·

Letras ·

Linguística

Send your question to AI and receive an answer instantly

Ask Question

Preview text

1 UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO UNIDADE ACADÊMICA DE SERRA TALHADA LICENCIATURA PLENA EM LETRAS PORTUGUÊSINGLÊS O empoderamento da mulher na obra Hibisco Roxo Carla Drielly Costa Santana Serra TalhadaPE 2019 2 Carla Drielly Costa Santana O empoderamento da mulher na obra Hibísco Roxo Projeto de Trabalho de Conclusão de Curso apresentado na Universidade Federal Rural de Pernambuco Unidade Acadêmica de Serra Talhada como requisito básico para a conclusão do Curso de Licenciatura Plena em Letras PortuguêsInglês Orientadora Paula Santana Serra TalhadaPE 2019 3 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal Rural de Pernambuco Sistema Integrado de Bibliotecas Gerada automaticamente mediante os dados fornecidos peloa autora C278e Santana Carla Drielly Costa O empoderamento da mulher na obra Hibísco Roxo Carla Drielly Costa Santana 2019 62 f Orientadora Paula Manuella Silva de Santana Inclui referências Trabalho de Conclusão de Curso Graduação Universidade Federal Rural de Pernambuco Licenciatura em Letras Serra Talhada 2019 1 Empoderamento 2 Feminismos 3 Resistência 4 Espaço patriarcal 5 Sistema colonial I Santana Paula Manuella Silva de orient II Título CDD 410 4 CARLA DRIELLY COSTA SANTANA O empoderamento da mulher na obra Hibísco Roxo Trabalho de Conclusão de Curso TCC examinado e aprovado pelo Curso de Licenciatura em Língua Portuguesa e Língua Inglesa da Universidade Federal Rural de Pernambuco Unidade Acadêmica de Serra Talhada como requisito parcial para obtenção do título de Licenciado em Letras PortuguêsInglês Aprovada em Nota BANCA EXAMINADORA Orientadora Profa Doutora Paula Manuella Silva de Santana Universidade Federal Rural de Pernambuco UFRPE Unidade Acadêmica de Serra Talhada Examinador a ProfDr Manoel Sotero Caio Netto Universidade Federal Rural de Pernambuco UFRPE Unidade Acadêmica de Serra Talhada Examinador a Profa Dra Andreia de Lima Andrade Universidade Federal Rural de Pernambuco UFRPE Unidade Acadêmica de Serra Talhada 5 Dedico este trabalho a minha mãe minhas avós e minha irmã por serem exemplos de resistência e empoderamento 6 AGRADECIMENTO Agradeço primeiramente a Deus e ao universo por estar aqui buscando e aprendendo na experiência de estar viva Agradeço também ao esforço de minha mãe minha fonte de inspiração por me dar as condições educativas mesmo diante de tantos percalços e dificuldades Agradeço a minha família como um todo por todo apoio Agradeço aos mestres que passaram por minha vida em especial a minha orientadora Paula Santana pela paciência compreensão e todas as aulas da cadeira de Relações ÉtnicoRaciais a instituição aos meus amigos em especial Daniele Islene Jéssica Joana Natália e Tatiane por estarem comigo nos momentos de desespero e de alegria À CAPES e ao Programa PIBID pela bolsa de estudos que pude usufruir durante parte da graduação Agradeço ao meu presidente Lula que em 2008 criou o Sistema de Seleção Unificada SISU e me possibilitou estar aqui hoje concluindo mais uma etapa de ensino Agradeço por fim a todos que por razões óbvias de insuficiência de espaço não foram aqui citados recebam todos os meus agradecimentos 7 A liberdade não é no singular É soma de tudo de todos É plural a começar assim Por mim por ti por nós Liberada eu sou mas não foi fácil Não é fácil nem vai ser facilmente Conquistada a libertação da mulher Maria Celeste Vidal 8 RESUMO Chimamanda Ngozi Adichie é uma autora Nigeriana de uma nova geração de escritores que estão escrevendo sobre a diáspora nigeriana e nos possibilitando conhecer a história de África pelo olhar de seu próprio povo que antes se via emudecido pelos resquícios do sistema colonial A obra Hibisco Roxo traz à cena o rompimento das fronteiras do espaço patriarcal ao projetar na obra um espaço de resistência O pensamento teórico dos vários feminismos ocidental e afrocêntrico os estudos culturais e póscoloniais são utilizados para análise das personagens Kambili Amaka Beatrice e Ifeoma Dentre os teóricos usados para construção deste trabalho destacamos Edward Said Frantz Fanon Stuart Hall Gayatri Spivak Lúcia Zolin Lioyd Brown e Chimamanda Adichie Aqui buscamos refletir investigar e compreender quais as marcas deixadas pela colonização as formas de opressão impostas e como se dá o processo de empoderamento contra as opressões de gênero classe e raça por elas sofridas Sob essa ótica Adichie busca representar a mulher nigeriana e as dificuldades enfrentadas por elas destacando a relação com a sociedade a família o casamento no período póscolonial Palavraschave Sistema colonial Espaço patriarcal Resistência Empoderamento Feminismos 9 ABSTRACT Chimamanda Ngozi Adichie is a Nigerian author of a new generation of writers who is writing about a Nigerian diaspora and allows us to know the history of Africa through the eyes of her own people who once saw themselves through a rudimentation through colonial system systems A purple Hibiscus work brings to the scene or breaking the borders of patriarchal space by projecting a space of resistance in the work The theoretical thinking of the various feminisms Western and Afrocentric cultural and postcolonial studies are used for the analysis of the characters Kambili Amaka Beatrice and Ifeoma Among the theorists used to build this work we highlight Edward Said Frantz Fanon Stuart Hall Gayatri Spivak Lúcia Zolin Lioyd Brown and Chimamanda Adichie Here we seek to reflect investigate and understand what are the marks left by colonization as imposed forms of oppression and how the codification process takes place against the oppressions of gender class and race suffered by them From this perspective the Adichie seeks to exhibit a Nigerian woman and the difficulties faced by them highlighting a relationship with society family marriage without a postcolonial period Keywords Colonial system Patriarchal space Resistance Empowerment Feminisms 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO11 1 CONTEXTO HISTÓRICO14 2 O IMAGINÁRIO NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL21 21 Narrar uma nação em construção22 22 Culturas híbridas e literatura29 3 A LITERATURA ESCRITA POR MULHERES32 31 Empoderamento um instrumento de emancipação33 22 Feminismos35 23 As vozes femininas na literatura42 3 HIBISCO ROXO UMA HISTÓRIA DE RESISTÊNCIA E EMPODERAMENTO FEMININO46 41 Personagens e Feminismos46 42 Florescer do Empoderamento49 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS56 5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS57 11 INTRODUÇÃO Chinua Achebe escritor nigeriano foi o precursor quando se trata de desmistificar o imaginário ocidental sobre o continente africano ao produzir sua obra Things Fall Apart 1958 em contraste ao livro Coração das Trevas de Joseph Conrad e iniciar a construção de uma literatura que retrate a realidade dos povos africanos De acordo com o professor nigeriano Conrad traz em sua obra o africano como sendo inferior ao Europeu uma vez que não é individualizado ou seja chamado pelo seu nome e quando isso acontece é utilizado palavras pejorativas como nomes de partes do corpo Para Achebe isso se fez necessário na obra para fazer de África um contraste com a Europa Desse modo Achebe discorre O coração das trevas projeta a imagem da África como o outro mundo A antítese da Europa e portanto da Civilização um lugar onde a inteligência e o refinamento humanos assim proclamados são finalmente zombados por uma bestialidade triunfante ACHEBE 1988 p2 tradução nossa O escritor abre portas para uma nova geração de escritores que pretendem desmistificar estereótipos e discutir sobre a realidade do continente africano pela voz do próprio povo que antes não se via representado no que era produzido pelo Europeu principalmente no que diz respeito à Nigéria Chimamanda Ngozi Adichie se encontra nesse contexto de escritores que ousam discutir e refletir sobre o cotidiano de um povo antes colonizado como também combater e desmistificar o imaginário de uma única história sobre África como nos mostra sua obra Purple Hibiscus lançada em 2003 em Nova York EUA A obra é narrada pela voz de uma jovem negra e rica Kambile no período pós colonial voz esta que antes fora invisibilizada contrariando a hierarquia desmistificando a imagem de uma África selvagem e pobre como foi enfatizada na obra de Conrad A escritora em uma fala no evento Tecnology Entertainmentand Design TED relata que desde muito cedo foi exposta a livros e ao pensamento europeu e por iniciar a escrever ainda na infância reproduzia em seus textos o que via e a partir disso criava personagens brancos de olhos azuis que brincavam na neve Após chegar aos Estados Unidos para estudar ainda se viu diante de uma história única 12 sobre seu continente em situações com sua amiga de quarto que sentia pena antes mesmo de conhecêla pois tinha a visão de uma África exposta a tragédias o que foi fundamental para que Adichie viesse depois a escrever o romance Americanah e tratar do racismo e preconceito contra imigrantes Outro episódio em que vale salientar o Perigo de uma história única é de estigmatizar um continente inteiro como sendo pobre como vemos quando um professor da universidade questionou que seu texto não poderia ser considerado autenticamente africano uma vez que as personagens pareciam com ele pois possuíam um bom padrão de vida Adichie ainda enfatiza É impossível falar sobre uma história única sem falar sobre poder Há uma palavra uma palavra da tribo Igbo que eu lembro sempre que penso sobre as estruturas de poder no mundo e a palavra é nkali É um substantivo que livremente se traduz ser maior do que o outro Como nossos mundos econômico e político histórias também são definidas pelo princípio do nkali Como são contadas quem as contam quando e quantas histórias são contadas tudo realmente depende do poder Poder é a habilidade não só de contar a história do outro mas de fazêla a história definitiva daquela pessoa TEDGlobal 2009 Diante do exposto observamos as consequências do colonialismo britânico uma vez que criamos estereótipos por ver o diferente como menos humano apenas pelo fato de viver em um contexto diferente do nosso Segundo Adichie o problema desses estereótipos é que uma história pode se tornar a única história estereótipos podem refrear nossa capacidade de pensar formas complexas ADICHIE 2003 p 43 Em meio a essas elaborações em 2003 a autora publica o romance Purple Hibiscus A obra nos apresenta o cotidiano de uma adolescente nigeriana Kambili e de sua família composta pelo pai Eugene sua mãe Beatrice e seu irmão Jaja e a narradora O enredo se passa nas cidades de Enegu e Nsukka após a república de Biafra Os espaços mostram duas realidades totalmente divergentes em um mesmo contexto nigeriano de um lado em Enegu se encontra a casa de Kambili que vive sob os princípios do catolicismo seu pai é um homem muito rico e influente que possui diversas empresas e um jornal denominado Standard e do outro em Nsukka encontrase a família da irmã de Eugene Ifeoma e seus filhos Amaka Ibiora e Chima Ifeoma é uma mulher à frente de seu tempo que transgride o que é 13 estabelecido pelas tradições do povo Igbo e pelo que é pregado pela igreja católica Destacamos aqui o papel de Ifeoma como sendo uma referência para as outras mulheres se desprenderem das amarras do patriarcado A África retratada na obra apresenta as feridas deixadas pela colonização inglesa pelos golpes e os problemas desencadeados após o ano de 1970 A realidade vivenciada pela família de Ifeoma é marcada pela instabilidade social pela falta de água luz combustível pelas sucessivas greves na Universidade por falta de pagamento aos funcionários Ao entrar em contato com uma nova realidade após ir passar alguns dias na casa da tia Kambili que até então é uma narradora silenciada pelo fanatismo religioso e machismo do pai começa a ganhar voz quando percebe que a família de sua tia vive livre de padrões estabelecidos nos espaços ao qual está inserida Vale salientar a importância do poder da voz representada pela personagem da tia pois é a partir da palavra que se expressa as ideologias que cada personagem carrega como afirma Bakthin 1988 a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial A narrativa inicia quando o irmão Jaja fala para o pai que não recebe a comunhão por não gostar do sabor da hóstia deixando Eugene enfurecido e impressionando a irmã com a afronta Nas páginas seguintes a obra relata os acontecimentos que antecederam este fato e é aqui que nos é apresentado a família de Ifeoma que no natal vão convidar Jaja e Kambili para passarem alguns dias em sua casa em Nsukka Neste momento os irmãos começam a vivenciar uma realidade por eles desconhecida e que nas palavras de Kambili onde começou tudo ADICHIE 2011 p58 Assim assumindo que a obra traz à tona uma inversão de estruturas sociais sólidas e um novo modo de ver a história do povo africano nosso interesse é então analisar as estratégias usadas pelo sujeito colonizado sendo ele neste caso a mulher africana no contexto de pósindependência para resistir às opressões impostas pelo patriarcado as formas de opressão utilizadas e as marcas deixadas pela colonização Dessa forma o trabalho está estruturado em quatro capítulos sendo o primeiro intitulado Contexto Histórico Uma vez que o conhecimento sobre África no Brasil fora historicamente invisibilizado consideramos esta apresentação fundamental 14 Nele construímos um panorama da Nigéria nos períodos précolonial colonial e póscolonial No segundo capítulo O imaginário da construção de uma identidade nacional apresentamos uma breve discussão sobre os estudos culturais e pós coloniais discutindo principalmente a tentativa de construção de uma identidade pósindependência assim como a intima relação com uma literatura que dê voz ao africano a partir da língua do colonizador como forma de subverter o sistema No terceiro capitulo A literatura escrita por mulheres traçamos um apanhado geral sobre o conceito de empoderamento da mulher as teorias feministas eurocêntricas e afrocêntricas e quais seus desdobramentos no campo literário A partir dessas teorias é oportunizada a mulher se inserir nos espaços que em grande parte ao longo da história foi exclusivo para homens e a partir de sua inserção é possível construir uma literatura em que as personagens mulheres não são mais vistas como vítimas agora elas são produtoras de suas próprias histórias e buscam entender e superar as opressões impostas a elas Também apresentamos nesse capítulo a biografia de Chimamanda Ngozi Adichie que é uma importante escritora para a literatura africana e ativista do movimento feminista atual No capítulo seguinte Hibisco Roxo uma história de resistência e empoderamento feminino buscamos analisar na obra quais as marcas deixadas pela colonização as formas de opressão imposta e como resistem as personagens femininas Adichie busca representar a mulher nigeriana e as dificuldades enfrentadas por elas destacando a relação com a sociedade a família o casamento no período póscolonial Por fim apresentamos as nossas Considerações Finais que retornam aos pontos já levantados nos capítulos anteriores e onde buscamos dar um tom de acabamento a este estudo 1 CONTEXTO HISTÓRICO Para iniciar o estudo sobre a construção da Nigéria e seus processos históricos é necessário entender três conceitos importantes para nosso estudo O primeiro a ideia de eurocentrismo que estabelece uma visão do mundo em que a Europa sua 15 cultura suas línguas e seu povo são os elementos fundamentais na construção de uma sociedade moderna sendo estes os protagonistas da história do ser humano Esse olhar central ontologiza as diferenças com relação às outras sociedades periféricas enxergandoas como formas incompletas de realização de um ideal moderno A partir da noção de que a Europa é o centro o segundo conceito fundamental para entender esse estudo é o Póscolonialismo Este conceito se refere a uma nova perspectiva teórica e cultural que visa fazer uma releitura da colonização como parte de um processo global Não existe apena uma teoria póscolonial mas sim diversos estudos que trazem contribuições em diversas áreas do conhecimento em que todas fazem severas criticam às narrativas eurocêntricas como modelo civilizatório universal Os estudos póscoloniais valorizam saberes não hegemônicos que provem dos países tidos como periféricos Edward Said 2003 em seu livro Orientalism tenta desconstruir o discurso colonial a partir da metodologia foucaultiana de análise destacando a compreensão das interrelações entre saber e poder na modernidade fazendo uma crítica ao pensamento eurocêntrico ou orientalista O orientalismo seria um estilo de pensamento baseado em uma dicotomia OrienteOcidente com o intuito de estereotipar o Outro tudo que não faz parte do centro a fim de reduzilo ao essencialismo Consequentemente o orientalismo se desenvolveu como forma de dominar o Oriente Com o avanço da dominação ocidental o Outro passa a ser visto como selvagem estagnado irracional atrasado e a ele é imposto a cultura a língua a religião do Europeu que por sua vez é racional dinâmico progressista Dentro desse contexto para entender melhor a dominação colonial um dos mais importantes intelectuais que teorizou sobre a perspectiva do colonizado diante desse processo devastador Frantz Fanon constrói uma perspectiva vista de dentro do processo de colonização e acaba por desnudar um dos períodos mais bárbaros da história De acordo com o estudioso a violência tem o papel central para se entender a colonização pois é por meio dela que o europeu consegue dominar e apropriarse da colônia Segundo Fanon em Os condenados da terra 2005 a violência e a exploração são o meio e o fim para manter o sistema colonial uma vez 16 que todas as vezes que o colonizado se manifestar o colono lhe aconselha com coronhadas ou napalm tipo de armamento que fique quieto FANON 2005 p28 Neste sentido ainda de acordo com Fanon outro meio de oprimir e explorar o colonizado parte da igreja cristã pois esta demoniza as formas de vida diferentes da ocidental animalizando os seus sujeitos e impondo como forma de redenção a cultura e religião ocidental É importante ressaltar que para Fanon a única forma do colonizado construir seu mundo e ter voz seria com a expulsão do colonizador e de seu sistema de dominação do seu território A partir do momento em que o colonizado busca sua independência ele deixa de ser objeto do colonizador para se tornar agente de sua própria história A consciência política do ser humano colonizado se consolida no momento em que ele participa de sua própria libertação como afirma em Peles negras máscaras brancas 2008 a desalienação do homem preto vinculase ao reconhecimento imediato das realidades sociais e econômicas Fanon apresenta o racismo como sistema complexo que cumpriu duplamente os papeis de motor e combustível da expansão europeia e do colonialismo Sua obra escancara a profundidade das raízes racistas na construção da sociedade ocidental Ao longo da história a relação entre o continente africano e o ocidente sofreu vários processos devastadores a colonização o tráfico negreiro os impasses políticos culturais econômicos e psicológicos tiveram como desdobramento o apagamento dos grandes feitos daquele povo e sua memória histórica As associações feitas ao continente africano eram predominantemente de um povo sem história possibilitando assim legitimar a dominação do pensamento eurocêntrico como afirma Jamba 2015 A memória histórica colectiva foi profundamente atingida O Ocidente para tentar legitimar a dominação política económica e cultural dos povos da África recorreu à ideologia da mistificação e da falsificação do passado dos povos africanos procurando sempre apresentar a África como um continente sem história Contudo em 1954 Cheikh Anta Diop publica sua obra Nations nègres et culture que tem como objetivo recusar essa visão de apagamento e traz à cena o resgate da memória histórica do povo e da cultura africana De acordo com Jamba 2015 Bwemba assim como Cheikh Anta Diop ressalta que a civilização africana é 17 a primeira conhecida da humanidade e que teve como berço o Nilo e a partir do apagamento histórico a cultura ocidental classificou o Egito como sendo parte integrante do oriente No entanto como foi comprovado pelos estudos arqueológicos foi no continente africano que surgiu o Homo Sapiens O Egito está localizado em África e assim é de fundamental importância ressaltar as grandes descobertas feitas nesse continente para o resgate da memória africana Para compreender a Nigéria hoje se faz pertinente traçar um panorama de sua complexidade étnica regional cultural e política É o país mais populoso do continente africano possuindo uma superfície de aproximadamente 923 768 km² às margens do golfo da Guiné Durante o período que antecede a colonização do continente africano a Nigéria possuía civilizações sofisticadas com conhecimentos na metalurgia agricultura e arte O país de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Estatística IBGE 2018 possuia cerca de 195875237 habitantes com mais de 250 grupos étnicos Dentre eles destacamos Hausa e Fulani predominantes no Norte e majoritariamente muçulmanos que representam 29 da população os Yorubas no Sudoeste que se dividem entre praticantes da religião tradicional Yoruba cristãos e muçulmanos constituindo 21 da população e os Igbos no Sudeste predominantemente cristãos representando 18 da população Assim como em relação às etnias existem variados idiomas usados pelo povo nigeriano dentre eles o hausa o fulani o igbo o yoruba e o inglês que de acordo com a CIA 2012 é o idioma oficial da Nigéria Os Hausas vivem ao norte do país e são integrados aos Fulani que conquistaram a região no começo do século XIX Apesar de ser a minoria os Fulani gozam de maior poder em relação aos Hausa Os Yorubas segundo Bertaux 1971 são considerados o único povo negro que tendeu espontaneamente para aglomerar se em grandes áreas urbanas o único cuja realização política teve uma base urbana vivendo inicialmente em torno da cidade de Ife uma região florestal vasta e fértil a oeste do Baixo Níger e posteriormente da cidade de Oyo Os Igbos são um dos maiores grupos étnicos em África tendo como tradição concentraremse em aldeias autônomas A aldeia era uma unidade sociopolítica seu povo dedicavase à exploração agrícola Formavam uma sociedade sem chefes no campo político porém tinham um líder espiritual e religioso 18 A Nigéria ficou sob domínio colonial dos ingleses a partir da segunda metade do século XIX e a falta de respeito às diferenças étnicas entre os povos que viviam no território acabou desencadeando os vários conflitos internos Cada etnia possuía sua forma de viver em sociedade sua cultura e religião Algumas etnias eram mais receptivas à presença do colonizador e suas ideologias enquanto outras tentavam resistir e viam como suspeita a chegada do homem branco Dessa forma a convivência entre esses povos não se faria de forma pacifica Ao final da Segunda Guerra Mundial os grupos nacionalistas começaram a crescer na Nigéria em busca de autonomia do domínio britânico Durante essa transição houve três constituições que desencadearam a fragmentação do povo africano uma vez que tinham agora o poder e autonomia de administrar suas regiões como constata a afirmação abaixo As regiões eram totalmente independentes umas das outras com os governos regionais sendo responsáveis isoladamente pela cobrança de impostos de importação e de exportação e mantendo representações diplomáticas independentes em Londres FALOLA HEATON 2008 WRIGHT OKOLO 1999 apud OLIVEIRA 2014 Devido a essa fragmentação cada região organizou um partido político que representaria principalmente suas questões étnicas em níveis regionais e nacionais com o intuito de administrar a Nigéria e o desenvolvimento de sua região Dessa forma existia o receio de uma região ser dominada pelos partidos de outras regiões que levariam ao desvio dos recursos para suas regiões de origem Diante desse cenário a Constituição vigente determinava que os recursos fossem distribuídos de acordo com o tamanho de cada região em conformidade com o censo realizado nos anos de 1952 e 1953 A região Norte por ser maior ficaria com a maior parte dos recursos sendo administrada pelo partido Northern Peoples Congress NPC que reunia mais de 50 da população LOVEJOY 1992 apud OLIVEIRA 2014 A forma de distribuição criou impasses entre o NPC e o partido National Council of Nigerian Citizens NCNC o qual representava os interesses do Leste No ano de 1962 foi realizado um novo censo na tentativa de atualizar os dados populacionais como também rever a distribuição de recursos e os assentos destinados a cada região na Câmara de Deputados porém a pesquisa foi fraudada 19 principalmente pela região sul O governo ao tomar conhecimento da fraude anulou a pesquisa e no ano seguinte em 1963 realizou um novo censo A nova pesquisa mostrou um crescimento geral da população e mesmo com indícios de novas fraudes é validado e a região Norte continuou a frente das outras regiões No ano seguinte ocorreram as eleições federais e a Nigéria viveu um momento de perseguição dos partidos levando a morte de muitos influentes na política do país gerando uma instabilidade a nível nacional Em janeiro do ano de 1966 ocorreu um golpe de estado por parte dos militares e o comandante das forças armadas Major General John AguiyiIronsi ocupa o poder Durante seu comando os partidos políticos foram perseguidos e proibidos sendo o estado quem indicava quem comandaria cada uma das regiões O sistema federativo agora seria trocado pelo sistema unitário ou seja a administração central seria quem tomaria todas as decisões cabendo aos servidores e as instituições públicas a subordinação ao estado Um ano após o golpe as forças do Norte sentindose submissas as decisões do Sul em especial da etnia Igbo se organizaram para realizar um contragolpe com o sequestro e assassinato do General Ironsi e colocando no poder o Tenente Coronel Yakubu Gowon Ao assumir o governo Gowon institui a abolição de uma unidade federativa e a volta da polarização do poder nas quatro regiões Em meio ao contragolpe a população Igbo se viu ameaçada uma vez que possuíam uma educação melhor e mão de obra qualificada o que consequentemente implicaria na disputa pelo mercado de trabalho Por assim dizer os anos que se sucederam foram marcados pela violência contra esse povo em todas as regiões do país acarretando na morte de mais de 80000 pessoas além de aumentar os índices de migração para suas terras natais ou seja o povo da etnia Igbo que se encontrava em outras regiões voltaram para sua terra natal pois o governo não garantia nenhum tipo de segurança No ano de 1967 ocorreu em Gana uma reunião na tentativa de chegar a um acordo entre os governantes Gowon do Norte e Ojukwu do Leste No entanto não foi possível chegar a nenhuma resolução Após esse encontro Ojukwu informou que a região iria tornarse independente do restante da Nigéria A iniciativa do governo do Leste não foi vista com bons olhos uma vez que a partir de então o governo local iria receber todos os lucros que antes eram destinados ao governo federal para 20 distribuição Gowon na tentativa de conter a independência do Leste promoveu o bloqueio da costa bem como criou oito novos estados a fim de fragmentar o Leste mas não obteve êxito A criação do estado independente denominouse República Independente de Biafra que teve como principais motivações para tornarse independente os constantes ataques ao povo da etnia Igbo além da economia já que a região era uma das maiores produtoras de petróleo Segundo Oliveira 2014 a produção chegava a 415000 barris de petróleo por dia mas que diante de um governo que fazia a distribuição dos recursos de acordo com o tamanho populacional a região Leste que possuía 70 das reservas de petróleo ficava apenas com um terço dos lucros o que acarretou na separação da região para que pudessem administrar todos os recursos petrolíferos e seus lucros Em 1967 o governo nigeriano insatisfeito com a construção da República Independente de Briafra propõese a fazer um bloqueio marítimo com o auxílio da Marinha no intuito de isolar a cidade de Bonni onde se encontrava a única refinaria de petróleo da Nigéria que impossibilitava a exportação do produto para financiamento da guerra bem como o recebimento de mantimentos e armamentos para a população Ao perder a cidade de Bonni as forças de Biafra invadiram e atacaram territórios pertencentes ao governo central além de bombardear a capital da Nigéria Lagos Nos meses que sucederam o governo nigeriano retomou os territórios centrais e iniciou um ataque ao território de etnia Igbo No mesmo ano as forças federais tomaram as cidades de Enegu capital de biafra e Calabar Em março de 1968 após vários ataques tomaram a cidade de Onitsha O governo nigeriano tinha como objetivo fazer um bloqueio continental para enfraquecer as forças de Biafra e sua população insatisfeita se rebelar contra o governo Como consequência do bloqueio a população se viu em meio à fome e o governante Ojukwo juntamente com outros líderes reforçou a ideia de um genocídio contra a etnia Igbo A região Norte contava com a ajuda e apoio da Organização da Unidade Africana OUA além de forças ocidentais como a URSS enquanto Biafra no início da guerra possuía pouco apoio internacional mas no ano seguinte após investir em ações diplomáticas e publicitárias vários países reconheceram Biafra como uma 21 nação independente e a manter a guerra com o fornecimento de armamentos e munição RUBENZER 2007 MTHEMBUSALTER 2009 apud OLIVEIRA 2014 Durante os anos de 1968 e 1969 foram constantes os ataques bombardeios e tomadas de território Enfim no ano de 1970 as forças federais tomaram todo o território de Biafra O governante foge para Costa do Marfim e deixa em seu lugar o Major General Phillip Effiong que assina a rendição da República Independente de Biafra dando um fim à guerra Após o fim da guerra a Nigéria não possuía uma Identidade Nacional e o governo inicia um processo de reconstrução nacional Para isso lança diversas campanhas visando a reintegração da população Igbo ao estado nigeriano Logo foram devolvidas as propriedades aos seus donos e os empregos aos servidores públicos Em meio à reconstrução nacional a economia do país sobe com o aumento da produção de petróleo e sua integração na Organização de Países Exportadores de Petróleo OPEP A educação é expandida no país em todos os níveis de ensino Ao longo da década de 1970 a Nigéria foi vista como visionária na luta contra o colonialismo Um novo golpe militar ocorre em 1975 colocando no poder Mohammed Obasanjo 19751979 Esse período é marcado por uma política externa forte dinâmica e por vezes radical sendo considerado os anos de ouro da política externa que foi financiada pelo rendimento dos recursos petrolíferos O novo governo também ilustra a Nigéria como uma potência autônoma e independente Durante a segunda república da Nigéria o governo mostrouse incapaz de financiar a política externa uma vez que diminuíram as riquezas do país Apesar de ser aprovada uma constituição e a possibilidade de ocorrer eleições o governo de Shagari 19791983 precisou adotar uma postura mais moderada Em 1983 ocorre um golpe de Estado e Buhari chega ao poder com uma política considerada como agressiva e nacionalista Ao identificar a corrupção generalizada no país o novo governante decreta uma Guerra contra a indisciplina e corrupção que não foi suficiente para resolver os problemas internos Esse governo causou um descontentamento que levou a um novo golpe em 1985 Babangida assume o poder empenhado em desenvolver uma política externa dinâmica e coerente mas a crise econômica impediu a Nigéria de cumprir suas responsabilidades internas e externas levando ao descontentamento interno 22 Em 1993 Abacha toma o poder com a finalidade de controlar a situação econômica e esse descontentamento instaurando um regime militar Esse é o regime mais opressor e agressivo da Nigéria contendo os grupos opositores com mãos de ferro violando os direitos humanos prendendo e matando ativistas políticos Com a morte de Abacha em 1998 Abubakar assume o poder e inicia um novo período na historia da Nigéria Nesse período as pressões para libertar os presos políticos e a desmilitarização da política se intensificam No ano de 1999 Abubakar restaura a democracia e o poder para um governo civil eleito acabando com 15 anos de regime militar Ainda no ano de 1999 ocorre a eleição Obasanjo preso político durante o regime militar é eleito e inaugura a quarta república Esse novo governo se comprometeu com a consolidação da democracia respeito aos direitos humanos transparência e reformas econômicas no intuito de consolidar e integrar novamente o sistema internacional Após dois mandatos Obasanjo é substituído por YarAdua que tem como pretensão tornar a Nigéria uma das 20 maiores economias do mundo até 2020 Sua política também tinha o intuito de apagar a imagem de um país corrupto Devido aos diferentes tipos de governo e às crises a Nigéria ainda enfrenta desafios na consolidação da democracia combate à corrupção na gestão de conflitos internos na distribuição da riqueza nacional no combate a doenças etc Dessa forma por ter uma estrutura econômica política e social frágil e com o surgimento de outras potencias regionais mais estáveis a Nigéria vem perdendo força quanto à concretização de sua liderança na África negra 2 O IMAGINÁRIO NA CONSTRUÇÃO DA IDENTIDADE NACIONAL A construção de uma narrativa nacional é um processo comum nas sociedades para que seus povos se sintam pertencentes a uma nação A partir dessas narrativas fundantes ao longo da história foram criadas nações vistas como superiores e outras como inferiores No continente africano a invasão do colonizador 23 europeu tenta apagar a cultura de seus povos e estabelecer uma nova identidade próxima da realidade europeia ocorrendo assim uma crise de identidades Com os estudos póscoloniais e culturais as literaturas africanas assumem o papel de elaborar narrativas que atendam às especificidades de cada povo construindo uma identidade híbrida uma vez que o sujeito africano de hoje possui traços das culturas tradições línguas e histórias com as quais teve contato Para além dessa função de acordo com Paula Santana 2010 as literaturas africanas conformamse como uma importante fonte de análise histórica e sociológica pois se esforçam para narrar e registrar a realidade social dos países africanos em contextos de fragmentação e muitas vezes destruição de instituições de ensino e pesquisa A autora reitera que os livros de memória e literatura não ocupam o lugar dos livros de história e sociologia mas que contribuem numa via de mão dupla para que possamos compreender a realidade dos povos africanos no passado e no presente Contudo a literatura agora utiliza da língua do colonizador para narrar refletir e discutir sobre temáticas como opressão colonização e dar voz aos povos antes silenciados 21 Narrar uma nação em construção Durante o período colonial as comunidades nativas em África passaram por um massacre da missão civilizadora da metrópole que tinha como objetivo primordial impor aos autóctones a cultura europeia vista como superior para assim formar uma sociedade aos moldes europeus na intenção de ampliar seus impérios Logo essa imposição vai de encontro ao pensamento de Homi Bhabha que discute as estratégias que o colonizador utiliza para construir uma imagem persuasiva de sujeito com o objetivo de apropriarse e apoderarse do Outro p 121 No entanto esse continente era formado por povos de diferentes etnias que já possuíam uma organização própria em todos os espaços dentro de uma sociedade Em meio a esse processo devastador as identidades dessas comunidades foram subalternizadas o que acarretou mais tarde em conflitos internos como a guerra de Biafra na Nigéria 24 Os costumes e práticas dos europeus foram em sua maioria forçados como estímulo à produção de identidades às nações que iriam surgir com a independência Os resquícios deixados pela dominação europeia no pensamento e na vida dos africanos são base para as ações comportamentos e valores desses povos até os dias atuais na construção de suas identidades Para esses povos a literatura seria uma das formas mais eficazes de construir identidades para seus países no pósindependência Uma vez que essa diversidade era vista até então por uma ótica homogeneizadora não havia como recuperar a identidade do período précolonial nem como aceitar as identidades impostas aos africanos durante o período colonial que não levavam em consideração as particularidades de cada comunidade tribo etnia No pósindependência surgiram vários grupos que junto aos movimentos nacionalistas tentavam resgatar as tradições Enquanto outros grupos buscavam criar uma nova identidade para aquelas nações A construção de uma narrativa nacional é um processo comum em uma sociedade na construção de grandes nações como explica Glissant 2005 em Introdução a uma poética da diversidade construída a partir de um mito fundador O mito fundador surge para construir a história de um povo e consagrar uma comunidade ou território o que chamamos de narrativas fundantes A partir dessas narrativas fundantes ao longo da história foram criadas nações vistas como superiores e outras como inferiores enfatizando a hegemonia de um povo sobre outro Nas narrativas nacionais dos povos africanos no pósindependência há a influência da cultura colonizadora sendo ela mais presente até mesmo que as tradições dos povos nativos devido ao longo período em que os colonizadores se fixaram no continente impondo sua cultura aos nativos de forma violenta e vertical Após a independência das colônias houve a tentativa de apagamento do passado colonial a partir da restituição do passado précolonial pelas frentes políticas de libertação instaurando um nacionalismo exacerbado no entanto sem êxito Narrar sobre essas nações é um papel desafiador devido à recente ideia do que seria uma nação para esses países formados por diferentes povos culturas etnias línguas e processos de colonização O desenvolvimento de um projeto identitário destes 25 povos ainda está em construção uma vez que é recente a libertação destas colônias das amarras da colonização Em O Local da Cultura Homi Bhabha 1998 traz o conceito de nação como uma narrativa dual descontinua A nação é construída como uma ideia de performance e imaginação que se molda a partir dos referenciais cotidianos O discurso performativo é o discurso que se molda a partir dos elementos da própria cultura Portanto a nação é espaço liminar de significação que é marcado internamente pelos discursos de minorias pelas histórias heterogêneas de povos em disputa por autoridades antagônicas e por locais tensos de diferença cultural p210 Em outra frente Benedict Anderson 2008 lembra que nação é uma comunidade imaginada ou seja é pensada por meio de práticas culturais e administrativas dos estados modernos no intuito de estimular os sujeitos a definirem suas obrigações enquanto membros de um grupo que supostamente é especial e homogêneo Essas práticas estimulam os seres humanos a buscarem suas identidades e definirem suas obrigações com o Estado Ainda de acordo com Anderson o Estado moderno em seu processo de formação atuou como promotor da alfabetização e de uma gramática vernácula comum que possibilitava aos seres humanos se reconhecerem nos jornais como imagens comuns e narrativas coletivas O território e a língua são categorias que sustentam um sentimento de pertencimento e lealdade entre os membros de uma nação assim como a ideia de uma tradição cultural comum Nessas imagens e narrativas o ser humano se vê como parte dessa comunidade imaginada com um espaço circunscrito e sujeitos nunca vistos onde se desenrolam os enredos e as narrativas de suas vidas Portanto os mitos costumes músicas heróis roupas e outras tradições nacionais são na verdade invenções do período moderno que constroem e se reconstroem diariamente O conceito de comunidade imaginada de Anderson está ligado ao conceito de memória coletiva ou memória comum de Joel Candau 2011 Para ele a memória coletiva é um conjunto de lembranças comuns a uma comunidade Dessa maneira a nação é uma construção imaginada como um conjunto de tradições disseminadas em todas as esferas sociais que compõem a cultura de um lugar como enfatiza 26 a expressão memória coletiva é uma representação uma forma de metamemória quer dizer um enunciado que membros de um grupo vão produzir a respeito de uma memória supostamente comum a todos os membros desse grupo CANDAU 2011 p 24 A construção da memória coletiva de uma nação é portanto o resultado da imaginação de sua comunidade e os discursos disseminados a partir da literatura culinária mitos lendas modo de vestir andar rituais passados de geração para geração Partindo dessas premissas o nacionalismo e seus produtos culturais compartilham através da língua que não é o símbolo de uma nação e sim o modo pela qual ela é imaginada A nação é um sistema que define as relações entre o Estado e seus membros e estes entre si Segundo Hobsbawm 1977 p 272 o nacionalismo utiliza do símbolo nação para a realização de um projeto político A partir de um discurso homogeneizador dos sentidos da nação o nacionalismo controla os sentimentos que unem e diferenciam determinados grupos entre si Em África durante todo o período colonial os países colonizadores tentaram apagar a cultura local e estabelecer uma nova identidade próxima da realidade europeia exaltando o préconceito obrigandoos a assimilarem o que lhes fora imposto para não serem estigmatizados Os colonizadores por sua vez utilizavam da opressão e das relações de poder para estabelecerem um diálogo com os africanos tratandoos como inferiores e selvagens em relação às pessoas da metrópole vistas como superiores e civilizadas Libertar os nativos da barbárie transformandoos em seres mais evoluídos preenchendo o seu mundo sem cultura com os saberes da civilização foi um dos objetivos da colonização Tais discursos foram utilizados para apoiar as intervenções coloniais ou seja os europeus justificavam suas práticas não apenas pela exploração dos bens naturais e conquista de novos territórios mas também para que houvesse uma ação civilizadora para aqueles povos bárbaros Mesmo após incorporarem em suas práticas a cultura ocidental os africanos ainda eram vistos como subalternos uma vez que eram associados a atividades que exigiam pouca qualificação intelectual e muita força física Outro fator importante para respaldar a colonização em África teria sido as imagens trazidas pelas teorias 27 cientificas oriundas das concepções do Evolucionismo Social e do Darwinismo Social que colocaram os Africanos nos últimos degraus da evolução das raças humanas Para alguns pesquisadores o africano era a prova viva da evolução do macaco ao homem sendo assim o africano mais próximo do animal que do ser humano Dessa maneira sendo incapazes de evoluir O discurso da colonização era usado como uma ajuda aos povos locais Bhabha 1998 problematiza a construção e a desconstrução da identidade do Outro através dos Estudos Póscoloniais Questiona o discurso depreciativo do colonialismo ocidental ao retratar o colonizado O colonizado é apresentado pelo colonizador como sujeito degenerado e com base nas teorias raciológicas justifica a conquista de uma nação em todos os seus aspectos sociais e culturais Para Bhabha a mímica constituise em uma das estratégias mais ardilosas e eficazes do poder e do saber colonial pois se mostra ao Outro como fonte de inspiração para a imitação a cópia e consequentemente para a relativização da cultura subalterna De acordo com o filósofo Valentin Mudimbe 2013 para reforçar o discurso de inferioridade alguns grupos de pesquisadores europeus que tentavam explicar a origem das práticas artísticas dos povos Yorubás e de Benin dos conhecimentos astrológicos de dogon e da arquitetura do Zimbabwe defendiam que todos esses elementos de destaque da cultura eram empréstimos de outras civilizações mais evoluídas ou seja das civilizações de origem europeia o que reforçou os estereótipos A realidade opressora foi instrumento para a criação de um sentimento de consciência nacional formado no pósindependência Narrar a nação pela voz do africano é portanto uma forma de resistência aos anos de silenciamento de suas vozes As nações africanas no pósindependência sentiam a necessidade de dizer e mostrar o sentimento de pertencimento Dessa forma a imprensa teve um papel crucial na disseminação dos discursos nacionalistas nas primeiras obras e textos produzidos por africanos como afirma Rafaella Teotônio 2013 A imprensa foi um importante veículo para disseminação dos discursos nacionalistas encontrados nos primeiros textos jornalísticos e literários produzidos por africanos ou por europeus identificados com a terra Jornais como O brado africano e as revistas Claridade Black Orpheus Présence 28 africaine dentre outros seriam responsáveis pelos primeiros registros de textos produzidos nestas nações TEOTÔNIO 2013 p 23 As literaturas africanas assumem o papel de construir e reconstruir nas obras literárias processos de identificação próprios dessas literaturas em trânsito e em processo de descolonização Esse sentimento nacionalista por parte dos escritores que buscam em sua literatura afirmar identidades próprias de uma nação pós colonização está diretamente ligada a função social que o escritor tem de mudar a sua realidade exercendo seu papel de cidadão além de influenciar o pensamento de tantos outros cidadãos Os primeiros textos literários utilizam da língua do colonizador para denunciar as imposições culturais impostas Nesse momento mostrase a importância da ocupação do espaço no campo literário emitindo a voz do sujeito africano por anos silenciado porém essas vozes ainda pertenciam a uma pequena parcela de pessoas que tiveram acesso à educação nas escolas das missões muitos desses escritores por sinal homens brancos de origem europeia mas nascidos nas colônias De acordo com Bocinni apud Teotônio 2013 o desenvolvimento das literaturas póscoloniais em língua inglesa implicava na dependência de dois fatores o primeiro a conscientização nacional e o segundo a premissa de fazerem uma literatura diferente da escrita pelo colonizador Esses dois fatores são portanto meios para o desenvolvimento cultural das sociedades póscoloniais Essas novas literaturas são formadas por textos feitos pelo olhar do sujeito colonizado que recebeu educação da ação missionária e textos feitos por uma nova geração de nativos colonizados que tentam romper com os padrões impostos e enfatizar no texto literário seu olhar sua fala e sua história contada pelo eu invisibilizado As literaturas póscoloniais expressam os conflitos causados por um sistema baseado na opressão e dominação A língua imposta ao povo africano serve agora como instrumento de denúncia de resistência e subversão ao sistema dominante Nesse momento passa a se preocupar mais com as línguas nativas que estão entrando em extermínio A oralidade passa a fazer parte do texto escrito já que é importante para as tradições das línguas e culturas nativas a perpetuação da história e construção da memória coletiva através da fala Portanto as literaturas africanas 29 priorizam a função social em suas narrativas ou seja seus textos são instrumentos de engajamento e luta 22 Culturas híbridas e literatura As vozes e narrativas dos povos africanos já existiam desde antes da colonização porém foram silenciadas pelo domínio unilateral das narrativas que eram escritas pelo olhar do colonizador europeu Os escritores africanos em seus projetos que reverberam na construção de identidades têm como objetivo primordial fazer ouvir suas vozes na modernidade A modernidade é um processo de desenvolvimento humano baseado na razão na ciência onde o ser humano deixa de acreditar no querer de um ser divino e passa a agir de forma autônoma fazendo suas próprias escolhas Essa ideia de modernidade surge durante o Iluminismo movimento em que a razão atrelada ao método científico seria a base do progresso do conhecimento Essa visão implicaria em uma ruptura com as tradições uma vez que o desligamento com as tradições possibilitaria o novo o progresso o futuro Diante do processo de colonização o projeto modernizador utilizado nas colônias disseminava uma visão homogeneizada da modernidade ou seja impondo às sociedades fora dessa ordem o pensamento eurocêntrico o que mais tarde acarreta nos conflitos políticos e culturais que deram origem aos projetos nacionalistas Segundo Teotônio 2013 o projeto de modernização nos países africanos possibilitou aos escritores perceberem a impossibilidade de voltar ao passado Para esse novo projeto o passado deveria ser visto como um objeto de reflexão para o futuro e não como um modelo de retorno à identidade précolonial A busca por restituir uma identidade seria agora modificada pela busca por um lugar de fala pois a partir desses espaços o colonizado pode vir a marcar suas diferenças diferenças estas marcadas pela diversidade de povos etnias e culturas homogeneizadas pela colonização A partir da tomada de consciência da singularidade de cada povo existente em África podese entender que é impossível criar uma identidade única estática imóvel 30 Esse discurso corrobora com o pensamento de um dos grandes nomes nos estudos de identidade cultural Stuart Hall Em A identidade cultural da pós modernidade 2006 ao se debruçar sobre a discussão da crise de identidade para explorar a identidade na modernidade tardia e seus efeitos diante da globalização Hall organiza a discussão da identidade em três momentos históricos o sujeito no Iluminismo voltado para o eu como o centro possuindo uma identidade fixa e permanente o sujeito sociológico em que a interação do eu com a sociedade modifica assim sua identidade e por último o sujeito pósmoderno que é visto pela fragmentação do eu em várias identidades usadas em diferentes momentos De acordo com Hall a crise de identidade ocorre no processo de globalização dessa modernidade tardia afirmando que as sociedades modernas são portanto por definição sociedades de mudança constante rápida e permanente HALL 2006 p14 Então o autor define identidade como sendo posições de sujeito que nunca serão fixas e unificadas Os países que participaram do projeto de modernização ocidental não participaram de forma passiva uma vez que modificaram sua estrutura para não dizimarem as culturas nativas como no Brasil durante a evangelização dos negros e de suas religiões Assim com a chegada da modernidade as culturas autóctones necessitaram passar por mudanças para equilibrarem as tradições e as inovações trazidas pelos europeus acarretando no processo de revitalização dos elementos culturais diante do projeto moderno que se instaura em grande parte do mundo Estas nações procuram se modernizar de uma forma própria valorizando seus projetos locais suas necessidades sem se desligar totalmente das tradições tentando fugir do projeto ocidental da massificação e homogeneização cultural Portanto a literatura assume o papel de expressar as inquietações de grupos povos e nações subalternizadas por séculos a fim de desconstruir estereótipos Essas novas narrativas têm a função de problematizar os valores assumidos por escritores de outras gerações a diversidade cultural existente em África as consequências do processo de colonização entre outros temas relevantes Essas inquietações refletem a forma hibrida que a sociedade africana vivencia desde sua origem mas enfatizada durante o período colonial até os dias atuais A hibridação de acordo Dussel 2002 p 56 tem sua origem no projeto colonial de 31 dominação racial do século XIX com a função de marcar as desigualdades e enfatizar os preconceitos ao mesmo tempo em que enfatiza as lutas anti e pós coloniais A hibridação é vista aqui como um processo sociocultural em que culturas e identidades diferentes se combinam para gerar novas culturas e identidades Como enfatiza Dussel a hibridação é o signo mais claro da ruptura da modernidade e da irrupção de novas lógicas Homi Bhabba sinaliza que o híbrido é um resultado da cultura colonial que se nega a si mesma esse novo híbrido postulado pela teoria póscolonial não é uma síntese dialética mas uma ruptura e uma associação ao mesmo tempo uma simultaneidade impossível do mesmo e do outro DUSSEL 2002 p 6465 Ainda sobre o conceito de hibridação Dussel acrescenta se rompe com a lógica aristotélica de que algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo o híbrido é ambas as coisas e é uma terceira também o novo a hibridação vem denotar a coexistência de múltiplas temporalidades na modernidade Fica clara também a produtividade da margem do excêntrico dos terceiros espaços que estão dentrofora da cultura ocidental DUSSEL 2002 p 67 Contudo o conceito de hibridação vem ressaltar a necessidade dos escritores africanos de resistirem à ideia de uma identidade única e homogênea para que as narrativas literárias possam representar uma cultura compreendida no entrecruzamento e coexistência com um olhar modernizado atualizado para África Hall se debruçou sobre a questão de hibridização cultural ao afirmar que as identidades culturais estão em declínio fazendo surgir novas identidades fragmentadas Para ele um novo tipo de identidade está surgindo e modificando as paisagens culturais de classe gênero sexualidade etnia raça e nacionalidade HALL 2006 p 9 Essas modificações estão provocando o deslocamento do sujeito e é esse deslocamento que causa a crise de identidade Conforme o teórico em um mundo pósmoderno em que os países têm suas fronteiras dissolvidas a globalização fortalece as identidades locais e a produção de novas identidades em que as identidades centradas e fechadas de uma cultura nacional são contestadas 32 e deslocadas e produzem uma variedade de possibilidades e novas posições de identificação e tornando as identidades mais posicionais mais políticas mais plurais e diversas menos fixas unificadas ou transhistóricas HALL 2006 p 87 No mundo globalizado é mais comum as misturas culturais e é a partir dessas misturas que surgem as culturas híbridas Tais culturas transportam os traços das culturas das tradições das linguagens e das histórias particulares pelas quais foram marcadas mas elas são irrevogavelmente o produto de várias histórias e culturas interconectadas pertencem a uma e ao mesmo tempo a várias casas e não a uma casa particular HALL 2006 p 89 Após a conscientização da hibridação dos povos africanos a literatura africana encontrou uma estratégia de fortalecer suas tradições além de atualizar seus símbolos reforçando também a resistência ao projeto ocidental de desenvolvimento e aculturação Ao utilizarem a língua do colonizador para resistir e ecoar suas vozes a literatura encontra respaldo em Gilles Deleuze e Félix Guattari 2003 quando conceituam uma literatura menor como sendo uma literatura de uma língua menor feita em uma maior ou seja as literaturas africanas feitas nas línguas de seus colonizadores É a partir dessas narrativas que subvertem o sistema o imperialismo os resquícios da colonização que as nações africanas vêm criando seus próprios sistemas literários e suas estéticas Esse novo lugar de enunciação marcado pela diferença é um modo de crítica e teoria que questiona as representações culturais naturalizadas relendo a produção de sentido a construção da identidade através de articulações culturais híbridas e abertas 3 A LITERATURA ESCRITA POR MULHERES À mulher por muito tempo foi imposto o ambiente doméstico como espaço a ser ocupado As mulheres casadas não podiam administrar seus bens votar estudar frequentar ambientes públicos sem acompanhamento de um homem nem trabalhar e muito menos escrever No entanto com a organização dos movimentos feministas a mulher começou a ocupar os espaços que antes eram restritos ao público masculino 33 Na literatura a mulher iniciou a publicação de seus trabalhos utilizando pseudônimos para não sofrer retaliações No entanto essas mulheres escritoras estavam restritas a um grupo de classe alta que teve acesso à educação Apenas em meados do século XX a mulher começa a ganhar espaço e construir uma literatura de autoria feminina 31Empoderamento um instrumento de emancipação O empoderamento ou empowerment é um neologismo vindo do anglicanismo que significa dar ou adquirir poder O empoderamento tem suas origens no século XVI com a reforma protestante impulsionada por Lutero reforma esta que de acordo com Hugh Hewitt 2007 resultou em consequências para além da esfera religiosa O novo movimento questionava a interpretação das escrituras o uso da religião como empresa e ideologias dominantes Lutero em suas 95 teses faz uma série de críticas à igreja e à autoridade papal Com o avanço da imprensa sua obra foi publicada em alemão oportunizando às diversas camadas sociais o acesso a suas ideias Lutero em toda sua obra defende que cada um possa interpretar livremente a Bíblia Como desdobramento do movimento iniciado por Lutero ocorre o empoderamento Uma vez que possibilita a tradução do livro sagrado do latim para a língua local facilitando à comunidade ter acesso aos textos sagrados para leitura e discussão que antes eram restritos apenas a uma elite eclesiástica Embora a tradição do empoderamento tenha surgido no século XVI apenas no século XX com o crescimento dos movimentos emancipatórios relacionados ao exercício da cidadania é que se torna notório O psicólogo estadunidense Julian Rappaport defendia a importância de dar aos grupos marginalizados ferramentas para se desenvolverem Paulo Freire por sua vez reinterpretou essa definição propondo que os próprios grupos invisibilizados deveriam empoderar a si próprios criando ferramentas de resistência FREITAS 2016 ou seja as minorias iniciam um trabalho de desconstrução de ideologias impostas visando mudanças sociais na busca por liberdade autonomia e superação das desigualdades sendo o empoderamento um processo político contextualizado 34 O empoderamento feminino por sua vez é um processo e um produto que necessitam de aprimoramento constante Sendo o empoderarse uma ação coletiva e individual com o intuito de potencializar e conscientizar sobre os direitos e a conquista da autonomia visando a superação da dependência política financeira e social O empoderamento da mulher é essencial para transformação das desigualdades e contribui para que as demandas das mulheres sejam garantidas O conceito de empoderamento é fundamental nos debates sobre gênero e feminismo uma vez que estes se utilizam do termo estudado para difusão do debate sobre poder como fonte de opressão e dominação ao poder como fonte de emancipação desafio e resistência LEÓN1997 De acordo com León 1997 o uso do termo empoderamento por parte dos movimentos feministas apareceu nos anos 1980 como forma de retaliação aos modelos de desenvolvimentos que até então invisibilizaram a luta e a importância das mulheres principalmente nos países de terceiro mundo Para escritora as mulheres reivindicavam primeiramente uma resposta às necessidades materiais para sobrevivência e alternativas para saírem da pobreza Reivindicações estas que consistiam em empregos melhorias de salários escolas para os filhos saúde e para além dessas primeiras necessidades havia a luta e reivindicação por mudanças nas relações de poder entre homens e mulheres O conceito utilizado do termo empoderamento libertador é associado ao pensamento de Paulo Freire sobre a pedagogia do oprimido e as pedagogias libertadoras e com o pensamento de Gramsci sobre a importância da criação de espaços participativos dos subalternos para criação de uma nova ordem social Nas décadas seguintes o termo ganhou popularidade e passa a ser usado pelas agências internacionais de cooperação como a Organização das Nações Unidas ONU e pelo Banco Mundial No entanto o termo perde seu conteúdo político de transformação social e segundo Batliwala 2007 passa a atender aos interesses do neoliberalismo No entanto nos últimos anos o conceito de empoderamento vem sendo ressignificado e ampliado com a propagação da comunicação em redes midiáticas proporcionada pela difusão da internet Vários movimentos de cunho políticosocial 35 encontraram novos meios para disseminar ideologias culturas além de proporcionar o compartilhamento de vivências entre as pessoas as comunidades e grupos de mulheres podendo ser facilitadores do processo de empoderamento Por isso as redes sociais têm função primordial na disseminação e desconstrução do papel da mulher na sociedade viabilizando o poder de escolha e libertandoa de valores não mais condizentes com a vida na sociedade atual Sendo assim o empoderamento perpassa noções de democracia direitos humanos e poder mas não pode ser limitada É para além de conceitos envolve a prática implicando no processo de reflexão sobre a ação Neste sentido o processo de empoderamento envolve tanto as dimensões individuais como também coletivas 32 Feminismos Para iniciarmos a discussão sobre os feminismos em África iremos partir da definição do conceito de feminismo e seu processo ao longo da história nos países ocidentais o feminismo eurocêntrico ou feminismo branco Inúmeras são as definições sobre o termo feminismo que podemos encontrar nos diversos tipos de textos desde livros jornais dicionários revistas e internet De acordo com o dicionário Michaelis o feminismo é definido como sendo a luta das mulheres contra o sistema patriarcal ou seja é um movimento social e político que luta pela igualdade de direitos entre homens e mulheres O feminismo é um movimento que tem origem no contexto da Revolução Francesa 17891799 e dos ideais iluministas 16801780 tem como um dos documentos fundadores do movimento a publicação do livro A Vindication of the Rights of Woman em 1792 O livro reivindicava a legitimação dos direitos políticos para as mulheres dando ênfase ao direito à educação aos direitos trabalhistas e ao direito à maternidade Posteriormente no ano de 1848 começa a primeira onda do feminismo com a luta das sufragistas como eram chamadas as mulheres que se organizaram para lutar pelo direito ao Sufrágio Universal direito ao voto à herança à propriedade à igualdade no contrato de casamento Ainda na primeira onda as mulheres buscavam sua inserção no mercado de trabalho e na vida pública Devido à Revolução 36 Industrial e à Primeira Guerra Mundial as mulheres começam a sair do ambiente familiar para trabalhar nas indústrias e elas agora lutam por melhores condições de trabalho Segundo Pinto 2010 para conquistarem tais direitos as sufragistas promoveram grandes manifestações fizeram greves de fome foram presas entre outras ações Em meados da década de 1960 surge a segunda onda do feminismo Nesse momento o movimento começa a reivindicar o direito reprodutivo e as discussões acerca da sexualidade Esse período é marcado pela crítica aos concursos de beleza uma vez que estes tratavam as mulheres como objetos Ainda nesse período começam a teorizar a origem da condição feminina e foi aí que as feministas começaram a compreender o que unia todas as mulheres a opressão com base no sexo Algumas das escritoras importantes para essas discussões foram Simone de Beauvoir com seu livro O Segundo Sexo Margaret Sanger com o livro Eixo da Civilização Alexander Kollontai com a obra Marxismo e Revolução Sexual e Bases Sociais da Questão Feminina e Beth Friedan com a obra A Mística feminina A partir dessa compreensão são essas mulheres as pioneiras na crítica à pornografia à prostituição à exploração da mulher via casamento e maternidade ao estupro e à violência sexual como ferramenta de manutenção do poder masculino Entretanto os grupos feministas ainda eram formados em sua maioria por mulheres brancas de classe alta que tinham acesso à educação Sendo assim sua pauta não contemplava as necessidades específicas dos grupos de mulheres negras pobres e lésbicas Segundo bell hooks 1984 a pauta feminista da segunda onda atendia especificamente a um seleto grupo de mulheres que estariam entediadas com as vidas que levavam Para hooks esse grupo de feministas brancas e elitizadas não estaria consciente de que suas perspectivas refletiam a opressão quanto à classe e a raça o racismo abunda nos escritos de feministas brancas reforçando a supremacia e negando a possibilidade das mulheres se unirem politicamente através das fronteiras étnicas e raciais HOOKS 1984 p 2 tradução nossa No entanto ela ainda admite que nos últimos anos vem ocorrendo uma maior conscientização por parte dos diversos grupos do movimento feminista 37 De acordo com Spivak 2010 o sujeito subalterno entendia que para além da opressão sofrida por causa do gênero ainda havia a opressão quanto à classe à etnia e sexualidade ou seja consideramos que o sujeito subalterno precisa ser visto de uma forma heterogênea afinal a opressão sofrida por uma mulher branca é diferente da opressão sofrida por uma mulher negra uma vez que a segunda é duplamente oprimida pelo gênero e pela raça Neste momento o feminismo negro ganha força enquanto grupo independente uma vez que ele se baseia nos estudos e teorias como também nas experiências vividas pelas mulheres negras nas análises materiais empíricas e históricas para explicar sua opressão mas também buscavam fortalecer suas raízes com finalidade de fortalecer a identidade negra O fortalecimento das diferenças dos diversos grupos feministas e da filosofia identitária acabou culminando na emergência da terceira onda do feminismo Na década de 1990 se inicia a terceira onda do feminismo As mulheres começam a introduzir na luta feminista a ideia de interseccionalidade como uma ferramenta para entender os diferentes tipos de opressões que atingem diferentes grupos de mulheres É nesse período que se propõem um novo olhar sobre o movimento uma vez que não é mais possível universalizar a mulher É fundamental ressaltar e reconhecer as diferenças e experiências das mulheres A terceira onda do feminismo busca desconstruir pensamentos categóricos padronizados uma vez que cada grupo tem realidades e necessidades de um feminismo que atenda suas especificidades É comum ouvir a afirmação de que o feminismo não é africano no entanto apesar da terminologia ser ocidentalizada na prática as mulheres africanas vêm desde o período précolonial resistindo às opressões do sistema patriarcal Antes da colonização estas sociedades conferiam às mulheres papeis sociais relevantes Após a independência dos países africanos iniciou um processo de fortalecimento dos diversos grupos étnicos existentes No entanto no que tange o movimento feminista este acaba por possuir vertentes diferentes O movimento feminista do Norte segundo Amadiume 1987 utiliza de conceitos e definições do feminismo branco e universalista o que tenta impor ao movimento de feministas do Sul A imagem das mulheres do Sul dominante no Norte é vista para as feministas 38 africanas como uma forma de dominação resquícios da colonização vendo a mulher do Sul como exótica vítima que precisa ser salva pela missão civilizadora Amadiume 1987 O feminismo do Norte lança o olhar sobre as mulheres como sendo Mulheres dos Outros ou seja mulheres que estão aprisionadas pela cultura a que pertencem o que o Ocidente acaba por utilizar como justificativa para salvar essas mulheres a partir da colonização Através desse pensamento culturalista o movimento acaba por estereotipar e distorcer a cultura do Outro Em África essa ação é conhecida como Women in Development WID que surge na Década das Mulheres das Nações Unidas 19751985 e programas destinados às mulheres desenvolvidos pela ONU e outras agências internacionais que eram formadas na sua maioria por mulheres brancas europeias ou norte americanas de classe média Mbilinyi 1992 No pensamento WID a opressão vivenciada pela mulher africana estava no fato dela ser pobre rural iletrada presa à tradição ao casamento e ao ambiente doméstico Tal pensamento acaba por não atender à realidade da mulher africana que em grande parte vive na cidade às diferenças de classes educação e trabalho Nessa perspectiva o movimento feminista africano é reduzido como um feminismo de sobrevivência que luta por questões práticas de sobrevivência como o acesso a comida água educação Pautas como a luta por direitos políticos econômicos e sociais não seriam vistos como questões do feminismo africano Após a denúncia do feminismo do norte e do modelo WID serem baseados no imperialismo e dominação ocidental a crítica feminista africana inicia um primeiro momento de construção e demarcação de um feminismo que atendesse a mulher africana Nas décadas de 1980 e 1990 o movimento feminista africano procura desconstruir as teorias utilizadas pelo feminismo ocidental Nesse primeiro momento as teóricas africanas se baseiam no estudo da história numa perspectiva etnográfica retomando a construção das sociedades pré coloniais em que as mulheres ocupavam papeis importantes em suas comunidades Duas grandes teóricas a respeito dessa temática são as nigerianas Ifi Amadiume e Oyèrónké Oyӗwùmí que estudaram determinadas sociedades tradicionais seguindo a mesma estratégia para ressignificar a categoria gender gênero uma vez que sua 39 conceituação e utilização pode ter sentidos diferentes para as comunidades africanas e para os estudos ocidentais Ifi Amadiume em sua obra Male Daughters Female Husbands Gender and Sex in an African Society 1987 apresenta um estudo etnográfico de uma comunidade Nnobi de etnia Igbo na Nigéria no período précolonial colonial e pós independência Este estudo tem a pretensão de contestar que essa comunidade possuía uma organização social em que os papeis de cada membro não eram estabelecidos de acordo com o gênero As funções de ordem política social econômica religiosa e dentro das construções familiares poderiam ser desempenhadas por ambos os sexos Segundo a autora a posição social que ocupavam as mulheres no espaço público e privado vem a desaparecer com a chegada dos colonizadores que lhes impõem o modelo doméstico e passivo da mulher vitoriana Segundo Oyèrónké Oyewùmí 1997 o feminismo do Norte não enxergava o fato de que havia comunidades em que a categoria mulher não existia enquanto grupo uma vez que o principio de organização era a idade ou a geração O movimento feminista pósafricano Mekgwe 2010 discorda do movimento etnográfico uma vez que este ignora as consequências da colonização e a impossibilidade de recuperar a era précolonial Essa nova forma de pensar entende que a hibridização e as experiências das mulheres africanas são transformadas pelo encontro colonial O feminismo pósafricano propõe superar a dicotomia do colonizadorcolonizado e reconhecer as africanas e os africanos como autores de suas histórias visíveis e possuidores de voz A proposta visa entender a heterogeneidade de identidades incluindo fatores como raça classe etc Mesmo após a repercussão do movimento feminista em África muitas mulheres não se declaravam feministas pois não achavam que o termo correspondia às suas necessidades e realidades Como ressalta Juliana Makuchi NfhaAbbenyi 1997 essa expressão feminista estava mais ligada a um grupo ocidental privilegiado de mulheres e muitas vezes quando a palavra era usada nos contextos socioculturais africanos estava carregada de conotações pejorativas Segundo Spivak 1990 as feministas do primeiro mundo por serem mulheres acreditam estar autorizadas para falar das opressões sofridas pelas mulheres do terceiro mundo apropriandose do seu espaço de fala Segundo a autora essas 40 mulheres devem aprender a falar com as mulheres e não por elas É importante reconhecer suas especificidades e os contextos políticos culturais e institucionais nos quais estão inseridas como ressalta ao dizer que o espaço do qual se fala está sempre atravessado por discursos conflitantes e muda de aspecto conforme a classe social a educação o gênero a sexualidade e a etnia Por isso as africanas que não se declaravam feministas utilizaram outra nomenclatura a saber o mulherismo Proposição teórica nascida nos EUA com Alice Walker que prega que as teorias vindas da Europa não servem para as mulheres negras estejam elas em diáspora ou nativas do continente africano Estas deveriam buscar um reencontro com sua ancestralidade africana uma verdadeira teoria matriarcal e afrocentrada O mulherismo discute questões raciais de classe e sexo como afirma bell hooks 1998 p195 O racismo está infestado na escrita de feministas brancas reforçando a supremacia branca e a negando a possibilidade de que as mulheres se unam politicamente para além de fronteiras étnicas e raciais Para as escritoras mulheristas a opressão racial e de classe são inseparáveis da opressão sexista Muitas escritoras mulheristas descrevem as opressões racial e de classe como tendo precedência sobre a opressão sexista Isto se deve ao fato das mulheristas acreditarem que a emancipação das mulheres negras não pode ser alcançada sem a emancipação da raça inteira As mulheristas portanto acreditam na parceria com seus homens Esta característica distingue o mulherismo do feminismo que é principalmente uma ideologia separatista Chikwenye Okonjo Ogunyemi 1985 também faz uso do termo para descrever a experiência das mulheres africanas no que diz respeito ao mulherismo ser uma forma de feminismo African womanism believes in the freedom and independence of women like feminism OGUNYEMI apud ARNDT 2002 pag 39 Para além Ogunyemi entende que as questões de gênero não podem ser separadas dos outros fatores da realidade da mulher Contudo sua concepção de mulherismo africano pode diferir ligeiramente do mulherismo criado por Alice Walker Primeiro ela critica o uso da palavra negro por considerálo elástico já que tem sido utilizada para se referir a todas as pessoas que não possuem ascendência branca Segundo pelo discurso mulherista estadunidense se concentrar na teoria racial é prioridade Contudo em África priorizaram as questões econômicas e sexistas para assim construir uma teoria autóctone que afete de maneira significativa suas experiências E em terceiro o mulherismo afroamericano incorpora a lesbiandade 41 como uma opção para que as mulheres combatam a opressão No entanto em África essa temática não ganhou espaço pois a estrutura heterossexual do matrimônio e seus desdobramentos na família são fundamentais para a experiência feminina A afroamericana Clenora HudsonWeems criou o conceito de Mulherismo Africana vale reforçar que a escrita é assim mesmo teoria que está destinada exclusivamente às mulheres de ascendência africana Essa demarcação de ser voltado apenas para as mulheres africanas é sua marca distintiva Este teoria também discute questões relacionadas à raça e preconceitos ligados à classe social Para isso Weems elenca dezoito características s i terminologia própria ii auto definição iii a centralidade da família iv uma genuína irmandade no feminino v fortaleza vi colaboração com os homens na luta de emancipação vii unidade viii autenticidade ix flexibilidade de papéis x respeito xi reconhecimento pelo outro xii espiritualidade xiii compatibilidade com o homem xiv respeito pelos mais velhos xv adaptabilidade xvi ambição xvii maternidade xviii sustento dos filhos Outra teoria africana importante para este estudo foi proposta pela nigeriana Molara OgundipeLeslie chamada Stiwanism De acordo OgundipeLeslie as mulheres lutam por igualdade e inclusão nos processos de transformação social política cultural mas sempre mantendo o respeito pelas tradições Também vislumbra a participação de homens na construção do movimento OgundipeLeslie 1994 p 229230 Somase à este manancial de autoras a própria Chimamanda Gnozi Adichie 2015 que afirma que a hierarquia de gênero tem caráter fundamental nas conjunturas sociais Os lugares ocupados pelos sujeitos nessa hierarquia e a desigualdade advinda dela devem ser tratados com cuidado para que as formas de opressão de classe e raça sejam tratados junto com as questões de gênero uma vez que esta não pode ser analisada de forma individual Discorrer sobre feminismo no singular não é mais uma abstração intelectual já que existe uma heterogeneidade de teorias grupos e ações afirmativas femininas Logo falamos em feminismos como aponta Adichie 42 33 As vozes femininas na Literatura Ao longo do desenvolvimento das produções literárias é notável observar a supremacia masculina no que diz respeito à escrita tendo em vista que à mulher até o século XX era delegada a tarefa de cuidar da casa e dos filhos bem como era reduzido seu acesso à educação Esse panorama passa a ser modificado no momento em que as mulheres organizamse para reivindicar seus direitos e começam a se infiltrar no ambiente que antes era privilegiado aos homens passando a escrever e publicar seus textos em jornais Todavia como salienta Zahidé Lupinaci Muzart apud ZOLIN 2009 p 221 Que se valer de pseudônimos masculinos para escapar às prováveis retaliações a seus romances motivadas por esse detalhe referente à autoria É o caso por exemplo de George Eliot pseudônimo da inglesa Mary Ann Evans autora de The mil on the floss e de Middlemarch de George Sand pseudônimo da francesa Amandine Aurore Lucile Dupin autora de Valentine Outras escritoras conseguiram impor seus nomes não sem muito esforço no sério mundo dos homens letrados Caso da inglesa Charlotte Brontë autora de Shirley e Jane Eyre No Brasil diversas foram as vozes femininas que romperam o silêncio e publicaram textos de alto valor literário denunciadores da opressão da mulher embora a crítica não os tenha reconhecido na época O primeiro romance brasileiro de autoria feminina de que se tem notícia foi Úrsula 1859 de Maria Firmina dos Reis foi seguido de muitos outros Para que a mulher pudesse publicar seus textos era necessário criar um pseudônimo masculino para não sofrer retaliações por parte dos leitores Dessa forma apesar das conquistas as mulheres se viam ainda presas ao sistema patriarcal Essa realidade passa a ser modificada de forma lenta consolidandose no século XX com o aumento de mulheres a dedicaremse à escrita ficcional Segundo Zolin 2009 após conhecerem os feminismos essas escritoras entram no mundo da ficção criando narrativas povoadas de personagens femininas conscientes de sua dependência submissão e os processos de opressão que sofrem No continente africano apesar de várias mulheres escritoras serem mundialmente conhecidas o cânone literário das literaturas africanas e das culturas nacionais continuam a ser constituídos em sua maioria por homens Este fato vem sendo denunciado pelas próprias mulheres e pela critica feminista desde os anos 1980 43 Mesmo a mulher africana tendo um papel fundamental no seio familiar como contadora de histórias a elas foi negado por muito tempo o direito a se manifestar textualmente e verbalmente sendo silenciadas pelo sistema patriarcal No entanto essa situação vem sofrendo alterações significativas e algumas escritoras vêm sendo reconhecidas e contribuindo para construção da identidade dos povos africanos e segundo Cunha 2010 p 65 pelo olhar da mulher vaise delineando a visão de um mundo na perspectiva feminina A literatura vem sendo conhecida como instrumento de combate a essa exclusão no imaginário no discurso e nas ideologias No entanto não apenas no continente africano a mulher escritora foi deixada de lado como já fora mencionado acima porém aqui são notáveis as razões culturais e políticas para o reduzido número de mulheres escritoras no cânone das literaturas africanas Esse fato se explica devido à própria conceituação de literatura africana surgir durante o conflito do colonialismo Ela surge como uma afirmação anticolonial em que a cultura assume um papel fundamental Aqui é visto como uma identidade africana negra moldada e protagonizada pela elite masculina contra o colonizador Segundo Brown 1981 a limitação da mulher na literatura não é responsabilidade exclusiva do colonialismo uma vez que nas culturas tradicionais de suas sociedades havia também a desigualdade de gênero o que acabou sendo agravado quando o colonizador chega à África Outra razão pela qual é reduzido o número de mulheres escritoras está o fato de não ter havido até pouco tempo equidade de oportunidades educacionais para homens e mulheres Dessa forma graduarse em uma universidade era algo ainda mais distante da realidade feminina Apesar de todos os impasses as literaturas de autoria feminina acabaram conseguindo se estabelecer O marco dessa nova produção acontece no ano de 1966 com a publicação de dois romances The promised land da queniana Grace Ogot publicado pela editora East African Publishing House e Efuru da nigeriana Flora Nwapa publicado pela editora Heineman Stratton 1994 que buscam evidenciar as formas de resistência vinculadas a questões de gênero Com a independência dos países africanos os primeiros escritos de mulheres são autobiográficos como tentativa de contribuir para criação da sua própria identidade Porém ao lado dos problemas políticos e sociais que a literatura escrita 44 por homens discutia estes textos acabaram sendo considerados distantes do compromisso social e vistos como uma literatura de menor valor É nesse cenário pouco propício à escritura de autoria feminina que surge Chimamanda Ngozi Adichie com obras que tematizam o universo da mulher com sensibilidade e um apuro estilístico que mescla vocábulos de origem africana e termos da oralidade com a língua inglesa imposta pelo colonizador Desse modo ela tece histórias de mulheres que ao longo das obras constroem suas identidades a partir do empoderamento Chimamanda Ngozi Adichie nasceu em 15 de setembro de 1977 na cidade de Abba estado de Anambra sul da Nigéria De etnia Igbo passou a infância na cidade universitária de Nsukka no estado de Enugu onde seu pai James Nwoye Adichie trabalhou como professor de estatística na Universidade da Nigéria e sua mãe Grace Ifeoma Adichie era secretária Durante os anos de escola recebeu prêmios acadêmicos e publicou seus primeiros textos uma coletânea de poemas Decisions Decisões em 1997 e uma peça de teatro intitulada For love of Biafra Por amor a Biafra em 1998 ambos sob o pseudônimo de Amanda N Adichie Iniciou o curso de Medicina na Universidade da Nigéria e permaneceu por um ano e meio Nesse período foi editora da revista The Compass publicada pelos alunos Aos 19 anos mudouse para os Estados Unidos pois ganhou uma bolsa de estudos da Drexel University na Filadélfia para o curso de Comunicação Em seguida transferiuse para a Eastern Connecticut State University onde estudou Comunicação e Ciência Política Lá escrevia artigos para a revista da Universidade Campus Lantern Formouse em 2001 e concluiu o Mestrado em Escrita Criativa na Johns Hopkins University em Baltimore Maryland Também fez mestrado em Estudos Africanos pela Universidade de Yale e recebeu financiamentos de universidades como Princeton e Harvard para pesquisa e produção de seus livros Seu primeiro romance Purple Hibiscus Hibisco Roxo foi publicado em 2003 nos EUA por uma pequena editora Algonquin Books na Carolina do Norte e em 2004 no Reino Unido e na Nigéria A obra foi aclamada pela crítica e recebeu diversos prêmios sendo um dos principais o Commonwealth Writers Prize for Best First Book com a finalidade de incentivar novos escritores de ficção e divulgar sua 45 literatura para outros países O romance já foi traduzido para 20 línguas dentre as quais o português brasileiro em 2011 No ano de 2006 o segundo romance Half yellow sun Meio sol amarelo é publicado por editoras dos Estados Unidos do Reino Unido e da Nigéria Foi também sucesso de crítica sendo incluído na lista dos 100 livros mais notáveis do ano de 2006 pelo jornal The New York Times Recebeu em 2007 o Orange Prize de ficção prêmio entregue anualmente ao melhor romance escrito por uma mulher em língua inglesa e ao qual Purple hibiscus havia sido indicado anteriormente O romance foi traduzido para 25 línguas e chegou ao Brasil em 2008 Também foi adaptado para o cinema em 2013 em uma parceria NigériaEstados Unidos sendo filmado na Nigéria lugar onde se passa a trama Seu terceiro livro The thing around your neck A coisa à volta do teu pescoço publicado em 2009 é uma coleção de 12 contos publicados em jornais e revistas diversos Já foi traduzido para 10 línguas e foi um dos finalistas ao prêmio de escritores do Commonwealth de 2010 Em 2013 foi publicado seu terceiro romance Americanah que foi selecionado pelo New York Times como um dos 10 melhores livros de 2013 além de estar na lista dos melhores de 2013 do canal britânico BBC e do jornal The Guardian Em 2014 seu discurso apresentado em dezembro de 2012 na conferência TEDxEuston intitulado We should all be feminists Todos devemos ser feministas foi publicado como livro e traduzido para cinco línguas Em outubro de 2016 Adichie publicou em sua página oficial do Facebook uma carta endereçada a uma mulher de nome Ijeawele intitulada Dear Ijeawele or a feminist manifesto in fifteen suggestions No texto ficcional ela dá dicas a uma amiga que acabou de ter um bebê uma menina de nome Chizalum sobre como criar a criança para que se torne uma feminista Ela incentiva a mãe a falar com a filha sobre a divisão de tarefas domésticas papéis de gênero relacionamentos amorosos dignidade respeito opressão padrões culturais e sociais diversidade entre outros A publicação teve grande repercussão e foi por muitos interpretada como um manifesto da própria escritora sobre o tipo de criação que pretende dar à filha Após toda repercussão o texto foi publicado como livro 46 Em suas obras Adichie propõe discursos para pensar um feminismo para além dos homens não fazendo um confronto mas sim uma problematização da questão de gênero levando a mensagem de igualdade entre homens e mulheres no que tange às cobranças sociais igualdade de oportunidades no âmbito profissional e econômico Portanto é notável o papel que Chimamanda assume na literatura de autoria feminina e na literatura africana de língua inglesa e póscolonial 4 HIBISCO ROXO UMA LITERATURA DE RESISTÊNCIA FEMININA O romance Hibisco Roxo tem como temática o empoderamento feminino diante de um sistema patriarcal Quatro são as mulheres a serem analisadas nesse estudo e todas elas rompem de formas diferentes os estereótipos de mulheres submissas e frágeis São elas Kambili Beatrice Ifeoma e Amaka mulheres de etnia Igbo que vivem na Nigéria 41 Personagens e Feminismos Diante de uma realidade em que todo o continente africano fora colonizado pelos povos europeus suas estruturas sociais políticas e econômicas trocadas pela cultura ocidental com as tensões internas provocadas pelos resquícios desse processo no pósindependência a opressão da mulher é fortalecida pelos discursos de superioridade Diante dessa realidade as mulheres se veem oprimidas pela cultura tradicional e pela cultura imposta pelo europeu mas que aos poucos vem sendo desconstruída como podemos observar na literatura de Adichie com as personagens Ifeoma e Amaka que ao longo da obra mostram estar cientes da opressão de gênero à qual são submetidas mas que transgridem por não aceitarem o que lhes é imposto Por isso sentem a necessidade de fortalecimento junto às outras personagens da obra pois como afirma Adichie em relação à luta das mulheres contra o machismo e o sistema patriarcal só se conseguirá acabar com a opressão de gênero quando se acabar com opressão de raça Para além disso vemos que essas mulheres enfatizam a necessidade da luta para oportunizar as mulheres a inserção no ambiente educacional político econômico A obra nos apresenta mulheres que estão em diferentes fases de construção de suas identidades quanto ao processo de empoderamento A princípio analisaremos as personagens Ifeoma e Amaka que enfrentam o poder patriarcal 47 uma vez que não se deixam silenciar diante das imposições europeias bem como da cultura tradicional do povo Igbo Estas personagens ao longo da obra inspiram e ajudam as demais personagens a empoderarse Ifeoma é uma professora universitária viúva que cria sozinha seus três filhos Amaka Obiora e Chima que vivem na cidade de Nsukka Essa família passa por dificuldades financeiras devido aos problemas enfrentados pela universidade interferindo na falta de pagamento aos funcionários Ifeoma não atende as características de uma mulher submissa e silenciada pelas tradições e pelo sistema colonial questionando os padrões sociais e culturais da sociedade nigeriana como o casamento e a vida doméstica Nwunye algumas vezes a vida começa quando o casamento termina p 39 É notável que a personagem desconstrói o que é proposto à mulher pela tradição Igbo uma vez que este povo entende o laço matrimonial como forma de selar o relacionamento entre famílias distintas porquanto o interesse familiar prevalece sobre o individual Ifeoma sempre se mostra distante do que propõe o sistema patriarcal e as tradições nativas como podemos observar em uma conversa com seu pai PapaNnukwu que ter um emprego é mais significativo que ter um marido Meu espírito vai interceder em seu favor para que Chukwu mande um bom homem para tomar conta de você e das crianças Seu espírito que peça a Chukwu para acelerar minha promoção a professora sênior é só isso que eu quero disse tia Ifeoma p43 Como mencionado acima Ifeoma almeja ascender profissional e financeiramente através de seus próprios méritos o que remete ao pensamento de Adichie quanto à importância da mulher ser autônoma e independente Critica também o governo pelo abuso de poder dos cargos dentro das repartições públicas A gente não pode cruzar os braços e permitir que isso aconteça mba Onde já se viu ter uma universidade com apenas um administrador p 111 48 Assim como Ifeoma a filósofa e pioneira do movimento feminista Mary Wollstonecraft discutiu em sua publicação A Vindication of the Rights of Woman 1972 a aversão dos homens na sociedade em que se encontrava em inserir as mulheres na educação formal De acordo com Wollstonecraft as mulheres tinham os mesmos direitos que os homens inclusive à educação e formação do pensamento crítico pois assim deixariam os estereótipos de serem apenas donas do lar e meros objetos Em sua casa Ifeoma coordena a rotina dos filhos e cada um tem obrigação de realizar determinadas atividades domésticas o que mais uma vez corrobora o feminismo pregado por Adichie em seu manifesto Para educar crianças feministas onde mulheres e homens devem dividir as atividades domésticas No ambiente familiar apesar de serem católicos todos respeitam e preservam a religião tradicional Ifeoma também abre espaço para que seus filhos possam expor suas opiniões sempre os incentivando a pensar com autonomia e a serem críticos A personagem não se deixa intimidar pela família do marido que morreu em um acidente no que diz respeito a suspeita dela têlo assassinado No entanto ela é consciente de que a família do seu marido é regida pelas tradições Também enfrenta seu irmão Eugene sobre como ele trata o pai Pa Nnukwu pelo fato dele não se deixar converter pela evangelização britânica o que mais tarde acarreta no afastamento da vida de seus netos bem como não ter acesso à casa de Eugene Quando seu pai morre Ifeoma se opõe à ideia de fazer um enterro cristão pois ele nunca aceitara a religião Por fim acaba por não aceitar o apoio financeiro de Eugene por saber que aceitando teria que se submeter à vontade do irmão Ifeoma durante toda a história se mostra uma mulher a integrar a luta do Feminismo e Mulherismo Africana resgatando a busca pela justiça igualdade integridade harmonia equilíbrio ordem como meio de enfrentar o racismo e patriarcado Por isso vemos na obra como é forte a influência de Ifeoma para as outras personagens dando a elas força para se desprender das amarras do personagem Eugene Amaka segunda personagem traz na prática conceitos das teorias feministas e mulheristas pois não aceita o que o sistema patriarcal impõe sobre a mulher não ter voz e vez Ela faz uso da voz pra dizer o que quer e o que acha sobre o espaço 49 que a cerca sem medir as palavras almeja dar continuidade aos estudos escolher o curso que quer fazer e ascender profissionalmente Ela é filha de Ifeoma é uma adolescente que gosta de questionar Sua personalidade e aparência demonstram sua ousadia e confiança em si mesma Valoriza a língua nativa Igbo as tradições para demonstrar seus gostos musicais e assim não aceita as imposições culturais do ocidente Eu quase só ouço músicos nativos Eles são socialmente conscientes têm algo real a dizer Fela Osadebe e Onyeka são os meus preferidos Aposto que você nunca ouviu falar deles aposto que gosta de pop americano como os outros adolescentes p 60 Amaka se mostra reflexiva e contrariada quanto à figura da igreja e missão civilizatória por impor mesmo após a independência a escolha de um nome em inglês para sua crisma e questiona o Padre Amadi Mas então qual é o objetivo perguntou Amaka a padre Amadi como se não houvesse escutado o que sua mãe dissera O que a Igreja está dizendo é que só um nome inglês torna válida a nossa crisma O nome Chiamaka diz que Deus é belo Chima diz que Deus sabe mais Chiebuka diz que Deus é o melhor Por acaso eles não glorificam Deus da mesma forma que Paul Peter e Simon p 135 Em todas as passagens a personagem demonstra segurança no que diz de forma autônoma sempre mostrando não precisar ser guiada por homem algum A adolescente demonstra em seu discurso e atitudes que o gênero não deve ser uma forma de distinção entre as pessoas Amaka abre os olhos de Kambili para uma nova realidade na qual mulheres devem estudar mas não para conquistar maridos sim para dizer o que pensam ter vez e voz conquistar sua independência como ressalta a teoria Stiwanism de OgundipeLeslie que aponta a urgência das mulheres africanas se responsabilizarem por elas mesmas para conseguirem a sua emancipação e serem agentes de suas próprias histórias Assim podemos observar também o desejo de Amaka em ser agente de sua história na fala de sua mãe quando esta apresenta o campus a Kambili e Jaja e referese ao alojamento como possível moradia de sua filha ao entrar na universidade e fundar movimentos ativistas 42 Florescer do Empoderamento 50 A obra Hibisco Roxo nos traz também personagens que estão em processo de empoderamento e juntamente com as outras personagens estão em luta para a construção de um sistema antipatriarcal A narradorapersonagem Kambili vai construindo sua identidade empoderada ao longo da obra Iremos dividir a obra em dois momentos antes da visita a Nsukka e após a visita a Nsukka No primeiro momento Kambili apresenta ao leitor sua família sua casa e seu cotidiano Eugene ou Papa como é chamado por Kambili é dono de fábricas de alimentos e de um jornal progressista de oposição ao governo Foi educado por missionários católicos e tornouse um fundamentalista cristão que mantém sua família sob um domínio doentio e totalitário impedindoos de sequer pensarem por si mesmos Ele rejeita toda e qualquer ligação com práticas tradicionalistas que trata como paganismo afastandose inclusive do próprio pai Eugene não permite que os filhos e a esposa utilizem o Igbo para conversar com as pessoas de fora deixando a língua nativa para ser utilizada em alguns momentos da vida doméstica Ele ainda utiliza a língua igbo quando está com raiva violento o que faz da língua uma referência ao selvagem ao mesmo tempo em que mostra o quanto à língua está internalizada mesmo com o esforço consciente em apagala Beatrice a Mama a princípio é submissa ao marido incapaz de contrariálo de voz sempre baixa como se cada gesto seu fosse calculado para não aborrecer o marido Jaja irmão mais velho de Kambili embora não se caracterize exatamente como um adorador do pai assim como toda a família submetese ao regime violento que Eugene impõe sobre a casa Kambili tem por seu pai um misto de admiração e medo Logo no início da obra é perceptível que as personagens só se comunicam verbalmente de forma rápida se utilizando mais do olhar como uma linguagem secreta Senti um frio na barriga e olhei para Jaja Ele me encarou O que íamos dizer a Papa p 262 É notável o medo que os filhos têm do pai como afirma Kambili ao conversar com Jaja sobre o bebê que a mãe deles esperava Mama está grávida disse eu Jaja voltou e se sentou na beirada da cama Ela contou para você Contou Vai ter o filho em outubro Jaja fechou os olhos por um instante e abriuos novamente 51 Nós vamos cuidar do menino Vamos protegêlo Eu sabia que Jaja estava falando em proteger o bebê de Papa mas não fiz nenhum comentário p7576 É crucial mencionar nesta análise que Jaja é igualmente oprimido pelo pai Jaja integra junto às personagens femininas da obra a luta contra a opressão de gênero corroborando assim com o conceito trazido por Adichie e pelas teorias Mulheristas e Stiwanism em que considerase a necessidade de cooperação entre homens e mulheres pois esta forma de opressão está diretamente ligada à opressão de raça Nesse primeiro momento Kambili tem sua fala limitada pela opressão mas mesmo quando não está com seu pai ela se sente insegura para se comunicar com os outros interlocutores e mesmo quando quer falar se sente sem voz Queria dizer às meninas que meu cabelo era de verdade que eu não usava extensões mas as palavras não saíam Eu sabia que elas ainda estavam conversando sobre cabelo comentando como o meu era comprido e cheio Queria conversar com elas rir com elas rir tanto até começar a pular no mesmo lugar como elas faziam mas meus lábios insistiram em permanecer fechados Como eu não quis gaguejar comecei a tossir e corri para o banheiro p 472 A história tem seu rumo traçado quando Ifeoma irmã de Eugene insiste para que o irmão deixe os filhos passarem alguns dias em sua casa na cidade de Nsukka onde fica a universidade da Nigéria A principio Kambili estranha a forma como seus primos e sua tia vivem um ambiente em que eles podem se expressar livremente mas algum tempo depois a narradora passa a desejar essa liberdade também Diversas passagens da obra mostram a importância de Ifeoma por induzir Kambili a descobrir sua própria voz Nesse segundo momento após a visita à casa da tia Kambili passa a se tornar sujeito e fica surpresa quando ouve seu choro sua risada sua voz Eu ri O som foi esquisito como se eu estivesse ouvindo a risada de um estranho numa gravação Acho que nunca tinha me ouvido rir antes p 587 52 A partir daqui o silêncio de Kambili não é mais de submissão Agora ela sente autonomia para decidir se responde ou se cala Após o pai a agredir e Kambili ir para o hospital em coma após tanto apanhar a opressão e o silêncio deixam de se fazer presentes As marcas físicas e psicológicas deixadas fazem Kambili entender a necessidade de mudança e então se recusa a olhar e falar com o pai Ela não se utiliza de palavras para enfrentálo mas silencia com desprezo No entanto Jaja é o primeiro a enfrentar o pai quando decide não mais receber a hóstia criticando os elementos sagrados e mostrando que não se submeterá às vontades do pai Jaja você não recebeu a comunhão disse Papa baixinho num tom quase interrogativo Jaja olhou para o missal sobre a mesa como se estivesse falando com ele Aquele biscoito me dá mau hálito p 24 O fato de Jaja ser o primeiro personagem a enfrentar o pai se dá pelo fato de que a submissão está mais atrelada à mulher e para ela escapar da subjugação seria mais difícil Após o domingo de ramos Kambili se mostra como sujeito ativo que não mais se cala Ela canta durante o banho e não mais se importa em cantar na frente das outras personagens Eu ri Ri porque as alamandas eram bem amarelas Ri de imaginar o gosto ruim que seu suco branco teria se o padre Amadi realmente tivesse tentado sugálo Ri porque os olhos do padre Amadi eram tão castanhos que eu podia ver meu reflexo neles p 876 Portanto é perceptivel que Nsukka assim como as personagens da tia e da prima passa a representar para a personagem a liberdade Enquanto voltávamos a Enugu eu ri alto mais alto que o canto de Fela Ri porque as ruas sem asfalto de Nsukka sujam os carros de poeira durante o harmattan e de lama grudenta durante a estação de chuvas Porque nas ruas que são asfaltadas os buracos surgem de repente como presentes surpresa o ar cheira a colinas e história e a luz do sol espalha a areia e a transforma em pó de ouro Porque Nsukka pode libertar algo no fundo de sua barriga que sobe até a garganta da gente e sai sob a forma de uma canção sobre a liberdade E sob a forma de riso p313 53 O processo de empoderamento de Beatrice se dá de forma mais lenta porém não menos importante À primeira vista Beatrice aparenta ser submissa ao marido Através de Kambili nos é apresentada a violência doméstica sofrida por ela como discorre a narradora Eu estava no meu quarto após o almoço lendo o capítulo V da Epístola de Tiago porque eu ia falar das raízes bíblicas da unção dos doentes durante a hora da família quando ouvi os sons Pancadas pesadas e rápidas na porta talhada à mão do quarto dos meus pais Imaginei que a porta estava emperrada e que Papa estivesse tentando abrila Se imaginasse aquilo sem parar talvez virasse verdade Eu me sentei fechei os olhos e comecei a contar Contar fazia o tempo passar um pouco mais rápido fazia com que não fosse tão ruim Às vezes acabava antes de eu chegar ao número vinte Eu já estava no dezenove quando o som parou Ouvi a porta se abrindo Os passos de Papa na escada pareceram mais pesados mais desajeitados do que o normal Saí do quarto no mesmo segundo que Jaja saiu do dele Ficamos no corredor vendo Papa descer Mama estava jogada sobre seu ombro como os sacos de juta cheios de arroz que os empregados da fábrica dele compravam aos montes na fronteira com Benin Ele abriu a porta da sala de jantar Ouvimos a porta da frente sendo aberta e o ouvimos dizer algo para o homem que guardava o portão Adamu p104 Tem sangue no chão disse Jaja Vou pegar a escova no banheiro Cada vez após ser espancada Beatrice limpa uma estante da sala e as estatuetas A personagem encontra na limpeza uma fuga para sua realidade e como forma de expressar seu sofrimento Boa tarde Madame nno disse Quer comer alguma coisa agora ou só depois de se banhar Hã perguntou Mama que por um segundo pareceu não ter entendido o que Sisi dissera Agora não Sisi agora não Pegue água e um pano para mim Mama ficou abraçando o próprio corpo no centro da sala de estar perto da mesa de vidro até que Sisi trouxe uma tigela com água e um pano de prato A estante tinha três prateleiras de vidro delicado e nas três havia estatuetas de bailarinas na cor bege Mama começou na prateleira mais baixa limpando tanto o vidro como as estatuetas sobre ele Eu me sentei na ponta do sofá de couro mais próxima dela tão perto que poderia esticar a mão e tocar sua canga p 113114 É notável que a qualquer tentativa de Beatrice em resistir à autoridade de seu marido mesmo estando grávida gerava mais violência Eugene se utiliza da violência para que a mulher pague pelo pecado de contrariar suas vontades O 54 preço a pagar pela violência sofrida são os diversos abortos A personagem teme não poder ter mais filhos e lhe aflige o medo de ser rejeitada pelo marido Ao conversar com Ifeoma ela conta que a comunidade já sugeriu a Eugene um segundo casamento no entanto ele não aceita o que acaba gerando nela um sentimento de gratidão A umunna sempre diz coisas que magoam disse Mama Nossa própria umunna não disse a Eugene que ele devia escolher outra esposa pois um homem de sua estatura não pode ter só dois filhos Se pessoas como você não tivessem ficado do meu lado naquela época Pare pare com essa gratidão Se Eugene tivesse feito isso a perda teria sido dele não sua p 242 Entretanto a opressão por parte de Eugene chega ao fim quando Beatrice decide envenenar o marido Mama amarrou melhor a canga e foi até as janelas abriu as cortinas e verificou se os basculantes estavam fechados impedindo que a chuva entrasse na casa Seus movimentos eram tranqüilos e lentos Quando ela falou sua voz também estava tranqüila e lenta Comecei a colocar o veneno no chá dele antes de ir para Nsukka Sisi arrumouo para mim o tio dela é um curandeiro poderoso Por um longo e silencioso tempo não consegui pensar em nada Minha mente estava vazia eu estava vazia Então lembrei de beber goles do chá de Papa goles de amor com o líquido escaldante queimando o amor em minha língua Por que você colocou no chá perguntei a Mama me erguendo do sofá com a voz alta quase num grito Por que no chá Mama porém não respondeu Nem quando me levantei e a sacudi até Jaja me arrancar de perto dela Nem quando Jaja me enlaçou e se virou para incluíla no abraço do qual ela se afastou p934935 Após a morte do marido Beatrice desafia as tradições se recusando a cortar o cabelo e vestirse de preto ou branco Seu filho Jaja assume a autoria do crime e é preso Após esse momento Beatrice o emblema do sujeito subalterno na obra tem sua voz emudecida novamente como afirma Spivak se no contexto da 55 produção colonial o sujeito subalterno não tem história e não pode falar o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade e é notório que as agressões sofridas ao longo da vida deixaram em Beatrice marcas e traumas Contudo apesar de todos os problemas gerados pelo sistema patriarcal e pela colonização europeia no contexto nigeriano o romance é finalizado com um tom otimista Kambili e Beatrice estão felizes com a saída de Jaja da prisão e fazem planos de ir visitar a tia Ifeoma e seus primos nos Estados Unidos Vamos levar Jaja primeiro a Nsukka e depois vamos aos Estados Unidos visitar tia Ifeoma digo Vamos plantar laranjeiras novas em Abba quando voltarmos e Jaja vai plantar hibiscos roxos também e eu vou plantar ixoras para podermos sugar o suco das flores Estou rindo Coloco o braço em volta do ombro de Mama e ela se recosta em mim e sorri Lá em cima nuvens que parecem algodão tingido pairam bem baixas tão baixas que sinto que posso esticar o braço e espremer a água delas As novas chuvas vão cair em breve p 978979 Ao longo de toda a obra nos são apresentados problemas desencadeados por um processo desenfreado de tentar impor ao outro sua cultura através da língua e religião No entanto para as mulheres esse processo é ainda mais devastador A mulher aqui é trazida segundo a ótica de Spivak discutida acima como sujeito subalterno por ser oprimida quanto à questão de raça gênero e classe social As personagens Ifeoma e Amaka são oprimidas quanto aos três tipos de opressão mencionados anteriormente além do que é imposto também pelas tradições de sua tribo mas não se deixam calar e tentam combater esse sistema ao fazerem uso da voz e buscarem sempre a autonomia A nós também são apresentadas duas outras personagens Kambili e Beatrice que ao se relacionarem com Ifeoma e Amaka são fortalecidas e iniciam o processo de desconstrução e empoderamento Kambili e Beatrice são a princípio silenciadas pelo fundamentalismo religioso e pelo sentimento de superioridade de Eugene Tudo gira em torno do pai e a ele cabe tomar todas as decisões horários padrões roupas Kambili a princípio é uma adolescente submissa e subalterna que se cala diante da opressão do pai e entende esta como forma de proteção até ter contato com a família da tia A partir desse encontro Kambili entende que é necessário 56 tomar uma postura diferente para situações onde antes se via introspectiva Beatrice mesmo após tantas agressões romantiza o casamento que vê como uma benção na vida de toda mulher sendo assim a principal figura do sujeito subalterno na obra É notável também as consequências das agressões e do silenciamento pois mesmo após a morte de Eugene Beatrice ainda não consegue fugir das marcas do relacionamento tóxico 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A escolha da temática sobre o feminismo e empoderamento da mulher em Hibisco Roxo deuse pela nossa identificação com a temática Somase à isso a grande importância da produção literária de autoria feminina para o entendimento das diversas histórias do continente africano onde a mulher é um agente ativo de suas trajetórias assim como no processo de construção dos países africanos não caindo no essencialismo de uma história única Dado como principal objetivo analisar como as vozes femininas resistiram às opressões de gênero impostas pela religião pelo patriarcado e pelas tradições foi possível observar como a voz dessas mulheres foi silenciada por muito tempo pela figura do paimarido porém ao longo da obra ganha poder abandonando o silenciamento a resignação e a opressão Juntas as mulheres lutam e já não aceita submeteremse nem falar apenas para concordar e agradar Essas mulheres se utilizam da sororidade para encontrar forças para continuar a luta por autonomia e liberdade Concluímos que a figura do pai Eugene traz consigo os resquícios da colonização sendo ele um colonizado que foi aculturado e internalizou a cultura do colonizador como superior à sua própria cultura Com a análise do romance observamos que Chimamanda Ngozi Adichie utiliza da literatura para problematizar a história de seu país e a condição da mulher na sociedade apresentando um conjunto de reflexões sobre a construção de uma identidade nacional após a guerra de Biafra o período póscolonial e o uso da língua do colonizador para denunciar as marcas do período colonial e as opressões enfrentadas pela mulher nigeriana 57 De acordo com Spivak 2010 cabe à escritora a tarefa de contribuir para desconstruir a dicotomia entre homem e mulher e proporcionar assim um espaço de fala e empoderamento da mulher subalterna A realidade vivenciada por cada mulher estudada neste trabalho é diferente mas isso não as distancia pelo contrário as aproxima O sentimento de sororidade união e fortalecimento da resistência feminina frente às situações de opressão somase ao pensamento das teorias Stiwanism e Mulherismo Com a finalização deste trabalho esperamos possibilitar a expansão do alcance da obra de Adichie como ferramenta de desconstrução de uma África Única e refletir sobre as consequências da colonização principalmente para as mulheres nigerianas de etnia Igbo Apontamos também para importância da representação da mulher negra e africana pela perspectiva de uma mulher negra nigeriana Então é importante reforçar a importância da literatura como meio de conhecimento informação e reflexão para apresentar à quem lê vozes e histórias marginalizadas em tempos de intolerância racismo machismo e xenofobia vivenciadas nos dias atuais Esperamos ainda que as discussões e reflexões levantadas aqui sejam mais uma contribuição para os estudos culturais e póscoloniais assim como o emprego da literatura não canônica para problematizar a emergência de vozes dissonantes 6REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDERSON Benedict Comunidades Imaginadas reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo São Paulo Companhia das Letras 2008 ACHEBE Chinua An Image of Africa Racism in Conrads Heart of Darkness London WW Norton and Co 1988 ACHEBE Chinua O mundo se despedaça Tradução Verra Queiroz da Costa e Silva São Paulo Editora Companhia das Letras 2009 1958 58 ADICHIE Chimamanda Ngozi Hibisco roxo Tradução Julia Romeu São Paulo Companhia das Letras 2011 ADICHIE Chimamanda Ngozi Sejamos todos feministas São Paulo Companhia das Letras 2014 ADICHIE Chimamanda Ngozi Para educar crianças feministas um manisfesto São Paulo Companhia das Letras 2017 Tradução Denise Bottmann ARNDT S African Gender Trouble and African Womanism An Interview with Chikwenye Ogunyemi and Wanjira Muthoni Signs vol 25 No 3 pp 7097126 2000 BAKHTIN M Marxismo e Filosofia da Linguagem São Paulo HUCITEC 1988 BATLIWALA Srilatha Taking the Power out of Empowerment An Experiential Account Development in Practice vol 17 no 45 2007 pp 557565 JSTOR JSTOR Disponível em Acesso em 07 de abril de 2018 BEAUVOIR Simone O segundo sexo fatos e mitos São Paulo Difusão Européia do Livro 1960a BERTAUX Pierre África Desde laprehistoria hasta los Estados actuales Siglo Veintiuno Editores 1971 BHABHA Homi K O local da cultura Trad Myriam Ávila Eliana Lourenço de Lima Reis Gláucia Renate Gonçalves Belo Horizonte UFMG 1998 BROWN Lloyd Wesleley Women writers in Black Africa Westport London Greenwood Press 1981 CANDAU Joël Memória e identidade Trad Maria Letícia Ferreira São Paulo Contexto 2011 CENTRAL INTELLIGENCE AGENCY CIA The World FactbookWashington D C 2012 Disponível em httpswwwciagovlibrarypublicationstheworldfactbook Acesso em 02 de novembro de 2018 CONRAD Joseph Heart of Darkness London Penguin Books 1994 59 CUNHA Raquel Ferro da A voz feminina constituição da literatura póscolonial moçambicana Revista Historiador n 3 ano 3 dez 2010 p 6472 Disponível em Acesso em 11 jan 2019 DELEUZE Gilles GUATTARI Félix Kafka para uma literatura menor Lisboa Assírio e Alvim 2003 DIFUILA Manuel Maria Historiografia da História de África In Actas do Colóquio Construção e Ensino da História de África Lisboa Linopazas 1995 p 51 DIOP Cheikh Anta Nations nègres et culture De lantiquité nègre égyptienne aux problèmes culturels de lAfrique noire daujourdhui Présence africaine Paris 1979 DUSSEL Inês O currículo híbrido domesticação ou pluralização das diferenças In LOPES A C MACEDO E org Currículo debates contemporâneos São Paulo Cortez Editora 2002 p 5577 FANON Frantz Pele negra máscaras brancas Salvador EDUFBA 2008 FANON Frantz Os condenados da terra Juiz de Fora UFJF 2005 FREIRE Paulo Conscientização São Paulo Cortez e Moraes 1979 Ação cultural para a libertação e outros escritos Rio de Janeiro Paz e Terra 1987 Pedagogia do oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 1981 FREIRE Paulo SHOR Ira Medo e ousadia o cotidiano do professor Rio de Janeiro Paz e Terra 1986 FREITAS Ana A origem do conceito empoderamento a palavra da vez Disponível em httpagenciapatriciagalvaoorgbrmulheresdeolho2origemdo conceitodeempoderamentopalavradavez Acesso em 18 nov 2018 GRAMSCI A Cadernos de Cárcere Rio de Janeiro Civilização Brasileira 2006a V I GLISSANT É Introdução a uma Poética da Diversidade Juiz de Fora UFJF 2005 60 HALL Stuart A identidade cultural da pósmodernidade Ria de Janeiro DPA 2006 HEWITT Hugh Blog entenda a revolução que vai mudar o seu mundo Rio de Janeiro Thomas Nelson 2007 HOBSBAWM Eric J Etnia e Nacionalismo na Europa de Hoje In Org HOBSBAWM Eric J A era das revoluções Europa 17891848 Trad Maria Tereza Lopes Teixeira e Marcos Penchel 17ª edição Rio de Janeiro Paz e Terra 1977 HOOKS B Black women shaping feminist theory In Feminist theory from margin to center Boston South End Press 1984 Disponível em httpswwwresearchgatenetpublication276532717Mulheresnegrasmoldandoa teoriafeminista Acesso em 10 de Out 2019 HudsonWeems C 1993 Africana Womanism Reclaiming Ourselves Troy MI Bedford Publishers IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística Países Disponível em httpspaisesibgegovbr 2018 IFI Amadiume Male Daughters Female Husbands Gender and Sex in an African Society London and New Jersey Zed Books 1987 JAMBA Almerindo Jaka Cheikh Anta Diop revisitado Edições Pedago Angola 2015 LEÓN Magdalena de Poder y Empoderamiento de las Mujeres Bogotá coedición del Tercer Mundo Editores Fondo de Documentación Mujer y Genero de la Universidad Nacional de Colombia 1997 MBILINYI Marjorie Research Methodologies in Gender Issues In MEENA Ruth Org Gender is Southern Africa Conceptual and Theoretical Issues Harare Sapes Books 1992p157195 MEKGWE Pinkie Post African Feminism Third Text 189194 2010 MICHAELIS Moderno Dicionário da Língua Portuguesa Disponível em httpsmichaelisuolcombrmodernoportugues Acesso em 05 Set 2019 MUDIMBE Valentin Yves A invenção de África Gnose filosofia e a ordem do conhecimento Mangualde Portugal Luanda Edições Pedago Edições Mulemba 2013 61 NFAHABBENYI J M Gender in African womens writing identity sexualityand difference Bloomington Indiana University Press 1997 NWAPA Flora Efuru Londres Heineman Stratton 1994 OGOT Grace The Promised Land Nairobi Kenya East African Pub House 1966 OGUNDIPELESLIE M 1994 Recreating Ourselves African Women Critical Transformations Africa World Press Trenton OGUNYEMI C 1985 Womanism the Dynamics of the Contemporary Black Female Novel in English Signs vol 11 No1 1996 Africa WoMan Palava The Nigerian Novel by Women The University of Chicago Press Chicago OLIVEIRA Guilherme Ziebell de O papel da guerra de biafra na construção do estado nigeriano da independência à segunda república 1960 1979Monções Revista de Relações Internacionais da UFGD Dourados v3 n6 juldez 2014 Disponível em httpwwwperiodicosufgdedubrindexphpmoncoes OYEWÙMÍ Oyerónké The Invention of Women Making an African Sense of Western Gender Discourses London e Minneapolis University of Minnesota Press 1997 PINTO C R J Feminismo história e poder Revista de sociologia e política Curitiba v 18 n 36 jun 2010 pp 1523 Disponível em Acesso em out 2018 RAPPAPORT Julian Terms of empowermentexemplars of prevention toward a theory for community psychology American Journal of Community Psychology v 15 n 2 1987 RAPPAPORT J In praise of paradox a social policy of empowerment over prevention American Journal of Community Psychology Fairhaven v 9 n 1 p 1 21 Feb 1981 SAID Edward W Orientalism New York Vintage Books 2003 SANTANA Paula MSde Um ar de cinema em Ondjakiinferências e interlocuções em prol de uma modernidade angolana Recife UFPE 2010 SPIVAK Gayatri Chakravorty Pode o subalterno falar Belo Horizonte Editora UFMG 2010 1985 STRATTON Florence Contemporary African literature and the politics of Gender New York Routledge 1994 62 TEOTÔNIO Rafaella Cristina Alves POR UMA MODERNIDADE PRÓPRIA o transcultural nas obras Hibisco Roxo de Chimamanda Gnozi Adichie e o Sétimo Juramento de Paulina Chiziane UEPB 2013 ZOLIN Lúcia Osana Crítica feminista In BONNICI Thomas org Teoria literária abordagens históricas e tendências contemporâneas 3 ed rev e ampl Maringá Eduem 2009 p 217242