliza de seus instrumentos e técnicas para minimizar os impactos sofridos pela vítima e consequentemente que não seja reproduzida aos filhos fazendo com que essa vitima seja orientada e respaldada de seus direitos para que consiga assim deixar de aprisionarse da atual situação vivida Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 112 Questionadas sobre as condições objetivas criadas para que as mulheres possam prevenir e superar as dinâmicas de violência A resposta foi direcionada para o trabalho socioeducativo pois somente através de uma mudança cultural teremos avanço haja vista que independente da condição socioeconômica muitas vezes elas se submetem a situações de violência Os profissionais que atuam nas delegacias especiais precisam ter especialidades na área da violência para que seus discursos não sejam baseados em preconceito em narrativas naturalizantes que constituem hierarquicamente as relações de gênero Para SantAnna 2018 os assistentes sociais ao atuarem na garantia de um direito sem violência podem contribuir para a redução da condição de vulnerabilidade sejam essas vulnerabilidades fruto da contradição entre capital e trabalho ou de outras formas de desigualdade como as de gênero Por fim ao serem questionadas sobre os desafios presentes na atuação profissional foi apontado que No nosso caso enquanto DPCAMI o maior desafio é a vulnerabilidade nada tomada de decisão da vítima Por que as mulheres chegam na Delegacia vulneráveis ou seja sem saber qual decisão tomar e muitas vezes não querem representar por medo do que a família vai pensar de se arrepender do julgamento dos amigosfilhos e por vezes necessitam de um tempo para refletir PROFISSIONAIS SantAnna 2018 p 311 aponta que é tarefa dos profissionais que atuam com mulheres vítimas de violência investigarem o que está por detrás do discurso dessas mulheres enunciados nas instituições de proteção às vítimas além de buscar através dos seus instrumentos de trabalho as raízes do problema CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo mostra que a violência faz parte da história de muitas mulheres há séculos estando relacionada principalmente a cultura patriarcal que expressa desigualdades sociais políticas econômicas e culturais além da subordinação de colocar os homens no poder no trabalho bem como em casa Dessa forma a mulher sempre foi vista pela sociedade como responsável pela casa e pelos filhos ou seja o espaço doméstico é visto como responsabilidade inerente à mulher Essas diferenças que perfazem a realidade aumentam as desigualdades nas relações de gênero pois apontam o que é dever do homem e o que é dever da mulher naturalizando assim os papéis atribuídos a cada um Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 113 Essa realidade associada com a luta de movimentos feministas e vítimas de violência permitiram que o Estado atuasse de forma a combater as formas de violências existentes resultando na Lei 1134006 conhecida como Lei Maria da Penha Têm por objetivo coibir atos de violência protegendo as mulheres indiferente de classe social raça etnia orientação sexual renda cultura nível educacional idade e religião buscando preservar sua saúde física e mental Entretanto contribui Nichnig 2016 que a existência das leis ainda não proporciona a mudança simbólica e cultural necessária para que a igualdade de gênero seja efetiva Para alcançar a igualdade social se faz necessário a implementação e manutenção das leis vigentes vigilância e movimentos feministas atentos para a sua efetivação A literatura mostra que a violência é uma das formas mais graves violação de direitos Essa violência perpassa um ciclo que vai evoluindo iniciando normalmente na violência psicológica passando para a fase da violência física Os dados referente a pesquisa empírica realizada com mulheres abrigadas na Casa Maria mostra que são todas adultas com diversos níveis de ensino sendo seus agressores seus companheiros todas possuem filhos e donas de casa Seus agressores são seus companheiros o que perpetua a violência doméstica Os tipos de violência sofrida foram a violência psicológica física e sexual e combinadas não acontecendo apenas uma isoladamente Os motivos de sofrerem violência de seus companheiros foi o ciúme negligência no cumprimento das tarefas domésticas e a utilização do álcool e drogas Mesmo estando numa casa de abrigo por situações de violência percebemos que ela não tem conhecimento da lei Maria da Penha O que indica a necessidade de abordar o tema da violência em diferentes instituições sociais para que a população conheça seus direitos As profissionais da delegacia relataram que sua atuação se dá nas situações de violência em suas mais diversas manifestações Nas demandas de violência são utilizados diversos instrumentos como a orientação o acolhimento O trabalho socioeducativo foi indicado como uma das formas de prevenir a violência E como desafio no atendimento foi apontado a vulnerabilidade das mulheres no sentido de realizar a denúncia Concluímos que há ainda muito que se fazer para que a Lei Maria da Penha tenha a efetividade pretendida pelo legislador A Lei foi criada para proteger as vítimas da violência e também erradicar toda a forma de violência doméstica e familiar Para que isso aconteça entendemos que se faz necessário fortalecer a rede de atendimento para que as mulheres já fragilizadas encontrem amparo e possam enfrentar a situação Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 114 Coibir a violência numa sociedade tão desigual alienada pelos meios de comunicação e pela ideologia dominante em que a mulher é submissa que possui salário mais baixo que a dos homens dupla ou tripla jornada de trabalho passa por uma questão ética de todas as estruturas sociais REFERÊNCIAS ALVES S B DINIZ N M FEu digo não ela diz sim a violência conjugal no discurso masculino Revista Brasileira de Enfermagem Brasília v 58 n 4 julago p 387392 2005 ALMEIDA Livia Os instrumentais técnicooperativos na prática profissional do serviço social2010 Disponível em httpswwwwebartigoscomartigososinstrumentaistecnico operativosnapraticaprofissionaldoservicosocial36921 Acesso em 29 ago 2019 AZMINA Dossie das delegacias das mulheres 2016 Disponível em httpsazminacombrespeciaisdossiedasdelegaciasdamulher Acesso em 20 ago 2019 BRASIL Lei n 11340 de 07 de agosto de 2006 Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher altera o Código de Processo Penal o Código Penal e a Lei de Execução Penal e dá outras providências Brasília Diário Oficial da República Federativa do Brasil 2006 CAMPOS Carmen 2003 Juizados Especiais Criminais e seu déficit teórico Revista Estudos Feministas Junho de 2003 Vol 11 nº 1 p 155170 CUNHA Rogério Sanches PINTO Ronaldo Batista Violência doméstica Lei Maria da Penha Lei 113402006 Comentada artigo por artigo São Paulo Revista dos Tribunais 2007 CUNHA Rogério Sanches Violência Doméstica Lei Maria da Penha Lei 113402006 comentado artigo por artigo Rogério Sanches Cunha Ronaldo Batista Pinto São Paulo Revista dos Tribunais 2012 DATASENADO Violência doméstica e familiar contra a mulher Junho2017 Disponível em httpswww12senadolegbrinstitucionaldatasenadoarquivosaumentanumerode mulheresquedeclaramtersofridoviolencia Acesso em 20 out 2018 DIAS Maria Berenice A Lei Maria da Penha na justiça a efetividade da Lei 113402006 de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher São Paulo Editora Revista dos Tribunais 2007 DUARTE Madalena OLIVEIRA Ana Mulheres nas margens a violência doméstica e as mulheres imigrantes Sociologia Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto Vol XXIII 2012 pág 223237 Disponível em httpslerletrasupptuploadsficheiros10303pdf Acesso em 28 ago 2019 FÓRUM ECONÔMICO MUNDIAL Empoderamento de mulheres avaliação das disparidades globais de gênero Genebra 2005 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 115 GUERREIRO Patrícia et al O acolhimento como boa prática na atenção básica à saúde Texto contexto enferm vol22 no1 Florianópolis JanMar 2013 Disponível em httpwwwscielobrscielophppids010407072013000100016scriptsciarttexttlngpt Acesso em 29 ago 2019 GROSSI Patrícia Krieger Violência e Gênero coisas que a gente não gostaria de saber Porto Alegre EDIPUC 2001 GROSSI Miriam Pillar Trabalho de Campo Subjetividade Florianópolis UFSC Programa de PósGraduação em Antropologia Social 1992 70 p MACHADO Isadora Vier GROSSI Miriam Pillar Da dor no corpo à dor na alma o conceito de violências psicológicas da Lei Maria da Penha Estudos Feministas Florianópolis 232 561576 maioagosto2015 Disponível em httpwwwscielobrpdfrefv23n20104026Xref230200561pdf Acesso em 30 ago 2019 MARTINS Ana Paula Antunes CERQUEIRA Daniel MATOS Mariana Vieira Martins A institucionalização das políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres no Brasil Brasília n 13 março de 2015 MINISTÉRIO DA SAÚDE Secretaria de Políticas de Saúde Direitos Humanos e Violência Intrafamiliar informações e orientações para agentes comunitários de Saúde Brasília Ministério da Saúde 2001 MORAES Aparecida Fonseca RIBEIRO Letícia As políticas de combate à violência contra a mulher no Brasil e a responsabilização dos homens autores de violência Sex Salud Soc Rio J Rio de Janeiro n11 p3758 Ago 2012 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1984 64872012000500003lngennrmiso Acesso em 10 out 2018 NICHNIG Claudia Regina Experiências e práticas jurídicas no combate à violência a partir da Lei Maria In VEIGA Ana M WOLFF Cristina S LISBOA Teresa K Org Gênero e Violências diálogos interdisciplinares Florianópolis Edições do BosqueCFHUFSC 2016 OEA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS Relatório Anual 2000 Relatório n 5401 Caso 12051 Maria da Penha Maia Fernandes Brasil 4 de abril de 2001 Disponível em httpwwwsbdporgbrarquivosmaterial299Relat20npdf Acesso em 13 ou 2018 PASSOS Joana Célia ROSA Stela Violência de Gênero e Racismo In VEIGA Ana M WOLFF Cristina S LISBOA Teresa K Org Gênero e Violências diálogos interdisciplinares Florianópolis Edições do BosqueCFHUFSC 2016 PINHEIRO E A Serviço Social e violência contra a mulher questões para o debate 2005 Dissertação Mestrado Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 2005 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 116 SANTANNA Thiago F O empoderamento das mulheres e a Lei Maria da Penha como tecnologia de gênero Possibilidades com os estudos feministas e de Gênero para o Serviço Social Temporalis Brasília DF ano 18 n 35 janjun 2018 SILVA Juscilene Galdino da Violência doméstica contra a mulher e Serviço Social espaço de atuação e intervenção profissional 2019 Disponível em httpwwwesedhprgovbrmodulesinscritquestuploads823032016160341ASPOSSIV EISINTERVENCOESPROFISSIONAISNASQUESTOESDAVIOLENCIADOMES TICACONTRAMULHERpdf Acesso em 26 ago 2019 SENADO FEDERAL Serviços Especializados de Atendimento à Mulher 2019 Disponível em httpswww12senadolegbrinstitucionalomvacoescontra violenciaservicosespecializadosdeatendimentoamulher Acesso em 30 ago 2019 SOUZA Patrícia Alves de Os possíveis motivos do adiantamento da denúncia de mulheres vítimas de violência conjugal Estudo em Grupo de Mulheres atendidas no CEVIC Florianópolis 2003 Florianópolis UFSC Centro de Ciências da Saúde Pós Graduação em Saúde Pública SOUZA Maria Clarice Rodrigues de Violência contra a mulheres uma questão de gênero Montes Claros 19851994 2009 258f Dissertação Programa de PósGraduação em História Universidade Federal de Uberlândia Uberlândia 2009 TELES Maria Amélia de Almeida MELO Monica de O que é violência conta a mulher São Paulo Brasiliense 2002 TJSC TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar Dê um basta na violência 5ª ed 2018 Disponível em httpswwwtjscjusbrcoordenadoriadamulheremsituacaode violenciadomesticaefamiliarcevid Acesso em 19 out 2018 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 117 A JUDICIALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES Ísis de Jesus Garcia1 RESUMO Este artigo pretende discutir algumas questões relativas aos processos de judicialização da violência contra as mulheres especialmente no que se refere à Lei nº 11340 de 2006 conhecida como Lei Maria da Penha LMP Se por um lado a judicialização pode criar ambiente propício para reivindicação de direitos por parte das mulheres que tenham sofrido violência doméstica por outro a idealização da eficácia do Poder Judiciário quanto a essa demanda se manifesta como fator inviabilizador Assim a invasão do direito nas relações sociais sobretudo a propósito da violência contra as mulheres será descrita enfatizandose seus entrelaçamentos com a semântica jurídica e problematizandose noções préfixadas a respeito do tema Pretendese verificar como a Lei Maria da Penha tem contribuído para a judicialização da violência contra as mulheres Tratandose de uma pesquisa com objetivo teórico será realizada uma revisão da bibliografia referente às matrizes teóricas do tema e sua relação com a violência contra as mulheres Salientase que o trabalho não pretende esgotar a matéria mas à elucidação de um panorama social vigente com o objetivo de incentivar a reflexão sobre o tema Palavraschave Judicialização da violência contra as mulheres Lei Maria da Penha Violência contra as mulheres INTRODUÇÃO As reivindicações dos movimentos feministas brasileiros intensificaramse e passaram a ganhar maior visibilidade em meados da década de 1970 o que acarretou a inclusão da violência doméstica2 contra as mulheres na agenda política como uma das prioridades de atuação do poder público GROSSI 1994 1998a GROSSI MINELLA LOSSO 2006 BANDEIRA SUARÉZ 1999 HEILBORN 1996 GREGORI 1993 No cenário internacional em 1979 é aprovada pelas Nações Unidas a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Contra a Mulher CEDAW ratificada pelo Brasil em 1984 Tratase de um momento importante para a implementação das políticas públicas que visavam o combate à violência contra a mulher Diversas conferências foram realizadas ao redor do mundo e incentivaram a implementação de políticas para as mulheres 1 Professora da UnisociescJoinville Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Coordena o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Gênero e Direito inscrito no CNPq e vinculado à UniSociesc Email hycsoyahoocombr Link do lattes httplattescnpqbr5771771050380898 2 Saliento que utilizarei a expressão violências entre aspas pois se trata de uma categoria descritiva qualificadora conforme tem definido Theophilos Rifiotis 1997 1999 2008 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 118 dentre as quais se destacam a II Conferência Mundial sobre Direitos Humanos realizada em Viena no ano de 1993 que reconheceu a violência contra a mulher como uma violação dos direitos humanos a Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a violência contra a Mulher ocorrida em Belém do Pará em 1994 e no ano seguinte a Conferência Mundial sobre a mulher em Beijing VIANNA LACERDA 2004 No Brasil o processo de resistência se fortaleceu por meio de estratégias de luta como por exemplo o emprego reiterado da expressão violência contra a mulher com a posterior implementação de políticas públicas com o objetivo de coibila BANDEIRA 2009 PASINATO SANTOS 2005 O objetivo deste trabalho é problematizar as noções préfixadas a respeito da judicialização da violência contra as mulheres Assim à invasão do direito nas relações sociais especialmente naquelas que dizem respeito à violência contra as mulheres será descrita enfatizandose seus entrelaçamentos com a semântica jurídica VIANNA et al 1999 DEBERT 2010 RIFIOTIS 2008 2014 2016 1 A LEI MARIA DA PENHA Em 1983 Maria da Penha Maia Fernandes sofreu duas tentativas de homicídio perpetradas por seu marido Em um primeiro momento o agressor atirou em suas costas enquanto ela dormia deixandoa paraplégica posteriormente tentou eletrocutála no banho PANDJIARJIAN 2007 Muito embora tenha havido duas condenações judiciais em 1991 e em 1996 não se alcançava uma decisão definitiva no âmbito do processo e o acusado continuava em liberdade Passados mais de 10 anos sem uma resposta efetiva por parte do Poder Judiciário por meio de uma petição conjunta de Maria da Penha do Centro pela Justiça e o Direito Internacional CEJILBRASIL e do Comitê LatinoAmericano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher CLADEMBrasil o caso foi apresentado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos OEA Em 2001 18 anos após o fato a Comissão Interamericana responsabilizou o Brasil por negligência tolerância e omissão em relação à violência contra a mulher violaramse afinal os direitos estabelecidos na Convenção Americana de Direitos Humanos e na Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a violência contra a Mulher Convenção de Belém do Pará3 O Brasil sofre afinal em decorrência da denúncia de Maria da Penha Maia Fernandes 3 Em 1995 o Brasil ratifica a Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher a chamada Convenção de Belém do Pará que reconheceu a violência contra a mulher como fato BRASIL 2004 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 119 uma condenação inédita por parte da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA A decisão da OEA recomendou ao Estado brasileiro que a concluísse rápida e efetivamente o processo penal envolvendo o responsável pela agressão b investigasse séria e imparcialmente irregularidades e atrasos injustificados do processo penal c pagasse à vítima uma reparação simbólica decorrente da demora na prestação jurisdicional sem prejuízo da ação de compensação contra o agressor e d promovesse a capacitação de funcionários da Justiça em direitos humanos especialmente no que toca aos direitos previstos na Convenção de Belém do Pará OEA 1995 Esta decisão foi considerada inédita pois foi a primeira vez que um caso de violência doméstica acarretou a condenação de um país no âmbito internacional PIOVISAN PIMENTEL 2011 Após a decisão da OEA diversas organizações não governamentais ONGs feministas se reuniram com o objetivo de organizar um consórcio de ONGs feministas para redigir uma lei específica sobre a temática da violência contra a mulher Depois de muitas discussões e estudos a respeito de legislações internacionais específicas sobre a violência contra a mulher no final de 2003 o Consórcio de ONGs Feministas apresentou o resultado da pesquisa à bancada feminina do Congresso Nacional e à Ministra da Secretaria de Políticas para as Mulheres SPM Nilcéa Freire a quem encaminharam o anteprojeto Em seguida Freire elaborou um grupo de trabalho interministerial que acolheu grande parte da proposta do Consórcio Após diversas reuniões em diferentes esferas do Governo Federal o Projeto de Lei da Câmara PLC de nº 372006 foi aprovado pelo Senado e encaminhado para a sanção presidencial MATOS CORTES 2011 A Lei Maria da Penha foi consequência de uma série de fatores dentre os quais se destacam a pressão dos movimentos feministas que passaram a criticar constantemente a atuação dos Juizados Especiais Criminais JECrim e o Informe nº 542001 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA CIDH que após ter recebido a denúncia de Maria da Penha Maia Fernandes chegou à conclusão de que o Brasil estava violando direitos e garantias à proteção judicial da autora Com o advento da Lei nº 11340 de 2006 um novo marco na luta pelo respeito aos direitos das mulheres foi alcançado CORTIZO GOYENECHE 2010 p103 Para Cortizo e Goyeneche tratase de um avanço legal já que previa um tratamento diferenciado aos casos de violência contra a mulher Isto é a violência contra a mulher deixou de ser considerada crime de menor potencial ofensivo e consequentemente não deveria mais ser remetida aos JECrim Além disso a lei apresenta disposição a respeito da criação dos Juizados de violência Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 120 doméstica e familiar contra a mulher JVDFM e estabelece medidas de assistência e proteção às mulheres em situação de violência doméstica e familiar segundo o seu artigo 1º Dentre as principais modificações destacadas por Guita Debert e Marcella Beraldo de Oliveira 2007 p331 citamse o aumento da pena máxima que passa a ser de três anos de detenção o que retira essa violência da tipificação dos crimes de menor potencial ofensivo não podendo por conseguinte ser mais enviada aos Juizados Especiais Criminais JECrim passa também a admitir a prisão em flagrante para os casos de violência doméstica contra as mulheres e impede a aplicação de pena de cesta básica passando a exigir novamente como antes da Lei 909995 a instauração do inquérito policial É importante salientar que a LMP propôs a criação de uma ampla rede extrapenal de proteção às mulheres ou seja medidas de proteção educação e apoio às mulheres cujo objetivo seria a redução da violência doméstica e familiar contra a mulher A LMP apostou em alternativas de redução prevenção e repressão da violência doméstica e familiar contra a mulher que não passam exclusivamente pelo campo do Direito Penal ainda que não atendam às expectativas decorrentes das críticas à atuação dos JECrim no tratamento oferecido aos casos de violência contra as mulheres Para Amorim 2008 com a Lei Maria da Penha correse o risco dos mesmos erros da Lei nº 909995 A autora AMORIM 2008 p 123 questiona Se o Jecrim falhou por falta de políticas auxiliares no combate desta violência a Lei nº 1134006 amparouse em uma rede de proteção do Judiciário do Ministério Público estará esse extenso manto protetor suficientemente articulado para conceder proteção à mulher vítima da violência doméstica e familiar Depois de mais de 4 anos de vigência da LMP as resistências em relação à sua aplicação foram constatadas por algumas pesquisas CAMPOS CARVALHO 2011 GOMES 2010 LEMOS 2010 MACHADO 2013 VITÓRIO 2010 Além disso a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito CPMI da violência contra a mulher do Congresso Nacional averiguou entre março de 2012 e julho de 2013 inúmeros obstáculos à efetividade da LMP no cenário nacional descrevendo particularidades regionais muito distintas mas que possuíam em comum a dificuldade em implementar suas medidas Os dados da CPMI foram recentemente analisados por Carmen Hein de Campos 2015 e as constatações da autora não são animadoras Em resumo muito embora não tenha descoberto a roda o seu mérito da CPMI está em traçar um panorama da rede de atendimento em todo o País ampliando os estudos e as pesquisas realizados em localidades específicas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 121 Estamos diante de uma legislaçãoálibi isto é de uma lei positivada para satisfazer a demanda dos movimentos feministas sem que haja contudo a existência de condições mínimas para a sua efetivação 2 A JUDICIALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA DE GÊNERO O aumento da intervenção do Poder Judiciário em várias instâncias da vida pública e privada sugere que tudo pode ser resolvido através de uma decisão judicial Ao magistradamagistrado tem sido convocadaconvocado em número cada vez mais extenso de questões da vida política o que os norteamericanos há muitos anos chamam de judicial activism e também da vida econômica internacional comunitária moral social e até mesmo da vida privada VIANNA 1999 Esta demanda crescente pelo Poder Judiciário demonstrase contraditória pois ao mesmo tempo que os sujeitos exigem a desregulamentação clamam por regulamentação Segundo Raul Henrique Rojo 2001 p299 este poder crescente da Justiça oculta dois fenômenos aparentemente muito diferentes senão contraditórios cujos efeitos convergem e se reforçam mutuamente o enfraquecimento do Estado sob a pressão do mercado de uma parte e o abalo simbólico do homem e da sociedade democráticos por outra Campilongo 1995 apontava para um duplo movimento uma crescente valorização do Poder Judiciário e o surgimento de locais alternativos para a resolução dos conflitos Esta oscilação é denominada por Rojo 2001 2003 de jurisdicionalização em outras palavras tratase tanto da judicialização quanto da desjudicialização além de definir a procura por uma instância simbólica apta a dizer o que é a justiça Ao juízajuiz surge como a última figura legítima de autoridade Dessa forma a sociedade tem promovido uma demanda inédita por Justiça tanto quantitativa quanto qualitativamente já que o Poder Judiciário tem que não apenas multiplicar suas intervenções mas passa também a responder a requerimentos de extrema complexidade Ao magistradamagistrado tem se tornado intérprete das mais diversas questões Por exemplo vimos inúmeras reivindicações por direitos travadas no Supremo Tribunal Federal STF questões relativas à adoção por casais homossexuais à pesquisa com célulastronco à interrupção do parto quando se trata de feto anencéfalo etc Tratase do que François Ost 1993 p 179 denominou de Juiz Hércules ou seja mais que umaum mulherhomem da lei umaum verdadeiraverdadeiro engenheiraengenheiro social Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 122 Para Luiz Werneck Vianna et al 1999 p 24 ao juízajuiz tem se tornado o portavoz da Justiça nas relações sociais Dessa forma a ideia de supremacia da função dado magistradamagistrado é consequência da democratização social pósdécada de 1970 e do desmonte dos regimes autoritáriocorporativos do mundo europeus e americanos Com a promulgação das constituições que positivaram direitos fundamentais o Poder Judiciário passou paulatinamente a substituir a política Como consequência ao juízajuiz passou a tomar suas decisões com base em premissas mais complexas em relação à quando julgava conforme os enunciados normativos Nesse sentido a judicialização aparece como consequência das próprias constituições democráticas a exemplo da Constituição Brasileira de 1988 Segundo Vianna et al 1999 p149 o Estado passa a regular todas as relações sociais criando diversas leis como por exemplo leis referentes à violência contra a mulher aos grupos vulneráveis meio ambiente crianças e adolescentes dependentes de drogas e consumidores Os autores advertem que é o Direito que passa a invadir a vida dos sujeitos É todo um conjunto de práticas e de novos direitos além de um continente de personagens e temas até recentemente pouco divisável pelos sistemas jurídicos das mulheres vitimizadas aos pobres e ao meio ambiente passando pelas crianças e pelos adolescentes em situação de riso pelos dependentes de drogas e pelos consumidores inadvertidos os novos objetos sobre os quais se debruça o Poder Judiciário levando a que as sociedades contemporâneas se vejam cada vez mais enredadas na semântica da justiça É enfim a essa crescente invasão do direito e organização da vida social que se convencionou chamar de judicialização das relações sociais VIANNA et al 1999 p 149 grifei A judicialização para além de uma demanda crescente pela concretização de direitos através do Poder Judiciário evidencia algumas peculiaridades Em primeiro lugar ela pode ser considerada um fato decorrente da própria Constituição Federal de 1988 BRASIL 1988 que conferiu uma maior liberdade interpretativa e criativa às juízas e aos juízes Com o constitucionalismo moderno parece não ser mais necessário dizer que magistradas e magistrados não são a boca da lei como no positivismo lato sensu No entanto isso não quer dizer que juízas e juízes possam flexibilizar as normas com total autonomia Para Carlo Guarnieri 1993 p 25 se não há como negar que a criatividade dasdos juízasjuízes hoje é um fato amplamente reconhecido isso não significa que sua atuação possa ocorrer com total liberdade A crítica ao formalismo vinculada à negação do papel dado magistradamagistrado como o de meramero aplicadoraaplicador da lei encontra suas bases em uma série de fatores mais complexos Segundo a tradição constitucionalista ao juízajuiz deveria agir segundo as leis que eram ao mesmo tempo o fundamento e o limite de seu poder No entanto atualmente Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 123 o vínculo com a lei ganha uma outra dinâmica e dessa maneira o reflexo social gerado é uma desvalorização das próprias legislações do que seria exemplo a Lei Maria da Penha O menosprezo ao papel da legalidade no âmbito estatal é transposto ao âmbito das relações interpessoais Para Carlos M Cárcova 1996 p 151 os compromissos não são assumidos as convenções não são cumpridas e uma sensação de desproteção e de impunidade percorre os interstícios da vida social No Brasil José Eduardo Faria 1994 p17 salienta que a brecha cada vez mais profunda entre o sistema jurídico e os interesses em conflito de uma sociedade em transformação potencializada pelas tradicionais dificuldades do Poder Judiciário para adaptarse a novos tempos conduziu a uma progressiva desconfiança tanto na objetividade das leis como critério de justiça quanto em sua efetividade como instrumento de regulamentação e direção da vida Deriva daí uma certa banalização da ilegalidade e da impunidade que passou a caracterizar a imagem do Brasil contemporâneo A imagem de que os códigos haviam se transformado em simples ficção e de que sua violação sistemática se havia convertido em regra geral expressando as falências das instituições jurídicasjudiciais A incapacidade dos demais Poderes Legislativo e Executivo de oferecer respostas às demandas pela concretização dos direitos constitucionais ou seja por Justiça levou a uma crescente expectativa quanto ao papel do Poder Judiciário enquanto concretizador desses direitos VIANNA et al 1999 p 152 Na ausência de Estado ou de outras formas de regulação social coube ao Poder Judiciário a função de regulador social Conforme Antoine Garapon apud VIANNA et al 1999 p 149 a justiça se torna um lugar em que se exige a realização da democracia Vianna et al 1999 p 155 enfatizaram que a crescente invasão do Direito na vida social que no Brasil pode ser exemplificada pela criação dos juizados especiais cíveis e criminais Assim nesse processo contemporâneo de crescente invasão do direito na vida social e que no Brasil teve seu caminho ditado pelo movimento de auto reforma do Poder Judiciário a criação dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais talvez represente um significativo divisor de águas Ainda que integrem o conjunto mais geral de modificações técnicas concebidas no sentido de aproximar lei e sociedade a singularidade da sua aposta se prende ao contexto em que eles emergem já então respondendo às crescentes demandas por justiça de uma parcela da sociedade submersa e até aquele momento sem representação Contudo Garapon 1999 alerta que a função de guardião da moralidade pública ocupada hoje pelapelo juízajuiz traz em contrapartida a preocupação quanto ao exercício da função por profissionais pouco qualificados Segundo o autor Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 124 Almejam ser considerados como o último refúgio da moral e do desinteresse em uma República abandonada pelos seus servidores Essa demanda desperta o velho demônio inquisitório sempre presente no imaginário latino São novas expectativas que surpreendem uma magistratura ainda pouco preparada para o exercício desse papel provocando os exageros em número reduzido é verdade mas que ainda assim merecem ser analisados ao menos para que sejam conjurados GARAPON 1999 p 55 Além de uma maior presença do Poder Judiciário para dirimir conflitos sociais a judicialização expõe um rompimento com as estruturas simbólicas dos indivíduos e da sociedade democrática Nesse sentido Garapon 1999 dirá que o Poder Judiciário passa a ser invocado para dizer o justo numa democracia ao mesmo tempo inquieta e desencantada No entanto não se trata nem do triunfo da magistratura nem do direito mas de uma aposta em uma outra forma de democracia Segundo Rojo 2003 p 39 Ao mesmo tempo em que julgar adquire por fim o estatuto de verdadeiro poder democrático se transforma no poder de ninguém O lugar de destaque ocupado pelaspelos magistradasmagistrados caracterizase não somente pela demanda efetiva mas principalmente pela sua dimensão simbólica Conforme Denise Duarte Bruno 2006 p 37 O que se coloca para o guardião das promessas é a função simbólica da autoridade autoridade esta que o leva ao exercício da magistratura do sujeito Em outras palavras asos juízasjuízes têm substituído outros árbitros sociais conquistando lugar de destaque na função de internalizar normas É nesse sentido que Garapon 1999 dirá que ao juízajuiz tem ocupado a figura de um guardião da moralidade pública Contudo o autor questiona Não seria prudente anteciparmos o mal e procurar imunizarmo nos E de que maneira GARAPON 1999 p 55 Regina Lúcia Teixeira Mendes 2008 p 250 em sua tese de doutorado a respeito do princípio do livre convencimento dos juízes destacou que asos juízasjuízes conferem respostas diferentes para casos semelhantes o que leva as partes processuais a desenvolverem um sentimento de insegurança em relação às instituições jurídicas Além disso a autora salienta que a fragilidade do reconhecimento atribuído aos tribunais contribui para aumentar o afastamento entre o direito a Justiça e a sociedade no Brasil MENDES 2008 p 250 Para Theóphilos Rifiotis 2004 no que diz respeito à judicialização dos conflitos conjugais essa não nos colocaria diante de um acesso direto à Justiça e nem de uma nova forma de democratização muito embora faça parte das sociedades democráticas Em casos específicos este fenômeno limita ou ameaça a cidadania e a democracia Especialmente em relação às questões que envolvem a violência conjugal o autor salienta que Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 125 A Judiciarização é apresentada como conjunto de práticas e valores pressupostos em instituições como a Delegacia da Mulher e que consiste fundamentalmente em interpretar a violência conjugal a partir de um ponto de uma leitura criminalizante e estigmatizada contida na polaridade vítima agressor ou na figura jurídica do réu A leitura criminalizadora apresenta uma série de obstáculos para a compreensão e intervenção nos conflitos interpessoais RIFIOTIS 2004 p89 Segundo Rifiotis 2004 a violência conjugal passa a ser interpretada pelo Judiciário a partir da dualidade vítima versus agressor esquecendose da complexidade que envolve os conflitos conjugais Para Rifiotis a judicialização aparece como uma soluçãoproblema já que o jurídico é ao mesmo tempo uma solução e um problema uma soluçãoproblema Ele não deve ser considerado um fim em si mesmo e tampouco os objetivos sociais projetados sobre ele se realizam automaticamente devendo ser objeto de monitoramento contínuo como condição necessária para a sua efetividade RIFIOTIS 2008 p 230 grifei Por outro lado a judicialização da violência contra as mulheres pode ser uma forma de garantir maior acesso à justiça e de promover a visibilidade de problemas considerados privados Para Lilia Guimarães Pougy 2010 p 82 a judicialização da violência contra a mulher contribui para a alteração das relações de força entre os sujeitos bem como para a concretização da Lei Maria da Penha e para a realização da Justiça Essas considerações encontram respaldo nos apontamentos de Cinthia de Mello Vitório 2010 p 86 No que tange à judicialização da vida privada cabe ressaltar que o enfrentamento da violência de gênero não pode ser considerado como um fenômeno negativo mas como uma conquista para as mulheres vítimas de violência Debert e Gregori 2008 p166 salientam que apesar das críticas realizadas em relação à judicialização da violência de gênero no sentido de que este movimento estimularia certa dissolução da cultura cívica é importante lembrar que as Delegacias Especializadas de atendimento à Mulher DEAMs assim como a própria Lei Maria da Penha são fruto das reivindicações dos movimentos feministas Em outras palavras a judicialização da violência de gênero foi uma consequência das reivindicações dos movimentos feministas por uma lei específica para os casos de violência contra a mulher Dessa forma não há como dizer que estaríamos diante do poder de ninguém mas sim de uma outra forma de exercício da cidadania Além disso tratase de evidenciar na esteira de movimentos feministas que afirmam que o privado é público a problemática decorrente da dicotomia públicoprivado ainda presente no imaginário de muitos juristas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 126 CONSIDERAÇÕES FINAIS As peculiaridades que envolvem a judicialização da violência contra as mulheres têm demonstrado ser este um fenômeno complexo Se por um lado a judicialização pode estar proporcionando um palco propício para que as mulheres vítimas de violência doméstica reivindiquem seus direitos por outro uma possível idealização da eficácia do Poder Judiciário frente a essas demandas poderá servir para inviabilizar outras questões O objetivo não é destacar se por um lado a judicialização é positiva e por outro ela é negativa mas compreender a complexidade que envolve estes processos a partir das práticas jurídicas em suas relações com os sujeitos de direito tendo em vista principalmente que a judicialização da violência contra as mulheres evidencia uma soluçãoproblema RIFIOTIS 2008 Ainda que possamos fazer reflexões generalistas somente as pesquisas empíricas dos modos de produzir Justiça nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher poderão demonstrar suas singularidades E dessa forma realizar uma nova leitura das nossas teorias sobre a judicialização da violência contra a mulher Esta tem sido a agenda tanto acadêmica analítica quanto dos movimentos feministas REFERÊNCIAS AMORIM Maria Stella A administração da violência cotidiana no Brasil a experiência dos Juizados Especiais Criminais In AMORIM Maria Stella LIMA Robert Kant de Juizados Especiais Criminais Sistema Judicial e Sociedade no Brasil Niterói Intertexto 2003 AMORIM Maria Stella Despenalização e penalização da violência contra a mulher R SJRJ Rio de Janeiro n 22 p 111128 2008 BANDEIRA Lourdes Três décadas de resistência feminista contra o sexismo e a violência feminina no Brasil 1976 a 2006 Sociedade Estado n2 v 24 p 401 438 2009 BANDEIRA Lourdes SUÁREZ Mireya Org violência Gênero e Crimes no Distrito Federal Brasília Paralelo 15Editora UNB 1999 BRASIL Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos Lei nº 11340 de 07 de agosto de 2006 Portal da Legislação Disponível em wwwplanaltogovbr Acesso em 10 maio 2010 BRUNO Denise Duarte Jurisdicionalização racionalização e carisma As demandas de regulação das relações familiares ao poder judiciário gaúcho 2006 174f Tese Doutorado Curso de Sociologia UFRGS Rio Grande do Sul 2006 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 127 CAMPILONGO Celso Apresentação realizada na sessão O judiciário e o acesso à justiça In SADEK Maria Teresa Org O Judiciário em debate São Paulo IDEPS Editora Sumaré 1995 p 930 CAMPOS Carmen Hein de Razão e sensibilidade Teoria Feminista do Direito e Lei Maria da Penha In Campos Carmen Hein de Org Lei Maria da Penha Comentada em uma perspectiva jurídicofeminista Rio de Janeiro Lumen Juris 2011 p112 CAMPOS Carmen Hein de A CPMI da violência contra a Mulher e a implementação da Lei Maria da Penha Revista de Estudos Feministas Florianópolis n 2 v 23 n 2 maioago 2015 p 519 531 CÁRCOVA Carlos Maria Direito Política e Magistratura Trad de Rogério Viola Coelho Marcelo Ludwig Dorneles São Paulo LTR 1996 CORTIZO María del Carmem GOYENECHE Priscila Larratea Judiciarização do privado e violência contra a mulher Revista Katál Florianópolis n 1 v13 p 102109 janjun 2010 DEBERT Guita Grin Desafios da politização da Justiça e a Antropologia do Direito Revista de Antropologia São Paulo USP n 2 v 53 p 476 492 2010 DEBERT Guita Grin BERALDO DE OLIVEIRA Marcella Os Modelos Conciliatórios de Solução de conflitos e a violência doméstica Cadernos Pagu n 29 p 305 337 juldez 2007 DEBERT Guita Grin GREGORI Maria Filomena violência e gênero novas propostas velhos dilemas Revista brasileira de Ciências Sociais online n 66 v 23 p 165185 2008 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0102 69092008000100011 Acesso em 10 maio 2010 FARIA José Eduardo O Judiciário e o desenvolvimento socioeconômico In FARIA J E Org Direitos humanos direitos sociais e justiça São Paulo Malheiros 1994 GAUCHET 2002 p 5 apud ROJO El derrumbe de las referencias sociales colectivas y el juez como última figura legítima de autoridadeIn XXVII CONGRESO LATINOAMERICANO DE SOCIOLOGIA 2009 Buenos Aires Memorias XXVII Congreso ALAS 2009 Latinoamérica interrogada Buenos Aires Universidad de Buenos Aires Facultad de Ciencias Sociales 2009 v 1 p 111 GARAPON Antoine O juiz e a democracia O guardião das promessas Trad Maria Luiza de Carvalho 2 ed Rio de Janeiro Editora Revan 1999 GREGORI Maria Filomena Cenas e queixas mulheres e relações violentas Rio de Janeiro Paz e Terra 1993 GROSSI Miriam Entrevista com Joan W Scot Revista de Estudos feministas Rio de Janeiro p 114124 1998a 1 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 128 GROSSI Miriam Pillar Rimando amor e dor reflexões sobre a violência no vínculo afetivoconjugal In PEDRO Joana Maria GROSSI Miriam Pillar Org Masculino feminino plural gênero na interdisciplinaridade Florianópolis Ed Mulheres 1998b p 296 GROSSI Miriam Pillar MINELLA Luzinete Simões LOSSO Juliana Cavilha Mendes Gênero e violência pesquisas acadêmicas brasileiras 1975 2005 Florianópolis Ed Mulheres 2006 GUARNIERI Carlo Independenza del giudice potere giudiziario e democrazia In GUARNIERI Carlo Magistratura e politica in Italia Pesi senza contrappesi Bolonha Il Mulino 1993 p1349 LEMOS Marilda de Oliveira Alívio e Tensão Um estudo sobre a interpretação e aplicação da Lei Maria da Penha nas Delegacias de Defesa da Mulher e Distritos Policiais da Seccional de Polícia de Santo André São Paulo 2010 307f Tese Doutorado em Sociologia Universidade de São Paulo 2010 MACHADO Lia Zanotta Eficácia e desafios das Delegacias Especializadas no Atendimento às Mulheres o futuro dos direitos à nãoviolência Boletim Cndm Brasília DF v1 p 3353 2001 MACHADO Isadora Vier Da Dor no corpo à dor na alma uma leitura do conceito de violência psicológica da Lei Maria da Penha 2013 282f Tese Doutorado no Programa de PósGraduação Interdisciplinar em Ciências Humanas Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis 2013 MATOS Myllena Calazans CORTES Iáris O Processo de criação aprovação e implementação da Lei Maria da Penha In CAMPOS Carmen Hein de Org Lei Maria da Penha Comentada em uma perspectiva jurídicofeminista Rio de Janeiro Lumen Juris 2011 p3964 OST François Júpiter Hércule Hermes Tres modelos de juez Doxa Cuadernos de Filosofía del Derecho Alicante v VI n 14 p 170194 1993 PASINATO Wânia SANTOS Cecília MacDowell violência contra as Mulheres e violência de Gênero Notas sobre Estudos Feministas no Brasil 2005 Disponível em httpwwwnevusporgdownloadsdown083pdf Acesso em out de 2011 PIMENTEL Silvia PIOVESAN Flavia A Lei Maria da Penha na perspectiva da responsabilidade internacional do Brasil In Campos Carmen Hein de Org Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídicofeminista Rio de Janeiro Lumen Juris 2011 p101118 POUGY Lilia Guimarães Desafios políticos em tempos de Lei Maria da Penha Rev Katál Florianópolis n 1 v 13 p 76 85 janjun 2010 RIFIOTIS Theophilos Nos campos da violência diferença e positividade In Antropologia em Primeira Mão Programa de PósGraduação em Antropologia Social UFSC 19130 1997 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 129 RIFIOTIS Theophilos As delegacias especiais de proteção à mulher no Brasil e a judiciarização dos conflitos conjugais Sociedade e Estado Brasília n 1 v 19 p 85119 janjun 2004 RIFIOTIS Theophilos Judiciarização das relações sociais e estratégias de reconhecimento repensando a violência conjugal e a violência intrafamiliar Rev Katál Florianópolis n 2 v 11 p 225236 juldez 2008 ROJO Raúl Enrique La Justicia como instancia simbólica y la reconstrucción del sujeto de derecho Revista da Faculdade de Direito da UFRGS Porto Alegre nº 20 p 293304 2001 ROJO Raúl Enrique Jurisdição e civismo a criação de instâncias para dirimir conflitos no Brasil e no Quebec In ROJO Raúl Enrique Sociedade e direito no Quebec e no Brasil Porto Alegre Programas de Pósgraduação em Direito e em Sociologia da UFRGS 2003 p 2142 TEIXEIRA MENDES Regina Lúcia Dilemas da decisão judicial As representações de juízes brasileiros sobre o princípio do livre convencimento motivado 2008 267f Tese Doutorado em Direito Universidade Gama Filho Programa de Pósgraduação em Direito Rio de Janeiro 2008 VIANNA Luiz Werneck CARVALHO Maria Alice Rezende de MELO Manuel Palacios Cunha BURGOS Marcelo Baumann A Judicialização da política e das relações sociais no Brasil Rio de Janeiro Revan 1999 VITÓRIO Cinthia de Mello A aplicabilidade da Lei Maria da Penha no enfrentamento da violência de gênero Uma análise da suspensão condicional do processo 2010 157f Dissertação Mestrado Curso de História História Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2010 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 130 PRÁTICAS PROFISSIONAIS E SIGNIFICADOS ATRIBUÍDOS À VIOLÊNCIA CONTRA MULHERES NA PERSPECTIVA DE PROFISSIONAIS DE UMA CASA ABRIGO Scheila Krenkel1 Carmen Leontina Ojeda Ocampo Moré2 RESUMO O objetivo deste estudo qualitativo foi compreender as práticas profissionais e os significados atribuídos à violência contra mulheres no contexto de uma casaabrigo Foram entrevistadas 10 profissionais de uma casaabrigo localizada da Região Sul do Brasil A organização e análise dos dados tiveram como base a Grounded Theory e contaram com o auxílio do software Atlasti 70 Os resultados mostraram que a prática profissional é influenciada tanto pela qualidade nas relações cotidianas de trabalho quanto pelas intercorrências diárias e estrutura física da casaabrigo A violência em si foi significada a partir de adjetivos quanto ao não reconhecimento da condição humana da pessoa e também referida diretamente à violência contra a mulher Os desencadeadores da violência foram relacionados a estereótipos de gênero e violência na família de origem O retorno ou manutenção da relação com o autor da violência ocorreu principalmente por questões familiares e culturais provocando posturas distintas entre as profissionais Considerase necessário o desenvolvimento de programas de capacitação para profissionais que atuam no contexto da violência contra a mulher sobre questões que sustentem a multideterminação do fenômeno da violência visando seu aperfeiçoamento técnico instrumental Palavraschave Violência contra a mulher Práticas profissionais Casaabrigo Violência INTRODUÇÃO A violência contra a mulher é definida como todo o ato de violência de gênero que resulte ou possa resultar em dano físico sexual ou psicológico por ameaça coação ou privação da liberdade tanto na esfera pública quanto privada ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS ONU 1993 online Este tipo de violência é considerado uma violação dos direitos humanos e um problema de saúde pública No mundo 30 das mulheres que vivem em uma relação íntimaafetiva relatam já terem sofrido violência física ou sexual ao longo da relação e 38 dos assassinatos de mulheres são cometidos por seus parceiros ou ex ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE OMS 2016 No contexto nacional estimase que nove mulheres sofram violência física por minuto e que ocorrem 13 feminicídios a cada dia WAISELFISZ 1 Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC 2018 PósDoutoranda pelo Programa de PósGraduação em Psicologia UFSC Bolsista PNPDCAPES scheilakrenkelgmailcom 2 Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUCSP 2000 PósDoutora pela Universidade de Lisboa ULisboa 2018 Professora Titular do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC carmenloomgmailcom Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 131 2015 Os principais autores da violência são os parceiros ou exparceiros íntimos e na sua maioria utilizam arma de fogo objeto cortante ou estrangulamento para consumar seu crime WAISELFISZ 2015 No Brasil o problema da violência contra mulheres passou a ter mais visibilidade a partir da década de 1980 sendo pauta de debate nas áreas políticas e sociais Dentre as ações e medidas criadas para enfrentar este problema destacamse a Delegacia Especializada para o Atendimento de Mulheres DEAM 1985 a Secretaria de Políticas para Mulheres SPM 2003 a Lei Maria da Penha LMP 113402006 e a Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra Mulheres 2011 A Lei Maria da Penha foi um marco importante em termos de legislação contra a impunidade dos autores da violência e elaboração de mecanismos para reduzir a violência contra as mulheres integrando políticas públicas e órgãos responsáveis pela proteção da mulher BRASIL 2011 Neste âmbito está a criação de casasabrigo para mulheres em situação de violência que estão sob risco iminente de morte BRASIL 2011 Estes locais fazem parte do conjunto de setores que compõem a rede de suporte social destinada ao enfrentamento deste tipo de violência Entendese por rede de suporte social as práticas realizadas pelas instituições e organizações formais dirigidas à prestação de serviços e às ações de prevenção e promoção da saúde no contexto comunitário ORNELAS 2008 As casasabrigo são recursos institucionais de alta complexidade e tem por objetivo garantir a integridade física e psicológica das mulheres e seus filhos menores de 18 anos que estão em situação de violência e sob risco iminente de morte BRASIL 2011 No Brasil existem 64 casasabrigo 21 delas na região Sul onde foi realizado este estudo São locais temporários seguros e que ficam em endereço sigiloso BRASIL 2011 A equipe mínima da casaabrigo deve ser composta por psicóloga assistente social pedagoga profissional de educação infantil educadora social cozinheira e motorista BRASIL 2005 Os atendimentos realizados pelas profissionais da área da Psicologia Serviço Social e pelas educadoras sociais visam proporcionar informação e acesso a serviços instruindo as mulheres a reconhecerem seus direitos como cidadãs e os meios para efetiválos BRASIL 2011 O trabalho profissional desta equipe pautase no resgate da autoestima no favorecimento do exercício e reconstrução de cidadania na ruptura da violência e na busca pela igualdade de direitos das mulheres como protagonistas de sua própria história BRASIL 2005 2011 O acesso às casasabrigo ocorre por meio do encaminhamento de diferentes portas de entrada por serviços especializados ou não que compõem a rede de suporte e enfrentamento da violência contra a mulher Para serem encaminhadas para a casaabrigo as mulheres devem Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 132 necessariamente realizar a denúncia contra o autor da violência Boletim de Ocorrência Sua permanência no local é determinada de acordo com cada caso considerando o estado psicológico e condições de segurança necessárias para retomar socialmente suas vidas BRASIL 2005 Estudos realizados com profissionais que atendem mulheres em situação de violência eou com as próprias mulheres revelam que os principais desencadeadores da violência estão relacionados ao uso de álcool e outras drogas KRENKEL et al 2015 VIEIRA HASSE 2017 VILLELA et al 2011 ao fato de ter vivenciado violência na família de origem BEZERRA et al 2016 SANTOS CASTRO LIMA 2017 por ciúmes desconfiança dificuldades financeiras SANTOS et al 2017 e por estereótipos de gênero principalmente o machismo ACOSTA et al 2015 BEZERRA et al 2016 SANTOS et al 2017 Já os motivos elencados que levam as mulheres a manter ou retornar à relação com o autor da violência são terem filhos pequenos não conseguirem ou não acreditarem que podem viver sozinhas eou por terem um sentimento de afeto pelo companheiro COHEN IMACH 2013 KRENKEL et al 2015 OTHMAN GODDARD PITERMAN 2014 PORTO BUCHERMALUSCHKE 2014 Diante da situação da violência contra mulheres a importância do trabalho articulado e intersetorial desenvolvido pelos setores da rede de suporte social foi sinalizado como uma das principais medidas práticas para o enfrentamento da violência constatado em várias pesquisas teóricas e empíricas sobre o tema CANTERA CABEZAS 2002 LISBOA PINHEIRO 2005 MENEZES et al 2014 SANTOS FREITAS 2017 VIEIRA HASSE 2017 No estudo de Osis Pádua e Faúndes 2013 foram evidenciadas as barreiras que dificultavam o atendimento dos profissionais para com as mulheres em situação de violência nas DEAM tais como falta de reciclagem e treinamento de estrutura física de integração entre os órgãos responsáveis e a necessidade de abertura de mais casasabrigo Já o estudo de Vieira e Hasse 2017 mostrou diferentes sentimentos dos profissionais em torno da sua prática nesse contexto impotência frustração medo tristeza estresse e ansiedade além de se sentirem despreparados para lidarem com o tema da violência contra mulheres Ao realizar a revisão de literatura para este estudo nas bases de dados BVSPsi Pepsic Scopus e Social Service Abstract ambas por meio do Portal CAPES observouse que há maior número de artigos empíricos com profissionais da área da saúde sobretudo os da atenção primária Poucos artigos realizados com profissionais vinculados à rede de assistência social para o atendimento de mulheres em situação de violência foram encontrados o que revela uma lacuna na produção científica nesta área Assim diante do exposto o objetivo deste estudo foi Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 133 compreender as práticas profissionais e os significados atribuídos à violência contra mulheres no contexto de uma casaabrigo Esperase com esta pesquisa evidenciar o funcionamento de uma casaabrigo para mulheres em situação de violência como parte integrante do conjunto de setores da rede de suporte social e conhecer o que pensam as profissionais que atuam nesse contexto Também contribuir para ampliar a produção do conhecimento na área e fomentar reflexões sobre a importância da formação profissional em torno das questões que sustentem a multideterminação do fenômeno estudado Por meio deste estudo almejase ainda oferecer possibilidades de problematização quanto à desconstrução de significados que possam estar fundamentados em questões culturais fortemente influenciadas pelo sistema patriarcal enraizado nas diferentes estruturas sóciopolíticas da sociedade 1 MÉTODO Participaram desta pesquisa qualitativa 10 profissionais que trabalhavam em uma casa abrigo para mulheres em situação de violência localizada na Região Sul do Brasil Os critérios para inclusão das participantes neste estudo foram a Compor a equipe interdisciplinar permanente psicóloga assistente social coordenação local e pedagoga ou profissional de educação infantil ou educadora social de apoio técnico enfermeira nutricionista e advogada ou operacional da casaabrigo agente administrativo cozinheira auxiliar de conservação e limpeza segurança e motorista Brasil 2005 E b Ter pelo menos um ano de atuação profissional no atendimento de mulheres abrigadas por situação de violência Das 10 participantes oito eram educadoras sociais uma psicóloga e uma assistente social As educadoras sociais trabalhavam na casaabrigo em turnos de 12h por dia com jornada de trabalho 12x36 trabalha 12 horas descansa 36 A psicóloga e a assistente social trabalhavam em regime de 40 horas semanais na Secretaria de Assistência Social do município atendendo às mulheres abrigadas de duas a três vezes por semana enquanto estas permaneciam na casaabrigo eou conforme necessidade depois que saíam do local Todas as participantes eram do gênero feminino e tinham idade entre 23 e 64 anos Com relação à formação sete participantes tinham Ensino Superior Completo Destas somente duas a psicóloga e a assistente social atuavam na sua área Três profissionais tinham especialização mas em nenhum caso era voltada para o trabalho com situações de violência Quanto ao estado civil três eram casadas três solteiras duas divorciadas uma vivia em união estável e outra era viúva Seis profissionais tinham filhos e todas relataram ter uma crença religiosa com predomínio da religião católica sete participantes duas se declararam espíritas e uma cristã Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 134 Em cinco casos as profissionais começaram a trabalhar na casaabrigo por designação institucional ou seja por estarem trabalhando em outro setor da prefeitura e em razão da necessidade de profissionais no local elas foram transferidas As outras cinco participantes mencionaram que puderam escolher trabalhar na casaabrigo ao serem chamadas para assumir o cargo decorrente do concurso público no qual foram aprovadas Considerase importante mencionar que a escolha por trabalhar na casaabrigo para mulheres em situação de violência esteve pautada nos seguintes motivos trabalhar em algum setor do Centro de Referência de Assistência Social CRAS estar na área de formação conseguir conciliar trabalho e faculdade e em dois casos pela casaabrigo ficar próxima à residência das profissionais O tempo de atuação das 10 profissionais na casaabrigo variou entre três e 11 anos Para a coleta das informações utilizouse a entrevista semiestruturada composta por um roteiro de perguntas baseado no objetivo central do estudo Os itens norteadores da entrevista foram a dados sociodemográficos b prática profissional na casaabrigo c violência contra a mulher d relação das mulheres com o autor da violência As oito educadoras sociais foram convidadas pessoalmente na casaabrigo após o período de observação participante realizada pela primeira autora do estudo A psicóloga e a assistente social foram convidadas por telefone Todas as profissionais aceitaram o convite Com as educadoras sociais as entrevistas ocorreram na casaabrigo em local reservado durante seu horário de trabalho a pedido das participantes A coleta realizada com a psicóloga ocorreu na prefeitura e com a assistente social na biblioteca de uma universidade ambas fora de seu horário de trabalho Todas as entrevistas foram gravadas transcritas e posteriormente analisadas A organização e análise das informações coletadas foram com base na Grounded Theory CHARMAZ 2006 a qual propõe a utilização de diferentes referenciais teóricos associados à observação e análise do pesquisador A Grounded Theory também foi utilizada para a organização das informações seguindo uma proposta de etapas de codificação aberta axial e seletiva STRAUSS CORBIN 2008 Para auxiliar neste processo utilizouse o software para análise de dados qualitativos Atlasti 70 o qual possibilitou a leitura organização e sistematização dos dados em categorias de análise Por meio do processo descrito os resultados provenientes da análise realizada foram reunidos em três categorias e suas respectivas subcategorias conforme mostra a Figura 1 Após serem estabelecidas inicialmente as categorias passaram pela análise de uma pesquisadora experiente em pesquisa qualitativa e processo de categorização de dados a fim de revisar a adequação e coerência entre os resultados obtidos e o objetivo do estudo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 135 Figura 1 Categorias e subcategorias de análise Fonte Elaborado pelas autoras Esta pesquisa teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos Parecer consubstanciado nº 1183146 e todos os preceitos éticos da profissão foram seguidos Para manter o sigilo das informações e anonimato das participantes ao longo deste artigo elas serão identificadas pela letra P seguida do número gerado pela ordem de entrevista função e tempo de atuação TA na casaabrigo Por exemplo P1 educadora social TA 10 anos 2 RESULTADOS Diante das peculiaridades da casaabrigo onde foi realizada esta pesquisa e dos preceitos da pesquisa qualitativa tendo o contexto como gerador de significado para melhor compreensão dos resultados descritos nesta seção considerase importante apresentar o local em que trabalhavam as profissionais participantes deste estudo A casaabrigo em questão tem capacidade para acolher sete mulheres e seus filhos até 18 anos A Equipe é composta por uma coordenadora oito educadoras sociais uma faxineira uma cozinheira um motorista uma psicóloga e uma assistente social Quando chegam ao local as mulheres em situação de violência são recebidas pelas educadoras sociais que lhes oferecem alimentação banho e roupascalçados se necessário Após são chamadas para conversar e relatar os motivos que levaram ao encaminhamento para a casaabrigo Neste momento também são tiradas cópias Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 136 dos documentos das mulheres e filhos se estes as acompanham e é preenchida uma ficha com dados pessoais informações sobre sua saúde autor da violência filhos configuração familiar e pedese contato de pessoas que serão avisadas sobre a estada da mulher na casaabrigo e que eventualmente possam auxiliála de alguma maneira Os pertences das mulheres são revistados no intuito de ver se há objetos perfuro cortantes medicamentos eou drogas Além disso o celular é retirado e só é devolvido quando as mulheres saem da casaabrigo Isto para evitar contato com o autor da violência ou que este as localize tendo em vista a função protetiva da casaabrigo que fica em endereço sigiloso Caso as mulheres queiram conversar com amigos ou familiares elas podem telefonar diretamente da casaabrigo ou solicitar uma visita que ocorre na Secretaria de Assistência Social Após o relato sobre o motivo do encaminhamento para a casaabrigo são passadas para as mulheres abrigadas as regras da casa horários para acordar 7h e dormir 21h horário das refeições café da manhã almoço café da tarde e jantar e distribuição das tarefas lavar e secar a louça limpar a cozinha lavar sua própria roupa As crianças em idade escolar são matriculadas em uma escola próxima à casaabrigo e uma educadora social as acompanha no trajeto de ida e volta As demais crianças ficam com a mãe na casaabrigo Quanto à rotina de trabalho das profissionais do local listamse as seguintes atividades abrigamento das mulheres em situação de violência organização da casa atividades dascom as mulheres e refeições acompanhamento das mulheres a médicos advogados assistência social administração de medicamentos conforme horário prescrito atendimento psicológico e assistencial registro diário no livro de plantão As profissionais também auxiliam as mulheres abrigadas a buscar emprego e local para morar este último caso desejarem se separar do autor da violência As mulheres abrigadas saem da casaabrigo em duas situações quando estão em condições psicológicas e de segurança após aval das profissionais da psicologia e do serviço social ou por vontade própria tendo neste caso que assinar um termo de responsabilidade Em ambos os casos são encaminhadas para atendimento no Centro de Referência Especializado de Assistência Social CREAS recebem o número de telefone do CREAS e da casaabrigo e uma educadora social acompanha as mulheres até o local onde irão morar Com base nessa contextualização a seguir serão descritas as categorias e subcategorias que integram este artigo as quais apresentam a prática profissional na casaabrigo os significados atribuídos à relação das mulheres com o autor da violência além dos significados Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 137 da violência em si Cabe mencionar que neste estudo considerase autor da violência o parceiro ou exparceiro íntimo das mulheres abrigadas 21 Desenvolvimento da prática profissional frente à violência contra a mulher Esta categoria aborda as relações cotidianas de trabalho das profissionais entre elas e com os profissionais dos demais setores da rede de suporte social os aspectos que influenciam no seu trabalho e as práticas de autocuidado presentes no contexto do trabalho com mulheres em situação de violência Quanto às Relações cotidianas de trabalho as participantes relataram que existe uma ajuda mútua entre si trocas de favores e que trabalham unidas para fazer o melhor que podem No que tange à relação com profissionais dos demais setores da rede de suporte social foi mencionado sobre a boa relação com os profissionais da DEAM Escola Secretaria de Assistência Social e com a Polícia Civil Por outro lado a falta de conhecimento sobre a casaabrigo por parte dos demais profissionais dos Setores da Rede Ministério Público Conselho Tutelar p ex dificulta o trabalho na casaabrigo Estes profissionais nem sempre conhecem o fluxo de encaminhamento para a casaabrigo quando encaminhar e qual o funcionamento do local fazendo promessas às mulheres que não poderão ser cumpridas como por exemplo afirmar às mulheres que poderão sair da casaabrigo para trabalhar Conforme disseram as participantes esta situação acontece devido à alta rotatividade de profissionais nestes setores e por não serem passadas todas as informações necessárias a eles o que dificulta a relação com as mulheres abrigadas e sua adaptação no local As profissionais também mencionaram Aspectos que influenciam na prática profissional como a estrutura física precária da casaabrigo com mofos falta de pintura fiação antiga brinquedoteca inacabada além de não receberam insalubridade Ao serem questionadas sobre as principais intercorrências no cotidiano de trabalho as participantes citaram sobre a dificuldade que as mulheres abrigadas têm de falar sobre o que aconteceu eventuais brigas entre as mulheres que estão na casaabrigo e o não cumprimento das regras do local Também a mistura de demandas que são os casos em que não ocorreu violência contra mulheres e o fato de não ter espaço físico adequado para realizar atividades com as crianças e as mulheres abrigadas Ao serem questionadas sobre a percepção do trabalho em si as respostas das participantes variaram entre positiva e negativa A percepção positiva referiuse a gostarem de desempenhar seu trabalho doação ao trabalho a percepção do olhar sobre a violência que antes não tinham influenciar de maneira positiva a vida das mulheres após saírem do local e o Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 138 sentimento de gratificação quando o trabalho é reconhecido O relato a seguir ilustra a percepção positiva do trabalho tu poder ajudar um pouquinho botar uma sementinha às vezes ela cresce ela germina ela vai outras não mas é saber que se encontra uma pessoa na rua ela te agradece e tu nem sabe o que fez P7 educadora social TA 3 anos Por outro lado as participantes mencionaram percepções negativas como ter dificuldades de tratar cada mulher de maneira singular mediar as brigas que existem entre as abrigadas sentimento de frustração e falta de suporte psicológico para as profissionais Tendo em vista o contexto de trabalho que envolve situações de violência contra mulheres foi questionado às participantes sobre as Práticas de autocuidado sobre as quais foram relatadas féoração leitura sobre autoajuda atividades físicas jogos cantar e deixar as situações da porta pra dentro Como sugestões para contribuir com a melhora do desempenho e prática profissional as participantes referiramse à reforma da casaabrigo revisão das regras e da ficha de acolhimento qualificação profissional nas questões de violência de gênero e atendimento psicológico para as profissionais do local 22 Significados atribuídos à violência Esta categoria trata sobre os significados que as profissionais atribuem à violência por meio de adjetivos a ela vinculados e também se remetendo especificamente à violência contra mulheres No que se referem à Adjetivação da violência subcategoria esta nomeada no sentido do não reconhecimento da condição humana de uma pessoa as participantes mencionaram os diferentes tipos de violência que ocorrem na relação entre parceiros íntimos e entendem este fenômeno como a reunião de múltiplos fatores não como uma causa única Assim a violência foi adjetivada como falta de amor aquilo que causa impotência angústia eou opressão sofrimento humano cruel negar ajuda e tudo o que causa dor física ou emocional a outrem O relato a seguir ilustra esta subcategoria É uma forma de roubar a identidade uma forma de menosprezar o outro uma forma de oprimir de cercear e acho que não deve acontecer de jeito nenhum Enfim fazer o outro de joguete muitas vezes de controlar o outro por força ou poder de persuasão e pode se aparecer de diversas formas P10 psicóloga TA 3 anos As participantes também atribuíram o significado da violência voltada especificamente Contra a mulher Disseram que tudo o que influencia na autoestima da mulher é uma violência ou seja na percepção das profissionais aquilo que cause mal estar que faça com que a mulher não acredite em si mesma formas de reprimir ou de menosprezar é violência É tudo que traga Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 139 qualquer mal estar à mulher ou seja fazer com que não acredite em si mesma fazer pensar que ela não é capaz de nada acho que isso é a pior violência P6 educadora social TA 3 anos As participantes mencionaram ainda que para elas tudo o que faça uma mulher se sentir impotente ofendida maltratada ou que lhe cause dor também se caracteriza como violência Além disso o significado atribuído à violência remeteuse ao julgamento falsa mensagem de proteção e ao controle exercido pelo autor da violência 23 Significados atribuídos à relação da mulher com o autor da violência Esta categoria apresenta informações sobre os significados que as participantes atribuem ao desencadeamento da violência e ao retorno ou manutenção da relação das mulheres com o autor da violência quando estas saem da casaabrigo Para as participantes os Desencadeadores da violência ocorrem pelo fato da violência já acontecer na família de origem ou seja por já fazer parte da história de vida dessas mulheres e por terem este modelo de resolução de conflito submissão Também foram mencionados baixa autoestima e isolamento social da mulher provocado pelo autor da violência uso de álcooldrogas ciúmes desconfiança e infidelidade por parte do parceiro e dificuldades financeiras falta de tolerância e de saber ceder como uma dificuldade do casal Ainda sobre os desencadeadores da violência foram citados os estereótipos de gênero como machismo desorganização da casa falta de rotina correria do dia a dia e disputa pelo controle O depoimento a seguir exemplifica algumas dessas características Como a gente vive numa sociedade machista e paternalista que acaba vendo a mulher como objeto o homem se sente muito mais empoderado de fazer o que bem entende com ela e achar que isso não vai ter consequências E por outro lado a mulher que sofreu uma criação que foi machista por parte dos pais também acha que deve se submeter porque esse é o papel da mulher e é a vida que é assim mesmo e tem que aturar e nada pode ser feito P2 educadora social TA 3 anos Sobre o Retorno ou manutenção da relação com o autor da violência as participantes responderam de acordo com sua experiência no tema Disseram que o retorno ocorre após as mulheres saírem da casaabrigo por terem filhos pequenos porque acreditam que não são capazes de viver sozinhas e porque gostam do companheiro eu percebo que a mulher ela se esquece muito dela pelos filhos geralmente eu acho ou pelo medo de não conseguir ficar sozinha ou coisa assim mas eu acho que se ela quer dar uma chance todo mundo merece uma chance P8 educadora social TA 9 anos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 140 Nessa direção as participantes também se posicionaram sobre como se sentem na condição de profissionais em caso de retorno ou manutenção da relação com o autor da violência quando as mulheres saem da casaabrigo Para algumas participantes houve uma mudança de compreensão a respeito desde quando iniciaram o trabalho na casaabrigo até o momento da entrevista Para elas no início eram contra o retorno da relação depois com o tempo perceberam que com ajuda profissional é possível ter uma boa relação porque entendem que muitas vezes existe amor entre o casal Outras disseram que é uma decisão da mulher e que precisa ser respeitada que não cabe às profissionais julgar o que a mulher entende que seja melhor para ela tal como ilustra o relato a seguir Quem é gente pra julgar Ela é que tem que saber o que é melhor pra ela e a gente sabe que algumas mulheres elas não conseguem às vezes tem um vínculo emocional elas realmente gostam do parceiro elas amam então a gente trabalha com todas as suas angústias Eu particularmente acho que nem todas as pessoas tão prontas para certos tipos de mudança e às vezes nem querem P6 educadora social TA 3 anos Duas participantes relataram que sentem como se todo o seu trabalho fosse em vão Há a sensação de não ter ajudado e de ter feito um trabalho de conscientização que não serviu para nada e que invés de ser um trabalho que ajudasse as mulheres seguirem em frente o fato de elas voltarem a viver com o autor da violência é como caminhar para trás tal como ilustra o seguinte relato Eu acho que é caminhar para trás porque quando elas chegam aqui elas estão no fundo do poço e aqui é que elas têm a chance de seguir uma nova vida Aí sinto que o nosso serviço não valeu pra nada sabe P4 educadora social TA 3 anos 3 DISCUSSÃO Conforme os resultados expostos as profissionais da casaabrigo se referem à boa relação interpessoal que há entre elas e com alguns setores da rede de suporte social como ferramentas que auxiliam no desempenho de suas atividades laborais cotidianas Por outro lado a rotatividade de profissionais de alguns setores e a falta de articulação e conhecimento sobre as atribuições e fluxo da casaabrigo dificulta o trabalho dessas profissionais Este resultado corrobora com o estudo de Santos e Freitas 2017 em que a desarticulação entre os setores da rede foi apontada como um dos principais motivos que pode prejudicar a continuidade da assistência às mulheres em situação de violência por parte de seus parceiros ou ex Quanto ao desconhecimento da prática ter um fluxo que defina o trabalho em rede auxilia no conhecimento do trabalho de cada ator envolvido no processo e no melhor encaminhamento das mulheres que procuram ajuda diante de uma situação difícil como é o caso da violência Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 141 SANTOS FREITAS 2017 Só é possível haver interação adequada entre a rede de suporte social se houver um fluxo de atendimento em que todasos asos profissionais conheçam a atribuição competência e encaminhamento depara cada setor da rede MENEZES et al 2014 visando uma prática integrada com a proposta da política de enfrentamento da violência contra mulheres Nessa direção os profissionais da assistência social participantes do estudo de Vieira e Hasse 2017 apontam para a importância da intersetorialidade e articulação em rede no contexto de trabalho de combate à violência o que dificulta a intervenção profissional quando não ocorre A articulação entre os setores é fundamental pois quando essa intersetorialidade não existe os problemas das mulheres acabam por ser tratados de maneira isolada e parcial o que pode gerar efeitos indesejáveis diante das inúmeras vezes que sua história é repetida CANTERA CABEZAS 2002 Ou seja o fato de as mulheres não sentirem que sua demanda foi atendida e que não houve apoio por parte dos setores da rede pode aumentar a descrença nesses setores e na resolução do problema contribuindo para a permanência na situação de violência Além disso observouse nos resultados do presente estudo que não houve uma formação específica dessas profissionais para atenderem às demandas de violência contra mulheres e com base nos relatos podese inferir que também não existe uma formação específica para as os demais profissionais que atuam nesta rede de enfrentamento A capacitação profissional e formação continuada permitem que asos profissionais conheçam melhor o seu trabalho e aquele desenvolvido nos diferentes setores da rede visando a ampliação de recursos de enfrentamento da violência Ademais auxilia a garantir um atendimento de qualidade às mulheres com o cuidado de não realizar práticas machistas que a revitimizem pois o que acontece é um aprender a partir da prática cotidiana sem um espaço para reflexão sobre a situação de violência Os resultados desta pesquisa mostraram que a falta de estrutura física e a mistura de demandas influenciam na prática profissional corroborando com outros estudos similares OSIS PÁDUA FAÚNDES 2013 VIEIRA HASSE 2017 De acordo com Lisboa e Pinheiro 2005 as condições institucionais precárias estrutura física inadequada e dificuldades para o trabalho em rede dificultam a prática dos profissionais que atuam nesta área Esta é uma realidade não só desta mas de outras casasabrigo e de outros setores da rede de assistência ao enfrentamento da violência contra mulheres que não estão entre as prioridades de investimento nas agendas políticas do Estado Os programas e setores de atendimento da violência contra a mulher não são considerados como prioridade de investimento do poder público o que justifica Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 142 o pouco apoio técnico e financeiro na área LISBOA PINHEIRO 2005 Embora algumas das participantes deste estudo mencionaram percepções positivas sobre o seu trabalho a falta de uma estrutura física adequada afeta as condições de trabalho gera tensão no cotidiano laboral em que além de influenciar no desempenho da prática profissional também influencia no processo de autocuidado das profissionais que trabalham com uma demanda difícil e complexa e que não tem respaldo técnico adequado e acolhimento psicológico que as auxiliem no cotidiano de trabalho Outras participantes citaram percepções negativas sobre o trabalho desempenhado na casaabrigo principalmente no que se refere ao sentimento de frustração relacionado tanto à falta de recursos e condições de trabalho quanto para algumas delas ao se referirem ao retornomanutenção da mulher com o autor da violência O sentimento de frustração e impotência também foi mencionado pelos participantes das pesquisas de Vieira e Hasse 2017 e Villela et al 2011 relacionandoos ao despreparo para trabalhar com o tema da violência e à falta de capacitação que impacta no encaminhamento equivocado No que tange aos desencadeadores da violência observouse que foram relatados aqueles que são externos à relação e confirmados por outros estudos similares uso de álcool e outras drogas KRENKEL et al 2015 VIEIRA HASSE 2017 VILLELA et al 2011 violência na família de origem BEZERRA et al 2016 SANTOS et al 2017 ciúmes desconfiança e dificuldades financeiras SANTOS et al 2017 Destacase ainda características que marcam os estereótipos de gênero como o machismo ACOSTA et al 2015 BEZERRA et al 2016 SANTOS et al 2017 disputa pelo controle falta de rotina e desorganização da casa estas duas últimas atribuídas à mulher que fica em casa e que poderia se responsabilizar por isso Diante desses resultados por um lado conforme apontam Santos et al 2017 se percebe a violência como algo negativo mas ainda há a tendência de justificar o comportamento violento com fatores externos desresponsabilizando o autor da violência pelo ato Assim quando a soberania do homem se sente ameaçada tal como exemplificam os resultados desta pesquisa ciúmes desconfiança infidelidade a violência contra mulheres surge como forma de poder para manter a ordem LISBOA PINHEIRO 2005 Por outro evidenciam significados relacionados a estereótipos de gênero baseado em uma relação de poder caracterizada pela dominação do homem e submissão da mulher violência de gênero As participantes deste estudo são mulheres que cuidam de outras mulheres e sem perceber reproduzem padrões estereotipados sobre a violência que podem sustentar a repetição do seu ciclo Esses padrões de comportamento foram construídos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 143 culturalmente por meio de uma educação que diferencia os papéis de homens e mulheres na sociedade De acordo com o depoimento das participantes os principais motivos que levam as mulheres a permanecerem com o autor da violência são filhos dificuldade de acreditar que conseguem viver sozinhas ou por gostarem do companheiro confirmados também pelas pesquisas de Cohen Imach 2013 Krenkel et al 2015 e Othman Goddard e Piterman 2014 As psicólogas participantes do estudo de Porto e BucherMaluschke 2014 relataram ainda que a permanência na relação pelos filhos está atribuída mais uma vez a um papel social a ser cumprido pela mulher o de manter a família unida Como apontando por uma das participantes do presente estudo não cabe ao profissional julgar as mulheres mas respeitar sua decisão já que existem diferentes razões para a mulher retornar a conviver com o autor da violência O que se evidencia nos relatos das profissionais é que pela sua experiência observam que nem sempre as mulheres querem se separar do autor da violência elas querem apenas que a violência acabe ou seja romper com a violência e não necessariamente com a relação O papel profissional nesse contexto não é o de escolher pelas ou concordar com a decisão das mulheres mas fortalecêlas para estarem cientes dos seus direitos como cidadãs e de que há uma rede de proteção disposta a ajudálas caso venham a sofrer violência novamente Para entender os motivos que levam as mulheres a manter a relação com o autor da violência asos profissionais precisam compreender suas experiências e sentimentos SANTOS FREITAS 2017 além da história de vida das mulheres Assim ser empático à dor e à história do outro faz parte de um atendimento humanizado auxilia na construção do vínculo e gera um atendimento mais eficaz quanto às orientações encaminhamentos e à própria prevenção da repetição da violência SANTOS FREITAS 2017 Nessa direção os resultados sobre o significado da violência mostraram que a adjetivação dada ao fenômeno se remete a termos tanto de quem a pratica por exemplo falta de amor controle negar ajuda ao outro causar dor física ou emocional a outrem quanto de quem a sofre o que causa impotência angústia e opressão As participantes também relacionaram a violência com aquela praticada especificamente contra mulheres Supõese que esta relação tenha ocorrido devido à experiência profissional com a temática em que se coloca a mulher como uma das protagonistas da dinâmica violenta Isto revela que embora se reconheça a complexidade dos elementos em torno da violência e como estes se afetam e retroalimentam a essência da intervenção destas profissionais está relacionada diretamente ao significado que estas atribuem à violência contra a mulher Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 144 Este estudo mostrou que as relações de trabalho crenças sobre o tema da violência bem como a percepção das profissionais em torno dos desencadeadores e relação da mulher com o autor da violência servem de guia para sua prática cotidiana de trabalho e tomada de decisão frente à atuação profissional nesse contexto Nesse sentido a falta de 1 preparação voltada às questões de gênero e sensibilização das profissionais 2 articulação da casaabrigo com os demais setores da rede de suporte social e 3 condições adequadas de trabalho promovem uma prática profissional em que se reproduzem padrões sociais estereotipados e se misturam os conhecimentos adquiridos pela experiência pessoal e outros aprendidos em um cotidiano de trabalho sem treinamento adequado para o atendimento de uma demanda singular como a violência Isto pode resultar na falta de autocuidado gerando tensão estresse e exaustão profissional comprometendo tanto a saúde daquelas que ali trabalham como a qualidade do próprio acolhimento e fortalecimento das mulheres em situação de violência objetivo principal da casaabrigo CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente estudo buscou compreender as práticas profissionais e os significados atribuídos à violência contra mulheres no contexto de uma casaabrigo Os resultados mostraram que as condições relacionais e de estrutura física influenciam o desempenho das práticas profissionais podendo por um lado auxiliar a partir das boas relações interpessoais e por outro gerar tensão pela falta de condições estruturais adequadas A violência em si foi adjetivada por características de quem a sofre de quem a pratica e da violência praticada diretamente contra a mulher Quanto aos desencadeadores da violência as profissionais se referiram principalmente às questões quanto à presença de violência na família de origem Já ao retornomanutenção da relação com o autor da violência estiveram relacionados ao fato de terem filhos das mulheres acharem que não conseguem viver sozinhas ou por gostarem do companheiro O avanço e ineditismo deste estudo residem na possibilidade de dar voz às profissionais de uma casaabrigo tendo em vista que se encontra uma lacuna na literatura de pesquisas com estas es profissionais que embora invisibilizadas os pela produção do conhecimento são as os que em seu trabalho visam diretamente a garantia de direitos das mulheres em situação de violência Além disso esta pesquisa permitiu conhecer o cotidiano de trabalho em uma casa abrigo e os significados que as profissionais que lá estão atribuem à dinâmica presente no ciclo da violência contra mulher A relação entre os significados atribuídos à violência contra as mulheres e a prática profissional ocorre na medida em que conhecer como estas profissionais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 145 entendem a violência e seus desmembramentos permite compreender a implicação disto em seu cotidiano de trabalho e nas tomadas de decisão Cabe salientar que as participantes desta pesquisa são mulheres que cuidam de outras mulheres que não passaram por um processo de preparação ou sensibilização sobre o tema em questão Assim este estudo mostra que a criação de leis e propostas para o enfrentamento da violência devem ser repensadas a partir dos significados que asos profissionais atribuem à violência contra as mulheres e que são invisibilizados culturalmente por estarem sustentados em uma cultura patriarcal enraizada na sociedade Nesse sentido o presente estudo oferece respaldo teóricocientífico para o aperfeiçoamento das políticas públicas tanto no que se refere à inclusão constante da violência contra as mulheres na agenda política quanto às práticas profissionais desempenhadas nos setores da rede de assistência social para o atendimento de mulheres nessa situação O desenvolvimento de modelos de programas de capacitação e formação continuada para profissionais sobre a complexidade e multideterminação da violência e sobre concepção de gênero e aspectos da subjetividade humana seriam úteis visando o aperfeiçoamento técnico instrumental das os profissionais que trabalham com esta demanda específica Além de ampliar o conjunto de recursos para intervenção no cotidiano de trabalho com as capacitações o acolhimento psicológico às aos profissionais pode prevenir o desgaste emocional evitando ou diminuindo o absenteísmo e os afastamentos do trabalho por motivo de saúde Por meio desta pesquisa também foi possível observar um trabalho intersetorial diluído intuitivo e sem protocolos validados Assim ouvir profissionais de outros setores da rede de suporte social seria válido para compreender sua rotina de trabalho os significados atribuídos à violência e as lacunas presentes no atendimento a situações de violência familiar visando o desenvolvimento de estratégias para a melhora do atendimento à população e das condições de trabalho dasos profissionais Ainda acreditase que os resultados apresentados possam contribuir com a criação de indicadores qualitativos servindo como subsídio para que novos estudos possam avaliar as práticas profissionais realizadas em casasabrigo para mulheres em situação de violência Cabe lembrar que este estudo teve como participantes profissionais de uma casaabrigo onde são realizadas práticas específicas em uma determinada região do país Nesse sentido sugerese que os resultados apresentados sejam utilizados considerando o contexto estudado e que novas pesquisas sejam realizadas em outras casasabrigos de outros municípios e regiões a fim de comparar as similaridades e disparidades considerando a multiplicidade social e cultural presentes em todo o país Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 146 REFERÊNCIAS ACOSTA D F GOMES V L O FONSECA A D GOMES G C Violência contra a mulher por parceiro íntimo In visibilidade do problema Texto Contexto Enferm v 24 n 1 1217 2015 BEZERRA J F SILVA R M CAVALCANTI L F NASCIMENTO J L VIEIRA L J E F MOREIRA G A R Conceitos causas e repercussões da violência sexual contra a mulher na ótica de profissionais de saúde Rev Bras Promoç Saúde v 29 n 1 5159 2016 BRASIL Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres Termo de referência Apoio a casas abrigo e centros de referência Brasília DF 2005 BRASIL Secretaria de Políticas para as Mulheres Diretrizes Nacionais para o abrigamento de mulheres em situação de risco e violência Brasília DF 2011 CANTERA L M CABEZAS C La red interprofesional como fundamento para una intervención eficaz en el campo de la violencia de género In M T L Beltrán M J J Tomé E M G Benítez org Violencia y género Espanha Malaga 2002 CHARMAZ K Constructing Grounded Theory A Practical Guide through Qualitative Analysis Introducing Qualitative Methods series Sage Publications Ltd 2006 COHEN IMACH S C Mujeres maltratadas em la actualidad Apuntes desde la clínica y diagnóstico Buenos Aires Paidós 2013 KRENKEL S MORÉ C L O O CANTERA L M E JORGE S S S MOTTA C C L Resonances araing from sheltering in the family dinamics women in situations of violence Universitas Phycologica v 14 n 4 12451258 2015 LISBOA T K PINHEIRO E A A intervenção do Serviço Social junto à questão da violência contra a mulher Katálysis v 8 n 2 199210 2005 MENEZES P R M LIMA I S CORREIA C M SOUZA S S ERDMANN A L GOMES N P Process of dealing with violence against women Intersectoral coordination and full attention Saúde Sociedade v 23 n 3 77886 2014 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS ONU Declaration on the elimination of violence against women General Assembly Resolution nº ARES48104 Geneve United Nations 1993 Disponível em httpwwwunorgdocumentsgares48a48r104htm ORGANIZACIÓN MUNDIAL DE LA SALUD OMS Violencia contra la mujer Violencia de Pareja y violencia sexual contra la mujer 2016 Disponível em httpwwwwhointmediacentrefactsheetsfs239es ORNELAS J Psicologia Comunitária Lisboa Fim de século 2008 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 147 OSIS M J D PÁDUA K S FAÚNDES A Limitações no atendimento pelas delegacias especializadas das mulheres que sofrem violência sexual Boletim do Instituto de Saúde v 14 n 3 2013 OTHMAN S GODDARD C PITERMAN L Victims Barriers to discussing domestic violence in clinical consultations A qualitative enquiry Journal of Interpersonal Violence v 29 n 8 14971513 2014 PORTO M BUCHERMALUSCHKE J S N F A permanência de mulheres em situação de violência Considerações de psicólogas Psicologia Teoria e Pesquisa v 30 n 3 267 276 2014 SANTOS D F CASTRO D S LIMA E F A NETO L A MOURA M A V LEITE F M C Percepção de mulheres acerca da violência vivenciada Rev Fund Care Online v 9 n 1 193199 2017 SANTOS W J FREITAS M I F 2017 Fragilidades e potencialidades da rede de atendimento às mulheres em situação de violência por parceiro íntimo Rev Min Enferm v 21 n e1048 2017 STRAUSS A CORBIN J Pesquisa qualitativa Técnicas e procedimentos para o desenvolvimento de teoria fundamentada Porto Alegre Artmed 2008 VIEIRA E M HASSE M Percepções dos profissionais de uma rede intersetorial sobre o atendimento a mulheres em situação de violência Interface Botucatu v 21 n 60 5162 2017 WAISELFISZ J J Mapa da violência 2015 Homicídio de mulheres no Brasil Brasília DF 2015 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 148 VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA NOS RELACIONAMENTOS AFETIVOS A SUTIL DES ARTE DO ABUSO Mayara de Abreu Stuepp Cardoso1 RESUMO O presente artigo tem o objetivo de levantar aspectos da violência psicológica contra a mulher com recorte metodológico nas relações íntimas de afeto a partir de conceitos teóricos e com base no inciso II artigo 7º da Lei Nº 113402006 Lei Maria da Penha com enfoque nos impactos dessas violências para autodeterminação e autoestima da mulher Através de um estudo bibliográfico primeiramente serão abordados conceitos acerca da desigualdade de gênero e da maneira violenta de lidar com os conflitos conjugais nas relações de poder entre homens e mulheres Em seguida apontase contribuições teóricas sobre essa temática e fazse um recorte da parte legal para trabalhar as categorias definidas como violência psicológica Por fim tecese considerações para identificar possíveis condutas abusivas as consequências na vida da mulher e possiblidades de rompimento com a situação de violência Palavraschave Relacionamento Afetivo Violência Conjugal Violência Psicológica Abuso Psicológico Relacionamento Abusivo INTRODUÇÃO A violência contra a mulher é umas das formas de violação dos direitos humanos e uma questão de saúde pública segundo a ONU LISBOA PINHEIRO 2005 Até meados do século passado a violência contra a mulher praticada por seus esposos era legitimada por uma sociedade patriarcal e machista O espaço doméstico considerado privado era marcado por relações hierarquizadas em que filhos e esposas deviam obediência ao homem provedor e eram considerados relativamente incapazes BIFANO 2009 CUNHA 2015 DIAS 2019 HERMANN 2008 A lei 4121 de 1962 suprimiu a incapacidade relativa da mulher mas ainda colocava o homem como chefe da sociedade conjugal e detentor de maior poder de decisão Com a Lei do Divórcio em 1977 e a presença marcante dos movimentos feministas que lutavam por igualdade de direitos esse cenário começou a mudar Apesar de convenções internacionais que buscavam a eliminação das formas de violência contra a mulher ONU 1979 no Brasil somente com a Constituinte de 1988 é que foi afiançado o princípio da igualdade E somente em 2006 com a Lei Maria da Penha reconhecida pelo Organização das Nações Unidas como umas das três melhores legislações do mundo no enfrentamento à violência contra as mulheres 1Assistente Social do Poder Judiciário de Santa Catarina PJSC com lotação no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher Comarca da Capital Especialista em Psicopedagogia Institucional pela Faculdade Municipal de Palhoça FMP Especialização em Violência Doméstica em andamento mayaraascardosogmailcom Lattes httpbuscatextualcnpqbrbuscatextualvisualizacvdoidK8067461T7 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 149 e resultante de uma luta histórica dos movimentos feministas e de mulheres BRASIL 2006 é que as mulheres passam a ter assegurado o direito a proteção A violência de gênero e a maneira violenta de lidar com os conflitos conjugais SCHARAIBER et al 2005 apud NETO 2016 é um dos grandes problemas sociais que perpassa as esferas da cultura da segurança pública do sistema de justiça da política de saúde e assistência social e da luta por uma sociedade igualitária Nesse trabalho pretendese trazer alguns aspectos explicativos sobre o conceito de violência nas relações íntimas de afeto a luz da Lei Maria da Penha com enfoque na violência psicológica Um dos objetivos é elucidar aspectos da violência psicológica por vezes sutis naturalizados no cotidiano doméstico e familiar que tornam difícil a detecção de um comportamento abusivo Do mesmo modo a presença de violência conjugal pode acarretar prejuízos psicoemocionais e sociais à mulher em situação de violência ou desencadear processos agravados de violência de gênero Para tanto neste artigo utilizouse como metodologia de pesquisa a análise bibliográfica A construção deste trabalho também foi problematizada e mediada por conhecimentos adquiridos na experiência profissional como Assistente Social do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Comarca da Capital FlorianópolisSC Nessa perspectiva esperase contribuir no campo teórico sobre o tema e na luta pelos direitos das mulheres na nossa sociedade 1 DESENVOLVIMENTO O ambiente doméstico e familiar em tese remete a um lugar de proteção e cuidado Um lugar de afeto tendo em vista que as relações familiares na grande maioria têm origem em um elo de afetividade DIAS 2019 p 28 Todavia a família não é uma mônada e nem uma manada Implica busca da sobrevivência união separação conflitos disputa de autoridade FALEIROS 2014 p 537 Nesse contexto a violência intrafamiliar está ligada a relações hierarquizadas de poder e as dificuldades encontradas pelas famílias na efetivação das suas relações com o trabalho a educação os valores a droga e à trajetória familiar FALEIROS 2014 Segundo Scharaiber et al 2005 apud NETO 2016 p 196 a violência doméstica é proveniente de conflitos de gênero e da maneira violenta de lidar com eles A violência de gênero representa a radicalização da desigualdade nos relacionamentos entre homens e mulheres Nesse contexto os papéis diferenciados de gênero foram durante muitos anos legitimados nos valores associados a separação entre as esferas pública e privada Ao homem sempre coube o espaço público A mulher foi confinada nos limites da família e do lar o que Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 150 ensejou a formação de dois mundos um de dominação externo e produtor Outro de submissão interno e reprodutor DIAS 2019 p 2627 Nessa perspectiva o relacionamento conjugal é uma união que traz consigo muitos fatores a trajetória do indivíduo suas fantasias desejos expectativas e traumas que constituirão o cenário desta relação BIFANO et al 2009 p 102 As manifestações de violência no âmbito da unidade familiar não são tão incomuns como se pressupõe Essas manifestações perpassam as relações entre pais e filhos entre irmãos e irmãs cunhados e cunhadas sogros e sogras Enfim podendo envolver violência contra idosos crianças pessoas com deficiência e mulheres Geralmente contra os seus membros mais frágeis ou fragilizados devido as condições de idade saúde ou até em razão de gênero Contudo nesse artigo daremos enfoque as manifestações de violência entre o próprio casal A palavra casal trazida aqui representa as relações íntimas de afeto incluindo casais conjugais casais de namorados casais em união estável casais homoafetivos enfim independem das configurações estabelecidas Partindo dessas considerações tecese alguns apontamentos sobre a violência psicológica no âmbito das relações íntimas de afeto em seus aspectos conceituais conforme referencial bibliográfico pesquisado e dos aparatos legais 11 Violência Psicológica aspectos conceituais e legais Segundo a Lei Maria da Penha2 BRASIL 2006 configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte lesão sofrimentos físico sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial no âmbito da unidade doméstica no âmbito da família ou em qualquer relação íntima de afeto Em seu art 7ª a referida lei trata da violência psicológica que é um dos tipos de violência contra a mulher reconhecida e incorporada ao conceito de violência contra a mulher na Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência Doméstica conhecida como Convenção de Belém do Pará ratificada pelo Brasil em 1984 DIAS 2019 II a violência psicológica entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações comportamentos crenças e decisões mediante ameaça constrangimento humilhação manipulação isolamento vigilância constante perseguição contumaz insulto chantagem violação de sua intimidade ridicularização exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação BRASIL 2018 2 Lei N113402006 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 151 A lei é bastante ampla ao elucidar as condutas que caracterizam esse tipo de violência Apesar disso de acordo com Miller 1999 p 20 a violência nãofísica está lá de formas tão sutis que as mulheres não conseguem reconhecêla o abuso emocional psicológico social e econômico De acordo com Silva et al 2007 p 98 a principal diferença entre violência doméstica física e psicológica é que a primeira envolve atos de agressão corporal à vítima enquanto a segunda forma de agressão decorre de palavras gestos olhares a ela dirigidos sem necessariamente ocorrer o contato físico A violência tem como pano de fundo uma relação que mesmo desfeita ainda deixou questões inacabadas Muitas vezes permanecem vínculos afetivos permeados por mágoas ressentimentos ou dependência psicológica que impedem ou dificultam que a vítima possa identificar uma situação de violência Assim as formas de violência psicológica doméstica nem sempre são identificáveis pela vítima Elas podem aparecer diluídas ou seja não serem reconhecidas como tal por estarem associadas a fenômenos emocionais freqüentemente agravados por fatores tais como o álcool a perda do emprego problemas com os filhos sofrimento ou morte de familiares e outras situações de crise SILVA et al 2007 p 97 Nesse contexto a partir das referências estudadas SILVA et al 2007 DIAS 2019 HERMANN 2008 MILLER 1999 apontase algumas considerações importantes sobre a violência psicológica Um aspecto importante destacado por Silva et al 2007 é que a violência psicológica não afeta somente a vítima de forma direta Ela produz efeitos naqueles que convivem ou presenciam as violências Crianças que presenciam situações de violência sofrem violência pela via reflexa DIAS 2019 Nesse sentido Bocca 2016 p 152 colabora que As consequências dessa modalidade de violência indireta podem afetar todos os aspectos da vida da criança e do adolescente trazendo problemas psicológicos físicos comportamentais acadêmicos sexuais interpessoais e espirituais comprometendo a autoestima e estimulando a ocorrência de violência subsequente Nesse contexto crianças que presenciam violência conjugal enfrentam riscos elevados de apresentar ansiedade depressão baixo rendimento escolar baixa autoestima pesadelos conduta agressiva e probabilidade de sofrer abusos físicos sexuais e emocionais BOCCA 2016 p 152 Hermann 2008 discorre que as formas de violência doméstica não ocorrem de maneira isolada corroborando com Silva et al 2007 que aponta a violência psicológica como um possível fator desencadeante das situações de violência física A violência se inicia de uma forma lenta e silenciosa que progride em intensidade e consequências O autor de violência em suas primeiras manifestações não lança mão de agressões físicas mas parte para o cerceamento da liberdade individual da vítima avançando para o constrangimento e humilhação SILVA et al 2007 p 99 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 152 Os impactos observados na vida da mulher em relacionamentos abusivos vão desde uma autoestima baixa até dificuldades de visualizar possibilidades de saída da situação Aos poucos o companheiro vai destruindo a capacidade de autodeterminação e o poder de decisão da mulher que vivência um sentimento de culpa duplo Sentese culpada por não conseguir romper com o ciclo da violência ao mesmo tempo que atribui a culpa dos abusos e do possível fracasso do relacionamento a si mesma Esse processo vai abalando sua saúde psicológica e fragilizando suas redes sociais Percebese um processo de esvaziamento social em que a mulher em situação de violência vai sendo induzida a acreditar que a manutenção do relacionamento é a única alternativa possível Neto 2016 p 203 ao ouvir mulheres envolvidas em situação de violência afirma que Podese perceber seu esvaziamento social vindo da solidão e também sua fragilidade prevalece a dificuldade de lidar com situações agressivas e com a responsabilidade de denunciar alguém que as maltrata mas também é seu parceiro na educação dos filhos no sustento da casa e no relacionamento amoroso Ao mesmo tempo em que sofrem com os abusos podem dividir os momentos felizes os planos de vidas a criação dos filhos o afeto e a luta diária dificultando a percepção das condutas abusivas ou quando percebidas encontrando dificuldades para romper com o ciclo de violência e motivos para permanecer no relacionamento As razões de as mulheres permanecerem num relacionamento abusivo são tão complexas e tão mal compreendidas que poucas conseguem esclarecêlas para si mesmas MILLER 1999 p 119 Feix 2011 apud DIAS 2019 p 92 afirma que a violência psicológica está relacionada a todas as demais modalidades de violência doméstica Sua justificativa encontra se alicerçada na negativa ou impedimento à mulher de exercer sua liberdade e condições de alteridade em relação ao agressor Nessa direção Miller 1999 p 20 corrobora que a violência física em toda a sua enormidade e horror não é mais um segredo Entretanto a violência que não envolve dano físico ou sofrimentos corporais continua num canto escuro do armário para onde poucos querem olhar Hermann 2008 em sua obra Maria da Penha Lei com nome de Mulher aponta algumas dificuldades no desenvolvimento da investigação científica e quantificação estatística sobre a violência como a própria pesquisa de campo sobrevitimizar a mulher agredida ao relembrar a violência sofrida reprisando dores e sentimentos de vergonha e culpa resultado lógico da perda de autoestima A autora ainda discorre que Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 153 Outro obstáculo reside na própria natureza do conflito amplamente acobertado pelo manto do silêncio imposto tanto pelo temor como pelo amor As diversas formas de violência doméstica e familiar elencadas nos incisos do artigo 7º não ocorrem de maneira isolada A baixa autoestima e insegurança provocadas pela violência psicológica aliada às ofensas morais e às agressões físicas e sexuais secundadas pela negação de direitos patrimoniais propriedade rendam autonomia financeira são habitualmente concorrentes A isto se soma o fato de que a relação entre agressor e agredida é via de regra afetiva HERMANN 2008 p 123 Além disso sabese que condutas violentas em família são normalmente comportamentos aprendidos na família de origem e reproduzidos na vida adulta portanto cíclicos Agressores e vítimas comumente vivenciaram experiências de violência e abuso na infância tendendo a repetir essas vivências na fase adulta HERMANN 2008 p 133 Nesse contexto Gois e Oliveira 2019 trazem alguns aspectos sociais presentes na dinâmica da vivência conjugal A contextualização social da vivência conjugal e a análise dos pactos estabelecidos para a organização familiar na vigência da união conjugal assim como da organização de vida pósseparação podem favorecer a apreensão de possíveis reproduções de desigualdades no âmbito da ocupação profissional de rendimentos das relações de gênero no casamento assimetrias de poder na definição de questões da vida familiar como a administração de atividades domésticas e das relações com o meio social autoritarismo ou até violências nas relações parentais além de outras associadas a questões étnicoraciais GOIS OLIVEIRA 2019 p 52 Esses aspectos sociais são tão significativos quanto os aspetos psicológicos e suas consequências coadunam para a manutenção do ciclo de violência No intento de elucidar a violência psicológica Dias 2019 p 93 traz o conceito de gaslighting3 uma forma muito eficaz de abuso psicológico quando o parceiro distorce omite ou simplesmente inventa fatos com a intenção de fazer a vítima duvidar de seus sentimentos sua memória percepção e sanidade o que dá muito poder ao abusador Como a vítima perde a habilidade de confiar em suas próprias percepções passa a ser muito mais provável que ela permaneça no relacionamento Geralmente o abuso emocional acontece de forma gradual e sem que a vítima perceba Com o passar do tempo esses padrões abusivos aumentam fazendo com que a vítima se torne cada vez mais dependente da relação e muitas vezes se isole de amigos e familiares A violência psicológica na grande maioria das vezes não é trazida à tona no contexto das denúncias realizadas pelas mulheres em delegacias especializadas e no âmbito do Judiciário Existe um pacto velado silencioso e sutil Existe uma incompreensão uma 3 Dias 2019 p 93 com Base em Fernanda Vicente na obra 14 Sinais de que você é vítima de Gaslighting o abuso psicológico Sem dados catalográficos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 154 aceitação Ou será que nós mulheres ainda carregamos o peso do mundo nas costas O peso dos fracassos relacionais A culpa do comportamento do outro A responsabilidade do cuidado da casa e dos filhos É difícil apontar os motivos para o silêncio É difícil porque é justamente isso que a des arte do abuso psicológico faz Limita diminui controla isola Diante das reflexões realizadas apontase conclusivamente que tal categoria é a violência mais frequente e talvez seja a menos denunciada A vítima muitas vezes nem se dá conta de que agressões verbais silêncios prolongados tensões manipulações de atos e desejos configuram violência e devem ser denunciadas DIAS 2019 p 93 Com a explanação dos conceitos trazidos nesta secção esperase contribuir com o debate acadêmico e com a função social que a pesquisa desempenha tendo em vista a escassa produção acadêmica nessa área Diante dessas considerações pretendese trazer a seguir contribuições teóricas e práticas para identificação das condutas abusivas e de situações de violência psicológica assim como pensar possibilidades de saídas para as mulheres em situação de violência 12 Condutas abusivas nos relacionamentos afetivos e possibilidades de saída para mulher Os abusos nãofísicos nos relacionamentos afetivos aqui compreendidos no âmbito das relações íntimas de afeto representam a destruição acumulada do bemestar emocional psicológico social e econômico de uma mulher MILLER 1999 p 21 O que torna muito difícil a detecção da situação e a busca por alternativas de rompimento Segundo Góngora 2015 apud RAMOS 2017 p 104 as agressões emocionais seguem três grandes estratégias submissão pelo medo desqualificação da imagem e bloqueio das formas de sair da situação A presença desses elementos nos relacionamentos normalmente estão interligadas primeiro num processo lento e imperceptível a autoestima da mulher vai sendo destruída posteriormente vem o medo da solidão do abandono de perder os filhos E por fim a mulher não consegue visualizar possibilidades de uma vida diferente não consegue vislumbrar uma vida em que ela tome a direção Por esse lado Miller 1999 p 96 afirma que o abuso é o comportamento sistemático que segue um padrão específico com intenção de obter manter e exercer controle E explica que Assim o golpe emocional abrange uma ampla escala desde a crueldade constante com uma mulher até o trauma emocional Embora os seus ossos nunca sejam quebrados sua carne nunca seja queimada seu sangue nunca seja derramado mesmo assim ela é ferida Sem autoconfiança e autorespeito ela Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 155 vive vazia sem uma identidade pela qual se expressar Cede o controle de sua vida ao seu vitimizador Está impotente MILLER 1999 p 40 Referindose ao ciclo de violência a autora aponta que um dos motivos de permanência em relacionamentos abusivos são as permutas As permutas podem estar relacionadas a bens materiais ao medo da solidão ou na preocupação com o bemestar dos filhos Segundo a Miller 1999 p 123 há explicações conscientes e inconscientes que para ela justificam sua submissão ao abuso constante Por outra perspectiva a despeito das razões inconscientes ou não para a manutenção do ciclo de violência Miller 1999 p 232 acrescenta que a mulher vítima de abuso convive com um estresse tão grande que pode aterrorizála e tornala impotente Marques 2012 apud Dias 2019 p 7 corrobora alguns sinais indicativos que alertam para um possível relacionamento se tornar abusivo Antes mesmo de o relacionamento tornarse abusivo há sinais indicativos de cuidado apego rápido ciúme excessivo controle do tempo isolamento da família e dos amigos uso de linguagem derrogatória culpabilização da mulher e minimização dos abusos A vulnerabilidade própria do enamoramento e do apaixonamento convertese em cegueira Esses sinais podem ser percebidos logo no início do relacionamento mas a dificuldade está na órbita do enamoramento Com base na pesquisa realizada chegouse ao entendimento que perceber sinais tão sutis logo no início quando a paixão do encontro prevalece tratase de um processo difícil A partir da literatura pesquisada foi possível levantar alguns aspectos ainda que sutis presentes em relacionamentos abusivos visando ampliar a percepção tanto dos profissionais quanto das mulheres em situação de violência psicológica Conforme as referências pesquisadas alguns indicativos no comportamento do homem eou no padrão do relacionamento podem evidenciar um processo abusivo os quais intentase que a mulher consiga reconhecer Citase aqui alguns exemplos como resultado da pesquisa realizada comportamento de controle sobre as atitudes da mulher ciúmes excessivos isolamento dos amigos e familiares culpabilização da mulher pelos conflitos conjugais distorção da realidade constrangimento humilhação ofensas entre outros Partindo dessas considerações pretendese elencar algumas possibilidades de intervenção junto a essa problemática objetivando traçar apontamentos e reflexões que auxiliem mulheres em situação de violência a pensar estratégias de saída trazendo contribuições a partir dos referenciais estudados Nessa ótica a partir do estudo de Miller 1999 compreendese que o processo de saída de uma situação abusiva perpassa por três estágios principais O primeiro estágio consiste em Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 156 reestabelecer contatos sociais e sair da situação de isolamento Nessa etapa além da família e dos amigos é importante que a mulher possa compartilhar suas vivências com outras mulheres em situações semelhantes MILLER 1999 Num segundo momento apontado por Miller 1999 como o momento de reassumir o controle de sua vida a mulher passa por um processo de reconhecimento da situação abusiva No terceiro estágio a mulher vivencia uma fase de questionamentos tentando entender por que tal situação aconteceu com ela Nesse momento inúmeras indagações perpassam pela mulher todavia respostas dificilmente serão encontradas pois o sofrimento acontece porque acontece MILLER 1999 p 239 Nessa perspectiva Miller 1999 p 231 aponta que quando os programas começarem a lidar com o abuso nãofísico com a mesma preocupação que atualmente demonstram com a violência física eles começarão a minimizar o abuso físico para o qual inevitavelmente se caminha Como parte do processo de saída de um relacionamento abusivo partindo da leitura aqui empreendida é importante que a mulher possa contar com serviços especializados de atendimento conforme previstos na Lei Maria da Penha em seu art 35 I centros de atendimento integral e multidisciplinar para mulheres e respectivos dependentes em situação de violência doméstica e familiar II casasabrigos para mulheres e respectivos dependentes menores em situação de violência doméstica e familiar III delegacias núcleos de defensoria pública serviços de saúde e centros de perícia médicolegal especializados no atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar IV programas e campanhas de enfrentamento da violência doméstica e familiar V centros de educação e de reabilitação para os agressores BRASIL 2006 Nesse contexto estudado ressaltase uma das estratégias no enfrentamento às situações de violência contra a mulher o trabalho com homens em situação de violência Essa perspectiva visa atuar na reeducação dos homens pensando em promover reflexões sobre as questões de gênero sobre as dificuldades relacionais entre homens e mulheres que coadunam em situações conflituosas e nas maneiras violentas de lidar com elas Apesar da Lei Maria da Penha BRASIL 2006 recomendar a atenção aos homens autores de violência visando sua reeducação e assim prevenindo reincidências e agravamentos das situações poucas experiências tem atuado nessa perspectiva Beiras e Bronz 2016 retratam a metodologia de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 157 trabalho com grupos reflexivos4 no enfrentamento e prevenção da violência contra as mulheres no âmbito das relações familiares e de gênero Nessa direção consideramos importante pensar nos atos de violência sobre uma perspectiva relacional ancorada nas dinâmicas históricas e sociais públicas cotidianas e nos processos de socialização Por este motivo acreditamos na importância do trabalho grupal para promover reflexão sobre as relações que geram violências e as dinâmicas de socialização ligadas à construção de masculinidades feminilidades e a relação entre ambas Conversar sobre gênero implica pensar estas relações e posições diferenciadas observálas e estranhálas conjuntamente trocando experiências e vivências desconstruindo coletivamente ações atos e crenças e propondo outras formas de relação BEIRAS BRONZ 2016 p 21 Com esses apontamentos almejase demonstrar que apesar das inúmeras dificuldades para a mulher romper com a situação abusiva existem possibilidades e avanços em termos históricos legais e institucionais Como um dos resultados observados na pesquisa realizada chegouse ao entendimento que a percepção dos abusos pode ser um processo lento e dolorido trazendo dificuldades de auto reconhecimento das situações e de ações diante da fragilização provocada na mulher Por outro lado vislumbrase lançar mão de oportunidades à mulher Esperase demonstrar que ela pode ser fortalecida por aparatos legais e institucionais que lhe permitam ter uma escolha quando for o momento históricosocial e pessoal dela Com os avanços da legislação e dos serviços especializados temse dado visibilidade a mulher temse mostrado que ela não está só E não estar só pode ser uma semente na vida daquela mulher que um dia poderá criar raízes e se fortificar As portas das delegacias juizados promotorias centros de referência hospitais entre outros precisam estar sempre abertas e com profissionais dispostos e capacitados para a escuta Sem julgamentos sem cobranças apenas com o olhar voltado para um acolhimento humanizado e empático e garantidor de direitos CONSIDERAÇÕES FINAIS As políticas de atenção à Mulher e as legislações que visam garantir a sua proteção perante uma sociedade desigual com relações assimétricas de poder são recentes na história do nosso país Ainda que os aparatos legais sejam fundamentais e contribuam para a eliminação das formas de violência contra a mulher é imprescindível demarcar espaços de luta no cenário político Para tanto diante da pesquisa realizada ficou evidente que a necessidade de se estruturar e articular a rede de serviços para as mulheres em situação de violência capacitando 4 A partir da experiência de vinte anos de atuação do Instituto Noos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 158 equipes nas delegacias especializadas ampliando e capacitando equipes multidisciplinares nos juizados especializados pensando novas estratégias na rede de enfrentamento às violências promovendo ações de reeducação aos homens como forma de evitar a reincidência da violência ou de seus agravamentos Tendo em vista o estudo realizado apontase que a violência contra a mulher é uma das expressões da questão social na sociedade capitalista e é preciso atuar no enfrentamento dessa expressão assim como no fortalecimento da mulher Desta forma intencionase que este trabalho contribua para uma reflexão crítica sobre as violências contra a mulher buscando ampliar a pesquisa sobre a temática da violência psicológica por vezes invisível ou vista como sútil Diante da literatura pesquisada ficou evidente que a violência psicológica apesar de não deixar marcas visíveis trás consequências graves para a vida da mulher Esperase que esse trabalho possa dar visibilidade para as formas de violência psicológica contra a mulher bem como demonstrar para a sociedade o quão difícil é para uma mulher em situação de violência opressão com sua autoestima e autodeterminação sendo constantemente destruídas romper com um ciclo de violência e sair de um relacionamento abusivo É importante destacar que nessa pesquisa foi dada maior ênfase às discussões sobre violência psicológica nos relacionamentos afetivos Todavia alguns aspectos pesquisados demonstraram que essas violências podem conduzir a mulher para uma situação de vulnerabilidade e isolamento social desencadeando processos subjetivos de sofrimento eou se apresentando como um primeiro cenário antes de uma situação agravada de violência física A partir dos referencias pesquisados observouse que essas violências por um lado podem deixar marcas não visíveis e por outro podem ser tão marcantes quantos as violências físicas causando danos emocionais e diminuição da autoestima Outro indicativo levantando a partir dos estudos realizados relacionase com os demais sujeitos envolvidos em situações de violência conjugal A pesar de não ser o objetivo desse estudo esperase estimular a pesquisa sobre as violências afetando crianças e suas consequências Assim não se pretende esgotar a discussão sobre a temática e sim estimular a pesquisa e o desenvolvimento de projetos e serviços que possam contribuir com a efetivação dos direitos das mulheres e traçar novas possibilidades no enfrentamento à problemática da mulher em situação de violência REFERÊNCIAS BEIRAS Adriano BRONZ Alan Metodologia de grupos reflexivos de gênero Rio de Janeiro Instituto Noos 2016 Disponível em httpnoosorgbrwp contentuploads201808MetodologiaNoosPDFfinalpdf Acesso em 09 set 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 159 BIFANO A H et al Vulnerabilidade do feminino homicídios contra a esposa In Filhos vítimas do tempo da violência a família a criança e o adolescente 2 ed rev e atual Curitiba Juruá 2009 p 89 104 BOCCA A M A violência conjugal e as consequências para crianças e adolescentes na interpretação das assistentes sociais do Poder Judiciário de Santa Catarina In O serviço social no Poder Judiciário de Santa Catarina caderno III Florianópolis Insular 2016 p 151160 BRASIL Lei no 4121 DE 27 de agosto de 1962 Dispõe sobre a situação jurídica da mulher casada Brasília DF Presidência da República 1962 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03leis19501969l4121htm Acesso em 16 ago 2019 BRASIL Lei nº 6515 DE 26 de dezembro de 1977 Regula os casos de dissolução da sociedade conjugal e do casamento seus efeitos e respectivos processos e dá outras providências Brasília DF Presidência da República 1977 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03LEISL6515htm Acesso em 16 ago 2019 BRASIL Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 Lei Maria da Penha Brasília DF Presidência da República 2006 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato200420062006leil11340htm Acesso em 17 maio 2019 BRASIL Lei Nº 13772 de dezembro de 2018 Altera a Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 Lei Maria da Penha e o DecretoLei nº 2848 de 7 de dezembro de 1940 Código Penal Brasília DF Presidência da República 2018 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Ato201520182018LeiL13772htm Acesso em 17 maio 2019 CUNHA Rogério Sanches PINTO Ronaldo Batista Violência doméstica Lei Maria da Penha comentada artigo por artigo 6 ed rev atual e ampl São Paulo Revista dos Tribunais 2015 335 p DIAS Maria Berenice A Lei Maria da Penha na Justiça 5ª ed rev ampl e atual Salvador Editora Juspodivm 2019 FALEIROS Vicente de Paula A Violência Contra a Pessoa Idosa entrevista especial com Vicente de Paula Faleiros In R Pol Públ São Luís v 18 n 2 p 535538 juldez 2014 Disponível em httpswwwprefeituraspgovbrcidadesecretariasuploadassistenciasocialaula20320F aleiros20sobre20VIOLENCIACONTRAAPESSOAIDOSApdf Acesso 27 jun 2019 GOIS Dalva de Azevedo de OLIVEIRA Rita C S Serviço Social na Justiça da Família demandas contemporâneas do exercício profissional São Paulo Cortez 2019 Coleção temas sociojurídicos coordenação Maria Liduína de Oliveira e Silva Silvia Tejadas HERMANN Leda Maria Maria da Penha lei com nome de mulher violência doméstica e familiar considerações à Lei nº 113402006 comentada artigo por artigo CampinasSP Servanda 2008 232 p Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 160 LISBOA Teresa Kleba PINHEIRO Eliane Aparecida A intervenção do Serviço Social junto à questão da violência contra a mulher Katálysis v 8 n 2 juldez 2005 FlorianópolisSC p 199210 Disponível em httpsperiodicosufscbrindexphpkatalysisarticleview61115675 Acesso em 27 jun 2019 MILLER Mary S Feridas Invisíveis Abuso não físico contra mulheres São Paulo Summus 1999 NETO M S de S O atendimento psicossocial na área da violência doméstica no fórum de justiça In O serviço social no Poder Judiciário de Santa Catarina caderno III Florianópolis Insular 2016 p 195204 RAMOS A L S Dano Psíquico como crime de lesão corporal na violência doméstica Florianópolis Empório do Direito 2017 SILVA Luciane L COELHO Elza B S CAPONI Sandra N C Violência silenciosa violência psicológica como condição da violência física doméstica In Interface Comunic Saúde Educ v11 n21 p93103 janabr 2007 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS141432832007000100009 Acesso em 08 set 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 161 SERVIÇO SOCIAL NO SOCIOJURÍDICO E ATENDIMENTO ÀS MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR Emilly Marques Tenorio 1 RESUMO O enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher ganha maior densidade jurídica no Brasil com a promulgação da Lei 113402006 Lei Maria da Penha a qual prevê a possibilidade de intervenção de equipe multidisciplinar nessas ações judiciais O artigo objetiva identificar direcionamentos da proteção social oferecida às mulheres que acionam a Lei Maria da Penha e as possíveis contribuições do Serviço Social diante dessas situações de violência Metodologicamente realizamos pesquisa documental em processos judiciais de medidas protetivas de urgência indicados por informanteschave no âmbito do judiciário Como resultados apontamos à limitação das respostas judiciais e o direcionamento dado prioritariamente às medidas de contenção doa agressora Consideramos que o exercício profissional doa assistente social pode fortalecer outros encaminhamentos direcionados à assistência da mulher e de sua família e à prevenção de novas violências sem perder de vista o horizonte do enfrentamento estrutural dessas opressões para além das instituições Palavraschave Serviço Social Lei Maria da Penha Medidas de proteção de urgência Proteção social INTRODUÇÃO O presente texto é fruto de reflexões desenvolvidas em dissertação de mestrado em Política Social cujo objetivo foi a partir do debate acerca da proteção social analisar ações de requisição judicial de medidas protetivas de urgência MPUs tipificadas na Lei 113402006 conhecida como Lei Maria da Penha LMP A pesquisa ocorreu em uma vara especializada no enfrentamento à violência familiar e doméstica contra a mulher e suas análise e resultados foram aprofundadas e publicadas em obra posterior TENORIO 2018 Considerando que essa legislação prevê a possibilidade de intervenção de equipe multidisciplinar nas ações judiciais nesse artigo a partir dos elementos trazidos no livro citado voltamonos a pensar principalmente quanto aos dilemas do trabalho doa assistente social frente à essa demanda judicial Ou seja os desafios do exercício profissional no sociojurídico e as limitações da proteção social não oferecida às mulheres bem como quanto das próprias contradiçõeslimites quando ao acionamento do Direito para uma transformação social radical 1 Assistente Social do Tribunal de Justiça do Espírito Santo Mestra em Política Social pela Universidade Federal do Espírito Santo 2017 Email emillypmarquesgmailcom Link do lattes httplattescnpqbr6527136870926431 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 162 Compreendemos a violência e a desigualdade entre homens e mulheres em uma perspectiva antinaturalista ou seja enquanto fenômeno socialmente construído e estrutural de um sistema heteropatriarcalracistacapitalista que embora se expresse nas relações interpessoais está dialeticamente articulado na estrutura e superestrutura dessa sociedade Dessa forma tal fenômeno não é apenas uma questão jurídica que se resolveria apenas com o aprimoramento de leis ou com a criação de melhores projetos de enfrentamento à violência sendo esses necessários e relevantes mas insuficientes sem a compreensão da totalidade da vida social e das raízes desse sistema De acordo com Santos 2009 p 77 Muitos segmentos entram constantemente no beco sem saída dos projetos de eliminação de todas as formas de violência contra a mulher pela eliminação do racismo por um mundo com liberdade de orientação e expressão sexual sem acenar para as determinações do tipo de sociabilidade vigente que fundada na afirmação do valor de troca na desigualdade e na exploração do trabalho eximese do atendimento às reais necessidades humanas Foi nesse caminho acompanhada pela crítica marxista do Direito que percorremos o debate acerca da proteção social oferecida judicialmente às mulheres que requisitaram medidas de proteção de urgência MPUs em virtude de violência doméstica ou familiar No processo de sucessivas aproximações com a realidade buscamos dar voz a esses anseios e necessidades materializados nas histórias de muitas Marias2 Em outras palavras pretendemos trazer uma discussão sobre o direito em uma crítica ontológica que vai abordálo na análise de situações concretas Nesse artigo nos limitaremos aos elementos suscitados pelas trajetórias dessas mulheres principalmente aqueles em que visualizamos possíveis contribuições do Serviço Social Dessa forma suas histórias não serão abordadas de forma narrativa nesse artigo3 mas sim as sínteses reflexivas que elas provocaram No que diz respeito à metodologia realizamos uma pesquisa documental de natureza qualitativa em processos de requisição de MPUs Nossa amostragem foi formada a partir da indicação de informanteschave de uma vara especializada em violência doméstica e familiar contra a mulher Dentre osas informantes contemplamos oa magistradoa servidora do cartório da vara e a equipe técnica especializada composta por profissionais do Serviço Social e da Psicologia Após o processo de inclusãoexclusão da amostra obtivemos vinte processos incluídos para análise 2 Utilizamos o pseudônimo de Marias para identificar nossos sujeitos da pesquisa 3 As histórias das nossas Marias encontramse narradas em Tenorio 2018 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 163 Na maioria das situações estudadas quinze a violência envolvia indivíduos que têm ou tinham uma relação afetiva namoradosas companheirosas cônjuges o que está de acordo com os elementos trazidos pelo Mapa da Violência de 2015 de que nas agressões cujas vítimas são mulheres preponderam os parceiros e exparceiros na taxa de 351 WAISELFISZ 2015 Em menor número quatro no universo estudado tratavase de outras relações de parentesco mãefilho madrasta paiavô e enteadafilha e neta Além desses o caso de uma idosa onde as filhas requereram a medida para a mãe No entanto nessa situação a idosa manifestou que não sofreu nenhum tipo de violência no relacionamento conjugal Consideramos que embora a pesquisa trouxe alguns elementos do estado do Espírito Santo eles não estão dissociados e nem são tão distintos do cenário brasileiro em geral podendo trazer importantes subsídios reflexivos para asos que pesquisam atuam ou acessam à LMP Especialmente para osas assistentes sociais mesmo osas que trabalham em outras áreas tendo em vista conforme afirmado por Borgianni 2013 p 410 que a profissão é uma só e atua em diferentes espaços sociocupacionais entre eles os que têm interface com o jurídico e tal situação pode perpassar os diferentes serviços e políticas sociais 1 ÁREA SOCIOJURÍDICA PROTEÇÃO SOCIAL E LEI MARIA DA PENHA Achar a porta que esqueceram de fechar O beco com saída A porta sem chave A vida Paulo Leminski Buscamos nesse item fornecermos elementos para pensar a profissão no judiciário e com isso buscar um trabalho profissional direcionado para o possível fortalecimento da proteção social considerando a particularidade do atendimento às mulheres em situação de violência que chegam a esse espaço jurídico O poder judiciário compõe ao lado de instituições como o Ministério Público Delegacias Instituições de Acolhimento dentre outras o que se convencionou chamar de área sociojurídica pela sua interface com o Direito com o jurídico BORGIANNI 2013 Diante disto quando propomos refletir sobre o trabalho profissional resgatamos as reflexões de Iamamoto 2005 p79 de que Não se pode pensar a profissão no processo de reprodução das relações sociais independente das organizações institucionais a que se vincula como se a atividade profissional se encerrasse em si mesma e seus efeitos sociais derivassem exclusivamente da atuação profissional Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 164 Sendo assim para abordarmos a atuação profissional problematizamos o próprio Direito considerandoo como área de conhecimento que também ganha materialidade nas instituições do sistema de justiça Borgianni 2013 p 412 nos aponta para a preocupação tanto com a crescente judicialização dos conflitos sociais quanto com a justiciabilidade dos direitos sociais ou seja as demandas sociais os litígios os conflitos cada vez mais estão sendo resolvidos ou acionados judicialmente Tais elementos demonstram que as expressões da questão social não podem ser reduzidas a problemas jurídicos tendo em vista que sua base material de existência de encontra na esfera econômica e material Portanto sem alterações nessas estruturas não obtemos transformações substantivas Por isso compreender os limites de desproteção dessa esfera é fundamental para sairmos tanto de uma análise endógena fatalista ou messiânica4 da profissão quanto de uma perspectiva salvacionista do acionamento do direito Santos 2016 também nos alerta que começar pela lei é o ponto de partida da análise liberal e para nós ao utilizarmos o método materialista históricodialético precisamos partir da realidade concreta do cotidiano para portanto problematizarmos as leis Fazse necessário tecer mediações entre as mulheres que atendemos diariamente e a totalidade da vida social para procurar entender que algumas legislações são conquistas advindas de lutas legítimas e no caso da lei em tela fruto dos movimentos feministas Entretanto urge demarcar que o acionamento do sistema jurídico classista racista e androcêntrico tende também a oferecer risco a nós mulheres O Direito aqui é entendido a partir de uma perspectiva lukácsiana enquanto um complexo social parcial que compõe a totalidade complexo de complexos da reprodução do ser social Nessa direção Iasi 2005 afirma que as formas jurídicas se vinculam às formas societárias de que fazem parte Sendo assim o Direito enquanto complexo institucionalizado na sociedade capitalista manifesta o interesse burguês como interesse universal mantendose aparentemente coeso homogêneo frente às diferenciações sociais Porém frente às contradições o seu anverso também se realiza como espaço de disputa Portanto passível de ser penetrado eou redirecionado para outras possibilidades de realização na perspectiva de conquistas civilizatórias da classe trabalhadora Cisne 2015b considerando essas questões reafirma a importância da luta por direitos humanos e portanto pelos legítimos direitos das mulheres embora advirta que os direitos 4 As posturas críticas fatalistas ou messiânicas da profissão foram sinalizadas por IAMAMOTO 2000 2013 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 165 formalmente legalizados não podem ser um fim em si mesmo e que todos os seus limites e contradições devem ser considerados em uma sociedade que possui desigualdades de classes raçaetnia e sexo Em decorrência disso precisamos refletir que a subjugação feminina é funcional ao capitalismo e como o Direito é uma das instituições que ideologicamente protege este sistema possivelmente muitos serão os limites em seu acionamento na superação da violência contra a mulher Sendo assim temos uma contradição fundamental entre a existência dos direitos sociais e a realidade capitalista permeada por explorações apropriações e opressões Para tanto analisamos a Lei Maria da Penha LMP numa perspectiva de totalidade histórica pensando na proteção social via judicialização conferida a essas mulheres em um determinado tempo histórico sob condições socialmente determinadas Tradicionalmente o judiciário brasileiro tem atuado principalmente no Direito Penal com o viés coercitivo punitivo conforme denúncias principalmente de autoresas da criminologia crítica Trazemos primeiramente a reflexão de Andrade 2012 p 131 em alusão ao sistema penal ao afirmar que ele além de estruturalmente incapaz de oferecer alguma proteção à mulher como a única resposta que está capacitado a acionar o castigo é desigualmente distribuída e não cumpre as funções preventivas intimidatória e reabilitadora que se lhe atribuem Com as inovações legais da LMP são exigidas do judiciário nessa temática atribuições em articulação com as políticas públicas Partimos da premissa que a LMP prevê um tripé em sua operacionalização contenção prevenção e assistência conforme apontado em Tenorio 2018 p 36 grifos nossos as decisões de contenção são aquelas que englobam ações repressivas de afastamento privação de direitos e de responsabilização voltadas para as pessoas que perpetraram a violência as de assistência são aquelas que fortalecem a rede de atendimento deferem ações assistenciais e garantia de outros direitos ademais contemplam encaminhamento a benefícios políticas e serviços públicos assistência judiciária acolhimento institucional e abrangem decisões cíveis como separação guarda e alimentos e as de prevenção são aquelas que contemplam ações educativas que interferem nos padrões sexistas orientações às pessoas atendidas ou inserção em grupos reflexivos e serviços de acompanhamento tratamento Diante dessa classificação dos encaminhamentos fornecidos às mulheres em situação de violência tipificadas na Lei Maria da Penha e na análise das histórias de vida das Marias elencamos algumas premissas que precisam ser pensadas no atendimento feito pelo Serviço Social a a violência atinge mulheres de todas as classes sociais embora suas trajetórias sejam diferenciadas b a violência doméstica e familiar é de difícil rompimento mas dependendo da Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 166 classe social se pode ter mais suportes para saída c a permanência nos relacionamentos não decorre apenas da dependência econômica apesar de esse ser um grande fator para as mulheres pobres d o rompimento da violência via sistema penal não é indolor gera angústias e expectativas e a mulher por vezes é exposta e questionada ao prosseguir com uma denúncia ao precisar comprovar o que vivenciou e precisa estar amparada e fortalecida De acordo com o Instituto de Pesquisa DataSenado 2017 dentre as entrevistadas apenas 26 consideram que a Lei Maria da Penha protege as mulheres enquanto 53 disseram que protege apenas em parte e 20 responderam que não protege Essa percepção da desproteção se amplia entre aquelas que afirmam terem vivenciado algum tipo de violência doméstica ou familiar quando o percentual é de 29 e de 17 dentre as que disseram não ter sofrido violência A pesquisa não traz uma conceituação de qual concepção de proteção se refere porém consideramos que esses dados denotam a importância de ultrapassarmos apenas o reconhecimento da relevância dessa lei e cada vez mais identificar quais avanços concretos tivemos na proteção das mulheres em nossa sociedade e quais lacunas a serem problematizadas e resolvidas em direção à ampliação da proteção social De acordo com Pasinato 2017 em referência a essa pesquisa ainda há sobrevalorização de que proteção equivale à punição Vale observar por exemplo essa discrepância entre a crença na capacidade da Lei de oferecer proteção para as mulheres 26 das entrevistadas afirmam isso e uma sobrevalorização da resposta punitiva 97 consideram que o agressor deve ser processado independentemente da vontade da vítima Esses números sugerem que estamos falhando em contar para a sociedade que a Lei oferece muito mais oportunidades de proteção prevenção e acesso a direitos para as mulheres que podem contribuir para que saiam da situação de violência Há uma potencialidade transformadora na Lei que não tem sido aplicada e que permanece também desconhecida para a população Consideramos que o Serviço Social inserido nesse espaço institucional reconhecidamente seletivo de acordo principalmente com os pertencimentos referentes à raçaetnia e classe social e punitivista deve atuar em direção ao fortalecimento às ações de assistência e prevenção embora vivencie conforme apontado por Borgianni 2013 p 413 As determinações complexas que emanam das polaridades antitéticas próprias da esfera jurídica por exemplo aquelas que considero uma das mais marcantes garantir direitos em um espaço ou sistema que é também aquele onde se vai responsabilizar civil ou criminalmente alguém Contudo em tal atuação também estão imbricados os limites da função da própria instituição e dos demais serviços ofertados às mulheres as condições de trabalho vivenciadas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 167 pelosas profissionais que as atendem e a própria estrutura da sociedade Concluímos que a violência possui dimensões culturais no entanto não se limita a estas Reproduzse também via discursos em ações e no direcionamento das políticas sociais fundamentase nas relações sociais estabelecidas nessa sociedade perceptíveis no espaço doméstico no trabalho no espaço público no governo e nas decisões políticas tomadas No próximo item adentramos mais nesses elementos que impactam o exercício profissional e refletimos sobre algumas questões que consideramos relevantes para o atendimento a essa demanda social 2 APONTAMENTOS PARA O EXERCÍCIO PROFISSIONAL NO ATENDIMENTO À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA Tem uma verdade que se carece de aprender do encoberto e que ninguém não ensina o beco para a liberdade se fazer Guimarães Rosa Inicialmente ressaltamos que o que pretendemos indicar são alguns elementos para propiciar a reflexão e a sistematização de uma práxis profissional no atendimento às mulheres que chegam aos serviços e especialmente ao espaço sociojurídico Cabe a cada profissional individual e coletivamente como tarefa social e política questionar ou aprofundar tais elementos Dessa forma não há receituários ou modelos a serem seguidos o que iria de encontro a nossa perspectiva materialista históricadialética que analisa os fenômenos em sua totalidade histórica em movimentos permeados por contradições Quando assumimos esse entendimento de compreender as determinações sóciohistóricas podemos entender que já que a desigualdade sexual racial e de classes não é ontológica do ser social ela também pode ser socialmente superada contudo nosso horizonte precisa ser a alteração estrutural desse sistema Nessa análise tomamos como referencial a produção do feminismo materialista francófono e sua teorização sobre relações sociais de sexo FERREIRA et al 2014 DEVREUX 2011 que busca uma compreensão crítica da realidade para nela intervir na luta contra as relações patriarcalracistacapitalistas e em defesa da emancipação humana CISNE 2014 p 135 Gurgel 2015 também revela a natureza contraditória entre os movimentos feministas e o Estado pois embora tenham conseguido conquistas via políticas públicas e direitos sociais estas são limitadas e provisórias no processo de emancipação das mulheres Na contemporaneidade identificamos mudanças e continuidades nas formas de opressão pois como os demais fenômenos sociais também o patriarcado está em permanente Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 168 transformação SAFFIOTI 2004 p4546 Alguns avanços da luta feminista podem ser compatíveis com este sistema de opressão já que se restringem à esfera legaltécnica normativa ou seja a emancipação política que se adapta às necessidades do modo exploratório capitalista garantindo alguns poucos direitos para se conservar Chamamos atenção ainda que no cotidiano profissional oa assistente social precisa desenvolver seu trabalho em uma perspectiva de desessencializar e desuniversalizar as mulheres conhecer suas histórias trajetórias expectativas frente essa busca pelo judiciário porém não em uma perspectiva individualizante mas sim dialeticamente articulada com esses elementos estruturantes desse sistema Borgianni 2013 nos sinaliza os diversos desafios para o trabalho profissional nessa área sociojurídica como desafio e possibilidade aosas assistentes sociais que atuam nessa esfera em que o jurídico é a mediação principal ou seja nesse lócus onde os conflitos se resolvem pela impositividade do Estado é trazer aos autos de um processo ou a uma decisão judicial os resultados de uma rica aproximação à totalidade dos fatos que formam a tessitura contraditória das relações sociais nessa sociedade em que predominam os interesses privados e de acumulação buscando a cada momento revelar o real que é expressão do movimento instaurado pelas negatividades intrínsecas e por processos contraditórios mas que aparece como coleção de fenômenos nos quais estão presentes as formas mistificadoras e fetichizantes que operam também no universo jurídico no sentido de obscurecer o que tensiona de fato a sociedade de classes BORGIANNI 2013 p 423 O discurso de que a igualdade foi alcançada também utiliza o comum argumento de que homens e mulheres são iguais perante à lei que é fetichizado e não aduz à realidade Lênin 1920 em um discurso às operárias durante as eleições para o soviete de Moscou já falava que a igualdade diante da lei não é ainda a igualdade efetiva justificando que onde existe exploração não pode existir igualdade e que mesmo na construção de uma nova sociedade sem exploradores só a lei não basta Para pensarmos o atendimento à violência contra a mulher esses elementos são indissociáveis das condições de trabalho e de existência tanto das mulheres atendidas quanto dos trabalhadoresas que as atendem e os investimentos nas políticas sociais que impactam toda a classe trabalhadora bem como as mulheres que a compõem Marques e Mendes 2013 ao pensar a interface entre o capitalismo contemporâneo e a proteção social abordam os impactos nesta última com maior deterioração das condições de trabalho e cortes tanto no acesso quanto na cobertura das políticas sociais O cenário de desfinanciamento das políticas públicas para as mulheres se intensifica diante do governo ultraliberal de Jair Bolsonaro com o desmonte dos mecanismos de controle social defesa da Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 169 privatização dos serviços e adensamento do seu discurso misógino e racista Essas opiniões se expressam concretamente em seu governo quando nomeia Damares Alves declaradamente antifeminista como ministra do recémcriado Ministério da Mulher da Família e dos Direitos Humanos Além desses impactos da falta de investimentos em políticas sociais públicas também trazemos elementos quanto às condições de trabalho do Serviço Social no judiciário que não está isolado das determinações gerais que impactam a classe trabalhadora embora como qualquer espaço socioocupacional possua particularidades Certamente cada ação desenvolvida pela equipe multidisciplinar tem limites do próprio espaço em que atua das relações de poder estabelecidas da natureza das demandas apresentadas e das condições materiais e objetivas da sociedade em que vivemos e dos serviços que são implementados Assim como não podemos alimentar uma perspectiva salvacionista do Direito também não podemos agir nesse sentido em relação ao Serviço Social até porque a profissão dentro de um espaço institucional relacionase com outras instituições e políticas públicas cada vez mais precarizadas Existem ainda asos profissionais que podem não ter análise crítica sobre sua intervenção e seu espaço de trabalho Essa já citada postura messiânica e salvacionista é Marcada por uma visão mágica da transformação social que passa a ser reduzida a uma questão de princípios Muitas vezes esse discurso se reduz ao compromisso individual do Assistente Social como se a nossa vontade e propósitos individuais fossem unilateralmente suficientes para alterar a dinâmica da vida social IAMAMOTO 2013 p146 Essa ausência de reflexão e análise crítica da realidade não significa necessariamente a prevalência de uma visão messiânica Seu anverso pode igualmente imperar como o fatalismo o burocratismo Quanto a isso Barata e Braz 2009 p 196 enfatizam A partir das contradições de classes que determinam a profissão e daí a dimensão política da prática profissional da qual falamos anteriormente osas assistentes sociais podem desde que num ambiente de democracia política o que significa afirmar que tal democracia é um pressuposto para a própria existência do projeto éticopolítico escolher caminhos construir estratégias políticoprofissionais e definir os rumos da atuação e com isso projetar ações que demarquem claramente os compromissos éticopolíticos profissionais É preciso ter a clareza absoluta do que isso significa para não incorrer novamente como diz Iamamoto 1992 nem no voluntarismo políticoprofissional para o qual basta a boa vontade e um ideal para se transformar a realidade e nem no fatalismo para o qual não há alternativas na realidade pois ela seria um dado factual e imutável Mais ainda é necessária a mesma clareza para se compreender as dificuldades que estão postas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 170 cotidianamente para osas assistentes sociais em suas variadas inserções profissionais Consideramos extremamente relevantes as reflexões de Colombi 2016 que abordam a precarização do trabalho no judiciário e seus rebatimentos para osas assistentes sociais A autora destrincha que a precarização perpassa o processo da intensificação do trabalho No sociojurídico pontua que o trabalho precário se apresenta principalmente atrelado às demandas institucional e profissional Inicialmente devido ao seu viés intensamente hierarquizado e ameaças de sanções em caso de descumprimento das determinações feitas Posteriormente devido à incompreensão das especificidades do trabalho dessesas profissionais que permanecem com seu fazer profissional atrelados a curtos prazos para execução o que pode levar ao trabalhadora a atuar superficialmente sobre a realidade dinâmica e complexa COLOMBI 2016 A exiguidade dos prazos prejudica a articulação intersetorial com a rede de enfrentamento e atendimento às situações de violência O baixo quantitativo de profissionais e a sobrecarga de trabalho dificulta a realização dos trabalhos educativos e preventivos A lógica punitivista também adentra as relações trabalhistas com a presença da ameaça do servidora responder administrativa ou penalmente caso não atenda à ordem determinada COLOMBI 2016 Mesmo diante de tantos desafios tecemos alguns apontamentos que consideramos fundamentais para o desenvolvimento de um trabalho que considere essas determinações estruturantes e que embora ciente das limitações seja propositivo atuando nas contradições dos processos sociais I Acolher as mulheres que chegam ao espaço sociojurídico sem juízos de valor mesmo que elas voltem repetidamente ao serviço II Estabelecer mediações a todo tempo entre o caso individual que chega e a totalidade da vida social III Perceber quais são as expectativas da mulher ao buscar o poder judiciário orientála quanto aos seus limites e possibilidades IV Decodificar a legislação e seus direitos bem como as formas de acessá los V Levantar quais são suas necessidades concretas materiais e subjetivas VI Identificar quais serviços políticas programas projetos e benefícios que podem atender tais necessidades VII Denunciar às respectivas instituições responsáveis como por exemplo o Ministério Público e aos mecanismos de controle social caso esses serviços inexistam e o impacto disso para a proteção das mulheres e o rompimento da violência Nesse complexo exercício profissional concluímos que diante das contradições desse sistema também mantido e legitimado pelo Direito a intensificação das desigualdades preconceitos machismo e do conservadorismo dialeticamente também pode fomentar saídas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 171 coletivas e despertar mais sujeitos para construção de uma nova sociedade Tratase então de apreender o sentido político social do Serviço Social para além da superfície da vida social tal como se apresenta como um mero conjunto de ações intermitentes burocratizadas dispersas descontínuas IAMAMOTO 2013 p 142 Mas de apontar outra direção um profissional propositivo e criativo que tenha um Exercício profissional que solidifique laços vivos de solidariedade com os interesses dos segmentos majoritários da população que se traduza em alternativas profissionais que os fortaleçam como sujeitos políticos coletivos que nas suas particularidades e diferenças têm uma esperança e uma utopia a construir na história do presente IAMAMOTO 2013 p 145 Mesmo diante do entendimento dos limites legais a luta por direitos humanos deve se fazer presente e o Serviço Social deve compreendêlos como táticas e travar uma luta anticapitalista antirracista e antipatriarcal 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS POR UM BECO COM SAÍDA As revoluções se produzem nos becos sem saída Bertold Brecht Em cada item desse artigo fizemos alusão nas epígrafes à alegoria do beco pois diante de situações complexas geralmente falamos que estamos em um beco sem saída Diante das situações de exploração e opressão procuramos um beco com saída um beco para a vida para a liberdade e para a revolução Para tanto não podemos perder de vista as raízes desse sistema e de suas expressões desiguais e violentas Sinalizamos que toda proteção social para as mulheres em uma sociedade patriarcal racistacapitalista é limitada e que o Direito estruturalmente compõe esse sistema e o conserva entretanto como tática aliada a um projeto revolucionário pode ser utilizado na luta por direitos mais progressistas a partir da transformação das nossas relações sociais concretas Dessa forma a garantia de leis mais progressistas são conquistas civilizatórias Ressaltamos portanto a importância do feminismo não se distanciar das lutas sociais mesmo com todas as divergências e diferenciações internas do movimento é preciso fortalecêlo enquanto sujeito coletivo total e com vistas ao fortalecimento da consciência militante feminista GURGEL 2011 CISNE 2014 A Lei Maria da Penha prevê a construção e ampliação de serviços especializados situados na rede de enfrentamento e de atendimento à mulher em situação de violência todavia isso ocorre num cenário neoliberal de redução de gastos com políticas sociais públicas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 172 Tratase de uma legislação que aborda a articulação entre as políticas sociais de apoio às mulheres e muitas decisões vinculadas à esfera cível separação guarda alimentos e dentre seus quarenta e seis artigos somente cinco são criminais Art 41 a 45 Contudo é considerada uma lei criminal a ser executada por varas criminais onde não há juizado ou vara especializada em violência doméstica e familiar contra a mulher BRASIL 2006 Percebemos portanto que o eixo coercitivo ainda predomina no poder judiciário em virtude de sua própria condição de existência Diante disso a proteção social ofertada às mulheres é a mais imediatista voltase principalmente para as decisões de contenção com medidas em sua maioria de restrição de direitos em desfavor da pessoa indicada como perpetradora da violência medidas de afastamento e proibição de contato Ademais quando a mulher chega ao judiciário a violência já ocorreu o que denota a importância de se trabalhar com a prevenção Em nossa pesquisa percebemos que as decisões de promoção de direitos voltadas para a assistência e prevenção a novas violências tendem a ser aplicadas caso haja uma intervenção especializada no atendimento aos sujeitos envolvidos Com a escassez de equipes judiciais exclusivas para o atendimento da matéria consideramos que há grande perda para a população atendida Porém não basta a existência dessesas profissionais no serviço especializado sendo importante a direção social e política fornecida em seus atendimentos O desafio enquanto assistente social atuando no sociojurídico é compreender essa sociedade desigual em que vivemos e os limites de qualquer alternativa que não contemple superála ao construir outra forma de sociabilidade Uma atuação para além do direito strictu sensu voltada para a articulação da rede de atendimento possibilitanos articular outras saídas construídas com os sujeitos atendidos Sem romantizar tais serviços que ainda possuem oferta insuficiente e precarizada mas que materializam uma necessidade urgente de ampliar o conceito de proteção e criar condições concretas de rompimento com a violência imediata nas relações interpessoais Mas tal direcionamento deve ser dado sem perder de vista o horizonte do enfrentamento estrutural dessas hierarquizações e violências diversas para além das instituições Para as mulheres atendidas por esses serviços judiciais fica o apontamento de que nossas vidas nossas lutas precisam ir para além das conquistas jurídicoformais e o desafio inclusive de trazer algumas dessas reflexões no cotidiano dos atendimentos Diante disso parafraseamos Simone de Beauvoir Que nada nos defina nem as leis Que nada nos sujeite nem as leis Que a liberdade seja a nossa própria substância já que viver é ser livre Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 173 REFERÊNCIAS AGÊNCIA PATRÍCIA GALVÃO DataSenado mulheres reconhecem mais a violência doméstica mas faltam serviços e informações sobre direitos Instituto Patrícia Galvão 07 de julho de 2017 Disponível em httpagenciapatriciagalvaoorgbrviolenciadatasenado mulheresreconhecemmaisviolenciadomesticamasfaltamservicoseinformacoessobre direitos Acesso em 12 de junho de 2017 BARATA Joaquina Barata BRAZ Marcelo O projeto éticopolítico do Serviço Social In Serviço Social Direitos Sociais e Competências Profissionais Brasília CFESS 2009 BARBIÉRI Luiz Felipe Governo reduz em 61 verba para atendimento à mulher em situação de violência Poder 360 25 de março de 2017 Disponível em httpwwwpoder360combrgovernogovernoreduzem61verbaparaatendimentoa mulheremsituacaodeviolencia Acesso em 27 de março de 2018 BRASIL Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 Lei Maria da Penha Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato200420062006leil11340htm Acesso em 19 de outubro de 2018 BORGIANNI Elisabete Para entender o Serviço Social na área sociojurídica In Serviço Social e Sociedade 2013 n115 p407442 CASTRO Bárbara RONCATTO Mariana Entrevista com Helena Hirata In Revista Ideias Trabalho de Mulheres vol 7 n1 2016 Disponível em httpwwwifchunicampbrojsindexphpideiasarticleview2293 Acesso em 10 de outubro de 2018 CISNE Mirla Feminismo e consciência de classe no Brasil São Paulo Cortez 2014 COLOMBI Bárbara Leite Pereira A precarização do trabalho em foco rebatimentos para os assistentes sociais do judiciário In Serviço Social e Sociedade São Paulo nº 127 p 574 586 setdez 2016 DEVREUX AnneMarie A teoria das relações sociais de sexo um quadro de análise sobre a dominação masculina In Cadernos de Crítica Feminista ano V nº 4 Recife SOS corpo dez 2011 p 06 29 FERREIRA Verônica et al orgs O Patriarcado desvendado teorias de três feministas materialistas Collete Guillaumin Paola Tabet e Nicole Claude Mathieu Recife SOS Corpo 2014 p 27100 FLICK Uwe Plano de pesquisa In Uma introdução à Pesquisa Qualitativa Porto Alegre Bookman 2004 2ª edição p 6988 GURGEL Telma O feminismo como sujeito coletivo total a mediação da diversidade In Cadernos de crítica feminista ano V nº 4 Recife SOS Corpo dez 2011 p 3047 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 174 GURGEL Telma Feminismos e autonomia na América Latina algumas questões estratégicas In TEIXEIRA Marlene ALVES Maria Elaene Rodrigues orgs Feminismo e Gênero desafios para o Serviço Social Brasília Abaré Editorial 2015 p 125138 HIRATA Helena e KERGOAT Daniele Novas configurações da divisão sexual do trabalho In Cadernos de Pesquisa v 37 p 595609 setdez 2007 IAMAMOTO Marilda Vilella O Serviço Social na Contemporaneidade trabalho e formação profissional São Paulo Cortez editora 2000 3ª edição IAMAMOTO Marilda Vilella Capítulo II O Serviço Social no processo de Reprodução das Relações Sociais In IAMAMOTO Marilda Vilella CARVALHO Raul de Relações Sociais e Serviço Social no Brasil esboço de um interpretação históricometodológica São Paulo Cortez editora 2005 18ª edição p 65124 IAMAMOTO Marilda Vilella Renovação e Conservadorismo no Serviço Social ensaios críticos São Paulo Cortez 2013 12ª edição IASI Mauro Luís Direito e Emancipação humana Revista da Faculdade de Direito Universidade Metodista de São Paulo 2005 Vol 2 p170192 LUKÁCS Gyorgy Para uma ontologia do ser social II São Paulo Boitempo editorial 1981 2013 MARQUES Rosa Maria MENDES Áquila A proteção social no capitalismo contemporâneo em crise In Argumentum VitóriaES v 5 p 135163 janjun 2013 MÉSZÁROS István Marxismo e Direitos Humanos In Filosofia ideologia e ciência social São Paulo Boitempo 2008 p 157168 PASINATO Wânia Datasenado Mulheres reconhecem mais a violência doméstica mas faltam serviços e informações sobre direitos Agência Patrícia Galvão 07 de julho de 2017 Disponível em httpsagenciapatriciagalvaoorgbrviolenciadatasenadomulheres reconhecemmaisviolenciadomesticamasfaltamservicoseinformacoessobredireitos Acesso em 25 de agosto de 2019 PEREIRA Camila Potyara Proteção social no capitalismo contribuições à crítica de matrizes teóricas e ideológicas conflitantes Tese de doutorado PósGraduação em Política Social do Departamento de Serviço Social da Universidade de BrasíliaUnB 2013 SALVADOR Evilásio TEIXEIRA Sandra Oliveira Orçamento e políticas sociais metodologia de análise na perspectiva crítica In Revista Políticas Públicas São Luís v 18 n 1 p 1532 janjun 2014 SANTOS Silvana Mara de Morais dos Direitos desigualdade e diversidade In BOSCHETTI Ivanete et al orgs Política social no capitalismo tendências contemporâneas 2ª edição São Paulo Cortez 2009 p 6486 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 175 SANTOS Silvana Mara de Morais dos Ética e Direitos Humanos In Módulo 3 Ética em movimento Curso de Capacitação para agentes multiplicadores 5ª edição Brasília CFESS 2016 TENORIO Emilly Marques Entre a polícia e as políticas Lei Maria da Penha e Medidas de Proteção Coleção Estante Fundamental do Sociojurídico Campinas Papel Social 2018 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da Violência 2015 Homicídios de Mulheres no Brasil Brasília OPASOMS ONU Mulheres SPM e Flacso 2015 Disponível em wwwmapadaviolenciaorgbr Acesso em 20 de novembro de 2018 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 176 CARACTERÍSTICAS DA VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA CONTRA MULHERES EM INTERFACE COM AS VIOLÊNCIAS SEXUAL E FÍSICA NOTIFICAÇÕES NO SUL DO BRASIL Liandra Savanhago1 Carolina Bolsoni2 Elza Berger Salema Coelho3 Sheila Rubia Lindner4 RESUMO Este estudo descreve os dados de notificação compulsória de violência psicológica contra mulheres adultas comparandoa com outras tipologias de violências como sexual e física As mulheres possuem faixa etária de 20 a 59 anos localizadas na Região Sul brasileira no período de 2009 a 2016 Para isso efetuouse uma pesquisa quantitativa retrospectiva com informações do Sistema de Informação de Agravos de Notificação comparando a violência psicológica com a violência física e sexual Os dados foram coletados por meio do software Stata versão 130 e as análises foram descritivas Constatase que as principais vítimas de violência psicológica são mulheres brancas entre 20 e 39 anos casadas e sem deficiências ou transtornos Os autores de agressão são majoritariamente homens que cometeram o ato violento no ambiente doméstico A violência psicológica foi a segunda maior violência notificada sendo a primeira violência física Quando correlacionadas as violências psicológica e física tiveram maior expressividade contrastando com violência sexual e psicológica Nos resultados problematizase as contradições de raça que refletem no perfil das mulheres vítimas de violência psicológica Além disso ressaltase a importância de considerar a violência psicológica não como um fenômeno isolado mas que também se manifesta como consequência de outras tipologias de violências Concluise que a violência psicológica é um fenômeno multiforme que não pode ser desconsiderada da realidade histórico e cultural Palavraschave Perspectiva de Gênero Violência contra a mulher Notificação Compulsória INTRODUÇÃO 1 Psicóloga do Sistema Único de Assistência Social Mestra em Psicologia Social e Especialista em Saúde Coletiva Universidade Federal de Santa Catarina Email Liandrasavanhagohotmailcom Lattes httplattescnpqbr3430483195764977 2 Pósdoutoranda no Programa de Pósgraduação em Saúde Coletiva Doutora e Mestra em Saúde Coletiva 2017 pela Universidade Federal de Santa Catarina Email carolziinhaflorgmailcom Lattes httplattescnpqbr6654871617906798 3 Professora Adjunta do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina Doutora em Filosofia da enfermagem 2000 Universidade Federal de Santa Catarina Email elzacoelhogmailcom Lattes httplattescnpqbr3980247753451491 4 Professora Adjunta do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina Doutora em Saúde Coletiva 2013 Universidade Federal de Santa Catarina Email sheilalindnergmailcom Lattes httplattescnpqbr3507140374697938 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 177 No Brasil a Lei Federal Nº 11340 de 2006 conhecida como Lei Maria da Penha define como crime cinco tipos de violência contra a mulher física sexual psicológica moral e patrimonial A violência psicológica em especial é definida por tal Lei como um comportamento ou ação causadora de dano emocional e no pleno desenvolvimento do indivíduo As condutas tipificadas como formas de violência psicológica podem ser ameaça constrangimento humilhação manipulação isolamento vigilância constante perseguição contumaz insulto chantagem violação de sua intimidade ridicularização BRASIL 2006 entre outras A violência psicológica por ser a forma mais subjetiva de violência é considerada de difícil identificação INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2018 pois em geral há uma dificuldade de comprovála e de reconhecêla sobretudo por parte de quem a sofre Nesse sentido a violência física é a tipologia mais reconhecida pela sociedade em geral em contrapartida as violências psicológicas ainda que causem danos à saúde são mais naturalizadas e passíveis de subnotificação dificultando assim a efetivação da Lei Nº 113402006 Os dados nacionais lançados pelo Observatório da Mulher Contra a Violência BRASIL 2018 revelaram que a quantidade de violência doméstica registrada no Ligue 180 em 2015 foi de 76651 10 do total de ocorrências Destes relatos de violência a psicológica foi a segunda maior registrada correspondendo a 303 Nos meses de janeiro e fevereiro de 2019 a central registrou 11132 ligações das quais 78 se referem à violência psicológica em números totais esses números tiveram um aumento de 20 em relação ao mesmo período do ano passado BRASIL 2019a Ao longo de 2017 o Instituto de Pesquisa DataSenado em parceria com o Observatório da Mulher Contra a Violência realizou uma pesquisa para ouvir 1116 mulheres brasileiras acerca da violência doméstica no país Nesta pesquisa constatouse um aumento do percentual de mulheres vítimas de violência doméstica perpetuada por homens passando de 18 em 2015 para 29 em 2017 BRASIL 2017 Nesta fonte de informação violência psicológica também foi a segunda maior registrada com 47 das menções Medrado e Lyra 2003 apud Lima Büchele e Clímaco 2008 p 75 ao buscarem compreender a violência de homens contra mulheres a partir de uma perspectiva de gênero defendem a necessidade de analisar os processos de socialização masculinas os quais são condicionados para reprimir suas emoções sendo a agressividade incluindo a violência física formas geralmente aceitas como marcas ou provas de masculinidade Nesse sentido os homens agressores estão presentes no contexto da violência em diferentes lugares sendo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 178 produto e alvo dos padrões de subjetividade orientados pelos modelos de gênero e pelas relações desiguais de poder em nossa sociedade LIMA BÜCHELE CLÍMACO 2008 p 76 Apesar de antigas estas constatações ainda se sustentam visto que as violências contra as mulheres possuem antecedentes enraizados em uma cultura machista que se encontram consolidadas em conceitos primitivos sobre os papeis de gênero PREUSS PESSOA JUNIOR 2016 A inserção das violências psicológica e moral na Lei Maria da Penha foi considerada um avanço legislativo e uma forma de expandir o conceito de violência doméstica uma vez que tais violências provocam danos à saúde e uma violência que pode sinalizar uma futura violência física BRASIL 2015 A violência psicológica pode ser identificada em mulheres de diversas etnias classes sociais idade tempo de relacionamento condição socioeconômica COLOSSI et al 2015 as consequências na saúde psicossocial e física são diversas como transtornos de ansiedade transtornos depressivos transtorno de estresse pós traumático tentativas de suicídio distúrbios alimentares e distúrbios de sono além de interferência na construção da subjetividade e identidade ECHEVERRIA 2018 A mesma autora defende que a violência psicológica pode ser caracterizada como uma das formas mais cruéis de violência visto que deixa sequelas permanentes na subjetividade invadindo os limites do bemestar e causando danos mentais irremediáveis No âmbito da saúde pública a violência contra a mulher é um fenômeno de notificação compulsória ou seja após a ocorrência é obrigatório5 preencher uma ficha de notificação e ser inserido no Sistema de Informação de Agravos de Notificação Sinan O Sinan é um sistema de vigilância epidemiológica administrado pelo Ministério da Saúde MS que objetiva coletar e transmitir dados para o planejamento em saúde delimitações de estratégias e prioridades de intervenção na sociedade BRASIL 2019b ou seja por meio da notificação compulsória é possível classificar e sistematizar as diversas formas de violências possibilitando a construção de políticas públicas de prevenção e combate às violências que mais prevalecem em uma dada região Porém mesmo com a obrigatoriedade da notificação no Sinan Barufaldi et al 2017 e Silva Coelho e Caponi 2007 apontam que osas profissionais que atendem as vítimas se deparam com diversas situações de violência as quais inicialmente manifestamse de forma silenciosa tanto que muitas vezes apenas são notados os casos mais graves Tal fenômeno pode ser denominado como invisibilidade da violência BARUFALDI et al 2017 Nesse 5 A Lei Federal n 10788 de 24 de novembro de 2003 institui a obrigatoriedade da notificação Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 179 sentido a realidade sobre a violência psicológica é que pode estar sendo subnotificada visto que as violências psicológicas são sutis e estão relacionadas com outras tipologias de violências como sexual e física A subnotificação portanto reforça a necessidade de avançar na melhoria da notificação de cada ato de agressão capacitando os profissionais para o atendimento e para identificar casos ocultados RATES et al 2016 p 305 A relevância deste trabalho então está na necessidade de publicizar as informações sobre a violência psicológica e expandir o conhecimento por parte dos profissionais da saúde para identificar casos de violência psicológica contra mulheres principalmente quando atrelada a outras tipologias de violências Diante dessa problemática este estudo tem como objetivo descrever as características das mulheres que sofrem violência psicológica comparandoas com outras violências como a sexual e física baseandose nas notificações da Vigilância de violência interpessoal e autoprovocada do Sistema de Informação de Agravos de Notificação SinanVIVA na região Sul do Brasil entre 2009 e 2016 Esta pesquisa se trata de um estudo quantitativo e retrospectivo a partir dos dados secundários do banco de dados do SINANVIVA referentes a violências psicológicas físicas e sexuais suspeitas ou confirmadas na região Sul do Brasil no período entre 2009 e 2016 Sobre a população do estudo segundo a projeção da população do Brasil disponibilizado pelo IBGE 2019 a região Sul é composta por três estados brasileiros Paraná com 11 410 129 habitantes Santa Catarina com 7139895 habitantes e Rio Grande do Sul com 11363078 habitantes dos quais 509 504 e 513 são mulheres respectivamente IBGE 2010 As mulheres incluídas neste estudo estavam entre 20 e 59 anos de idade delimitado pela Organização Mundial da Saúde 2011 como fase adulta As variáveis selecionadas da Ficha de Notificação de Violência doméstica sexual eou outras violências foram notificação individual idade escolaridade raçacor dados da pessoa atendida situação conjugalestado civil e deficiênciatranstornos dados da ocorrência local da ocorrência e se ocorreu outras vezes tipologia da violência violência física sexual e psicológica informações do possível autor da agressão número de envolvidos grau de parentesco sexo e suspeita de uso de álcool Os dados foram analisados de maneira descritiva através da frequência relativa e absoluta utilizando o programa Stata versão 130 1 RESULTADOS Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 180 Entre 2009 e 2016 foram notificados 89864 casos de violência física psicológica e sexual contra mulheres adultas na região Sul Destas notificações 636 foram registros de violência física 315 registros de violência psicológica e 49 registros de violência sexual O estado do Rio Grande do Sul obteve 35383 notificações de violência enquanto que o estado do Paraná obteve 32545 notificações e Santa Catarina 21936 notificações No que diz respeito às variáveis sociodemográficas das mulheres vítimas de violência psicológica estas são majoritariamente brancas 786 faixa etária entre 20 a 39 anos 678 em relações estáveis 558 e sem deficiências ou transtornos 915 Grande parte das violências ocorreram dentro do ambiente doméstico 80 Em ordem decrescente os estados com maiores notificações de violência psicológica são Rio Grande do Sul 422 Paraná 387 e Santa Catarina 191 quadro 1 Quadro 1 Variáveis sociodemográficas e situações de violência da mulher vítima de violência psicológica Região Sul Brasil 2009 2016 Variáveis N Local de notificação N 28106 Rio Grande do Sul 11875 422 Paraná 10873 387 Santa Catarina 5358 191 Idade N 28106 20 29 9822 349 30 39 9248 329 40 49 5968 212 50 59 3068 109 Raçacor N 27212 Branca 21387 786 Parda 3871 142 Preta 1718 63 Amarelaindígena 236 09 Escolaridade N 22782 0 4 anos 4033 177 5 8 anos 8595 377 9 11 anos 7820 343 12 anos ou mais 2334 102 Situação conjugal N26424 Casadaunião 14757 558 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 181 Solteira 7674 290 Separadaviúva 3993 151 Deficiênciatranstorno N21194 Sim 1805 85 Não 19389 915 Local da ocorrência N 27598 Residência 22070 800 Via pública 3134 113 Outros 2394 87 Notificação de violência física e psicológica N 22588 17087 756 Notificação de violência sexual e psicológica N 27453 2414 88 Fonte Elaborado pelas autoras Sobre o perfil do agressor de violência psicológica 848 são homens e os parceiros íntimos são os maiores perpetradores 688 Metade das mulheres referiram que o autor de violência estava sob suspeita de uso de álcool no momento da agressão quadro 2 Quadro 2 Perfil do agressor de violência psicológica Região Sul Brasil 2009 2016 Variáveis N Sexo N 27583 Masculino 23403 848 Feminino 3462 125 Ambos 718 26 Grau de parentesco Parceiro íntimo 18869 688 Outros 2071 75 Desconhecido 1850 68 Conhecido 1804 66 Família 1317 49 Número de envolvidos N 22153 1 18648 849 2 ou mais 3505 158 Suspeita de abuso de álcool N 23306 Sim 11739 504 Não 11567 496 Fonte Elaborado pelas autoras 2 DISCUSSÕES Os resultados apresentados possibilitaram ter uma visão mais ampla da violência psicológica notificada na Região Sul do Brasil entre os anos de 2009 e 2016 Durante todo o período estudado foram notificados 89864 casos de violência física psicológica e sexual Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 182 Dentre esses casos a violência psicológica foi a segunda maior notificação correspondendo a 315 do total de violências ficando atrás apenas da violência física 636 Alguns estudos vão ao encontro da prevalência conforme a tipologia da violência BRASIL 2017 BORBUREMA et al 2017 Tanto no que diz respeito as três violências psicológica sexual e física quanto apenas a violência psicológica o Rio Grande do Sul teve o maior número de notificações seguido pelo estado do Paraná e de Santa Catarina Em comparação à totalidade dos estados brasileiros em 2016 o Rio Grande do Sul e Santa Catarina juntamente com Distrito Federal Rondônia e Amapá apresentaram maiores índices de ocorrências policiais de atos violentos contra mulheres BRASIL 2018 Diversas possibilidades podem explicar a predominância do Rio Grande do Sul em notificações de violência tanto pelo Sinan quanto por ocorrências policiais acreditase que as mais coerentes se tratam da redução da prática de subnotificação pela capacidade de diagnóstico por parte dos profissionais e o crescimento da capilaridade dos sistemas de saúde BRASIL 2018 Embora as mulheres pretas e pardas não tenham sido majoritárias nos resultados desta pesquisa evidenciase que a taxa média nacional e especificamente nos estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina as mulheres pretas e pardas possuíram maiores taxas de violência letal nos anos de 2006 2015 e 2016 segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade SIM do Ministério da Saúde disponibilizado pelo Observatório da Mulher Contra a Violência BRASIL 2018 A violência letal ainda atinge de forma diferente as mulheres a depender de sua raça uma vez que enquanto a taxa de homicídios de mulheres brancas em 2015 foi de 30 a mesma taxa entre as mulheres pretas e pardas foi de 52 BRASIL 2018 p 9 A partir destas informações contrastantes Arruzza Bhattacharya e Fraser 2019 ao falarem sobre as leis que criminalizam as violências de gênero afirmam que essas legislações permitiram uma emancipação legal porém sem atuar com eficiência nas transformações sociais e no racismo e sexismo institucionais para garantir que as mulheres abandonem o contexto da violência Em relação a sofrer violência psicológica e violência física os dados apontam que 756 das mulheres que sofreram violência física também notificaram a violência psicologia Em contrapartida apenas 88 das mulheres que sofreram violência sexual tiveram registro de violência psicológica Colocar a violência psicológica em interface com as outras tipologias de violências se faz necessária no sentido de defender a hipótese de que as violências físicas e sexuais também causam danos à saúde mental das mulheres Hirigoyen 2006 ao correlacionar a violência física e a psicológica afirma que não há violência física sem que antes não tenha Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 183 ocorrido violência psicológica ou seja constatase grande parte dos casos a violência psicológica antecede a agressão física PREUSS PESSOA JUNIOR 2016 No que diz respeito à correlação entre violência psicológica e violência sexual a mesma autora afirma que violências sexuais muitas vezes são silenciadas consideradas um dever conjugal em que a relação sexual é tida como uma obrigação da mulher e um direito para o homem em outras palavras tal violência é difícil de ser identificada pois pode ser camuflada por existir vínculo afetivo entre a vítima e o agressor FERREIRA LOPES 2017 As relações de dominação e humilhação por parte do parceiro íntimo são consideradas como variantes da violência psicológica HIRIGOYEN 2006 A partir dos exemplos de Hirigoyen 2006 considerase importante desconstruir a ideia cartesiana de que violência físicasexual e violência psicológica são fenômenos isolados da realidade social visto que elas são interligadas e ocorrem dentro de um contexto histórico e social Um exemplo a ser evidenciado diz respeito as possíveis alterações psicológicas decorrentes da violência física segundo Brasil 2001 as alterações psicológicas resultantes de traumas têm durações variadas podendo durar horas ou dias A mesma fonte indica que a crise de pânico é um sintoma frequente além de ansiedade depressão comportamentos autodestrutivos fobias insônias tentativas de suicídio e sua consumação BRASIL 2001 ECHEVERRIA 2018 Neste sentido a violência psicológica não deve se limitar aos meios de agressão utilizados pelo agressor como xingamentos ameaças humilhações e etc mas também às consequências de tais meios Ou seja considerase importante dar visibilidade não apenas a tipologia da violência utilizada pelo agressor mas o resultado da violência que afeta a saúde mental da mulher Sobre o perfil do agressor destacase que 848 são homens e 688 são parceiros íntimos Estes dados entram em consonância com a situação conjugal da vítima majoritariamente casadas e o local da violência em que 80 dos casos ocorrem no ambiente doméstico com homens que convivem com a vítima Essas informações são corroboradas pela pesquisa de Borburema et al 2017 ao identificarem uma elevada prevalência de violência perpetrada por parceiro íntimo na população estudada em prontuários de instituições de saúde Segundo as autoras a maior ocorrência da violência perpetrada pelo parceiro íntimo expressa subordinação e dominação na qual existe distribuição desigual de privilégios direitos e deveres evidenciando a violência baseada no gênero p 8 A partir das informações sobre o perfil do agressor Lima Büchele Clímaco 2008 ao buscarem explicar algumas causas da violência de homens contra mulheres recorrem à teoria Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 184 feminista a qual coloca as relações de poder e de dominação masculina como um aspecto central que explica as ações violentas Convergindo com essa informação Arruza Bhattacharta e Fraser 2019 problematizam que as violências estão inseridas na sociedade de forma estrutural e sistêmica profundamente ancoradas na ordem social Tais violências são estabelecidas a partir da construção histórica de relações hierárquicas de poder entre os gêneros resultando em normatizações do comportamento violento SAFFIOTI 2001 LIMA SOUZA 2015 GUIMARÃES PEDROZA 2015 BANDEIRA 2014 Outra informação relevante encontrada é a suspeita de uso de álcool por parte do agressor no momento da ação violenta Tal característica teve uma proporção semelhante à ausência de uso de álcool visto que 504 das pessoas estavam em suspeita de uso de álcool ao efetuarem violência psicológica contra a mulher O Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas ao realizar estudos epidemiológicos sobre o uso de álcool na população brasileira constatou em 2002 e 2005 que uma acentuada parcela dos casos de violência doméstica está associada ao consumo de bebidas alcoólicas sendo a mulher a principal vítima MARTINS NASCIMENTO 2017 Para Lindner Coelho Bolsoni Rojas e Boing 2015 o consumo de álcool é uma das mais controversas variáveis estudadas como causadoras da violência pois ao mesmo tempo é um fator que contribui para a ocorrência da violência ele não determina tais condutas Em outras palavras o álcool é um fator que está associado à violência doméstica como facilitador da agressão porém não se pode afirmar uma relação causal e unidirecional entre os dois fenômenos MARTINS NASCIMENTO 2017 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste estudo foram analisadas as notificações de violência psicológica em interface com outras tipologias de violências como a sexual e física A adoção da temática de violências de gênero nos serviços de saúde é de fundamental importância para contribuir com a instrumentação de mulheres a enfrentarem essas situações que podem desencadear uma série de outras doenças Ressaltase que a violência de gênero é uma temática complexa e multiforme o que permite ser compreendida por meio de diferentes campos de conhecimento como a psicologia medicina saúde coletiva direito Recomendase que o ponto de conexão entre os múltiplos campos e abordagens seja a consideração das relações históricas e culturais entre os gêneros suas hierarquias relações de poder e de opressão construídas socialmente Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 185 Vale considerar que os resultados desta pesquisa não abarcaram discussões acerca de violências em uniões homoafetivas bem como de outros grupos de alta prevalência de violência doméstica como crianças adolescentes e idosos Para os próximos estudos sugerese dar ênfase nas violências de gênero a partir de outros marcadores como os de classe social faixa etária e étnicoracial REFERÊNCIAS ARRUZZA C BHATTACHAYA T FRASER N Feminismo para os 99 um manifesto São Paulo Boitempo 2019 BANDEIRA L M Violência de gênero a construção de um campo teórico e de investigação Revista Sociedade e Estado Brasília v 29 n 2 p449469 ago 2014 BARUFALDI L A et al Violência de gênero comparação da mortalidade por agressão em mulheres com e sem notificação prévia de violência Ciênc saúde coletiva Rio de Janeiro v 22 n 9 p 29292938 set 2017 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1413 81232017002902929lngptnrmiso Acesso em 6 set 2019 BORBUREMA T L R PACHECO A P NUNES A A MORÉ C L O O KRENKEL S Violência contra mulher em contexto de vulnerabilidade social na Atenção Primária registro de violência em prontuários Revista Brasileira Medicina de Família e de Comunidade Rio de Janeiro v 12 n 39 p 113 10 out 2017 BRASIL Ministério da Saúde Secretaria de Políticas de Saúde Violência intrafamiliar orientações para prática em serviço Brasília Ministério da Saúde 2001 BRASIL Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 Diário Oficial da União 2006 BRASIL Ministério da Justiça Secretaria de Assuntos Legislativos Violências contra a mulher e as práticas institucionais Brasília 2015 Disponível em httpwwwcompromissoeatitudeorgbrwp contentuploads201508MJVCMeaspraticasinstitucionaispdf Acesso em 18 mar 2019 BRASIL Instituto de Pesquisa DataSenado Observatório da Mulher Contra a violência Secretaria de Transparência Violência doméstica e familiar contra a mulher Pesquisa DataSenado Brasília 2017 BRASIL Senado Federal Observatório da Mulher Contra a Violência Panorama da violência contra as mulheres no Brasil indicadores nacionais e estaduais N 2 Brasília 2018 BRASIL Ministério da Mulher da Família e dos Direitos Humanos Denúncias de violência física moral e psicológica aumentam cerca de 1996 no Ligue 180 2019a Disponível em httpswwwmdhgovbrtodasasnoticias2019marcodenunciasdeviolenciafisica moralepsicologicaaumentamcercade1996noligue180 Acesso em 18 mar 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 186 BRASIL Ministério da Saúde O Sinan 2019b Disponível em httpportalsinansaudegovbrosinan Acesso em 14 mai 2019 COLOSSI P M RAZERA J HAACK K R FALCKE D Violência conjugal prevalência e fatores associados Contextos Clínicos v 8 n 1 p 5566 jan 2015 Disponível em httppepsicbvsaludorgscielophpscriptsciarttextpidS1983 34822015000100007lngptnrmiso Acesso em 2 abr 2019 ECHEVERRIA G B A violência psicológica contra a mulher reconhecimento e visibilidade Cadernos de gênero e diversidade v 4 n 1 p 131145 jan 2018 Disponível em httpsportalseerufbabrindexphpcadgendivarticleview25651 Acesso em 5 set 2019 FERREIRA T B LOPES A O S Alcoolismo Um Caminho para a Violência na Conjugalidade Revista UNIABEU v 10 n 24 p 95110 janabr 2017 Disponível em httpsrevistauniabeuedubrindexphpRUarticleview2527 Acesso em 10 abr 2019 GUIMARÃES M C PEDROZA R L S Violência contra a mulher problematizando definições teóricas filosóficas e jurídicas Psicologia Sociedade v 27 n 2 p 256266 2015 DOI httpdxdoiorg101590180703102015v27n2p256 Acesso em 29 mar 2019 HIRIGOYEN M F A violência no casal da coação psicológica à agressão física Rio de Janeiro RJ Bertrand Brasil 2006 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA IBGE Censo demográfico 2010 Disponível em httpsbrasilemsinteseibgegovbrpopulacaopopulacao porsexosegundoasunidadesdafederacaohtml Acesso em 28 mar 2019 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA IBGE Projeção da população do Brasil e das Unidades da Federação 2019 Disponível em httpswwwibgegovbrappspopulacaoprojecao Acesso em 28 de mar 2019 INSTITUTO DE SEGURANÇA PÚBLICA Orlinda Claudia R de Moraes Flávia Vastano Manso Org Dossiê Mulher 13 ed Rio de Janeiro Rio Segurança ISP RJ 2018 115p Rio Segurança Série Estudos 2 Disponível em httparquivosproderjrjgovbrispimagensuploadsDossieMulher2018pdf Acesso em 18 mar 2019 LIMA D C BÜCHELE F CLÍMACO D A Homens gênero e violência contra a mulher Saúde e Sociedade São Paulo v 17 n 2 p 6981 abr 2008 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0104 12902008000200008lngennrmiso Acesso em 3 abr 2019 LIMA G H A SOUSA S M A Violência psicológica no trabalho da enfermagem Revista Brasileira de Enfermagem sl v 68 n 5 p817823 out 2015 Disponível em httpdxdoiorg101590003471672015680508i Acesso em 15 mar 2019 LINDNER S R COELHO E B S BOLSONI C C ROJAS P F BOING A F Prevalência de violência física por parceiro íntimo em homens e mulheres de Florianópolis Santa Catarina Brasil estudo de base Populacional Caderno de Saúde Pública Rio de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 187 Janeiro v 31 n 4 p 815826 abr 2015 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0102 311X2015000400815lngennrmiso Acesso em 1 abr 2019 MARTINS A G NASCIMENTO A R A Violência doméstica álcool e outros fatores associados uma análise bibliométrica Arquivos Brasileiros de Psicologia Rio de Janeiro v 69 n 1 p 107121 2017 Disponível em httppepsicbvsaludorgscielophpscriptsciarttextpidS1809 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psicológica como condição da violência física doméstica Interface Comunicação Saúde Educação Botucatu v 11 n 21 p 93103 jan 2007 Disponível em httpdxdoiorg101590S141432832007000100009 Acesso em 10 mar 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 188 REFLEXÕES SOBRE A VIOLÊNCIA DUAS MULHERES ATENDIDAS POR UMA ORGANIZAÇÃO NÃOGOVERNAMENTAL EM BLUMENAUSC Geórgia Paula Martins Faust 1 Paola Dorozetz 2 Bruna Camila Schuhardt 3 Patrícia Backes 4 RESUMO Objetivase apontar elementos históricos sobre o machismo e com isso demonstrar e analisar dois casos de mulheres agredidas e em situação de fragilidade emocional eou financeira atendidas pelo Instituto Feminista Nísia Floresta na cidade de BlumenauSC e região Este estudo tem natureza qualitativa descritiva Teve como instrumento de coleta de dados a narrativa livre de mulheres usuárias dos programas de amparo à mulher do instituto Conta com a amostra representacional de 2 duas mulheres de 23 a 39 anos Discutese temáticas envolvendo o processo de construção do cenário de desigualdade entre os gêneros baseado na construção cultural política e religiosa entre elas i histórico da inferiorização da mulher na sociedade ii construção social do machismo e violência iii significações da violência iv busca por ajuda e o fim do ciclo de violência v reabilitação e reintegração da pessoa abusada na sociedade Concluise a necessidade de haver cada vez mais iniciativas especialmente através de redes intersetoriais e de organizações da sociedade civil que possibilitem o acolhimento e a autorreflexão entre mulheres PalavrasChave Feminismo Violência contra a mulher Organização NãoGovernamental INTRODUÇÃO A violência contra a mulher é um significativo problema de saúde pública mundial bem como de violação dos direitos humanos fundamentais da mulher WHO 2013 A Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher também conhecida como Convenção de Belém do Pará CONVENÇÃO INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS 1994 define a violência contra mulheres como qualquer ato ou conduta baseada no gênero que cause morte dano ou sofrimento físico sexual ou psicológico à mulher tanto 1 Mestranda em Educação Programa de Pós Graduação em Educação Universidade Regional de Bllumenau FURB Bolsista CAPESFAPESC Graduada em Pedagogia 2015 Email geofaustgmailcom Lattes httplattescnpqbr4688063589319888 2 Estudante de Psicologia Universidade Regional de Blumenau FURB Email dozoretzpaolagmailcom Lattes httplattescnpqbr0186216940977633 3 Graduada em Serviço Social Uniasselvi 2016 Email bschuhardtgmailcom Lattes httplattescnpqbr5448321407303589 4 Graduada em Psicologia Universidade Federal de Santa Catarina 1999 Email patriciabackesyahoocombr Lattes httplattescnpqbr4479112419422930 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 189 na esfera pública como na esfera privada Esta violência abrange violações no âmbito psicológico físico ou sexual Moreira et al 2008 comentam que a violência configura um fenômeno de múltiplas determinações Referese à hierarquia de poder conflitos de autoridade e desejo de domínio e aniquilamento do outro O relatório da World Health Organization Global and regional estimates of violence against women prevalence and health effects of intimate partner violence and nonpartner sexual violence 2013 diz que o termo violência contra a mulher abrange muitas formas de violência incluindo a violência de um parceiro íntimo e violaçãoagressão sexual e outras formas de violência perpetradas por alguém que não seja um parceiro bem como a mutilação genital feminina assassinatos de honra e tráfico de mulheres Estimativas globais publicadas pela Organização PanAmericana da Saúde 2017 indicam que aproximadamente uma em cada três mulheres 35 em todo o mundo sofreram violência física eou sexual por parte do parceiro ou de terceiros durante a vida A maior parte dos casos é de violência infligida por parceiros Em todo o mundo quase um terço 30 das mulheres que estiveram em um relacionamento relatam ter sofrido alguma forma de violência física eou sexual na vida por parte de seu parceiro Segundo o Atlas da Violência 2019 elaborado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada 2019 em conjunto com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública no Brasil foram registrados 4936 casos de feminicídios em 2017 a maior número em dez anos Isso corresponde a 13 vítimas por dia sendo 66 mulheres negras e o crescimento entre 2007 e 2017 de homicídios de mulheres negras cresceu 299 De 2012 a 2017 a porcentagem de homicídios dentro de casa cresceu 171 Por arma de fogo e dentro da residência cresceu 287 Diante deste cenário com números expressivos a respeito da estrutura social brasileira fazse necessário um estudo histórico sobre o papel da mulher no Brasil e de casos atuais para demonstrar a necessidade de fortalecimento de órgãos já existentes bem como a criação de novos órgãos e políticas que efetivamente contribuam para a superação do quadro de violência e também o fomento e a promoção de discussões profundas sobre o tema violênciamachismo com todas as camadas da sociedade e gêneros Argumentamos que as relações de poder entre homens e mulheres onde os homens detem o poder e as mulheres à ele se submetem é uma construção cultural e não natural tampouco determinista ou biologizante Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 190 A desigualdade longe de ser natural é posta pela tradição cultural pelas estruturas de poder pelos agentes envolvidos na trama de relações sociais Nas relações entre homens e mulheres a desigualdade de gênero não é dada mas pode ser construída e o é com frequência SAFFIOTI 2015 p 75 Para o presente estudo foram levantados dados sobre dois casos atendidos pelo Instituto Feminista Nísia Floresta de mulheres em alguma situação de vulnerabilidade Esses casos se destacaram por terem demandado maior atenção das voluntárias tanto no sentido do acolhimento às vítimas que além do atendimento pela ONG também tiveram acesso à rede intersetorial delegacia casa abrigo Centro de Referência em Assistência Social Centro de Referência Especializada em Assistência Social quanto em relação às providências a serem tomadas depois que elas saíram da rede de proteção estatal e precisaram caminhar com suas próprias pernas Através desses dois casos em especial em que as referidas mulheres tiveram ao seu dispor praticamente todos os recursos hoje disponíveis pela rede de atendimento pudemos verificar com clareza que a ação estatal através da consolidação de políticas públicas de atendimento às mulheres vítimas de violência não é suficiente para atender todas as necessidades envolvidas em um contexto complexo como o da violência doméstica A vítima de violência doméstica demora muito tempo para reunir força e coragem para tomar uma atitude frente a violência e após esse primeiro passo ainda enfrenta diversas dificuldades para voltar a ter uma vida minimamente funcional como questões relacionadas ao cuidado dos filhos empregabilidade manutenção da casa e formação e consolidação de rede de apoio Apesar de não negarmos a importância das ferramentas estatais e advogarmos pelo fortalecimento das políticas públicas de atendimento o relato dessas experiências demonstra que a participação da sociedade civil organizada ou não é imprescindível para a recuperação plena dessas mulheres O Instituto Feminista Nísia Floresta atua na cidade de Blumenau Santa Catarina há 3 três anos atendendo e amparando mulheres e seus filhos e filhas vítimas de violência de qualquer natureza Voluntárias de diversas áreas de conhecimento contribuem com ajuda jurídica apoio psicológico e manutenção de condições básicas de sobrevivência como alimentação moradia temporária e consultoria de recursos humanos 1 INFERIORIZAÇÃO DA MULHER UM BREVE HISTÓRICO A hipótese da existência de sociedades matriarcais não pode ser aceita por falta de comprovação histórica porém há evidências arqueológicas de que houve uma outra ordem de gênero organizada de forma diferente da que temos hoje caracterizada pela dominação Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 191 masculina SAFFIOTI 2015 O que Saffioti 2015 denomina patriarcado pode ser definido como um pacto masculino para garantir a opressão de mulheres Esse regime ancorase em uma maneira de os homens assegurarem para si mesmo e para seus dependentes os meios necessários à produção diária e à reprodução da vida SAFFIOTI 2015 p 111 Buscando entender o processo social de inferiorização da mulher recorremos a Engels 1984 quando comenta o início da propriedade privada no momento em que os relacionamentos monogâmicos efetivamente começaram De acordo com Fortes 2018 a passagem da família sindiásmica para a monogâmica é consequência do surgimento da propriedade privada como elemento norteador da estrutura social A atenção está na mudança de posição ocupado pela mulher nos dois modelos de família A família sindiásmica ALARCÓN PIETRO 2015 se caracterizava pelo matrimônio entre um homem e uma mulher mas sem a convivência exclusiva união esta que permite o divórcio ou a separação pelo livre arbítrio de ambos marido e mulher ALARCÓN PRIETO 2015 p 341 tradução nossa Já a relação monogâmica se baseia em um matrimônio de um homem com uma mulher com coabitação exclusiva e na família se ergue um sistema independente de consanguinidade ALARCÓN PRIETO 2015 p 341 tradução nossa e caracterizada por uma estrutura de transferência de bens e propriedade herança de pais para filhos FORTES 2018 Segundo Fortes 2018 o maior problema estava em como os bens eram distribuídos na sociedade quando um dos genitores morria na família sindiásmica a linhagem materna definia em várias comunidades a prevalência dessa distribuição Já na família monogâmica encontramos a posição da linha materna inferiorizada Alarcón e Prieto 2015 p 368 comentam A troca da descendência por linhagem feminina à masculina foi prejudicial para a posição e direitos da mulher e da mãe seus filhos trasladados do gens dela para o de seu marido pelo fato de casarse alienava seus direitos agnatícios sem receber uma compensação equivalente antes da troca os membros de seu próprio gens predominavam na casa o que dava pleno vigor ao vínculo materno e para que a mulher estivesse mais ao centro da família que o varão Depois da troca se encontrava só na casa de seu esposo afastada dos parentes do clã Nas classes prósperas seu estado era de reclusão forçada e o objetivo primário do matrimônio a procriação de filhos legítimos Essa perda do direito materno é considerada por Engels 1984 como a grande derrota para o sexo feminino pois enquanto o homem tomava posse da direção da casa a mulher foi colocada em posição de degradação tornandose serva de seu marido e escrava do prazer dele um mero instrumento de reprodução O desprestígio da mulher na configuração familiar pode Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 192 ter características diferentes pode ser maquiado de algumas formas em diferentes lugares mas de jeito nenhum foi eliminado ENGELS 1984 Saffioti 2015 traz outra tese relacionada à divisão sexual do trabalho Relata que nas sociedades de caça e coleta a caça cabia aos homens e correspondia apenas à 40 da provisão dos grupos aos quais pertenciam Além disso enquanto a coleta atribuída às mulheres era certa a caça era extremamente incerta sendo uma atividade executada uma ou duas vezes por semana e não sendo confiável em termos de produto SAFFIOTI 2015 Em não sendo a caça uma atividade diária os homens dispunham de muito tempo livre o que favorecia o exercício da criatividade e a criação de sistemas simbólicos eficientes para passar a dominar suas parceiras SAFFIOTI 2015 Nessa perspectiva ela estima que o patriarcado esteja vigente há cinco mil anos SAFFIOTI 2015 A hipótese mais convincente levantada para justificar a atribuição da caça aos homens e da coleta às mulheres é a do aleitamento materno O trabalho feminino era efetuado com as mulheres carregando seus bebês e a possibilidade de choro certamente inviabilizaria a caça exitosa SAFFIOTI 2015 Ainda que as mulheres provavelmente dispusessem de condições mais igualitárias e de grande importância econômica em sociedades de caça e coleta em todas as sociedades conhecidas as mulheres como categoria social não têm capacidade decisória sobre o grupo dos homens não ditam normas sexuais nem controlam as trocas matrimoniais SAFFIOTI 2015 p 127 o que reforça o afirmado anteriormente apesar de o patriarcado ser um fenômeno relativamente recente na história da humanidade não se pode afirmar que em algum momento houve uma sociedade matriarcal 2 CONSTRUÇÃO E REPETIÇÃO ESTRUTURAL DO MACHISMO Para Drumont 1980 o machismo é definido como um sistema de representações simbólicas que mistifica as relações de exploração de dominação e de sujeição entre o homem e a mulher reduzindoos em sexos hierarquizados divididos em polo dominante e polo dominado Tratase de um problema estrutural nas ideologias que sustentam as relações humanas O machismo apresenta modelos de posição social para ambos os gêneros sexuais e invalida toda a configuração que não obedece a este padrão de relação Ao homem cabe a figura de liderança e poder e à mulher cabe a posição de submissão O poder apresenta duas faces a da potência e a da impotência As mulheres são socializadas para conviver com a impotência os homens sempre vinculados à força são preparados para o exercício do poder SAFFIOTI 2015 p 89 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 193 Desde criança o menino e a menina são submetidos a posições préestabelecidas independentemente de suas vontades e suas consciências vão se construindo a partir deste universo que lhes é apresentado Podemos citar o sentimento de superioridade que o menino experimenta e em contrapartida a de inferioridade em que a menina é colocada como por exemplo os brinquedos destinados às meninas sempre voltados ao cuidado do lar e maternidade enquanto os meninos podem ser astronautas cientistas ou o que bem entenderem desde que não avancem nesta posição feminina de cuidados Até mesmo características tão simples como as cores das vestimentas são consideradas marcadores de feminilidade e masculinidade com a cor rosa sendo atribuída quase que exclusivamente ao sexo feminino e a cor azul ao sexo masculino criando fronteiras de gênero intransponíveis Meninos são constantemente bombardeados com mensagens dizendolhes que homens devem dominar as mulheres que eles estão autorizados a controlar o comportamento das mulheres e até mesmo usar de violência física FRENCH 1992 Essa é uma evidência de que a masculinidade não é uma característica inerente aos homens mas sim algo extremamente instável que necessita ser defendida e que quando ameaçada cria ansiedades externadas pelos homens em forma de raiva e violência FRENCH 1992 A masculinidade é apresentada às crianças como um ideal a ser atingido por todos os homens e invejado pelas mulheres justamente pela posição de poder envolvida na situação DRUMONT 1980 É esta configuração que faz as mulheres assumirem papéis sociais enquanto cúmplices da violência de que são vítimas ainda que não se vincule a uma escolha consciente e contribuam para a reprodução de sua dependência da dominação masculina GREGORI 1992 BOURDIEU 2016 Tal definição também é defendida por Bourdieu 2016 em sua obra A Dominação Masculina Por mais que o senso comum muitas vezes dê a entender que as desigualdades entre homens e mulheres estão superadas apenas porque alguns aspectos de fato demonstraram mudanças nas últimas décadas persiste a existência de espaços sociais ocupados de maneiras distintas por homens e por mulheres E para além dessa mera diferença entre esses espaços há também uma diferença na hierarquia entre eles mulheres estando em posição inferior Esta divisão e desigualdade entre os sexos é tão presente em todo o mundo social nos corpos e nos habitus dos agentes que parece estar na ordem das coisas ser algo tão normal e natural a ponto de ser inevitável BOURDIEU 2016 O que Bourdieu chama de dominação masculina pode ser observado em diferentes sociedades e em diferentes tempos históricos sendo que o invariável é que a discriminação se justifica pela atribuição de qualidades e traços de temperamento diferentes à homens e mulheres Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 194 PISCITELLI 2009 e que tais características que restringem as possibilidades de atuação tanto de uns quanto de outras são consideradas inatas ou biológicas No caso das mulheres soma se a isso a vinculação das qualidades ditas femininas à sua capacidade de gerar filhos de modo que a principal atividade das mulheres esteja atrelada à maternidade e que seu espaço seja o domésticofamiliar Dentro desta dinâmica de dominadordominado se instaura no âmbito familiar social profissional e acadêmico o sentimento de posse da mulher pelo homem Este sentimento é corroborado pelas mais diversas mídias que em seus conteúdos fomentam o sentimento de machismo e misoginia Segundo a secretáriaadjunta de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas para Mulheres SPM Rosângela Rigo FERNANDES 2014 a mídia tem grande responsabilidade sobre os casos de violência contra a mulher em especial por transmitir a ideia de que o corpo feminino é um objeto que pode estar à disposição do prazer masculino Bandura 1965 escreve no livro Teoria Social Cognitiva um capítulo intitulado Processos vicários um caso de aprendizado sem julgamento tradução nossa onde apresenta os resultados de seus estudos que mostram que a aprendizagem observacional não depende de respostas ou reforçamento Bandura e Barab 1971 realizaram pesquisas demonstrando que a imitação generalizada é governada por crenças sociais e expectativas de resultados E a expectativa de resultados são aqueles expostos nas mídias como um ideal de homem e ideal de mulher ou de relação entre homens e mulheres sempre visando a venda de algum conteúdo com apelações machistas e misóginas Connell pesquisadora de renome internacional quando o assunto é masculinidades desenvolve seus trabalhos acerca da construção da masculinidade hegemônica da masculinidade de protesto e da feminilidade enfatizada A masculinidade hegemônica segundo Connell e Messerschmidt 2013 p 245 foi entendida como um padrão de práticas ie coisas feitas não apenas uma série de expectativas de papéis ou uma identidade que possibilitou que a dominação dos homens sobre as mulheres continuasse A masculinidade hegemônica não é a masculinidade necessariamente adotada integralmente pela maioria dos homens inclusive é provável que apenas uma minoria de homens realmente a incorpore mas é certo que ela é normativa CONNEL 2013 Mas ela tornase quase que um ideal a ser atingido pelos homens e de maneira ideológica legitima a subordinação das mulheres aos homens CONNEL 2013 A sociedade considera normal e natural que os homens ajam com violência em relação ás mulheres SAFFIOTI 2015 porque o comportamento violento e a dominação fazem parte da masculinidade hegemônica CONNEL 2013 que deve ser almejada e perseguida por eles Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 195 Porém as violências podem se manifestar de diversas formas além da violência física propriamente dita Inclusive na maioria das vezes as violências não ocorrem isoladamente a violência física acontece juntamente com a sexual emocional e moral SAFFIOTI 2015 E a isso somase o fato de que as tecnologias de gênero LAURETIS 1987 naturalizam o feminino como suposta fragilidade do corpo da mulher e o masculino como força e a manifestação dessa força através da agressividade e da violência A constante ameaça de violência funciona como mecanismo de sujeição das mulheres aos homens SAFFIOTI 2015 tornando difícil o caminho para sair de um relacionamento abusivo 3 AS SIGNIFICAÇÕES DA VIOLÊNCIA MEMÓRIA DE CASOS ATENDIDOS PELO INSTITUTO FEMINISTA NÍSIA FLORESTA A partir do momento que o homem enxerga a mulher como um bem este passa por um processo de adoecimento da masculinidade em que estão envolvidos dilemas pessoais algumas vezes o uso de substâncias psicoativas e em alguns casos psicoses já existentes São depositados neste bem todas as frustrações que já existiam e virão a existir minando a autoestima da mulher e sua independência emocional financeira e profissional O homem passa a acreditar ser dono da mulher e tenta controlar todas as esferas da sua vida Neste contexto de adoecimento da posição masculina existe o fenômeno interno feminino onde segundo Nóbrega et al 2019 os conflitos interpessoais vividos diante das situações de violência revelam o homem que de marido idealizado passa à condição de agressor Observouse em estudos de Nóbrega et al 2019 que a violência sofrida pelas mulheres não foi tratada como uma violação dos direitos da mulher o que reforça e até potencializa a aceitação para o comportamento masculino frente às situações vividas como algo que faz parte do convívio entre o casal Além disso outros comportamentos de controle da vida das mulheres chegam a ser em nossa cultura romantizados pela crença relacionada a relacionamentos românticos O ciúme que muitas vezes se manifesta como ações de administração simbólica da vida e do corpo das mulheres é comumente visto como uma demonstração de amor Muito se ouve que o homem ciumento é aquele que ama demais e tem medo de perder o objeto de seu afeto Ações como determinar quais roupas sua companheira pode ou não usar a cor de seu batom o acesso irrestrito a privacidade dela como ter a senha de suas redes sociais ou livre acesso ao seu telefone celular são ações cujos danos são minimizados pelo discurso romântico e geralmente são apenas a ponta do iceberg de um relacionamento abusivo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 196 A violência doméstica ocorre numa relação afetiva cuja ruptura demanda via de regra intervenção externa Raramente uma mulher consegue desvincular se de um homem violento sem auxílio externo Até que este ocorra descreve uma trajetória oscilante com movimentos de saída da relação e de retorno a ela Este é o chamado ciclo da violência Mesmo quando permanecem na relação por décadas as mulheres reagem à violência variando muito as estratégias A compreensão deste fenômeno é importante porquanto há quem as considere nãosujeitos e por via de consequência passivas SAFFIOTI 2015 p 84 As violências de gênero em suas modalidades familiar e doméstica não acontecem de maneira aleatória mas derivam de uma organização social generificada organização essa que privilegia o masculino em detrimento do feminino SAFFIOTI 2015 As mulheres que suportam a violência de seus companheiros são codependentes da compulsão masculina e a rotinização da violência contribui grandemente para essa codependência SAFFIOTI 2015 o que amplia a duração em que essas mulheres permanecem no ciclo de violência Um dos desafios enfrentados pelas voluntárias do Instituto Feminista Nísia Floresta é o de compreender essas relações complexas de dependência e de violência e nesse sentido relatar neste trabalho os percursos vividos pelas mulheres atendidas é um passo importante para que a compreensão se aprofunde e que o fenômeno da violência doméstica possa ser melhor endereçado 31 Mulher em situação de violência MC5 MC mulher 39 anos vítima de violência doméstica Conhecemos a Sra MC após egresso do Abrigo de mulheres do município de Blumenau A mesma conheceu o Instituto Feminista Nísia Floresta porque uma colega do abrigo o indicou e fez contato conosco após retornar à sua casa Relata que passou anos sofrendo violência doméstica Nas últimas vezes que sofreu violência correu risco de vida sendo ameaçada com faca Em visita pudemos constatar seu sofá todo cortado e teve coragem de denunciar o agressor após conhecer outro homem por quem se interessou Uma mulher guerreira como você não merece viver assim foi o que ela ouviu desse homem Nunca mais encontrou o tal homem mas precisou ouvir de outra pessoa que ela merecia mais Realizou Boletim de Ocorrência e solicitou medida protetiva foi abrigada por aproximadamente três meses e hoje de volta ao seu lar está amparada pela lei e também pela comunidade Os traficantes não querem polícia aqui falaram que vão cuidar de mim e que meu exmarido não entra mais no prédio Seu exmarido faz uso abusivo de substâncias psicoativas crack MC diz que 5 Foram usadas apenas as iniciais para preservar a identidade da mulher atendida Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 197 também fazia mas está limpa há algum tempo Relata que teve umas recaídas por conta dele mas foram poucas vezes Tem dois filhos pequenos de 4 e 2 anos a avó paterna é quem paga a pensão mas paga só o quanto quer e quando quer diz que quando ela estava como pai das crianças a avó dava tudo nunca faltou nada para eles agora que me separei ela não quer mais me ajudar porque não estou com o filho dela ela acha que estou rica por causa do benefício de R 40000 por mês do CRAS Sra MC conta sua história teve 7 filhos perdeu a guarda dos 5 primeiros quando estava enfrentando problemas com uso abusivo de substâncias psicoativas O primeiro filho cresceu num abrigo hoje é adulto trabalha vive sozinho e tem contato com ela O segundo filho permanece em abrigo mas o irmão mais velho está buscando para morar com ele A terceira e quarta filha foram adotadas juntas ela soube que estão em um município vizinho e já viu fotos em redes sociais porém não pode fazer contato O quinto filho foi o primeiro deste excompanheiro fala que ele foi adotado por um juiz e sabe que está com uma vida muito melhor Disse que nem poderia saber dessa informação mas as profissionais contaram para ela Os últimos dois filhos estão com ela mas relata que sente medo que descubram porque ela não perdeu apenas a guarda das crianças e sim o poder familiar diz que não pode mais ser mãe Atualmente após sair do abrigo enfrenta todas as dificuldades do mercado de trabalho que uma mãe solo pode ter Passaramse dois meses e continua na busca por um emprego Seus filhos estão na creche passa dias inteiros na rua preenchendo fichas em várias empresas andando longas distâncias a pé porque não possui recurso para vale transporte e muitas vezes sem comer devido à ausência de recurso financeiro Em seu momento mais crítico recebeu doações do instituto e de algumas conhecidas atualmente tem uma madrinha que tem auxiliado muito mas relata que não quer ficar dependendo de ninguém eu quero trabalhar eu sempre trabalhei sempre fui independente por favor me ajudem a conseguir um emprego 32 Mulher em situação de violência AS6 AS é egressa da Casa Eliza abrigo para mulheres em situação de violência e tem uma filha de 1 ano e 8 meses Está sendo acompanhada pelo CREAS 2 PAEFI e pelo Insituto Nisia Floresta devido a dificuldades de reinserção no mercado de trabalho Saiu com benefício da Casa Eliza para custear aluguel última parcela em agosto2019 e está tramitando processo de 6 Foram usadas apenas as iniciais para preservar a identidade da mulher atendida Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 198 pensão para a filha Foi conseguida a vaga na creche através da defensoria Pública processo que levou cerca de 2 meses O Instituto Nísia Floresta forneceu orientações referentes a busca de direitos crechepensão e forneceu também auxílio material alimentosfraldas Após seu acolhimento na Casa Eliza houve quebra de vínculo com sogros que lhe prestavam suporte nos cuidados da neta Em agosto de 2019 começou a trabalhar como manicure Assim que começou a trabalhar AS relatou que o pai da filha mostrouse mais participativo na função paterna vai levála para fazer exames para investigar possível déficit de crescimento e se dispôs a buscar a filha na creche nos dias em que AS pudesse vir a se atrasar Porém um mês depois AS entrou em contato conosco para informar que sua filha perdeu o exame de raio x porque o pai dela recusouse a levála AS estava muito nervosa porque dias depois seria a audiência para pensão alimentícia e seu excompanheiro afirmou que iria detonála perante o juiz AS afirma que ele não tem intenção de obter a guarda Conversamos no sentido de acalmála Além da recusa em levar a filha para fazer o exame o excompanheiro afirmou que não buscaria mais a filha na creche o que comprometeria o horário de trabalho de A S Orientamos para que expusesse essas questões na audiência da necessidade de manter seu emprego e da participação do pai na vida da filha 4 A BUSCA POR AJUDA E O FIM DA VIOLÊNCIA Labronici 2012 p 629 fala da percepção da mulher de estar no ciclo de violência e o limiar entre amor e medo que estas mulheres vivem o que muitas vezes é difícil pelo fato da naturalização da violência Comenta que A partir do momento em que as mulheres mesmo estando em processo de sujeição e desestruturação da própria vida e da família em função da violência sofrida durante a trajetória existencial foram surpreendidas por um comportamento de violência extrema no qual o agressor concretamente tentou matálas agredir eou matar os filhos O enfrentamento que é primeiro momento do processo de resiliência foi iniciado visto que se deparam com a possibilidade da finitude humana E adiciona A percepção da destruição da família e da finitude humana vivida pelas mulheres vítimas de violência doméstica as fez perceber que estavam acorrentadas ao ciclo de violência e risco na temporalidade do aqui e agora e isso poderia fazer da existência delas uma trajetória sem sentido insípida Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 199 deixando na memória um passado marcado pelo acúmulo de sucessivas manifestações de agressões LABRONICI 2012 p 628 A denúncia muitas vezes não é feita por motivo do sentimento de vergonha inclusive as vítimas evitavam falar aos profissionais de saúde que as atendem sobre a situação de violência MOREIRA 2008 Além desses fatores podemos elencar também a culpabilização da vítima tanto por parte da sociedade quando por ela mesma As mulheres são culpabilizadas por quase tudo que não dá certo Se ela é estuprada a culpa é dela porque sua saia era muito curta ou o decote ousado SAFFIOTI 2015 p 67 As mulheres também muitas vezes permanecem nos relacionamentos abusivos por acreditarem na possibilidade de recuperação de seus parceiros Talvez pelo fato de serem encarregadas da educação dos filhos as mulheres em geral sejam tão onipotentes Julgamse capazes de mudar o companheiro quando a rigor ninguém muda outrem SAFFIOTI 2015 p 70 Também são comuns os casos em que mulheres buscam a Delegacia Especializada com o objetivo de dar um susto em seu companheiro esperando que o relacionamento volte a ser harmonioso SAFFIOTI 2015 Considerando dados de estudos de Nóbrega et al 2019 o estar com o outro em redes de apoio social permite a continuidade do processo de ruptura com a violência e seu agressor Desta forma quando a vítima consegue falar e expor sua subjetividade a partir da sua experiência traumática ela pode atribuir novo significado à vivência armazenada e ao fazêlo será possível mudar a significação do sofrimento e assim superálo LABROCINI 2012 p 629 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS O que temos percebido em nossas práticas como voluntárias de uma organização não governamental que trabalha com o atendimento de vítimas de violência é que as consequências da violência não se encerram quando a violência em si cessa As mulheres vítimas seguem necessitando não apenas de suporte financeiro como também de acolhimento psicológico e dependendo grandemente de uma rede de apoio Essa rede de apoio muitas vezes é formada pelo próprio agressor ou por sua família como pudemos ver no caso de MC que recebia pensão dos sogros e de AS que depende do excompanheiro para buscar a filha na creche levála para consultas médicas etc O sexismo conforme Saffioti 2015 não é apenas um preconceito mas também a possibilidade de agir sobre o preconceito Ou seja o machista é investido de poder habilitado pela sociedade a tratar legitimamente as pessoas sobre quem recai o preconceito da maneira Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 200 como este as retrata SAFFIOTI 2015 p 131 O fenômeno do sexismo não é individual mas social e autoriza a sociedade como um todo a discriminar e marginalizar as mulheres privando as do convívio social comum SAFFIOTI 2015 que é o que vemos em nosso cotidiano acontecendo com as mulheres vítimas de agressão e especialmente as mulheres mães À elas é permitida uma integração subordinada Essas mulheres retratadas neste estudo por serem mães solo em sua maioria e sem formação qualificada encontram muitas dificuldades para se reinserirem no mercado de trabalho que é bastante hostil com a maternidade Os dois casos relatados aqui são exemplos dessa dificuldade porém devemos destacar que essa condição é verdadeira para todas as mulheres atendidas O município de Blumenau conta com uma rede de atendimento que pode ser considerada eficaz com relativa intersetorialidade entre os serviços Existe um Comitê de Atenção a Pessoas em Situação de Violência Sexual Doméstica Institucional e Familiar que busca articular os serviços e otimizar os protocolos de atendimento Desse Comitê participam representantes da maior parte dos serviços como Centro de Referência em Assistência Social CRAS Centro de Referência Especializado em Assistência Social CREAS Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social SEMUDES Serviço de Atendimento à Vítimas de Violência Sexual SAVS Conselho Tutelar Delegacia de Proteção a Criança Mulher e Idoso Promotoria Pública Rede Catarina Polícia Civil hospitais e organizações nãogovernamentais como o Instituto Feminista Nísia Floresta Blumenau dispõe de uma Delegacia Especializada é um dos poucos municípios que possui uma casa abrigo Porém avaliamos que as dificuldades enfrentadas pelas mulheres não são supridas integralmente por esses serviços porque ainda pesa sobre elas a pressão social e o estigma relacionado à violência sofrida Por mais que elas encontrem acolhimento mesmo que por vezes com alguns atendimentos problemáticos ainda sofrem com a falta de amparo psicológico e muitas vezes financeiro Elas percorrem um longo caminho para terem coragem de denunciar e tomar uma atitude frente a violência e depois desse importante passo sofrem com a dificuldade de voltarem a ter uma vida considerada normal Muitas delas devido à violência psicológica que sofreram durante o relacionamento não contam com uma rede de apoio com amigas ou mesmo familiares dispostos a prestarem auxílio Uma verdadeira política de combate à violência doméstica exige que se opere em rede englobando a colaboração de diferentes áreas SAFFIOTI 2015 p 96 Uma parceria entre as delegacias especializadas a magistratura o ministério público defensoria pública hospitais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 201 profissionais de saúde educação serviço social são fundamentais Mas defendemos o trabalho da sociedade civil organizada através de organizações nãogovernamentais no sentido de prestar suporte nas áreas em que o poder público não alcança Especialmente o trabalho de orientação acolhimento emocional e empoderamento7 podem ser determinantes para que as vítimas possam quebrar o ciclo de violência e consigam se recuperar e seguirem suas vidas da melhor maneira possível REFERÊNCIAS ALARCÓN Silvia de PRIETO Vicente Ed Karl Marx Escritos sobre la Comunidad Ancestral 2 ed La Paz Vicepresidencia del Estado Plurinacional Presidencia de la Asamblea Legislativa Plurinacional 2015 BANDURA Albert AZZI Roberta Gurgel POLYDORO Soely Teoria social cognitiva conceitos básicos Porto Alegre Artmed 2008 BANDURA Albert Vicarious processes a case of notrial learning In BERKOWITZ Leonard Ed Advances in experimental social psychology New York Academic Press 1965 v2 p155 BANDURA Albert BARAB Peter G Conditions governing nonreinforced imitation Developmental Psychology v5 p244255 1971 BOURDIEU Pierre A dominação masculina A condição feminina e a violência simbólica 3ª ed Rio de Janeiro Bestbolso 2016 COMISSÃO INTERNACIONAL DE DIREITOS HUMANOS Convenção Interamericana para Prevenir Punir e Erradicar a Violência contra A Mulher Convenção de Belém do Pará 1994 Disponível em httpswwwcidhoasorgbasicosportuguesmBelemdoParahtm Acesso em 11 set 2019 CONNELL Raewyn MESSERSCHMIDT James W Masculinidade hegemônica repensando o conceito Estudos Feministas Florianópolis 211 424 2013 DRUMONT Mary Pimentel Elementos para uma análise do machismo Perspectivas São Paulo 38185 1980 ENGELS Friedrich A Origem da Família da Propriedade Privada e do Estado 9 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1984 FERNANDES Sarah Mídia tem responsabilidade diz Secretária de Política para Mulheres Rede Brasil Atual São Paulo 25 de Nov de 2014 Disponível em 7 Empoderarse equivale num nível bem expressivo do combate a possuir alternativas sempre na condição de categoria social O empoderamento individual acaba transformando as empoderadas em mulheresálibi o que joga água no moinho do neoliberalismo se a maioria das mulheres não conseguiu uma situação proeminente a responsabilidade é delas porquanto são pouco inteligentes não lutaram suficientemente não se dispuseram a suportar os sacrifícios que a ascensão social impõe num mundo a elas hostil SAFFIOTI 2015 p 121 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 202 httpswwwredebrasilatualcombrcidadania201411midiatemresponsabilidadena violenciadegenerodizsecretariadepoliticasparamulher568 Acesso em 23 ago 2019 FORTES Ronaldo Vielmi Gênese social e atualidade dos processos de inferiorização da mulher em Marx Engels e Lukács Rev katálysis Florianópolis v 21 n 3 p 441451 Dec 2018 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1414 49802018000300441lngennrmiso Acesso em 22 ago 2019 FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA Anuário brasileiro de segurança pública Ano 12 São Paulo 2018 ISSN 19837364 Disponível em httpwwwforumsegurancaorgbrwpcontentuploads201903AnuarioBrasileirode SeguranC3A7aPC3BAblica2018pdf Acesso em 23 ago 2019 FRENCH Marilyn A guerra contra as Mulheres uma denúncia devastadora da situação da mulher no mundo de hoje São Paulo Editora Best Seller 1992 GREGORI Maria Filomena Cenas e queixas um estudo sobre mulheres relações violentas e a prática feminista São Paulo ANPOCS 1992 HOWARD Louise M et al Domestic Violence and 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Rio de Janeiro v 24 n 7 p 26592666 Jul 2019 ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DA SAÚDE Organização Mundial da Saúde Folha informativa Violência contra as mulheres 2017 Disponível em httpswwwpahoorgbraindexphpoptioncomcontentviewarticleid5669folha informativaviolenciacontraasmulheresItemid820 Acesso em 11 set 2019 PISCITELLI Adriana Gênero a história de um conceito In ALMEIDA Heloisa Buarque SZWAKO José Orgs Diferenças igualdade São Paulo Berlendis Vertecchia 2009 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 203 SAFFIOTI Heleieth Gênero Patriarcado Violência 2 Ed São Paulo Expressão Popular 2015 SCOTT Joan Wallach Gênero uma categoria útil de análise histórica Educação Realidade Porto Alegre vol 20 nº 2 juldez 1995 pp 7199 SENADO FEDERAL Panorama da violência contra as mulheres no Brasil indicadores nacionais e estaduais Brasília Senado Federal Observatório da Mulher Contra a Violência 2016 WHO Global and regional estimates of violence against women prevalence and health effects of intimate partner violence and nonpartner sexual violence Geneva WHO Press 2013 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 204 APONTAMENTOS ACERCA DO HISTÓRICO DE VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES E SEU ENFRENTAMENTO NA CIDADE DE IMPERATRIZMA Fernanda Miler Lima Pinto1 Jéssica Painkow Rosa Cavalcante2 Regina Célia Costa Lima3 RESUMO O presente artigo tem como objetivo realizar uma breve exposição do trabalho de enfrentamento à violência contra a mulher na cidade de Imperatriz localizada no Estado do Maranhão passando pelo reconhecimento da luta histórica dos movimentos sociais e do estabelecimento de políticas públicas de combate às agressões de gênero Para tanto essa pesquisa se forma a partir de um estudo bibliográfico para atingir seu objetivo e confrontar sua hipótese O problema aqui investigado é se a cidade de Imperatriz contribui no enfrentamento e combate de violência contra mulheres de forma eficaz considerando que esta cidade é uma das poucas no Brasil que possui uma rede especializada considerada completa no enfrentamento à esse tipo de problema O trabalho se propõe em primeiramente familiarizar o leitor com aspectos marcantes da história dessa cidade e região para em seguida expor como os movimentos que lutam pela causa das mulheres e a Rede Especializada de Atendimento à Mulher em Situação de Violência se formaram nessa cidade Ao final levantase a reflexão acerca de como as políticas públicas desenvolvidas na cidade contribuíram de forma efetiva para o combate a violência doméstica Palavraschave Imperatriz Maranhão Violência contra a Mulher Rede Especializada de Atendimento à Mulher em Situação de Violência INTRODUÇÃO Infelizmente a história nos mostra que desde os primórdios da humanidade a violência contra a mulher tem estado presente No entanto esse é um problema que não pode prosperar em uma sociedade que preza pelo estado de direito pela democracia e pelos direitos humanos Portanto enfrentar avidamente esse problema é de uma necessidade fundamental No sentido de se combater a violência contra mulher o Brasil adotou diversas medidas de proteção às vítimas e de combate à violência doméstica e familiar como a criação de uma 1 Advogada inscrita na OABMA Mestranda em Direito Público na Universidade Vale do Rio Sinos UNISINOS Email fernandamlp1206gmailcom Lattes httplattescnpqbr1672312046277512 2 Advogada inscrita na OABTO Doutoranda em Direito Público na Universidade Vale do Rio dos Sinos UNISINOS Mestra em Direitos Humanos pela Universidade Federal de Goiás UFG Pósgraduada lato sensu em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Cândido Mendes Pósgraduada lato sensu em Direito Agrário e Agronegócio pela Faculdade Casa Branca Facab Email jessicapainkowhotmailcom Lattes httplattescnpqbr4024280261959707 3 Docente do Curso de História da Universidade Estadual da Região Tocantina do Maranhão UEMASUL Doutoranda pelo Programa de Pósgraduação em História da Universidade do Vale do Rio Sinos UNISINOS Mestra em Ciências Ambientais e Saúde pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás PUCGO Email regnaceliahotmailcom Lattes httplattescnpqbr1384692968984742 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 205 lei com competência civil e criminal a Lei nº 1134006 em virtude de uma condenação em plano internacional pelo Caso Maria da Penha Fernandes Essa lei determina que o poder público tome diversas atitudes de modo a promover políticas públicas e gerir instituições que atuem no combate à violência contra a mulher e na proteção às vítimas nesse processo sendo resultado de grande mobilização de movimentos feministas realizados à época No Brasil a violência de gênero persiste sob números alarmantes comprometendo a vida de inúmeras pessoas Acerca de injustiça de gênero Nancy Fraser 2006 p 234 compreende que a principal característica se faz no androcêntrismo que é a construção autorizada de normas que privilegiam os traços associados à masculinidade Sendo assim a violência doméstica4 e familiar contra a mulher é um problema de gênero amparado em conceitos históricos e culturais de dominação masculina subvertendo identidades e cristalizandose como verdades inabaláveis por anos a fio devendo ser combatidos através de políticas de reconhecimento e redistribuição5 ou seja através de mudanças econômicas políticas e culturais FRASER 2006 Nesse sentido Nancy Fraser 2006 p 235 compreende que tais problemas não podem ser remediados apenas pela redistribuição econômico política mas precisam de medidas independentes e adicionais de reconhecimento O androcêntrismo e sexismo predominantes exigem a mudança dos valores culturais assim como de suas expressões legais e práticas que privilegiam a masculinidade e negam respeito às mulheres Exigem o descentramento das normas androcêntricas e a revalorização de um gênero desprezado A lógica do remédio é semelhante à lógica relativa à sexualidade conceder reconhecimento positivo a um grupo especificamente desvalorizado As feministas devem buscar remédios que dissolvam a diferenciação de gênero enquanto buscam também remédios culturais que valorizem a especicidade de uma coletividade desprezada Desse modo atuando na forma de reconhecimento de direitos com inspiração na Lei Maria da Penha foi criado um conjunto de órgãos que atuam de forma interligada e harmônica no enfrentamento à violência contra a mulher conhecido como Rede Especializada de Atendimento à Mulher em Situação de Violência 4 Entendese por violência doméstica neste trabalho a conceituação fornecida pelo artigo 5 o da Lei Maria da Penha sendo qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte lesão sofrimento físico sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial 5 Parte aqui do pressuposto de conexão entre ideias de reconhecimento e distribuição que conforme compreende Nancy Fraser 2006 se reforçam por remédios afirmativos e transformativos Para mais informações sobre o tema FRASER Nancy Da redistribuição ao reconhecimento dilemas da justiça numa era póssocialista Cadernos de Campos São Paulo v 15 n 14 p231239 jan 2006 Tradução de Julio Assis Simões Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 206 Nessa pesquisa o objeto deste estudo focase na situação de enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher em Imperatriz a segunda maior cidade do Estado do Maranhão considerado um dos poucos lugares que possuem uma rede completa de enfrentamento e combate de violência doméstica Este artigo busca realizar uma análise de como a cidade de Imperatriz atua no combate e na adoção das políticas de reconhecimento e se estas são consideradas suficientes para o enfrentamento eficaz de violência contra mulheres Sob uma análise singularmente bibliográfica o trabalho se divide em primeiramente familiarizar o leitor com aspectos marcantes da história dessa cidade e região em segundo lugar expor como os movimentos que lutam pela causa das mulheres e a Rede Especializada de Atendimento à Mulher em Situação de Violência se formaram nessa cidade e ao final levantar a reflexão acerca de como as políticas públicas desenvolvidas na cidade contribuíram de forma efetiva para o combate a violência doméstica 1 IMPERATRIZ UMA CIDADE ENTRE O RIO O SERTÃO E UMA RODOVIA A Cidade de Imperatriz está localizada na porção ocidental da região amazônica Situada no sudoeste do Maranhão sendo um polo econômico cultural político e populacional que aglutina o sul do Maranhão parte do Tocantins e do Pará que lhe fazem fronteira Estendese pela margem direita do rio Tocantins um dos mais importantes rios da região norte do Brasil sendo atravessada pela Rodovia BR010 conhecida como rodovia BelémBrasília situada na divisa com o Estado do Tocantins LIMA 2015 Para Franklin 2005 a história da ocupação e colonização de Imperatriz e região tem as condições geográficas como um dos fatores preponderantes Pelo rio Tocantins os colonizadores em meados do século XIX adentraram na região para se apropriarem do cerrado e da Amazônia utilizando violências diversas contra as diferentes tribos indígenas nativas da região como os Canela Gaviões e Krikati O surgimento da cidade se deu pelos bandeirantes que desbravavam o norte do país em busca de riquezas e apoderamento territorial e pelas entradas religiosas que objetivavam a reafirmação da força da religião católica no país Assim podese dizer que O surgimento de Imperatriz começou a ser desenhado nos fins do Século XVI e início do século XVII com a iniciativa dos bandeirantes que partindo de São Paulo buscavam nos confins do Norte a riqueza o desconhecido e a aventura Enquanto os bandeirantes navegavam da nascente em busca da foz paralelamente as entradas governamentais eou religiosas subiam o rio tentando alcançar suas nascentes Das entradas realizadas a que mais nos interessa foi a que se realizou no ano de 1658 pelos jesuítas Padre Manoel Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 207 Nunes e Padre Francisco Veloso que teriam sido os primeiros a utilizar o sítio onde hoje está Imperatriz IMPERATRIZ online Segundo Franklin 2005 nessa região foi fundada a povoação de Santa Teresa em 16 de julho de 1852 por Frei Manoel Procópio do Coração de Maria que comandou uma expedição militar por encomenda do Governo do Pará com o objetivo de aldear os indígenas da região bem como o alargamento territorial do Estado A emancipação política da povoação se deu em 27 de agosto de 1856 pela lei nº 398 quando elevouse à categoria de vila intitulandose Vila de Santa Teresa Em 1862 passou a se denominar Vila Nova de Imperatriz em homenagem à esposa de Dom Pedro II a imperatriz Teresa Cristina e tornouse para a categoria de cidade no ano de 1924 quando passou a se chamar simplesmente Imperatriz A partir da década de 1960 juntamente com o processo de aceleração da vida urbana brasileira Imperatriz passou por várias transformações na redefinição de seu perfil O número de habitantes da cidade passou de 39 mil em 1960 para 80 mil em 1970 o que tornou Imperatriz o segundo município mais populoso do Estado do Maranhão somente ficando atrás da capital São Luís LIMA 2015 Em 1958 o congresso nacional autorizou o início da construção da rodovia BelémBrasília com isso a cidade sofreu um súbito crescimento populacional A partir de 1960 Imperatriz experimenta um surto de desenvolvimento com abertura de ruas e construção de praças LIMA et al 2016 p 721 Em Imperatriz a inauguração da produção historiográfica local foi feita por uma mulher que ousou penetrar no universo literário LIMA et al 2016 p 718 Essa foi Edelvira Marques de Moraes Barros influente professora e responsável por escritos que visaram dar visibilidade ao município de Imperatriz e região aproximando as novas gerações e a história do lugar estimulando o sentimento de pertença LIMA 2016 Desse modo essa professora afirma que no final da década de 1950 Imperatriz passou por grandes transformações com a chegada dos migrantes que vieram revitalizar a pequena cidade e iniciar o ciclo da produção de arroz Os terrenos baldios foram ocupados as poucas ruas e travessas cresceram e frentes de colonização eram abertas BARROS 1996 p 105 Portanto as grandes obras de desenvolvimento implantados na região que tem como marco inicial a construção da BelémBrasília mudam o destino da cidade pois era de agora em diante um novo centro de povoamento para o trabalho para a agricultura e a pecuária para a indústria e o comércio ponto avançado de uma civilização nova NETTO 1979 p168 Esse histórico de progresso iniciado em meados do século passado fazem de Imperatriz a segunda maior cidade do Maranhão em desenvolvimento econômico e de infraestrutura Em Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 208 termos populacionais ocupa a segunda colocação no Maranhão e a 101ª no Brasil com 247505 habitantes segundo o censo de 2010 sendo que desse total 128278 5183 são mulheres e 119227 4817 são homens IBGE online Além disso a cidade possui várias demandas sociais e um crescente desenvolvimento econômico que nas últimas quatro décadas tem atraído grandes investimentos como o crescimento do comércio e a expansão industrial notadamente pela implantação de uma fábrica filial da empresa Suzano Papel e Celulose em terras imperatrizenses A cidade funciona como entreposto comercial e de serviços no qual se abastecem mercados locais em um raio de 400 km e forma com AraguaínaTO MarabáPA BalsasMA e AçailândiaMA uma importante província econômica O município situase na área de influência de grandes projetos como a mineração da Serra dos Carajás MarabáParaupebas a mineração do igarapé Salobro MarabáParaupebas a Ferrovia CarajásItaqui a Ferrovia NorteSul as indústrias guzeiras Açailândia a indústria de celulose da Celmar Cidelândia que pela proximidade destes projetos de algum modo condicionam seu desenvolvimento IMPERATRIZ online A história de desenvolvimento de Imperatriz lhe concedeu títulos como Princesa do Tocantins Portal da Amazônia Capital Brasileira da Energia e até Metrópole da Integração Nacional IMPERATRIZ online No entanto essa cidade não é conhecida somente pelo seu crescimento mas também por um histórico de violência o qual lhe estigmatizou durante 30 anos como a Capital da Pistolagem Ainda hoje Imperatriz conserva os traços da violência sendo as taxas de homicídio durante o período entre 2000 e 2010 maiores que a própria capital São Luís Segundo o Mapa da Violência WAISELFISZ 2011 p 130 Os municípios de maior porte apresentaram elevado crescimento na década como a Capital São Luís que passa de 166 para 561 homicídios em 100 mil com aumento de 2388 ou o segundo município em população Imperatriz que passa 126 para 558 com crescimento de 3433 na década Desse modo Imperatriz está elencada como 163ª cidade mais violenta do país acima da capital São Luís que ocupa o 165ª posição BRETAS 2015 online De acordo com dados extraídos do Mapa da Violência 2015 Homicídios de Mulheres no Maranhão o número da população agredida por pessoa conhecida é de 126867 sendo 86189 correspondentes a mulheres e 40678 homens Em valores percentuais a população masculina equivale a 19 e a feminina o dobro disso 38 Ademais o mesmo estudo apresenta outra tabela expondo que 644 dos locais de ocorrência de violência contra a mulher por pessoa conhecida é na própria residência da vítima Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 209 Diante desse panorama percebese que a violência doméstica e familiar contra a mulher ainda é um enorme problema a ser enfrentado sendo em Imperatriz uma realidade não diferente O município conta com índices alarmantes nesse tipo de violência contra a mulher em especial a doméstica e familiar Fontes diversas alertam para esses números que ao longo do tempo não deixam de ser uma preocupação para os órgãos públicos que lidam com esse tipo de violência e também para a população em geral Em 2015 o site do Ministério Público do Estado do Maranhão 2015 online publicou reportagem na qual a promotoria de justiça com atribuição para os casos envolvendo esse tipo de violência afirma que somente em 2014 mais de 1000 boletins de ocorrência foram registrados acerca desse problema nesse município Em 2018 o site do G1 2018 online publicou uma matéria na qual alerta para o aumento do número de registros de agressão contra mulheres em Imperatriz Segundo essa reportagem jornalística em todo o ano de 2017 a Delegacia da Mulher registrou 567 inquéritos policiais sendo que em meados de 2018 355 inquéritos já estavam abertos para investigar casos de violência contra a mulher em Imperatriz ou seja mais da metade do total de inquéritos abertos no ano de 2017 Esse histórico de violência não é algo recente por isso o problema motivou as discussões sobre gênero nessa região que tomaram forma e força há mais de três décadas pelos movimentos feministas com reivindicações de políticas a serem implementadas pelo Estado de modo a combater a violência contra a mulher Hoje Imperatriz conta com praticamente todos os órgãos da Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher porém apesar de todo esse esforço os números de ocorrências com esse tipo de agressão ainda são desproporcionalmente altos Mary Ferreira 2013 p 29 ressalta essa dificuldade no Estado do Maranhão para a implementação de políticas públicas que combatam a violência de gênero sendo no geral medidas descontínuas e desarticuladas Embora os movimentos sociais estejam vigilantes e demandando ações concretas e efetivas ao Estado para o enfrentamento do problema as respostas nem sempre são a contento Conforme observase Ao longo desse período os documentos encaminhados ao governo do Estado e aos governos municipais pelos movimentos organizados reivindicando mudanças na gestão estadual e municipal buscando alterar as relações de gênero no sentido de construir uma sociedade de iguais As respostas não têm sido satisfatórias e muitas vezes há equívocos na visão dasos gestorases na compreensão do que seja política programa e ação É visível por parte dos movimentos de mulheres as dificuldades dessesas gestorases em articular as ações do governo a médio e longo prazo FERREIRA 2013 p 29 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 210 Nesse sentido fazse mister apresentar aqui um breve histórico da luta dos movimentos organizados em Imperatriz por reformas que reduzam as desigualdades sociais sendo uma importante contribuição para isso a redução da violência de gênero 2 DOS MOVIMENTOS SOCIAIS E FEMINISTAS ATÉ A FORMAÇÃO DA REDE ESPECIALIZADA NO ATENDIMENTO À MULHER EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA Como outrora foi exposto Imperatriz é uma cidade ascendente economicamente sendo um atrativo para empresas de grande renome nacional e internacional Situada no interior do Maranhão numa região com intensa atividade extrativista com enorme concentração fundiária e tensões sociais constantes De acordo com Amorim 2013 p 43 o processo histórico da cidade e região e o fato de Imperatriz estar na rota dos interesses capitalistas enquanto polo de atração para diversos projetos desenvolvimentistas contribuíram não apenas para o seu crescimento desordenado mas também favoreceu o surgimento de diversas mazelas sociais violências urbanas e rurais das quais destacamse os crimes por encomenda que tanto marcaram a história da cidade nas últimas décadas do século XX Imperatriz teve ciclos econômicos diversos tendo por consequência disso uma população mista oriunda de diversos lugares do país que buscaram nessas terras oportunidades de trabalho e estudo Imperatriz viveu ciclos econômicos que demandaram a vinda de muitos homens para a região oriundos de todos os cantos do país entre eles o ciclo do ouro vivido pela região em função da Serra Pelada este período houve também a vinda de muitas jovens para a cidade a maioria delas eram trazidas de interiores rurais do Maranhão e do Pará estas eram convencidas a vir para a cidade trabalhar em casas de famílias onde poderiam vislumbrar um futuro estudar no entanto eram levadas para boates e bares para trabalharem na prostituição AMORIM 2013 p 43 Atualmente a maior parte da população imperatrizense é de mulheres e a violência de gênero em especial a violência contra a mulher é tangível apesar dos números e estatísticas não serem organizados e contabilizados propriamente pelas instituições responsáveis AMORIM 2013 p 43 44 assim como no resto do país6 6 Várias fontes comprovam que o Brasil ainda é muito deficiente na organização de estatísticas na área de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher A exemplo disso podese citar o Relatório Final da CEPIA Violência Contra a Mulher e Acesso à Justiça Estudo comparativo sobre a aplicação da Lei Maria da Penha em cinco capitais Não existem estatísticas ou indicadores numéricos que permitam comparar a quantidade de casos de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 211 Para Formiga 2013 a história dos movimentos sociais de Imperatriz andam lado a lado com as influências religiosas sendo que na década de 1970 os primeiros grupos organizados e engajados nas causas das mulheres surgiram organizados pela Igreja Católica Conforme essa autora o Clube de mães de Imperatriz é uma organização pioneira nessa trajetória dos movimentos de mulheres na região Se estruturando inicialmente como organização meramente religiosa com ações que giravam em torno da espiritualidade da promoção de lazer e da assistência o Clube de Mães apesar de seu caráter assistencial moral e educativo é inegável constatar o seu papel histórico enquanto espaço pioneiro na organização e representatividade das mulheres na cidade de Imperatriz Isso quer dizer que refletiu em um lugar onde as mulheres podiam se reconhecer como uma coletividade FORMIGA 2013 p47 No entanto o Clube de Mães não se demonstrava suficiente para o enfrentamento dos maiores problemas que as mulheres encaravam na época sobretudo não configurava ferramenta cabível para combater a violência de gênero Nesse sentido Sueli Brito Barbosa 2013 p 125 explica que o estatuto do Clube de Mães de Imperatriz acabava por reafirmar vários estereótipos da mulher perfeita para esse período definindo as mães como mulheres cuidadosas que zelam e promovem a educação dos filhos Questões políticas e sociais não tinham espaço reservado para essas mães que por esse projeto acabavam por ter papel de cuidadoras exemplares com responsabilidade primeira na educação dos filhos sem criticar em momento algum a divisão de tarefas domésticas entre os pais Segundo esses documentos pesquisados nos núcleos dos Clubes de Mães de Imperatriz são desenvolvidas atividades espirituais palestras encontros com objetivo de valorizar as festas familiares promoção das festas religiosas como páscoa casamentos batizados confraternização no dia das mães e dos pais atividades culturais vários cursos de artesanatos corte e costura beleza arranjos florais e palestras educativas e atividades recreativas encontros musicais apresentações teatrais em datas cívicas festas dançantes visitas e passeios entre os núcleos para troca de experiência e confraternização Entretanto é importante mencionar o papel importante do Clube de Mães na organização das mulheres sendo responsável pela eleição de uma vereadora No decorrer dos processos emancipatórios das mulheres o Clube de Mães se engaja na luta por direitos passa a incorporar as comemorações do 8 de março como atividades a partir dos anos noventa BARBOSA 2013 p 126 violência doméstica e familiar entre as capitais selecionadas A única referência para comparações entre capitais é o Mapa da Violência 2012 cujos números têm sido usados para refletir sobre a violência contra as mulheres no Brasil Sua elaboração utiliza o único documento nacional registros de óbito que permite ter uma visão comparativa e segura a partir de um registro administrativo Outras fontes de informações são ainda deficitárias e não padronizadas dificultando que se possa ter um bom dado sobre essa violência8 e sua captação pelas instâncias públicas responsáveis por seu enfrentamento CEPIA 2013 p 16 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 212 Seguindo a trajetória histórica proposta por Barbosa 2013 o segundo grupo organizado de mulheres em Imperatriz foi a Pastoral das Prostitutas em 1975 sendo também a exemplo do clube de mães iniciativa da Igreja Católica Juntamente com o processo de urbanização a partir do final da década de 1950 vieram as mazelas próprias dessa forma de desenvolvimento entre estas se destaca a exploração sexual de mulheres e jovens vindas de várias partes dos interiores do Maranhão e do Pará que acabaram encontrando em terras imperatrizenses uma forma de sustento com trabalhos noturnos em boates e bares e na prostituição As regiões da Farra Velha e Mangueirão ficaram conhecidas pelo meretrício e era nesses locais que freiras e grupos de senhoras da Igreja Católica uma vez por semana visitavam com a intenção de evangelizar as prostitutas no próprio local de trabalho Depois uma casa foi adquirida na área da Farra Velha onde foi montada uma escola para as filhas e filhos das mulheres e oferecidos vários cursos de artesanato corte e costura bordados arte culinária visando favorecer novas formas de sobrevivência econômica e o rompimento das mesmas com a prática da prostituição BARBOSA 2013 p 126 Percebese que esses dois grupos se limitavam a reunir mulheres e realizar atividades de acordo com o estereótipo feminino como artesanato costura e culinária Somente em meados da década de 1980 com a instalação do Centro de Educação dos Trabalhadores Rurais CENTRU é que questões como a organização das mulheres saúde e sexualidade começaram a ser efetivamente discutidas em cursos seminários e debates BARBOSA 2013 p 127 Destacase ainda a presença do Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu MIQCB criado na década de 1980 como resultante do processo de enfrentamento de tensões e conflitos específicos pelo acesso e uso comum das áreas de ocorrência de babaçu Com uma base consistente na região tocantina o movimento reúne mulheres da zona rural do município tendo como principal reivindicação a aplicação da lei do babaçu livre MOVIMENTO INTERESTADUAL DE QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU 2013 Outro movimento importante foi a Plenária Urbana de Imperatriz PLURI fundada no final da década de 1980 a PLURI que reunia a sociedade civil organizada em torno da luta por equipamentos urbanos lutas setoriais por saúde educação moradia transporte público e por cidadania envolvendo a questão da mulher na sociedade a homossexualidade a acessibilidade e a participação política No começo dos anos 90 em entrevista ao Jornal E Agora Lima 1992 já defendia a ampliação dos espaços de participação popular na luta por políticas públicas e o engajamento de mulheres na vida política sobretudo no poder legislativo Essas pautas ainda hoje são atualíssimas e necessárias Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 213 Barbosa 2013 p 127 assegura que na década de 1990 novos grupos surgiram aliados a outros movimentos da região como o Movimento dos Sem Terra a Coordenação dos Povos Indígenas do Maranhão as entidades sindicais o Comitê Permanente de Combate à Violência e à Negligência Médica e o Movimento Fagulha Em 1996 houve a unificação desses dois últimos movimentos ficando conhecido como somente Movimento Fagulha que sob a influência da ativista imperatrizense na causa feminista Conceição Amorim passou a discutir demandas políticas e sociais com os demais grupos de mulheres no município Ainda de acordo com Barbosa 2013 p 127 em 2001 o Movimento Fagulha passou a se chamar Centro de Promoção da Cidadania e Defesa dos Direitos Humanos Padre Josimo em homenagem ao pároco coordenador da Comissão Pastoral da Terra CPT que foi executado a mando dos latifundiários da região enquanto subia as escadas do prédio da Mitra Diocesana de Imperatriz em 1986 Em 2002 o primeiro grupo a se reconhecer feminista na cidade surgiu como Coordenadoria de Mulheres Esse grupo tinha o objetivo de atuar frente à violação dos direitos humanos numa perspectiva política de defesa dos direitos das mulheres BARBOSA 2013 p 128 No processo de unificação das lutas entre movimentos de mulheres e de feministas em 2005 foi criado o Fórum de Mulheres de Imperatriz com a participação de entidades que atuam direta ou indiretamente na defesa dos direitos das mulheres BARBOSA 2013 p 128 A intenção desse fórum era se desvencilhar de alguns posicionamentos ligados aos grupos da Igreja Católica e defender a liberdade sexual e reprodutiva das mulheres com foco para a descriminalização do aborto A partir do estudo de Barbosa 2013 p 129 extraise que os debates fomentados pelo movimento feminista na cidade provavelmente alteraram a percepção da luta das mulheres e o modo de intervir dos demais grupos o que antes se limitava a práticas de caridade problemas domésticos e evangelização por exemplo depois das feministas os grupos passaram a participar de discussões envolvendo temas políticos e sociais como políticas públicas e saúde reprodutiva No contato pessoal com as militantes foi possível mensurar o potencial político e intelectual de cada grupo e perceber que as militantes feministas elaboram e pensam os problemas vividos politicamente propõem e desenvolvem ações radicais no contexto real da palavra e se enxergam como sujeito político capaz de intervir e transformar a realidade vivida enquanto que as militantes dos grupos de mulheres têm uma visão limitada do mundo da compreensão política dos fatos que envolvem o seu cotidiano de elaborar propostas básicas para a resolução de seus problemas e em especial dos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 214 problemas coletivos e o mínimo de senso crítico Enquanto a maioria das militantes feministas demonstra o hábito da leitura e do estudo esta é uma prática de poucas do movimento de mulheres Outro elemento observado ao longo desse estudo é que enquanto as feministas são estimuladas a pensar e dar respostas simples ou complexas para as suas lutas a maioria das militantes do movimento de mulheres tendem a buscar respostas prontas na liderança maior de seu grupo BARBOSA 2013 p 129 130 Agora é de se questionar o que une essas mulheres A resposta está nas conquistas efetivas fruto das reivindicações dos movimentos sociais que acarretaram a criação e instalação dos serviços de atendimento à mulher em Imperatriz Essas estruturas quando trabalham de forma articulada e interligada formam uma rede a qual é conhecida nacionalmente como Rede de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher O conceito de rede de enfrentamento à violência contra as mulheres diz respeito à atuação articulada entre as instituiçõesserviços governamentais nãogovernamentais e a comunidade visando ao desenvolvimento de estratégias efetivas de prevenção e de políticas que garantam o empoderamento das mulheres e seus direitos humanos a responsabilização dos agressores e a assistência qualificada às mulheres em situação de violência Já a rede de atendimento faz referência ao conjunto de ações e serviços de diferentes setores em especial da assistência social da justiça da segurança pública e da saúde que visam à ampliação e à melhoria da qualidade do atendimento à identificação e ao encaminhamento adequados das mulheres em situação de violência e à integralidade e à humanização do atendimento A rede de enfretamento é composta por agentes governamentais e nãogovernamentais formuladores fiscalizadores e executores de políticas voltadas para as mulheres organismos de políticas para as mulheres ONGs feministas movimento de mulheres conselhos dos direitos das mulheres outros conselhos de controle social núcleos de enfretamento ao tráfico de mulheres etc serviçosprogramas voltados para a responsabilização dos agressores universidades órgãos federais estaduais e municipais responsáveis pela garantia de direitos habitação educação trabalho seguridade social cultura e serviços especializados e nãoespecializados de atendimento às mulheres em situação de violência que compõem a rede de atendimento às mulheres em situação de violência SPM online As principais características entre a Rede de Enfretamento e a Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência são bem explicadas no quadro extraído da cartilha Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres 2011 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 215 Figura 1 Características da Rede de Enfrentamento e Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência Fonte Rede de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres 2011 Dessa maneira observase que a Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência possui duas categorias serviços especializados e nãoespecializados Esses são os serviços que constituem a porta de entrada na Rede como os hospitais em geral os serviços de atenção básica delegacias comuns polícia militar polícia federal Centros de Referência de Assistência Social CRAS Centros de Referência Especializados de Assistência Social CREAS Ministério Público e Defensoria Pública SPM 2011 p 15 No lado oposto os serviços especializados são os que atendem exclusivamente as mulheres em situação de violência e possuem a maestria nesse assunto São esses Centros de Atendimento à Mulher em situação de violência Centros de Referência de Atendimento à Mulher Núcleos de Atendimento à Mulher em situação de Violência Centros Integrados da Mulher Casas Abrigo Casas de Acolhimento Provisório CasasdePassagem Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher Postos ou Seções da Polícia de Atendimento à Mulher Núcleos da Mulher nas Defensorias Públicas Promotorias Especializadas Juizados Especiais de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher Central de Atendimento à Mulher Ligue 180 Ouvidoria da Mulher Serviços de saúde voltados para o atendimento aos casos de violência sexual e doméstica Posto de Atendimento Humanizado nos aeroportos tráfico de pessoas e Núcleo de Atendimento à Mulher nos serviços de apoio ao migrante SPM 2011 p 1516 Desse modo observase que em Imperatriz há provimento de praticamente todos os serviços da Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência estruturados e em funcionamento Isso se confirma porque os números que indicam a existência de serviços especializados no restante do país ainda são muito baixos conforme se observa no quadro da Rede Especializada de Atendimento à Mulher Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 216 Figura 2 Rede Especializada de Atendimento à Mulher no Brasil Fonte CMPI da Violência contra a Mulher apud CAMPOS 2015 p 395 Considerando que o Brasil tem 5570 municípios o valor de 977 serviços de atendimento especializado à mulher em situação de violência ainda é irrisório Além disso vale se reconhecer que a maioria desses serviços encontrase nas capitais e regiões metropolitanas o que dificulta o acesso das mulheres que moram em bairros afastados ou mesmo em regiões distantes como na zona da mata rural floresta etc CAMPOS 2015 p 395 Por esse motivo é possível entender o porquê de Imperatriz estar em posição favorecida sendo no Maranhão a pioneira na implantação de políticas públicas para as mulheres BARBOSA 2013 Segundo Barbosa 2013 p 130131 o município de Imperatriz conta hoje com os seguintes serviços Quadro 1 Serviços da Rede de Atendimento à Mulher em Situação de Violência em ImperatrizMA 1 Delegacia Especializada da Mulher DEM Criada através da Lei 11540 de 15 de agosto de 1990 2 Conselho Municipal dos Direitos da Mulher CMDM Criada em 1998 3 Política de Atenção Integral à Saúde da Mulher PAISM Implantado em março de 2001 4 Casaabrigo Dra Ruth Noleto Instalada em 2007 5 Vara Especializada de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher Criada pela Lei Complementar nº 104 de 26 de dezembro de 2006 instalada no dia 23 de agosto de 2007 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 217 6 Promotoria de Justiça de Defesa da Mulher Criada no final de 2008 e instalada em janeiro de 2009 7 Secretaria Municipal de Políticas para a Mulher SMPM Criada em 08 de março de 2009 e implantada em 15 de abril de 2009 8 Centro de Referência e Atendimento à Mulher CRAM Implantado em 25 de outubro de 2010 9 Notificação Compulsória de Violência Doméstica Criada sob a Lei nº 10778 de 24 de novembro de 2003 foi implantado através de um Termo de Ajuste de Conduta em 2010 10 Atendimento à Mulher em Situação de Violência pelo Núcleo Regional da Defensoria Pública Estadual DPE Instalado em julho de 2010 Fonte Elaborado pelas autoras com informações extraídas da obra de Sueli Brito Barbosa 2013 p 130 131 Apesar da cidade de Imperatriz ser uma das pioneiras na adoção de políticas de reconhecimento visando o combate à violência doméstica é ainda possível notar crescente índice no número de casos registrados no primeiro semestre do ano de 2019 tendo o Centro de Referência e Assistência a Mulher CRAM já realizado atendimento para 182 mulheres G1 2019 Tais dados levam a reflexão acerca da eficácia da Lei Maria da Penha e de suas consequentes políticas públicas tendo em vista que após treze anos da promulgação ainda é possível perceber crescentes níveis de denúncias por violência doméstica e familiar De acordo com Nancy Fraser 2006 p 230 é possível perceber que o movimento social que trata sobre questões de gênero feminino careceria tanto de medidas redistributivas quanto de medidas por reconhecimento BARBOZA 2009 Sendo essa perspectiva compatível com as mulheres de ImperatrizMA conforme uma matéria jornalística publicada pelo G1 2019 online a coordenadoria do CRAM Centro de Referência em Atendimento à Mulher afirma que a maioria das mulheres precisam ir mais de uma vez embora muitas desistam e não levam o processo adiante7 grande parte por questões financeiras Junto a esse aspecto chama atenção o fato de que o cuidado dos filhos e da casa é atribuído principalmente à figura feminina inclusive os companheirosmaridosnamorados agressores costumam utilizarse desse fato para tentar fragilizálas creditando a elas culpa por alguma falha na criação dos filhos no momento em que a pretora questiona o contexto em que se deram as agressões Ou seja questões de renda e reconhecimento estariam 7 Entrevista concedida de Suely Barbosa Coordenadora do Cram ao Jornal G1 disponível em G1 182 casos de violência doméstica são registrados em Imperatriz Disponível em httpsg1globocommamaranhaonoticia20190508182casosdeviolenciadomesticasaoregistradosem imperatrizghtml Acesso em 08 maio 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 218 imbricadas nessa perspectiva que seria enfatizada por Fraser BARBOZA 2009 Ainda segundo o CRAM o aumento de número de denúncias não necessariamente corresponde ao aumento de violência já que com o acompanhamento se percebe que as mulheres já vem sofrendo violência por mais de cinco anos assim sendo um outro possível motivo para o aumento de denúncias o fato de haver uma maior conscientização por parte das mulheres vítimas de violência doméstica e familiar A conscientização dessas mulheres pode ser considerada o maior objetivo dos órgãos que visam defender a mulher vítima de violência doméstica e familiar conforme pontua Suely Barbosa atual coordenadora do CRAM em entrevista ao site G1 2019 online O nosso objetivo é conscientizar essa mulher de que ela não precisa chegar ao extremo ela pode buscar por ajuda antes e o objetivo não é fazer com que ela acabe com a família é simplesmente fazer com que ela tenha saúde para manterse bem junto com a família independente do agressor independente ou não Nós temos essa preocupação porque muitas não estão percebendo isso G1 2019 online Contudo é evidente que no plano de remédios afirmativos de reconhecimento que a Lei Maria da Penha é de extrema importância podendo ser considerada um remédio que visa uma estratégia de feminismo cultural FRASER 2006 p 275 Porém quando se analisa a questão cultural parece que realmente a lei não consegue alterar os padrões hierarquizados de masculinidade que estão ainda presentes na sociedade esse indício se reafirma a partir das constantes reiterações dos agressores nas mesmas práticas contra as mesmas vítimas BARBOZA 2009 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em linhas gerais a violência doméstica e familiar se faz em uma medida de discriminação pois afeta de forma desproporcional as mulheres o que impede a paridade de gênero na participação social com homens Assim a Lei Maria da Penha que é o principal instrumento de coibição da violência contra mulher pode ser considerada um remédio afirmativo de reconhecimento nos termos de Nancy Fraser Percebese que tal legislação é importante na medida em que incentivou a criação de políticas públicas que visavam o combate a violência doméstica e familiar trazendo para o campo jurídico também o reconhecimento de direitos de proteção em níveis constitucionais e internacionais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 219 Nesse seguimento a cidade de ImperatrizMA é considerada a pioneira na adoção das medidas que visam proteger as mulheres de violência doméstica e familiar Apesar de não possuir um Centro do Agressor Lei nº 11340 artigo 35 V Imperatriz tem sua rede especializada praticamente completa o que a coloca em lugar privilegiado em relação a muitas cidades brasileiras No entanto essa vantagem é motivada tendo em vista os altos índices de violência contra a mulher que são registrados na cidade e região o que faz constatar a necessidade e importância de se ter uma rede forte e interligada no enfrentamento a esse problema principalmente quando se depara com o paradoxo existente entre trabalho e família Analisando os números crescentes de denúncias e os casos de desistência na continuidade da mesma percebese que há uma falha na implementação das políticas podendo ela se relacionar às questões de renda e reconhecimento que enfatiza Nancy Fraser A efetividade e os impactos da ação dessa rede podem servir de tema de pesquisas futuras visto que o assunto não se esgota com esse trabalho pelo contrário a ideia aqui é de contribuir e inspirar outras pesquisas nesse debate tão essencial REFERÊNCIAS AMORIM Conceição de Maria Desafios Enfrentados pelas Mulheres na Luta contra a Violência Doméstica uma análise na Delegacia Especializada da Mulher em Imperatriz MA 2013 88f Monografia especialização em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça Curso de PósGraduação em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça Universidade Federal do Maranhão Imperatriz 2013 BARBOSA Sueli Brito Movimento Feminista e Movimento de Mulheres em Imperatriz ação nas políticas públicas de gênero In FERREIRA Mary org Políticas Públicas de Gênero o pensar e o fazer em Imperatriz Imperatriz Artegraf 2013 BARBOZA Priscila da Silva Uma leitura da lei maria da penha a partir da teoria do reconhecimento de fraser e honneth In Fazendo gênero 9 diásporas diversidades deslocamentos 9 Florianópolis UFSC 2009 BARROS Edelvira Marques de Moraes Imperatriz memória e registro Imperatriz Ética 1996 BRETAS Valéria As 250 cidades mais violentas do Brasil S l Grupo Abril 18 nov 2015 Disponível em httpsexameabrilcombrbrasilas250cidadesmaisviolentasdo brasil Acesso em 18 ago 2019 CAMPOS Carmen Hein de Desafios na implementação da Lei Maria da Penha Rev direito GV São Paulo v 11 n 2 p 391406 Dez 2015 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1808 24322015000200391lngennrmiso Acesso em 2412 2016 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 220 CEPIA Cidadania Estudos Pesquisa Informação e Ação Violência Contra a Mulher e Acesso à Justiça Estudo comparativo sobre a aplicação da Lei Maria da Penha em cinco capitais Relatório final Rio de Janeiro CepiaFord 2013 FERREIRA Mary Mulher e Políticas Públicas reflexões sobre como pensar políticas de igualdade de gênero In FERREIRA Mary org Políticas Públicas de Gênero o pensar e o fazer em Imperatriz Imperatriz Artegraf 2013 FORMIGA Maria da Conceição Medeiros 40 anos do Clube das Mães história e memória de Imperatriz In FERREIRA Mary org Políticas Públicas de Gênero o pensar e o fazer em Imperatriz Imperatriz Artegraf 2013 FRANKLIN Adalberto Breve História de Imperatriz Imperatriz Ética 2005 FRASER Nancy Da redistribuição ao reconhecimento dilemas da justiça numa era pós socialista Cadernos de Campos São Paulo v 15 n 14 p231239 jan 2006 Tradução de Julio Assis Simões G1 Aumenta o número de registros de agressão contra a mulher em Imperatriz S l p 9 ago 2018 Disponível em httpsg1globocommamaranhaonoticia20180809aumentaonumeroderegistrosde agressaocontraamulheremimperatrizghtml Acesso em 18 ago 2019 G1 182 casos de violência doméstica são registrados em Imperatriz São Luís 2019 Disponível em httpsg1globocommamaranhaonoticia20190508182casosde violenciadomesticasaoregistradosemimperatrizghtml Acesso em 25 ago 2019 IBGE CIDADES Cidade de Imperatriz 2010 Disponível em httpcidadesibgegovbrxtrasperfilphplangcodmun210530searchinfogrE1ficos informaE7F5escompletas Acesso em 18 ago 2019 IMPERATRIZ Portal da Prefeitura de Imperatriz Disponível em httpwwwimperatrizmagovbrportalimperatrizhistoriahtml Acesso em 18 ago 2019 LIMA Regina Célia Costa Precisamos disputar o parlamento In Experiências opiniões e propostas de participação popular precisamos disputar o parlamento E Agora FaseSp Cpv Sof E Polis Nº 7 Nov 1992 p 1112 LIMA Regina Celia Costa Saúde e Meio Ambiente no currículo de escolas públicas do ensino fundamental em Imperatriz MA Dissertação mestrado Pontifícia Universidade Católica de Goiás Goiânia 2014 LIMA Regina Celia Costa SANTOS Margarida Chaves dos PEREIRA Bruna Lopes Edelvira Marques de Moraes Barros Eu Imperatriz no prelúdio da historiografia local In FÓRUM INTERNACIONAL DE PEDAGOGIA Cristiane Maria Nepomucemo Maria Lúcia Pessoa Sampaio Tania Serra Azul Machado Bezerra Witembergue Gomes Zaparoli orgs Educação empara os direitos humanos diversidade ética e cidadania Imperatriz Ethos 2016 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 221 MOVIMENTO INTERESTADUAL DE QUEBRADEIRAS DE COCO BABAÇU MIQCB São Luís MA 2013 Disponível em httpwwwmiqcborgmiqcb Acesso em 25 dez 2016 MPMA reivindica melhorias no atendimento à mulher em Imperatriz Ministério Púbico do Estado do Maranhão MPMA S l 8 jan 2015 Disponível em httpsmpmampbrindexphplistadenoticiasgerais9698mpmareivindicamelhoriasno atendimentoamulheremimperatriz Acesso em 18 ago 2019 NETTO Eloy Coelho História do Sul do Maranhão Terra homens e acontecimentos Belo Horizonte MG Ed São Vicente 1979 SPM Secretaria de Políticas para Mulheres Diretrizes para Implementação dos Serviços de Responsabilização e Educação dos Agressores Disponível em httpwwwspmgovbrsobreasecretariasubsecretariadeenfrentamentoaviolenciacontra asmulherespactoservicoderesponsabilizacaodoagressorposworkshoppdf Acesso em 25 dez 2016 SPM Secretaria de Políticas para Mulheres Diretrizes para Implementação dos Serviços de Responsabilização e Educação dos Agressores Disponível em httpwwwspmgovbrsobrepublicacoespublicacoes2011rededeenfrentamento Acesso em 25 dez 2018 SPM Secretaria de Políticas para Mulheres Rede de Enfrentamento à Violência contra a Mulher Disponível em httpsistema3planaltogovbrspmuatendimentoatendimentomulherphp Acesso em 25 dez 2018 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da violência 2012 os novos padrões da violência homicida no Brasil São Paulo Instituto Sangari 2011 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 222 VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA COMARCA DE ARARANGUÁ LEVANTAMENTO DE DADOS DO SISTEMA DE AUTOMAÇÃO DA JUSTIÇA DE PRIMEIRO GRAU SAJ Nínive Degasperi Poffo1 Fabio Mattos2 RESUMO O artigo ora apresentado fruto de pesquisa elaborada durante a graduação em Direito apresenta aspectos conceituais sobre violência apresenta breves conceitos sobre a violência e sua classificação a repercussão inicial da judicialização da violência doméstica através da Lei 909995 Em seguida apresentamos dados disponíveis para a compreensão da realidade local bem como o percurso metodológico para a elaboração da pesquisa exploratória mediante consulta de dados estatísticos do Sistema de Automação da Justiça de Primeiro Grau SAJ no período de 2014 a 2018 identificando as classes processuais na Lei Maria da Penha e junto a base de dados SciELO com o uso das palavras chave violência doméstica perfil agressores de violência e perfil vítimas de violência com foco conflitos no âmbito de relacionamentos conjugais A conclusão apresenta a síntese dos resultados alcançados indicando a necessidade de refinamento das informações extraídas do SAJ visto que o sistema não possibilita a identificação do perfil dos agressores e vítimas de forma automatizada Palavraschave Violência doméstica Dados estatísticos Comarca de Araranguá INTRODUÇÃO A temática da violência de gênero e particularmente de violência doméstica passou a ser foco de discussões de políticas sociais setoriais como a saúde a segurança pública e a assistência social enquanto se ampliavam as respostas sociais e jurídicas em torno desta demanda como ações de combate prevenção e atendimento aos sujeitos nela envolvidos Neste sentido a prática jurídica e a esfera de atuação do sistema de justiça se aproximam de eventos relacionados a violência doméstica em situações críticas de violação de direitos mediante a ocorrência de crimes de diversas naturezas Assim a partir de questionamentos que emergiram durante a prática forense enquanto assistente social bem como da atuação da Vara competente pelo processamento dos crimes de violência doméstica na Comarca de Araranguá em ações preventivas e de caráter de aplicação 1Assistente social do Poder Judiciário de Santa Catarina Bacharel em Direito pela Universidade do Sul de Santa Catarina Mestra em Serviço Social pela Universidade de Santa Catarina em 2013 Email ninivedegasperitjscjusbr 2 Professor horista da Universidade do Sul de Santa Catarina Especialização em MBA em Direito Tributário pela Fundação Getúlio Vargas 2015 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 223 de medidas previstas na Lei Maria da Penha se observou a necessidade de obtenção de informações mais concretas sobre o tema na realidade local Desta forma este artigo é fruto de pesquisa elaborada no trabalho de conclusão de curso de graduação em Direito Inicialmente nele é evidenciado um breve panorama conceitual sobre a violência enquanto fenômeno social bem como a repercussão inicial da judicialização da violência doméstica através dos Juizados Especiais Criminais com a aplicação da Lei nº 909995 e suas implicações na garantia dos direitos das mulheres vítimas de violência Na continuidade é apresentado a pesquisa exploratória sobre a violência doméstica na Comarca de Araranguá através da consulta de dados estatísticos do Sistema de Automação da Justiça de Primeiro Grau SAJ no período de 2014 a 2018 identificando as classes processuais de competência na Lei Mara da Penha A pesquisa também ocorreu na base de dados SciELO com o uso das palavras chave violência doméstica perfil agressores de violência e perfil vítimas de violência tendo como foco conflitos no âmbito de relacionamentos conjugais O objetivo inicial se constituiu em traçar alguma correspondência dos perfis já identificados em pesquisas anteriores com os possíveis dados a serem extraídos do SAJ Nesta fase foram localizados seis artigos sendo que três deles versavam sobre o perfil de agressores e três sobre o perfil das vítimas A pesquisa utilizou como fonte informativa dados quantitativos da violência doméstica disponíveis no sitio eletrônico da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Santa Catarina de onde foi possível extrair informações quanto aos registros de violência doméstica no âmbito estadual bem como local no período de 2014 a 2018 Na conclusão apresentamos a síntese dos resultados alcançados no qual se identifica a parca visibilidade da produção cientifica da ciência jurídica e do direito sobre a temática violência doméstica em bancos de dados científicos como a SciELO 1 ASPECTOS CONCEITUAIS SOBRE VIOLÊNCIA A violência doméstica presente em tantos lares brasileiros deixa cicatrizes profundas na vida de suas vítimas que são predominantemente mulheres É um tema que por muitos anos esteve classificado como um tabu social explicitado em ditados populares como em briga de marido e mulher não se mete a colher Compreendese que se trata de um fenômeno social que se tornou visível através do movimento feminista que expôs as marcas da violência contra as mulheres Nas últimas décadas posteriormente a ratificação pelo Estado brasileiro de tratados internacionais de garantia dos direitos humanos e da mulher e especialmente após a promulgação da Lei Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 224 1134006 Lei Maria da Penha discussões sobre o tema violência doméstica alcançaram lugares de destaque e relevância social e jurídica possibilitando estudos de diversas áreas do conhecimento principalmente das ciências sociais aplicadas como é o caso da Ciência Jurídica Acerca do tema violência doméstica Siqueira 2016 p 182 em levantamento sobre as áreas de conhecimento dos artigos científicos sobre violência contra a mulher a partir da base de dados eletrônica Scientific Eletronic Library Online SciELO no período de 2011 a 2013 a partir das grandes áreas de concentração do conhecimento e seus achados demostraram que 6857 dos artigos localizados estavam vinculados a grande área da saúde e apenas um relacionado a área do direito A pesquisa publicada em 2016 dez anos após a promulgação da Lei Maria da Penha indicou que embora os operadores do direito tenham discutido acerca de seus dispositivos ou até mesmo a eficácia da norma estas discussões não estavam presentes na base de dados pesquisada No entanto se observa que a atuação dos operadores do direito se funda na aplicação dos dispositivos legais ignorando outras questões importantes como o perfil das vítimas e agressores entre outros dados estatísticos E diante desta constatação ainda que empírica sobre a reincidência da violência pedidos de desistência de prosseguimento de ação judicial e até mesmo a retratação das vítimas em audiência coloca em questionamento a eficácia dos dispositivos visto que estes dados por vezes são ignorados ou desconhecidos pelo sistema de justiça Desta forma entendese que a unificação de dados relativos ao fenômeno da violência doméstica traz aos operadores do direito elementos importantes para a melhor aplicação da Lei Maria da Penha entre outras normativas bem como lançar alternativas mais eficazes a prevenção de sua ocorrência 2 VIOLÊNCIA COMO FENÔMENO SOCIAL Para a compreensão do fenômeno da violência doméstica e sua repercussão social o que detém no âmbito jurídico a atuação dos operadores do direito é necessário a apresentação em termos conceituais da categoria violência e de modo breve a definição de fato e fenômeno social No âmbito do estudo da sociologia o conceito de fato social que passou a ser adotado pela ciência jurídica é conceituado por Durkheim 1973 apud Gil 2019 p 27 como toda a maneira de fazer fixada ou não suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coação exterior que é geral no conjunto de uma dada sociedade tendo ao mesmo tempo uma existência própria Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 225 independente de suas manifestações individuais No entendimento de Gil 2019 p 28 os fenômenos deveriam ser sempre considerados em suas manifestações coletivas se diferenciando dos acontecimentos individuais Sendo a generalidade o fator essencial que se difere do acidental ou individual e especificaria a natureza sociológica dos fenômenos Para Dias 2014 p 27 os fenômenos sociais possuem uma interlocução com o direito na medida que a disciplina de sociologia do direito procura explicar as causas e os efeitos sociais das normas jurídicas e sua função social No tocante a compreensão conceitual sobre violência a Organização Mundial da Saúde OMS no Relatório Mundial sobre Violência e Saúde KRUG 2002 p 5 propõe a compreensão deste fenômeno como problema de saúde pública Esta definição elenca impactos em diferentes âmbitos como o financeiro como consequência dos altos custos em assistência à saúde decorrentes de lesões não fatais provocadas por violência além de prejuízos à ordem econômica pelo afastamento do trabalho Em relação ao alcance do tema a OMS ao problematizar o fenômeno em termos de saúde pública afirma que este se trata de uma questão interdisciplinar devendo ser abordado a partir de bases científicas que se utiliza do conhecimento de diversas disciplinas incluindo medicina epidemiologia sociologia psicologia criminologia educação e economia o que em nosso entendimento não escapa a intervenção investigativa das ciências jurídicas e dos operadores do direito KRUG 2002 p 3 O desafio ainda existente à identificação das causas de ocorrência da violência contra as mulheres enquanto um fenômeno social se concentra no âmbito da intensificação de pesquisas a serem efetuadas pelos diferentes ramos das ciências sociais aplicadas Neste caminho investigatório o relatório da OMS aponta para alguns eixos norteadores para o aprofundamento das pesquisas Investigar por que a violência ocorre ou seja realizar pesquisas para determinar as causas e os fatores relacionados à violência os fatores que aumentam ou diminuem o risco de violência os fatores que podem ser modificados por meio de intervenções Explorar formas de evitar a violência utilizando as informações obtidas elaborando implementando monitorando e avaliando intervençõesImplementar em diversos cenários intervenções que pareçam promissoras divulgando amplamente as informações e determinando a relação custoefetividade dos programas KRUG 2002 p 4 Neste mesmo entendimento Bandeira 2017 p 16 afirma que em se tratando de uma Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 226 análise da violência se faz necessário considerar que ela se constitui como um fato social que permite ser abordado sob três pontos estritamente interdependentes i evidenciar as situações de violências ii tentar explicálas iii mostrar seus danos devastadores e o perigo que representa NunesScardueli 2018 p 11 ao discorrer sobre o conjunto de fatores que estão relacionados ao fenômeno da violência e dos crimes a ela vinculado e aponta para o papel relevante das estruturas sociais e dos momentos históricos para a sua compreensão E afirma Neste sentido é preciso observar que os atos violentos acontecem com a junção e três fatores a características psicológicas das pessoas vítimas e agressores b a situação c o sistema ou seja o contexto em que a violência é praticada NUNESSCARDUELI 2018 p 11 Ainda tratando sobre a dinâmica da violência sob uma perspectiva de fato social Rifiotis 2015 p 265 chama atenção para os efeitos da judicialização das demandas relacionadas as violências de gênero como a doméstica e familiar e sustenta que Sabemos que no sistema de justiça penal a judicialização implica numa leitura criminalizante e estigmatizada contida na polaridade vítimaagressor introduzindo uma série de obstáculos para a compreensão e intervenção não penal Afinal a intervenção penal nem sempre corresponde às expectativas dos sujeitos atendidos em instituições como as delegacias da mulher e tampouco aos serviços nelas realizados Esse ponto é relevante sobretudo na perspectiva da abordagem relacional da violência de gênero já amplamente desenvolvida Gregori 1993 Grossi 1994 1998 a qual temos procurado incorporar nas nossas pesquisas e que é central no nosso entendimento para a problematização da judicialização das relações sociais RIFIOTIS 2015 p 265 Neste sentido o autor coloca em destaque as expectativas sociais depositadas frente a intervenção estatal na vida privada dos sujeitos enredados pela violência doméstica de gênero o que recai na efetividade dos serviços prestados bem como o real alcance das políticas e programas desenvolvidos a fim de atender tais demandas Para Rifiotis 2015 p 266 há necessidade de aprofundamento das pesquisas no âmbito das intervenções que têm sido realizadas sobre violência de gênero sobretudo aquelas que alcançam a interferência do estado através do sistema de justiça vez que projetam a possibilidade de avaliação de forma crítica do protagonismo dos sujeitos envolvidos e sua capacidade de ressignificação da violência na sua vida cotidiana Na esteira dos processos de intervenção do poder judiciário o mesmo autor afirma que as pesquisas ainda são insipientes e carecem de maior aprofundamento em vista do crescente chamamento desta esfera do Estado para a solução de conflitos sociais sobretudo na busca pela Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 227 garantia dos direitos fundamentais Há de se compreender ainda que a violência de gênero pode ser retratada como uma condição sine qua non para uma crítica cultural que tem sido construída a partir da desvalorização do papel feminino dentro da sociedade MORERA ESPÍNDOLA CARVALHO MOREIRA PADILHA 2014 p 56 Assim a violência contra as mulheres está enraizada em fatores sócio históricos e culturais que remetem a uma estrutura social que foi organizada e legitimada para a manutenção de papeis de poder e submissão Para Moterani e Carvalho 2016 p 166 169 observase que a violência de gênero é misógina e pode ser entendida como o como ódio e o desprezo para com as mulheres pelo fato de elas serem mulheres onde acabam sendo oprimidas subalternizadas e subordinadas aos homens Para os autores a misoginia é um prejuízo que sobrevive ao tempo muito antes de ter nome e está presente na sociedade desde o início de seu processo civilizatório deixando marcas na cultura religião e até mesmo nas construções filosóficas reforçando o traço de inferiorizarão do gênero feminino Desta forma espaço de atuação da esfera judiciária do Estado se mostra atualmente como locus privilegiado para a produção de conhecimento sobre a violência de gênero por concentrar as demandas a ela relacionadas Esta esfera enquanto área de intervenção propicia a busca de alternativas para a superação das violências através da aplicação dos dispositivos legais e chamamento à atuação dos agentes do Estado inseridos nas demais políticas públicas relacionadas a proteção de direitos 3 A JUDICIALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER A partir da condenação do Estado brasileiro pelo caso Maria da Penha bem como pela atuação dos movimentos de lutas das mulheres se tronou visível na sociedade a necessidade de discussão sobre o tema que passou a cobrar uma efetiva atuação dos órgãos de garantia de direitos principalmente na esfera policial e judicial Desde então se observa um movimento de constituição de um arcabouço normativo que propiciou a judicialização dos conflitos domésticos de violência contra a mulher Neste sentido Rifiottis 2015 nos indica que o cainho da judicialização desta demanda foi lento e gradual De modo sintético diremos que as lutas feministas produziram nos últimos dez anos importantes mudanças institucionais e normativas no Brasil das quais podemos destacar pelo menos três momentos Um primeiro com a criação da Delegacia da Mulher que teve lugar em pleno processo de redemocratização O segundo sem dúvida alguma foi a promulgação da Lei Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 228 Maria da Penha Entre os dois tivemos a Lei 9099 de 1995 RIFIOTIS 2015 p 269 Neste cenário o autor discorre que o caminho percorrido para o atual tratamento judiciarizante da violência doméstica teve início nas Delegacias da Mulher a partir e 1985 período quem não haviam normativas adequadas ao tratamento e processamentos destas demandas E partir desta identificação tece algumas críticas quanto ao uso da Lei 90991995 como rito processual visto que equiparava esta modalidade de violência com contravenções penais de menor potencial ofensivo sugerindo um tratamento para a violência contra a mulher como desimportante tolerável desqualificando os impactos individuais e sociais que esta demanda alcança O autor ainda sustenta que durante o período e quem a Lei 9099 foi utilizada para o processamento dos casos de violência doméstica na tentativa de dar celeridade ao atendimento desta demanda bem como simplificando os procedimentos da atuação judiciária ocorreu um movimento de escamoteamento da violência de gênero nos órgãos de justiça tornando mais uma vez o agressor favorecido pela desresponsabilização e aceitação social de suas condutas Assim entendese que os modos de produção de justiça não se restringem ao campo das práticas jurídicas estando sempre atravessados pela dimensão política própria do campo das lutas sociais por direitos RIFIOTIS 2015 p 289 e como se pode constatar nos argumentos em defesa da Lei Maria da Penha a qual é entendida como uma politização da justiça no tratamento da violência de gênero RIFIOTIS 2015 p 270 No tocante a constituição de espaços adequados para o processamento e julgamento dos crimes de violência doméstica a Lei Maria da Penha em um salto evolutivo a aplicação da Lei 9099 95 elege o tratamento desta demanda de forma qualificada para Pasinato 2015 na esfera do Judiciário a recomendação da lei para que aos Tribunais de Justiça Estaduais e do Distrito Federal que criem os Juizados de Violência Doméstica e Familiar para aplicação exclusiva e integral da Lei Maria da Penha Essa estrutura inclui a composição das equipes multidisciplinares que atuem de forma a assessorar os magistrados na tomada de decisões particularmente aquelas relacionadas com as medidas protetivas PASINATO 2015 p 415 Ao ser reconhecido como questão de relevância social a violência doméstica e contra a mulher passa a instigar diferentes áreas de produção de conhecimento que possuem interface com a atuação sobre o tema identificar cientificamente elementos e dados que possam contribuir no desenvolvimento de estratégias adequadas para o seu enfrentamento Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 229 4 SOBRE O PERCURSO METODOLÓGICO Assim o estudo ora apresentado tratase de uma pesquisa exploratória sobre os dados da violência doméstica na Comarca de Araranguá através da consulta de dados estatísticos do Sistema de Automação da Justiça de Primeiro Grau SAJ Os dados foram coletados mediante autorização formal da magistrada titular da 1ª Vara Criminal da Comarca de Araranguá que detém a competência das ações relativas a violência doméstica e familiar e Lei Maria da Penha O período de 2014 a 2018 escolhido para o levantamento de dados está relacionado a implantação do SAJ visto que identificamos não ser possível extraídas informações estatísticas referentes a períodos anteriores bem como desde o advento da Lei Maria da Penha Para Gil 2010 p 27 as pesquisas exploratórias são desenvolvidas com o objetivo de proporcionar visão geral de tipo aproximativo acerca de determinado fato Para o autor este tipo de pesquisa geralmente é realizado quanto o tema escolhido para a pesquisa é pouco explorado tornandose difícil a elaboração de hipóteses Assim pesquisas exploratórias constituem a primeira etapa de uma investigação mais ampla O produto final deste processo passa a ser um problema mais esclarecido passível de investigação mediante procedimentos mais sistematizados Neste sentido também em pesquisa realizada junto a base de dados SciELO com o uso das palavras chave violência doméstica perfil agressores de violência e perfil vítimas de violência buscouse localizar artigos sobre o perfil de vítimas de violência doméstica tendo como foco conflitos no âmbito de relacionamentos conjugais com a finalidade de encontrar alguma correspondência com os dados extraídos do SAJ Nesta pesquisa foram localizados três artigos versar sobre o perfil de agressores e três sobre o perfil das vítimas Em levantamento de dados realizado por meio do Sistema Automatizado de Justiça de Primeiro Grau SAJ da Primeira Vara Criminal de Araranguá foram localizados o quantitativo de processos distribuídos no período de 2014 a 2018 Para tanto identificamos as seguintes classes processuais de cadastradas no sistema de competência da Lei Maria da Penha Auto de Prisão de Flagrante Inquérito Policial Ação Penal Ordinário Ação Penal Sumário Medidas Protetivas de Urgência Ação Penal de Competência do Júri e Feminicídio Também foi utilizado como fonte de pesquisa os dados estatísticos da Secretaria de Segurança Pública do Estado de Santa Catarina disponíveis no site Segurança em Números SSPSC onde foi possível localizar dados relativos a atuação das delegacias das cidades que integram a Comarca de Araranguá sobre o tema violência doméstica e violência contra a mulher sendo utilizado como referência para extração dos dados o período de 2014 a 2018 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 230 5 ESTUDOS SOBRE O PERFIL DO AGRESSOR E DA VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA Sobre a identificação do perfil dos agressores Vasconcelos Holanda e Albuquerque 2016 analisaram dados existentes na Secretaria da Mulher na cidade de Vitória de Santo Antão no estado de Pernambuco após identificação de um grande número de homicídios cometidos contra mulheres onde identificaram associação entre a violência contra as mulheres com o tipo de relação afetiva idade estado civil renda e uso abusivo de álcool O perfil do agressor caracterizouse por ser homem jovem que vive em união estável maridocompanheiro com a vítima e que possui renda própria A violência de gênero mostrouse ser um evento frequente na vida dessas mulheres vivenciado por um ciclo vicioso entre os casais com maior tempo de relacionamento sendo o parceirocompanheiro íntimo apontado como principal agressor Destacaramse as violências física e psicológica entre os tipos mais prevalentes desse estudo O uso de álcool foi frequentemente associado aos atos violentos VASCONCELOS HOLANDA ALBUQUERQUE 2016 p 8 Em estudo realizado por Brasileiro e Melo 2016 caracterizaram agressores na cidade de Campina Grande no estado da Paraíba os autores utilizaram como categorias de análise idade religião estado civil profissão escolaridade motivo da agressão defesa do agressor relação com a vítima turno do fato meses em que mais ocorreram crimes dia da semana infrações penais prisão em flagrante medidas protetivas e modalidades de violência segundo a lei 113402006 a partir de dados coletados em Inquéritos Policiais devidamente instaurados na Delegacia mediante portaria eou flagrante BRASILEIRO MELO 2016 p 193 Quanto aos resultados obtidos os autores apontaram que Além das bebidas alcóolicas e dos ciúmes amplamente abordados nas pesquisas sobre violência doméstica os fatos verificados com frequência neste perfil de agressores referemse aos motivos de discussão e de não aceitar a separação com a vítima Com relação às causas e situações dos crimes praticados observouse que não precisa haver motivos fortes que provoquem as agressões mas sim simples atos e palavras Os agressores praticaram múltiplos e variados tipos de violência doméstica tendo a violência psicológica a maior frequência e a sexual como menor BRASILEIRO MELO 2016 p 205 Em pesquisa de tipo retrospectiva documental realizada mediante apreciação de 130 Autos de Prisão de um município da região central do estado Paraná MADUREIRA 2014 p 602 identificou que os agressores eram adultos jovens casados com baixa escolaridade e trabalho remunerado 893 foram libertados sob pagamento de fiança Eram majoritariamente cônjuges que sob efeito de álcool praticaram violência Um número significativo já possuía Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 231 outros registros de violência doméstica No tocante as vítimas Mota Vasconcelos e Assis 2007 p 1 identificaram um perfil em relação à gravidade da violência sofrida Assim As vítimas de lesão grave de origem sexual associaramse ao ensino médio incompleto e com mais de três residentes trabalhadores As vítimas de lesão grave de origem física e psicológica estão relacionadas ao ensino superior e pósgraduação e declaradas como chefes de família O grupo das vítimas de lesões leves de origem física e psicológica se relaciona com tempo de união inferior a cinco anos ensino médio completo da mulher agressor mais novo trabalhador e com até três residentes trabalhadores MOTA VASCONCELOS e ASSIS 2007 p 1 Para Labronici Ferraz Trigueiro e Fegadoli 2010 p 5 as vítimas alcançavam idade variada entre 18 e 88 anos possuíam baixa escolaridade e sofreram violência física psicológica sexual e estrutural perpetrada principalmente pelos companheiros e pessoas com quem conviviam ou pertenciam ao círculo de convivência Demonstraram que estas mulheres conviviam com a violência para manter a união familiar mas buscaram romper com o ciclo de violência a partir da oferta de programas sociais e abrigos Nos estudos realizados por Amaral 2016 p 1 identificou que as mulheres agredidas eram em sua maioria jovens 535 pardas 472 sem união estável 680 com baixa escolaridade 914 sem renda mensal fixa 305 que residem em casa própria 355 com familiares 137 são beneficiárias de algum programa de transferência de renda 269 e não possuem trabalhos formais 691 E em relação aos agressores identificou que e sua maioria eram jovens desenvolvem trabalho manual consumiam álcool drogas ilícitas e cigarro e após a implantação da LMP os agressores possuem mais antecedentes criminais Desta forma os estudos localizados apontam que as vítimas de violência são mulheres jovens que mantem relação cotidiana com seus agressores possuem baixa escolaridade e de um modo geral dependem economicamente de seus agressores 6 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER EM SANTA CATARINA Os dados da violência doméstica contra a mulher estão contabilizados pela Secretaria de Segurança Pública e disponibilizados no site Segurança em Números SECREARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA DE SANTA CATARINA 2019 p 1 As informações são elaboradas pela Gerência de Estatística e Análise Criminal da Diretoria de Informação e Inteligência No referido sitio eletrônico é possível acessar boletins semanais de dados sobre os corridos em todas as cidades do estado bem como painel de dados estatísticos Contudo as Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 232 informações lá disponibilizadas são referentes ao período de 2010 a agosto de 2018 após este período o sitio não foi mais alimentado Para tanto os dados localizados no sitio da Secretaria de Segurança Pública referemse a períodos parciais mensais que para a melhor apresentação e visualização do leitor foram somados e apontam para os seguintes dados anuais de violência doméstica no Estado em registos efetuados Tabela 1 Violência Doméstica Santa Catarina Fonte tabela elabora pelo autor a partir de dados da SSPSC 2019 Os números apresentados indicam que há uma manutenção dos registros de dos crimes de violência doméstica sendo os crimes de ameaça e lesão corporal dolosa que possuem maior incidência Em relação crime de estupro a Secretaria de Segurança Pública contabiliza aqueles cometidos contra crianças e adolescentes menores de 14 anos crime capitulado no artigo 217 A do Código Penal Brasileiro como estupro de vulnerável Já o crime de feminicídio crime capitulado no artigo 121 do Código Penal como qualificadora do crime de homicídio a pela Lei nº 13104 de 2015 localizamos os seguintes dados Gráfico 1 Feminicídio em Santa Catarina Fonte gráfico elaborado pelo autor a partir de dados da SSPSC 2019 CRIME 2014 2015 2016 2017 2018 Ameaça 22898 22237 21061 24828 15844 Calúnia 266 307 450 551 326 Dano 1416 1422 1404 1638 1184 Difamação 826 934 1229 1571 931 Estupro consumado 452 459 504 636 486 Estupro tentado 114 132 123 144 103 Homicídio doloso tentado 105 105 103 118 49 Injúria 5636 5729 6724 8932 5734 Lesão corporal dolosa 11916 11430 11463 11774 8157 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 233 Em relação ao crime de feminicídio o gráfico aponta para a estabilidade dos índices no período não havendo incremento nos números após a alteração legislativa que configurou o feminicídio como crime hediondo No tocante ao perfil das vítimas de violência doméstica no Estado no ano de 2018 segundo informações divulgadas pela Secretaria de Segurança Pública em análise feita pela Gerência de Estatística e Análise Criminal da SSP apurou ainda a relação da vítima com o autor Segundo o estudo 75 das mulheres foram mortas pelo atual companheiro já as 25 restantes perderam a vida nas mãos de exnamorados ou excompanheiros SSPSC 20019 p1 Os dados ainda apontaram que 50 das vítimas tinham até 30 anos125 entre 31 e 40 anos 375 entre 41 e 50 anos Destas vítimas 50 possuíam filhos como autor da agressão 75 eram companheiras do autor 25 haviam rompido o relacionamento com o agressor E ainda que 875 das agressões ocorreram dentro do ambiente doméstico SSPSC 2019 p 1 Quanto aos agressores a pesquisa informa que 50 deles possuíam alguma passagem policial anterior por infrações penais diversas SSPSC 2019 p 1 Em relação ao meio empregado para o cometimento da violência 375 utilizaram faca 25 arma de fogo e 375 empregaram outros meios contra suas vítimas SSPSC 2019 p 1 Em uma breve análise quanto ao perfil das vítimas de feminicídio no ano de 2018 apresentado pelo órgão estadual ainda que carente de pesquisa mais rigorosa é possível identificar que se assemelha com os dados apresentados nas pesquisas sobre o perfil de agressores e vítimas de violência doméstica de Brasileiro e Melo 2016 p 1 Labronici Ferraz Trigueiro e Fegadoli 2010 p 1 Vasconcelos Holanda e Albuquerque 2016 p 1 Outros dados importantes para a compreensão da dinâmica da violência doméstica não foram tratados pelo órgão como o uso de substâncias psicoativas grau de dependência econômica das vítimas em relação aos agressores grau de escolaridade e território onde estão presentes a maior incidência das ocorrências 7 A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA COMARCA DE ARARANGUÁ Assim com violência doméstica do Estado foi realizado levantamento dos relatórios estatísticos mensais das cidades que integram a Comarca de Araranguá a partir do sitio eletrônico Segurança em Números da Secretaria de Segurança Pública do estado de Santa Catarina A Comarca de Araranguá é composta pelas cidades de Araranguá sede Balneário Arroio do Silva e Maracajá que juntas somam aproximadamente 83 mil habitantes Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 234 Para melhor compreensão do leitor os dados mensais de cada cidade foram somados gerando a tabela com os dados anuais da Comarca para o período de 2014 a 2018 Desta forma com os dados compilados foi possível identificar os seguintes números Tabela 2 Violência doméstica na comarca de Araranguá Fonte tabela elaborada pelo autor a partir de dados da SSPSC 2019 Os números identificados apontam para o mesmo padrão de ocorrência de violência doméstica na comarca de Araranguá daquele verificado em âmbito estadual Sendo os principais registros para os crimes de ameaça lesão corporal dolosa e injúria Em relação ao perfil das vítimas e agressores para estas tipificações penais não há dados disponíveis no sitio eletrônico da Secretaria de Segurança Pública estadual 8 A JUDICIALIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA COMARCA DE ARARANGUÁ Na busca de informações sobre judicialização da violência doméstica na Comarca de Araranguá foi realizada pesquisa de relatórios do SAJ para processos distribuídos a partir do ano de 2014 até 2018 utilizando como referência a competência processual Lei Maria da Penha Anteriormente a este período no sistema não foram localizados processos cadastrados por esta competência somente sendo possível sua localização após a atualização do sistema ocorrido em 2014 que inaugura no Poder Judiciário catarinense a era dos processos digitais A partir da competência Lei Maria da Penha foi possível identificar classes processuais auto de prisão em flagrante inquérito policial ação penal ordinário ação penal sumário e medidas protetivas de urgência Embora esteja presente no sistema a classe processual feminicídio não foram localizados processos distribuídos com esta classificação processual CRIME 2014 2015 2016 2017 2018 Ameaça 369 367 434 425 180 Calúnia 1 3 11 11 6 Dano 32 45 36 35 25 Difamação 7 7 19 26 25 Estupro consumado 9 13 13 11 10 Estupro tentado 3 3 0 3 3 Homicídio doloso tentado 1 1 1 2 2 Injúria 169 187 239 257 121 Lesão corporal dolosa 197 171 206 199 95 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 235 Tabela 3 Dados estatísticos extraídos do SAJ Fonte tabela elaborada pelo autor a partir de dados extraídos do SAJ Os dados apresentados na tabela indicam que apenas pequena parcela dos procedimentos iniciados por meio de inquérito policial e autos de prisão em flagrante foram convertidos em ações penais Classe process ual 2014 Situaçã o process ual 2015 Situaçã o process ual 2016 Situaçã o process ual 2017 Situaçã o process ual 2018 Situaçã o process ual Auto de prisão em Flagran te 12 11 arquivo 1 tramita ndo 32 31 arquivo 1 tramita ndo 33 31 arquivo 2 tramita ndo 30 26 arquivo 4 tramita ndo 37 10 arquivo 27 tramita do Inquéri to policial 87 85 arquivo 2 tramita ndo 341 Todos arquiva dos 365 349 arquivo 14 tramita ndo 2remeç a outro tribunal 373 253 arquivo 120 tramita ndo 353 109 arquivo 244 tramita ndo Ação Penal Ordinár io 13 10 arquivo 3 tramita ndo 7 4 arquivo 1 suspens o 1remeç a outro tribunal 1 tramita ndo 10 Todos arquiva dos 13 1 arquivo 3 remeça outro tribunal 9 tramita ndo 9 1 arquivo 8 tramita ndo Ação Penal Sumári o 49 33 arquivo 4 suspens o 12 tramita ndo 18 9 arquivo 2 suspens o 7 tramita ndo 45 5 arquivo 4 suspens o 35 tramita ndo 91 3 arquivo 5 suspens o 83 tramita ndo 64 Todos em tramita ção Medida s Proteti vas de Urgênc ia 162 161 arquivo 1 tramita ndo 189 Todos arquiva dos 226 244 arquivo 2 tramita ndo 242 236 arquivo 1 cancela do 1 remeça outro tribunal 4 tramita ndo 238 165 arquivo 1 cancela do 72 tramita ndo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 236 Levando em consideração que a maioria dos registros policiais que formam apontados nos itens anteriores estavam relacionados aos crimes de ameaça injúria e lesão corporal em que os dois primeiros tipos penais são passíveis de representação por parte da vítima bem como de retratação no curso do procedimento inquisitório pode ser esta uma das causas do não oferecimento das denúncias e até mesmo da extinção dos processos em curso Em relação a quantidade de medidas protetivas deferidas se observa que não houve um aumento de requisições ao longo dos últimos anos nem sua diminuição ocorrendo certa estabilidade anual Neste sentido poderia se problematizar quanto a manutenção destes dados hipóteses sobre a efetividade das medidas deferidas existência ou não de medidas preventivas a violência doméstica entre outras na comarca Embora o SAJ propõem ser um sistema capaz de reunir dados possíveis de serem extraídos para a geração de relatórios estatísticos a fim de produzir dados apurados inclusive quanto ao tipo de crimes relacionados a violência doméstica perfil dos jurisdicionados número de processos vinculados as partes seja na qualidade vítima ou de autor de algum delito e sua possível reincidência estes não são gerados de forma automatizada sendo necessária a realização de busca manual destas informações por meio do nome dos sujeitos Em relação aos crimes de violência doméstica de competência do Tribunal do Júri estes dados não são possíveis de serem extraídos por classe de competência Lei Maria da Penha visto que são competências autônomas dentro do sistema onde a primeira alcança todos os crimes contra a vida independente da lei especial Desta forma para identificação dos processos classificados como feminicídio na comarca pronunciados e encaminhados a sessão do Tribunal do Júri foi necessária a busca de informações através da contabilização pessoal realizada pelo Promotor de Justiça titular da 4ª Promotoria de Justiça da Comarca de Araranguá Os dados são referentes ao período de sua investidura na referida promotoria iniciado no ano de 2016 conforme indicamos na tabela seguinte Tabela 4 Feminicídios submetidos ao Tribunal do Júri Comarca Data Pronúncia Resultado Crime Pena 1 Araranguá 18112016 Art 121 2º inciso II cc os art 14 II e 61 inciso II f ambos do CP na forma do artigo 5º inciso III da Lei n 1134006 Condenado Forma tentada 7 anos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 237 2 Araranguá 30112016 Art 121 2º incisos I e III cc o artigo 14 inciso II e o artigo 61 inciso II f todos do CP na forma do artigo 5º da Lei n 1134006 Condenado Forma tentada 12 anos e 10 meses 3 Araranguá 29062017 Art 121 2º incisos I IV e VI e 347 parágrafo único ambos do CP Absolvido Consumado 4 Araranguá 13092018 Art129 9º e do art 121 2º inciso I cc o art 14 caput na forma do art 69 caput todos do CP Condenado Consumado 2 anos e 6 meses de reclusão e 2 meses e 15 dias de detenção 5 Araranguá 09042019 Art 121 2º incisos I III IV e VI do CP cc 2ºA inciso I Condenado Consumado 20 anos Fonte tabela elaborada pelo autor partir de dados fornecidos pelo promotor de justiça Dentre os cinco casos levados a sessão do Tribunal do Júri cabe destacar que o crime ocorrido em 13092018 o feminicídio foi desqualificado em grau de recurso Desta forma os desde o ano de 2016 até 2019 apenas quatro juris por feminicídio sendo dois na forma tentada e dois na forma consumada Porém cabe destacar que a realização destas sessões não retrata o ano de ocorrência dos casos de feminicídio visto que a fase instrutória até a decisão de pronúncia depende de fatores diversos para além do rigor dos prazos processuais Em relação ao número de feminicídio ocorridos na Comarca de Araranguá no período de 2014 até 2018 dados disponíveis através do sito eletrônico da Secretaria de Segurança Pública informam a ocorrência de apenas três mortes decorrentes deste tipo penal Contudo no mesmo sitio é possível identificar numericamente mortes de mulheres pela ocorrência de outros tipos penais como latrocínio e homicídio doloso sem especificação de motivos CONSIDERAÇÕES FINAIS Com as informações obtidas para a elaboração do trabalho foi possível identificar inicialmente em relação as pesquisas na área da ciência jurídica e do direito são inexpressivas nos bancos de dados científicos como o SciELO Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 238 A dificuldade de localização de dados atuais se mostrou um desafio para a elaboração deste trabalho visto que não há unificação destes em um banco de dados e que possa estar disponível a possíveis interessados pesquisadores e acadêmicos em geral Os dados levantados apontam como crimes mais comuns o âmbito da violência doméstica a ameaça lesão corporal dolosa a injúria e o dano A violência sexual e os feminicídio não apresentar números expressivos Os dados estaduais encontram correspondência com os dados da Comarca para o mesmo período Não sendo evidenciado o aumento dos registros de ocorrência com o passar dos anos e nem a sua redução assim a ocorrência da violência doméstica tanto em nível estadual como local de manteve estável Em relação aos dados extraídos do Sistema de Automação do Judiciário foi possível identificar que os números da judicialização da violência doméstica na Comarca de Araranguá acompanham os números registros de mesma natureza informados pela Secretaria de Segurança Pública estadual contudo por se tratar de uma pesquisa exploratória não foi possível identificar a relação dos registros por crimes e sua relação com as tipificações contidas nas ações penais que tramitaram no período Visto que o sistema não permite a extração de dados refinados que podem oferecer tanto ao magistrado como a outros órgãos informações que possam ser utilizadas para a prevenção de atendimento dos sujeitos que se tornam objeto da atuação judiciária Nesse sentido ressaltase que a importância da produção do conhecimento cientifico pelas ciências jurídicas e pelo direito sobre o tema visto que há uma crescente necessidade de interlocução entre a dogmática jurídica com seus fundamentos teóricos e a sua concretização na prática operativa cotidiana Visto que os sujeitos enredados pela violência doméstica clamam por decisões adequadas e justas que atendam seus interesses sejam as vítimas os agressores e todos aqueles que os circundam principalmente quando estão presentes nestes contextos pessoas em processo de desenvolvimento emocional cognitivo e social como crianças e adolescentes Assim acreditase que os dados obtidos através da pesquisa realizada floresçam novos questionamentos que possam contribuir para a compreensão deste fenômeno social bem como para a melhor atuação dos operadores do direito REFERÊNCIAS ALVES Maria da Conceição Lima DUMARESQ Mila Landin SILVA Roberta Viegas As lacunas no enfrentamento à violência contra a mulher análise dos bancos de dados existentes acerca da vigilância doméstica e familiar Brasília Núcleo de Estudos e Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 239 PesquisasCONLEG Senado abril2016 Texto para Discussão nº 196 Disponível em wwwsenadolegbrestudos Acesso em 22 mar 2019 AMARAL Luana Bandeira de Mello et al Violência doméstica e a Lei Maria da Penha perfil das agressões sofridas por mulheres abrigadas em unidade social de proteção Rev Estud Fem Florianópolis v 24 n 2 p 521540 ago 2016 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0104 026X2016000200521lngptnrmiso Acesso em 20 maio 2019 BANDEIRA Lourdes Maria Violência gênero e poder múltiplas faces Organização Cristina Stevens Susane Oliveira Valeska Zanello Edlene Silva Cristiane Portela Mulheres e violências interseccionalidades Brasília DF Technopolitik p 1435 2017628 BRASIL Lei nº 11340 de 7 de agosto de 2006 Lei Maria da Penha 2019 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03Ato200420062006LeiL11340htm Acesso em 30 mar 2019 BRASIL Lei nº 9099 de 26 de setembro de 1995 Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais e dá outras providências Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03leisl9099htm Acesso em 20 abr 2019 BRASILPolítica Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres e Secretaria de Políticas para as Mulheres Presidência da República Brasília 2011 Disponível em httpswww12senadolegbrinstitucionalomventendaaviolenciapdfspoliticanacionalde enfrentamentoaviolenciacontraasmulheres Acesso em 23 abr 2019 BRASILEIRO Anaïs Eulálio e MELO Milena Barbosa de Agressores na violência doméstica um estudo do perfil sóciojurídico Revista de Gênero Sexualidade e Direito Curitiba 2016 Disponível em 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há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 240 Maria Rev esc enferm USP online 2010 vol44 n1 pp126133 ISSN 00806234 Disponível em httpdxdoiorg101590S008062342010000100018 Acesso em 20 maio 2019 MADUREIRA Alexandra Bittencourt et al Perfil de homens autores de violência contra mulheres detidos em flagrante contribuições para o enfrentamento Esc Anna Nery Rio de Janeiro v 18 n 4 p 600606 dez 2014 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1414 81452014000400600lngptnrmiso Acesso em 07 abr 2019 MORERA Jaime Alonso Caravaca ESPÍNDOLA Daniela CARVALHO Juliana Bonetti de MOREIRA Adriana Rufino PADILHA Maria Itayra Violência de gênero um olhar histórico In HIST ENF REV ELETR HERE v 5 n 1 p 5466 janjul 2014 Disponível emhttpwwwabennacionalorgbrcentrodememoriaherevol5num1artigo5pdf Acesso em 20 fev 2019 MOTA Jurema Corrêa da VASCONCELOS Ana Gloria Godoi e ASSIS Simone Gonçalvez de Análise de correspondência como estratégia para descrição do perfil da mulher vítima do parceiro atendida em serviço especializado Ciênc saúde coletiva online v12 n3 p799 809 2007 ISSN 14138123 Disponível em httpdxdoiorg101590S1413 81232007000300030 Acesso em 3 mar 2019 MOTERANI Geisa Maria Batista CARVALHO Felipe Mio de Misoginia a violência contra a mulher numa visão histórica e psicanalítica In Avesso do avesso v14 n14 p 167 178 nov 2016 Disponível em httpwwwfeataedubrdownloadsrevistasavessodoavessov14artigo11misoginiapdf Acesso em 30 mar 2019 NUNES SCARDUELI Márcia Cristiane Lei Maria da Penha e violência conjugal discursos sujeitos e sentidos Rio de Janeiro Lumen Juris 2018 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL ADA SAÚDE Prevenção da violência sexual e da violência pelo parceiro íntimo contra a mulher Ação e produção de evidência Disponível em httpsappswhointirisbitstreamhandle10665443509789275716359porpdfjsessionidE 9EC38A4BDDC5643C9823E618331ADCDsequence3 Acesso em 12 abr 2019 PASINATO Wânia Acesso à justiça e violência doméstica e familiar contra as mulheres as percepções dos operadores jurídicos e os limites para a aplicação da Lei Maria da Penha Rev direito GV São Paulo v 11 n 2 p 407428 dez 2015 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1808 24322015000200407lngennrmiso Acesso em 19 maio 2019 POLICIA MILITAR DE SANA CATARINA Rede Catarina Disponível em httpwwwpmscgovbrnoticiaspmsclancarrredecatarinadeprotecaoa mulherrrhtml acesso em 30 abr 2019 RIFIOTIS Theophilos Judiciarização das relações sociais e estratégias de reconhecimento repensando a violência conjugal e a violência intrafamiliar Rev katálysis Florianópolis v 11 n 2 p 225236 dez 2008 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1414 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 241 49802008000200008lngennrmiso Acesso em 19 maio 2019 RIFIOTIS Theophilos Violência justiça e direitos humanos reflexões sobre a judicialização das relações sociais no campo da violência de gênero Cad Pagu Campinas n 45 p 261 295 dez 2015 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0104 83332015000200261lngptnrmiso Acesso em 07 abr 2019 SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA DE SANTA CATARINA Segurança Em Números Disponível em httpwwwsspscgovbrindexphpcomponentcontentarticle88 servicos184segurancaemnumeros2Itemid437 Acesso em 20 abr 2019 SIQUEIRA Vitória de Barros Violência baseada em gênero um fenômeno social de abordagem interdisciplinar Disponível em httpsperiodicosufpebrrevistasrevistaenfermagemarticledownload1093612234 Acesso em 25 abr 2019 TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SANTA CATARINA Informatização no Poder Judiciário catarinense Disponível em httpswwwtjscjusbrwebprocessoeletronicosajhistorico Acesso em 19 maio 2019 VASCONCELOS Marilena Silva de HOLANDA Viviane Rolim de e ALBUQUERQUE Thaíse Torres de Perfil do agressor e fatores associados à violência contra mulheres Revista Cogitare Enfermagem v21 n1 janmar 2016 Disponível em httpsrevistasufprbrcogitarearticleview41960 Acesso em 10 out 2018 WAISELFISZ Julio Jacobo Mapa da Violência 2015 homicídios de mulheres no Brasil Disponível em wwwmapadaviolenciaorgbr Acesso em 25 mar 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 242 MARÉ MULHERES EM ACOLHIMENTO REFLEXÃO E ESCUTA RELATO DE EXPERIÊNCIA DE UM PROJETO DE EXTENSÃO COM MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA Amanda Ferreira da Silva1 Letícia Cisne Branco2 Luana Limberger Marques3 Marília dos Santos Amaral4 RESUMO O presente relato de experiência objetiva descrever o processo de desenvolvimento implementação e prática do Projeto de Extensão MARÉ Mulheres em Acolhimento Reflexão e Escuta O MARÉ cujo propósito é o acolhimento e fortalecimento comunitário com mulheres em situação de violência residentes no norte de Florianópolis tem como bases teóricas a psicologia comunitária e as teorias feministas Neste capítulo apresentarseá o modo como o projeto se construiu e as intervenções grupais foram realizadas em um contexto comunitário A partir de uma análise teórica e crítica sobre a violência de gênero e na aposta por um compromisso ético político e científico da psicologia com as mulheres em diferentes processos de vulnerabilidade discutese a potência do encontro grupal como promotor de espaços de acolhimento e fortalecimento de vínculos entre mulheres Com base no trabalho de intervenção grupal e também de orientação escuta e articulação com a rede socioassistencial concluise que o Projeto MARÉ se constrói com o fortalecimento das políticas públicas que atuam na prevenção assistência e atendimento às mulheres em situação de violência do município de Florianópolis Ademais essa prática coletiva possibilita uma ampla experiência de atuação no campo psicossocial na qual a promoção da autonomia a valorização do saber comunitário e a ressignificação do sofrimento éticopolítico por parte das mulheres se apresenta como resultados da potência do encontro grupal Palavraschave Psicologia comunitária Feminismo Mulheres em situação de violência INTRODUÇÃO O presente texto é o relato de experiência das intervenções do grupo MARÉ Mulheres em Acolhimento Reflexão e Escuta um projeto de extensão com mulheres em situação de violência na cidade de Florianópolis Esse projeto se desenvolve desde agosto de 2018 a partir de um amplo mapeamento das redes de assistência a mulheres em situação de violência na 1 Graduanda em Psicologia pela Faculdade CESUSC amandaweengmailcom Lattes httplattescnpqbr4195948309061726 2 Graduanda em Psicologia pela Faculdade CESUSC lecisnebrancogmailcom Lattes httplattescnpqbr3980136037904245 3 Graduanda em Psicologia pela Faculdade CESUSC limbergerluanagmailcom Lattes httplattescnpqbr5566152871393999 4 Psicóloga Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Professora de Psicologia da Faculdade CESUSC mariliapsicohotmailcom Lattes httplattescnpqbr7359263849723109 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 243 cidade em que se constatou a carência de espaços para que mulheres que passam ou passaram por situações de violência pudessem receber assistência psicológica especialmente na região do norte da ilha Nesse contexto buscase apresentar neste capítulo o processo de criação desenvolvimento e execução do projeto de extensão que culminou em intervenções grupais com mulheres em situação de violência A atuação deste grupo se baseia tanto em teorias feministas quanto na perspectiva da psicologia comunitária objetivando uma práxis que possibilite a autonomia e fortalecimento de vínculos comunitários Para o relato desta experiência inicialmente é traçado um panorama geral do movimento feminista no Brasil uma vez que são essas as conquistas que possibilitam a criação de novos espaços de luta e garantia de direitos Em seguida apresentase uma breve discussão sobre a violência contra a mulher e os avanços obtidos a partir da Lei Maria da Penha e por fim descrevese detalhadamente o processo de criação do Projeto MARÉ e o modo como se constroem as intervenções grupais em um contexto comunitário Dessa maneira a partir de uma análise teórica e crítica sobre a violência de gênero e na aposta por um compromisso ético político e científico da psicologia com as mulheres em vulnerabilidade analisaramse as intervenções deste projeto que visa promover espaços de acolhimento escuta e fortalecimento comunitário contribuindo assim com a articulação das políticas públicas do município de Florianópolis que atuam na prevenção assistência e atendimento às mulheres em situação de violência 1 MOVIMENTO FEMINISTA NO BRASIL Historicamente diversas pesquisas científicas sobre a violência contra as mulheres têm sido produzidas no Brasil e isso permite variadas leituras sobre o tema Todavia estudar e analisar a violência de gênero como fenômeno de articulação psicossocial é um desafio teórico necessário principalmente para asos profissionais que atuam no acolhimento e escuta de mulheres seja de forma individual ou coletiva Conforme as contribuições de Pinto 2003 a violência contra a mulher e a violência doméstica se tornaram as principais pautas do movimento feminista influenciado pelo movimento europeu no final dos anos 1960 Deste período em diante cada vez mais a globalização das lutas pelos direitos das mulheres passou a ganhar novas pautas e atingir novos horizontes caracterizando assim as chamadas ondas do feminismo CAETANO 2017 Atualmente descrevemse três ondas uma divisão de cunho histórico que nos permite entender que suas pautas não são ciclos que se encerraram mas que foram transversalizadas e interseccionadas por outras e Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 244 consequentemente emergiram de acordo com as condições sociais políticas econômicas e culturais de cada momento e local Sob esse viés Caetano 2017 menciona que a primeira onda cuja visibilidade beira o fim do século XIX até meados do século XX é caracterizada pela reivindicação do direito ao voto à vida pública e à participação política Já a segunda onda que emerge em alguns países nos anos 1950 e se estende até os anos 1990 teve como uma de suas importantes problematizações a naturalização e distinção entre o sistema sexogênero Nesse momento o movimento feminista também tornou visível pautas como a dos direitos reprodutivos do mercado de trabalho e a maternidade Ou seja as formas de intervenção e lutas tomaram como foco o fortalecimento da coletividade das mulheres como meio de acesso a direitos e à consciência crítica sobre o papel do Estado no que se refere aos direitos das mulheres e portanto sobre a importância de se problematizar as fronteiras entre o público e privado A terceira onda por sua vez abarca de forma mais ampla as pautas e reivindicações que se referem à interseccionalidade das formas de opressão experienciadas pelas mulheres como efeito das reverberações do feminismo negro que desde a segunda onda tensionou as múltiplas formas de subordinação às quais sujeitos com diferentes experiências estão submetidos Segundo Conceição Nogueira 2013 p 231 a perspectiva da interseccionalidade examina como as várias categorias social e culturalmente construídas interagem a múltiplos níveis para se manifestarem em termos de desigualdade social Isto é tratase de uma abordagem que parte do pressuposto de que os modelos clássicos de compreensão dos fenômenos de opressão tais como sexogênero raçaetnia classe religião nacionalidade orientação sexual e deficiência não agem de forma independente um do outro pelo contrário essas formas de opressão interrelacionamse criando um sistema que reflete a intersecção de múltiplas formas de discriminação NOGUEIRA 2013 p 231 Nesse sentido a abordagem interseccional mostrase uma resposta teórica à diversidade de perspectivas que compõem os feminismos tais como os estudos acerca da igualdade ou as abordagens centradas na diferença Em virtude de ser um movimento transnacional as lutas do feminismo tiveram grande repercussão política e cultural no Brasil pois possibilitaram às mulheres que antes eram vistas como inferiores e incapazes de tomar decisões sobre seus corpos e suas vidas que não podiam realizar qualquer atividade sem a autorização de um homem bem como àquelas proibidas a ocuparem lugares de poder a questionarem seus direitos enquanto sujeitos implicados numa sociedade Em outras palavras o movimento feminista foi o marco necessário para as mulheres lutarem por seus direitos ocupandointervindo em espaços com vistas à transformação social e Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 245 ao combate a todas as formas de violações destes direitos especialmente no que refere às violências de gênero Por estes caminhos é a partir da emergência do movimento feminista que o patriarcado sistema que estrutura as relações sociais passou a ganhar importância como categoria de análise Por meio da análise das formas pelas quais o patriarcado subjuga violenta adapta e naturaliza determinados modos de ser mulher é que o feminismo baliza suas ações Assim as pautas de luta se fundamentam na busca por equidade para que homens e mulheres possam usufruir de uma sociedade mais justa com direitos assegurados sejam eles judicialmente ou culturalmente instituídos RIBEIRO 2018 Nessa perspectiva as intervenções frente às violências passam a apontar para a necessidade de uma análise histórica que atente para os modos pelos quais as relações os discursos e os sujeitos se produzem e se sustentam pela lógica patriarcal discutindo assim a violência como um problema social pois além de agravos físicos e psicológicos uma análise cuidadosa e crítica como esta denuncia a urgência de atenção intervenção e problematização por parte do Estado Estas intervenções portanto passam a sinalizar para a criação de novas políticas que além de defender e prevenir funcionem balizadas pela importância da autonomia e da garantia de direitos às mulheres Nesse contexto em meados dos anos de 1979 a Organização das Nações Unidas ONU debate a Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a mulher que fortalece as lutas do feminismo sendo promulgada no Brasil em 1981 ONU MULHERES 2019 Esse foi o primeiro tratado internacional que defende os direitos humanos das mulheres e propõe reprimir toda e qualquer discriminação promovendo a busca pela igualdade de gênero Essa convenção da ONU inclui uma série de tratados tais como o direito ao casamento por consenso a liberdade ao divórcio direitos políticos econômicos sociais e culturais ONU MULHERES 2019 Assim os efeitos das pautas feministas no campo político e de Estado a partir de 1979 podem ser examinadas de três perspectivas complementares a conquista de espaços no plano institucional por meio de Conselhos e da delegacia da mulher a presença de mulheres nos cargos eletivos e as formas alternativas de participação políticas PINTO 2003 Tais conquistas repercutiram na mudança e implementação de novas políticas que se legitimaram a partir de importantes tratados e convenções como a da ONU em 1979 Entre essas conquistas uma das principais que hoje se tem no Brasil é a Lei Maria da Penha que garante o direito e a proteção às mulheres vítimas de violências implicando o Estado como responsável por políticas públicas que previnam atendam e protejam as mulheres Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 246 2 MULHERES EM SITUAÇÃO DE VIOLÊNCIA E LEI MARIA DA PENHA No que se refere às políticas públicas que amparam as mulheres em situação de violência é possível observar que houve grandes avanços desde a implementação da Lei Maria da Penha sancionada em 2006 Mesmo após a criação das delegacias especializadas para mulheres em 2001 ocorre no Brasil o caso da Maria da Penha trazendo à tona a gravidade da violação dos direitos humanos perpetrado contra as mulheres brasileiras A cearense Maria da Penha Maia Fernandes foi vítima de duas tentativas de homicídio pelo marido e seu caso ganhou grande repercussão após a denúncia do descaso da justiça brasileira na penalização do agressor feita à Comissão Internacional de Direitos Humanos dos Estados Americanos OEA PARANÁ 2019 Além disso a denúncia fez com que o Estado Brasileiro fosse questionado sobre como se tratava a violência doméstica no país Naquele momento a penalização em casos de violência doméstica era considerada crime de menor potencial ofensivo culminando na aplicação de penas alternativas e sua sanção se dava por meio do pagamento de cestas básicas ou prestação de serviço sociocomunitário não garantindo a segurança dos direitos humanos da mulher uma vez que não se garantia a medida protetiva Após a intervenção de órgãos internacionais no que se refere à garantia de proteção às mulheres em situação de violência no Brasil publicouse a Lei nº 11340 de 2006 conhecida como Lei Maria da Penha que cria mecanismos que coíbem a violência doméstica e familiar contra a mulher Essas violências se configuram como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte lesão sofrimento físico sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial É importante salientar que a violência psicológica é entendida como qualquer conduta que cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento Também se considera violência qualquer ação que vise degradar ou controlar as ações comportamentos crenças e decisões mediante ameaça constrangimento humilhação manipulação isolamento vigilância constante perseguição contumaz insulto chantagem ridicularização exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação BRASIL 2006 Entre as propostas dessa lei destacase o fato de que ela visa resguardar de forma mais próxima a segurança das vítimas e por este motivo também dispõem das chamadas medidas protetivas que podem ser concedidas a partir de um Boletim de Ocorrência Dessa forma as delegacias especializadas no atendimento a mulheres além de agir diretamente na punição em relação à agressão no ambiente doméstico também contam com as redes de apoio que em conjunto garantem que a mulher em situação de violência possa obter o direito à assistência Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 247 para o tratamento de questões envolvendo a saúde mental e o amparo psicológico BRASIL 2006 Conforme aponta Saffioti 1997 a violência contra as mulheres não se restringe à violência doméstica pois mulheres são violentadas dentro e fora de suas casas o tempo todo A grande questão é que a cultura brasileira patriarcal é sustentada por uma visão em que o homem é dominante e reconhecido em seu grupo familiar como o protetor do território simbólico Esse caráter simbólico dos laços que permitem a exploraçãodominação exercida pelo patriarca que extrapola o território famíliagrupo domiciliar e se ancora em todos os domínios da sociedade SAFFIOTI 1997 sp Isso nos remete ao fato de que as violências praticadas contra as mulheres não dependem de um território físico pois estão constantemente correlacionadas com a estrutura social vigorante em nosso país em que são reproduzidos papéis cristalizados de gênero A consequência dessa estrutura social pode ser vista através do alto número de casos reportados de violência contra as mulheres como mostram os dados de uma pesquisa feita em 2015 que demonstra que a taxa de feminicídio no Brasil foi a quinta maior do mundo ONU 2016 Em um contexto regional as informações do Ministério Público de Santa Catarina MPSC apontam que no ano de 2018 entre janeiro e novembro registraramse 105474 casos de violências domésticas e outros 21077 de violência contra as mulheres no estado Dentre as violências cometidas incluemse os crimes de estupro tentativa de estupro tentativa de homicídio lesão corporal e roubo Os números de violência doméstica envolvem ameaça calúnia difamação estupro tentativa de estupro tentativa de homicídio injúria e lesão corporal que normalmente se relacionam ao ambiente doméstico da vítima SANTA CATARINA 2019 Na capital de Santa Catarina Florianópolis por exemplo os dados também preocupam pois a cidade ocupa o segundo lugar no ranking da violência contra as mulheres quando comparada a outras capitais brasileiras É nesse cenário crítico que o relato de experiência deste artigo se insere pois foi a partir destes dados e deste contexto local que se realizou um levantamento inicial das políticas públicas às mulheres no qual se observou a carência de mais espaços de escuta e acolhimento às mulheres em situação de violência tal como se discutirá a seguir 3 MULHERES EM ACOLHIMENTO REFLEXÃO E ESCUTA A partir de um levantamento realizado no território de Florianópolis acerca das redes de atendimento e assistência a mulheres em situação de violência identificouse a carência de mais Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 248 lugares destinados à escuta e ao acolhimento dessas mulheres especialmente na região norte da Ilha Atualmente o norte da ilha é um dos locais mais populosos da capital sendo inclusive de acordo com os dados oficiais obtidos junto aos órgãos públicos do município a região com o maior número de mulheres com medidas protetivas expedidas Com o intuito de articular e estabelecer vínculo entre o ensino e a extensão e neste caso entre a Faculdade CESUSC e a comunidade do norte da ilha iniciouse um movimento de aproximação com as redes já existentes a fim de analisar as possibilidades de criação de um projeto de extensão que visasse à promoção de autonomia e de vínculos comunitários com mulheres em situação de violência Neste contexto realizaramse os primeiros movimentos que apontaram para a necessidade de um trabalho diferenciado no que tange às questões de violência contra às mulheres em Florianópolis Os primeiros passos foram marcados pelo mapeamento e conhecimento das redes que protegem e atendem mulheres na cidade fundamentando assim os delineamentos iniciais do projeto de extensão e intervenção que veio a ser intitulado como MARÉ Mulheres em Acolhimento Reflexão e Escuta Inicialmente o projeto contou com a parceria feita entre o Ministério Público de Santa Catarina e o 21 Batalhão da Polícia Militar responsável pela fiscalização das medidas protetivas e com isso planejouse como intervenção acolhimentos individuais e a criação de um grupo para acolhimento coletivo exclusivamente com mulheres que estivessem sob medida protetiva A ideia era que os acolhimentos fossem realizados em grupo no Centro de Produção de Saberes e Práticas em Psicologia CEPSI do curso de Psicologia localizado dentro da Faculdade CESUSC Porém desde o início observaramse dificuldades de adesão das participantes e frente a isso compreendeuse que era necessário repensar as estratégias Até este momento do projeto os convites eram feitos diretamente pelo 21 Batalhão da Polícia Militar por meio de divulgação impressa entregue durante as rondas e visitas domiciliares de fiscalização das medidas protetivas o que de certo modo distanciava a equipe do projeto de um contato mais próximo com as mulheres Pensando neste e em demais pontos a serem revisados direcionaramse os objetivos do projeto de forma que viabilizasse uma maior aproximação das mulheres e para uma melhor identificação de suas demandas Nesta revisão e avaliação das formas de intervenção identificouse a importância de uma aproximação ainda maior com as redes de políticas públicas já atuantes no município de Florianópolis para que assim fosse possível também a familiarização com as necessidades específicas desta população de mulheres Essa estratégia conduziu o projeto MARÉ a ampliar o acolhimento a todas as mulheres que se interessam em conversar sobre os diversos tipos de violência proporcionando um espaço Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 249 de acolhimento e reflexão A partir disso o grupo passou a ter início efetivamente no mês de abril de 2019 desta vez nas dependências do Centro de Referência e Assistência Social CRAS de Canasvieiras cujos convites passaram a ser feitos pela própria equipe técnica Cabe também ressaltar que esses convites são mediados pelasos funcionáriasos do CRAS em função do acesso restrito às informações das usuárias cadastradas e principalmente pela importância da atuação e da sensibilidade dasos profissionais em identificar em seus serviços mulheres que poderiam vir a participar do grupo Desde o começo das atividades do grupo no CRAS Canasvieiras realizaramse dez encontros quinzenais nos quais 14 mulheres já participaram Sendo algumas mais assíduas do que outras Esse movimento retrata a construção gradativa do grupo naquele espaço nas quais os primeiros encontros foram marcados por um número mais restrito de participantes no entanto à medida que continuaram as divulgações do projeto juntamente com o entrosamento da equipe com asos profissionais do CRAS observouse um aumento considerável no número de participantes assim como na assiduidade dessas mulheres Atualmente o grupo acontece das 14h30 às 17h30 dependendo sempre da disposição de tempo e demanda das participantes A equipe de mediadoras é composta por três estudantes do curso de Psicologia sob supervisão de uma professora de Psicologia da Faculdade CESUSC Como ferramentas para atuação utilizamse as técnicas de Grupo Reflexivo BEIRAS BRONZ 2016 cujo objetivo configurase em possibilitar coletivamente um espaço de questionamento e reflexão crítica a respeito das construções normativas e desiguais de gênero Também faz parte da metodologia adotada o acolhimento coletivo intercalado com dinâmicas vídeos informativos sobre direitos e violências e orientações a respeito dos equipamentos públicos Toda a mediação das atividades da escuta e da reflexão no grupo conflui nos pressupostos da psicologia comunitária que visa ao fortalecimento dos vínculos coletivos à promoção da autonomia e à potencialização de espaços que possibilitem o acesso e a garantia de direitos Além disso os encontros iniciam com uma breve explicação sobre o objetivo daquele espaço e sobre a importância do contrato de sigilo e do não julgamento em relação às histórias que serão contadas no grupo Observase que a maioria das participantes não denunciaram as violências experienciadas por medo falta de informação ou por diferentes condições que as impossibilitam de fazer isso Após esse contrato o grupo é aberto para que as mulheres se sintam à vontade para falarem sobre suas histórias e experiências de modo espontâneo se quiserem e como quiserem Além dos relatos o espaço possibilita às participantes a troca de informações e esclarecimentos sobre questões que envolvem assistência social saúde Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 250 segurança e questões jurídicas Nestes casos quando necessário asos profissionais do CRAS são acionadasos para contribuírem com esclarecimentos mais específicos Após a realização do contrato grupal do momento de apresentações e dos relatos das integrantes servese o lanche momento em que muitas vezes as mulheres com mais dificuldades de se expressar se sentem mais à vontade para se aproximar das outras assim como também é o momento em que compartilham outras experiências como o que mais gostam de fazer onde trabalham o que sabem cozinhar e o que gostam de ouvir É neste espaço mais descontraído no qual os vínculos se fortalecem para além da experiência de violência em comum Atualmente são as mulheres participantes do grupo que elaboram os lanches de acordo com o que gostam e sabem fazer Algumas delas por exemplo já se mobilizam com outras integrantes do grupo para participarem das oficinas de geração de renda e horta comunitária oferecidas pelo CRAS Os encontros têm sido divulgados por meio de cartazes e flyers distribuídos em visitas constantes da equipe do projeto a instituições de ensino unidades básicas de saúde UBS e centros de assistência social CRAS no norte da Ilha Outra ferramenta utilizada são as mídias sociais como WhatsApp Facebook e Instagram pois funcionam como modo de ampliar a divulgação mas principalmente para manter um contato constante com a rede Por conseguinte após o início das atividades do grupo realizaramse visitas e divulgação de materiais do Projeto MARÉ na Delegacia da Polícia Especializada para Mulheres DPCAMI no CRAS dos Ingleses nas Unidades Básicas de Saúde no Norte da Ilha no Ministério Público de Santa Catarina na Defensoria Pública de Santa Catarina e no Centro de Referência a Mulheres em Situação de Violência CREMV Neste momento com o aumento da procura pelo projeto por parte das mulheres usuárias do CRAS Canasvieiras mas também por profissionais interessadasos pertencentes a outros equipamentos públicos planejase a ampliação da frequência dos grupos para encontros semanais abrindose com isso a possibilidade de formação de novas equipes para a realização do grupo em outros locais como UBS e Associações Comunitárias 41 Violência contra a mulher interlocuções entre feminismo e psicologia comunitária Podemos afirmar que todas as mulheres que foram acolhidas no grupo relataram terem passado ou estar passando por alguma situação de violência seja ela física psicológica moral sexual ou patrimonial cometidas por companheiros pais padrastos amigos e colegas de trabalho Muitas dessas mulheres passam por sofrimentos e angústias mas se mantêm na situação por diferentes motivos eou processos de vulnerabilidade ou até mesmo por Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 251 desconhecerem seus direitos ou recursos neste sentido Sob esse viés Jong et al 2008 afirmam que para algumas mulheres a violência cotidiana nem mesmo é percebida como violação dos seus direitos para muitas ainda é considerada normal no contexto familiar o que não as exime dos sentimentos de culpa e vergonha Neste sentido As mulheres relatam sentir vergonha ou humilhação culpa ou medo de serem culpadas pela violência temor pela sua segurança e a de seus filhos falta de controle sobre suas vidas esperança de que o agressor mude dado que ele promete medo de perder os filhos vontade de proteger o parceiro por razões econômicas ou afetivas SCHRAIBER DOLIVEIRA COUTO 2009 p 209 Bader Sawaia 2007 aponta que historicamente as emoções têm sido usadas como estratégia de exclusão e manutenção da ordem social Nesse sentido sentimentos como culpa e vergonha em mulheres que sofreram violência atuam como forma de reafirmar a opressão imposta pelo patriarcado gerando sofrimento que transpassa a dor inerente ao ser humano em suas afetações cotidianas pois esse sofrimento é o resultado de diversas injustiças sociais Esse sentimento denominado como sofrimento éticopolítico mutila o cotidiano e de certa forma ceifa a autonomia e reproduz a exclusão O sofrimento éticopolítico retrata o contexto históricosocial de seu tempo especialmente a dor que surge de ser tratado como inferior subalterno sem valor apêndice inútil da sociedade SAWAIA 2007 p 104 Por meio dos relatos feitos no grupo fica claro que muitas mulheres percorreram um longo e doloroso caminho na busca por seus direitos marcado por rejeições burocracias julgamentos falta de informações precisas e de espaços onde pudessem falar livremente de seus medos e angústias impossibilitandoas de expressar seus desejos afetos e até mesmo de circular livremente pelos espaços públicos Nesse sentido o conceito de sofrimento éticopolítico nos auxilia a pensar que os afetos quando aumentam ou diminuem a potência de ser dos sujeitos SAWAIA 2007 também constroem subjetividades e singularidades e para além disso cada afetação reverbera no que se constituiu ao longo da história do sujeito Assim a práxis dao psicólogao ao entender a violência contra as mulheres e seus efeitos subjetivos não reduz as questões à individualização de problemas mas amplia para um esfera psicossocial e valoriza um acolhimento e escuta que possam também abordar a subjetividade do sofrimento a ponto do sujeito ter recursos de rede para diminuir a intensidade do sofrimento É perceptível a partir dos relatos do grupo que a violência de gênero é atravessada por diversos marcadores sociais que legitimam práticas sociais de opressão De acordo com Silveira e Nardi 2014 são três os maiores marcadores sociais que se interseccionam e atravessam o Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 252 processo de subjetivação a raça a classe e o gênero Entretanto podemos ainda adicionar alguns outros marcadores importantes de diferença como a sexualidade a etnia a geração e a deficiência nas quais a violência se desenha acarretando a essas mulheres múltiplas formas de opressão Como já mencionado a terceira onda do feminismo abarca de forma mais ampla o que se pode chamar de interseccionalidade pois expande a visibilidade do feminismo no sentido de acolher todas essas formas opressão e sofrimento A decepção com modelos e discursos realizados por feministas brancas levaram outros coletivos de mulheres a utilizarem suas próprias experiências de exclusão opressão e discriminação bem como de resistência relacionadas à raça e sexualidade principalmente para desenvolver formas próprias de trabalhar com os conceitos de gênero e feminismo já que o enfoque dado pelo feminismo ao gênero como exclusiva fonte de opressão das mulheres não logra estabelecer relações entre sexismo e outras formas de dominação MAYORGA 2014 p 226 Para além da perspectiva feminista no cotidiano do grupo é possível ver em ato os conceitos comunitários da práxis da libertação NEPOMUCENO et al 2008 pois as mulheres relatam seu sofrimento e são acolhidas umas pelas outras construindo nesse processo de identificação e afeto as potencialidades e virtudes de cada uma estreitando laços de solidariedade e sororidade entre elas Ainda que o grupo tenha como temática central a violência contra as mulheres as conversas sempre são atravessadas por outros assuntos como mercado de trabalho autoestima e relações familiares pois tal como refere MartínBaró Essa população não só tem necessidades materiais sérias de alimentação teto saúde e trabalho mas também tem outras necessidades que embora não tão prementes não por isso menos graves de desenvolvimento pessoal e relações humanizadoras de amor e esperança em sua vida de identidade e significação social MARTÍNBARÓ 1997 p 19 Neste sentido de escuta e acolhimento feito por e com mulheres a modalidade de grupo reflexivo possibilita trabalhar coletivamente variados temas de maneira a valorizar o que o próprio grupo enuncia como saberes comunitários além de conduzir a reflexão para um processo de desnaturalização da violência considerando seus diversos tipos e o modo como atravessam as histórias e o cotidiano das mulheres Logo a potencialidade do grupo está na capacidade de promover bons encontros entre as participantes possibilitando o fortalecimento do vínculo entre elas e a ampliação de seu território existencial contribuindo assim com processos coletivos e singulares de promoção e reconhecimento da autonomia A partir dessa leitura das vulnerabilidades das mulheres em situação de violência como um modo de sofrimento éticopolítico é possível repensar as direções éticas e políticas da Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 253 atuação dao psicólogao inclusive compreendendo o sofrimento de uma forma mais ampla sem reduzilo à lógica psicologizante Além disso as experiências vivenciadas no Projeto MARÉ apontam para importância de analisar e ampliar a práxis dasos psicólogasos nas políticas públicas principalmente em espaços como o da assistência social da saúde e da educação nas quais as violências de gênero podem ser prevenidas identificadas e discutidas Para Ximenes Paula e Barros 2009 o desenvolvimento de práticas críticas éticas e políticas implicam ao psicólogao em um trabalho de rede envolvendo diversos atores sociais incidindo no contexto comunitário considerando seus saberes complexidades e multidimensionalidades 32 A importância da atuação em rede para o fortalecimento das políticas públicas Os encontros do Projeto MARÉ ocorrem no Centro de Referência de Assistência Social CRAS de Canasvieiras na cidade de Florianópolis em Santa Catarina O espaço potencializa os encontros grupais pois se destina a um serviço público do Sistema Único de Assistência Social SUAS que atua nas áreas de vulnerabilidade e riscos sociais do município Asos profissionais que atuam no CRAS possuem como objetivo principal a execução e planejamento de ações com a finalidade de garantir direitos amenizar situações de vulnerabilidade social e consequentemente de risco social configurando assim ações de atuação preventiva na proteção social básica O CRAS conta com assistentes sociais psicólogasos e profissionais capacitadasos para esse tipo de demanda cuja principal função é a oferta de trabalho social com as famílias através do serviço de Proteção e Atendimento Integral às Famílias PAIF além da gestão territorial da rede de assistência social de proteção básica O projeto MARÉ trilhou diversos caminhos acumulando uma experiência significativa sobre as formas de articulação com a rede municipal de políticas públicas que prestam atendimento às mulheres em situação de violência O mapeamento de rede as reuniões e conversas com gestorases e profissionais de diferentes equipamentos proporcionaram reflexões inclusive sobre a atuação ética e política como estagiárias e profissionais de psicologia Uma das principais reflexões levantou questões envolvendo as diversas formas de violências vivenciadas na história ou no cotidiano de algumas mulheres cujas muitas dessas violências o próprio Estado é quem comete ou reproduz no momento em que os atendimentos específicos para mulheres em situação de violência são negligenciados ou até mesmo negados Nesse sentido as atividades desenvolvidas com as mulheres e o espaço construído com elas para acolhimento apresentamse como uma grande potência comunitária à medida em que os relatos expostos pelas participantes passam por verbalizações significativas de sofrimentos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 254 que até então nenhum outro espaço seja ele oferecido pelo Estado ou não se designavam à capacidade de escuta qualificada Isso significa que o Projeto MARÉ tem acessado mulheres que inclusive não se veem ou não se viam pertencentes à rede de apoio psicossocial seja por não obterem o conhecimento necessário sobre as políticas públicas e garantia de direitos seja por simplesmente compreenderem o próprio Estado como o produtor das violências Para Gesser 2013 a psicologia ao atuar nos espaços de políticas públicas tem como proa de sua práxis o conhecimento sobre os múltiplos atores sociais acolhendo assim os diversos modos de ser a potencialização dos sujeitos e a inclusão das diversidades Além disso ao psicólogao neste contexto de atuação também visa contribuir com a garantia de direitos para além da judicialização e da medicalização da vida uma vez que são constantes os relatos das mulheres e de profissionais sobre a inclusão da justiça como única forma possível de resolução de conflitos e do uso de medicamentos como forma de aliviar a dor diante dos processos de vulnerabilidade Pelos motivos apontados além do espaço de escuta e reflexão a atuação do projeto MARÉ primou por abarcar as subjetividades e nos casos que assim cabiam aproximar estas mulheres aos equipamentos das políticas públicas como forma de envolver a rede de serviços e ampliar as possibilidades de garantias de direitos assim como também de suporte simbólico Percebese que para muitas mulheres que passaram e passam pelo MARÉ a busca pela garantia de direitos e por um espaço na qual se sintam acolhidas fomenta uma rede que proporciona um suporte de diminuição do desamparo e consequentemente do sofrimento Com isso a parceria feita com o CRAS possibilitou um tipo de aproximação bastante efetiva e articulada entre políticas públicas intervenção acadêmica e comunidade CONSIDERAÇÕES FINAIS Entendese que em função do tema e das vulnerabilidades sociais e psíquicas que atravessam o falar sobre a violência são comuns as dificuldades de permanência a longo prazo em atividades em grupo por parte das mulheres que buscam acolhimento Muitas vezes participar uma única vez sentirse acolhida e não retornar tão logo é o modo encontrado por muitas mulheres que se aproximaram aos poucos da reflexão e da escuta sobre as violências experienciadas por outras participantes e pelas suas próprias situações Porém é perceptível que gradualmente essas mulheres que encontram no MARÉ um espaço de confiança e respeito se vinculam ao grupo e passam também a ser participantes ativas sendo protagonistas no processo de reflexão e escuta Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 255 Nesse sentido evidenciase também a importância de estar sempre em articulação com outras redes de apoio pois como já se discutiu anteriormente a violência é uma temática complexa que abarca diversas consequências e direitos violados Portanto seu entendimento precisa levar em conta que uma mulher nessa situação precisa muitas vezes circular por diversos equipamentos públicos para receber atendimento e essas idas e vindas também precisam ser lidas como produtoras de sofrimento físico e emocional Logo participar do grupo na posição de mediadoras em conjunto com essas mulheres proporciona um aprendizado imensurável por poder estar em contato com tamanha diversidade de histórias de vida marcadas por sofrimento mas especialmente por um potente processo de resistência e existência cotidianas Dessa maneira a identificação da violência e das diferentes formas de atuação a partir dos discursos trazidos exige posicionamento e a incansável busca por literatura e ferramentas de intervenções cabíveis e contextualizadas com compromisso ético e reconhecimento do lugar de fala e de saber das mulheres Portanto uma psicologia que se ocupe dos processos de vulnerabilização e das formas coletivas de resistência e promoção de vida Concluise com isso que as experiências coletivas e emancipadoras do Projeto MARÉ se delineia como uma intervenção política de uma psicologia engajada afinal tal como propõe MartinBaró realizar uma psicologia da libertação exige primeiro conquistar uma libertação da psicologia MARTÍNBARÓ 2009 p 191 REFERÊNCIAS BEIRAS Adriano BRONZ Alan Metodologia de grupos reflexivos de gênero Rio de Janeiro Instituto Noos 2016 BRASIL Lei nº 11340 de 07 de agosto de 2006 Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher Brasília Casa Civil 2006 Disponível em httpspresrepublicajusbrasilcombrlegislacao95552leimariadapenhalei1134006 Acesso em 10 jun 2019 CAETANO Ivone Ferreira O feminismo brasileiro uma análise a partir das três ondas do movimento feminista e a perspectiva da interseccionalidade Revista do Curso de Especialização em Gênero e Direito Rio de Janeiro n 1 p 0124 2017 Disponível em httpwwwemerjtjrjjusbrrevistasgeneroedireitoedicoes12017pdfDesIvoneFerreiraC aetanopdf Acesso em 14 mai 2019 GESSER Marivete Políticas Públicas e Direitos Humanos Desafios à Atuação do Psicólogo Psicologia Ciência e Profissão Brasília n 33 p 6677 2013 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1414 98932013000500008lngennrmiso Acesso em 23 jun 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 256 JONG Lin Chau SADALA Maria Lucia Araujo TANAKA Ana Cristina DAndretta Desistindo da denúncia ao agressor relato de mulheres vítimas de violência doméstica Revista da Escola de Enfermagem USP São Paulo v 32 p 14451 2008 Disponível em httpwwwscielobrscielophppidS0080 62342008000400018scriptsciabstracttlngpt Acesso em 25 jul 2019 MARTÍNBARÓ Ignácio O papel do Psicólogo Estudos de Psicologia Natal v 1 n 1 p727 fev 1997 Disponível em httpwwwscielobrscielophppidS1413 294X1997000100002scriptsciabstracttlngpt Acesso em 15 mai 2019 MARTÍNBARÓ Ignácio Desafios e perspectivas da psicologia latinoamericana In GUZZO Raquel LACERDA Jr Fernando eds Psicologia Social para a América Latina O resgate da Psicologia da Libertação Campinas Editora Alínea 2009 p 199219 MAYORGA Claudia Algumas contribuições do feminismo à psicologia social comunitária Athenea Digital Barcelona v 1 n 14 p 221236 mar 2014 Disponível em httpswwwrediborgrecursosRecordoaiarticulo401343contribuiC3A7C3B5es feminismopsicologiasocialcomunitC3A1ria Acesso em 16 ago 2019 NEPOMUCENO Léo Barbosa et al Por uma psicologia comunitária como práxis de libertação 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Acesso em 16 ago 2019 SAWAIA Bader O sofrimento éticopolítico como categoria de análise da dialética exclusãoinclusão In SAWAIA Bader org As artimanhas da exclusão uma análise éticopsicossocial da desigualdade 7 ed Petrópolis Vozes 2007 p 97119 SCHRAIBER Lilia Blima D OLIVEIRA Ana Flávia Pires Lucas COUTO Márcia Thereza Violência e saúde contribuições teóricas metodológicas e éticas de estudos da violência contra a mulher Cad Saúde Pública online Rio de Janeiro v25 supl2 p 205 s216 2009 SILVEIRA Raquel da Silva NARDI Henrique Caetano Interseccionalidade gênero raça e etnia e a lei Maria da Penha Psicologia Sociedade Belo Horizonte v 26 p 1424 jan 2014 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0102 71822014000500003lngpttlngpt Acesso em 16 ago 2019 XIMENES Verônica Morais PAULA Luana Rego Colares de BARROS João Paulo Pereira Psicologia comunitária e política de assistência social diálogos sobre atuações em comunidades Psicologia ciência e profissão Brasília v 28 n 4 p 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discursiva aqui produzida apontou para sentidos que negam a existência de violência por parte dos denunciados desqualificam silenciam e banalizam a violência ocorrida tendem a atribuir às companheiras a responsabilidade pelos conflitos do casal além de reforçar os lugares de dominação e subordinação ocupados por mulheres e homens no cenário das relações conjugais Palavraschave Violência contra mulheres Discursos de agressores Sentidos Análise do Discurso INTRODUÇÃO Ao se discutir sobre o enfrentamento das violências praticadas contra mulheres uma necessidade atual é incluir os agressores nesse contexto Para além dos cuidados e discussões sobre as práticas que inserem as mulheres na condição de vítima falar sobre os sujeitos agressores e a sua concepção de violência também se faz necessário a fim de que se possa refletir sobre os sentidos que emergem nas falas desses sujeitos quando interpelados sobre situações de violência em especial da modalidade doméstica O fenômeno da violência mantém estreita relação com a linguagem que é uma das grandes disseminadoras de ideologias e padrões culturais Nesse sentido a reflexão do ponto de vista discursivo sobre as falas dos sujeitos envolvidos em situações de violência contra mulheres pode revelar os valores culturais construídos mantidos eou alterados e transmitidos de geração em geração Além disso a análise discursiva também pode evidenciar as crenças estereotipadas sobre as relações entre mulheres e homens que estão na origem das violências de gênero 1 Agente de Polícia Civil da Delegacia de Proteção à Criança Adolescente Mulher e Idoso de AraranguáSC Doutora em Ciências da Linguagem pela Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL Professora do Curso de Tecnologia em Segurança Pública da UNISUL Virtual e da PósGraduação em Gestão da Segurança Pública e Investigação Criminal Aplicada da ACADEPOLSC Email nunesmarciacristianegmailcom Lattes httplattescnpqbr2713794238194532 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 259 Baseada na premissa de que não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia conforme manifestado por Michel Pêcheux 1997 p 17 a abordagem teórica de referência aqui é a da Análise do Discurso AD de origem francesa cujas contribuições propõem a reflexão sobre as maneiras de ler o mundo e os discursos que circulam nele Neste capítulo apresento e discuto em uma perspectiva linguística trechos de duas entrevistas realizadas com homens acusados de violência doméstica por suas companheiras e que responderam a processos judiciais em uma comarca do Estado catarinense Por meio do recorte de sequências discursivas das entrevistas realizadas em que se abordou as situações pelas quais eles foram denunciados uma análise sobre os efeitos de sentido reproduzidos nesses discursos será aqui apresentada Tal análise visa contribuir com o contexto de enfrentamento da problemática da violência contra as mulheres sob a perspectiva dos sujeitos agressores e foi conduzida pela seguinte questão Que efeitos de sentidos podem ser depreendidos das falas de dois homens acusados de violência doméstica conjugal em uma Delegacia de Polícia de Proteção à Mulher do Estado de Santa Catarina 1 CENÁRIO TEÓRICO E METODOLÓGICO DA PESQUISA Para Helena Brandão 2004 p 11 a linguagem enquanto discurso é interação é um modo de produção social ela não é neutra mas elemento de mediação entre o ser humano e sua realidade Nesse sentido a linguagem manifestada pelas pessoas em suas falas ou escritos tornase lugar de conflito de confronto ideológico e não pode ser estudadaanalisada fora de contextos sociais já que os processos que a constituem são históricosociais Segundo Eni Orlandi 2010 p 10 discurso é movimento de sentidos errância dos sujeitos lugares provisórios de conjunção e dispersão de unidade e de diversidade de incerteza de trajetos de ancoragem e de vestígios A autora ainda diz que o discurso é o ritual da palavra mesmo daquelas que não se dizem A Análise de Discurso como disciplina surgiu na França na década de 1960 sendo um dos maiores expoentes Michel Pêcheux Para o autor a significação não pode ser apreendida sistemicamente pois é da ordem da fala e assim relativa ao sujeito e não à língua A significação sofre alterações de acordo com as posições sociais ocupadas pelos sujeitos alterações essas históricas e ideológicas PÊCHEUX 2014 Para Orlandi a preocupação da Análise de Discurso é com o discurso produzido ou seja procurase compreender a língua fazendo sentido enquanto trabalho simbólico parte do trabalho social 2010 p 15 O discurso constitui e é constitutivo do sujeito e da sua história Nesse sentido a linguagem é concebida como mediação necessária entre o homem e a Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 260 realidade natural e social 2010 p 17 Assim a AD se ocupa da língua significando o mundo sendo falada e produzindo sentidos Ainda para Orlandi 2010 p 16 o discurso é um objeto sóciohistórico em que o lingüístico intervém como pressuposto Por isso não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia e o sujeito que enuncia não é o falante o indivíduo mas uma posição discursiva um lugar em que o sujeito é interpelado capturado pela ideologia que naturaliza e evidencia certos sentidos no discurso A ideologia definida por Althusser é um sistema de representações às vezes no formato de imagens às vezes de conceitos que se impõem às pessoas sem passar pela consciência apud MUSSALIM 2003 ela fornece as evidências pelas quais se estabelece aos sujeitos o significado de uma palavra ou enunciado Por conseguinte ideologia pode ser também entendida como uma concepção de mundo para determinado grupo social em uma dada circunstância histórica Sobre os sentidos encontrados nos discursos Sírio Possenti 2004 orienta sobre não se agregar a eles a noção de um conceito estável contido de forma fixa no significante Para o autor o sentido é um efeito de sentido porque resulta de uma enunciação p 134 Assim o papel da enunciação é mais relevante que o papel do significante posto que a enunciação anuncia o significante em determinadas condições em situações históricas mais ou menos precisas O sentido então para a AD tem uma perspectiva histórica que envolve ações e conflitos materializados na língua indicando que o sentido não é o de uma palavra mas de uma sequência de palavras que mantêm umas com as outras relações de sentido Ciente de que nas pesquisas em Análise do Discurso o emprego de entrevistas como objeto de análise não é recorrente essa tarefa foi tomada como um desafio A aposta foi de que mesmo em entrevistas semiestruturadas em que as perguntas por mais abertas que sejam conduzem as respostas e os enunciados o sujeito não é dono de seu dizer e os efeitos de sentido e os demais operadores do discurso também estão presentes A entrevista segundo Fábio Rauen 2015 p 323 é uma interação verbal não convencional e controlada pois a relação entre entrevistador e entrevistado é orientada por determinado fim e delimitada por uma área temática Na entrevista é preciso respeitar a forma do sujeito construir a sua narrativa captando a interpretação dele da realidade Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 261 As pessoas aqui entrevistadas foram localizadas por meio dos dados pessoais telefone e endereço que constavam nos inquéritos policiais de que faziam parte e que compunham a parte documental da pesquisa maior que originou este capítulo2 A tarefa de proceder às entrevistas foi desafiadora e complexa em função da dificuldade de encontrar pessoas que quisessem participar Alguns homens procurados para participar não aceitaram e outros não foram localizados Da relação de nomes disponíveis composta de 18 apenas dois concordaram falar3 sobre as situações de violência que vivenciaram com suas companheiras que as levaram a procurar a polícia para denunciálos No que concerne ao perfil social dos dois homens entrevistados e que responderam aos processos criminais na condição de autores de violência contra mulheres ambos tinham por profissão serem pedreiros e trabalhavam de forma autônoma Quanto ao estado civil os dois tinham mantido união estável por doze anos com as excompanheiras que registraram ocorrência policial contra eles A escolaridade de ambos era ensino fundamental incompleto Quanto a terem filhos com as mulheres que os denunciaram o Entrevistado 1 aqui identificado como Pedro tinha dois um filho de quatro anos e outro de dez Júlio o Entrevistado 2 tinha três filhos um de doze anos outro de cinco e uma filha à época com cinquenta dias de vida Quanto à idade Pedro tinha 50 anos enquanto que a excompanheira tinha 38 e Júlio tinha 35 e a excompanheira dele 27 Por ocasião das entrevistas4 ambos alegaram estar separados das companheiras de quem já tinham se separado outras vezes antes dos processos judiciais 2 A VIOLÊNCIA NA PERSPECTIVA DOS AGRESSORES 2 As discussões trazidas neste texto compõem parte da tese de Doutorado defendida pela autora em 2015 no Programa de PósGraduação em Ciências da Linguagem da Universidade do Sul de Santa Catarina UNISUL intitulada Lei Maria da Penha e violência conjugal análise discursiva dos efeitos de sentido nas instituições e nos sujeitos envolvidos que gerou também a publicação do livro Lei Maria da Penha e violência conjugal discursos sujeitos e sentidos pela editora Lumen Juris do Rio de Janeiro em 2018 3 Essas duas entrevistas foram gravadas em áudio com autorização das participantes e operacionalizadas a partir de um roteiro previamente organizado que continha perguntas sobre o perfil idade profissão escolaridade etc além de conhecimento prévio sobre a Lei Maria da Penha sobre a reação que tiveram ao saber que responderiam judicialmente pela violência doméstica praticada sobre as medidas protetivas requeridas pela mulher se entediam que eram necessárias se cumpriram a determinação judicial se entendiam como justo o processo judicial que responderam se se sentiam punidos pela violência praticada se depois daquele processo já teriam se envolvido em outra situação de violência doméstica bem como foram questionados sobre como estava a situação entre eles e as mulheres que os denunciaram e se o fato de terem respondido a um processo criminal por violência doméstica contra suas companheiras teria modificado algo na vida deles 4 Esses homens foram entrevistados pela autora por ocasião da pesquisa de Doutorado concluída em 2015 com o devido encaminhamento ao Comitê de Ética da Plataforma Brasil sob nº 32422414000005369 com aprovação em 30062014 Para garantir o anonimato deles neste trabalho foram adotados os pseudônimos Pedro e Júlio para fazer referência a essas entrevistas cuja autorização para publicação e divulgação dos resultados foi garantida à pesquisadora por meio de termo de consentimento livre e esclarecido assinado pelos participantes Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 262 A situação criminal envolvendo Pedro era decorrente de uma denúncia de lesão corporal praticada contra a excompanheira A decisão judicial desse processo foi de improcedência do pedido de denúncia em face da inexistência de prova suficiente para a condenação do acusado pelo delito o que implicou a absolvição de Pedro Júlio por sua vez estava envolvido em dois processos dos vinte que compuseram o corpus da pesquisa Um dos processos era de lesão corporal e o outro de injúria A sentença proferida no processo referente à lesão corporal também foi de improcedência do pedido de denúncia pela inexistência de provas e a sentença do processo de injúria foi de extinção da punibilidade em função da decadência do direito de ação5 Importante dizer ainda que na sentença do processo referente à lesão corporal além de julgar improcedente o pedido de denúncia contra Júlio o juiz do caso também determinou o encaminhamento de cópia à delegacia de polícia para instauração de procedimento policial contra a excompanheira dele em função de denunciação caluniosa ou seja por ter o magistrado entendido que ela havia cometido o crime previsto no artigo nº 339 do Código Penal Esse artigo referese a acionar indevidamente a máquina estatal de persecução penal delegacia fórum ministério público para instauração de inquérito ou processo imerecido A situação em que Pedro foi denunciado à polícia de acordo com o teor do boletim de ocorrência registrado pela excompanheira dele6 anunciava que eles estavam separados há cerca de nove meses e que ele queria que os dois voltassem a conviver Segundo a esposa Pedro sempre a ameaçava de morte se ela arrumasse outro homem e a lesão corporal se deu em ocasião em que ele estivera na casa dela e a agredira fisicamente Sobre essa situação Pedro alega que eles estavam morando separados mas mantinham contato frequente e traz a versão a seguir A gente saía ela ligava e a gente saía fazia lanche só que ela bebia A última vez que nós saímos nós fomos embora para a casa dela daí eu saí e ela perguntou já vai Ela tava no banheiro Vem cá ela me chamou Aí eu fui lá ela tava sentada no vaso bêbada O que tu quer ele perguntou Não vai embora tu vai embora já Vou Tu vais prá casa da outra porque não sei o quê não sei o quê porque isso porque aquilo porque tu tens 5 De acordo com o disposto no artigo 103 do Código Penal brasileiro se o direito de apresentar a queixa ou a representação criminal exigida em casos de ação penal privada que é a situação para os crimes cometidos contra a honra calúnia injúria e difamação não for exercido no prazo de seis meses a contar do dia em que se soube quem foi o autor do crime decai o direito de ação 6 O boletim de ocorrência é um texto que enuncia a partir do ponto de vista do comunicante pessoa que vai à polícia comunicar uma situação criminal e do redator do documento policial em função da utilização de termos referenciais inclusive os elementos dêiticos e emprego do discurso indireto O uso recorrente de conjunções conformativas como segundo a comunicante de acordo com a vítima e estruturas indiretas relata a vítima a vítima disse que a comunicante informou que marcam a participação dos envolvidos no que diz respeito à responsabilidade do conteúdo das informações e registram a natureza heterogênea desse discurso uma vez que o discurso do eu se mistura com o discurso do outro dentro do contexto enunciativo podendo se caracterizar tanto como um discurso referido como um discurso relatado Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 263 outra Aí ela avançou em mim me arranhou entendeu Daí eu peguei prá me coisá defender eu não machuquei a verdade tem que ser dita se eu machucasse assumiria Eu assumo o que eu faço a pessoa tem que assumir o que faz só não pode é mentir Daí eu dei dois tapas assim ó demonstrando com gestos Para Tu tá louca Aí ela veio me arranhou o braço aqui quem viu foi o meu guri de dez anos Daí foi assim no ela se abaixar no vaso ela veio prá frente assim e bateu com isso aqui mostrando o rosto no armarinho dela Ela bateu Eu não bati na cara jamais eu ia fazer isso O guri disse oh pai o que é isso O pai tá todo arranhado A tua mãe convidei ela prá sair fazer lanche e tal Depois acontece isso aí Daí o que aconteceu eu fui embora Ela tava muito bêbada E ela tava com o pequeno lá Daí eu pensei assim bah eu vou lá em casa e depois vou voltar lá na casa dela Por nada essa mulher vai sair beber mais e tal Aí eu voltei lá De boa Tava chovendo Ela disse dorme aí não sei o quê Não falou com ela eu vou embora não tem dormir aí eu vou embora Só quero que tu cuide do menino Tu não vai sair mais Eu peguei e fui embora No outro dia se reuniu ela a mãe dela a outra cunhada dela e foram e me denunciaram Eles falaram que eu dei soco nela eu não Não bati nela Eu bati dei dois tapas aqui assim mostrando o braço porque ela me arranhou todinho me arranhou todo todo todo Pedro7 Na fala do entrevistado percebese certa preocupação em contextualizar o cenário de forma que não fiquem dúvidas sobre como as coisas aconteceram e de que ele não teve culpa pela lesão que ela apresentou Para isso elementos externos são trazidos a bebida a presença do filho a influência de outras pessoas na decisão dela de denunciar que se configuram como formas marcadas de uma heterogeneidade mostrada conforme definida por AuthierRevuz 1990 O emprego desses elementos desconfigura um cenário homogêneo quanto à versão da excompanheira de Pedro sobre os fatos Ao fazer uso da expressão oral só que que gramaticalmente opera como uma conjunção adversativa o entrevistado já apresenta um cenário de contraste ou mesmo de compensação à situação que estava sendo descrita Ou seja eles estavam separados e se davam bem já que saíam juntos mas quando ela bebia nem sempre as coisas funcionavam com normalidade Assim ao dizer que ela bebia e estava bêbada naquela noite Pedro estimula efeito de dúvida sobre o que a excompanheira contou na delegacia e até desqualifica a versão dela pois se estava bêbada poderia não estar consciente sobre as atitudes Essa menção à bebida retoma a memória discursiva dos contextos de violência doméstica em que o álcool se configura como um dos elementos motivadores dos conflitos familiares e traz à luz esse material interdiscursivo A noção de interdiscurso é formulada a partir das memórias discursivas que pela junção de cadeias discursivas aproxima saberes diversos Segundo Pêcheux 1999 a memória discursiva desempenha o papel de oportunizar 7 Trecho da entrevista realizada em 5 de junho de 2014 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 264 um encontro efetivo entre temas diferentes Para o autor essa memória não deve ser entendida no sentido psicologista da memória individual mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica da memória social PÊCHEUX 1999 p 50 Essa memória então se vale de outras vozes de outros ditos para compor um pano de fundo interdiscursivo a fim de abordar uma temática que subjaz àquela cadeia discursiva como se viu na fala do entrevistado sobre a questão da bebida e a função dela naquele acontecimento discursivo Ainda quando Pedro diz que eles falaram que ele havia batido na excompanheira ele atribui a outras pessoas a acusação feita e não a ela à companheira Isso também permite a interpretação de que ela nada dissera talvez porque entendera que a lesão não fora causada por ele mas na batida contra o armário como ele relatou É possível pensar também que nesse eles o entrevistado esteja incluindo o filho posto que as outras pessoas eram a mãe dela e uma cunhada o que requeria o uso apenas do pronome feminino elas Ao dizer eles a ideia de plural composto por ao menos um elemento do sexo masculino é retomada o que permite pensar que tenha sido o menino Pedro mencionou que o filho o teria visto arranhado o que talvez justificasse para a criança naquele momento a agressão dele contra ela admitida por ele em dei dois tapas assim ó O menino viu o pai arranhado e viu a mãe machucada mas talvez não tenha visto a mãe bater com a cabeça no armário como o entrevistado alegou Assim talvez o menino tenha dito que o pai bateu na mãe para a avó e a tia mobilizandoas a orientar a vítima a registrar ocorrência policial O que importa observar é a preocupação de Pedro em apontar um outro registrando uma alteridade para além da excompanheira que enuncia por ela talvez com mais propriedade e que se distancia dele do entrevistado Perguntado sobre a reação que teve ao saber que responderia na justiça por violência doméstica Pedro assim respondeu Não me incomodou nem um pouquinho Porque eu simplesmente fui lá e falei a minha versão a verdade Não menti Falei eu dei dois socos nela Não adianta mentir que adianta mentir Aí eu fui lá e falei a verdade Pedro Nesse trecho o entrevistado diz têla agredido com socos enquanto que anteriormente disse que eram tapas Transitando de tapas para socos também seria possível produzir efeito de dúvida sobre a fala dele porém a maneira enfática com que ele disse eu dei dois socos nela além de eliminar qualquer dúvida ainda produz efeito de legitimação da fala dele Sabese que socos têm maior probabilidade de causar lesões e costumam deixar marcas o que pode então justificar a lesão que ela apresentava e que foi descrita no exame médicolegista Muito comum nas investigações de violência doméstica conjugal em que não há testemunhas do fato é que as versões dos envolvidos sejam conflitantes se não opostas Na fala Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 265 de Pedro vêse que ele disse não ter se incomodado com o fato de ter sido denunciado pois foi lá à polícia e ao fórum e contou sua versão Ele traz então a verdade como um complemento de sua versão sugerindo que a versão dele era a verdadeira ou ainda que era a versão dele que continha a verdade Observase na contextualização dos fatos descritos pelo entrevistado que o dizer dele busca montar uma cena e sobre essa cena se opera a sua fala Isso remete aos escritos de Dominique Maingueneau 2008 sobre a cena enunciativa Para o autor durante a enunciação um conjunto de elementos que compõem a situação de comunicação se estabelece formando uma cena que é composta pelo lugar social assumido pelo destinador do discurso e pelo seu destinatário pelo espaço e pelo momento da enunciação Essa cena compõe o quadro da enunciação e se desdobra em outras três cenas cena englobante cena genérica e cenografia Segundo Maingueneau 2008 a cena englobante é a que define o tipo de discurso o discurso jurídico o discurso religioso por exemplo mas ela não é suficiente para a compreensão das atividades discursivas nas quais se encontram os sujeitos É preciso observar então a cena genérica que refere o gênero discursivo daquele discurso As cenas englobante e genérica definem em conjunto o espaço estável no qual o enunciado ganha sentido formando o tipo e o gênero do discurso a cenografia por sua vez interpela o sujeito e possibilita a compreensão do lugar social ocupado por ele A cenografia é então construída no texto mas instituída pelo discurso e fonte dele No caso da entrevista com Pedro que vem sendo discutida as cenas ali descritas inseremse no gênero entrevista em que o indivíduo identificado socialmente no contexto da violência doméstica contra as mulheres como agressor se posiciona como nãoagressor e até como vítima É pela cenografia porém que ele se legitima nessa condição pois ao dar voz a um enunciado anteriormente já legitimado a condição para contar uma história se estabelece No caso da entrevista realizada quanto mais Pedro enunciava e avançava no texto mais se persuadia a respeito do discurso ali configurado especialmente pelo emprego do discurso direto De acordo com Gregolin 1995 através de ilusões discursivas construídas pelo emprego do discurso direto os fatos contados podem ganhar status de reais de coisas acontecidas de fato Ele é empregado para fazer o enunciatário crer na verdade do discurso uma vez que tem efeito persuasivo e dá mais credibilidade à narrativa pois permite supor que se tem memória clara sobre todos os fatos ocorridos Assim o uso recorrente durante a entrevista do discurso direto para recontar os fatos é um recurso para construir e garantir a construção dessa verdade A verdade porém é o real o inatingível e a versão uma forma Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 266 simbólica de representar esse real contada a partir de um ponto de vista de um sujeito todo envolvido em um contexto sóciohistóricoideológico Esse é o sujeito referido na Análise do Discurso AD um sujeito do discurso marcado pelo social pelo ideológico e pelo histórico que tem a ilusão de ser a fonte do seu dizer Assim compreendido o sujeito não pode ser origem de sentido posto que ele está determinado à reprodução de sentidos já internalizados O lugar do sujeito para a Análise do Discurso se dá no entremeio das noções de linguagem ideologia e inconsciente pelas quais o sujeito é afetado simultaneamente e nas quais também deixa um furo conforme referido por Ferreira 2010 o furo da linguagem representado pelo equívoco o furo da ideologia manifestado pela contradição e o furo do inconsciente Em função disso é que a incompletude é tão percebida no campo do discurso Essa incompletude vai tornarse o lugar do possível para o sujeito da análise do discurso interpelado ideologicamente Mesmo depois de ter ido embora Pedro disse que voltou mais tarde naquela noite e estava tudo de boa A excompanheira até o teria convidado para dormir na casa indicando que ela o teria deixado entrar novamente A expressão de boa significando que as coisas já estavam bem quando ele voltou naquela noite possibilita considerações pontuais É possível especular que o emprego dela tenha efeito de tentativa de demonstração de normalidade da situação durante a entrevista para reforçar a ideia de que a discussão entre eles não fora grave eou séria que justificasse o registro da ocorrência Isso mantém a imagem de bomhomem que se preocupa com a companheira e o filho mesmo diante de situações adversas Mas o fato de ela têlo deixado entrar de boa conforme ele mencionou pode indicar também outras coisas como por exemplo vontade de não brigarem mais ou desejo de não apanhar mais ou ainda poderia ter sido uma estratégia empregada para que ele não desconfiasse que ela procuraria a polícia no dia seguinte Ocorre que se ele voltou é porque queria mais ou dela ou da briga com ela Esse discurso retoma também a memória discursiva dos contextos de violência conjugal em que o masculino se sobressai ao feminino impondose na relação de poder Essa memória discursiva inscreve os sentidos já produzidos o que já foi simbolizado nas práticas sociais das relações de gênero historicamente desiguais entre homens e mulheres De acordo com Pêcheux 1999 a memória discursiva seria aquilo que surge da leitura de um texto para estabelecer préconstruídos discursos transversos de que a leitura do texto necessita Assim é possível se pensar na retomada do discurso machista na fala do entrevistado Ao voltar e dizer que as coisas estão de boa ele dá a palavra final sobre a questão ocorrida entre eles fazendose perceber que a voz masculina se sobressaiu no cenário da violência Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 267 conjugal operando ali como a voz da razão tão comum aos discursos de uma formação discursiva machista que não exclui a mulher e que pode estar em toda parte em qualquer gênero Ainda quanto à agressão física à excompanheira Pedro nega com ênfase que a tenha agredido no rosto eu não bati na cara jamais eu ia fazer isso O efeito de bater no rosto então parece ser diferente do de bater em outras partes do corpo Jaime Souza 2007 diz que o rosto tem uma importância simbólica significativa no contexto das violências conjugais pois historicamente esteve associado à vergonha e à honra Para o autor ser honrado tradicionalmente significa ter vergonha na cara portanto qualquer dano ao rosto representa uma humilhação para aquele que o suporta bem como o respeito à honra implica também necessariamente respeito ao rosto SOUZA 2007 p 125 Nesse sentido quando o entrevistado diz que jamais ia fazer isso referindose a bater no rosto da excompanheira ele produz efeito de homem honrado que respeita a mulher que não a humilharia mesmo que ela estivesse embriagada Nessa fala ele alega não ser um agressor tal qual o cenário da violência doméstica o define e por isso mereceria que fosse dado crédito a sua versão dos fatos Esse cenário de homem honrado se fortalece para Pedro quando a decisão judicial do processo a que ele respondeu foi de improcedência pois reflete a credibilidade que foi conferida a ele e desconsiderou a versão da mulhervítima que ficou silenciada Quanto ao entrevistado Júlio a situação era referente a uma denúncia à polícia cujo teor do boletim de ocorrência registrado pela excompanheira dele informava que eles viviam juntos há onze anos e já tinham se separado algumas vezes por conta de agressões físicas por parte dele mas que depois reatavam o relacionamento A motivação para o registro da ocorrência teria sido o anúncio dela de que outra separação aconteceria em função de que a convivência estaria insuportável Não tendo aceitado a decisão dela de separarse novamente ele a teria agredido fisicamente na presença dos filhos Esse cenário alegado por ela depois na fase judicial acabou sendo desfeito ou desmentido revertendo o processo contra ela por ter sido considerado uma falsa alegação Questionado sobre os fatos descritos acima Júlio alegou que não tinham se dado da maneira como estavam descritos no boletim de ocorrência Na versão dele se deram assim Houve uma discussão bem pesada Houve empurrões e ela tava e sempre que ela ficava nervosa ela saía ela perde totalmente a noção da realidade entende E nessas discussões ela se atirava coisas ela quebrava coisas se um filho tivesse na frente ela passava por cima Por exemplo se a filha tivesse no chão na frente a hora que ela saía naquele rompante talvez de nervosismo ela passava por cima não tava nem aí Simples reação de nervosismo de Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 268 distúrbio Nós brigamos quatro horas da tarde a polícia teve no local viu que eu tava machucado eu mostrei ela não mostrou machucado nenhum porque não tinha Oito horas da noite ela vindo prá casa da mãe dela alguém pegou ela e trouxe até a delegacia para registrar esse BO Os policial tiveram lá na hora e viram que um homem do meu tamanho se eu tivesse espancado a nome com certeza ela não taria bem né Os policial chegaram entraram nós conversamos por um bom tempo eles pediram prá ela se retirar aí os meus dois filhos tavam no meu colo um tava aqui grudado e outro aqui no meu colo Ele me explicou tudo vamos lá fazer um BO que amanhã se ela ir na Lei vai ser a palavra dela contra a tua Eu disse pro policial assim eu não vou na Lei porque tem muitas coisas pra ser resolvidas na Lei e não precisa duas pessoas que se discutiram chamar a polícia envolver um mundo de gente sendo que tem outras coisas importantes que aquilo ali podia ser resolvido com uma simples conversa Uma discussão interna de um casal que podia ser resolvido ali Júlio8 O entrevistado inicia o relato descrevendo a excompanheira como uma pessoa descontrolada o que é corroborado pelas construções linguísticas nervosa perde a noção da realidade atirava coisas quebravas coisas nervosismos e distúrbio Todos esses vocábulos e expressões desenham um cenário em que ela a companheira é louca e causam efeito de histeria de loucura ou de insanidade Talvez essa descrição fosse necessária para se encaixar no contexto maior em que se pode vêla denunciando uma agressão física que não tenha acontecido atitude que acabou sendo penalizada com a reversão do processo contra ela Há de se considerar porém que dessa loucura ele também fazia parte Ao admitir que houve uma discussão pesada o entrevistado diz que participou do cenário visto que não há discussão de uma só pessoa O termo pesada indica que a situação foi séria difícil de sustentar talvez Possivelmente tenha havido agressões verbais típicas dos cenários de brigas conjugais em que uma série de ofensas são proferidas pelos companheiros na presença dos filhos o que torna a cena pesada para as crianças assistirem Mas o pesada pode indicar também a ocorrência de violência física significando o peso da mão dele eou dela durante as agressões ou nos empurrões que ele alega terem ocorrido O advérbio de frequência empregado para dizer que ela sempre ficava nervosa e perdia a noção da realidade sugere a regularidade das brigas do casal Além disso o número de vezes que ele alegou em outra parte da entrevista já ter se separado dela e retomado a relação também configura essa frequência Sempre ela que resolveu sair de casa que foi mais ou menos umas trinta vezes no nosso relacionamento prá mais não é exagero não é isso aí mesmo Júlio 8 Trecho da entrevista realizada em 14 de outubro de 2014 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 269 O término do relacionamento pode indicar a decisão de apenas um dos dois sujeitos envolvidos na relação mas a decisão de reatar e voltar a conviver indica que os dois aceitaram Isso significa que se de fato eles se separaram tantas vezes ele também partilhava desse desequilíbrio que ele atribui a ela pois se permitia viver naquela turbulência de brigas e separações Na reprodução da fala de Júlio acima apresentada é possível visualizar algumas imagens que o entrevistado constrói ao falar de si e da excompanheira Quando ele diz Aí os meus dois filhos tavam no meu colo um tava aqui grudado e outro aqui no meu colo a imagem que parece se destacar é dos filhos funcionando com um escudo para protegêlo da polícia caso houvesse necessidade de uma intervenção policial no sentido de leválo detido por exemplo A visualização de duas crianças grudadas ao pai possivelmente com aparência de espanto pela chegada da viatura policial que via de regra costuma causar desconforto tem efeito de tentativa de sensibilizar aquela guarnição e contribuir para a caracterização da mulher como causadora do conflito Para Pêcheux 2014 as formações imaginárias resultam de processos discursivos anteriores e se manifestam através de antecipações de relações de força e sentido Por meio delas o enunciador projeta uma representação imaginária do enunciatário Acima na fala do entrevistado podese perceber a construção da imagem do atendimento policial a que ele foi submetido e supor a tentativa dele de projetar ao seu interlocutor os policiais primeiro e depois a mim durante a entrevista a imagem de um jádito possivelmente bem conhecido Ainda para fortalecer esse sentido de sensibilização sobre a situação vivida por ele o entrevistado atribuiu juízo de valor ao cenário descrito Ele o policial viu que eu tava machucado ele viu que os meus filhos estavam no meu colo e não no dela Porque geralmente quando eu vou lá e espanco a mãe os filhos vão lá socorrer a mãe né Eles nunca vêm pro colo do pai se o pai é um bicho entendesse Júlio Observase que o entrevistado traz para a sua fala uma alegação sobre o comportamento de filhos de casais em que há violência doméstica Ainda que o cenário descrito por ele seja mesmo possível de que os filhos prefiram ficar com quem está mais frágil na situação também há outro efeito de sentido que circula nessa cena o de que as crianças assim se comportam para que não ocorra com elas o que aconteceu com a mãe ou com o pai que tenha sido agredido Ou seja não há como afirmar que se as crianças estão ao lado do pai é porque a mãe é a causadora da violência Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 270 Em função da alegação de Júlio de que não havia motivos para acionar a polícia ele foi questionado sobre o tipo de situação em que ele entendia que seria necessário chamar a polícia ou fazer denúncia à justiça A resposta dele foi Quando realmente há agressões dizer assim uma pessoa agrediu a outra agrediu Isso indica que tanto para Júlio quanto para Pedro a violência doméstica se efetiva no formato de agressões físicas possivelmente aquelas que deixam marcas Júlio admitiu ter havido uma discussão pesada e empurrões mas não considera isso como violência e entende que a violência doméstica não requer intervenção da políciajustiça Pedro admitiu ter dado uns tapas na excompanheira e também não entendia que se tratava de agressão Questionado sobre a reação que teve ao saber que responderia judicialmente por violência doméstica e se a notícia o teria incomodado preocupado ou causado sentimento de raiva Júlio assim se manifestou Não não fiquei com raiva não fiquei Tanto que depois disso nós dois voltamos Uma discussão de um casal ela pode ficar dentro de uma casa ela não precisa sair Loucuras certo Se por exemplo a minha mulher me chamar de feio eu não vou sair espalhando pra vizinhança não eu posso guardar pra mim tentar dizer pra ela não mas eu não sou feio Então eu não ia me espantar de uma coisa eu tinha certeza que eu não agredi a nome pra ela vim na lei entendesse Júlio Dessa fala de Júlio ecoa um dito popular sobre as brigas entre casais que circunda o imaginário social e justifica a fala anterior dele sobre a nãonecessidade da denúncia da briga deles à polícia roupa suja se lava em casa Além disso a menção à loucura sugere que o estilo de vida daquele casal era esse de descontrole bem como reforça a ideia inicial que ele fez sobre a excompanheira de desequilibrada Também nessa fala percebese a lei funcionando como a metáfora de um lugar para onde o entrevistado diz que a excompanheira foi procurar ajuda O ir na lei implica pensar que uma atitude precisava ser tomada e diante do cenário em que eles estavam inseridos doméstico familiar conjugalidade acionar a polícia e recorrer à lei específica sobre as questões de violência doméstica parecia ser o ideal a ser feito Ocorre porém que o entrevistado desconfigura essa necessidade de recorrer à lei fazendo uma analogia da situação ocorrida entre eles que simplifica e banaliza o contexto das brigas entre marido e mulher Vêse ainda que além de banalizar a questão o entrevistado sugere que o assunto não deva ser tornado público de forma que se possa argumentar no ambiente privado sobre a questão e tentar convencer o cônjuge de que a situação não é como eleela entende Essa analogia criada pelo entrevistado reforça o dito popular mencionado antes roupa suja se lava em casa que parece ser algo Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 271 naturalizado para o entrevistado e desqualifica a violência conjugal como uma questão séria e que de fato requeria a intervenção estatal Perguntado se já conhecia a Lei Maria da Penha quando foi procurado pela equipe de policiais da delegacia para ser interrogado sobre os fatos que tinham sido denunciados Júlio alegou que sim Já conhecia a Lei Maria da Penha Eu tinha ouvido essa questão de por exemplo o homem não pode encostar na mulher né Porque por exemplo se ele encostou é agressão mas se a mulher encostar no homem não é agressão certo Porque o homem é mais forte concordei até aí Mas tem homens que não usam a força então isso teria que ser visto né Júlio A manifestação do entrevistado no trecho acima exposto tem efeito de contrariedade sobre a lei É possível perceber na fala dele a compreensão de senso comum de que a lei só se refere à agressão ali entendida como física provavelmente Além disso o entrevistado aborda a questão das mulheres que agridem os parceiros e que a lei9 não considera como agressão Também na fala dele ecoa o interdiscurso sobre as relações de poder exercidas por meio da força masculina para com a feminina 3 EQUÍVOCOS QUE O DISCURSO REVELA Quanto ao aspecto dos equívocos uma reflexão sobre os sentidos que pode ser feita sobre a sequência discursiva em que Pedro diz ela cansou de me abandonar apresentada anteriormente é de que ela o abandonou muitas vezes Porém retomando os estudos de AuthierRevuz 1990 em que a autora se refere aos atos falhos amparada na Psicanálise alegando a heterogeneidade dos discursos já que sob as palavras outras palavras são ditas percebese uma ressonância não intencional na estrutura material da língua Quando o entrevistado diz que ela cansou de abandonálo é porque ela sempre fazia aquilo mas se ela sempre fazia ela não cansou pois se tivesse cansado teria parado o que não ocorreu O que fica reverberando nesse discurso é que quem cansou foi ele e por isso decidiu sair Vêse então que o discurso o denuncia ou ao menos deixa marcas do que ele quer apagar estabelecendo uma relação tensa entre o dito que ela cansou de abandonar e o não dito ele que cansou e a abandonou Essa falha rompe a suposta homogeneidade do discurso já que para Authier Revuz 1990 é na fala normal que o inconsciente insiste e trabalha 9 A agressão de mulheres contra homens também é penalizada mas não no contexto da Lei Maria da Penha para a qual a pergunta era direcionada Quando denunciadas por violência doméstica as mulheres respondem criminalmente ante os artigos correspondentes do Código Penal brasileiro no rito instituído pela Lei 90991995 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 272 Adiante na entrevista quando Pedro foi questionado sobre entender ter sido justo responder a um processo judicial ele assim se manifestou Não precisava do processo eu simplesmente fui prá lá por uma coisa eu fui prá lá eu perdi serviço por causa dela foi errado sim Se a pessoa fez errado a pessoa tem que ir lá e eu não fiz errado porque se fizesse Ela me machucou bastante Pedro Nessa fala do entrevistado vêse o emprego do verbo machucar referindose a ele No início da entrevista ele disse que ela o teria arranhado então supõese que esse machucar usado agora se refere aos arranhões que ela teria feito nele Isso confirma a suspeita inicial de que para ele o verbo machucar remete a uma lesão aparente Ou seja ela o machucou porque deixou marcas de arranhões ele não a machucou porque a agrediu com tapas que não deixam marcas ou seria com socos Mas a expressão ela me machucou bastante promove outro sentido com efeito de mágoa dele com ela sobre toda a situação vivida pelo casal10 Essa mágoa pode ser decorrente de ele ter sido abandonado várias vezes por ela ter preferido uma vida mais difícil com outra pessoa a permanecer com ele por ela ter deixado os filhos aos cuidados dele e agora ele estar sendo pai e mãe como ele mencionou e por ela ter se deixado influenciar por outras pessoas para denunciálo Esse cenário configura o quanto ela o teria machucado Segundo Pêcheux 2014 o sentido de uma palavra de uma expressão de uma proposição não está em si mesmo colado ao significante mas é determinado pelas posições ideológicas que estão em jogo no processo sóciohistórico no qual as palavras expressões e proposições são reproduzidas Ainda segundo o autor todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornarse outro diferente de si mesmo se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para outro PÊCHEUX 2008 p 53 Assim quando o entrevistado diz ela me arranhou todinho me arranhou todo todo todo citado anteriormente esse arranhar desliza do seu significado de marcar o corpo com as unhas para marcar o eu desse entrevistado Não seria possível arranhálo todo se a ideia fosse de que ela o teria arranhado com as unhas O efeito de sentido gerado ali é de machucar a alma que dói e ecoa com a repetição fazendo doer mais e mais o que pode ser percebido pelas expressões todo todo todo 10 Por ocasião da entrevista Pedro contou que a excompanheira estava vivendo com outra pessoa que teria envolvimento com tráfico de drogas Ela teria deixado os filhos com Pedro e estaria vivendo em condições precárias também por conta da dependência de drogas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 273 Questionado sobre o que teria modificado em sua vida depois de ter sido denunciado à justiça Pedro assim se manifesta Eu gastei com advogado prá fazer a minha defesa lá e sobre as crianças também entendeu Paguei advogado gastei Hoje não tá fácil prá se equilibrar A única coisa que mudou é que é o seguinte eu não tô conseguindo me aprumar mais eu tô trabalhando eu tô me virando com os meus guris lá É roupa comida eu tô sozinho eu sou pai e mãe entendeu Pedro Nas palavras dele percebese certa ênfase nos gastos financeiros que teve com o processo porém é possível se cogitar que há ali também uma tentativa de mascarar a falta que a companheira faz em casa Pode se suscitar ainda que o efeito de sentido seja de mascarar a própria ressignificação daquela posição sujeitomarido construída na formação ideológica do poder patriarcal familiar em que homens casados e com filhos tinham mulheres em casa para manter a ordem a limpeza a educação e os cuidados para com filhos e marido Uma especulação possível aqui seria de que essa falta de identificação da posição sujeitomarido nos moldes idealizados para as relações conjugais do modelo patriarcal se deva ao fato de que agora esse entrevistadosujeito esteja fazendo um movimento de reformulação dessa posiçãosujeito De acordo com Pêcheux 2014 p 161 no espaço de reformulação paráfrase se constitui a ilusão necessária de uma intersubjetividade já que o discurso de cada um reproduz o discurso do outro cada um é o espelho dos outros Pensando assim refirome a essa posiçãosujeito agressor estar já afinada discursivamente com a posição sujeitovítima também construída sóciohistoricamente como a parte submissa ou que se imaginava submissa na relação A frase eu não tô conseguindo me aprumar mais não corresponde à expressão a única coisa que mudou pois em eu não tô conseguindo me aprumar mais há muitas coisas envolvidas O verbo aprumar denota ideia de colocar no eixo endireitar o que está torto Talvez ele esteja se referindo à vida de forma geral à indecisão sobre aceitála de volta ou não uma vez que ele diz que ela continua procurando por ele Também se pode especular sobre a falta de compreensão do porquê ela teria preferido outra vida já que a vida que ele oferecia a ela no ponto de vista dele era boa Além disso é possível que ele também estivesse se referindo ao aspecto financeiro do prejuízo que teve com a denúncia dela que o fez gastar com advogado e da dificuldade que estaria tendo para equilibrar as contas Mas há no discurso dele uma contradição entre o que ele tenta dizer e o que ele efetivamente diz ou seja se por um lado ele se apresenta como senhor do seu dizer dentro de um discurso ilusório da estabilidade por outro não consegue mais se aprumar destacando o discurso que aparece na falha Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 274 O discurso de bom pai que o entrevistado quer deixar revelar sobre si também fica evidente no trecho acima Pedro se diz ser pai e ser mãe e estar se virando para isso indicando o sacrifício que tem sido ocupar essas duas funções Ele ostenta a posição pai e mãe e isso lhe custa caro tanto que ele menciona os gastos financeiros De fato ser esse eu ideal que ele quer demonstrar ser custa caro As manifestações de Pedro permitem a percepção de que o cenário descrito por ele inverte o discurso regular da violência contra a mulher em que os homens ocupam papel de agressor e as mulheres de vítima e revela um cenário em que as mulheres desempenham a função de protagonistas do cenário da violência desconstruindo a imagem da mulher vítima em potencial CONSIDERAÇÕES FINAIS O enfrentamento de situações de violência doméstica em que mulheres se encontram na situação de vítimas no cenário da justiça criminal desde 2006 tem sido feito basicamente pela aplicação da Lei 113402006 nacionalmente conhecida como Lei Maria da Penha A partir de denúncias via de regra das próprias mulheres a violência ocorrida passa a ser apresentada linguisticamente possibilitando que efeitos de sentidos sobre a violência doméstica e a aplicação da lei possam ser discutidos e interpretados Neste texto abordouse entrevistas com dois homens que tinham sido denunciados por suas companheiras por situações de violência doméstica conjugal A análise discursiva realizada apontou a negativa da existência de violência por parte deles e a preocupação em atribuir às companheiras a responsabilidade pelos conflitos do casal Os discursos manifestados por Pedro e Júlio apontaram uma memória discursiva sobre a banalização da violência doméstica que desqualifica a violência conjugal como uma questão séria e que de fato requeira a intervenção estatal Mas esses discursos também apontam para uma tendência à descontinuidade do discurso do homem que domina a mulher com a qual mantém a relação de conjugalidade por meio de violência e agressividade promovendo talvez certa cisão nessa ideologia patriarcal que regia e ainda rege essas relações Uma observação específica sobre as situações envolvendo Júlio e Pedro é a alegação de ambos de que as denúncias das excompanheiras tinham sido estimuladas por outras pessoas não tendo sido iniciativa delas Um interdiscurso que opera aqui é do lema já se mete a colher em briga de marido e mulher que tem sido empregado por grupos sociais que militam no enfrentamento das violências contra mulheres no Brasil desde os anos 80 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 275 Nas duas entrevistas analisadas também se observou a disposição de Pedro e Júlio para participarem do estudo Os discursos que circundaram essas duas entrevistas permitem a constatação de uma ressignificação da posiçãosujeito ocupada por esses homens Talvez essa ressignificação aqui entendida como uma ruptura desestabilização da posição sujeitomarido bom que eles tentaram demonstrar que eram é que tenha estimulado a participação deles Havia nos discursos dos participantes certo interesse de anunciar que já não ocupavam mais só a posição sujeitomaridoagressor mas também já se encaixavam na posição sujeito maridovítima e como tal também precisavam enunciar Assim a decisão desses dois homens agressores de participarem desse estudo parece ter efeito de ser portavoz de outros homens e anunciar nas relações conjugais as agressões não são sempre praticadas pelos homens as mulheres também agridem os companheiros Elas não são sempre só vítimas e nós nem sempre só agressores Ainda assim o processo discursivo aqui analisado possibilitou a observação de práticas discursivas que tendiam a invalidar os discursos das mulheres em situação de violência e validar o dos homens o que indica que os sentidos reproduzidos nessas falas ainda são bastante impregnados por relações ideológicas e de poder referente às questões de gênero que mantém a desigualdade entre homens e mulheres em especial no contexto doméstico e conjugal REFERÊNCIAS AUTHIERRÉVUZ Jacqueline Heterogeneidades Enunciativas Trad C M Cruz e J W Geraldi Cadernos de Estudos Linguísticos Campinas SP n 19 p 2541 1990 BRANDÃO Helena H Nagamine Introdução à análise do discurso Campinas SP UNICAMP 2004 BRASIL Código Penal 15ed São Paulo Saraiva 2000 BRASIL Lei Maria da Penha Lei Federal n11340 de 07 de gosto de 2006 Coíbe a violência doméstica e familiar contra mulher Brasília Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres Ministério Justiça 2006 FERREIRA Maria Cristina Leandro Análise do discurso e suas interfaces o lugar do sujeito na trama do discurso Organon Porto Alegre n 48 p1734 2010 Disponível em httpseerufrgsbrorganonarticleview2863617316 Acesso em 20 ago 2019 GREGOLIN Maria do Rosário Valencise A Análise do Discurso conceitos e aplicações Alfa São Paulo v 39 p 1321 1995 MAINGUENEAU Dominique As cenas da enunciação São Paulo Parábola 2008 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 276 MUSSALIM Fernanda Análise do Discurso In MUSSALIM Fernanda BENTES Anna Christina orgs Introdução à lingüística domínios e fronteiras v 2 3 ed São Paulo Cortez 2003 p 101142 NUNESSCARDUELI Márcia Cristiane Lei Maria da Penha e violência conjugal análise discursiva dos efeitos de sentido nas instituições e nos sujeitos envolvidos 2016 180 f Tese Doutorado Programa de PósGraduação em Ciências da Linguagem Universidade do Sul de Santa Catarina Tubarão 2015 Disponível em httpswwwriuniunisulbrbitstreamhandle12345494110921Marciapdfsequence1is Allowed Acesso em 20 ago 2019 ORLANDI Eni P Análise de Discurso Princípios e Procedimentos 9 ed Campinas SP Pontes 2010 PÊCHEUX Michael FUCHS C A A propósito da análise automática do discurso atualização e perspectivas In GADET Françoise HAK Tony orgs Por uma análise automática do discurso uma introdução à obra de Michel Pêcheux Trad Bethania S Mariani et al Campinas editora da UNICAMP 1997 p 163252 PÊCHEUX Michael Papel da Memória In ACHARD Pierre et al Papel da memória Trad José Horta Nunes 2 ed Campinas São Paulo Pontes 1999 p 4958 PÊCHEUX Michael O Discurso estrutura ou acontecimento 5 ed Campinas SP Pontes 2008 PÊCHEUX Michael Semântica e Discurso uma crítica à afirmação do óbvio Trad Eni Puccineli Orlandi et ali 5 ed Campinas Editora da UNICAMP 2014 POSSENTI Sirio Os limites do discurso 2 ed Curitiba Criar 2004 RAUEN Fábio José Roteiros de investigação científica os primeiros passos da pesquisa científica desde a concepção até a produção e a apresentação Palhoça Editora Unisul 2015 SOUZA Jaime Luiz Cunha Violência otélica a agressão masculina nas relações conjugais 2007 Tese Doutorado em Ciências Sociais Programa de PósGraduação em Ciências Sociais Universidade Federal do Pará Belém 2007 Disponível em httprepositorioufpabrjspuibitstream201130341TeseViolenciaOtelicaAgressaopdf Acesso em 20 ago 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 277 UM OLHAR PARA O AUTOR DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA PERSPECTIVA DA REDUÇÃO DE DANOS Vilma Pimentel Siqueira 1 RESUMO O presente artigo visa trazer à discussão o conceito de Violência Doméstica com base nos atendimentos de autores de violência doméstica oriundos das audiências da Maria da Penha de uma cidade do Rio Grande do Sul Para tanto a proposta deste estudo é analisar a percepção de homens encaminhados dessas audiências para atendimento psicossocial sobre situações de violência doméstica Este estudo caracterizase como uma pesquisa exploratória Para a coleta de dados aplicouse um questionário com perguntas objetivas e fechadas a 20 homens que participavam do atendimento psicossocial junto ao grupo de Redução de Danos no município em questão no período de dezembro de 2017 a junho de 2018 Para a análise dos dados utilizou se da estatística descritiva Dezessete 17 questionários retornaram respondidos evidenciou se que 8824 dos pesquisados têm acima de 36 anos grande parte presenciou atos de violência na infância e 58 10 homens admitiram que praticaram alguma violência contra sua parceira sendo que 80 8 destes praticaram violência física eou verbal Quanto às atividades do atendimento psicossocial 4705 8 consideraramnas muito interessantes e que aprenderam muito e 4117 7 consideraram interessante e que aprenderam algumas coisas Concluise que com os atendimentos a semente foi plantada nesses homens para que possam refletir sobre suas ações se arrepender de seus atos de violência e não mais cometêlos Palavraschave Violência Doméstica Lei Maria da Penha Atendimento Psicossocial Autor de Violência INTRODUÇÃO As políticas públicas na atualidade têm se convertido a atendimentos a mulheres vítimas de violência Isso tem ocorrido em virtude da seriedade e da gravidade de situações de violências que as mulheres têm vivido em suas relações amorosas que segundo Guimarães e Pedroza 2015 vêm ganhando destaque nos últimos 50 anos De acordo com a Organização PanAmericana da Saúde OPAS 2017 aproximadamente uma em cada três mulheres 35 do mundo inteiro já sofreram violência física eou sexual Sendo que a maior parte desses casos de violência é cometida pelos companheiros das vítimas Para Silva e Oliveira 2015 a forma mais prevalente de violência contra a mulher é a cometida pelo seu parceiro no interior do ambiente doméstico Apesar desse 1 Assistente Social Especialista em Gestão Pública pela Universidade Federal de Santa Maria UFSM em 2018 Especialista em Gestão Social Políticas Públicas Redes e Defesa de Direitos pela Universidade Norte do Paraná UNOPAR Assistente Social do Centro de Referência de Assistência Social CREAS da cidade de Alegrete RS Presidente do Conselho Municipal de Assistência Social CMAS de Alegrete RS Email vilsiqueirahotmailcom Lattes httplattescnpqbr8246852342747510 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 278 contexto o atendimento aos homens que cometem atos de violência ainda é praticamente inexistente Dessa forma o presente artigo visa trazer à discussão o conceito de violência doméstica na realidade dos atendimentos aos autores homens desse tipo de violência recebidos no Centro de Atenção Psicossocial CAPS em uma cidade da fronteira oeste do Rio Grande do Sul A partir do momento que a violência contra a mulher começa a configurar como problema social e de saúde pública no Brasil as articulações dos movimentos sociais e de mulheres passam a ser vistos como fundamentais para as ações e políticas sociais destinadas ao enfrentamento desse tipo de violência e para o fortalecimento e criação de políticas públicas específicas para atendimento às mulheres vítimas de violência A proposta deste estudo contudo é analisar a percepção de homens oriundos de encaminhamentos das audiências da lei Maria da Penha de um município do Rio Grande do Sul sobre as situações de violência doméstica atendidas no CAPS do referido município já que pouco se observam articulações voltadas ao atendimento do causador dessa violência Portanto esta pesquisa tem caráter reflexivo objetivando ampliar as concepções do senso comum sobre o trabalho voltado ao homem autor de violência doméstica e familiar a fim de tentar reduzir essa violência Também se propõe a combater o preconceito existente em relação ao atendimento ao autor da violência 1 A IMPORTÂNCIA DA DISCUSSÃO A RESPEITO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA No Brasil o conceito da violência doméstica se baseia especialmente em dois importantes documentos a Convenção Belém do Pará BRASIL 1996 e a Lei 11340 BRASIL 2006 A Lei 113402006 mais conhecida como Lei Maria da Penha criou mecanismos para intimidar prevenir e punir qualquer tipo de violência doméstica e familiar contra a mulher BRASIL 2006 A criação dessa lei estimulou a consolidação da Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres Essa Política consiste em um acordo entre os governos federal estaduais e municipais para planejar ações para prevenir e combater a violência contra mulheres e também para atender esse público oferecendolhe diversos serviços de saúde casasabrigo delegacias da mulher entre outros BRASIL 2011a As discussões aqui apresentadas sobre violência doméstica pretendem nortear reflexões em torno das complexas realidades que se apresentam nessa temática Apesar de haver pouco espaço para discussão a respeito dos cuidados aos autores de violência há serviços voltados ao Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 279 atendimento deste público como o Serviço de Responsabilização e Educação do Agressor2 BRASIL 2011b que embora não constitua um espaço de tratamento faz um acompanhamento dos homens processados criminalmente apenados ou não com base na Lei Maria da Penha Campanhas como o Laço Branco uma iniciativa de homens contra a violência dirigida às mulheres e campanhas ou projetos desenvolvidos pelo Centro de Atendimento à Vítima de Crime CEVIC em datas como 18 de maio Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes 24 de setembro Dia Estadual em Santa Catarina de Mobilização Pelo Fim da Violência e Exploração Sexual InfantoJuvenil e o dia 25 de novembro Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher são apenas alguns exemplos de ações que dão visibilidade à questão e auxiliam a conscientizar os homens e a também mobilizálos a combater a violência contra a mulher Contudo essas ações ainda são insuficientes frente ao universo de violências cometidas em especial a denominada silenciosa Verificase que há falta de informação em relação às formas de violência que ocorrem diariamente contra as mulheres e à existência de serviços para atendimento às vítimas e aos agressores Quando se trata da violência psicológica esse desconhecimento tornase ainda mais grave pois ela não raro culmina na violência física Reconhecer as consequências da violência pode auxiliar o profissional a encontrar saídas para o fortalecimento do usuário da política pela qual foi buscar atendimento Seria desejável também que os organismos financiadores do Estado incentivassem a produção científica no campo do cuidado ao autor de violência doméstica já que se encontra pouca produção com essa temática Devido ao alto índice de violência doméstica existente hoje no país buscamos incitar a reflexão dos autores de violência doméstica e familiar e a responsabilizaremse por suas ações de violência a ampliar as concepções do senso comum sobre o trabalho voltado ao homem autor de violência doméstica e familiar a fim de combater o preconceito existente em relação a este trabalho Assim não só é necessário fazer com que a mulher vítima de violência doméstica conheça e busque seus direitos como também é preciso que o homem autor desse tipo de 2 Esse serviço tem o objetivo de acompanhar as penas e as decisões do juízo competente quanto aos autores de violência contra a mulher O referido serviço é de extrema importância no enfrentamento a esse tipo de violência pois nele são realizadas atividades educativas e pedagógicas que contribuem para conscientizar os agressores sobre a violência de gênero como uma violação dos direitos humanos das mulheres e para responsabilizálos pela violência cometida A equipe multidisciplinar composta por profissionais de Ciências Sociais Pedagogia Psicologia ou Serviço Social que atua nesse serviço realiza as atividades de maneira interdisciplinar orientando o autor de violência a partir de uma abordagem responsabilizante e de uma perspectiva feminista de gênero Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 280 violência tenha atendimento adequado e eficaz para que não volte a cometer atos de violência contra a sua companheira 11 Os diferentes tipos de violência O Ministério da Saúde MS BRASIL 2001 divide a violência doméstica em violência física violência sexual negligência e violência psicológica Contudo embora o MS faça essa diferenciação estes tipos de violência se misturam e se entrelaçam de diferentes maneiras Além disso há também a violência patrimonial que está mencionada na lei 113402006 como uma das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher e mais especificamente no Artigo 7 Inciso IV é caracterizada como qualquer conduta que retenha subtraia destrua parcial ou totalmente objetos instrumentos de trabalho documentos pessoais bens valores e direitos ou recursos econômicos BRASIL 2006 Contudo aqui nos interessa avaliar de que maneira quando se investiga a violência doméstica a violência psicológica e a violência física também se articulam Neste artigo entendese por violência doméstica contra a mulher toda e qualquer violência cometida por um homem contra a mulher com a qual tenha ou tivera relacionamento afetivosexual De acordo com Silva Coelho e Caponi 2007 a violência geralmente tem como cenário uma relação que embora desfeita deixou questões mal resolvidas Muitas vezes vínculos afetivos permanecem mas cercados de mágoas ressentimentos ou dependência psicológica o que impede ou dificulta a vítima de identificar uma situação de violência Dessa forma as maneiras de violência psicológica doméstica ainda segundo os autores nem sempre são facilmente identificadas pela vítima Elas podem estar associadas a fenômenos emocionais geralmente agravados por outros fatores ou outras situações de crise como o uso de álcool ou luto familiar por exemplo Por isso muitas vezes são difíceis de serem reconhecidas como violências psicológicas Conforme Azevedo e Guerra 2001 p 25 O termo violência psicológica doméstica foi cunhado no seio da literatura feminista como parte da luta das mulheres para tornar pública a violência cotidianamente sofrida por elas na vida familiar privada O movimento políticosocial que pela primeira vez chamou a atenção para o fenômeno da violência contra a mulher praticada por seu parceiro iniciouse em 1971 na Inglaterra tendo sido seu marco fundamental a criação da primeira CASA ABRIGO para mulheres espancadas iniciativa essa que se espalhou por toda a Europa e Estados Unidos meados da década de 1970 alcançando o Brasil na década de 1980 Para a Organização Mundial de Saúde OMS 1998 p 07 a violência psicológica Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 281 inclui maustratos repetidos verbalmente assédio prisão e privação de recursos materiais financeiros e pessoais Para algumas mulheres insultos incessantes e a tirania que constituem abuso emocional talvez são mais dolorosos que ataques físicos porque eles efetivamente minam a segurança e a confiança da mulher em si mesma Um único episódio de violência física pode intensificar grandemente o significado e impacto do abuso emocional As mulheres consideram que o pior aspecto do abuso não é a violência em si mas a tortura mental e viver com medo e aterrorizada Tradução minha Assim para Silva Coelho e Caponi 2007 este tipo de violência tem que ser avaliado como um grande problema de saúde pública merecendo espaço de discussão ampliação da prevenção além de criação de políticas públicas específicas para o seu enfrentamento Profissionais que atendem às vítimas de violência provavelmente se deparam com situações de violência doméstica que no começo se manifestaram de forma silenciosa e que muitas vezes nem foram percebidas como violência pelas vítimas ou seja estas acabam nem percebendo os primeiros sinais de violência manifestados pelo autor de violência doméstica e que embora não aconteça em todos os casos podem acabar se tornando violência aguda grave Assim a violência começa lenta e silenciosamente progredindo em intensidade e consequências SILVA COELHO CAPONI 2007 Sendo assim este artigo pretende avaliar a percepção de homens que cometeram violência doméstica sobre as situações de violência contra as mulheres já que um dos primeiros desafios diz respeito justamente aos cuidados e atendimento ao autor desse tipo de violência na perspectiva da redução de danos 12 Redução de danos Conforme mencionado anteriormente esta pesquisa foi realizada com 20 homens que participaram do atendimento psicossocial no grupo de Redução de Danos no CAPS de uma cidade do Rio Grande do Sul O Plano Municipal de Redutores de Danos é vinculado à Secretaria de Saúde do município em questão O atendimento a esse grupo tem como base a ideia de conscientizar os homens autores de violência doméstica sobre os danos causados por esta e assim tentar reduzir o índice de homens reincidentes nesse tipo de agressão Segundo a Associação Internacional de Redução de Danos 2010 a Redução de Danos reúne políticas programas e práticas que têm como principal objetivo reduzir as consequências danos do uso de drogas lícitas e ilícitas para a saúde para a sociedade e para a economia sem necessariamente reduzir o seu consumo ou seja a Redução de Danos foca na prevenção às consequências adversas causadas pelo uso de drogas e não na prevenção do uso Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 282 Políticos responsáveis por elaboração de políticas públicas a comunidade em geral pesquisadores e redutores de danos devem conhecer os riscos e consequências associados ao consumo de drogas para buscar o que pode ser feito para reduzir estes riscos e consequências realizando um trabalho conjunto de conscientização dos usuários de drogas ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE REDUÇÃO DE DANOS 2010 Dessa forma as políticas de Redução de Danos podem contribuir para diminuir os casos de reincidência nas ocorrências de agressões às mulheres Isso porque ainda conforme a Associação Internacional de Redução de Danos 2010 p 02 os princípios de redução de danos encorajam o diálogo aberto o processo consultivo e o debate Logo embora originalmente o objetivo da Política de Redução de Danos seja o de reduzir as consequências do uso de drogas a ideia central dessa política pode perfeitamente ser aplicada ao combate à violência doméstica Isso porque o seu foco é prevenir os riscos danos e consequências causados por uma ação negativa neste caso a violência doméstica Também vale destacar que conforme informações disponíveis no site do Centro de Convivência É de Lei3 as estratégias de redução de danos são voltadas a qualquer cidadão Porém as abordagens geralmente são focadas à população em contexto de vulnerabilidade A vulnerabilidade de uma pessoa consoante o Centro de Convivência É de Lei não é restrita a um comportamento ou conduta específicos e sim relacionada não só ao ambiente em que se dá mas também ao contexto sociocultural O aspecto social da vulnerabilidade se refere ao possível acesso às informações e a capacidade de elaborálas e incorporálas no dia a dia isso implica não só na chance de acesso às informações mas também a recursos materiais e às instituições e serviços bem como estar livre de estigmas e preconceitos Para Forteski e Faria 2013 ultimamente o conceito de Redução de Danos e suas estratégias vêm trazendo acirradas discussões entre os que os defendem e os que os combatem Porém o que poucos sabem é que conforme Stronach 2004 no dia a dia todos nós aplicamos os princípios da Redução de Danos como por exemplo na estrada com o uso do cinto de segurança com as barreiras protetoras de zonas de impacto na frente dos carros que diminuem os riscos de ferimentos em caso de acidente Sendo assim a Redução de Danos é um conceito amplo que pode ser aplicado por todos os cidadãos 3 Tratase de uma organização que atua desde o ano de 1998 na promoção redução de riscos e danos sociais e à saúde associados ao uso de drogas Tem o objetivo de promover do ponto de vista ético o cuidado no âmbito das drogas desfazendo preconceitos incentivando uma sociedade garantidora de direitos e que respeite as diferenças Tem como uma de suas missões disseminar estratégias de redução de danos por meio da atuação junto aos usuários de drogas às que trabalham na rede intersetorial à acadêmica e à gestão pública objetivando a incidência política que transforme a realidade de hostilidade a essas pessoas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 283 Dessa forma o atendimento psicossocial no grupo de Redução de Danos no CAPS da cidade pesquisada atua de forma a tentar prevenir a violência contra a mulher Ao encaminhar os autores de violência para atendimentos individuais e em grupos para encontros de caráter reflexivo educativo e de responsabilização da medidasanção busca conscientizar estes homens a não mais repetirem atos de violência contra suas parceiras reduzindo assim as consequências os danos das ações de violência doméstica 2 METODOLOGIA DA PESQUISA O presente estudo caracterizase como uma pesquisa exploratória já que existem poucas pesquisas sobre o assunto visto que o próprio programa de Redução de Danos é recente no Brasil Já para a coleta de dados como instrumento de pesquisa utilizouse um questionário com perguntas objetivas e fechadas a 20 homens que participavam do atendimento psicossocial no grupo de Redução de Danos voltado ao combate à violência doméstica no CAPS de um município da fronteira oeste do Rio Grande do Sul A análise dos dados foi realizada utilizando se a estatística descritiva 21 Lócus da pesquisa A proposta de atender os homens que praticaram atos de violência doméstica iniciouse devido à reflexão dos servidores do Centro de Referência Especializado em Assistência Social CREAS do referido município sobre a experiência em atendimentos às mulheres vítimas de violência que não estavam apresentando o resultado almejado Estas mulheres embora atendidas no CREAS tinham dificuldade de assumir o controle de suas vidas sendo que grande parte delas retornavam aos companheiros e para não relatarem aos assistentes sociais acabavam abandonando o atendimento Conforme informações do CAPS da cidade em questão 80 das mulheres acabavam desistindo de prosseguir com a denúncia ao companheiro autor de violência e retornavam ao convívio com este desistindo da proteção do estado Nesse contexto então surgiu a ideia de tratar os homens autores de violência doméstica almejandose romper o ciclo de violência Assim ao proporcionar a esses homens atendidos no CAPS acesso a políticas públicas buscase com que eles façam uma reflexão quanto à violência que cometem além de proporcionar a reintegração social deste indivíduo de maneira cidadã Logo o atendimento psicossocial aos autores de violência doméstica busca reduzir o índice desse tipo de violência ou seja diante da alta porcentagem de mulheres vítimas que retornavam ao convívio com seu agressor percebeuse necessária uma política pública que buscasse com que estes homens não mais fossem reincidentes na prática de violência contra sua companheira Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 284 Os atendimentos aos autores de violência doméstica iniciaram com a participação de 32 homens sendo que destes 20 permaneceram participando das atividades ao longo dos meses os outros 12 desistiram de frequentar 7 abandonaram os encontros sem esclarecer os motivos e 5 acabaram mudando de cidade o que inviabilizou a participação deles nos encontros Logo a população pesquisada é formada por um grupo de 20 homens que participaram do atendimento psicossocial no grupo de Redução de Danos no CAPS de um município do Rio Grande do Sul no período de dezembro de 2017 a junho de 2018 A equipe de profissionais que atuava no atendimento a esse grupo era composta por uma assistente social uma psicóloga e 2 profissionais especialistas na política de Redução de Danos Os encontros eram semanais com duração de cerca de 1h30 cada um e ocorriam no turno noturno Vale destacar que a proposta da existência deste grupo é a redução do índice de reincidência destes homens em novos processos referentes à Lei Maria da Penha 3 RESULTADOS E DISCUSSÕES Primeiramente analisaramse dados gerais referentes à temática da violência doméstica Posteriormente realizouse a análise das respostas dos questionários que foram aplicados aos homens que participaram do atendimento psicossocial no grupo de Redução de Danos no CAPS da cidade pesquisada 31 Análise de dados gerais referentes à violência doméstica Primeiramente são apresentados os dados quanto ao número de registros de ocorrências de violência doméstica no período de 4 anos na delegacia civil do referido município Também é demonstrado o registro do número de audiências judiciais de violência doméstica Lei Maria da Penha na Vara de Família do município no período de 3 anos demonstrados na tabela 1 Tabela 1 Registro de boletins de ocorrências de violência doméstica e registro de audiências judiciais de violência doméstica Ano Boletins de Ocorrências Audiências 2015 470 2016 428 1212 2017 433 1028 2018 231 460 Fonte Delegacia Civil e Vara de Família do município no qual foi realizada a presente pesquisa Legenda Não foram obtidos dados do ano de 2015 pois a juíza da vara de família assumiu o cargo em dezembro de 2015 não tendo os números de audiências anteriores a sua posse4 Até a data de 30 de junho de 2018 4 A autora da presente pesquisa não conseguiu contato com o Juiz que atuava anteriormente ao ano de 2015 na Vara de Família do município em questão Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 285 Além disso buscouse junto ao CREAS do município o registro do número de atendimentos a mulheres vítimas de violência doméstica e também o registro de atendimentos aos homens autores de violência doméstica mas essa instituição informou que não poderiam passar estas informações Analisandose a tabela 1 percebese que o número de audiências judiciais de violência doméstica Lei Maria da Penha nos anos de 2016 e 2017 foi mais do que o dobro de registros de boletins de ocorrência no mesmo período e no ano de 2018 foi praticamente o dobro ou seja a cada boletim de ocorrência são realizadas em média duas audiências Outro dado relevante é o de que o número de boletins de ocorrência registrados nos 4 anos analisados pouco oscilou Já o número de audiências de violência doméstica vem apresentando queda de acordo com os dados dos últimos 3 anos Destacase a importância da atuação do Poder Judiciário na efetividade da aplicação da Lei Maria da Penha pois segundo Martins Cerqueira e Matos 2015 as medidas protetivas que configuram uma das inovações dessa lei dependem da concessão dos juízes sendo uma das principais ferramentas de prevenção de agressões mais graves e até mesmo de homicídios Apesar desses resultados não apresentarem grande crescimento no índice de violência doméstica no município em nível nacional a violência contra a mulher tem demonstrado um aumento cada vez mais preocupante Dados revelados pelo Ligue 180 serviço oferecido pela Secretaria de Políticas para as Mulheres SPM evidenciaram que foram realizados 749024 atendimentos de relatos de violência contra a mulher no ano de 2015 no país contra 485105 realizados em 2014 No Rio Grande do Sul em 2014 foram mais de 58 atendimentos de violência a cada 100 mil mulheres Porém o estado com maior índice de violência contra a mulher foi o Distrito Federal com o dobro de casos do Rio Grande do sul 136 a cada 100 mil mulheres BRASIL 2016 Em relação aos registros de ocorrência de violência contra a mulher no Rio Grande do Sul em 2016 foram registradas 1914 ocorrências a cada 100 mil mulheres Comparando com outros estados brasileiros o estado gaúcho é o 2º com maior índice desse tipo de registro ficando atrás somente do estado do Amapá com 3090 boletins a cada 100 mil mulheres BRASIL 2016 Relatório do Poder Judiciário da aplicação da Lei da Maria da Penha que traz os resultados de um mapeamento realizado pelo Conselho Nacional de Justiça CNJ 2017 no período de 2016 com base nos dados registrados pelos tribunais de justiça estaduais revelou que no estado do Rio Grande do Sul foram abertos 54833 novos inquéritos policiais quanto à Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 286 violência doméstica no ano de 2016 sendo que foram emitidas 9940 sentenças de processos de conhecimento criminal relativas a esse tipo de violência mas houve apenas 267 processos de execução penal sobre violência doméstica no mesmo ano no estado Este relatório aponta ainda que no Brasil esses números foram 290423 novos inquéritos 194304 sentenças emitidas e infelizmente somente 13446 processos de execução penal Conforme determina a Lei Maria da Penha em seu Artigo 12 Inciso I na delegacia a autoridade policial diante do relato de ocorrência de violência doméstica deverá dentre outras ações ouvir a ofendida lavrar o boletim de ocorrência e tomar a representação a termo se apresentada BRASIL 2006 A partir da representação é instaurado o inquérito policial para a apuração da ocorrência que embora seja conduzido pela polícia civil em fase anterior à constituição do processo na esfera judicial é distribuído à Vara competente e é registrado pelo Poder Judiciário Estadual Fato interessante revelado por uma pesquisa da Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça realizada no período de junho de 2013 a fevereiro de 2014 80 das mulheres agredidas não quer que o autor da violência com quem ela mantém ou manteve uma relação doméstica familiar ou íntima de afeto seja punido com prisão Entre as alternativas apontadas por essas vítimas 40 disseram que os agressores devem fazer tratamento com psicólogos eou com assistentes sociais 30 acham que eles deveriam frequentar grupos de agressores para se conscientizarem 10 acham que a prestação de serviços à comunidade é a melhor alternativa penal BRASIL 2015 Isso corrobora a ideia de nosso estudo o agressor também precisa de atendimento e cuidado 32 Análise dos dados dos questionários Dos 20 questionários aplicados 17 deles foram respondidos5 ou seja 85 dos sujeitos da pesquisa responderam ao questionário Com a análise dos dados dos questionários foi possível verificar informações referentes ao perfil dos participantes dentre outras informações relevantes Dos homens que responderam grande parte 4117 07 homens têm entre 46 e 50 5 Conforme mencionado anteriormente os sujeitos da pesquisa são homens autores de violência doméstica encaminhados das audiências da Maria da Penha de uma cidade do Rio Grande do Sul para atendimento psicossocial no grupo de Redução de Danos no CAPS do referido município O questionário com 16 perguntas objetivas e fechadas foi entregue impresso diretamente pelo pesquisador a todos os 20 sujeitos da pesquisa em um dos encontros de atendimento coletivo do grupo sendo disponibilizado o tempo de 1h30 para responderem Foi permitido que os que assim desejassem levassem o questionário para responder em suas casas ou onde preferissem devendo retornálos respondidos no encontro da semana seguinte era realizado 1 encontro por semana com duração de 1h30 cada Sendo assim 12 homens optaram por responder no próprio encontro destes 05 levaram consigo para terminar de responder visto que não conseguiram finalizar no encontro e 8 preferiram levar o questionário para respondêlo em casa destes 3 não entregaram os questionários respondidos nem mesmo nos encontros seguintes mesmo tendo sido oferecida esta oportunidade Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 287 anos 2352 4 têm entre 51 e 55 anos e 1764 3 estão na faixa etária entre 36 e 40 anos 1176 2 têm entre 21 e 25 anos e apenas 588 1 tem idade entre 41 a 45 anos Percebe se então que o maior índice de violência praticada contra as companheiras encontrase entre os homens de meia idade ou seja entre 41 e 55 anos 7057 do total Além disso o menor índice desse tipo de violência ficou entre os homens mais jovens uma vez que 8824 dos pesquisados agressores tem 36 anos ou mais Índices similares aos encontrados na pesquisa de Scott e Oliveira 2018 em que a grande maioria 60 dos homens autores de violência doméstica tinha entre 36 e 55 anos e o menor índice estava entre os homens mais jovens entre 19 e 30 anos estes representavam menos de 205 do total de homens que praticaram violência doméstica Quanto ao nível de escolaridade menos da metade 4117 7 possui nível médio bem como 4117 7 têm apenas o nível fundamental e 1 deles 588 não é alfabetizado um familiar auxiliouo a responder o questionário e 1176 2 não responderam essa questão É importante destacar o fato de nenhum dos homens que responderam os questionários ter curso técnico ou superior o que demonstra que nesta pesquisa os agressores denunciados eou que respondem a processos têm baixo nível escolar Índice similar a este estudo foi encontrado na pesquisa de Silva Coelho e Njaine 2014 43 dos homens autores de violência tinham apenas o ensino fundamental Audi et al 2008 afirmam que o fato de ter 8 anos ou menos de escolaridade aumenta em 15 vezes a chance de se cometer violência psicológica e quase dobra a probabilidade de cometer violência física e sexual Esses dados corroboram a informação da OPAS 2017 de que a baixa escolaridade é um dos fatores associados ao aumento do risco de perpetração de da violência Contudo Scott e Oliveira 2018 salientam que nos níveis mais altos de escolaridade a violência também acontece mas muitas vezes não é denunciada Quanto ao estado civil grade parte 4117 7 são solteiros 1764 3 são divorciados 1764 3 são casados enquanto que 1176 2 têm união estável 588 1 são viúvos e 588 1 não marcaram qual era o seu estado civil A literatura SILVA COELHO NJAINE 2014 indica que homens cujo estado civil é divorciado ou viúvo são os que mais cometem violência contra a companheira em relação aos homens casados Oliveira e Scott 2018 também evidenciaram que o menor índice de violência praticado contra as parceiras ficou entre os homens casados Quanto à ocupação profissional 4117 7 são autônomos 1176 2 são aposentados 588 1 são funcionários de empresa privada bem como 588 1 são profissionais liberais e também 588 1 são funcionários públicos 294 5 escreveram no campo outro sua ocupação profissional 588 1 construção civil 588 1 agricultor 588 1 pecuarista 588 1 exército brasileiro e 588 1 estavam Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 288 em licença Oliveira e Scott 2018 também identificaram ocupações bem diversas entre os sujeitos de sua pesquisa e assim afirmam que há homens autores de violência doméstica nas mais variadas classes sociais e profissionais Dos homens que responderam ao questionário quanto à alternativa você presenciou algum ato de violência na infância Oito homens 4705 marcaram a alternativa que sim sendo que destes 625 5 presenciaram agressão física eou verbal Dos 8 homens que presenciaram cenas de violência em sua infância metade deles ou seja 4 deles quanto à questão como era a relação dos seus pais marcou a alternativa que as agressões físicas ou verbais sempre estiveram presentes na relação 2 dos 4 que marcaram essa alternativa marcaram também a alternativa que um dos pais usava bebidas alcoólicas eou consumia drogas 125 1 deles relatou que a mãe era muito agressiva 25 2 não mencionaram que tipo de violência presenciaram na infância e um dado interessante é que um dos pesquisados complementou a questão escrevendo que os seus pais batiam muito nos filhos que ele e seus irmãos apanhavam muito É interessante destacar que desses 8 homens que presenciaram agressões na infância a maioria 625 5 acredita que praticou alguma violência contra sua parceira enquanto apenas 3 375 que foram testemunhas de cenas de agressões na infância marcaram não quanto a esta questão Nesse sentido a OPAS 2017 afirma que a violência principalmente a sofrida na infância ou seja a exposição ao maltrato infantil além da experiência de violência no contexto familiar estão associados à perpetração da violência pelos homens na fase adulta Estas informações corroboram a afirmação do Centro de Convivência É de Lei apresentado na revisão de literatura as estratégias de redução de danos devem ser voltadas a qualquer cidadão contudo as abordagens geralmente são focadas às pessoas em contexto de vulnerabilidade como os homens participantes deste estudo Sendo que conforme esse mesmo centro a vulnerabilidade não se restringe a um comportamento ou conduta específicos mas sim ao ambiente em que se dá e ao contexto sociocultural Dos outros 5295 9 homens que marcaram não ter presenciado situação de violência em sua infância é interessante destacar que a maior parte 6666 6 quanto à pergunta como era a relação de seus pais marcaram a alternativa havia diálogo 1111 1 não marcaram nenhuma alternativa 1111 1 relataram no campo destinado a especificar caso quisessem que a mãe gritava muito e 1111 1 relataram que os pais eram separados desde seus 2 anos de idade ou seja não lembravam de ter presenciado situações de violência Observase que dos 09 homens acusados de agredirem as mulheres e que não presenciaram atos de violência em sua infância 6 conviveram em contexto de diálogo nos lares aonde cresceram sendo assim Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 289 entendese que não estavam reproduzindo uma realidade vivenciada em casa já que este ambiente hostil não era presente na vida destes agressores Salientase que dos 09 homens que não presenciaram cenas de violência em sua infância somente 4 deles 4444 responderam sim quanto à questão que perguntava se cometiam violência contra suas companheiras já que 5 homens 5556 responderam que não quanto a esta mesma pergunta De posse desses dados podese observar que o índice de homens que presenciaram atos de violência em sua infância 4705 e que admitiram que praticaram violência contra sua companheira 625 destes é maior que o índice dos que não presenciaram 5295 e cometeram violência contra a parceira 444 o que pode ser observado no gráfico 1 Sendo assim confirmouse que o fato de presenciar ações de violência doméstica na infância pode ser um fator que contribui para que na fase adulta reproduzam estas situações em suas vidas Gráfico 1 Índice de quem presenciou violência na infância e agrediu a companheira x índice de quem não presenciou atos de agressão e agrediu a companheira Fonte Elaborado pela autora Nesse sentido quanto à questão você acredita que praticou alguma violência contra a sua parceira do total de homens que responderam o questionário a maioria 5882 10 respondeu que sim logo 4118 7 responderam não Por questão de clareza primeiramente daremos sequência aos resultados da análise dos questionários dos homens que marcaram sim como resposta a essa questão Posteriormente apresentaremos os resultados da análise dos questionários respondidos pelos homens que marcaram não como resposta a esta mesma pergunta Dos 10 homens que responderam sim à pergunta você acredita que praticou alguma violência contra a sua parceira 50 5 praticaram violência verbal 20 2 praticaram violência física e verbal 10 1 cometeram violência física 10 1 cometeram violência 0 2 4 6 8 10 Presenciou atos de violência na infância x agressão à companheira Não presenciou atos de violência na infância x agressão à companheira Presenciou ato de violência na infância Cometeu ato de agressão contra a companheira Não presenciou atos de violência na infância Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 290 psicológica e verbal também 10 1 praticaram violência psicológica contra sua parceira ou seja pelos dados verificase que pelo menos 80 dos homens que cometeram violência praticaram violência física eou verbal contra sua parceira Desses 10 homens que admitiram ter agredido suas companheiras quanto à pergunta quando você praticou a violência você não sabiam que aquela ação era uma violência foi a resposta de 60 6 homens 20 3 marcaram estava sob efeito de alguma substância química e apenas 10 1 responderam que sabia que era violência e a praticou deliberadamente este foi o único que marcou que cometeu somente violência física Nesse sentido no estudo de Silva Coelho e Njaine 2014 o uso de drogas também aparece como uma das causas da violência além de destacar questões culturais e de gênero que perpetuam a ideia de posse dos parceiros homens em relação às mulheres Quanto à questão com que frequência você as praticou 60 6 marcaram raramente 30 3 esporadicamente e apenas 10 1 marcaram diariamente Quanto à questão você acredita que voltará a praticar violência grande parte 70 7 homens marcaram a alternativa não hoje entendo melhor o que é uma agressão e suas consequências 20 2 marcaram talvez e somente 10 1 marcaram sim pois é muito difícil me controlar Aqui evidenciase que a mudança demonstrada por estes homens está diretamente relacionada ao trabalho realizado pelo CAPS destacando a importância da criação de grupos de reflexão que debatam e tenham como foco a conscientização do autor da violência O alto índice de homens que marcaram a alternativa de que não voltariam a praticar agressão porque hoje entendiam melhor o que é uma agressão e suas consequências demonstra que está sendo positivo o resultado do Plano Municipal de Redutores de Danos da Secretaria de Saúde do município Apesar de a Política de Redução de Danos segundo a Associação Internacional de Redução de Danos 2010 originalmente ser voltada a reduzir consequências danos do uso de drogas vimos na prática que sua filosofia pode perfeitamente ser aplicada ao combate à violência doméstica como visto anteriormente Isso porque o objetivo da Redução de Danos é prevenir os riscos danos e consequências causados por uma ação negativa neste caso a violência doméstica Isso é o que tem sido feito no atendimento psicossocial no grupo de Redução de Danos no CAPS o atendimento ao autor de violência doméstica conscientizandoo de que seus atos de agressão afetam negativamente ou seja causam danos consequências nocivas a sua companheira aos seus filhos à sociedade e também a ele próprio Dessa forma observase que a maioria dos homens não sabia ou não considerava como violência as agressões que praticava principalmente a verbal e que o índice de quem Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 291 cometeu violência neste caso foi a violência física consciente de que estava cometendo uma violência e cometeu mesmo assim foi baixo Quanto a isso Paixão et al 2018 afirmam que há uma naturalização da violência por parte dos homens no relacionamento o que fazem com que não entendam motivo de serem indiciados Para os autores essa falta de entendimento dos homens sobre o ato de violência cometido contra a parceira contribui para a responsabilização da companheira evidenciando que o modelo patriarcal e machista ainda vigente na sociedade incita a desigualdade de poder dos gêneros nas relações e a perpetuação da violência Quanto à questão em relação às agressões você acredita que 40 4 homens marcaram também foi agredido e a agressão que sofreu foi tão intensa quanto a agressão que você fez 30 3 marcaram também foi agredido mas a agressão que sofreu foi menor que a agressão que você fez 20 2 não marcou nenhuma alternativa e apenas 10 1 marcou que não foi agredido Ou seja observase que na maioria dos casos conforme as respostas dos questionários dos homens que cometeram agressão as agressões eram mútuas Quanto a isso Silva Coelho e Njaine 2014 p 1260 ressaltam que muitas vezes o homem autor de violência contra a mulher justifica seus atos mencionando que também sofrem agressões no ambiente doméstico porém os autores reforçam que esse ato de violência contra o homem é desencadeado após algum ato de violência cometido por ele Ademais embora alguns homens sejam realmente humilhados desqualificados e agredidos física e verbalmente por uma mulher é difícil imaginálos permanentemente aterrorizados ou devastados em sua autoestima Do total de 7 homens que marcaram que também foram agredidos quanto à pergunta se você acha que também foi agredido você considera que 4285 3 marcaram a alternativa que a lei não o protege e você está desamparado 2857 2 marcaram que os homens são fisicamente mais fortes por isso as mulheres realmente precisam de uma lei que as proteja 1428 1 marcaram 2 alternativas a lei não o protege e você está desamparado e os homens são fisicamente mais fortes por isso as mulheres realmente precisam de uma lei que as proteja assim como 1428 1 não marcaram nenhuma alternativa e também 1428 1 marcaram a alternativa outro mas não especificaram no campo destinado a considerações Passandose agora para a análise dos questionários dos 7 homens 4117 do total que responderam não quanto à pergunta você acredita que praticou alguma violência contra a sua parceira quanto à questão se na sua opinião você não praticou violência você acredita que 2857 2 marcaram a alternativa não praticou nenhuma violência e acha que a denúncia foi injusta assim como 2857 2 marcaram não considerava violência alguns atos que gerou a medida 1 destes marcou violência patrimonial na questão 11 em caso Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 292 afirmativo quais tipos de violência praticou e especificou por escrito quebrei o telefone seguido de 1428 1 que responderam ela mente muito e inventou esta história de 1428 1 que marcaram outro e escreveram do lado a violência verbal existia entre ambas partes e 1428 1 não marcaram nenhuma alternativa Quanto à penúltima pergunta do questionário na sua opinião o atendimento e as atividades realizadas no atendimento psicossocial junto ao grupo de Redução de Danos no CAPS é do total dos 17 participantes que responderam o questionário 4705 8 marcaram a alternativa muito interessante aprendi muito 4117 7 marcaram interessante aprendi algumas coisas apenas 588 1 não marcou nenhuma alternativa da mesma forma 588 1 marcou a alternativa outro mas não especificou no campo destinado a considerações Destaco o que o único participante que escreveu na última questão do Existe alguma coisa que gostaria de comentar sobre o assunto eis que um dos entrevistados escreveu me sinto triste de ter cometido esta agressão mas como acompanhamento psicológico está me fazendo ver tudo de outra forma para nunca mais acontecer Sendo assim é fundamental que sejam implementadas políticas públicas na área de atendimento ao autor de violência contra a mulher e discutir sobre esse tema e não apenas julgar esse atendimento Nesse sentido Santos e Lima 2013 salientam que é preciso proporcionar ajuda ao autor de violência e não apenas censurálos isso contribuirá para a redução da violência cometida contra as mulheres Assim o que se pode depreender pelas respostas dessas 2 últimas questões é que o trabalho em grupo no CAPS foi visto como positivo pela maioria dos homens atendidos e embora 1 tenha se declarado arrependido e disposto a mudar e não mais cometer violência contra a sua parceira acreditase que a semente foi plantada nos demais principalmente nos que através das respostas admitiram que cometeram violência contra sua companheira CONSIDERAÇÕES FINAIS Esta pesquisa trouxe dados alarmantes quanto à violência doméstica Esta muitas vezes acompanha o agressor desde a infância Neste estudo evidenciouse que grande parte dos homens denunciados por agressão presenciaram algum ato de agressão em sua infância conviveram com pais agressivos que se agrediam tanto física quanto verbalmente A maioria desses homens admitiram que cometeram ato de violência contra a parceira ou seja reproduziram uma realidade vivenciada em casa quando crianças Sendo assim são necessárias políticas públicas que tratem a raiz do problema ou seja atender o agressor conscientizálo de que seus atos de agressão afetam negativamente não só sua companheira mas seus filhos e também a sociedade A Lei Maria da Penha é fundamental Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 293 na garantia de direitos a mulheres que sofreram violência doméstica Porém é necessário sanar o problema antes de ele ser instaurado para que se busque que não ocorra novamente ou seja é preciso combater a violência doméstica para que ela não se repita além de dar assistência e apoio às mulheres agredidas É preocupante o fato de 4118 dos participantes deste estudo ou seja homens denunciados por agressão e encaminhados de audiências da Lei Maria da Penha para atendimento psicossocial não admitirem ou não considerarem que cometeram ato de violência contra a companheira visto que grande parte demonstrou desconhecer que violência verbal psicológica eou patrimonial também são formas de violência Dessa maneira o movimento da violência aqui descrito remete a algumas questões que se observadas e divulgadas pelos profissionais que atendem as vítimas em centros especializados podem contribuir para gerar um conhecimento acerca da violência doméstica e também acerca de como se trabalhar com o agressor Neste sentido é imprescindível que os profissionais que atendem a essa nova demanda bem como a população estejam preparados para direcionar um olhar atento que possibilite à pessoa se identificar como também vítima de uma sociedade que culturalmente muitas vezes entende esse processo de agressão como algo normal Prestar um atendimento respeitoso de modo a contribuir para que o agressor e vítima possam se expressar livremente propiciando a clara exposição dos fatos tendo como consequência o entendimento da dinâmica da violência é uma excelente oportunidade para solução da situação pela qual passam tanto agressor quanto agredido Nesse sentido o profissional deve propiciar o resgate dos mesmos uma vez que oportuniza um espaço de escuta e de valorização da pessoa como um todo Seria desejável também que os organismos financiadores do Estado incentivassem a produção científica no campo do cuidado do agressor da violência doméstica haja vista a pouca produção encontrada com essa temática Assim podese concluir que as estratégias de prevenção da violência seja ela doméstica urbana ou institucional devem levar em consideração o fato de a violência doméstica ser o ponto inicial que deflagra muitas das situações violentas que chegam ao judiciário há a necessidade de uma compreensão de que todas as manifestações violentas como a violência psicológica moral física entre outras venha a ser contida e a servir como estratégia de redução de danos O presente estudo apresentou limitações importantes quanto à população por não ter uma amostragem maior de homens encaminhados e atendidos pelo atendimento psicossocial CAPS do município pesquisado Fica como sugestão para estudos futuros pesquisar a eficácia Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 294 desse programa de atendimento ao agressor analisar se com os atendimentos o índice de violência doméstica reduziu e se caíram os casos de reincidência REFERÊNCIAS ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE REDUÇÃO DE DANOS O que é Redução de Danos Londres GrãBretanha 2010 Disponível em httpswwwhriglobalfiles20100601 BriefingwhatisHRPortuguesepdf Acesso em 02 de novembro de 2018 AUDI C A F et al Violence against pregnant women prevalence and associated factors Revista de Saúde Pública v 42 n 5 p 877885 AZEVEDO M A GUERRA V N A Violência psicológica doméstica vozes da juventude São Paulo Laboratório de Estudos da Criança 2001 BRASIL Decreto 1973 de 1º de agosto de 1996 Promulga a Convenção Interamericana para prevenir punir e erradicar a violência contra a mulher concluída em Belém do Pará em 9 de junho de 1994 Disponível httpwwwplanaltogovbrccivil03decreto1996d197 Acesso em 02 de novembro de 2018 BRASIL Lei 11340 de 7 de agosto de 2006 Cria Mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher e dá outras providências Diário Oficial da União 8 de agosto de 2006 BRASIL Ministério da Justiça Secretaria de Assuntos Legislativos Violência contra a mulher e as práticas institucionais Brasília Ministério da Justiça 2015 BRASIL Ministério da Saúde Violência intrafamiliar orientações para a prática em serviço Brasília Ministério da Saúde 2001 BRASIL Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres Brasília Secretaria de Políticas Públicas para as mulheres 2011a BRASIL Secretaria Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres Diretrizes gerais dos serviços de responsabilização e educação do agressor Serviço de responsabilização e educação do agressor In BRASIL Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres Rede de enfrentamento à violência contra as mulheres Brasília Secretaria de Políticas para as Mulheres 2011b BRASIL Senado Federal Panorama da violência contra as mulheres no Brasil indicadores nacionais e estaduais Brasília Senado Federal 2016 CENTRO DE CONVIVÊNCIA É DE LEI Redução de Danos S d Disponível em httpedeleiorghomesobrenos Acesso em 07 de setembro de 2019 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA O Poder Judiciário na aplicação da Lei Maria da Penha 2017 Disponível em httpwwwcnjjusbrflesconteudoarquivo201710ba9a59 b474f22bbdbf7cd4f7e3829aa6pdf Acesso em 20 de agosto de 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 295 FORTESKI R FARIA J G Estratégias de redução de danos um exercício de equidade e cidadania na atenção a usuários de drogas Revista de Saúde Pública de Santa Catarina Florianópolis v 6 n 2 p 7891 abrjun 2013 GUIMARÃES M C PEDROZA R L S Violência contra a mulher problematizando definições teóricas filosóficas e jurídicas Psicologia Sociedade v 27 n 2 p 256266 2015 MARTINS A P A CERQUEIRA D MATOS M VM A institucionalização das políticas de enfrentamento à violência contra as mulheres no Brasil Brasília Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada IPEA 2015 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE Organização PanAmericana de Saúde La unidad de salud de la mujer de la OMS Violencia contra la mujer un tema de salud prioritario Ginebra 1998 Disponível em httpwwwwhointgenderviolenceviolencia infopack1pdf Acesso em 10 de novembro de 2018 ORGANIZAÇÃO PANAMERICANA DA SAÚDE Violência contra as mulheres 2017 Disponível em httpswwwpahoorgbraindexphpoptioncomcontentviewarticleid 5669folhainformativaviolenciacontraasmulheresItemid820 Acesso em 07 de setembro de 2019 PAIXAO G P do N et al Naturalization reciprocity and marks of marital violence male defendants perceptions Revista Brasileira de Enfermagem Brasília v 71 n 1 p 178184 fev 2018 SANTOS A C B dos LIMA V L A O perfil do homem autor de violência cometida contra as mulheres na versão da mídia impressa Paroara Contribuições para a enfermagem In XXVII SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA Natal RN 22 a 26 de julho de 2013 SCOTT J B OLIVEIRA I F de Perfil de homens autores de violência contra a mulher uma análise documental Revista de Psicologia da IMED v 10 n 2 juldez 2018 SILVA L L COELHO E B S CAPONI S N C Violência silenciosa violência psicológica como condição da violência física doméstica Interface Botucatu v11 n 21 janabr 2007 SILVA A C L G COELHO E B S NJAINE K Violência conjugal as controvérsias no relato dos parceiros íntimos em inquéritos policiais Ciência Saúde Coletiva v 19 n 4 abr 2014 SILVA L E L OLIVEIRA M L C Violência contra a mulher revisão sistemática da produção científica nacional no período de 2009 a 2013 Ciência Saúde Coletiva v 20 n11 p 35233532 2015 STRONACH B Álcool e redução de danos In BRASIL Ministério da Saúde Álcool e redução de danos uma abordagem inovadora para países em transição Brasília 2004 Disponível em httpbvsmssaudegovbrbvspublicacoesalcoolreducaodanos2004pdf Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 296 LACUNAS E ABISMOS ENTRE HOMENS E SERVIÇOS IMPASSES NO COMBATE À VIOLÊNCIA CONTRA AS MULHERES Adriano Beiras1 Caio Henrique de Mendonça Chaves Incrocci2 Amanda Alexandroni3 Marina Williamson Touro4 RESUMO Esse texto é oriundo de uma pesquisa realizada na região de Grande Florianópolis e foi elaborado a partir da compreensão da importância do debate acerca de masculinidades na esfera da violência contra mulheres tal como o trabalho com homens autores de violência HAVs nesse âmbito Buscamos identificar as possibilidades e empecilhos no atendimento com HAVs em profissionais de delegacias especializadas e assistência social No total foram realizadas cinco entrevistas individuais e duas rodas de conversa analisadas segundo análise temática de narrativas As dificuldades encontradas para a realização deste serviço foram observadas em três âmbitos referentes à estrutura organizacional das redes de segurança pública e assistência social às práticas dos profissionais envolvidos que não envolvem pensar esse serviço as construções sociais acerca de gênero e masculinidades Como conclusão o estudo visibiliza a complexa relação em rede dos aparelhos do Estado que pode ser analisada com um olhar analítico de gênero Demonstra a importância de ações integradas que considerem aspectos específicos de gênero e masculinidades como limitadores de possibilidades de ação assim como questões integradas a aspectos políticos culturais e interseccionais Pontos estes que precisam ser problematizados na prática em capacitações e intervenções para ações eficazes e permanentes neste setor Palavraschave Homens Violências Assistência social Segurança pública INTRODUÇÃO A violência contra a mulheres se manifesta em diversos âmbitos e de diversas formas acarretando na ação de pessoas físicas movimentos sociais instituições governamentais e não 1 Professor Adjunto do Departamento de Psicologia e do Programa de Pósgraduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC PósDoutor pela UFSCBrasilUniversidade de GranadaEspanhaUniversidade de Brighton Inglaterra Doutor Europeu em Psicologia Social pela Universidade Autônoma de Barcelona UAB Espanha em 2012 adrianobeirasufscbr Lattes httplattescnpqbr8261091589447794 2 Mestrando no Programa de pósgraduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina PPGPUFSC área de concentração 2 Psicologia Social e Cultura Graduado em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina UFSC em 2018 Bolsista de pósgraduação financiamento CAPES caioincroccihotmailcom Lattes httplattescnpqbr1231220464460867 3 Graduanda do curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Bolsista PIBICCNPq marinawtourogmailcom Lattes httplattescnpqbr4317724250219344 4 Graduanda do curso de Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina UFSC Bolsista PIBICCNPq amandaaalexandronigmailcom Lattes httplattescnpqbr2146172711712598 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 297 governamentais para o enfrentamento desse problema Dentre estes a atuação dos movimentos feministas tem sido fundamental sendo a violência contra mulheres uma de suas principais bandeiras de modo a denunciar as diferentes formas em que ocorre e articulando possibilidades de enfrentamento Segundo Bandeira 2014 os esforços do movimento feminista também situaram a violência de gênero como problema político e de saúde pública não mais da esfera privada representando um grande avanço nos direitos humanos das mulheres No entanto a perspectiva indicada pela autora não é de vitimização mas de compreensão sobre uma realidade que assim como as origens deste tipo de violência é complexa Dentro desta complexa problemática há necessidade de explorar ações tanto no âmbito das vítimas como dos autores de violência contra as mulheres No entanto trabalhar com homens diante deste tema é um desafio instigante não isento de questionamentos diversos Além disso é importante problematizar o lugar dicotômico e por vezes visto como fixo de vítima e agressor dando lugar a um olhar que traga a complexidade relacional da violência e do gênero Neste artigo pesquisamos esta temática focando no ângulo de trabalho e intervenção com os homens autores de violências e explorando desafios dificuldades e potencialidades de trabalho no âmbito da assistência social e da segurança pública na região de Florianópolis Na perspectiva de Bandeira 2014 a violência de gênero é resultante das relações assimétricas de poder que estão presentes na sociedade Para Rifiotis 2015 a violência contra as mulheres está articulada com noções de normatividade que agenciam possibilidades e impossibilidades ao comportamento dos indivíduos coagindoos e limitandoos em suas condições de vida Por outro lado ainda segundo o autor o Estado enquanto mediador da sociedade civil agência múltiplas ações via sistema judiciário de saúde educacional assistencial entre outros para tratar da assimetria dessas relações A Lei 113402006 exemplifica uma ação do Estado via judiciário para esses fins Conhecida popularmente como Lei Maria da Penha a lei dispõe dos mecanismos vinculados ao aparelho do Estado para coibir a violência doméstica contra a mulher Tal como a categorização dos tipos de violência física psicológica sexual patrimonial e moral e das medidas protetivas assistenciais e de urgência relacionadas às mulheres em situação de violência BRASIL 2006 Desse modo a medida lança mão de importantes recursos como a supressão de medidas alternativas para cumprimento de pena e a possibilidade de autores de violência serem presos em flagrante Além disso também está prevista o incentivo a estudos e pesquisas acerca da temática visando a construção de projetos com intuito de erradicar a violência doméstica Ademais da Lei Maria da Penha outros progressos judiciais foram conquistados nos últimos anos A exemplo em 2015 foi sancionada a lei 131042015 a Lei do Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 298 Feminicídio que passa a classificar o assassinato de mulheres como crime hediondo e com agravantes de acordo com situações específicas de vulnerabilidade A judicialização acompanha a crescente preocupação com a superação deste tipo de violência como requisito para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária Todavia ainda há uma lacuna em políticas públicas para a prevenção efetiva deste tipo de agressão assim como a coibição de sua recorrência e agravos envolvidos Dados oficiais demonstram que mesmo com a criação de diversas legislações o número de mulheres agredidas e vítimas de feminicídio não recuou Segundo dados da Organização Mundial de Saúde presentes no Mapa da Violência WAISELFISZ 2015 em um grupo de 83 países o Brasil é o quinto com maior número de mulheres assassinadas A nível nacional segundo os dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública no ano de 2017 houve um aumento de 84 de casos de estupros em relação ao ano anterior contabilizando 60018 casos registrados No ano passado houve ainda 1133 casos de feminicídios contabilizados nos registros da segurança público INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA 2018 Esses dados apontam que as atuais estratégias punitivistas não estão conseguindo administrar o alto número de demandas relacionadas às violências de gênero Regionalmente em Santa Catarina preocupa o crescimento de casos os quais se posicionam acima da média nacional No Brasil entre 2003 e 2013 o número de vítimas do sexo feminino passou de 3937 para 4762 Um aumento de 210 na década Já no estado de Santa Catarina o número de mulheres mortas foi de 69 para 102 cristalizando um crescimento consideravelmente acima da média nacional 478 WAISELFISZ 2015 Esses dados apontam para a necessidade de compreender a forma como se expressam particularidades em distintos estados e municípios ressaltando a importância de promover ações específicas segundo as demandas apresentadas Outra questão preocupante é a reincidência que acontece em 492 dos casos de atendimento feminino tendo prevalência especialmente entre as mulheres adultas e idosas Já os atendimentos a indivíduos do sexo masculino a proporção de 305 o que permite supor que a violência contra a mulher é mais sistemática e repetitiva do que a que acontece contra os homens Esse nível de recorrência da violência deveria ter gerado mecanismos de prevenção o que não parece ter acontecido WAISELFISZ 2015 Portanto é necessário pensar em novas abordagens que possam abarcar as dimensões diversas que o fenômeno possui para além de uma perspectiva meramente jurídica e punitivista Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 299 Cabe ressaltar que dentre as medidas de enfrentamento à violência contra a mulher além dos mecanismos direcionados às mulheres nomeadas vítimas de violência o artigo 35 inciso V da Lei 113402006 dispõe das possibilidades interventivas com os homens autores de violência Apontase a articulação entre entidade federal e governos de estado e município para criar e promover projetos de reabilitação e de caráter educativo para os agressores BRASIL 2006 É considerada um marco justamente por prever ações de contenção dos sujeitos que cometem violências diferenciandose das leis anteriores por considerar além da repressão e penalização assistência e prevenção Deste modo Beiras et al 2012 e Billand e Paiva 2017 apontam para a importância de trabalhar com o público masculino principalmente com aqueles autores de violência de gênero contra as mulheres como uma importante estratégia orientada ao combate à violência de gênero contra as mulheres Com o objetivo de estabelecer estratégias públicas de combate à violência de gênero e de cumprir com o estabelecido pelas legislações acima apontadas diferentes aparelhos do Estado devem se articular e desenvolver ações e serviços Como foco desta pesquisa optamos por investigar como se dão estas estratégias e ações especificamente no âmbito da assistência social e da segurança pública Segundo Cardoso e Beiras 2018 a Assistência Social é um espaço de cuidado e fortalecimento de vínculos comunitários O público alvo dos Centros de Referência de Assistência Social CRAS e Centros de Referência Especializada em Assistência Social CREAS são sujeitos que estão em condição de vulnerabilidade social ou que tiveram seus direitos humanos gravemente violados Portanto diferenciase dos espaços de delegacia tribunais e defensorias públicas por não carregarem o legado de punição possibilitando a construção de vínculos de outra ordem com todas as partes envolvidas na questão As Delegacias de Polícia fazem parte dos dispositivos da Polícia Civil administrados pela Secretaria de Estado de Segurança Pública Elas têm como função a apuração de infrações penais que não estão previstos no exercício da Polícia Federal e suas competências estão submetidas a um delegado de polícia subordinado aos Governadores dos Estados GHISI OLIVEIRA e OLIVEIRA 2017 As delegacias especializadas integram ações para adolescentes mulheres e idosos sendo chamadas de DPCAMI Delegacias de Proteção à Criança Adolescente Mulher e Idoso Diante de todo o exposto neste estudo temos o objetivo de compreender como é realizada a atenção ao HAVs nas redes de segurança pública nas delegacias especializadas e na assistência social CRAS e CREAS de modo a observar como se dá o trato deste público nestes serviços segundo as experiências dos profissionais entrevistados Tentaremos desse Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 300 modo explorar algumas das potencialidades tensões limites e empecilhos encontrados colocandoos em debate a partir de uma leitura orientada pelos estudos de gênero e feministas 1 ESTUDOS DE GÊNERO MASCULINIDADES E HOMENS AUTORES DE VIOLÊNCIA Compreendendo a complexidade da temática diversos estudiososas e pesquisadoresas têm se debruçado sobre a violência de gênero contra mulheres de forma a abordar os fenômenos causas efeitos e problemáticas que cercam essa questão Partindo dos estudos de gênero e feministas o campo das masculinidades tem oferecido preciosas contribuições no âmbito das violências Partindo de uma noção mais estruturalista Connell 1997 argumenta que há entre os homens diferentes relações de poder e que estas são definidas a partir de padrões e normas de masculinidades que vão orientar leituras de homens que se beneficiam mais ou menos do sistema de gênero imposto Em outras palavras há o estabelecimento de uma hierarquia entre homens orientando uma leitura social daqueles que se adequam às prerrogativas de gênero e dos que não aplicando a eles as respectivas sanções e benefícios Todavia cabe ressaltar que estes padrões são localizados geograficamente e historicamente variando entre regiões e no tempo embora haja semelhanças que possam ser percebidas por um longo período e inter regionalmente Deste modo há a necessidade de pensar em múltiplas masculinidades CONNELL 1997 Ainda segundo a autora essa relação de poder que se estabelece entre homens e mulheres coloca esses primeiros enquanto um grupo estruturalmente interessado na conservação dessas formas de relação ao passo que as mulheres estariam motivadas em promover mudanças no tocante a essas relações Seguindo esta mesma linha Muszkat 2008 aborda a naturalização de condutas violentas por parte de homens Argumenta que são consideradas naturais em lugar de entendidas como práticas violentas ou que visem a manutenção do lugar de poder Isso impede que sejam reconhecidas como inapropriadas dificultando o seu enfrentamento Partindo de algumas dessas reflexões tornase relevante evidenciar outras formas de masculinidades ou de ser homem fazendo desse esforço um importante instrumento interventivo e transformando esses conceitos em formas de ação política Essas intervenções são possibilidades de mudanças macroestruturais acerca das posições de masculino e feminino ressignificando visões essencialistas e violentas A partir da pesquisa com um grupo reflexivo com Homens Autores de Violência na cidade de São Paulo Prates e Alvarenga 2014 debatem acerca das potencialidades dessa forma Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 301 de trabalho Na experiência estudada os participantes puderam pensar criticamente acerca das posições hegemônicas da organização de gênero na sociedade o que potencializou a reflexões sobre as possibilidades tanto homens como mulheres atuarem para a transformação dessas relações Assim essa experiência ressignificou a relação dos homens com essa masculinidade hegemônica urgindo uma implicação destes sujeitos nessa problemática PRATES e ALVARENGA 2014 Tendo isso em vista buscouse refletir sobre as dificuldades e desafios do trabalho com homens autores de violência na rede de segurança pública e assistência social da região de Florianópolis apontando possíveis ações de enfrentamento das violências contra as mulheres a partir dos estudos sobre feminismos e masculinidades Procuramos produzir aqui um conhecimento localizado e específico desta região de maneira a problematizar e contribuir para a prática local assim como criar potencias de ação e enfrentamentos futuros Inspiramonos também na busca de saberes localizados HARAWAY 2009 do movimento feminista como estratégia de ação e reflexão para este estudo 2 ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS E DE ABORDAGEM Primeiramente identificamos profissionais da segurança pública e da assistência social por meio da rede de contatos dosas pesquisadoresas Em um segundo momento estes profissionais foram contatados pela equipe de pesquisadoresas e entrevistas foram agendadas Entrevistamos 5 psicólogos dentre estes três trabalhadores da assistência social e dois da segurança pública profissionais de DPCAMIs seguindo um roteirosemiestruturado Posteriormente duas rodas de conversa sobre o tema Homens e Violência foram conduzidas em um CREAS da região Esse grupo contou com a presença de 10 de profissionais 3 psicólogas e 5 assistentes sociais 1 administradora e 1 Estagiária de assistência social é importante ressaltar que todas as participantes eram mulheres Destacamos que a pesquisa foi aprovada pelo comitê de ética local portanto contempla todas as medidas e cuidados éticos e de anonimato A análise do material transcrito das entrevistas foi realizada a partir do estudo temático de narrativas entendidas não apenas como um conjunto de palavras articuladas mas sim ações verbais que possuem a potência de construir manter e alterar realidades Deste modo foram explorados aspectos críticos direcionados ao contexto e à interação social O foco do estudo está em identificar falas momentos ou episódios que proporcionem reflexões críticas sobre discursos dominantes e suas relações com a construção de subjetividades e relações de poder nos campos analisados RIESSMAN 2008 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 302 Partindo das noções e teorias apontadas na introdução deste texto as entrevistas foram transcritas analisadas e posteriormente divididas em três grandes temas a saber organização e rede a prática profissional b e construções sociaisc No primeiro tema identificado organização e rede a foram condensadas as questões referentes à estrutura organizacional financeira e física tal como os atravessamentos institucionais do serviço representado pelos sujeitos entrevistados e seus impactos no atendimento de HAVs No segundo práticas profissionais b foram identificados desafios que permeiam a prática profissional como a falta de capacitações e os desconfortos no trabalho com os HAVs No que se refere ao último tema construções sociais c foram categorizados os desafios encontrados na atuação destes profissionais no tocante às construções sociais acerca de gênero e masculinidades e seus impactos na atuação com estes homens Adicionalmente também foram levantadas importantes problemáticas no tocante aos atravessamentos da construção dos sujeitos que trabalham na articulação dessa rede Em um segundo momento buscamos abordar as potencialidades no atendimento de HAV pelas redes de segurança pública e assistência social abordando as possibilidades de serviços com essa população indicativos da importância desse trabalho tal como os caminhos apontados pelos profissionais para que estes atendimentos possam se concretizar 3 DESAFIOS ORGANIZACIONAIS E DE REDE No decorrer das entrevistas uma das questões emergentes se refere aos desafios relacionados à organização e rede a São dificuldades relacionadas à falta de verbas e de profissionais limitações do espaço físico e à organização da rede Está apresentase dicotomizada ou seja dividida entre o caráter punitivista de rede de segurança pública e o caráter assistencialista da rede de assistência social O principal ponto levantado nas entrevistas referente a este assunto foi a falta de atendimento aos HAVs na rede de assistência ponto que guia a discussão a seguir Sobre a organização e rede uma caracterização dos serviços da assistência social se faz necessária Conforme apontam as próprias políticas de assistência social esta visa proteger sujeitos em situação de vulnerabilidade social e violação de direitos Segundo o artigo 2º da Lei 12435 que dispõe sobre a organização política do SUAS os dispositivos de Assistência Social possuem como finalidade garantir a reprodução da vida diminuindo e prevenindo a incidência de riscos BRASIL 2011 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 303 Neste caráter de prevenção a incidência de riscos os profissionais da assistência social ao serem questionados acerca do trabalho com situações de violência discorreram que o perfil dos trabalhos é o de atendimento com a população tida como vítima da situação Além disso relatam o número elevado de demandas diversas para este público e situações que chamam de apagar incêndio que dificultam aprofundamentos ou ações que se ampliem para outros públicos como o de homens autores de violência A exemplo apresentamos a seguinte fala Acho que pela por a gente estar envolvido com tantas outras demandas que é não só público alvo com homens a gente acaba apagando incêndio dessas outras demandas e deixando de lado o que possivelmente é crucial nessa de quem promove faz acontecer a violência Psicólogo CREAS Fazse pertinente reconhecer que a assistência social atravessa diversos desafios devido aos baixos recursos e poucos profissionais Isso gera demanda reprimida limitando a viabilidade das propostas interventivas dispostas nas políticas da rede Apontase que os HAVS acabam não sendo incluídos na agenda de prioridades da organização além disso parece haver uma naturalização dos destinos desses corpos tidos como violentos o encaminhamento ao setor judiciário para punição e judicialização do tema que enxerga em uma diferente perspectiva o direcionamento do trabalho com estes homens Conforme aponta um psicólogo da segurança pública para além dos impedimentos de ordem material o acolhimento centrado nas mulheres agredidas revelase como uma escolha necessária a saber Se for atender todos os casos daquela pessoa em que ela é citada como autora a gente vai ter que deixar de atender aquelas que recorrem como vítimas Então nesse nesse sentido a gente tá fazendo essa escolha néPsicólogo da Segurança PúblicaDelegacias Essa escolha revela um direcionamento dicotômico e pouco sistêmico e relacional da questão ao optar por intervir apenas com as mulheres nomeadas vítimas Isto denuncia um despreparo por parte do Estado em olhar para esses autores fora da esfera criminal característica que não é apenas encontrada no Brasil Na América Latina e Portugal após a realização de mapeamentos acerca das políticas públicas de combate à violência de gênero foi possível constatar que existe uma priorização ao atendimento de vítimas de violências TONELI BEIRAS e RIED 2017 Mudar esta lógica de atenção seria uma mudança de paradigma complexo institucionalmente pela forma que o aparelho do Estado está estruturado e pela maneira de lidar com estes sujeitos diante de diversos valores e desejos de punição e soluções rápidas Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 304 Essa forma de negar aos homens uma posição de cuidado revela a reprodução dos moldes da masculinidade hegemônica na estrutura do Estado e seus funcionários Connell 1997 define masculinidade hegemônica como uma forma de exercer a masculinidade que utilizase de estratégias para manter a ordem patriarcal a qual proíbe certas formas de emoções e afetos aos homens Assim essa masculinidade hegemônica permeia culturalmente a rede de combate e prevenção a violência limitando a possibilidade do cuidado apenas às mulheres Aos homens portanto restaria a alternativa penal e às mulheres as consequências da violência E ao se tratar da alternativa penal um grande ponto de destaque na discussão acerca da organização e da rede é o distanciamento dos modos de trabalho entre as redes de segurança pública e de assistência social no trato com seu público segurança e assistência social acho que é quase contraditório as duas relações uma mais garantista a outra legalista uma querendo sempre mais acusar e a outra ou um pouco mais proteger Psicólogo na Segurança PúblicaDelegacias Este distanciamento é algo que precisamos explorar e discutir Poderiam estes serviços funcionar de forma complementar Suas lógicas diferentes não contradizem a possibilidade de ação em rede Seria possível pensar em uma ação da segurança pública pensada para a transformação social e relacional destes sujeitos para além de apenas punir Por outro lado estas reflexões nos trazem a necessidade de refletir sobre o amadurecimento e a reflexão crítica sobre as ações do próprio Estado Compreendendo o Estado como responsável pela organização civil quando ele autoriza a repetição e perpetuação de uma situação de violação de direitos ou divisões a ações excessivamente fragmentadas mantendo práticas individualizantes e dicotômicas há o reconhecimento de uma situação que pode ser entendida como Violência de Estado A própria organização jurídica estatal revela essa omissão Apesar de seu evidente caráter progressista devido ao acesso e proteção das mulheres pela via da sistematização judiciária equilibrando legalmente desigualdades alguns aspectos da Lei Maria da Penha podem ser alvo de críticas Um aspecto fortemente criticado pela área da criminologia crítica é o enrijecimento dos papéis dicotômicos de mulhervítima e homemagressor sobrecarregando as vias penais e criminais Esse limitante pode acarretar em uma dificuldade em se pensar novas possibilidades para o trabalho com esse público Essas perspectivas penalizantes resultam ser insuficientes perante a complexidade do fenômeno da violência Além de conforme apontam os dados a violência não ser erradicada apontase a problemática da reincidência dos casos conforme narradora fala a seguir Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 305 Acontece bastante principalmente a mulher que retira a queixa E aí ela volta a fazer o boletim de ocorrência Tem diversas situações que volta esse boletim de ocorrência no caso que está relacionado à reincidência do mesmo autor Psicólogo na Segurança PúblicaDelegacias Tendo em vista a repetição do ato violento é necessário repensar essas práticas punitivas apontando para alternativas que de fato ressignifique o ato violento e as formas de exercer as masculinidades É neste aspecto que podem se apresentar desafios estruturantes na ação estatal para esta temática que seria relevante problematizar para a busca de ações mais efetivas e eficazes assim como integradas 4 PRÁTICA PROFISSIONAL Neste tema foi trabalhado aspectos referentes à prática profissional dosas trabalhadoresas que têm a possibilidade de realizar o trabalho com os HAVs Destaques foram feitos sobre a possibilidade deste serviço dentro da rede de assistência pontos como as faltas de capacitações para que o trabalho possa ser realizado e as inseguranças acerca do trabalho com HAVs Diversas modalidades de intervenção podem ser realizadas em um CREAS tais como atendimentos com as famílias visitas a domicílio trabalhos de articulação com a rede algumas atividades em grupo BRASIL 2011 Nos casos de violência este trabalho é realizado ao público tido como vítima da situação majoritariamente como foi afirmado pelos profissionais desta unidade No caso da segurança pública podemos dizer que a atual caracterização dos atendimentos tem apresentado dificuldades de suprir as demandas da própria sociedade Há demandas por criminalização e punição de ações violentas porém também há pedidos de ações que sigam por outros rumos em prol a soluções menos punitivas Por diversas vezes as vítimas ao depor nas delegacias de Florianópolis escolhem pela não criminalização dos autores como exposto por um dos entrevistados Existe muitas vezes um interesse que se faça intervenção na outra parte sem que necessariamente ocorra a situação da criminalização né Que são os processos judiciais que por conta da competência essencial da polícia civil é aquilo que a gente faz é aquilo que é a nossa característica nossa função constitucional é fazer a apuração de crimes logo a incriminalização Processos de criminalização preliminar né Então muitas delas acontece de pedirem uma intervenção que não seja nesse nível da punição estatal de políticas de encarceramento penal né Existe isso Psicólogo da Segurança PúblicaDelegacias Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 306 Diversos fatores podem levar a esta escolha atravessamentos econômicos e sociais não podem ser desconsiderados Toneli Beiras e Ried 2017 afirmam que uma mudança radical dentro de uma relação violenta não acontece sem trabalhar a parte agressora Porém esta atuação pode não se restringir apenas a punição ainda que ela seja muito importante em diversos casos e sim também pode incluir trabalhos reflexivos e de transformação social e relacional com estes sujeitos Ambas as pessoas envolvidas na relação devem expressar o desejo da mudança de panorama dentro do relacionamento Embora estes autores afirmem que poucos consideram a necessidade de dar suporte também os autores de violência a posição das vítimas que buscam o trabalho também com estes homens mostra uma percepção de que a judicialização não é a única via desejada Neste sentido não fornecer uma alternativa pode se tornar mais uma violência com estas mulheres já fragilizadas em suas defesas Com uma atenção maior a estes casos e um caminho não judicial um apoio poderia ser dado a esse casal e ambos os lados poderiam trabalhar sobre aspectos relacionais refletindo sobre o fim deste relacionamento ou sobre uma separação judicial Apenas manter este homem preso pode não ser a melhor solução Mas quais os desafios institucionais que estão presentes para efetivamente poder haver ações diferenciadas focadas na relação no autor e na promoção de cidadania e melhora das relações sociais nos espaços de segurança pública Caberiam estas ações em uma instituição que majoritariamente é focada na investigação criminal Há olhares diferentes dentro da segurança pública para ações que possam se aproximar desta demanda São desafios que provocam a necessidade de repensar a função da instituição e as possibilidades inovadoras de ação que possam estar mais integradas às demandas e a complexidade da temática em questão Neste sentido vale apontar a relação que ocorre no Estado de Santa Catarina entre ações de pesquisa e extensão em parceria entre a universidade Universidade Federal de Santa Catarina e a Polícia Civil no sentido de aprimorar ações inovadoras no âmbito do projeto Polícia Civil por Elas Este projeto busca avançar neste desafio institucional propondo ações de grupos reflexivos com homens com mulheres e ações coletivas e preventivas em escolas assim como capacitações profissionais no âmbito das violências e questões de gênero Ações como esta ainda que incipientes podem provocar mudanças importantes nesta realidade e oportunidades de capacitação profissional Seguindo esta temática de formação e capacitação profissional osas entrevistadosas reconhecem a necessidade do trabalha com os HAVs mas afirmam que não saberiam como iniciar este processo Esta afirmação ocorreu especialmente no caso dos profissionais da assistência social Foi levantada a possibilidade do trabalho com grupos reflexivos assim Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 307 algumas preocupações foram trazidas pelos profissionais na roda de conversa realizada no CREAS todo discurso que a gente colocou no começo que a gente vê o homem no contexto familiar como ele está inserido como essa violência o caso dessa violência traz uma família como tirar o homem dessa família e trabalhar ele num grupo Eu não sei eu não consigo ver isso partido ainda isolado de eu trabalhar essa família pronta para trabalhar esse tipo de grupo eu não teria capacidade técnica para mim ficar tocando esse grupo porque a forma de trabalho que eu acredito é nessa o homem agressor dentro do contexto que ele vive Participante Grupo CREAS Roda de Conversa A partir desta fala podemos separar duas questões a dificuldade de se realizar um trabalho focado somente no homem e a de se trabalhar com grupos Essa fala se fez presente tanto nos profissionais da assistência social quanto da segurança pública Muitos encontram dificuldades inclusive nas buscas ativas por materiais acerca da temática Estes dados nos trazem reflexões tais como Por que as capacitações não são feitas E por que materiais não são encontrados Por que o trabalho com os homens autores de violência é posto de lado O que faz com que embora ocorram pesquisas na área e os profissionais percebam a necessidade de realizar um trabalho com os HAVs esses serviços não ocorram Dentro das universidades têm sido realizados estudos voltados aos homens autores de violência porém o dilema da incorporação da produção científica universitária aos serviços públicos se faz presente nesse caso como relatado a seguir Agora algo específico para lidar com o homem agressor né o autor de violência muito pouco inclusive pensar que a gente não tem nenhuma capacitação É zero assim de dizer como acessar essa pessoa de como entrar em contato com ela de como realizar esse encontro ou de como trabalhar as questões que envolvem a violência pouquíssimo né Psicólogo do CREAS Durante as entrevistas também se evidenciou a dificuldade de inserção do homem autor de violência ou não no contexto familiar Um possível efeito dessa fala de incorporação dos homens nas questões de cuidados domésticos e familiares pode ser a não adesão destes aos serviços de assistência social Uma das alternativas para o trabalho com HAVs é o grupo reflexivo Nas entrevistas alguns profissionais da rede afirmaram não se sentirem preparados conceitualmente para realizálos Dentre aqueles que relataram já executar essa metodologia afirmaram não ter disposição para se dedicarem aos grupos tendo em vista principalmente a alta demanda Percebese a necessidade de salientar a importância e eficácia deste trabalho aos profissionais em campo para que estes possam encontrar formas de realizálos Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 308 Além disso para estes profissionais a dificuldade de adesão dos usuários baseada em experiências prévias seria um grande impeditivo A gente fez algumas experiências de grupo que acabaram assim as pessoas não aderem vem pouquíssimos né e também uma questão estrutural na maioria das vezes tem que ser à noite tem que ter alguns outros recursos que a gente não acaba acaba não demandando condições assim é que o grupo a gente avalia de um empreendimento grande assim de forças né com pouco resultado nas experiências que a gente já teve assim Participante Grupo CREAS Roda de Conversa A dificuldade de um trabalho de grupos com baixa adesão e as dificuldades vinculadas às próprias naturezas estruturais do serviço como horário equipe disponível entre outros tem impedido esses profissionais de realizarem um trabalho grupal com HAVs ou qualquer outra iniciativa inovadora Entretanto os profissionais têm se mostrado cientes da necessidade de trabalhar com estes homens e também interessados em aprender novas metodologia de trabalhos grupais 5 CONSTRUÇÕES SOCIAIS De volta a algumas das discussões trazidas no início desse texto apontamos como determinados estudos da área de gênero e feminismos têm pensado a questão da violência contra mulheres de modo a compreender como as construções de certas noções de masculinidades e feminilidades sustentam determinadas práticas e orientam estratégias de combate a esse fenômeno Nesse eixo temático buscaremos analisar portanto como alguns dosas entrevistadosas relatam os efeitos e impactos de algumas destas noções no trato com HAVs em sua rotina profissional A partir de autores e autoras abordados no início deste texto buscamos apontar como o sistema de relações de gênero inclusive no Brasil organizase e se mantém de forma a perpetuar determinados privilégios aos lidos enquanto homens e à própria desigualdade entre os gêneros Tal manutenção desse sistema está envolto de diversos aspectos socioculturais e inclui uma série de comportamentos e leituras a partir de noções de gênero Relacionase também com uma certa naturalização de condutas violentas por partes dos homens recuperando Muzcat 2008 até a ideia de cuidado Estas questões recaem e refletem na atuação dos profissionais que lidam direta ou indiretamente com HAVs como podemos exemplificar no trecho a seguir É cultural né É uma cultura que a gente tem né De que o homem tem que ser forte tem que ser poderoso tem que ser a figura mais ativa na família Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 309 e muitas vezes em função de alguma impotencialidade que esse homem se perceba e diante dessa cobrança social tão grande ele vá agir com violência frente a essa situação Né e por outro lado tem uma mulher que está imersa nessa cultura que tem que ser submissa que tem que cuidar dos filhos então é atrelada a questão de gênero ne essa discussão Participante Grupo CREAS Roda de Conversa Neste trecho retirado da roda de conversa reflexiva feita com profissionais da assistência social a profissional nos conta acerca de sua noção de feminilidade e masculinidade o que inclui determinados comportamentos e estilismos concernentes a cada um tal como a divisão de papéis em um determinado modo de família assim como dificuldades e até mesmo ideias de funcionamentos intrapsíquicos de homens Isto nos remete a estudos clássicos como os de Saffioti 1987 quando ela afirma que o homem será lido enquanto macho à medida que for capaz de reprimir e disfarçar seus sentimentos e conseguir seguir rigidamente a noção de que homem não chora Dentro desse modelo de masculinidade posto como modelo cultural ideal estão também incluídos aspectos como ser viril provedor agressivo ativo sexualmente dentre outras características masculinas Este modelo segundo Almeida 1996 em outro estudo de décadas atrás é inatingível e tem um efeito controlador sobre homens e mulheres Ainda que as ideias apresentadas tenham fundamentação em determinados estudos em maior ou menor grau cabe compreender que estas impactam sobre os homens e HAVs e sobre os profissionais refletindo diretamente na sua atuação com esse público Desse modo estas construções sociais acerca de masculinidades orientam as formas de captação desses homens o tipo de atendimento prestado por estes profissionais e até a agenda de serviços voltados para essas pessoas como vemos no trecho a seguir retirado de um dos grupos focais Uma das dificuldades acho que é uma das questões a dificuldade de trazer o homem o possível autor de violência porque uma que é para falar como é que ele se sente culturalmente muitas vezes o homem já é complicado ele falar como se sente a maioria dos atendimentos para eles é difícil mexe muito e aí a questão de que o homem culturalmente trabalha é o provedor e as mulheres possuem mais a característica do cuidado Participante Grupo CREAS Roda de Conversa Cardoso 2018 em sua dissertação já aponta algumas dificuldades de articulação de serviços com HAVs nos serviços de assistência social dentre estas a dificuldade a aproximação com este público de forma a realizar um trabalho que vise ressignificar relações de gênero Algumas dessas noções recaem acerca do cuidado desses sujeitos consigo e com os outros Em seu trabalho ele destaca que o lugar de cuidado não é atribuído à certas noções de masculinidades tanto o cuidado com o outro como consigo o que dificulta em grande parte o Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 310 trabalho destas pessoas Este aspecto aparece de certa forma na fala de um dos entrevistados profissional de um CREAS Tem muita resistência por parte de quem é autor de violência a algum atendimento a alguma acolhida Então pra mim um desafio grande é como promover como estabelecer vínculo com essa pessoa quando não é demanda dela Psicólogo CREAS Todavia cabe ainda destacar que existem serviços os quais compreendendo essas dificuldades e a complexidade da temática têm tentado promover algumas estratégias que visem aproximar esses homens dos serviços de assistência social de modo a promover o acolhimento desse público e trabalhar as questões de gênero em violências a partir das noções já colocadas acima como relatado no estudo de Cardoso 2018 Em vias de comparação no que diz respeito à segurança pública nos serviços que realizam esse tipo de atendimento às estratégias de captação diferem daquelas utilizadas no âmbito da assistência social Em um mapeamento nacional de serviços voltados para HAVs no Brasil Beiras Nascimento e Incrocci 2019 apontam que 14 dos grupos de HAVs no Brasil correspondente a mais de 60 dos grupos investigados oferecidos por parte de instituições policiais e do poder judiciário utilizam a participação de grupos como parte da pena imposta àqueles homens condenados por crimes de violência de gênero Fenômeno que também é encontrado em experiências internacionais Geldshläger et al 2010 Embora esses grupos atestem a efetividade desses métodos é importante ressaltar que uma vez que não implicam uma participação voluntária dos homens ainda recai sobre certa judicialização da violência de gênero contra mulheres denunciando um abismo a ser percorrido em termos culturais e a necessidade de instigar outros âmbitos da rede pública de atuar com esse público CONSIDERAÇÕES FINAIS A fim de sintetizar alguns dos pontos e problemáticas trazidos buscamos identificar alguns questionamentos e reflexões a partir de tensionamentos denunciados em instituições e serviços estaduais que são legalmente vinculados ao combate à violência contra as mulheres de modo a lançar pistas que possibilitem avanços no tema Assim sendo em linhas gerais pudemos observar que muito pouco tem sido feito no âmbito da atenção aos HAVs em Florianópolis e região tanto na segurança pública quando na assistência social Ainda que este não tenha sido um estudo exploratório e exaustivo dos serviços mencionados a partir das entrevistas foi possível identificar que mesmo que estes Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 311 serviços existam não dão conta da proposta uma vez que tem dificuldade de lidar com as outras diversas demandas as quais são localizadas como prioridade Cabe destacar também que ao menos segundo as narrativas analisadas nesse texto a falta de ações e serviços voltados para esse público decorre de problemas institucionais organizacionais e culturais que fogem da competência e controle dos profissionais de modo com que não tenham tempo disponibilidade estrutura ou capacitação para este tipo de serviço ainda que haja desejo destes para trabalhar com HAVs Assim sendo apontamos enquanto possíveis caminhos a serem seguidos de forma a dirimir algumas dessas questões a necessidade de aprimorar a articulação em rede e evidenciar a complexidade desta conexão assim como considerar os limites e possibilidades de interlocuções a partir das missões institucionais de cada aparelho do Estado Ainda que seja um estudo localizado visibiliza aspectos que já vem sendo problematizados academicamente em especial aspectos culturais de construção social do gênero como norteadores dos limites e também possibilidade de ações neste campo Ressalta ainda a importância de melhor conexão dos estudos acadêmicos e da prática profissional para manter inovações de práticas Por outro lado tornase muito relevante a necessidade de pensar relação entre as categorias masculinidades violências e cuidados para que se possa ampliar ações de transformação de relações de gênero e ir além da criminalização e culpabilização destes sujeitos ampliando possibilidades de ações Para isso fazse necessário desnaturalizar algumas préconceitos dicotomias e entendimentos socioculturais sobre a complexa dinâmica entre homens e mulheres evidenciando o gênero como fator analítico interpretativo complexo e relevante para pensar e repensar ações no âmbito da violência contra mulheres REFERÊNCIAS ALMEIDA Miguel Vale de Gênero masculinidade e poder revendo um caso de sul de Portugal Anuário Antropológico Rio de Janeiro n 95 p 161189 1996 BANDEIRA Lourdes Maria Violência de gênero a construção de um campo teórico e de investigação Sociedade e Estado Brasília v 29 n 2 p 449469 Aug 2014 DOI httpdxdoiorg101590S010269922014000200008 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0102 69922014000200008lngennrmiso Acesso em 10 Sept 2019 BASTOS Liliana Cabral BIAR Liana de Andrade Análise de narrativa e práticas de entendimento da vida social DELTA São Paulo v 31 n spe p97126 Aug 2015 DOI httpdxdoiorg1015900102445083363903760077 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0102 44502015000300006lngennrmiso Acesso em 10 Sept 2019 Coleção Não há lugar seguro estudos e práticas sobre violências domésticas e familiares V 1 312 BEIRAS Adriano NASCIMENTO Marcos INCROCCI Caio Programas de atenção a homens autores de violência contra as mulheres um panorama das intervenções no Brasil Saude e Sociedade São Paulo v 28 n 1 p 262274 Mar 2019 DOI httpdxdoiorg101590s010412902019170995 Disponível em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS0104 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