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DOI 1012957palimpsesto202260119 Hibisco Roxo o espaço íntimo de uma flor rara Daniela Severo de Souza Scheifleri RESUMO Este artigo traça um paralelo entre as casas de Eugene e de Tia Ifeoma personagens do livro Hibisco Roxo publicado em 2003 de Chimamanda Ngozi Adichie à luz da concepção bachelardiana BACHELARD 2008a de casa como espaço propiciador e acolhedor de subjetividades Através da análise desses espaços o artigo mostra como os efeitos duradouros do colonialismo incidem sobre a vida pessoal e doméstica dos personagens do livro impondo a eles uma identidade supostamente estável e assim tentando impedilos de descobrirem a si mesmos Eugene e Ifeoma ajudamnos a ilustrar como o colonialismo se deu na Nigéria além de ilustrarem a diferença de gênero dentro da estrutura colonialista e machista mostrando como a adesão à lógica imperialista depende do quanto se acredita nela e dos ganhos que se tem ou não Palavraschave Literatura póscolonial Casa Identidade ABSTRACT This paper compares the homes of Eugene and Aunt Ifeoma characters from the book Purple Hibiscus published in 2003 by Chimamanda Ngozi Adichie The comparison is based on Gaston Bachelards 2008a concept of home as a space that allows and shelters subjectivities Through the analysis of such spaces the paper shows how the lasting effects of colonialism impact the personal and domestic lives of the characters imposing to them a supposedly stable identity and thus trying to prevent them from discovering themselves Eugene and Ifeoma help us to illustrate how colonialism took place in Nigeria and show the gender differences between them within the colonialist and sexist structure by displaying how adherence to the imperialist logic depends on how much you believe in it and also on the gains that are achieved or not from it Keywords Postcolonial literature Home Identity INTRODUÇÃO i Licenciada em Letras e Literaturas de Língua Portuguesa pela UFRGS e Mestre em Literaturas Pós coloniais pela mesma universidade Professora de Língua Cultura e Literatura Italiana ORCID httpsorcidorg0000000212333940 danischeiflergmailcom Daniela Severo de Souza Scheifler Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 276 Mais do que nunca as literaturas ditas póscoloniais ou seja as literaturas que nascem a partir do processo de colonização europeia têm produzido e falado das estruturas de dominação e colonização Tais estruturas perduram até os nossos dias na forma de dominação econômica que inicialmente era feita através da exploração dos corpos e dos recursos das terras invadidas e presentemente segue por intermédio dos tratados comerciais e econômicos e pela falta de retratação histórica com relação aos abusos e crimes cometidos no passado Essa brutal investida fora da Europa ficou conhecida pelo termo colonização ou imperialismo Tendo sido uma das maneiras por meio das quais se manifestou a pretensão europeia ao domínio universal a colonização foi uma forma de poder constituinte cuja relação com o solo com as populações e com o território associou de maneira inédita na história da humanidade as três lógicas das raças da burocracia e dos negócios commercium MBEMBE 2018 p 109 É interessante destacar ainda que para Ana Mafalda Leite o termo póscolonialismo pode ser entendido como incluindo todas as estratégias discursivas e performativas criativas críticas e teóricas que frustram a visão colonial incluindo obviamente a época colonial o termo é passível de englobar além dos escritos provenientes das excolônias da Europa o conjunto de práticas discursivas em que predomina a resistência às ideologias colonialistas implicando um alargamento do corpus capaz de incluir outra textualidade que não apenas das literaturas emergentes como o caso de textos literários da exmetrópole reveladores de sentidos críticos sobre o colonialismo LEITE 2012 p 130 A herança desse passado brutal no qual a força do império europeu passou a imperar é sentida até hoje pois seguimos vivendo em um mundo estruturalmente racista e pleno de colonialidades espólio do tráfico de escravos da divisão racial do trabalho e do saque dos continentes americano e africano Para Quijano 2005 a colonialidade é o legado da colonização Por meio do conceito de colonialidade é possível identificar as marcas da dominação do colonizador que não desparecem com o fim das colônias A dominação territorial racial e cultural que se deu durante o período da colonização segue reproduzindo as hierarquias de poder entre colonizador e colonizado mesmo após as independências É nesse cenário póscolonial que as literaturas africanas de mulheres encontraram terreno fértil para proliferação e contestação das velhas identidades HALL 2006 p 7 Hibisco Roxo o espaço íntimo de uma flor rara Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 277 Essas são vozes excêntricas HUTCHEON 1947 p 90 pois estão à margem das vozes comumente ouvidas as de homens brancos europeus ou norteamericanos de Deus e do Estado e ainda em processo de libertação mas vêm problematizando do seu ponto de vista periférico os discursos eurocentrados e totalizantes Este artigo portanto pretende mostrar através da análise das casas dos irmãos Eugene e Ifeoma na concepção da Poética do Espaço de Bachelard 2008a como esse processo de dominação incide nas vidas doméstica e íntima dos personagens do livro Hibisco Roxo impedindo ou facilitando de acordo com o tipo de casa o encontro com o próprio indivíduo com uma identidade nova que não seja aquela supostamente estável imposta por um dos personagens Eugene Papa o pai de Kambili e Jaja Ambos adolescentes os irmãos vivem um processo de construção de identidade Vale lembrar que a ideia de casa ainda que bastante representada no romance através de Eugene e Ifeoma não se limita apenas ao espaço físico e concreto mas também se dá através dos sonhos pois o espaço íntimo dos personagens ultrapassa paredes e muros 1 HIBISCO ROXO Chimamanda Ngozi Adichie escritora nigeriana já bastante conhecida e aclamada nos dias de hoje publica seu primeiro romance Hibisco Roxo em 2003 Nele a autora denuncia os mecanismos de dominação que a colonização britânica dolorosamente edificou na Nigéria Sob a forma de protetorados os ingleses apoiavam os líderes locais e colonizava o país de forma indireta através desses mesmos líderes que impunham o modo de vida britânico aos nigerianos além de explorálos Eugene um dos personagens do romance foi uma criança educada através do protetorado britânico assim como Ifeoma sua irmã Dessa experiência de colonização resulta então a dificuldade de Eugene de conviver com as tradições autóctones da região onde nasceu ele acabou por adotar a cultura britânica forçosamente incorporada e ditava os padrões de vida do período Kambili é a protagonista do romance Ela tem 15 anos e é também a narradora em primeira pessoa Ela é de uma família rica e vive em Enugu na Nigéria com os pais e o irmão Jaja Seu pai o já citado Eugene é o proprietário do único jornal independente do país e de muitas fábricas e considerado um modelo de generosidade e de coragem política Daniela Severo de Souza Scheifler Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 278 Mas é também um católico fanático que impõe uma terrível disciplina aos seus familiares e os pune com castigos físicos cruéis A história começa fazendo referência indireta a um outro livro O mundo se despedaça 1958 de Chinua Achebe As coisas começaram a se deteriorar lá em casa quando meu irmão Jaja não recebeu a comunhão e Papa atirou seu pesado missal em cima dele e quebrou as estatuetas da estante ADICHIE 2011 p 9 O mundo se despedaça conta a história de um clã que antes mesmo da colonização já possuía suas fraturas e seus problemas e se desintegra de vez depois da chegada do homem branco Na primeira linha de Hibisco Roxo Eugene joga um missal um livro litúrgico sobre as estatuetas de Beatrice Mama sua esposa depois que o filho Jaja recusase a comungar Kambili e Jaja assim como a mãe Beatrice vivem sob o controle e os abusos psicológico e físico do pai Sinto muito que suas estatuetas tenham quebrado Mama Ela assentiu rapidamente e depois balançou a cabeça para indicar que as estatuetas não eram importantes Mas eram sim Anos antes quando eu ainda não entendia eu me perguntava por que ela limpava as estatuetas sempre depois de eu ouvir aquele som que parecia ser de alguma coisa batendo na porta pelo lado de dentro Os chinelos de borracha de Mama não faziam barulho nos degraus mas eu sabia que ela havia ido lá pra baixo quando ouvia a porta da sala de jantar sendo aberta Eu descia e a via parada ao lado da estante de vidro com um pano de prato encharcado de água e sabão Ela dedicava pelo menos 15 minutos a cada estatueta de bailarina Nunca havia lágrimas em seu rosto Da última vez há apenas três semanas quando seu olho inchado ainda estava da cor preto arroxeada de um abacate maduro demais Mama rearrumara as estatuetas depois de limpálas ADICHIE 2011 p 17 Há uma ruptura no seio da família de Eugene De certa forma as estatuetas possibilitavam que Beatrice elaborasse a violência e o abuso Agora nem isso ela possui à disposição A violência de Eugene ultrapassara todos os limites Chinua Achebe foi uma criança que viveu sob o protetorado britânico Ele também publicou o livro A educação de uma criança sob o protetorado britânico uma autobiografia na qual conta sua jornada pessoal durante esse processo da colonização britânica que foi vivido por ele e também pelo personagem Eugene de Hibisco Roxo Em vários de seus artigos Achebe expõe o que pensava do colonialismo A meu ver é um grave crime qualquer pessoa se impor a outra apropriarse de sua terra e de sua história e ainda agravar esse crime com a alegação de que Hibisco Roxo o espaço íntimo de uma flor rara Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 279 a vítima é uma espécie de tutelado ou menor de idade que precisa de proteção É uma mentira total e deliberada Parece que o agressor sabe disso e é por essa razão que ele às vezes procura camuflar seu banditismo com essa hipocrisia tão descarada ACHEBE 2012 p 28 É o que acontece com Eugene educado de modo bastante violento por padres missionários que o fazem rejeitar e demonizar as tradições igbo1 E no romance vêse como essa violência recebida propagase ao longo das gerações e do tempo no seio da sua família fazendo com que esse pequeno microcosmo a família também se despedace No entanto apesar do estilhaçamento da família nuclear Kambili e Jaja possuem ainda Tia Ifeoma e seus primos da casa dos quais trazem os hibiscos roxos que começam a florescer Mais perto da casa os coloridos arbustos de hibiscos se esticavam e tocavam uns aos outros como se estivessem trocando pétalas Os arbustos de hibiscos roxos começaram a florescer lentamente porém a maioria das flores ainda era vermelha ADICHIE 2011 p 15 É bem verdade que os hibiscos roxos são raros e ainda são poucos no jardim da casa de Kambili mas aparecem como metáfora de sementes que foram lançadas e vingaram Vingaram e estão lentamente a florescer assim como Kambili que lentamente desabrocha com a ajuda da tia e da prima a desestabilizar uma narrativa opressora 11 Eugene o pai dominador Eugene estudou com padres católicos quando criança e em função dessa educação que recebeu do protetorado britânico tornouse uma espécie de fanático religioso Dentro de sua casa Eugene reedita as opressões que ele mesmo sofreu como a ocasião em que não permite que sua esposa e filhos cultivem as tradições igbo impedindo os filhos de visitarem o avô O pai de Eugene passa a ser considerado um pagão do qual a família deve manter absoluta distância Em função dessa problemática de instaurar no seio da sua família as opressões que ele mesmo sofreu Eugene causa os sofrimentos e a ruína do seu núcleo familiar uma vez que seus filhos têm vontade de visitar o avô a tia e os primos e não entendem o impedimento do pai Protagonista e narradora de Hibisco Roxo Kambili é uma menina que vive sob os ditames do pai E as ordens impostas por ele são muitas A menina até conversa em igbo Daniela Severo de Souza Scheifler Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 280 com a mãe e o irmão mas somente em casa e nunca em público seguindo as ordens do pai A liberdade de Kambili é bastante cerceada e vislumbramos a sua busca de entendimento e por que não dizer de liberdade no desenrolar da sua narrativa Eugene é uma figura poderosa dentro e fora de casa que impõe uma disciplina rígida à Kambili e a impede de socializar com outras pessoas inclusive com suas colegas de escola Além disso ela tem de ser sempre a primeira aluna da classe Além disso sendo impedida de se relacionar com as colegas as mesmas a veem como metida e arrogante Não sabem que ela não pode conversar com elas por ordem do pai Uma vez Kevin dissera a Papa que eu havia demorado alguns minutos a mais para sair e Papa batera nas minhas duas bochechas ao mesmo tempo As palmas imensas da mão dele deixaram marcas paralelas em meu rosto e um zumbido nos ouvidos durante dias Por quê perguntou Ezinne Se ficar mais um pouco e conversar com as meninas talvez elas descubram que você não é metida Eu gosto de correr só isso repeti ADICHIE 2011 p 58 E Kambili segue sendo a primeira aluna da classe até o dia em que Eugene espanca Beatrice grávida e esta perde o bebê Jaja e Kambili ouvem as pancadas e depois veem o sangue pelo chão Desde esse fato Kambili passa a enxergar sangue nos livros e não consegue se concentrar para estudar instalase um trauma e a menina sofre também com o fato de pela primeira vez não conseguir ser a primeira da classe As irmãs nos davam nossos boletins sem fechálos Eu ficara em segundo lugar na turma Estava escrito em algarismos 225 Minha professora irmã Clara escrevera Kambili tem inteligência acima da média e é silenciosa e responsável A diretora Madre Lucy escrevera Uma aluna brilhante e obediente e uma filha que merece o orgulho dos pais Mas eu sabia que Papa não ia ficar orgulhoso ADICHIE 2011 p 44 A obediência ao pai deriva muito do medo de ser castigada mas também se deve ao respeito criado por uma história única apresentada Durante seus sermões o padre Benedict sempre falava do papa do meu pai e de Jesus nessa ordem Ele usava meu pai para ilustrar os evangelhos ADICHIE 2011 p 10 O Papa Jesus e Eugene são as figuras masculinas de autoridade a quem se deve respeito e adoração e dos quais se sente medo A autoridade e a verdade provêm deles e somente deles Chimamanda Ngozi Adichie em O perigo de uma História única diz Hibisco Roxo o espaço íntimo de uma flor rara Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 281 É impossível falar sobre a história única sem falar sobre poder Existe uma palavra em igbo na qual sempre penso quando considero na estrutura do poder no mundo nkali É um substantivo que em tradução livre quer dizer ser maior do que outro Assim como o mundo econômico e político as histórias também são definidas pelo princípio de nkali como elas são contadas quem as conta quando são contadas e quantas são contadas depende de muito poder ADICHIE 2019 p 2223 Daí decorre que a distribuição de poder na família de Kambili é completamente desequilibrada Sua mãe sofre violência doméstica e se assiste à sua paralisia na defesa de si mesma e de seus filhos ainda que o desfecho da história mostre uma atitude radical da parte dela A história mostra uma sociedade profundamente machista tanto a ocidental dominadora e colonialista quanto a africana dominada Kambili é totalmente subjugada ao poder e à violência de Eugene que por sua vez é também vítima dos processos colonizadores a Nigéria teve suas cidades invadidas por missionários brancos que substituíam todos os chefes de aldeia que não colaborassem com a missão civilizadora da catequização Essa lógica colonial perpetuase até hoje quando se privilegia uma religião estrangeira em detrimento de uma local e ancestral quando se valoriza a língua e os costumes do colonizador em demérito da língua e mesmo do sotaque local e quando por exemplo se persegue uma religião de matriz africana Aquilo era um mau sinal Papa quase nunca falava em igbo e embora Jaja e eu usássemos a língua com Mama quando estávamos em casa ele não gostava que o fizéssemos em público Precisávamos ser civilizados em público ele nos dizia precisávamos falar inglês A irmã de Papa tia Ifeoma disse um dia que Papa era muito colonizado Disse isso de forma gentil e indulgente como se não fosse culpa de Papa como quem fala de alguém que tem um caso grave de malária e por isso grita coisas sem nexo ADICHIE 2011 p 20 Quando Papa vai à escola depois de Kambili receber o boletim que mostra que ela é a segunda aluna da classe notase através da linguagem o quanto Eugene é sensível ao poder do colonizador o quanto sofre de um complexo de inferioridade Papa mudou de sotaque quando respondeu adotando uma pronúncia britânica como fazia quando falava com o padre Benedict Ele se mostrou gracioso e ansioso por agradar como sempre era com os religiosos principalmente os religiosos brancos Gracioso como quando deu o cheque para a reforma da biblioteca do colégio Papa explicou que viera apenas ver minha sala e irmã Margaret pediu que ele a chamasse se precisasse de alguma coisa ADICHIE 2011 p 52 Daniela Severo de Souza Scheifler Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 282 Em Peles negras máscaras brancas Franz Fanon no capítulo O negro e Linguagem diz Todo povo colonizado isto é todo povo no seio do qual nasceu um complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade culturaltoma posição diante da linguagem da nação civilizadora isto é da cultura metropolitana FANON 2008 p 34 Eugene exemplifica muito bem como se deu o colonialismo na Nigéria Sendo ele um homem poderoso e influente dono de um jornal que contesta o sistema ditatorial tornouse também um fanático religioso apreciador da língua e de muitos usos e costumes da cultura do colonizador Durante o desenrolar do romance assistimos ao pano de fundo de um golpe militar e do início da ditadura de Sani Abacha que durou de 1993 a 1998 Eugene é violento controlador e poderoso mas ao mesmo tempo é visto como benevolente bondoso e generoso pois faz muitas doações aos pobres e à igreja Demonstra portanto um comportamento antitético pois se apresenta de um modo extremamente agressivo no espaço privado e no espaço público como um empresário generoso Como homem dentro da estrutura machista na qual vive ele goza de muitos privilégios ao adotar usos e costumes do branco colonizador É um mal que se confunde com o bem Eugene não permite que os filhos convivam com outras pessoas pois assim fica mais fácil controlálos e sustentar a sua versão dos fatos sobre a vida a religião e todos os outros aspectos que incorporou do colonizador Como dito anteriormente Eugene foi educado por padres missionários e na narrativa entendese que foi a partir de então que ele sofreu a violência que agora impõe Uma vez cometi um pecado contra o meu corpo contou ele E o bondoso padre aquele com o qual morei quando estudava em St Gregorys ele entrou e me viu Pediu que eu fervesse água para o chá Colocou a água numa tigela e me fez pôr as mãos nela Nunca mais pequei contra o meu corpo de novo O bondoso padre fez isso pelo meu bem explicou ADICHIE 2011 p 209 Mais tarde Eugene também queima a própria filha com água quente da mesma forma que fizeram com ele em nome de uma disciplina rígida e violenta imposta à família espécie de herança da educação colonial que recebeu E tudo porque Kambili tivera contato com o seu avô o pagão com o qual não se poderia ter contato na visão de Eugene Hibisco Roxo o espaço íntimo de uma flor rara Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 283 Entrei na banheira e fiquei parada olhando para ele Mas Papa jamais me pedira para ficar de pé dentro da banheira Então percebi a chaleira no chão ao lado dos pés de Papa a chaleira verde que Sisi usava para ferver água para o chá e para o garri aquela que apitava quando a água começava a ferver Papa apanhoua Você sabia que seu avô iria para Nsukka não sabia ADICHIE 2011 p 206 Kambili é uma menina bastante inteligente e reflexiva Ela sofre as violências vindas do pai psicológicas e físicas sem conseguir reagir pois existe também e é normal que haja bastante afeto pelo pai Kambili vive num turbilhão de sentimentos E a própria violência a paralisa assim como paralisa a sua mãe Sente medo e senso de inadequação e também sofre com o silenciamento que o pai impõe a todos No entanto Kambili carrega dentro de si inúmeras perguntas e reflexões que desestabilizam a narrativa que o pai impõe Ela cultiva um espaço de subjetividade seu a despeito do entorno hostil e da intromissão do pai nesse espaço 12 A casa de Eugene o espaço de opressão A percepção dos espaços é algo que chama bastante atenção no romance A casa espaçosa rica asséptica mas também fria e branca de Kambili a oprime e não deixa espaço para que ela possa cultivar nenhuma subjetividade verdadeiramente sua Papa gostava de ordem Isso ficava patente nos próprios horários na forma meticulosa como ele desenhava as linhas em tinta negra cortadas horizontalmente a cada dia separando a hora de estudar da hora da sesta a da sesta da hora de ficar com a família a de ficar com a família da hora das refeições a das refeições da hora de rezar a de rezar da hora de dormir Papa revisava nossos horários com frequência ADICHIE 2011 p 30 Eugene ordena a rotina dos filhos em uma ordem diurnaapolínea quase militarista sem deixar brechas para o caos para a desordem para o devaneio e consequentemente para o espaço íntimo dos personagens Kambili pisa em ovos dentro da própria casa e estabelece uma comunicação muda com o irmão uma vez que não é permitido falar o que se pensa sobre os próprios sentimentos e impressões Quando fica decidido que Kambili e Jaja irão à casa de Tia Ifeoma os irmãos não demonstram nenhuma emoção na frente do pai nem felicidade nem apreensão por nunca terem passado um dia longe de casa Mas o fazem depois entre eles Daniela Severo de Souza Scheifler Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 284 Você quer ir para Nsukka perguntei quando chegamos lá em cima Quero disse ele Os olhos de Jaja disseram que ele sabia que eu também queria ir Não consegui encontrar palavras em nossa língua dos olhos para explicar que eu sentia um nó na garganta só de pensar em ficar cinco dias sem ouvir a voz de Papa ou seus passos na escada ADICHIE 2011 p 118 Vale lembrar que além de não se sentirem confortáveis em expressar emoções na frente do pai ninguém pergunta aos irmãos diretamente se querem de fato passar cinco dias na casa da tia Do ponto de vista espacial as distâncias também são grandes A casa grande branca e asséptica de Eugene fica longe dos olhares e dos sons da rua distancia se imponente dos que a veem de fora Nosso jardim era tão grande que nele caberiam cem pessoas dançando atilogu tão espaçoso que cada pessoa poderia dar piruetas de praxe e cair nos ombros da pessoa seguinte Os muros da casa encimados por fios elétricos espiralados eram tão altos que eu não podia ver os carros passando em nossa rua ADICHIE 2011 p 15 Parafraseando Bachelard 2008b na Poética do Devaneio não há aqui espaço para o repouso feminino logo não há espaço para a ânima A linguagem é sempre censurada não se pode falar em igbo já que não é civilizado fazêlo nem cultivar as canções e tradições locais O excesso de atividades as horas todas tomadas e ordenadas em uma planilha são as horas da atividade social essencialmente masculina BACHELARD 2008b p 57 A casa de Papa é marcada pelos silêncios e pela violência constante Kambili e Jaja conhecem todos os sons da casa e estranham muito quando algo foge à normalidade estabelecida por Eugene como quando o patriarca espanca Beatrice grávida e esta perde o bebê Eu estava no meu quarto quando ouvi os sons Pancadas pesadas e rápidas na porta talhada à mão do quarto dos meus pais Imaginei que a porta estava emperrada e que Papa estivesse tentando abrila Se imaginasse aquilo sem parar talvez virasse verdade Eu me sentei fechei os olhos e comecei a contar Contar fazia o tempo passar um pouco mais rápido fazia com que não fosse tão ruim Às vezes acabava antes de eu chegar ao número vinte Eu já estava no dezenove quando o som parou Ouvi a porta se abrindo Os passos de Papa na escada pareceram mais pesados mais desajeitados do que o normal ADICHIE 2011 p 57 Hibisco Roxo o espaço íntimo de uma flor rara Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 285 Saí do quarto no mesmo segundo que Jaja saiu do dele Ficamos no corredor vendo Papa descer Mama estava jogada sobre seu ombro como os sacos de juta cheios de arroz que os empregados da fábrica dele compravam aos montes na fronteira com Benin Tem sangue no chão disse Jaja Vou pegar a escova no banheiro Limpamos o filete de sangue que fez uma trilha no chão como se alguém houvesse carregado uma jarra furada de tinta vermelha lá pra baixo Jaja escovou o chão e eu passei um pano depois Mama não voltou pra casa naquela noite ADICHIE 2011 p 39 Mais tarde depois de muitos acontecimentos no romance quando Jaja levanta da mesa de refeições antes que Eugene faça as orações finais Kambili engasga e tosse Peguei meu copo e olhei o suco amarelo e aguado como urina Bebi tudo de um só gole Não sabia mais o que podia fazer Em toda a minha vida aquilo jamais acontecera nunca Tive certeza de que os muros da nossa casa iam desmoronar e esmagar as plumérias O céu desabaria Os tapetes persas que se estendiam sobre o chão brilhante de mármore iam encolher Algo ia acontecer Mas a única coisa que aconteceu foi que eu engasguei ADICHIE 2011 p 21 Decorre daí a dificuldade de Kambili encontrar uma voz que seja verdadeiramente sua pois o silenciamento é imposto a todos os integrantes da família Ela gagueja e nunca tem certeza do que pode e deve dizer ao ver seu irmão fazendo algo totalmente fora do esperado sente muito medo Já na casa apertada e superlotada de tia Ifeoma o riso as histórias e a ligação com a ancestralidade são livres Kambili se desorganiza emudece muitas vezes gagueja ainda mais mas o inevitável encontro com as suas subjetividade e voz está a caminho Depois que mama saiu fiquei olhando para a porta fechada para a superfície lisa e pensei nas portas de Nsukka com sua pintura azul descascando Pensei na voz musical do padre Amadi no grande buraco que havia entre os dentes da frente de Amaka e que aparecia quando ela ria em tia Ifeoma mexendo o ensopado em seu fogão a querosene Pensei em Obiora empurrando os óculos para cima do nariz e em Chima enroscado no sofá dormindo profundamente ADICHIE 2011 p 208 De volta à casa dos pais Kambili rememora a casa da tia Ifeoma Bachelard afirma Por consequência todos os abrigos todos os refúgios todos os aposentos têm valores de onirismo consoante Não é mais em sua positividade que a casa é verdadeiramente vivida não é só na hora presente que se reconhecem os seus Daniela Severo de Souza Scheifler Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 286 benefícios O verdadeiro bemestar tem um passado BACHELARD 2008a p 200 A casa dos pais de Kambili é uma casa estilhaçada despedaçada assim como as estatuetas de sua mãe É uma casa marcada pela violência pelo silêncio imposto pela submissão e pelas regras impostas por Eugene O amor de Papa aos filhos é violento e literalmente queima Como o ritual de beber o chá de sua xícara aos filhos Deixeme servir seu chá pediu ela embora jamais fizesse isso Papa a ignorou e derramou o chá na xícara chamando Jaja e eu para dar nossos goles Jaja deu um gole e colocou a xícara de volta no pires Papa apanhoua e entregoua para mim Segurei com ambas as mãos dei um gole no chá Lipton com açúcar e leite e coloqueia de volta no pires Obrigada Papa disse sentindo o amor queimando minha língua ADICHIE 2011 p 37 Ifeoma e os primos visitam a casa de Eugene durante o Natal e na ocasião fica ainda mais claro que a casa de Kambili e Jaja apesar de rica e de ser de seus pais é uma casa que não lhes pertence os objetos que ali se encontram não são verdadeiramente seus não existe liberdade para usufruílos O dono da casa é somente Eugene Beatrice Kambili e Jaja percebem que devem obedecer aos mandos e desmandos de Eugene expressos em sua rotina e nos seus silêncios igualmente impostos Isso é um estéreo não é Por que não colocam alguma coisa para tocar Ou por acaso estão cansados do som também perguntou Amaka com seus olhos plácidos indo rapidamente de Jaja pra mim Sim é um estéreo respondeu Jaja Ele não disse que nós nunca o usávamos nunca nem pensávamos nisso que a única coisa que escutávamos era o noticiário no rádio de Papa durante a hora da família ADICHIE 2011 p 101 Ao invés de ser uma casa que acolhe e nutre a casa de Kambili é na verdade um templo que a inibe o tempo todo que apara toda e qualquer aresta de sua personalidade As xícaras de sua casa queimam os lábios o mármore branco é frio e impessoal e nele se faz um risco de sangue a visão da entrada de sua casa paralisa o seu sorriso Meus primos riram e Amaka olhou para Jaja e para mim talvez achando estranho não rirmos também Eu quis sorrir mas estávamos passando na frente de casa bem naquele momento e a visão dos enormes portões negros e dos muros brancos paralisaram meus lábios ADICHIE 2011 p 91 Hibisco Roxo o espaço íntimo de uma flor rara Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 287 A casa de Eugene não abriga a subjetividade dos filhos pois é um espaço que estimula medos oprime e violenta Embora Kambili não tenha ainda estabilizado uma narrativa sua percebemos que ela não adota a narrativa do pai a de que toda a verdade e poder vêm de um só deus o Deus católico que deve ser escrito em maiúscula até hoje como se ele fosse o único existente Nem mesmo Jaja o faz Por isso a inadequação da nossa protagonista sua aparente insegurança e quase ausência de voz porque silenciada Kambili já traz dentro de si através de suas reflexões as sementes da desestabilização da narrativa do pai mas é na casa da tia que essa versão única de como deve se comportar uma pessoa boa e temente a Deus se desestabiliza completamente principalmente na ocasião em que Kambili e Jaja vão passar uns dias na casa da tia Ifeoma Na manhã seguinte Kevin trouxe dois cilindros de gás da fábrica de Papa e colocouos no portamalas do Volvo junto com sacos de arroz sacos de feijão e alguns inhames cachos de bananadaterra verdes e abacaxis Jaja e eu ficamos ao lado dos hibiscos esperando O jardineiro podava as buganvílias domando as flores que despontavam desafiadoramente em seu topo nivelado Ele usara o ancinho para juntar as flores mortas e as flores corderosa que caíram das plumérias e as organizara em montes que estavam prontos para serem levados dali no carrinho de mão Estes são os horários de vocês para a semana que vão passar em Nsukka disse Papa ADICHIE 2011 p 37 Os hibiscos do jardim da casa de Eugene ainda são somente os vermelhos O jardineiro doma o jardim poda a natureza que cresce desafiando o topo nivelado das flores Assim como Papa tenta domar os filhos tenta podar suas naturezas de diversas formas e também ao tentar controlalos mesmo à distância mesmo em férias na casa da tia e dos primos Kambili não encontra na casa do pai espaço para cultivar algo de seu Parafraseando Baudalaire Bachelard afirma ser preciso procurar na casa múltipla centros de simplicidade Como diz Baudelaire num palácio não há nenhum lugarzinho para a intimidade BACHELARD 2008a p 216 De fato Kambili reflete sobre o fato de que a casa do pai mais parece um hotel Os largos corredores faziam nossa casa parecer um hotel assim como o cheiro impessoal de portas que permaneciam trancadas quase o ano todo ADICHIE 2011 p 66 Soldados invadem as ruas mas na suposta estabilidade da casa de Eugene nada muda Jaja e eu ainda fazíamos tudo de acordo com nossos horários e ainda formulávamos um ao outro perguntas cujas respostas já sabíamos Daniela Severo de Souza Scheifler Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 288 p 33 A escola também é um lugar no qual Kambili não pode ser ela mesma e reproduz o espaço da casa fria onde mora Os muros que cercavam a Escola de Ensino Médio Daughters of the Immaculate Heart eram muito altos como os de nossa casa Mas em vez de fios elétricos espiralados eles eram encimados por pedaços de vidro verde com pontas afiadas voltadas para cima Papa dissera que aqueles muros haviam influenciado sua decisão ADICHIE 2011 p 51 Para Kambili a escola também é um lugar de opressão de uma disciplina rígida e de uma rotina de estudos intensa que ela precisa ter para ser a primeira aluna da classe No entanto a despeito de Kambili não ter um espaço concreto para poder ser e desenvolver quem ela é a casa é entendida como um espaço de subjetividade que ela cultiva dentro de si e nos seus sonhos a casa abriga o devaneio a casa protege o sonhador a casa nos permite sonhar em paz BACHELARD 2008a p 201 Com efeito Kambili sonha Naquela noite sonhei que estava rindo mas a risada não soava como minha embora eu não soubesse bem qual era o som da minha risada Era uma risada alta profunda e entusiasmada como a de tia Ifeoma ADICHIE 2011 p 97 Kambili tem esse sonho na noite seguinte à visita de sua tia e daquele seu abraço apertado antes de ir embora p 97 2 A CASA DE IFEOMA ESPAÇO DE LIBERDADE Depois de muita insistência e sob o pretexto de visitarem uma cidade na qual estaria ocorrendo a aparição da Virgem Kambili e Jaja vão passar uma temporada na casa da tia Ifeoma irmã de Eugene uma professora universitária com três filhos Amaka Obiora e Chima Na nova casa reinam a música e a alegria e Kambili e Jaja descobrem uma nova vida feita de independência amor e liberdade Ifeoma é viúva sustenta sozinha os três filhos e vive as agruras do sucateamento da educação universitária e a repressão militar aos alunos e professores Ifeoma também foi uma criança educada sob o protetorado britânico mas não adotou o fundamentalismo religioso de seu irmão Eugene em grande parte por não acreditar piamente na narrativa colonizadora Professa a fé católica mas não deixa de honrar e praticar os cultos ditos pagãos Podese dizer que Ifeoma é até mesmo feminista Hibisco Roxo o espaço íntimo de uma flor rara Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 289 Nna anyi disse Tia Ifeoma Não foram os missionários Eu também estudei na escola deles não estudei Mas você é mulher Você não conta Então eu não conto Eugene já perguntou sobre a dor na sua perna Já que eu não conto vou parar de perguntar se você acordou bem de manhã PapaNnukwu deu uma risadinha Então meu espírito vai assombrar você quando eu me unir aos ancestrais Acho bom assombrar Eugene primeiro Estou brincando com você nwa m Onde eu estaria hoje se meu chi não houvesse me dado uma filha disse PapaNnukwu fazendo silêncio por um instante Meu espírito vai interceder em seu favor para que Chukwu mande um bom homem para tomar conta de você e das crianças Seu espírito que peça a Chukwu para acelerar minha promoção a professora sênior é só o que eu quero disse tia Ifeoma ADICHIE 2011 p 92 A casa de Ifeoma é o espaço das privações materiais e justamente por isso mostra outra realidade do país diferente da que vivem Kambili e Jaja com o pai O contato com esse espaço e essa outra realidade muda muito a forma de eles verem e sentirem o mundo Amaka prima de Kambili tem a mesma idade Através de Amaka e dos outros familiares Kambili e Jaja começam a experienciar outras versões sobre os fatos sobre a religião e se conectam com sua própria ancestralidade que foi podada pelo pai em nome da religião dos brancos Eles começam a construir suas identidades e a vivenciar seus reais desejos e sentimentos apagados e abafados pelo poder e pelo medo que suscita o pai em ambos Todavia inicialmente na casa da tia Kambili vive várias situações que geram muito desconforto principalmente na relação com a prima Amaka Senti como se minha sombra estivesse visitando tia Ifeoma e sua família enquanto meu eu real estudava no meu quarto em Enugu com o horário colocado na parede à minha frente ADICHIE 2011 p 136 O mundo de Kambili colide diretamente com o mundo da casa da tia os cantos em igbo no meio das orações a economia de água no uso da privada a visita ao avô a informalidade e a intimidade nas relações Naquela noite Kambili sonha Sonhei que Amaka me afundava numa privada cheia de bolotas marrons esverdeadas p 136 Passada a colisão inicial dos dois mundos o desconforto inicial que com efeito em Kambili durou mais tempo e pareceu ser mais intenso eles sentemse protegidos parte daquele lugar vibram com as canções em igbo e com a música africana que Amaka lhes apresenta aprendem a cozinhar a cuidar do jardim e principalmente são desafiados a pensar por si próprios longe da tutela esmagadora do pai Risadas flutuavam acima da minha cabeça Palavras jorravam da boca de todos muitas vezes sem procurar nem receber nenhuma resposta ADICHIE 2011 p 130 Daniela Severo de Souza Scheifler Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 290 O jardim de tia Ifeoma não é ordenado como o de Eugene é desordenado com suas flores de cores vibrantes É lindo mas traz também a sua feiura na imagem do arame farpado É orgânico bonito e feio como a vida Havia três apartamentos de cada lado e o de tia Ifeoma ficava no térreo do lado esquerdo Na frente dele havia um círculo de cores vibrantes um jardim com uma cerca de arame farpado em volta Rosas hibiscos lírios ixoras e crótons cresciam lado a lado como numa guirlanda pintada à mão Ela mal esperou sairmos do carro e veio nos abraçar apertandonos um contra o outro para que nós dois coubéssemos em seus braços ADICHIE 2011 p 123 Em Nsukka com tia Ifeoma e os primos Kambili e Jaja começam a questionar a história única até então apresentada a eles e questionam e se insubordinam aos mecanismos da colonização reproduzida pelo pai Tudo isso pelo simples fato de estarem em um espaço de maior liberdade a casa na qual não se prega o fundamentalismo religioso e na qual o culto às próprias tradições não é nem malvisto e nem proibido Passam a desobedecer ao pai e a omitir o que ali estão vivendo uma vez que não contam lhe contam pelo telefone que tia Ifeoma os libertou dos afazeres da planilha e menos ainda que receberam seu avô PapaNnukwu Sendo o ancião que mantém a viva a tradição o griot o contador de histórias o portador da memória o pai de Eugene é de fato muito perigoso para a história única contada Para Gonzalez 1984 a memória tem suas astúcias ela desestabiliza a narrativa que chegou à consciência sob forma de dominação Por isso a gente vai trabalhar com duas noções que ajudarão a sacar o que a gente pretende caracterizar A gente tá falando das noções de consciência e de memória Como consciência a gente entende o lugar do desconhecimento do encobrimento da alienação do esquecimento e até do saber É por aí que o discurso ideológico se faz presente Já a memória a gente considera como o nãosaber que conhece esse lugar de inscrições que restituem uma história que não foi escrita o lugar da emergência da verdade dessa verdade que se estrutura como ficção GONZALEZ 1984 p 226 Os cantos igbo e as histórias são proibidos na casa de Eugene mas não na de sua irmã Também é válido mencionar que a casa de Ifeoma enquanto lar protetor não se limita somente ao espaço físico mas principalmente à sua presença e às forças psíquica e imaginativa que ela cria ao seu redor uma casa onde habitar Ifeoma implora ao irmão que deixe os sobrinhos passarem uma temporada com ela Eugene a princípio não concorda muito provavelmente porque sabe dos riscos que corre mas acaba concordando Hibisco Roxo o espaço íntimo de uma flor rara Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 291 com a ida dos filhos à casa da irmã No entanto lhes prescreve mil recomendações entre elas seguir a rotina ditada por ele e não ficar sob o mesmo teto de seu PapaNnukwu O colonialismo se dá de muitas formas A lógica colonial perpassa a economia a religião os costumes o imaginário As missas do Padre Benedict por exemplo não aceitam o igbo As músicas e a língua nativas eram vistas com maus olhos Já na casa da Tia Ifeoma eles podiam cantar em igbo durante as preces e conversar sobre o que quer que fosse não havia silêncios impostos ao contrário havia espaço para todas as colocações e perguntas Na casa da tia e dos primos o catolicismo convive de forma aparentemente pacífica com as tradições igbo da família ainda que Amaka rejeite a adoção do nome inglês para fazer a Crisma Kambili e Amaka iniciam a relação de um modo bem conflituoso Amaka tem um préconceito a respeito de Kambili pois pensa que seus silêncios e sua gagueira são caprichos e desdém de menina rica e mimada Amaka por sua vez suscita medo em Kambili pois a prima tem naturalmente tudo que falta à nossa protagonista ou seja espontaneidade língua e risos soltos As duas encenam o conflito entre civilização e barbárie Aposto que você acha que Nsukka não é civilizada comparada com Enugu disse ela ainda fitando o espelho Falei para minha mãe que ela devia parar de forçar vocês a vir pra cá Eu nós nós queríamos vir Amaka deu um sorrisinho superior para o espelho que parecia dizer que eu não precisava ter me incomodado em mentir para ela Não tem nenhum lugar da moda em Nsukka caso você ainda não tenha notado isso Não tem Genesis nem Nike Lake aqui O quê Genesis e Nike Lake os lugares da moda em Enugu Você vai sempre lá não vai Não ADICHIE 2011 p 127 Amaka pressupõe que Kambili goza de uma vida cheia de privilégios e benesses que frequenta lugares da moda e que é uma patricinha colonizada fã de música americana Mas na verdade as duas ainda não se conhecem Queria ter sabido antes que minha prima pintava aquarelas realistas Queria que ela parasse de me olhar como se eu fosse um animal estranho de laboratório que devia ser explicado e catalogado ADICHIE 2011 p 129 Como se pode ver não é um processo fácil Há muito estranhamento entre todos os membros da família Principalmente entre as primas Kambili e Amaka É interessante Daniela Severo de Souza Scheifler Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 292 observar também como ao longo do romance as duas passam a se conhecer e os muros dos préconceitos começam a ruir A gente se vê em breve sussurrou Amaka antes de nos abraçarmos Ela me chamou de nwane m nwanyi minha irmã Ficou do lado de fora do apartamento acenando até eu não conseguir mais vêla pelo retrovisor ADICHIE 2011 p 266 Não há tantas regras na casa de Tia Ifeoma e seu apartamento apesar de pequeno alarga os horizontes de Kambili rompendo com a narrativa única imposta por seu pai Bachelard afirma não basta considerar a casa como um objeto sobre o qual pudéssemos fazer reagir julgamentos e devaneios É preciso ao contrário superar os problemas da descrição seja essa descrição objetiva ou subjetiva para atingir as virtudes primeiras aquelas em que se revela uma adesão de qualquer forma inerente à função primeira de habitar O geógrafo o etnólogo podem descrever bem os tipos mais variados de habitação Sob essa variedade o fenomenológico faz o esforço preciso para compreender o germe da felicidade central seguro e imediato Encontrar a concha inicial em toda a moradia mesmo no castelo eis a tarefa primeira do fenomenológico BACHELARD 2008a p 199 Na casa de Tia Ifeoma extremamente menor e mais modesta com relação à casa de Kambili e Jaja ambos encontram finalmente um espaço íntimo e nele começam a construir as suas identidades sem as imposições do pai Kambili e Jaja repousam suas almas ali encontram abrigo e não querem voltar para a casa do pai Encontram o avô o qual fora proibido de ter contato com os netos por continuar a viver de acordo com as antigas tradições igbo e restabelecem a ligação com as suas ancestralidades depois de pouco a pouco caírem por terra as verdades impostas por Eugene a respeito de seu pai Eis o que acontece quando tia Ifeoma os filhos e os sobrinhos vão à casa de PapaNnukwu Não querem entrar na casa do seu PapaNnuKu Mas vocês não vieram falar com ele há dois dias insistiu ela arregalando os olhos para nós Não temos permissão para vir aqui de novo explicou Jaja Que bobagem é essa perguntou tia Ifeoma mas logo mudou de tom talvez lembrando que não éramos nós que fazíamos as regras Por que vocês acham que seu pai não quer que venham aqui Não sei disse Jaja Porque PapaNnukwu é um pagão Papa ficaria orgulhoso se soubesse que eu tinha dito isso Seu PapaNnukwu não é um pagão Kambili é um tradicionalista disse tia Ifeoma Pagão tradicionalista o que importava Ele não era católico e pronto não era da nossa fé Era uma dessas pessoas por cuja conversão nós Hibisco Roxo o espaço íntimo de uma flor rara Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 293 rezávamos para que elas não acabassem no tormento eterno dos fogos do inferno ADICHIE 2011 p 90 A imposição de uma única religião por parte dos brancos colonizadores faz com que Eugene reproduza seu discurso proibindo os filhos de verem o avô Essa imposição instalase como um grande mal na família de Kambili uma vez que os filhos têm medo de desobedecer ao pai e das consequências de desobedecer ao Deus católico ameaçador No entanto Kambili relembra a casa da tia quando já não está lá a sonha pois algo do ser ali foi acolhido e se enraizou Jaja também não quer voltar para casa A casa de Eugene é um lar estilhaçado ao contrário do lar simples de tia Ifeoma com o seu jardim de hibiscos roxos Tia Ifeoma parou de arrancar algumas folhas velhas que havia no jardim quando estávamos indo até o carro reclamando que o harmattan estava matando suas plantas Amaka e Obiora gemeram e disseram Não vá mexer no jardim agora mãe Isso é um hibisco não é tia perguntou Jaja olhando uma planta que havia perto da cerca de arame farpado Não sabia que existiam hibiscos roxos Tia Ifeoma riu e tocou a flor que era de um tom púrpura tão fechado que chegava quase a ser azul Todo mundo tem essa reação quando vê essas flores pela primeira vez Minha amiga Phillipa é professora de botânica Ela fez alguns experimentos na época em que morava aqui O maka tão lindo disse Jaja Ele passava um dedo sobre uma pétala da flor A risada de Tia Ifeoma se estendeu por mais algumas sílabas É sim Precisei colocar essa cerca no jardim porque as crianças da vizinha entravam e arrancavam minhas flores mais raras Agora só deixo os coroinhas da nossa igreja ou da igreja protestante pegarem ADICHIE 2011 p 139 O jardim de Tia Ifeoma abriga desordenadamente flores raras A cerca foi feita somente para que as flores não fossem completamente arrancadas mas servem à igreja Jaja havia se apaixonado por esse jardim desde que chegara à casa da tia Tia e sobrinho tocam a pétala da flor rara Ifeoma dá risada e cria entre eles o espaço do amor e da intimidade familiar A casa de Ifeoma era oração e riso tia Ifeoma e sua família pediam pelo riso em suas orações ADICHIE 2011 p 137 grifo da autora CONSIDERAÇÕES FINAIS Daniela Severo de Souza Scheifler Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 294 Em um romance cujo título é Hibisco Roxo a natureza acompanha os sentimentos e os humores dos personagens e das casas As flores o vento e a chuva compõem o estado emocional de Kambili mas não somente o dela Tudo desmoronou depois do Domingo de Ramos Ventos uivantes vieram com uma chuva furiosa arrancando algumas plumérias ADICHIE 2011 p 271 Bachelard analisa A casa se transformou num ser da natureza Está solidária com a montanha e as águas que trabalham a terra A grande planta de pedra que é a casa cresceria mal se não tivesse as águas dos subterrâneos na sua base Assim vão os sonhos em sua grandeza sem limite BACHELARD 2008a p 212 O lar de Eugene está despedaçado e a recusa de Jaja em comungar no início do romance é o resultado de toda a violência sofrida pela mulher e pelos filhos em nome do seu fundamentalismo religioso Pensando no conceito de Bachelard em que casa é na verdade um espaço onde o ser encontra abrigo onde ele se sente em casa mesmo não estando necessariamente dentro de uma podemos pensar no processo colonizador e dito civilizatório como um grande desenraizar das tradições e das pessoas o desenraizar de suas casas espaço concreto poético e simbólico A casa se transformou num ser da natureza Está solidária com a montanha e as águas que trabalham a terra A grande planta de pedra que é a casa cresceria mal se não tivesse as águas dos subterrâneos na sua base Assim vão os sonhos em sua grandeza sem limite BACHELARD 2008a p 212 À invasão das cidades das casas e das subjetividades somase o apartar de todo um imaginário de toda conexão com as raízes ancestrais e o divino Eugene corta essas raízes em nome de um processo civilizatório que não contempla a sua história e a de sua família O hibisco roxo que Jaja traz da casa da tia e que floresce no ordenado jardim da casa de Eugene configura outra metáfora poderosa a de que essa flor rara poderá ali florescer também Viu os hibiscos roxos estão prestes a florescer disse Jaja quando saímos do carro Ele estava apontando mas eu não precisava que fizesse isso Já tinha visto os botões ovais e sonolentos no jardim balançando ao sabor da brisa do fim da tarde O dia seguinte foi Domingo de Ramos dia em que Jaja não recebeu a comunhão dia em que Papa atirou seu missal pesado nele e quebrou as estatuetas ADICHIE 2011 p 267 Hibisco Roxo o espaço íntimo de uma flor rara Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 295 A flor rara talvez seja o contemplar das diferenças daquilo que não é igual e não precisa ser A flor vem da casa e do jardim da tia lugar onde Jaja e Kambili encontram abrigo encontraram laços familiares mais sólidos Esse encontro com a tia os primos e sua casa trouxe para os irmãos outras narrativas a respeito da vida outros mundos que em parte eles não conheciam e em parte relembravam A vida robusta da casa do pai em comparação à penúria da casa da tia era desconhecida para eles No entanto os cantos em igbo a ligação com o avô e suas ancestralidades eram familiares Kambili e Jaja puderam libertarse da violência e da narrativa única do pai à base de uma tragédia familiar o assassinato lento de Eugene cometido pelos venenos que Beatrice colocava em seu chá e a prisão de Jaja que acaba assumindo o crime no lugar da mãe O romance termina com tímidos ares promissores para Kambili que parece manifestar o ser ela mesma No entanto para dizer o mínimo bastante perturbador para Beatrice e Jaja Haverá para ambos caminhos de volta para a casa Referências ACHEBE Chinua A educação de uma criança sob o protetorado britânico Tradução Isa Mara Lando São Paulo Companhia das Letras 2012 O mundo se despedaça Tradução de Vera Queiroz da Costa e Silva São Paulo Editora Companhia das Letras 2009 1958 ADICHIE Chimamanda Ngozi Hibisco Roxo Tradução de Julia Romeu São Paulo Companhia das Letras 2011 O perigo de uma história única Tradução de Julia Romeu São Paulo Companhia das Letras 2019 BACHELARD Gaston A poética do Espaço Tradução de Antônio de Pádua Danesi São Paulo Martins Fontes 2008ª A poética do Devaneio Tradução de Antônio de Pádua Danesi São Paulo Martins Fontes 2008b GONZALEZ Lélia Racismo e sexismo na cultura brasileira Revistas Sociais Hoje Anpocs 1984 p 223244 HALL Stuart A identidade cultural na pósmodernidade Tradução de Tomaz Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro Rio de Janeiro Editora DPA 2006 Daniela Severo de Souza Scheifler Palimpsesto Rio de Janeiro v 21 n 38 p 275296 janabr 2022 296 HUTCHEON Linda Poética do pósmodernismo história teoria ficção Tradução Ricardo CruzRio de Janeiro Imago Ed 1991 FANON Franz Pele negra máscaras brancas Tradução de Renato da Silveira Salvador EDFBA 2008 LEITE Ana Mafalda Oralidades escritas póscoloniais estudos sobre literaturas africanas Rio de Janeiro EdUERJ 2012 MBEMBE Achille Crítica da razão negra Tradução de Sebastião Nascimento São Paulo n1 edições 2018 QUIJANO Anibal Colonialidade do poder Eurocentrismo e América Latina Buenos Aires Clacso 2005 Recebido em 31052021 Aceito em 11032022 1 Os igbos são um dos maiores grupos étnicos africanos Habitam o leste sul e sudeste da Nigéria Camarões e Guiné Equatorial e falam a língua igbo