·

Direito ·

Direito Administrativo

Envie sua pergunta para a IA e receba a resposta na hora

Fazer Pergunta
Equipe Meu Guru

Prefere sua atividade resolvida por um tutor especialista?

  • Receba resolvida até o seu prazo
  • Converse com o tutor pelo chat
  • Garantia de 7 dias contra erros

Texto de pré-visualização

Este conteúdo está protegido pela lei de direitos autorais É permitida a reprodução do conteúdo desde que indicada afonte como Conteúdo da Revista Digital de Direito Administrativo A RDDA constitui veículo de excelência criado para divulgar pesquisa em formato de artigos científicos comentários a julgados resenhas de livros e considerações sobre inovações normativas REVISTA DIGITAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO FACULDADE DE DIREITO DE RIBEIRÃO PRETO UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Seção Artigos Científicos O conteúdo do princípio da moralidade probidade razoabilidade e cooperação The content of the morality principle honesty reasonableness and cooperation Thiago Marrara Resumo O artigo trata da problemática do princípio da moralidade administrativa e busca fixar seu conteúdo básico no direito brasileiro como determinação de probidade razoabilidade e cooperação no exercício das funções administrativas Palavraschave moralidade razoabilidade probidade cooperação Abstract This essay discusses the constitutional principle of administrative morality and aims at defining its content under the Brazilian Law as a triple determination for honesty reasonableness and cooperation in the exercise of administrative functions Keywords morality reasonableness honesty cooperation Disponível no URL wwwrevistasuspbrrdda DOI httpdxdoiorg1011606issn23190558v3n1p104120 Artigo submetido em dezembro de 2015 Aprovado em dezembro de 2015 REVISTA DIGITAL DE DIREITO ADMINISTRATIVO vol 3 n 1 p 104120 2016 RDDA vol 3 n 1 2016 O CONTEÚDO DO PRINCÍPIO DA MORALIDADE PROBIDADE RAZOABILIDADE E COOPERAÇÃO Thiago MARRARA Sumário 1 Introdução 2 Moralidade administrativa e legitimação estatal 3 Critérios de análise da moralidade administrativa 4 Moralidade como probidade 5 Moralidade como razoabilidade 6 Moralidade como cooperação 7 Conclusão moralidade e boa administração 8 Referências bibliográficas 1 Introdução Não são poucas nem simples as interpretações dadas ao princípio da moralidade insculpido na Constituição da República de 1988 como um princípio geral de direito administrativo As dificuldades interpretativas que circundam o tema decorrem primariamente da abertura semântica dos vocábulos envolvidos na expressão e ainda da ausência de vínculos juspositivos evidentes entre o princípio geral e seus mecanismos de densificação Moralidade de um lado é vocábulo que traz uma plurissignificação incontestável cuja causa se encontra no seu uso tanto frequente quanto amplíssimo em incontáveis campos das ciências sociais e humanas inclusive na ciência jurídica A essa plurissignificação se soma uma multiplicidade de modelos que pretendem explicar a relação entre direito e moral1 Em breves linhas há três deles que merecem menção O primeiro modelo apresenta o direito como um subcampo da moral de modo que a norma jurídica é norma moral ainda que o inverso nem sempre seja verdadeiro O segundo aponta o direito como um campo que engloba a moral de modo que toda norma moral seria resultante de uma norma jurídica mas o inverso nem sempre seria verdadeiro O terceiro entende o campo moral e o campo jurídico como círculos secantes ou seja dois campos que se interpenetram Seguindo esta concepção haveria normas jurídicas morais e normas jurídicas amorais ou seja normas jurídicas que estariam fora do círculo moral e em alguns casos negariam os padrões morais de sorte a constituir verdadeiras normas jurídicas imorais2 Professor de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da USP campus de Ribeirão Preto Livredocente pela USP Doutor pela Universidade de Munique LMU e consultor jurídico Email marrarauspbr 1 Segundo GoyardFabre 2007 p XXV embora a instituição de uma diferença de natureza entre a obrigação moral e a obrigação jurídica exista de maneira difusa em autores como Montesquieu Linguet ou Mably a cisão entre os conceitos de moral e de direito só se efetua com Kant e Fichte 2 Di Pietro evidencia bem essa possibilidade a partir do direito positivo brasileiro afirmando ser perfeitamente possível a existência de atos jurídicos lícitos porém imorais Para dar exemplos extraídos do direito brasileiro lembramos que aqui o Poder Judiciário graças ao princípio da unidade de jurisdição decide em causa própria assuntos de interesses geral dos Magistrados contrariando o velho princípio de fundamento moral que veda assuma alguém a posição de juiz e parte ao mesmo tempo A Constituição permite que Ministros do Tribunal de Contas sejam nomeados pelo Chefe do Poder Executivo cujas contas vai apreciar além disso agasalha inúmeras normas que criam dependências entre os três Poderes desmantelando o sistema de freios e contrapesos idealizado precisamente como forma de detenção do poder o que acaba por acobertar a ilegalidade e a impunidade dando margem à afirmação que aqui se tornou corrente de que a imoralidade se institucionalizou DI PIETRO 2007 p 147 MARRARA Thiago O conteúdo do princípio da moralidade 106 RDDA vol 3 n 1 2016 O ponto comum a esses três modelos é que todos eles partem do pressuposto de que há uma diferença entre o moral e direito daí ser necessário recordar que a divisão que se faz entre essesdois campos geralmente busca explicações em critérios baseados na natureza dos deveres suas respectivas formas de imposição e de sancionamento frente a condutas violadoras Nessa linha ainda que a finalidade básica do Direito e da Moral seja a mesma ambos destinados a proteger as condições fáticas primordiais de sobrevivência humana e ainda que Moral e Direito dividam institutos comuns como dever obrigação e imputação o Direito e suas normas pressuporiam a sujeição ao que é externo ao indivíduo heteronomia e a Moral ao que lhe é interno autonomia3 A despeito das diferentes formas de se compreender a questão e das consequentes divergências inerentes ao assunto há três fatos inquestionáveis a respeito da relação entre Moral e Direito O primeiro é que o cumprimento do Direito dependerá de uma convicção amplamente difundida de que há uma obrigação moral de lhe obedecer HART 2007 p 201 Justamente por isso o segundo fato é que qualquer sistema jurídico sempre buscará demonstrar para que continue existindo uma relação mínima e específica com a moral vigente quer a convencional quer a de uma elite dominante No entanto essa ligação entre direito e moral variará de acordo com a cultura coletiva e a concepção de Estado em certo limite de espaço e tempo Por isso o terceiro fato é que nenhum dos três modelos apresentados se afigura universal e capaz de abarcar as mais diversas configurações da relação entre Moral e Direito Essas relações são inevitavelmente variáveis conforme a cultura o caráter e o papel do Estado e suas relações com a sociedade Para o direito administrativo resulta dessas constatações uma consequência extremamente simples A compreensão da moralidade administrativa exige inicialmente sua contextualização no sistema estatal e jurídico em que ela se encontra positivada Destarte a moralidade administrativa no direito brasileiro deve ser necessariamente interpretada à luz de um Estado Social e Democrático de Direito pois é essa a configuração estatal básica definida pela Carta Magna ora vigente Ocorre que esse pressuposto não afasta o tema de inúmeras complicações Para além da compreensão da ideia de moralidade o vocábulo administrativo impõe considerações mínimas No contexto em que aparece no texto constitucional art 37 caput o adjetivo em questão restringese a uma referência aberta à atividade de administrar ou mais especificamente de administrar o Estado suas entidades e órgãos componentes Da combinação de vocábulos tão abertos naturalmente não poderia surgir um sentido claro ao princípio ora examinado A partir de uma interpretação literal e simplista a moralidade administrativa como moralidade no exercício da função administrativa não oferece qualquer esclarecimento mais prático acerca dos direitos e deveres que dela decorre nem acerca dos parâmetros que devem ser empregados pelos operadores do direito para verificar frente a casos concretos se e em que medida o princípio em questão foi ou não desrespeitado Nas linhas seguintes buscase portanto colaborar para a superação dessas duas dificuldades apontando um conteúdo mínimo para o princípio da moralidade administrativa e por conseguinte tornando sua aplicação prática viável Em outras palavras o objetivo que guia a exposição não é oferecer a essência final da moralidade administrativa mesmo porque não se acredita que essa essência exista de modo 3 Sobre essa diferenciação cf GOYARDFABRE 2007 p XXVI e MOREIRA NETO 1992 p 3 MARRARA Thiago O conteúdo do princípio da moralidade 107 RDDA vol 3 n 1 2016 universal e atemporal4 mas sim indicar um conteúdo central que sirva de parâmetro para o controle de sua observância auxiliando a atividade decisional administrativa e judicial Nesse intuito o percurso desse ensaio iniciase na fixação do foco que deve ser dado ao princípio da moralidade administrativa e então atravessa o exame de três parâmetros básicos a saber a moralidade probidade a moralidaderazoabilidade e a moralidadecooperação 2 Moralidade administrativa e legitimação estatal A razão do ser de um ordenamento jurídico está fortemente relacionada com a natureza humana É o que Hart 2007 p 212 claramente explica se os homens não são demônios tampouco são anjos e o fato de que estão a meio caminho entre estes dois extremos é algo que torna um sistema de abstenções recíprocas simultaneamente necessário e possível Em outras palavras o Direito como um conjunto de normas e princípios que implicam em restrições à liberdade em favor de outrem só existe pelo fato de que nem todos os seres humanos são bons e nem todos são ruins por essência Se todos fossem bons jamais tenderiam a causar danos e incômodos a outrem de modo que as normas jurídicas seriam prescindíveis Se todos fossem ruins um sistema de normas não funcionaria Assim o Direito encontra seu fundamento maior na limitação do altruísmo humano ie no fato de uns serem bons e outros ruins ou de uns serem bons em um momento mas ruins em outros O fato de os indivíduos não serem todos eles anjos ou anjos a todo o tempo é o que também impõe um princípio da moralidade administrativa A moralidade nesse particular direcionase porém a um conjunto limitado de indivíduos os agentes públicos em sentido amplo os quais formam os órgãos e entidades públicas O princípio em debate busca afirmar que a supremacia subjacente ao direito público e ao direito administrativo não é a supremacia da autoridade pública mas sim a do interesse público primário5 Justamente por isso ao tratar do assunto Moreira Neto 1992 p 8 esclarece que o bom resultado que a moralidade administrativa impõe no exercício das funções administrativas só pode ser o que concorra para a realização da boa administração inegavelmente o que satisfaz o direcionamento aos interesses públicos 6 A moralidade administrativa serve pois para impedir que os dirigentes estatais desviemse das finalidades do Estado de Direito empregando seus poderes públicos no intuito de se afastar das vontades estatais democraticamente legitimadas Com isso inserese um elemento finalístico na análise de legalidade de todas as ações estatais de modo que o cumprimento da norma jurídica pela autoridade pública somente pode ser válido quando vinculado aos valores em que tal norma se funda 4 Nesse sentido cf Egon Bockmann Moreira 2010 p 111 De acordo com o autor em linha com o posicionamento de Marçal Justen Filho não há possibilidade de definição apriorística da moralidade O termo é por excelência fluido aberto não possui critérios estanques que dêem automaticamente resposta exata ao cumprimento do princípio Por outro lado a adoção de definições fechadas limitaria o naturalmente amplo conceito e implicaria quando menos prestígio à moral conservadora 5 Interesses públicos primários são aqui tomados como interesses da coletividade democraticamente escolhidos e expressos nas normas jurídicas de maior hierarquia Exemplos de interesses públicos primários são a defesa da concorrência a proteção do consumidor a proteção do meio ambiente a necessidade de redução de desigualdades o desenvolvimento nacional sustentável a proteção da cultura e da ordem urbanística etc 6 Em outros trechos do mesmo ensaio reforçando a ideia exposta o administrativista afirma que políticos e servidores da Administração Pública serão moralmente censuráveis mesmo que suas intenções sejam boas quando suas ações empregarem o poder estatal de que foram investidos para fins estranhos aos interesses públicos que a lei lhes confiou loc cit Assim o referencial da moralidade administrativa é a finalidade pública MOREIRA NETO 1992 p 9 MARRARA Thiago O conteúdo do princípio da moralidade 108 RDDA vol 3 n 1 2016 Nesse contexto a moralidade administrativa consiste em uma garantia da constante legitimação da vontade estatal e não por outra razão está vinculada ao conceito de desvio de poder ou desvio de finalidade O exercício justo correto e adequado do poder estatal pelas autoridades públicas é pressuposto para que o Poder Público obtenha um mínimo de aceitação por parte da sociedade que ele representa e para a qual ele existe7 Na medida em que o poder é exercido moralmente gerase respeito pela ação estatal tornando possíveis tanto o funcionamento mínimo da sociedade sem a necessidade de fiscalização e controle estatal de tudo e de todos quanto o emprego da força pelo Estado em situações previamente definidas e configuradoras de infrações sob a ótica de um ordenamento jurídico vigente O respeito pelo exercício do poder fomenta a cooperação voluntária de um mínimo da sociedade em favor do Estado permitindo que este continue a existir e ditar normas regentes dos comportamentos sociais8 sancionando os que não as observam Na medida em que um ordenamento jurídico insere a moralidade como parâmetro de verificação da constitucionalidade da ação estatal tal como o direito brasileiro então passa a ser possível que a sociedade ou os cidadãos individualmente controlem o respeito à moralidade quer na via administrativa quer na via judicial Essa possibilidade de controle tratada há décadas atrás na clássica monografia de Manoel de Oliveira Franco Sobrinho O controle da moralidade administrativa não é relevante apenas para manter os níveis morais no âmbito da Administração Pública combatendo um ou outro caso assombroso O controle é pragmaticamente fundamental para estimular à moralidade administrativa de modo geral e desse modo ampliar a aceitação do Poder Público pela sociedade que o justifica e sustenta Ocorre que o controle correto do valor em debate somente é possível se o princípio da moralidade se mostrar minimamente aplicável e mais aplicável de modo minimamente semelhante em diferentes casos concretos A compreensão do que a moralidade administrativa representa em termos de direitos mormente dos cidadãos e deveres sobretudo das autoridades públicas se torna imprescindível para que os julgadores na esfera administrativa ou judicial elaborem seus juízos a respeito de um ou outro caso concreto Eis aqui o principal desafio da ciência do direito administrativo brasileiro ao se deparar com esse princípio constitucional 3 Critérios de análise da moralidade administrativa As interpretações da moralidade administrativa variam de acordo com o ângulo que se adota Aqui serão abordados dois critérios de análise o primeiro de natureza pessoal ou subjetiva e o segundo de natureza material De um ângulo pessoal a abrangência da moralidade administrativa é investigada de acordo com os sujeitos que compõem o Estado Nesse sentido a primeira concepção possível é a da moralidade administrativa como moral de um ou alguns agentes públicos Moralidade administrativa seria a moralidade da autoridade pública ou de um conjunto de autoridades Essa interpretação porém é incompatível com o texto constitucional Se a moralidade administrativa se confundisse com a moral individual da autoridade pública ou de seus agrupamentos este princípio se transmutaria na consagração do arbítrio afinal moral individual é o império da autonomia Nessa linha a moralidade administrativa negaria a raiz democrática do Estado de Direito Por essa simples razão o princípio previsto no art 37 caput da Constituição jamais poderia representar a moral tradicional como conjunto 7 A legitimação estatal depende portanto não apenas de práticas procedimentais ou seja de mecanismos de participação popular direta e indireta A conduta dos agentes públicos e os resultados atingidos pelo Estado na execução de suas políticas são também fontes de legitimação Nesse sentido cf Katja Frey 2010 p 703 8 A respeito do respeito pelo exercício do poder como condição do Estado cf Herbert Hart 2007 p 219 MARRARA Thiago O conteúdo do princípio da moralidade 109 RDDA vol 3 n 1 2016 de regras individuais autônomas e autoimpositivas A moralidade administrativa como parte do direito é peculiarmente heterônoma na medida em que é imposta ao agente público pelo ordenamento jurídico sob pena de aplicação de graves sanções Em segundo lugar a moralidade administrativa poderia ser analisada como moral de uma ou mais pessoas estatais ou seja como valores de ação das entidades e órgãos administrativos Nesse caso a moralidade administrativa se confundiria com as intenções e valores institucionais Ela estaria estritamente vinculada aos interesses públicos secundários ou seja aos interesses públicos de uma instituição específica e a despeito dos interesses públicos primários Ocorre que essa concepção nem sempre é compatível com a ideia de Estado Democrático de Direito na medida em que os valores das instituições públicas somente se tornam legítimos quando compatíveis com os valores maiores do Estado Os interesses públicos secundários ou interesses institucionais de um ou outro órgão público somente são válidos e legítimos se decorrentes de interesses públicos primários Justamente por isso a moralidade administrativa não poderia significar a supremacia do interesse secundário sob o risco de se permitir que tais interesses sejam exercidos em detrimento das razões que fundamentam a existência do Estado Se a moralidade administrativa não é a moral da autoridade administrativa nem a moral da organização administrativa então só lhe resta um sentido possível sob o ângulo subjetivo aqui adotado A moralidade administrativa representa o respeito aos valores maiores do Estado ou seja aos valores eleitos democraticamente e consagrados no ordenamento jurídico que justificam a existência e a ação do Poder Público inclusive de modo a restringir a liberdade e a propriedade privada em algumas situações Nesse sentido a moralidade administrativa representa o dever de que as autoridades e instituições públicas observem constantemente as finalidades maiores do Estado previstas no art 3º da Carta Magna por exemplo Ao editar normas administrativas ou ao executar normas legais e administrativas os agentes órgãos e instituições estão a serviço dos objetivos e valores maiores do Estado e somente agirão de modo legítimo ao combinarem normas a valores públicos9 Segundo Bacellar Filho 2010 p 1 essa vinculação necessária de normas e valores é chamada de princípio da finalidade de acordo com o qual a prática de qualquer ato de administração estaria ligada ao escopo originário que sustenta a Administração Pública Aqui chegase ao afirmado inicialmente a moralidade administrativa é o imperativo dos interesses públicos primários vale esclarecer interesses públicos sempre no plural escolhidos pelo povo e impostos constitucionalmente e não pura e simplesmente interesse público como expressão genérica vazia não contextualizada e que frequentemente no Brasil vem sendo usada para justificar mandos e desmandos10 9 Nesse sentido Langoski 2009 p 1 apresenta a observância da moralidade e sua exigência na função administrativa como necessárias para a qualificação das atividades e dos agentes da Administração Pública redirecionando o foco de atuação nos interesses da coletividade 10 A propósito é o uso inadequado da expressão interesse público na prática administrativa que vem suscitando ainda que inconscientemente a revolta contra o princípio da supremacia do interesse público por parte da doutrina jurídica O fato porém de haver um uso incorreto do princípio na prática não demonstra sua inutilidade como preceito político e jurídico mas sim um problema de gestão pública ou melhor de falta de gerentes públicos capacitados no país Tratase pois muito mais de uma questão de ciência da administração do que de ciência do direito administrativo Além disso cumpre frisar que a supremacia do interesse público ou melhor dos interesses públicos nunca foi incompatível com a defesa do núcleo de direitos fundamentais mesmo porque a proteção desses direitos constitui em si um interesse público eleito pelo povo e consagrado na Carta Constitucional de modo suficientemente claro MARRARA Thiago O conteúdo do princípio da moralidade 110 RDDA vol 3 n 1 2016 Assim a primeira conclusão que se extrai é que agir de acordo com a moralidade administrativa significa agir de acordo com finalidades públicas legítimas O princípio porém não se exaure nessa afirmação Moralidade administrativa não significa primado da finalidade de qualquer maneira Não se trata de uma releitura da antiga fórmula maquiavélica Para que o direito administrativo seja cumprido de modo moralmente aceitável é essencial que sejam observados no diaadia da administração outros mandamentos ou parâmetros primordiais os mesmos que serão empregados pelos órgãos de controle judicial e administrativo para verificar o cumprimento do princípio aqui debatido É nesse momento portanto que ganha relevo um exame da moralidade sob a perspectiva material À luz dessa segunda perspectiva cumpre apontar os limites mínimos que incidem na atuação da autoridade pública em virtude da consagração da moralidade administrativa pelo direito positivo brasileiro11 Nesse particular defendese aqui a operacionalização do princípio mediante a observação prática em enumeração não exaustiva12 da probidade da razoabilidade e da cooperação no exercício da função administrativa Cada um desses três vetores subdividese igualmente em uma série de deveres São eles que no caso prático apresentam o suporte do controle administrativo e judicial do princípio em debate 4 Moralidade como probidade A probidade constitui um dos mais fortes parâmetros de concretização do princípio da moralidade administrativa Essa afirmação se extrai sem grande esforço dos inúmeros dispositivos constitucionais e legais que disciplinaram no Brasil a probidade no exercício da função pública Esses dispositivos cujas raízes já se encontravam na Constituição Imperial de 182413 permeiam toda a Carta Constitucional de 198814 A moralidade como probidade exige do administrador a boafé na prática de suas condutas Impõe que o agente público exerça a função pública no desejo de apenas concretizar os interesses públicos primários O Estado não deve ser utilizado como mecanismo para a realização de interesses meramente particulares do agente público político ou não Além disso nem mesmo deve o agente público fingir perseguir interesses públicos para na verdade obter benefícios individuais indevidos Justamente por isso Martins Júnior 2009 p 104 realça que a violação do princípio da probidade é a contrariedade do interesse público Essa afirmação é incontestavelmente correta 11 Afinal os princípios contêm orientações téticas que exigem salvo excepcionalmente preceitos hipotéticos intermediários à sua aplicação aos casos concretos MOREIRA NETO 1992 p 19 12 Tratase de enumeração nãoexaustiva pois a doutrina pátria extrai outros vetores do princípio da moralidade aqui não tratado Bacellar Filho 2010 p 2 sustenta por exemplo que a moralidade administrativa está relacionada com a previsibilidade da ação pública vinculando o princípio em questão com o da segurança jurídica 13 Com efeito ensina Martins Júnior que a Constituição Imperial previa ação popular contra juízes de direito e oficiais de justiça por suborno peita peculato e concussão art 157 Mais tarde em 1957 surge a Lei n 3164 consagrando a vedação do enriquecimento ilícito na função pública A improbidade na espécie de dano ao Erário surgiria apenas em 1978 com a edição da Emenda Constituição n 11 Enfim a improbidade como violação de princípio do direito administrativo é consagrada em 1992 ano de edição da Lei n 8429 MARTINS JÚNIOR 2009 p 179 e seguintes 14 São dignos de menção o art 37 4º da Constituição que prevê algumas das sanções por atos de improbidade e a medida acautelatória de indisponibilidade dos bens o art 14 9º que exige do Legislador a criação de formas de inelegibilidade para agentes políticos como forma de promover entre outras coisas a probidade administrativa e o art 85 V que trata da improbidade como forma de crime de responsabilidade do Presidente da República A probidade também aparece no nível das leis ordinárias sobretudo na Lei n 84291992 que trata dos atos de improbidade administrativa e na LPA Lei n 978499 art 2º parágrafo único IV que trata do princípio da boafé e da probidade no exercício da função administrativa MARRARA Thiago O conteúdo do princípio da moralidade 111 RDDA vol 3 n 1 2016 A razão de ser de um controle de probidade na administração pública está intimamente relacionada com a constatação de que há servidores do tipo anjo ou demônio A probidade se impõe na medida em que um número razoavelmente relevante de agentes públicos se desvia ou pode se desviar dos interesses públicos quer para se enriquecer indevidamente quer para prejudicar o Estado inclusive economicamente quer para prejudicar os cidadãos que se relacionam com o Poder Público Essa premissa de certa forma explica a razão de a improbidade ter ganhado tanto espaço no Brasil país infelizmente reconhecido por seus altos índices de corrupção tal como ressalta Langoski15 Como subprincípio da moralidade que busca estimular a gestão pública profissional e próinteresse público a probidade tem como principal destinatário o agente público em todas as suas formas e relações Ela atinge portanto o agente público quer em sua relação interna com a Administração Pública quer em relação aos cidadãos nesse sentido MARTINS JÚNIOR 2009 p 103 Além disso na sistemática atual atinge igualmente particulares que colaborem com a prática de atos de improbidade ou dele se beneficiem art 3º da Lei n 8429 A definição do sujeito ativo de atos de improbidade não é porém demasiadamente problemática Maior dificuldade apresenta em realidade a identificação de atos de improbidade em abstrato Uns poderiam considerar essa discussão inútil pois há leis que tratam dos atos de improbidade tal como a Lei n 84291992 Lei de Improbidade ou a Lei n 102572001 Estatuto da Cidade No entanto ainda que a legislação traga espécies de atos de improbidade essas espécies são meramente exemplificativas16 Ora se são exemplificativas isso significa que um agente público pode praticar ato de improbidade não escrito ou melhor não descrito na legislação Assim importa saber quando um ato de administração pública constitui um ato de improbidade Essa discussão está fortemente ligada com a diferenciação entre meros erros de administração ou hipóteses de mágestão geralmente puníveis em esfera disciplinar e os atos de improbidade propriamente ditos Defendese aqui que a improbidade administrativa não é o mero erro de administração Improbidade é o ato de máadministração marcado pela desonestidade de quem o pratica Por essa razão ainda que um ato de improbidade possa constituir uma infração disciplinar o contrário nem sempre é verdadeiro A improbidade é marcada pelo desvio intencional do agente público seja para se enriquecer indevidamente seja para causar dano ao Erário seja para simplesmente violar os princípios que regem a Administração Pública Desse modo uma mesma situação fática pode ou não ser administrativamente imoral de acordo com a intenção do agente Essas situações por exemplo verificamse nos casos de nepotismo17 de concessão de benefícios públicos ou mesmo de restrições à liberdade e à propriedade É justamente por isso que as situações de improbidade dependem de uma análise volitiva muito mais aprofundada do que as existentes na mera verificação de simples erros de gestão no âmbito da Administração Pública Ocorre que o exame da honestidade nem sempre é possível Notando essa dificuldade alguns autores propugnam no direito brasileiro a objetivação da probidade É o posicionamento de Di Pietro 2007 p 15 Face às atrocidades vistas diuturnamente envolvendo agentes públicos com a dilapidação do patrimônio corrupção desvio de recursos do erário entre tantos outros ressurgiu na população o interesse pela coisa pública pela sociedade pelo bemestar coletivo LANGOSKI 2009 p 1 16 Notese que os art 9º 10 e 11 da Lei n 84291992 utilizam a expressão notadamente antes de arrolar os casos de improbidade 17 Nesse sentido analisando a relatividade da moralidade nos casos de nepotismo e criticando a aplicação generalizada da Súmula Vinculante n 13 do STF Cf Antonio 2009 p 6 MARRARA Thiago O conteúdo do princípio da moralidade 112 RDDA vol 3 n 1 2016 154 para quem as dificuldades na identificação da intenção do agente público que demonstraria a imoralidade in casu demandam a verificação de outros aspectos de suas condutas para além do elemento finalísticovolitivo Nessa perspectiva para objetivar a probidade e tornar possível seu exame no caso concreto seria necessário por exemplo examinar igualmente o conteúdo dos atos administrativos ou de administração sob o qual pairam suspeitas A improbidade deveria ser extraída dos diversos elementos do ato administrativo inclusive seus motivos a forma de exposição dos motivos e sua coerência no caso concreto O exame da intenção exigiria portanto um exame dos diversos elementos do ato administrativo e de sua adequação a uma situação concreta Essa proposta de objetivação da vontade do agente público esbarra porém na tipologia dos atos de improbidade É certo que a improbidade opera apenas frente à margem de discricionariedade18 Contudo não é apenas o ato administrativo comissivo ou omissivo que se mostra ímprobo É possível que atos de administração tal como atos materiais ou normativos sejam praticados de modo imoral Esses atos não seguem necessariamente os requisitos dos atos administrativos em sentido estrito daí a quase impossibilidade do exame da honestidade do agente via exame dos cinco elementos clássicos do ato De certo modo considerando toda essa problemática e buscando aprimorar a identificação dos casos de improbidade a legislação brasileira criou categorias de atos de improbidade que avaliam a desonestidade do agente público conforme os resultados do ato administrativo ou de administração por ele praticado O legislador fortaleceu assim o papel dos efeitos externos da ação pública no sistema de controle da moralidade administrativa Em primeiro lugar a Lei n 84291992 tratou dos casos de improbidade por enriquecimento indevido do agente público os quais já eram objeto de legislação específica desde a década de 1950 Em segundo lugar exemplificou casos de improbidade por danos ao Erário os quais vale recordar ganharam reconhecimento no ordenamento jurídico brasileiro já em 1978 Em terceiro lugar previu os casos mais inovadores de improbidade como violação de princípios de direito administrativo Nessas três categorias hipotéticas o sinal maior da improbidade resulta dos efeitos da conduta do agente público ou seja da existência de um benefício financeiro indevido efeito material mensurável de um prejuízo ao Erário efeito material mensurável ou de uma violação a valores gerais da Administração Pública efeito moral ou jurídico nem sempre mensurável O foco do legislador é portanto o exame do resultado do ato e não a intenção inicial Ocorre porém que nas três categorias objetivas previstas pela lei o elemento subjetivo não poderia ser inteiramente ignorado sob pena de se confundir um problema de gestão pública que deveria ser resolvido na esfera disciplinar com um caso grave de violação à moralidadeprobidade Assim a despeito de todo esse esforço legislativo parece infelizmente que a dificuldade ainda persiste A valorização dos resultados danosos da conduta do agente público no sistema atual de controle da probidade administrativa não deve afastar uma análise minimamente cautelosa dos motivos do agente público e do contexto em que o ato é praticado 18 É principalmente no âmbito dos atos discricionários que se encontra campo mais fértil para a prática de atos imorais pois é neles que a Administração Pública tem liberdade de opção entre várias alternativas todas elas válidas perante o direito Ora pode perfeitamente ocorrer que a solução escolhida pela autoridade embora permitida pela lei em sentido formal contrarie valores éticos não protegidos diretamente pela regra jurídica mas passíveis de proteção por estarem subjacentes em determinada coletividade DI PIETRO 2007 p 161 MARRARA Thiago O conteúdo do princípio da moralidade 113 RDDA vol 3 n 1 2016 Um exame sistemático da improbidade no caso concreto é imprescindível pois não é ideal nem tampouco justo que meros erros de gestão sejam confundidos com atos de improbidade Em outras palavras não é adequado que se puna igualmente o administrador que erra tal como qualquer outro profissional no exercício de seu ofício e o administrador que errando ou acertando deseja afrontar a moralidade administrativa Resta assentado na jurisprudência pátria que a improbidade sempre envolve um elemento imoral19 o qual nem sempre está presente em erros de gestão e mesmo em infrações disciplinares Outro aspecto crítico do controle de improbidade no Brasil diz respeito ao sistema sancionatório previsto na Lei n 84291992 Com efeito havia até pouco tempo atrás um problema de moralidade na aplicação das sanções por imoralidade haja vista a redação dúbia do art 12 da lei mencionada A despeito do avanço da legislação criada na década de 1990 no tocante a tipologia dos atos de improbidade bem como aos seus sujeitos passivos e ativos a gravidade e a inflexibilidade das sanções ali previstas suscitavam fundamentadamente forte crítica da doutrina especializada e da advocacia privada Nesse particular não se poderia deixar de mencionar o papel da Lei n 12120 de 15 de dezembro de 2009 como resposta a essas críticas Esse diploma reformou a sistemática das sanções por ato de improbidade conferindo mais flexibilidade ao julgador para adequar as sanções legais à gravidade da violação da moralidade administrativa no caso concreto Sanando as dúvidas que pairavam a respeito do art 12 caput da Lei de Improbidade o diploma de 2009 consagrou o entendimento de que as graves sanções de punição de agentes condenados pela prática de improbidade são na verdade de aplicação isolada ou cumulativa Isso significa que na prática o juiz agora tem a possibilidade de aplicar uma ou mais das sanções previstas na lei e tal como já se autorizava anteriormente dosar algumas dessas sanções tal como a multa e o prazo de suspensão dos direitos políticos Ao contrário do que possa parecer essa indisputável flexibilização do sistema sancionatório ao mitigar as injustiças que a aplicação cumulativa de sanções era capaz de causar em casos menores tornou o sistema de controle de improbidade administrativa muito mais forte A razão é simples Antes o juiz via se em um jogo de tudo ou nada e naturalmente poderia sentirse desestimulado a condenar um caso de improbidade em virtude da injustiça gerada pela aplicação cumulativa das sanções dada a obscuridade do texto legal Hoje a nova redação do art 12 da Lei de Improbidade conferindo a possibilidade de aplicação isolada das sanções afasta os riscos de injustiça e portanto estimula a aplicação da lei mesmo aos casos em que a violação da moralidade seja mínima ou em que os resultados materiais financeiros do ato ímprobo sejam ínfimos cf MARRARA 2011 5 Moralidade como razoabilidade Um segundo vetor de concretização do princípio da moralidade administrativa e que se soma ao subprincípio da probidade é a razoabilidade Ainda que não consagrado expressamente na Constituição Federal tratase de um valor incontestável do ordenamento jurídico brasileiro Isso se torna evidente ao se considerar o espaço que lhe foi reservado em inúmeros diplomas e corpos constitucionais estaduais tal como revelam a LPA federal art 2º caput e a Constituição do Estado de São Paulo art 111 19 Exatamente por isso os Tribunais Superiores passaram a negar a aplicação do princípio da insignificância em relação a esse tipo de ilícito Cf STJ HC Nº 148765 SP 200901885000 rel Min Maria Thereza de Assis Moura 6ª T j 11052010 DJe 31052010 e STJ REsp 892818RS Rel Ministro Herman Benjamin 2ª Turma j11112008 DJe 10022010 MARRARA Thiago O conteúdo do princípio da moralidade 114 RDDA vol 3 n 1 2016 A razoabilidade também designada de proporcionalidade em sentido amplo pelos alemães cf MAURER 2000 p 139140 opera sempre que o Estado se depara com uma margem de escolha ou um espaço de discricionariedade Isso significa que seu exame é possível em dois planos a saber o legislativo e o administrativo Em qualquer um deles o conteúdo do princípio é o mesmo Ele demanda a avaliação da adequação necessidade e proporcionalidade em sentido estrito das ações estatais Assim para se compreender a razoabilidade legislativa e administrativa há que se partir do conceito dessas três regras que a concretizam A adequação do ato estatal consiste em sua aptidão para o fim público que orienta sua prática Se o Estado existe em função de interesses públicos e por conseguinte se os atos estatais legislativos executivos e judiciais são praticados no intuito de atender a esses interesses então um ato estatal somente se mostra moralmente aceitável e legítimo na medida em que faticamente seja capaz de promover um determinado interesse público no caso concreto A regra da adequação configura portanto um mandamento de correlação lógica entre o ato estatal ato administrativo normativo ou ato material e a finalidade pública que o justifica O mero cumprimento da adequação não é suficiente contudo para que um ato seja razoável É necessário que esse mesmo ato seja praticado com observância das regras da necessidade e da proporcionalidade Necessário é o ato estatal mais brando dentre os atos adequados Um exemplo torna essa afirmação mais clara Um Município poderia reduzir a poluição do meio ambiente urbano mediante a restrição do uso de veículos automotores rodízio por exemplo ou pela proibição do uso de qualquer veículo automotor no território municipal Ambas as soluções são aptas para promover um interesse público primário a defesa do meio ambiente conforme manda o art 225 da Constituição da República São pois adequadas No entanto a proibição geral de uso de veículos é desnecessária na medida em que existem outras soluções mais brandas para se atingir a mesma finalidade pública eg rodízio Assim ainda que haja adequação apenas uma das medidas mencionadas é necessária e somente esta poderá ser válida frente ao princípio constitucional da razoabilidade e por conseguinte da moralidade administrativa Para isso porém há que se cumprir uma terceira regra É nesse momento que entra em jogo a proporcionalidade em sentido estrito De acordo com essa regra decorrente da razoabilidade administrativa a medida estatal somente será aceitável caso os benefícios públicos que originar compensarem os prejuízos causados ao particular Tratase aqui de um exame de custobenefício Os benefícios públicos para o interesse primário de certa medida devem superar seus custos em termos de restrição da liberdade ou da propriedade privada Se os benefícios públicos compensarem as restrições aos cidadãos e simultaneamente se a medida for apta e a mais branda possível então os três elementos da razoabilidade terão sido cumpridos tornando a medida moral Como já adiantado essas três regras se aplicam a medidas estatais em relação às quais haja um poder de escolha ou uma margem de discricionariedade Assim a razoabilidade diz respeito tanto às atividades legislativas quanto às administrativas Seu foco é o conteúdo em si e do ponto de vista comparativo das atividades e ações estatais daí porque difere da probidade subprincípio que focaliza diretamente os agentes públicos no exercício de suas funções e eventualmente agentes privados envolvidos na prática do ato de improbidade Se a razoabilidade referese às atividades estatais e não às condutas dos agentes públicos então em relação a ela não se faz necessário um juízo acerca da intenção do agente público O exame da honestidade não é prescindível para a identificação da irrazoabilidade MARRARA Thiago O conteúdo do princípio da moralidade 115 RDDA vol 3 n 1 2016 Na esfera legislativa especificamente a razoabilidade exige que o Poder Legislativo crie apenas restrições à liberdade e à propriedade e por conseguinte poderes restritivos de polícia administrativa que estejam em consonância com as regras da adequação necessidade e proporcionalidade Esse tipo de razoabilidade de difícil controle é relevantíssimo para o estudo da própria razoabilidade no exercício da função pública Como a razoabilidade pressupõe a margem de escolha não serão passíveis de um juízo de razoabilidade os elementos da conduta administrativa que sejam vinculados à decisão do Legislador ou seja que não sejam expressamente determinados pela lei sem possibilidade de alteração pelo administrador público20 Nas hipóteses em que o poder administrativo é vinculado à solução dada pelo legislador uma eventual discussão acerca da razoabilidade poderá se referir tão somente à razoabilidade da lei Ademais disso mesmo nas situações em que a discricionariedade administrativa existe a imoralidade da norma legal gera implicações Como já sustentado é possível que a norma jurídica seja imoral amoral ou moral Se a imoralidade como irrazoabilidade é inerente à norma editada pelo Poder Legislativo então automaticamente a ação de execução dessa norma pelo agente público será imoral mas a despeito de sua vontade daí não se possível falar de improbidade do agente Por isso se a imoralidade está na norma é esta que deve ser atacada primariamente no controle da moralidade administrativa Em síntese para os atos vinculados o debate da razoabilidade se restringe à atividade legislativa que rege aqueles atos Já quanto às ações administrativas marcadas por algum grau de discricionariedade a razoabilidade poderá ser discutida tanto no plano legislativo discricionariedade na elaboração de normas legais quanto no plano executivo quanto à discricionariedade no exercício do poder normativo ou na prática de atos administrativos e demais atos de administração Vale destacar ainda que o uso da discricionariedade em que se dá margem à prática de atos irrazoáveis e muitas vezes ímprobos não se confunde com a tarefa de interpretação do texto normativo A interpretação é etapa prévia Nela o intérprete administrador público extrai a norma do texto e daí redunda ou não a conclusão acerca dos limites de seu poder de decisão Essa atividade é frequentemente essencial pois como diz Hart a textura aberta do direito deixa um vasto campo à atividade criadora 2007 p 220 Ocorre que a discussão acerca da razoabilidade não diz respeito à interpretação Ela se concentra no uso da discricionariedade ou seja da margem de escolha que o administrador público verifica existir após ter realizado a correta interpretação da legislação Podese indagar porém se a atividade interpretativa também se sujeita a desvios morais e a resposta será claramente positiva Ainda que a interpretação do texto normativo deva ser feita sempre de boafé e no intuito de promover os interesses públicos primários21 é inquestionável que a autoridade pública desejando poderá deturpar com mais ou menos atrevimento os métodos interpretativos para atingir fins ilícitos imorais e ilegítimos 20 Vale lembrar que um ato administrativo pode ser ao mesmo tempo discricionário em relação a alguns elementos e vinculado em relação a outros Na verdade é praticamente impossível que todos os elementos do ato sejam previstos em lei Mesmo quanto ao ato mais vinculado existe sempre uma margem de discricionariedade frequentemente quanto ao momento exato de sua produção A irrazoabilidade portanto é exame pertinente apenas aos elementos sujeitos à escolha legalmente autorizada do administrador público 21 É o que determina a LPA federal De acordo com seu art 2º parágrafo único XII a interpretação da norma administrativa deve ser realizada do modo que melhor garanta o atendimento do fim público a que se destina vedandose a aplicação retroativa de nova interpretação MARRARA Thiago O conteúdo do princípio da moralidade 116 RDDA vol 3 n 1 2016 No entanto essa interpretação realizada de máfé e no intuito de subverter interesses públicos claramente imoral não consiste propriamente em um problema de razoabilidade mas sim de improbidade Desse modo por ilustração a interpretação que abusiva e intencionalmente cria uma margem de discricionariedade onde esta não existe configura uma interpretação imoral e por conseguinte um claro ato de improbidade por violação dos princípios basilares do direito administrativo Novamente aqui desponta a diferença funcional dos subprincípios da improbidade e da razoabilidade ambos concretizadores da moralidade administrativa 6 Moralidade como cooperação O terceiro vetor do princípio da moralidade administrativa é a cooperação Certamente tratase do aspecto menos abordado até hoje pela ciência do direito administrativo no Brasil Nas linhas a seguir pretendese contudo evidenciar que este valor é inerente ao princípio da moralidade administrativa na medida em que sustenta o adequado funcionamento do Estado e promove o respeito mútuo nas relações de natureza jurídicoadministrativa De modo geral cooperação nada mais é que trabalho conjunto apoio ajuda ou suporte operacional22 Trazendo essa noção básica para o campo do direito administrativo e da Administração Pública é possível desenhar um conceito de cooperação administrativa que se divide basicamente em três modalidades a cooperação interna ou intraadministrativa a cooperação interadministrativa e a cooperação na relação entre Poder Público e cidadão A cooperação intraadministrativa ou interna é aquela que opera no âmbito dos órgãos e entidades públicas Cooperação administrativa nesse contexto é a disposição para o apoio profissional mediante o qual esforços são somados para permitir a realização das tarefas públicas de modo adequado eficiente e eficaz Esse tipo de cooperação constitui um dever funcional de apoio recíproco entre agentes público com vistas a possibilitar o bom funcionamento do Estado Para que seja lícita a cooperação se sujeita porém a determinados limites Assim por exemplo é necessário que se observem asbalizas impostas pela teoria das competências administrativas vedando usurpação de funções e pela teoria da delegação e da avocação institutos que hoje estão amplamente disciplinados na LPA Federal cf MARRARA 2010 p 29 Em outras palavras a cooperação administrativa é moralmente desejada quando promove a eficiência e simultaneamente não viola as normas de delegação avocação e exercício regular das funções pelos agentes competentes A cooperação intraadministrativa não deverá pois servir de argumento para que um superior hierárquico esvazie abusivamente as atribuições de um órgão inferior e nem mesmo para que um órgão público exerça funções que estejam sob competência exclusiva de outro A cooperação interadministrativa por sua vez consiste no apoio recíproco de natureza interinstitucional ou seja aquele que envolve duas ou mais instituições públicas de uma ou mais esferas da Federação Essa forma cooperativa entre entes federativos encontra seu fundamento maior no art 23 da Constituição da República dispositivo que consagrou uma série de competências executórias comuns a União Estados e Municípios O rol de atividades previsto no dispositivo constitucional não pode ser porém interpretado de modo literal e restritivo Em outras palavras a presença de certas competências materiais comuns não exclui a cooperação em outros setores não mencionados pela Constituição salvo quando houver competência executória exclusiva de determinada entidade 22 Sobre a cooperação na administração pública e no direito administrativo cf Püttner 2000 p 135 e Marrara 2009 p 134138 MARRARA Thiago O conteúdo do princípio da moralidade 117 RDDA vol 3 n 1 2016 Defendese pois que a cooperação administrativa interinstitucional é devida mesmo em situações nas quais não haja competência comum expressa23 Todas as instituições públicas a despeito de seus interesses privativos são criadas para conferir forma ao Estadoguardião dos interesses públicos escolhidos de modo democraticamente legítimo Se o Estado existe em razão e em função da sociedade e dos interesses públicos por ela eleitos as instituições públicas da Administração Direta ou Indireta estão obrigadas a agir em prol do cumprimento das tarefas estatais maiores Sendo assim uma vez que o desempenho de atividades administrativas institucionais por uma entidade pública dependa da colaboração de outros entes da Administração essa colaboração será devida salvo por imperativos maiores ou impedimentos legais justificáveis Em terceiro lugar surge a cooperação administrativa na relação entre Administração Pública e cidadão Assim como o cidadão tem o dever de cooperar com a Administração Pública no exercício de suas funções24 às autoridades aos órgãos e às entidades públicas compete a tarefa de auxiliar os cidadãos no exercício de seus direitos e no cumprimento de seus deveres fórmula expressamente consagrada na LPA federal25 A cooperação para o exercício dos direitos gera para a autoridade pública o dever de informar os cidadãos sobre os requisitos condições e procedimentos para o devido gozo de direitos individuais coletivos e difusos mesmo quando tal autoridade não esteja expressamente obrigada a se manifestar O Estado constatando as dificuldades do indivíduo para concretizar sua cidadania deve agir de ofício oferecendo lhe as informações e quando cabível as condições materiais para que possa gozar de seus direitos legalmente garantidos O fundamento para tanto é óbvio se o Estado existe pelo povo e para o povo não podem as autoridades públicas quedar inertes frente às dificuldades de um cidadão para compreender a ordem jurídica e com base em seus mandamentos exercer seus direitos De outra parte a cooperação para o cumprimento de deveres pelo cidadão também é imprescindível Já dizia Hart 2007 p 223 que os indivíduos que vierem a ser punidos pela violação do direito deverão ter 23 Essa conclusão também se extrai de uma série de dispositivos legais Exemplo disso se vislumbra nos art 35 e 37 da LPA Lei n 978499 O primeiro dispõe que quando necessária à instrução do processo a audiência de outros órgãos ou entidades administrativas poderá ser realizada em reunião conjunta com a participação de titulares ou representantes dos órgãos competentes lavrandose a respectiva ata a ser juntada aos autos gn O segundo prescreve que quando o interessado declarar que fatos e dados estão registrados em documentos existentes na própria Administração responsável pelo processo ou em outro órgão administrativo o órgão competente para a instrução proverá de ofício à obtenção dos documentos ou das respectivas cópias gn Além desses dispositivos gerais do processo administrativo há normas de cooperação interinstitucional em leis específicas tal como a Lei de Defesa da Concorrência Lei n 88841994 O art 36 desse diploma determina que as autoridades federais os direitos de autarquia fundação empresa pública e sociedade de economia mista e federais são obrigados a prestar sob pena de responsabilidade toda a assistência e colaboração que lhes for solicitada pelo CADE ou SDE inclusive elaborando pareceres técnicos sobre as matérias de sua competência 24 Isso ocorre mediante restrições à propriedade tal como se verifica no tombamento para promoção da cultura e da requisição em caso de guerra e mediante restrições à liberdade por exemplo em razão de normas restritivas da liberdade de construir da liberdade de conduzir veículos automotores e da liberdade de exercício de profissão Todas essas restrições decorrem de um poder de polícia administrativo Apesar de terem como característica a unilateralidade e coercibilidade as finalidades do poder de polícia dependem grandemente da cooperação voluntária de parte significativa da população Daí porque a unilateralidade da ação estatal não é noção incompatível com a de cooperação social Além disso é possível se falar de cooperação processual do cidadão em benefício da administração tal como se verifica no art 4º IV da LPA Lei n 978499 25 Nos termos do art 3º I da LPA o administrado tem o direito perante a Administração Pública de ser tratado com respeito pelas autoridades e servidores que deverão facilitar o exercício de seus direitos e o cumprimento de suas obrigações gn MARRARA Thiago O conteúdo do princípio da moralidade 118 RDDA vol 3 n 1 2016 tido a oportunidade de obedecêlo Isso parte de uma premissa fática insuperável a violação das normas nem sempre é intencional Não raro infrações administrativas decorrem do desconhecimento das normas administrativas ou de dificuldades no cumprimento do que o ordenamento jurídico determina ao cidadão Isso vale especialmente para as normas de direito administrativo e ramos correlatos como o direito ambiental Nessas áreas a legislação é tão caótica e confusa que frequentemente infrações se originam da incompreensão das normas jurídicas e por conseguinte dos deveres e procedimentos necessários para a prática de uma conduta legalmente correta perante a Administração Pública É nesse contexto que a moralidadecooperação atua Se o cidadão recorre ao Poder Público no intuito de obter informações para o devido cumprimento de seus deveres compete à autoridade pública prestar informações corretas e adequadas que estejam em sua esfera de competência no intuito de evitar infrações Ao aplicar eventuais sanções em virtude de suas falhas de cooperação no esclarecimento dos cidadãos a Administração Pública estará agindo de modo claramente imoral A aceitação aqui proposta de uma concepção de moralidade também como cooperação administrativa em qualquer uma das três vertentes apontadas é inevitável ao se cotejar o princípio da moralidade frente aos princípios da eficiência e da publicidade na Administração Pública De um lado o princípio da eficiência somado ao princípio da moralidade impõe a soma de esforços institucionais para a consecução de interesses públicos primários estimulando pois a cooperação administrativa de natureza interadministrativa e intraadministrativa De outro o princípio da publicidade somado ao da moralidade dá origem ao que Edwin Czerwick batizou de função da comunicação administrativa 1997 p 973 Em um Estado democrático esta função consiste na informação e orientação do cidadão pelo Poder Público no intuito de permitir o exercício de direitos e estimular o cumprimento de deveres perante o Estado26 como bem afirmou a LPA federal 7 Conclusão moralidade e boa administração Diogo de Figueiredo Moreira Neto certa vez escreveu a pesquisa da imoralidade é mais exigente do que a da ilegalidade e sem dúvida muito mais difícil 1992 p 11 Mesmo tomando essa expressão como certa em razão das incertezas acerca da relação entre Direito e Moral bem como da vagueza inicialmente apontada da expressão moralidade administrativa o presente ensaio buscou oferecer parâmetros concretos para o exame do princípio analisado Esses parâmetros foram delimitados por três expressões moralidadeprobidade moralidade razoabilidade e moralidadecooperação Em breve síntese sustentase que a moralidade administrativa impõe a atuação proba razoável e cooperativa da Administração Pública suas entidades órgãos e agentes públicos quer em relações internas ou seja em relações entre os próprios órgãos e agentes públicos quer em relações externas ie envolvendo a Administração Pública de um lado e os administrados de outro Somente o respeito constante e simultâneo aos três vetores é capaz de concretizar a moralidade no exercício da função pública e permitir que se fale de uma boa administração Afinal em um cenário democrático tal como anota Egon Bockmann Moreira administração pública e moralidade andam 26 Nesse sentido cf Hill 2002 p 1317 MARRARA Thiago O conteúdo do princípio da moralidade 119 RDDA vol 3 n 1 2016 juntas27 A necessidade de legitimação do Estado e de suas ações exige mais que a mera legalidade Demanda na verdade uma administração pública integralmente compatível com os valores constitucionais e sobretudo comprometida com a concretização de interesses sociais legitimamente eleitos28 os chamados interesses públicos primários A busca da finalidade pública não deve ocorrer porém de modo maquiavélico À finalidade devem se somar condutas comprometidas na prática pela probidade ou honestidade dos agentes públicos pela cooperação desses agentes públicos em relação a si mesmos e aos cidadãos e pela razoabilidade na escolha do tipo e conteúdo de seus atos sobretudo aqueles que venham a restringir direitos fundamentais Digase mais Esses três vetores não deverão ficar restritos às atividades exercidas pelos entes clássicos da Administração Pública Direta e Indireta A moralidade administrativa hoje vai além impregnando qualquer manifestação de gestão pública Desse modo em tempos de desestatização parcerias terceiro setor e de forte descentralização administrativa fundamental se mostra que a moralidade e seus vetores também se estendam plenamente a entidades privadas que exerçam atividades estatais29 8 Referências bibliográficas ANTONIO Alice Barroso de O nepotismo sob a ótica da súmula vinculante n 13 do STF críticas e proposições RBDM n 31 2009 edição digital BACELLAR FILHO Romeu Felipe A estabilidade do ato administrativo criador de direitos à luz dos princípios da moralidade da segurança jurídica e da boafé RDAC n 40 2010 edição digital CZERWICK Edwin Strukturen und Funktionen der Verwaltungskommunikation Die Öffentliche Verwaltung DÖV 1997 DI PIETRO Maria Sylvia Zanella Discricionariedade administrativa na Constituição de 1988 2ª ed São Paulo Atlas 2007 FREY Katjia Legitimacy in administrative law reform and reconstruction Das Deutsche Verwaltungsblatt DVBl 2010 p 703704 GOYARDFABRE Simone Os fundamentos da ordem jurídica São Paulo Martins Fontes 2007 HART Herbert O conceito de direito 5ª ed Lisboa Fundação Calouste Gulbenkian 2007 HILL Hermann Verwaltungskommunikation und Verwaltungsverfahren unter europäischen Einfluss Das Deutsche Verwaltungsblatt DVBl 2002 p 13161327 LANGOSKI Deisimara Turatti O princípio constitucional da moralidade e a participação popular na Administração Pública RDAC n 38 2009 edição digital MARRARA Thiago Competência delegação e avocação na Lei de Processo Administrativo LPA RBDP n 29 2010 p 2950 MARRARA Thiago Pequenas improbidades Jornal Carta Forense fevereiro de 2011 p A16 27 Nas palavras do administrativista o prestígio à moralidade em sentido amplo é inerente a um Estado Democrático sem a efetividade no respeito à moral público existirá só e tãosomente eventual democracia formal MOREIRA EgonBockmann Processo administrativo 4ª ed São Paulo Malheiros 2010 p 108109 28 Em sentido semelhante entendendo a Administração Pública como um aparato constituído pelo Estado para a realização do bem comum cf Bacellar Filho 2010 p 1 29 Nesse sentido cf Moreira Neto 1992 p 38 e Moreira 2010 p 112 MARRARA Thiago O conteúdo do princípio da moralidade 120 RDDA vol 3 n 1 2016 MARRARA Thiago Planungsrechtliche Konflikte in Bundesstaaten eine rechtsvergleichende Untersuchung am Beispiel der raumbezogenen Planung in Deutschland und Brasilien Hamburgo Dr Kovac 2009 MAURER Hartmut Allgemeines Verwaltungsrecht 13ª ed Munique Beck 2000 MARTINS JÚNIOR Wallace Paiva Probidade administrativa 4ª ed São Paulo Saraiva 2009 MOREIRA NETO Diogo de Figueiredo Moralidade administrativa do conceito à efetivação RDA v 190 1992 p 144 MOREIRA Egon Bockmann Processo administrativo princípios constitucionais e a Lei 97841999 4ª ed São Paulo Malheiros 2010 PÜTTNER Günther Verwaltungslehre 3ª ed Munique Beck 2000