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Psicologia ·

Psicologia Social

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Portal dos Psicólogos ISSN 16466977 Documento publicado em 08062020 Kristine Kelly de Albuquerque Fabiana Josefa do Nascimento Sousa Thays Torres Cavalcante 1 SÓ QUEM PASSA É QUE SABE UM ENFOQUE ÀS RELAÇÕES FAMILIARES NO CENÁRIO DA DEPENDÊNCIA QUÍMICA Trabalho de bacharelado no âmbito da disciplina de Psicopatologia 2019 Kristine Kelly de Albuquerque Bacharel em Psicologia pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca em 2017 Brasil kristinepsicologiagmailcom Fabiana Josefa do Nascimento Sousa Mestra em Neuropsiquiatria e Ciências do Comportamento pela Universidade Federal de Pernambuco em 2008 Brasil fsousa2unifavipedubr Thays Torres Cavalcante Bacharel em Psicologia pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca em 2017 Brasil thays208hotmailcom RESUMO O ser humano influencia e é influenciado por diversas esferas a exemplo o meio social econômico subjetivo sistêmico entre outros As famílias se constituem enquanto grupo primário de inserção social do sujeito No cenário da dependência química a família é o primeiro e principal sistema afetado quando um sujeito nele se insere acarretando em consequências prejudiciais para a saúde e as relações dentre os membros O presente artigo pretende descrever a importância da participação familiar neste contexto a partir de revisão bibliográfica e apresentar os cenários das relações familiares antes e depois deste fenômeno realizando para tal uma leitura crítica e interpretativa do material encontrado sobre o tema Os resultados apontam que a dinâmica relacional familiar afeta e é afetada reciprocamente pela dependência química mas também que aquela pode ser um fator desencadeante para seu desenvolvimento Ainda foi percebido que os sentimentos experienciados por usuários e familiares são semelhantes ou iguais Palavraschave Relações familiares dependência química famílias Portal dos Psicólogos ISSN 16466977 Documento publicado em 08062020 Kristine Kelly de Albuquerque Fabiana Josefa do Nascimento Sousa Thays Torres Cavalcante 2 Copyright 2020 This work is licensed under the Creative Commons Attribution International License 40 httpscreativecommonsorglicensesbyncnd40 INTRODUÇÃO A virtude é quando se tem a dor seguida do prazer o vício é quando se tem o prazer seguido da dor Margaret Mead 1986 O presente estudo tem por objetivo geral descrever a importância da participação das famílias nos cenários de dependência química e por objetivo específico apresentar os cenários das relações familiares antes e depois deste fenômeno As reflexões foram baseadas em revisão bibliográfica de banco de dados e literatura de referência sobre o tema determinando a inclusão dos textos a partir da convergência com o tema que seria proposto pelas autoras Foram buscados textos online disponíveis na íntegra referenciando às relações familiares eou à dinâmica familiar e as repercussões da dependência química nesse contexto bem como se recorreu ao acervo físico da biblioteca da instituição de origem das autoras Os critérios utilizados para a exclusão dos textos foram não adequação da temática específica proposta e textos envolvendo grupos específicos como crianças adolescentes e pessoas em tratamento da dependência química devido às especificidades destes grupos Realizouse a leitura dos resumos dos trabalhos encontrados seguindo com a elaboração de fichamento dos materiais que atenderam aos critérios de inclusão Procederamse à análise comparação e avaliação do material levantado quanto à sua contribuição para o objetivo deste estudo A discussão dos temas que serão retratados será motivada por uma leitura crítica e interpretativa ensejando a construção de diálogos criativos e multidisciplinares para o enriquecimento dos saberes acadêmicos e profissionais A dependência química será tratada aqui pela atualidade e complexidade do tema que vem ganhando amplitude na sociedade e nos espaços de discussão de academias e distintas áreas profissionais devido ao reconhecimento de que este fenômeno se apresenta como um problema de saúde pública Suas repercussões afetam padrões difusos na vida dos sujeitos usuários bem como Portal dos Psicólogos ISSN 16466977 Documento publicado em 08062020 Kristine Kelly de Albuquerque Fabiana Josefa do Nascimento Sousa Thays Torres Cavalcante 3 na de seus familiares sendo a família o primeiro grupo social do indivíduo e também o primeiro a ser afetado nestas situações Entendese que as famílias podem se constituir como fator de risco eou de proteção para os seus membros afetando os modos de ser saudáveis ou não do sujeito Na contramão a família pode estabelecer modos de funcionalidade saudáveis ou não a partir da dinâmica relacional que os membros estabelecem entre si Assim a dependência química pode se instalar como uma característica necessária à família naquele momento para reformular a dinâmica desta ou pode surgir como uma necessidade do indivíduo para diferenciarse dos padrões da família Os modos estruturados nessa dinâmica relacional entre dependentes químicos e seus familiares é o objeto deste estudo AS VARIÁVEIS DA DEPENDÊNCIA QUÍMICA A interação entre as drogas e o homem acompanha a própria história da humanidade passando por transformações quanto aos seus significados Como expõe Orth e Moré 2008 seu uso passou lentamente do caráter ritualístico com finalidade de transcendência na antiguidade ao consumo na atualidade pela busca de prazer alívio imediato de desconforto físico psíquico ou de pressão social estando presente em todas as classes sociais p 294 As drogas são substâncias que provocam alterações nas funções biológicas de nosso corpo e com o uso contínuo e frequente também ocasiona modificações em sua estrutura Drogas Psicoativas são substâncias que alteram o comportamento o humor e a cognição do indivíduo isto é afeta o Sistema Nervoso Central produzindo efeitos psíquicos e comportamentais Já as Drogas Psicotrópicas também atuam no Sistema Nervoso Central e modificam uma ou várias de suas funções no entanto elas agem nas chamadas áreas de recompensa do cérebro onde o sujeito utiliza as para obter prazer Estas não são sancionadas pela medicina são as drogas ilícitas ou ilegais Carlini Nappo Galduróz Noto 2001 Outra classificação das drogas comumente utilizada é a desenvolvida pelo pesquisador francês Chalout que as dividiu em três grandes grupos depressoras estimulantes e perturbadoras Carlini et al 2001 Os referidos autores destacam ainda as ações específicas que caracterizam cada um desses grupos As drogas depressoras atuam causando uma lentificação ou redução das atividades do Sistema Nervoso Central As drogas estimulantes provocam a estimulação ou aceleração das funções do SNC As drogas perturbadoras agem no aspecto qualitativo do funcionamento do SNC isto é produzem condições mentais que não são próprias do SNC tais como alucinações e delírios Portal dos Psicólogos ISSN 16466977 Documento publicado em 08062020 Kristine Kelly de Albuquerque Fabiana Josefa do Nascimento Sousa Thays Torres Cavalcante 4 Além disso é importante salientar que as características químicas das drogas não são as únicas responsáveis pelas modificações que ocorrem no corpo e na mente do indivíduo A interação SujeitoContextoDroga é essencial para a compreensão deste fenômeno como cita a Secretaria Nacional Antidrogas SENAD 2001 As alterações causadas por essas substâncias variam de acordo com as características da pessoa que as usa qual droga é utilizada e em que quantidade o efeito que se espera da droga e as circunstâncias em que é consumida p 8 Assim variáveis como a motivação para o uso o grau de estabilidade emocional e vulnerabilidade as características sociohistóricas culturais e econômicas e as propriedades químicas da droga bem como o tipo a quantidade e o efeito esperado são indispensáveis ao se pensar nesse assunto Cabe aqui uma breve reflexão em relação aos modos de se relacionar com as drogas em nossa sociedade SENAD 2001 Três fatores se enlaçam nessa reflexão a as drogas podem mudar o que sentimos Isto pode ser considerado um atrativo na medida em que as pessoas recorrem a distintas substâncias para aliviar seus sofrimentos Somase a isso o ideal da felicidade presente em nossa cultura onde qualquer tristeza deve ser evitada b o modelo de felicidade ligado ao consumismo A crença de que se pode comprar a felicidade está atrelada ao padrão de uso das drogas pois os usuários associam as drogas ao prazer imediato que ela propicia mas não têm em mente que a felicidade a qualquer preço pode cobrar um valor muito alto no futuro c as indústrias das drogas lícitas e a publicidade A tolerância às drogas lícitas na sociedade e o incentivo ao consumo através da publicidade somamse à indiferença quanto aos seus efeitos e ainda que tenham consciência destes as consomem porque é aceitável Mais uma questão que merece importância para o entendimento deste fenômeno são os casos de uso abuso e dependência de drogas Há uma certa confusão na sociedade acerca da diferenciação de tais termos principalmente quando se trata de drogas lícitas Deste modo por exemplo temse a tendência de achar que substâncias como o álcool já que são legalizadas não são tão problemáticas e prejudiciais quanto as drogas ilegais o que é um engano Assim observamos que na nossa cultura somos demasiadamente tolerantes com relação às drogas legalizadas álcool medicamentos fumo etc SENAD 2001 p 13 O uso experimental feito por curiosidade e o uso ocasional realizado de maneira esporádica geralmente não trazem consequências danosas SENAD 2001 O abuso acontece quando há uso recorrente ou contínuo de uma substância psicoativa uso este que é lesivo ou mal adaptativo levando a prejuízos ou sofrimento clinicamente significativos Tal uso produz prejuízos ao sujeito em sua vida O uso nocivo é mais restrito e vai além da noção de abuso pois referese a um padrão de uso que causa dano à saúde física ou mental do sujeito Dalgalarrondo 2008 pp 344345 Portal dos Psicólogos ISSN 16466977 Documento publicado em 08062020 Kristine Kelly de Albuquerque Fabiana Josefa do Nascimento Sousa Thays Torres Cavalcante 5 Assim sendo a dependência instalase apenas quando o sujeito não consegue controlar o impulso de usar a droga levando ao uso contínuo e frequente desta para se obter prazer SENAD 2001 Aqui há algumas características próprias como efeitos físicos e psicológicos decorrentes do uso presença de fissura desejo intenso de usar a droga tolerância o organismo acostuma se com a droga necessitando de quantidades cada vez maiores para sentir seu efeito e síndrome de abstinência sinais e sintomas que surgem após a redução ou interrupção do uso quando o consumo era sucessivo e repetido além do envolvimento afetivo com a droga onde o sujeito restringe seus interesses à obtenção e consumo da substância abandonando outras atividades de sua vida Dalgalarrondo 2008 Por se tratar de um fenômeno multifatorial de causas biopsicossociais a dependência química precisa ser discutida a partir das suas múltiplas dimensões No entanto neste estudo o foco será mantido em torno da família e das suas interrelações pois a família é o primeiro e principal sistema afetado quando um dos membros familiares passa a fazer uso de drogas lícitas eou ilícitas Maciel Zerbetto Filizola Dupas Ferreira 2013 p 188 E as famílias Refletindo sobre as influências e repercussões A família é considerada a base da sociedade pois é o primeiro grupo em que o sujeito se insere e é onde se aprende os valores básicos necessários à vida em coletividade As famílias são responsáveis pelo desenvolvimento físico e psíquico integral de seus membros e constituise no primeiro grupo de mediação do indivíduo com a sociedade ocorrendo aí os aprendizados sobre os costumes da cultura onde se insere Ainda conforme as produções históricas e o desenvolvimento das famílias estas adquiriram a função de procriação e educação de seus membros preparandoos para a posterior participação social enquanto cidadão Bock Furtado Teixeira 1999 Segundo Bock et al 1999 a família possui dois papeis fundamentais tem uma função social a de educar as novas gerações segundo padrões dominantes e hegemônicos de valores e de condutas p 249 e produtora de subjetividade pois a dinâmica familiar acaba por moldar as identidades e a personalidade do sujeito seja para igualarse ou diferenciarse dos demais membros Assim a família se configura em um sistema holístico onde seus membros elaboram uma dinâmica relacional objetivando a estabilidade familiar Maciel et al 2013 No cenário da dependência química a família pode se constituir em fator de risco eou de proteção para os seus membros Paz e Colossi 2013 reportam a esses fatores Portal dos Psicólogos ISSN 16466977 Documento publicado em 08062020 Kristine Kelly de Albuquerque Fabiana Josefa do Nascimento Sousa Thays Torres Cavalcante 6 Uma família acolhedora com limites definidos comunicação adequada promotora de afeto e proteção se apresenta como fator de proteção ao uso de drogas ao contrário uma família com distanciamento afetivo com dificuldade na comunicação e fronteiras pouco definidas pode favorecer tanto o uso de substâncias como a permanência ativa da dependência p 556 Zemel 2001 também traz algumas características que podem ser encontradas nas famílias com problemas de uso ou abuso de drogas e que também foram encontradas no estudo feito por Orth e Moré 2008 São esses indiscriminação de papeis dependência afetiva diferentes membros com diferentes níveis de adição impulsividade e imediatismo fantasias mágico onipotentes o problema como sina ou azar dificuldades na comunicação e nos limites presença de mitos e ausência de ritos familiares A autora ressalta para o risco de patologização Estamos falando da observação de muitos clínicos que trabalham com famílias pelo mundo Sabemos também que muitas famílias apesar de terem as características aqui citadas não desenvolvem o uso indevido de drogas Zemel 2001 p 47 Conforme Paz e Colossi 2013 que se fundamentam na abordagem familiar sistêmica o sintoma pode emergir para regular o sistema familiar mas também para denunciar os engodos familiares como coalizões e alianças p 556 Filho 2002 também reflete neste sentido ao expor o conceito de bode expiatório como um papel necessário à homeostase familiar onde o sujeito passa a adoecer e externalizar os problemas familiares não resolvidos Essa função é retratada por Zemel 2001 ao afirmar que o usuário representa para sua família como num palco a desorganização que ela vive p 58 Orth e Moré 2008 também apontam que o drogadicto pode atuar como o portador do sintoma da disfunção familiar Nestes casos o sujeito se responsabiliza pelo equilíbrio do sistema familiar denunciando suas falhas e faltas assumindo este lugar voluntariamente porém de forma inconsciente ou passando a assumir este lugar através da atribuição de culpa que os outros membros lhe incutem Orth e Moré 2008 refletem em direção à multiplicidade de modos que as famílias podem estabelecer como estruturalmente saudável para os seus membros Nem todas as famílias de dependentes químicos podem ser consideradas não funcionais no sentido de não ter fatores de proteção necessários para o desenvolvimento de todos seus membros Por sua vez cabe apontar no entanto que em muitas famílias com dependentes ocorre um processo de circularidade em que a não funcionalidade e o abuso de drogas reforçamse mutuamente mantendo assim a homeostase familiar que sustenta a presença desta nas relações familiares p 295 Portal dos Psicólogos ISSN 16466977 Documento publicado em 08062020 Kristine Kelly de Albuquerque Fabiana Josefa do Nascimento Sousa Thays Torres Cavalcante 7 Assim é importante dizer que cada família possui o seu modo de funcionamento se estruturando em função da saúde ou da doença a partir da interrelação de seus membros como corroborado por Maciel et al 2013 compreendese que é no interior da família que ocorrem as interações e os conflitos os quais possibilitam a sua organização e reorganização influenciando diretamente na saúde de seus integrantes p 188 Aqui o conceito saúdedoença é tido tal como apresenta Filho 2002 onde estes são resultantes do equilibro ou desequilíbrio entre o indivíduo o seu próprio existir e o meio ambiente no qual se insere p 177 Essa noção se fundamenta na dinamicidade das relações humanas rompendo assim com a concepção de causa e efeito que é comum nas ciências naturais No que tange às relações familiares e as repercussões advindas da dependência química diversos autores Aragão Milagres Figlie 2009 Maciel et al 2013 Medeiros Maciel Sousa TenórioSouza Dias 2013 Orth e Moré 2008 concordam quanto aos sentimentos que emergem nesta dinâmica sentimentos de vulnerabilidade desamparo frustração culpa angústia dúvidas medos negação vergonha raiva humilhação isolamento social da família atitudes agressivas desesperança agravamento de conflitos já existentes fragilização eou ruptura dos vínculos afetivos explicação do modelo moral estresse emocional sobrecarga de cuidados eou codependência surgimento de sintomasdoenças psicossomáticas perdas materiais e transição da conduta adicta entre os membros eou entre as gerações Entendendo a família enquanto um sistema integral onde o todo é maior que a soma de suas partes percebese que as relações são afetadas simultaneamente em uma via de mão dupla Maciel et al 2013 e Medeiros et al 2013 demonstram isto ao concordarem que os estados físico mental e moral do usuário afetam essas mesmas áreas em seus familiares e que os sentimentos vivenciados pelos familiares são semelhantes ou iguais aos que o usuário sente REFLEXÃO CRÍTICA Quando um bebê nasce de imediato ele é inserido em um ambiente onde passa a ser reconhecido como o mais novo integrante da família Seu desenvolvimento subjetivo se dará a partir de duas prédeterminações a cultura familiar e a cultura social Partindo das considerações acerca da noção de família concordase quanto à sua função na sociedade qual seja a de garantir a proteção e o desenvolvimento integral de seus membros e também quanto à sua função secundária implícita a de ser um espelho para a formação da identidade do sujeito isto é essas interações constroem a identidade do indivíduo a partir da identificação ou não deste com os padrões familiares com os quais convive Portal dos Psicólogos ISSN 16466977 Documento publicado em 08062020 Kristine Kelly de Albuquerque Fabiana Josefa do Nascimento Sousa Thays Torres Cavalcante 8 Essa absorção congruente ou não com os modelos familiares pode provocar a harmonia ou a desarmonia nestas relações Quando surgem os padrões desarmônicos e a família não consegue lidar com estes os conflitos inevitavelmente surgem A hipótese que foi proposta à nossa discussão foi a de que um evento específico a dependência química pode vir a surgir no cenário familiar como denúncia desta estrutura conflitante Verificamos durante os estudos que as famílias na sua singularidade elaboram modos de funcionamento saudáveis ou não saudáveis e que estes passam a estruturar tanto a dinâmica relacional entre seus membros como a subjetividade destes sujeitos Essas relações intrafamiliares são levadas aos outros grupos nos quais o indivíduo se insere no decorrer de sua vida Essa dinâmica invadida por estes conflitos pode acarretar em situações de dependência química por dois motivos o sujeito quer diferenciarse do grupo familiar busca a sua independência busca fugir desse modo conflituoso ou quer restaurar a harmonia familiar solucionar as divergências e as desavenças No primeiro caso é comum que os conflitos já existentes se agravem No segundo caso o indivíduo se torna o sintoma de uma família disfuncional e é comum que os pais ou familiares se coloquem ora como culpados ora como vítimas da situação A família é um dos principais pilares de um sujeito e quando este precisa de ajuda é com ela que deve contar Por esse motivo quando surgem situações que demandam cuidados ambos precisam absorver os papéis de se ajudarem mutuamente Acontece que ao entrar em uma dependência química o sujeito acaba respondendo com um comportamento diferente do habitual e com o tempo começam a acontecer desgastes em todas as áreas da sua vida especialmente na familiar A família é a primeira a sofrer tais repercussões e é a mais afetada porque está mais perto e tem uma relação afetiva muito densa Podemos assim salientar que além de trazer problemas físicos mentais e relacionais para si o usuário também prejudica essas mesmas áreas na vida dos seus familiares Tanto nas condições de luta e fuga como nas de atuação dos conflitos familiares é indispensável partir de uma compreensão holística para estas famílias O cenário da dependência química não pode ser entendido de forma isolada e reducionista no qual o sujeito é o único responsável por esta situação No entanto também não é de nosso intento culpabilizar estas famílias A reflexão parte da influência das interrelações entre os familiares e o usuário no entrecruzamento de emoções sentimentos e demandas e a proposta lançada é a de que a recuperação do dependente deve partir também do todo familiar onde todos possam se apoiar ajudar e modificar as relações em desequilíbrio Nesta direção o processo deve ser totalmente livre de julgamentos estigmas préconceitos e ser permeado por informações corretas comportamentos empáticos e apoio da rede social e de profissionais que atuem com uma visão humanizada Com visão humanizada pretendese dizer Portal dos Psicólogos ISSN 16466977 Documento publicado em 08062020 Kristine Kelly de Albuquerque Fabiana Josefa do Nascimento Sousa Thays Torres Cavalcante 9 uma atuação profissional que vá além da aplicação de técnicas e conhecimentos científicos rígidos que possa entender o ser humano como semelhante e consolide sua atuação em uma atitude de cuidado para com o outro cuidado este que é essência e estrutura do humano enquanto dimensão ontológica A técnica e a instrumentalidade presentes na atualidade se somam ao espírito de consumismo e imediatismo presentes nas famílias e nos demais grupos da sociedade Por um lado as pessoas estabelecem relações a partir do que o outro lhe pode ser útil Do outro lado as famílias se preocupam em adquirir bens materiais que preencham o vazio aberto pelas relações líquidas e superficiais educam os filhos com excesso de objetos e escassez de presença e contato afetivo roubamlhes a criatividade para o desenvolvimento da resiliência deixandoos cada vez mais frágeis lançados no mundo com uma raiz familiar pouco resistente Esse desvio se tornou necessário para que se possa compreender como o contato interno das famílias se transformou ao longo da história Hoje os limites do âmbito privado e do público se tornam cada vez mais esgarçados e as famílias se tornam carentes de relações humanizadas e de vínculos fortes Esse contexto se caracteriza em um fator de risco ao desenvolvimento do abuso e da dependência de substâncias psicoativas caso as famílias não consigam suprir essa demanda afetiva Essa situação pode ainda se somar a outro fator considerado de risco dentro das famílias que é a presença de conflitos que provocam a desarmonia da estrutura do lar O que se alega aqui além da presença de fatores de risco eou de proteção é a importância da rede familiar no desenvolvimento do sujeito Em se tratando da dependência química afirma se que esta surge sempre como uma denúncia seja indicando que o indivíduo está mal adaptado a algo seja indicando que a sua família é que está mal adaptada a algo Contudo em todos os casos a família precisa querer ajuda e se implicar nesse processo tanto quanto o dependente O trabalho desenvolvido nesta direção deve ser em cima da família do seu processo de estruturação bem como das dificuldades sociais e das relações interpessoais deste âmbito CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao se considerar o tema da dependência química tornase imprescindível analisar suas múltiplas dimensões bem como apreender que a interação entre o sujeito o contexto e a droga é a tríade basilar desse fenômeno Ao se referir às famílias e às relações estabelecidas sob o cenário da dependência química o estudo apontou alguns pressupostos que ocorrem em tais circunstâncias seja por motivação explícita do sujeito seja por necessidade implícita da família Portal dos Psicólogos ISSN 16466977 Documento publicado em 08062020 Kristine Kelly de Albuquerque Fabiana Josefa do Nascimento Sousa Thays Torres Cavalcante 10 O estudo fundamentado em revisão de literatura e em leitura crítica e interpretativa encontrou aportes ao que se refere que a dinâmica relacional familiar se estrutura de maneira singular em torno da saúde ou da doença doença aqui entendida como um desequilíbrio entre o sujeito sua existência e o meio ambiente circundante e que a dependência química pode surgir aí como uma tentativa de equalizar a harmonia e a estrutura saudável do grupo familiar Entendese que as famílias necessitam ser mais valorizadas enquanto espaço privilegiado de proteção e desenvolvimento dos seus membros e que a dependência química pode ser um quadro mais fácil de ser revertido quando a família se engaja neste processo enquanto uma rede de apoio e suporte Acreditase que o presente estudo traz contribuições quanto ao tema proposto bem como quanto a novas possibilidades de articulação entre a família e o usuário no processo de recuperação tanto do indivíduo quanto da rede familiar Ainda esperase que novos estudos com esta temática possam ser produzidos com o intuito de enriquecer e ampliar as alternativas de trabalhos entre as famílias e o usuário eou dependente Portal dos Psicólogos ISSN 16466977 Documento publicado em 08062020 Kristine Kelly de Albuquerque Fabiana Josefa do Nascimento Sousa Thays Torres Cavalcante 11 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAGÃO A T M MLAGRES E FIGLIE N B 2009 Qualidade de vida e desesperança em familiares de dependentes químicos PsicoUSF v 14 n 1 pp 117123 janabr BOCK A M B FURTADO O TEIXEIRA M L T 1999 Família o que está acontecendo com ela In BOCK A M B FURTADO O TEIXEIRA M L T orgs Psicologias uma introdução ao estudo de psicologia 13ª ed Cap 17 pp 246260 São Paulo Saraiva CARLINI E A NAPPO S A GALDURÓZ J C F NOTO A R 2001 Drogas psicotrópicas o que são e como agem Revista IMESC nº 3 pp 935 DALGALARRONDO P 2008 Síndromes relacionadas a substâncias psicoativas In DALGALARRONDO P Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 2ª ed Cap 33 pp 344351 Porto Alegre Artmed FILHO J M 2002 Doença e família In FILHO J M Concepção psicossomática visão atual 10ª ed Cap 8 pp 177194 Rio de Janeiro Casa do Psicólogo MACIEL L D ZERBETTO S R FILIZOLA C L A DUPAS G FERREIRA N M L A 2013 Consequências e dificuldades da dependência química no âmbito familiar uma revisão de literatura Revista Atenção Primária à Saúde abrjun 16 2 pp 187196 MEDEIROS K T MACIEL S C SOUSA P F TENÓRIOSOUZA F M DIAS C C V 2013 Representações sociais do uso e abuso de drogas entre familiares de usuários Psicologia em Estudo Maringá v 18 n 2 pp 269279 abrjun ORTH A P S MORÉ C L O O 2008 Funcionamento de famílias com membros dependentes de substâncias psicoativas Psicologia Argumenta outdez 26 55 pp 293303 Portal dos Psicólogos ISSN 16466977 Documento publicado em 08062020 Kristine Kelly de Albuquerque Fabiana Josefa do Nascimento Sousa Thays Torres Cavalcante 12 PAZ F M COLOSSI P M 2013 Aspectos da dinâmica familiar com dependência química Estudos de Psicologia outubrodezembro 18 4 pp 551558 SECRETARIA NACIONAL ANTIDROGAS SENAD 2001 Um guia para a família Brasília SENAD 36 p VINCENT JeanDidier 1986 La biologie des passions Odile Jacob Seuil ZEMEL M L S 2001 O papel da família no tratamento da dependência Revista IMESC nº 3 pp 4363 httpdxdoiorg10159001036564e180085 Psicologia USP 2019 volume 30 e180085 19 Resumo O consumo de substância psicoativa é um fenômeno abrangente na sociedade brasileira existindo diversos modos de nomeálo destacandose toxicomania drogadição e dependência química O objetivo deste estudo é investigar como a Psicologia aborda o fenômeno bem como a compreensão desses termos Foi realizada revisão de literatura por meio do portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Capes nele foram reunidas e avaliadas publicações de revistas de Psicologia nacionais Utilizaram se como descritores os termos dependência química toxicomania e drogadição inseridos separadamente Observouse que eles podem ser utilizados como sinônimos embora guardem algumas diferenças O termo dependência química é baseado em manuais de classificação de doenças sendo mais utilizado em relatos de pesquisa a palavra toxicomania é utilizada para abordar uma relação de consumo tóxica tanto com uma substância psicoativa quanto com outro objeto já drogadição referese a uma relação de submissão e exclusividade com a droga Palavraschave dependência química toxicomania drogadição psicologia 1 A abordagem dos termos dependência química toxicomania e drogadição no campo da Psicologia brasileira Polyana Barbosa Schimith Geraldo Alberto Viana Murta Sávio Silveira de Queiroz Universidade Federal do Espírito Santo Programa de PósGraduação em Psicologia Vitória ES Brasil O consumo de substâncias psicoativas está presente em toda a história da humanidade no entanto sofreu modificações ao longo do tempo Recentemente o consumo de substâncias psicoativas se tornou tanto um problema de saúde quanto de segurança pública algo que ocorreu concomitantemente aos avanços científicos na indústria química na medicina e na farmacologia Com esses avanços e as modificações que eles produziram na sociedade algumas substâncias psicoativas acederam ao estatuto de droga Santiago 2017 De acordo com Bento 2006 p 183 o termo toxicum surgiu ainda na Antiguidade quando designava uma substância mortal usada pelos povos bárbaros para envenenar a ponta das flechas O termo tóxico guardava ainda um caráter paradoxal ao mesmo tempo que designava um veneno também podia referirse a um fármaco ou remédio com a potência de salvar a vida Ferreira e Martini 2001 mostram que havia uma relação entre o tóxico e o divino ou o sagrado por meio do uso de certas substâncias alguns povos acreditavam que seria possível alcançar o sagrado Nesse sentido não se falava nas propriedades específicas de uma substância pois ela podia ser compreendida tanto como um tóxico toxicum quanto como um fármaco As suas propriedades inclusive as psicoativas eram definidas apenas quando era estabelecida uma relação entre o tóxicofármaco e o indivíduo que o consumia Já na Modernidade a droga Endereço para correspondência ninhabsgmailcom Artigo perdeu esse duplo aspecto apresentandose como mais um objeto de consumo Santiago 2017 Inclusive outro termo já é utilizado para designar o momento civilizatório atual Hipermodernidade que tem como marca principal o hiperconsumo Lipovetsky 2004 A partir de tóxico cunhouse o termo toxicomania que pode ser entendido como uma situação na qual impera uma forma específica de comportamento recorrendo a meios artificiais os tóxicos ou as drogas visando tanto à negação dos sofrimentos quanto à busca de prazeres Olivenstein 1980 p 11 No entanto em virtude da compreensão de que a palavra mania que forma a palavra toxicomania possuía diferentes acepções dependendo do local onde era utilizada e devido à teoria que a embasava a Organização Mundial da Saúde OMS 1974 passou a recomendar o uso do termo farmacodependência Vargas Nunes Vargas 1993 A OMS 1974 por sua vez utiliza o termo fármaco para designar toda substância que introduzida no organismo pode modificar uma ou mais de suas funções p 15 Assim para referirse à dependência de substâncias psicoativas opta pela palavra farmacodependência concebida desta forma estado psíquico e às vezes físico causado pela interação entre um organismo vivo e um fármaco OMS 1974 p 15 A partir do termo farmacodependência tornouse popular no Brasil o uso da expressão dependência química Existe ainda outra palavra empregada para designar o consumo de substância psicoativa quando ele 2 2 Psicologia USP I wwwscielobrpusp Polyana Barbosa Schimith Geraldo Alberto Viana Murta Sávio Silveira de Queiroz 2 se dá de forma problemática drogadição uma tradução direta do termo em inglês drug addiction que também poderia ser traduzido por adição às drogas Adição tem em sua raiz etimológica um caráter de submissão a um dono neste caso o dono ou amo seria a droga Vargas et al 1993 p 23 teve origem na República Romana quando significava escravização como pagamento de uma dívida servidão ou submissão Desse modo a adição é compreendida como uma relação de escravidão logo de exclusividade entre o sujeito e o objeto seja este uma droga ou outro objeto qualquer Assim alguém que consome demasiadamente por exemplo comida pode ser considerado um adicto A drogadição se diferencia da toxicomania pois esta seria um tipo especial de adição na qual o objeto de consumo é exclusivamente a droga Vargas et al 1993 O Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais DSMV American Psychiatric Association APA 2014 p 481 também propõe uma diferenciação entre o consumo de drogas em excesso chamado de transtornos relacionados à substância e os transtornos aditivos que compreendem padrões comportamentais de excesso como a adição ao jogo Ainda em 1930 Freud 19302011 já compreendia o recurso a substâncias psicoativas como uma forma de tentar lidar com o malestar mas que tinha potência de causar um sofrimento mais intenso Atualmente a dependência química é compreendida como um transtorno mental e comportamental incluído no manual Classificação internacional de doenças e problemas relacionados à saúde CID10 OMS 1994 e no DSMV APA 2014 De forma geral os manuais apontam não só os danos que as substâncias podem provocar mas também as consequências da falta do consumo no caso da abstinência Sendo assim para uma parcela da ciência uma droga pode ser definida por meio de suas propriedades sejam elas químicas ou físicas ou ainda por seu mecanismo de ação Santiago 2017 Esse entendimento de que a dependência química é uma doença não ocorre sem consequência Por um lado para que um tratamento seja possível o dependente químico precisa ter a consciência de que é portador de uma doença crônica e por conseguinte da necessidade do tratamento Por outro lado existe a dificuldade de responsabilizar moralmente o dependente químico por seus atos cometidos sob a influência de substância psicoativa uma vez que ele é portador de uma doença crônica Ao definir uma patologia a responsabilidade pode ser deslocada exclusivamente para o indivíduo sem que sejam consideradas questões sociais e culturais Olivenstein 1980 Isso significa que dependendo do modo como abordamos a questão podemos promover uma separação entre a droga e o indivíduo Desse modo a responsabilidade pelo consumo pode ser isolada em cada um dos envolvidos ora do lado do indivíduo ora do lado da droga Há ainda a possibilidade de pensarmos à luz da interação entre ambos de tal modo que não sejam desconsiderados seus aspectos particulares ou mesmo as propriedades da droga Esses aspectos são importantes por impactarem na direção de tratamento que será adotada Para os profissionais do campo da Psicologia que lidam com a terapêutica é importante conhecer esses modos de enfrentar o consumo de drogas Observamos portanto que existem diferentes maneiras de abordar o consumo abusivo de substâncias psicoativas bem como modos diferenciados de nomeálo toxicomania dependência química e drogadição Com o objetivo de compreender a maneira como esse fenômeno vem sendo abordado no campo da Psicologia bem como entender o sentido que é dado a cada um dos termos realizamos uma revisão sistemática de literatura na qual reunimos e avaliamos artigos publicados em revistas nacionais da área de Psicologia Método Neste artigo efetuamos uma revisão de literatura acerca dos estudos que abordam o fenômeno do consumo de substâncias psicoativas publicados em periódicos brasileiros indexados e da área de Psicologia A busca pelos artigos foi realizada com base no portal de periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior Capes Realizamos a pesquisa por meio da busca por assunto na qual foram utilizados os seguintes descritores inseridos separadamente dependência química toxicomania e drogadição Fizemos um recorte temporal dos últimos dez anos sendo considerados os textos publicados a partir do ano de 2008 Inicialmente a seleção do material foi realizada a partir da análise de seus resumos Após a leitura destes foi feita uma seleção daqueles que se aproximavam do assunto pesquisado Por consequência foram eliminados aqueles trabalhos que não atendiam ao objetivo deste estudo isto é que não contemplavam o objetivo de compreender a maneira como o fenômeno do consumo de substâncias psicoativas vem sendo abordado no campo da Psicologia A partir disso realizamos a seleção dos artigos que foram publicados em revistas brasileiras de Psicologia reunindo um total de 22 trabalhos Não foi possível estabelecer um recorte temporal menor de cinco anos por exemplo pois ficaríamos com um conjunto de apenas oito trabalhos a serem analisados Assim ampliamos a revisão para um período maior Foi feita uma análise qualitativa dos trabalhos com base na análise de conteúdo Bardin 2004 entendida como um conjunto de técnicas de análise das comunicações que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição de conteúdo das mensagens p 27 O percurso é divido em três etapas 1 préanálise leitura flutuante e familiarização com o material 2 exploração do material e 3 tratamento dos resultados inferência e interpretação Os conteúdos temáticos encontrados nos trabalhos foram categorizados de acordo com os seguintes aspectos 3 3 A abordagem dos termos dependência química toxicomania e drogadição no campo da Psicologia brasileira Psicologia USP 2019 volume 30 e180085 3 que se mostraram relevantes a partir da exploração do material os tipos de artigo encontrados relatos de pesquisas estudos teóricos ou experiência profissional o conceito utilizado para abordar o consumo de drogas problemático bem como o sentido dado a cada um dos termos dependência química toxicomania e drogadição e descrição das diferenças e aproximações na abordagem de cada um dos termos Desse modo os resultados são apresentados a seguir em seis categorias 1 tipos de artigo 2 conceituação baseada em manuais 3 dependência química 4 toxicomania 5 drogadição e 6 afastamento e interseções Resultados e discussão Sobre o termo dependência química encontramos nove artigos Cunda Silva 2014 Hess Almeida Moraes 2012 Jesus Rezende 2008 Lima 2008 Machado Boarini 2013 Oliveira Andretta Rigoni Szupszynski 2008 Paz Colossi 2013 Pratta Santos 2009 Sayago LucenaSantos Horta Oliveira 2014 Com o termo toxicomania encontramos sete artigos Belo 2012 Bento 2008 Lisita Rosa 2011 Macedo Dockhorn Kegler 2014 Pereira 2008 Romanini Roso 2012 Silva Ulhôa 2015 Por fim sobre o termo drogadição encontramos seis artigos Andretta Oliveira 2011 Cunha Silveira Paiva Filho 2012 Giacobone Macedo 2013 Lermen Dartora CapraRamos 2014 Raupp MilnitskySapiro 2009 Savietto Cardoso 2009 Chegamos assim a um total de 22 trabalhos Nas categorias descritas a seguir apresentaremos apenas os estudos que de fato têm uma concepção acerca de cada um dos termos Antes disso vamos abordar os tipos de artigo encontrados Os tipos de artigo Inicialmente investigamos os tipos de artigos distribuídos em relatos de pesquisas 11 exemplares estudos teóricos nove exemplares e relato de experiência profissional dois trabalhos É notável o baixo número de relatos de experiência comparado aos demais tipos Dado que a busca por artigos foi feita exclusivamente em revistas de Psicologia com um tema que nos convoca à prática esperávamos encontrar maior compartilhamento de experiências entre os profissionais Além disso os relatos de experiência foram encontrados apenas sob o termo toxicomania e apresentam uma perspectiva clínica psicanalítica Lisita Rosa 2011 Silva Ulhôa 2015 Podemos levantar a hipótese de que há uma tradição de que as publicações em periódicos científicos sejam realizadas predominantemente por pessoas vinculadas à pósgraduação portanto mais envolvidas no âmbito da pesquisa Desse modo é compreensível que o número de relatos de experiência profissional seja baixo Esse aspecto também pode guardar relação com o grande número de relatos de pesquisa encontrados De um total de dez seis foram achados sob o termo dependência química Hess et al 2012 Jesus Rezende 2008 Lima 2008 Oliveira et al 2008 Paz Colossi 2013 Sayago et al 2014 dois com o termo toxicomania Macedo et al 2014 Pereira 2008 e dois com o termo drogadição Andretta Oliveira 2011 Raupp MilnitskySapiro 2009 Dentre eles predominam as pesquisas qualitativas tendo como instrumento de coleta mais utilizado a entrevista semiestruturada No que diz respeito aos estudos teóricos de um total de dez quatro foram encontrados a partir do termo drogadição Cunha et al 2012 Giacobone Macedo 2013 Lermen et al 2014 Savietto Cardoso 2009 três a partir de toxicomania Belo 2012 Bento 2008 Romanini Roso 2012 e três a partir de dependência química Cunda Silva 2014 Machado Boarini 2013 Pratta Santos 2009 Há aqui uma diversidade de temas abordados sobressaindose as especificidades do consumo de substâncias psicoativas na contemporaneidade tema abordado em quatro artigos A conceituação baseada nos manuais e o consumo de substâncias psicoativas como doença No que diz respeito às nomenclaturas utilizadas para caracterizar o fenômeno que abordam alguns autores utilizam documentos da OMS Bento 2008 e manuais de diagnóstico como o CID10 Hess et al 2012 Jesus Rezende 2008 Oliveira et al 2008 e o DSMIV Andretta Oliveira 2011 Hess et al 2012 Jesus Rezende 2008 Romanini Roso 2012 Sayago et al 2014 Atualmente encontrase no mercado a quinta edição do DSM publicada em 2014 que não é referenciada em nenhum dos artigos pesquisados Por outro lado apuramos algumas críticas a determinadas práticas de diagnósticos sinalizando que ao criar o rótulo dependente químico correse o risco de que o sujeito não se implique ou assuma suas responsabilidades em face da sua doença Cunha et al 2012 Romanini e Roso 2012 apontam que um sujeito que frequenta o CAPSAD Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Outras Drogas e recebe o diagnóstico de dependência química pode identificarse em absoluto com o significante dependente químico e ao mesmo tempo desresponsabilizarse por seus desejos visto que é portador de uma doença crônica e incurável p 357 Assim pode ocorrer uma retirada da responsabilidade do indivíduo ao colocálo sob o rótulo de doente crônico Ainda no que diz respeito à identificação promovida pela nomeação Pereira 2008 constatou que apenas durante o tratamento de internação aprendese que a toxicomania é uma doença crônica A introdução 4 4 Psicologia USP I wwwscielobrpusp Polyana Barbosa Schimith Geraldo Alberto Viana Murta Sávio Silveira de Queiroz 4 desse novo modo de nomeação abre a possibilidade de marcar certo limite ele o toxicômano não é mais aquele que tudo pode ou aquele pelo qual tudo se faz Pereira 2008 p 215 Com isso também é introduzida uma noção do tempo futuro que antes inexistia pois durante o uso de drogas o tempo é sempre o presente Contudo consideramos que o tratamento de internação promove uma série de mudanças na vida do sujeito e a principal delas é o afastamento em relação à droga Assim tornase questionável atribuir tais mudanças a introdução do limite e a mudança na noção de tempo a apenas uma variável deixando de considerar que o rompimento da relação com a droga pode contribuir para essas mudanças Ao fazer isso destacase apenas o aspecto positivo da nomeação diferentemente do que ocorre em outros trabalhos que marcam os aspectos negativos Cunha et al 2012 Olivenstein 1980 Romanini Roso 2012 Consideramos que o uso dos manuais responde à necessidade de haver algum padrão de diagnóstico de modo a ter critérios sistematizados ao invés de uso inadequado de conceitos préjulgamentos e estereótipos Jesus Rezende 2008 p 505 Além disso lembramos que o objetivo dos manuais de classificação como o próprio nome indica é classificar as doenças de modo a permitir certa padronização Isso pode facilitar a troca de informações sobre as enfermidades em nível mundial Consequentemente prescindir dos manuais é algo delicado para os profissionais do campo da Psicologia Todavia o seu uso precisa ser acompanhado de constante avaliação sobre suas consequências Dependência química O termo dependência química embora seja o mais utilizado dá margem para uma compreensão segundo a qual determinado componente químico causa a dependência Isto é a dependência química pode ser entendida como uma doença causada pelos efeitos de uma substância Nesse sentido o objeto droga tornase responsável por causar a doença Santiago 2017 Lima 2008 afirma que a droga também pode ser concebida como combustível e veículo fonte de energia e móvel para a ação voltadas para o lúdico para a representação de si e do grupo a que se pertence ao mesmo tempo em que também servem para o necessário devaneio p 100 Diante de todas as consequências que o consumo de substâncias psicoativas pode causar Hess et al 2012 Sayago et al 2014 esse modo de abordálas nos parece distante da realidade clínica e social No entanto não podemos desconsiderar que o consumo de substâncias psicoativas tem um lugar social vinculado à obtenção de prazer principalmente no que diz respeito às drogas lícitas Na contemporaneidade em que impera a lógica capitalista há uma valorização do consumo que muitas vezes independe do objeto a ser consumido Lipovetsky 2004 O café para acordar a cerveja para relaxar depois do expediente o remédio para dormir Esses são apenas alguns exemplos de consumos de substâncias psicoativas que estão no nosso dia a dia e que se enquadram na proposta de Lima 2008 Assim consideramos que é preciso ter atenção para não valorizarmos nem estigmatizarmos o consumo de substâncias psicoativas examinandoo sempre na perspectiva do contexto social e individual no qual ele ocorre Cunda Silva 2014 É conhecido que o consumo de substância psicoativa esteve presente em toda a história da humanidade pois o homem sempre buscou através dos tempos maneiras de aumentar o seu prazer e diminuir o seu sofrimento Pratta Santos 2009 p 203 No entanto as mudanças que ocorreram na cultura levaram a um modo de vida racional materialista e normatizador Pratta Santos 2009 p 207 Diante disso o consumo de substâncias psicoativas pode ser lido como uma forma de evasão de contestação eou transgressão Pratta Santos 2009 p 207 No entanto não há consenso quanto a isso pois se o consumo de drogas pode ser entendido como transgressão também pode ser entendido como uma forma de submissão à lógica corrente nos tempos hipermodernos Lima 2008 Lipovetsky 2004 Isto é o dependente químico se submete a um imperativo típico dos tempos atuais consuma Uma pesquisa com dirigentes de instituições que assistem dependentes químicos mostra que a dependência química foi compreendida da seguinte forma doença curávelincurável falta de amor falta de caráter Dito de outro modo o indivíduo é marcado pela falta faltamlhe amor e caráter em função disso ele é dependente químico Destacase ainda que nenhum dos participantes recorreu a material científico para conceituar a dependência química Jesus Rezende 2008 Isso pode causar certa estranheza visto que poderíamos questionar como podem os dirigentes de casas de tratamento não embasar suas opiniões em saberes científicos ou formais para lidarem com as situações de intervenção No entanto é possível encontrar na literatura defensores de que o saber daquele que já foi dependente químico portanto saber empírico deve ser valorizado no âmbito do tratamento Olivenstein 1980 Consideramos porém que devemos ter cuidado para que o diagnóstico de dependência química não seja atravessado por um juízo de valor que por vezes carrega certo preconceito O que ocorre por exemplo quando dirigentes de clínicas de recuperação conceituam a dependência química como falta de caráter Jesus Rezende 2008 p 502 Toxicomania A palavra toxicomania nem sempre teve a acepção que apresenta hoje Ela é derivada do termo toxicum que guardava um duplo sentido designava veneno mortal ao mesmo tempo que também podia referirse a um fármaco ou remédio com a potência de salvar a vida A definição de tóxico tal como usamos hoje como doença como 5 5 A abordagem dos termos dependência química toxicomania e drogadição no campo da Psicologia brasileira Psicologia USP 2019 volume 30 e180085 5 degenerescência como amoralidade e como paixão teve origem apenas no século XIX Bento 2008 p 132 Nesse mesmo momento surgiu a ideia de ilicitude de algumas substâncias como a cocaína e alguns de seus derivados Como já vimos anteriormente essas mudanças são atribuídas ao avanço da ciência que faz do objeto droga mais um objeto de consumo Santiago 2017 Há certa consonância quanto à diferença entre usuário de drogas e toxicômano O usuário é aquele que introduz a droga numa série de objetos fazendo dela apenas mais um objeto de consumo cerveja cigarro café remédio etc O toxicômano de outro modo usa a droga como um objeto exclusivo que impede qualquer outro laço social estabelecendo uma relação de exclusividade com ela Pereira 2008 O sujeito toxicômano é ainda aquele que segue a lógica hipermoderna na qual o valor máximo é o consumo sendo portanto compreendido como um bom consumidor Romanini Roso 2012 Isso se aproxima da leitura realizada por Lipovetsky 2004 segundo a qual nos tempos hipermodernos o que é de fato valorizado são as experiências de consumo De acordo com Pereira 2008 há uma relação entre os termos farmacodependência e dependência química ambos seriam utilizados para designar a dependência estritamente biológica Em contrapartida o termo toxicomania designaria a dependência psicológica Esse entendimento porém não encontra respaldo na literatura Por exemplo o conceito de farmacodependência estabelecido pela OMS 1974 abrange tanto a dependência física quanto a psicológica por meio da interação entre o organismo e uma substância psicoativa Há na toxicomania uma aposta de que é possível encontrar a satisfação completa bem como libertarse de certo malestar com apenas um objeto a droga No entanto entre o sujeito e sua droga estabelecese uma intensa relação de exclusividade por vezes caracterizada pelos próprios dependentes como uma escravidão que pode levar à perda de laços sociais Belo 2012 Romanini Roso 2012 Assim a toxicomania porta uma busca por alívio para certo malestar no entanto ela encerra um aprisionamento na relação com a droga Nesse sentido Macedo et al 2014 p 44 vão além Para eles a droga ocupa uma função de mascarar o desamparo e a dificuldade de simbolizar ambos gerados pela precariedade de relações que os autores nomeiam como primordiais para referirse a figuras parentais Nessa modalidade de relação a droga ocupa o lugar de objeto absoluto e parece servir para dar lugar de valor no mundo na possibilidade de não se deparar com frustrações próprias da vida Macedo et al 2014 p 49 Dito de outro modo as questões afetivas que não são traduzidas pelas palavras engendrando um sentido são mitigadas com a droga Diante disso no que diz respeito à clínica psicanalítica tratase não de um dependente químico mas de um sujeito que sofre com a toxicomania Romanini Roso 2012 p 358 Por essa via a toxicomania deixa de ser abordada como uma doença e assume o caráter de sintoma Assim rompese com a identificação que pode existir ao afirmarmos que um indivíduo é um toxicômano É notável que apenas sob o termo toxicomania tenhamos obtido relatos de experiência profissional mais especificamente relatos de casos clínicos Entre eles por meio de um caso de psicose destacase a dificuldade em relacionar a toxicomania e a psicose pois não é possível reduzir toda toxicomania à estrutura clínica da psicose Apontam ainda a dificuldade em realizar o diagnóstico do toxicômano com base nas estruturas clínicas descritas pela psicanálise neurose psicose e perversão No entanto levantam a hipótese de que a diferença passa pela função que o objeto droga desempenha na neurose e na psicose enquanto na neurose a toxicomania é relacionada ao uso desregulado sem limites e sem significação da substância tóxica na psicose o uso da droga parece ter um caráter bem delimitado relacionado a uma função bem específica para cada sujeito Lisita Rosa 2011 p 263 Entre os relatos de experiência profissional encontramos um trabalho que aborda a relação entre o luto e a toxicomania com base no caso de uma paciente que fazia uso de álcool como forma de lidar com os intensos sofrimentos causados por sucessivas perdas Assim a paciente faz de sua toxicomania uma solução para um conflito psíquico Porém nessa tentativa de refugiarse dos problemas foi pouco a pouco dissolvendo os laços e se isolando de tal modo que ela mesma veio a falecer Silva Ulhôa 2015 Corroborando o que já foi demonstrado por outros estudos Belo 2012 Romanini Roso 2012 no caso descrito o recurso à droga surge como modo de dar uma solução para um conflito psíquico mas que levou o próprio sujeito a se dissolver Diante do que foi exposto até aqui de forma geral a toxicomania é examinada na perspectiva da relação do sujeito com a droga Assim o que faz da droga um tóxico ou um fármaco é a relação assumida com ela Belo 2012 Macedo et al 2014 Pereira 2008 Romanini Roso 2012 Portanto quando se trata de toxicomania o foco não está na substância e nos efeitos que ela pode causar mas na relação que o sujeito estabelece com os seus objetos de consumo Santiago 2017 Comumente as substâncias psicoativas podem ser também um recurso para lidar com um malestar ou com um sofrimento No entanto esse modo de operar pode levar a um sofrimento ainda mais intenso Belo 2012 Macedo et al 2014 Romanini Roso 2012 Silva Ulhôa 2015 Esse modo de abordar a toxicomania é corroborado tanto por Freud 19302011 quanto por Olivenstein 1980 Drogadição A drogadição tem sido abordada por meio de duas perspectivas dominantes no Brasil a da saúde na qual o drogadito é um doente e a jurídica na qual ele é um criminoso Cunha et al 2012 Machado 6 6 Psicologia USP I wwwscielobrpusp Polyana Barbosa Schimith Geraldo Alberto Viana Murta Sávio Silveira de Queiroz 6 Boarini 2013 Embora existam esses modos que tendem a homogeneizar os indivíduos que consomem droga esta não exerce o mesmo papel para todo e qualquer sujeito sendo singular a forma como cada um se relaciona com ela Cunha et al 2012 Lima 2008 Essas abordagens generalizantes são ineficazes pois não contemplam o conjunto completo de usuários e dependentes tampouco os aborda em suas particularidades Destacase que nesta categoria encontramos predominantemente estudos teóricos cinco de um total de oito artigos nos quais sobressai uma leitura da drogadição por meio de características da sociedade contemporânea Nela impera a busca pela satisfação imediata e constante que poderia ser encontrada nos objetos de consumo como a droga Cunha et al 2012 Giacobone Macedo 2013 Raupp MilnitskySapiro 2009 Porém a ideia de que a satisfação por meio da droga gera um bemestar constante é uma falácia Como já havia sido apontado na categoria Toxicomania ao tentar aplacar o malestar com a droga encontrase outro tipo de malestar talvez até mais perigoso Freud 19302011 Romanini Roso 2012 Giacobone e Macedo 2013 abordam a drogadição de modo semelhante à compreensão de Romanini e Roso 2012 acerca da toxicomania como uma forma de submissão à norma que rege a sociedade isto é o consumismo O sujeito que consome abusivamente uma droga normalmente compreendido como um vilão poderia ser entendido como o verdadeiro herói pois exerce plenamente a lógica do capitalismo ao consumir desenfreadamente um mesmo objeto até o êxtase Giacobone Macedo 2013 p 64 Entretanto ao fazer isso esse sujeito declara toda sua miséria psíquica No nosso momento civilizatório a ordem simbólica vem passando por transformações que incluem a própria decadência do simbólico ou seja da palavra Há uma tendência de que o corpo seja convocado numa tentativa de lidar com o desamparo Assim a drogadição é lida como uma possível resposta do sujeito à presença perturbadora em seu psiquismo de elementos intraduzíveis inassimiláveis Savietto Cardoso 2009 p 17 De forma geral os estudos que abordam a drogadição se aproximam dos que abordam a toxicomania pois também adotam a perspectiva de uma relação entre o indivíduo e um objeto de consumo especificamente a droga Cunha et al 2012 Giacobone Macedo 2013 No caso da drogadição além de uma relação de exclusividade como ocorre na toxicomania o indivíduo é subjugado pelo objeto tornandose seu escravo Vargas et al 1993 Outra leitura que se destaca é o recurso à droga como uma tentativa de lidar com o sofrimento sempre fadada ao fracasso Cunha et al 2012 Freud 19302011 Giacobone Macedo 2013 Raupp MilnitskySapiro 2009 Romanini Roso 2012 Savietto Cardoso 2009 Nos dados apresentados até aqui observamos que acerca do consumo de drogas o acento pode incidir sobre a interação entre o indivíduo e a droga algo que ocorre predominantemente quando são utilizados os termos toxicomania e drogadição Andretta Oliveira 2011 Oliveira et al 2008 Olivenstein 1980 OMS 1974 Santiago 2017 sobre o indivíduo Jesus Rezende 2008 Olivenstein 1980 e sobre os efeitos causados pela substância Hess et al 2012 É curioso notar que esta é também a noção adotada pelo DSMV no entanto os termos nele usados são transtornos relacionados a substâncias e transtornos aditivos Esse é apenas um exemplo das confusões que podem ser causadas no trato técnico ou científico da questão ao adotarmos determinados termos sem uma prévia discussão sobre a que eles concernem Afastamentos e interseções Nas três categorias encontramos trabalhos que divergem quanto à função social desempenhada pelo consumo de substâncias psicoativas Por um lado ele é lido por meio do nosso contexto civilizatório que tem como valor máximo o consumo além da constante busca de satisfação Diante disso consumir drogas é estar submisso a esse valor e portanto seguir a norma social Cunha et al 2012 Giacobone Macedo 2013 Lima 2008 Raupp MilnitskySapiro 2009 Por outro o consumo de drogas foi lido por meio de outra característica a forte normatização que a sociedade nos impõe Assim ele seria mais um meio de transgredir as normas do que uma forma de se submeter a elas Pratta Santos 2009 Todavia como se trata de uma relação de exclusividade não há aí liberdade o que ocorre é um aprisionamento a um único objeto a droga o que pode levar à perda de laços sociais e afetivos Romanini Roso 2012 Embora sejam formas antagônicas de abordar o mesmo fenômeno é possível que ambos os modos de relação com a droga sejam possíveis na contemporaneidade afinal Lipovetsky 2004 nos ensina que vivemos na sociedade do hiperconsumo na qual o consumo algumas vezes ocupa lugares paradoxais Ainda no que diz respeito ao tratamento um tema que se repetiu nas diferentes categorias foi a diferença entre o que está prescrito nos documentos governamentais que deveriam nortear as práticas e as práticas que de fato são adotadas nas instituições responsáveis pelo tratamento Andretta Oliveira 2011 Machado Boarini 2013 Oliveira et al 2008 Raupp Milnitsky Sapiro 2009 Enquanto as políticas públicas preveem a prática da redução de danos as instituições objetivam a abstinência total Lermen et al 2014 Machado Boarini 2013 o que não se presentifica como propósito geral dos pacientes que em muitos casos querem apenas reduzir o consumo Além disso as instituições também apresentam dificuldade em efetivar um tratamento que considere as particularidades de cada caso Raupp MilnitskySapiro 2009 Além de dissonante das políticas públicas esse modo de enfrentar o tratamento pode gerar certa frustração uma vez que os índices de recaída são elevados o que pode levar à manutenção do ciclo do consumo Rigotto Gomes 2002 7 7 A abordagem dos termos dependência química toxicomania e drogadição no campo da Psicologia brasileira Psicologia USP 2019 volume 30 e180085 7 Após concluirmos o exame dos trabalhos encontrados em nossa revisão não é possível afirmar que a escolha pelo termo defina o modo de compreender o fenômeno do consumo de substâncias psicoativas pois apenas três artigos Oliveira et al 2008 Sayago et al 2014 Silva Ulhôa 2015 de um total de 22 usaram um único termo para nomear o fenômeno que abordaram Mesmo havendo certa imprecisão é possível marcar algumas particularidades de cada categoria Quando se trata dos relatos de pesquisa por exemplo em que dependência química surge quase exclusivamente eles demonstram uma apropriação do mundo das ciências por esse termo Parecenos que quando se pretende traçar linhas gerais sobre o tema por meio de pesquisa a expressão que melhor se adequa é dependência química Por outro lado predomina o termo toxicomania quando se trata de relato de experiência nesse caso exclusivamente pela clínica psicanalítica Ressaltase o fato de os relatos de experiência mesmo vinculados ao serviço público de saúde terem sido exclusivamente relatos de atendimentos individuais Lisita Rosa 2011 Silva Ulhôa 2015 No que diz respeito à drogadição predominam as leituras do fenômeno das drogas à luz das características da contemporaneidade Tanto a toxicomania quanto a drogadição são abordadas predominantemente na perspectiva da relação que o sujeito estabelece com a droga Belo 2012 Pereira 2008 Romanini Roso 2012 Ou seja bem como sinaliza Santiago 2017 o foco é deslocado da substância e dos efeitos que ela pode causar para a relação que o sujeito estabelece com os seus objetos de consumo de modo similar ao que sugere a OMS 1974 como já mostramos anteriormente quando indica que a farmacodependência é causada pela interação entre um organismo vivo e um fármaco p 15 Considerações finais Diante do que foi exposto até aqui qual a nossa proposta para nomear o fenômeno Parecenos que o termo dependência química encontra maior aceitação uma vez que é usado na maioria dos trabalhos estando muito vinculado aos critérios estabelecidos pelo DSMV APA 2014 mas sem utilizar a nomenclatura estabelecida pelo próprio manual Por outro lado o termo toxicomania mais usado nos artigos que abordam o tratamento marca uma relação tóxica com um objeto qualquer podendo ser uma substância psicoativa ou não Já com o termo drogadição temos a marca de uma relação na qual os papéis se invertem o sujeito tornase o objeto escravizado pela droga Assim consideramos que para definir qual termo será adotado fazse necessário avaliar em qual contexto o termo será aplicado bem como sobre qual objetivo Diante dessa pluralidade de entendimentos reiteramos a necessidade de esclarecer como é compreendido o fenômeno que abordamos em uma produção científica Especificamente neste caso lembramos que o tema é frequentemente abordado na imprensa e muitas vezes de modo que fortalece o preconceito e o estigma sobre os sujeitos Além disso quando o uso de qualquer um desses termos é realizado sem uma consideração do que eles indicam podem velar a forma como concebemos o fenômeno Assim para além de uma escolha precisa do termo os dados aqui apresentados indicam a necessidade de repensarmos a forma como abordamos o uso de substâncias psicoativas É a partir dessa elucidação que podemos reformular práticas de intervenção de modo que elas estejam voltadas para o sujeito e as questões trazidas por ele e não para a substância e seus princípios ativos Analysis of how the terms chemical dependency toxicomania and drug addiction are used in Psychology in Brazil Abstract The use of psychoactive substance is a widespread phenomenon in the Brazilian society so it is named several ways for instance toxicomania drug addiction and chemical dependency The purpose of this study is to analyze how Psychology has addressed this phenomenon and used these three terms A scientific literature review was conducted with studies on this theme on the portal of Capes Coordination for the Improvement of Higher Education Personnel published in national Psychology journals The following keywords were inserted separately for the search chemical dependency toxicomania and drug addiction The three terms are used as synonyms although presenting minor differences between one another Chemical dependency is commonly found in disease classification manuals and more widely used in research reports toxicomania refers to toxic consumption which could be of a psychoactive or another substance and drug addiction refers to an exclusive submission relationship with drugs Keywords chemical dependency toxicomania drug addiction psychology Lapproche des termes dépendance chimique toxicomanie et addiction aux drogues dans le domaine de la psychologie brésilienne Résumé Lusage de substances psychoactives est un phénomène répandu dans la société brésilienne et on lappelle de différentes manières comme toxicomanie addiction aux drogues et dépendance chimique Cette étude vise à étudier comment 8 8 Psicologia USP I wwwscielobrpusp Polyana Barbosa Schimith Geraldo Alberto Viana Murta Sávio Silveira de Queiroz 8 la psychologie a abordé ce phénomène ainsi que la compréhension de ces termes Un examen de la documentation a été réalisé avec des études sur le thème sur le portail CAPES publiées dans laquelle revues nationales de psychologie Les motsclés suivants ont été utilisés dépendance chimique toxicomanie addiction aux drogues insérés séparément Les trois termes sont utilisés comme synonymes bien que différents les uns des autres Le terme dépendance chimique est basé sur les manuels de classification des maladies et est plus largement utilisé dans les rapports de recherche le mot toxicomanie fait référence à une relation de consommation toxique pouvant être une substance psychoactive ou avec un autre objet et addiction aux drogues désigne une relation de soumission et dexclusivité avec la drogue Mots clés dépendance chimique toxicomanie addiction aux drogues psychologie El enfoque de los términos dependencia química toxicomanía y drogadicción en el campo de la Psicología brasileña Resumen El consumo de sustancias psicoactivas es un fenómeno de gran amplitud en la sociedad brasilera y hay diversas maneras de nombrarlo las cuales se destacan las siguientes toxicomanía drogadicción y dependencia química Este estudio buscó investigar de qué modo la psicología ha abordado el fenómeno así como la comprensión de estos tres términos Se realizó una revisión de literatura en el portal de periódicos Capes Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior en el cual se reunieron y evaluaron publicaciones en revistas de Psicología nacionales Se utilizaron como descriptores los términos dependencia química toxicomanía drogadicción colocándolos por separado Se observó que los tres términos son utilizados como sinónimos aunque tengan diferencias El término dependencia química se basa en manuales de clasificación de enfermedades siendo más utilizado en relatos de investigación la palabra toxicomanía es utilizada para describir una relación de consumo tóxica que puede ser tanto con una sustancia psicoactiva como con otro objeto ya drogadicción se refiere a una relación de sumisión y exclusividad con la droga Palabras clave dependencia química toxicomanía drogadicción psicología Referências American Psychiatric Association 2014 Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais DSM 5 Porto Alegre RS ArtMed Andretta I Oliveira M S 2011 A Entrevista motivacional em adolescentes usuários de droga que cometeram ato infracional Psicologia Reflexão e Crítica 242 218226 doi 101590S010279722011000200002 Bardin L 2004 Análise de conteúdo Lisboa Edições 70 Belo F R R 2012 O paraexcitações reizschutz e a paraskeuê Psicologia em Estudo 173 425433 doi 101590S141373722012000300008 Bento V E S 2006 Tóxico e adicção comparados a paixão e toxicomania etimologia e psicanálise Psicologia USP 171 181206 Bento V E S 2008 Para uma semiologia psicanalítica da paixão na antiguidade grega e seus sentidos adictivo e tóxico Psicologia USP 192 129158 doi 101590 S010365642008000200003 Cunda M F Silva R A N 2014 O crack em um cenário empedrado articulações entre os discursos jurídico médico e midiático Psicologia Sociedade 26n spe 245255 doi 101590S010271822014000500025 Cunha B M C Silveira L C Paiva Filho F 2012 Bukowski e drogadição uma análise para além do velho safado Psicologia em Estudo 174 689698 doi 101590S141373722012000400015 Ferreira P E M Martini R K 2001 Cocaína lendas história e abuso Revista Brasileira de Psiquiatria 232 9699 Freud S 2011 Malestar na civilização São Paulo SP Companhia das Letras Trabalho original publicado em 1930 Giacobone R Macedo M K 2013 Cultura e desejo a construção da identidade adicta no cenário 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IIUniversidade Federal do Piauí UFPI Parnaíba PI Brasil Consumo de álcool e drogas e o trabalho do psicólogo no núcleo de apoio à saúde da família Alcohol and drugs consumption and psychologists work in health family support nucleus Ana Izabel Oliveira LimaI Magda DimensteinI João Paulo MacedoII Resumo Objetivouse discutir os desafios para a prática do psicólogo no Núcleo de Apoio à Saúde da Família NASF diante de demandas relacionadas ao consumo de substâncias psicoativas e às possibilidades de atuação Como desafios apontase a falta de atualização e manejo profissional a crença dos profissionais de que nada pode ser feito em relação a problemas com álcool e drogas o encaminhamento como única ação de cuidado e a formação dos psicólogos ainda baseada no modelo de clínica liberal privada curativa É preciso criar práticas de acordo com o contexto dos indivíduos resgatar as múltiplas dimensões de saúde e incorporar outros saberes para compor a produção do cuidado com a saúde como a Redução de Danos que reconhece cada usuário em sua singularidade e traça estratégias de promoção da saúde Palavraschave psicologia drogas cuidado saúde da família Abstract This study aimed at discussing the challenges faced by the psychologist in the Núcleo de Apoio à Saúde da Família NASF regarding the demands arising from consumption of psychoactive substances and the possibilities for action With respect to challenges it was pointed out the lack of professional updating and management the professional belief that nothing can be done when it comes to alcohol and drugs the referral as the only care action performed and the education of psychologists still based on the liberal private curative and individual clinic model We must create practices in accordance with the individuals context as well as rescuing the multiple dimensions of health and incorporating other forms of knowledge so as to compose the production of health care such as Harm Reduction that recognizes each user in their uniqueness and devises strategies to promote health Keywords psychology drugs care family health Introdução De acordo com a Organização Pan Americana de SaúdeOPAS 2009 cerca de 10 das populações dos centros urbanos de todo o mundo consomem de forma abusiva substâncias psicoativas independen temente de idade sexo nível de instrução e poder aquisitivo No Brasil pesquisas indicam que 68 da população brasileira é dependente de álcool 3 disseram já ter consumido maconha alguma vez na vida e 4 da população adulta e 3 dos adolescentes já consumiram cocaínacrack representando uma parcela significativa da população atingida por essa problemática Instituto Nacional de Ciência e Tecno logia para Políticas Públicas de Álcool e Outras Dro gas INPAD 2012 As consequências do consumo de álcool e outras drogas constituem um dos mais graves pro blemas de saúde exigindo a criação e manutenção de programas e políticas de prevenção e assistência articulados além da formação permanente de pro fissionais de saúde Claro Oliveira Almeida Var gas Plaglione 2011 Tal fato impõe aos diversos campos de conhecimento científico a necessidade de desenvolver estratégias para abordar adequadamente a problemática do uso abusivo de tais substâncias sobretudo em termos de seu impacto na saúde pú blica e na Atenção Primária AP De acordo com Barros e Pillon 2007 as expe riências de atendimento e acolhimento das demandas de saúde mental são constatadas por 56 das equi pes de Saúde da Família e os dados epidemiológicos apontam que de 6 a 8 da população necessita de algum cuidado decorrente do uso prejudicial do ál cool e outras drogas Diante disso percebemos que é essencial a inserção de práticas de saúde mental na AP destinadas à problemática do consumo de álcool e drogas A adoção de tais procedimentos redireciona ria o cuidado numa perspectiva de atenção integral e humanizada em articulação com os profissionais e os serviços já inseridos nos territórios Arce Sousa Lima 2011 Consumo de drogas e o trabalho do psicólogo no NASF 189 Psicologia em Pesquisa UFJF 92 188197 JulhoDezembro de 2015 Todavia Silveira 2009 ressalta que o desprepa ro dos profissionais da família e da comunidade para lidar com o sofrimento psíquico tem se tornado cada vez mais evidente e a medicalização dos sintomas foi muitas vezes percebida como incapacidade em atender os problemas psíquicos tudo isso somado à ausência ou ineficiência dos serviços de referência Isso revela as dificuldades das equipes de AP para trabalhar de forma eficaz com as demandas relacionadas à saúde mental Como consequência é cada vez mais evidente o exces so de demanda dos serviços e a falta de conhecimento das equipes para acolher essa população Algumas medidas foram propostas para lidar com essas questões no Brasil Eleito pelo Ministério da Saúde como a estratégia oficial para guiar as ações de saúde mental na AP o apoio matricial é uma de las Brasil 2003 Ele pode ser entendido como um suporte técnico especializado ofertado a uma equipe de saúde com a finalidade de ampliar seu campo de atuação e qualificar suas ações O matriciamento deve proporcionar retaguarda especializada de assistência assim como suporte técnicopedagógico vínculo in terpessoal e apoio institucional no processo de cons trução coletiva de projetos terapêuticos voltados à população Chiaverini 2011 Nessa perspectiva o Ministério da Saúde criou em 2008 o Núcleo de Apoio à Saúde da Família NASF como estratégia de ampliação da diversidade e da abrangência das ações realizadas pela Estratégia Saúde da Família Outra função do NASF é pro porcionar a melhoria do atendimento à população promovendo a produção de novos saberes e a amplia ção da clínica Brasil 2008 Com nove áreas estra tégicas saúde da criançado adolescente e do jovem saúde mental reabilitaçãosaúde integral da pessoa idosa alimentação e nutrição serviço social saúde da mulher assistência farmacêutica atividade física atividades corporais práticas integrativas e comple mentares o NASF se configura como a principal ferramenta brasileira para a implantação de ações em saúde mental na AP Segundo as orientações do Ministério da Saúde Brasil 2009 a equipe do NASF deve ser formada por profissionais de diferentes áreas do conhecimento atuando em conjunto com os profissionais das equi pes de Saúde da Família e compartilhando e apoiando as práticas em saúde nos territórios atendidos por es sas equipes Seus integrantes devem trabalhar com o matriciamento como lógica de atuação apoiando as equipes de Saúde da Família na discussão dos casos no atendimento compartilhado e na construção con junta de projetos terapêuticos singulares visando a coordenação e a continuidade do cuidado bem como a proposição de projetos de saúde do território com foco no fortalecimento do tecido comunitário e na promoção da saúde Hoje existem três modalidades de NASF NASF 1 composto por no mínimo cinco pro fissionais deve desenvolver ações com pelo me nos oito equipes de Saúde da Família NASF 2 voltado a municípios com menos de dez habitantes por quilômetro quadrado deve incluir no mínimo três profissionais de nível superior de ocupações nãocoincidentes desen volvendo ações com pelo menos três equipes de Saúde da Família NASF 3 é voltado ao desenvolvimento de ações de atenção integral a usuários de crack álcool e outras drogas em municípios com menos de 20000 habitantes Essa modalidade foi criada somente em dezembro de 2012 por meio da Portaria nº 3124 De acordo com o Ministério da Saúde Brasil 2009 diante da grande demanda por serviços de saúde mental à AP é aconselhável que cada equipe do NASF conte com pelo menos um profissional de saúde mental incluindo o psicólogo Tal categoria tem participado do processo de implementação dos NASFs desde as primeiras experiências de matricia mento especialmente no apoio e na discussão com as equipes de Saúde da Família sobre os cuidados aos usuários com sofrimento mental e seus familia res Hoje seu papel se ampliou incluindo a aten ção a idosos jovens mulheres vítimas de violência usuários de álcool e outras drogas e outros grupos vulneráveis buscando compartilhar seu saber com o de outros profissionais e com o da própria população Conselho Federal de Psicologia CFP 2013 A responsabilização compartilhada pelos ca sos permite regular o fluxo de usuários nos serviços tornando possível distinguir situações que poderiam ser acolhidas pelas próprias equipes de Estratégia de Saúde da Família com apoio do NASF e por outros recursos sociais do entorno as redes de cuidado contribuindo para evitar práticas de psiquiatrização e ao mesmo tempo promovendo a equidade e o acesso garantindo coeficientes terapêuticos de acor do com as vulnerabilidades e potencialidades de cada usuário Figueiredo Campos 2009 p 130 As políticas voltadas ao tratamento de usuários de álcool e outras drogas englobam diversos setores Lima A I O Dimenstein M Macedo J P 190 Psicologia em Pesquisa UFJF 92 188197 JulhoDezembro de 2015 da po lítica pública seja na área da segurança pública seja nas áreas da saúde assistência social e educação O grande desafio dessa integração é atuar na perspec tiva da garantia de direitos e dessa maneira enfrentar a lógica que trata a ques tão das drogas pelo viés exclu sivo da doença e do crime Essa lógica reducio nista criminaliza e patologiza os usuários que passam a ser objeto de dis criminação preconceito exclusão recolhimento e internação compulsória CFP 2013 De acordo com o CFP 2013 o lugar do psi cólogo nesse contexto deve ser construído por meio da prática e da posição por ele ocupada na abordagem aos usuários devendo seu posicionamento explicitar o propósito de sua presença Desse modo não cabe aos profissionais de psicologia da equipe julgar de forma alguma ou censurar moralmente o comportamento dos indivíduos seja em relação ao uso de substâncias psicoativas ilícitas seja em termos de condutas anta gônicas à moral e aos costumes tidos como aceitáveis O papel dos profissionais é acessar um segmento que muitas vezes está à margem da rede de saúde e social por temer o estigma e a rejeição A aceitação desses usuários como sujeitos possibilita a construção de um vínculo de confiança base sobre a qual se desenvolve rá o trabalho Dessa forma a consolidação da psicologia como profissão da saúde pública representa uma aposta em sua potencialidade para transformar e reconhecer os fatores subjetivos emocionais históricos e das condi ções de vida dos usuários como determinantes para os quadros de saúde e doença da população O psicólogo deve ampliar seus conhecimentos e intervenções com as famílias permitindo que sua conduta profissional tenha um caráter coletivo integrando as equipes mul tiprofissionais Paulin Luzio 2009 Apesar do grande número de usuários de subs tâncias psicoativas e da gravidade das questões que che gam aos serviços de saúde poucas pesquisas abordam o modo como os profissionais da AP em especial os psicólogos lidam com questões relacionadas ao consu mo abusivo e à dependência de álcool e drogas Barros Pillon 2007 Nesse sentido o presente estudo teve como objetivo discutir os desafios e as possibilidades para a prática do psicólogo no NASF diante de de mandas que envolvem o consumo de substâncias psi coativas Para tanto recorreuse à literatura disponível sobre o tema na Biblioteca Virtual em Saúde BVS a partir dos seguintes descritores psicólogopsicologia atenção primária à saúde substâncias psicoativas e NASF Foram localizados artigos monografias dis sertações teses e capítulos de livros Porém não foram identificadas publicações quando combinamos os des critores psicólogopsicologia NASF e substâncias psicoativas álcooldrogas fato que reforça a necessi dade de estudos sobre o tema Apresentaremos a seguir as principais reflexões desenvolvidas com base no ma terial identificado articulandoo com os documentos oficiais do Ministério da Saúde para a construção de argumentos e análises que fortaleçam a atuação do psi cólogo na AP frente às demandas relacionadas ao uso abusivo de álcool e drogas Desafios para o psicólogo na atenção ao usuário de álcool e outras drogas A saúde pública emprega muitos profissionais de psicologia os quais atuam em diversas instituições desde Unidades Básicas de Saúde nível primário de atenção até hospitais nível terciário Desde sua re gulamentação como profissão no Brasil a psicologia tem conquistado e ampliado seu espaço na saúde pú blica sobretudo após a reforma sanitária e a institui ção do Sistema Único de Saúde SUS um marco para o estabelecimento de um novo olhar sobre o processo saúdedoença Antes vista somente como ausência de doença física a saúde passa a ser contextualizada nas condições sociais e culturais do indivíduo Meira Silva 2011 No entanto apesar de a saúde pública abranger um considerável percentual de psicólogos já que atualmente 49402 profissionais são vinculados ao SUS Brasil 2015 observase grande dificuldade de atuação nessa área em virtude da formação ainda inadequada oferecida pela maior parte dos cursos no país Paulin Luzio 2009 Em pesquisa sobre a atuação de psicólogos na AP Meira e Silva 2011 constataram que em virtude da formação tradicional a atuação profissional é pre dominantemente pautada por questões teóricoprá ticas limitadas às teorias terapêuticocurativas o que leva a um reducionismo da compreensão do processo saúdedoença ou a uma psicologização desse fenô meno Tal representação e perfil predominantes dos profissionais levam muitas vezes à simplificação e ao não reconhecimento da psicologia como disciplina de relevância social e área de conhecimento importante para a promoção da saúde coletiva Ronzani Ro drigues 2006 De acordo com Romagnoli 2006 um obstá culo para a atuação dos psicólogos com as famílias é o desconhecimento da realidade das mesmas Os mem bros das equipes do NASF geralmente pertencem a camadas mais favorecidas e assim têm a tendência Consumo de drogas e o trabalho do psicólogo no NASF 191 Psicologia em Pesquisa UFJF 92 188197 JulhoDezembro de 2015 de julgar as famílias atendidas em geral de classes econômicas desfavorecidas a partir do modelo do minante de família nuclear Isso acaba desqualificando as famílias que frequentam os serviços públicos É ne cessário ter em vista que cada família possui uma or ganização própria regida por lógicas diferentes o que não as tornam superiores ou inferiores umas às outras Portanto para a realização de um trabalho eficaz é ne cessário respeitar as particularidades de cada família Se trabalhar no âmbito da AP já representa um grande desafio para o psicólogo quando o assunto é o consumo de substâncias psicoativas esse desafio se intensifica Em pesquisa sobre como a AP responde às demandas relacionadas ao consumo de álcool e ou tras drogas Lima 2014 aponta que os profissionais entrevistados incluindo o psicólogo da equipe do NASF relatam que a única ação a ser feita é o enca minhamento a um serviço especializado Para justificar os constantes encaminhamentos os profissionais dizem não saber o que fazer com usuários de álcool e drogas De acordo com a autora os relatos dos pro fissionais apontam um caráter prescritivo ou seja eles pensam saber o que é melhor para o outro Mui tas vezes as conversas com os usuários se resumem a orientações do que a pessoa deveria fazer isto é que o correto seria ela não usar drogas É possível obser var uma compreensão subjacente de que o tratamento deve ter como meta a abstinência pois as drogas se riam a priori algo ruim Outro ponto exposto pela autora é a clara dificuldade de compreensão dos fato res que levam uma pessoa a usar drogas No decorrer da pesquisa quando levantada essa questão muitos profissionais disseram não compreender por que al guém consome drogas enquanto outros atribuíram essa culpa às condições de vida à pobreza e aos pro blemas na família Lima 2014 De acordo com Machado 2013 tais dificul dades têm uma dimensão técnica mas também ética Muitos se perguntam como acolher o que fazer o que propor às pessoas usuárias de drogas que chegam aos serviços e nem sempre estão dispostas a receber cuida do em saúde ou iniciar um tratamento A abordagem dessas situações precisa estar associada a uma ampla compreensão tanto do fenômeno do usodependência de drogas quanto do alcance e da finalidade das práti cas de atenção em saúde Nesse sentido alguns complicadores se apresen tam A compreensão dos profissionais de saúde sobre o uso de substâncias psicoativas não é muito diferente da concepção hegemônica da sociedade Usuários de álcool e outras drogas são muitas vezes vistos como cidadãos desprovidos de direitos inclusive do direito à saúde e aos serviços de boa qualidade A situação ideal para muitos profissionais é que eles interrom pam o consumo de drogas antes mesmo de chegar aos serviços de saúde No entanto na maioria das vezes não é isso que acontece Machado 2013 É possível identificar ainda problemas de infraestrutura falta de financiamento para a implantação de unidades ade quadas para receber os usuários e articular as ações possíveis e ausência de investimento na capacitação de profissionais da rede de saúde Ribeiro 2012 Nesse sentido a AP se mostra despreparada para enfrentar a complexidade da questão das drogas que se coloca como um constante desafio A própria relação dos profissionais com a comunidade é per meada por dificuldades objetivas acesso aceitação comunicação e subjetivas medo preconceito desa fetos frequentemente relacionadas ao problema do consumo de drogas tráfico violência desestrutura ção familiar questões complexas que não podem ser tratadas isoladamente Gonçalves 2002 No entanto a saúde pública é um campo que exige novas metodologias de seus profissionais e isso não exclui os psicólogos Para uma atuação consisten te é preciso romper com o modelo tradicional e criar novas práticas de acordo com o contexto em que os indivíduos estão inseridos É necessário também res gatar as múltiplas dimensões de saúde e reformular a postura de intervenção profissional além de incorpo rar outros saberes para compor a produção do cuida do com a saúde Paulin Luzio 2009 A necessidade de superação desses entraves tem gerado novos campos de saber ampliando a inserção da psicologia no âmbito da saúde Com isso é neces sário repensar o modelo de fazer psicologia nessa área e expandir suas práticas e formas de atuação para que a intervenção aconteça de forma contextualizada Possibilidades de atuação do psicólogo na atenção ao usuário de álcool e outras drogas Uma das saídas possíveis para tantos entraves no cuidado ao usuário de álcool e drogas na AP é o constante engajamento de todos os profissionais para o trabalho em equipe e em rede com outros serviços e equipamentos do território de modo a buscar ajuda quando seus recursos não forem suficientes Dessa for ma tornase importante investir na articulação entre equipes de NASF Centros de Atenção Psicossocial e diversos componentes da Rede de Atenção Psicosso cial RAPS a fim de promover atividades relacionadas Lima A I O Dimenstein M Macedo J P 192 Psicologia em Pesquisa UFJF 92 188197 JulhoDezembro de 2015 ao uso de substâncias psicoativas desde ações de pre venção até intervenções mais complexas e que exijam maior preparação do profissional acerca da temática Araújo 2013 O NASF desempenha papel central nessas ini ciativas uma vez que cabe a ele as ações de matri ciamento para que se tornem importantes estratégias de educação e de troca de saberes atuando com os profis sionais dos serviços de Saúde da Família de ma neira a pro porcionar o conhecimento necessário para que estejam aptos a receber essa demanda e acolhê la de maneira adequada e humanizada Percebemos também o matriciamento realizado pelas equipes do NASF como um importante articulador da rede de serviços de saúde aumentando o leque de possibili dades e a circulação dos usuários pelos diversos domí nios da rede de cuidado Araújo 2013 defende que é por meio de pe quenas e graduais mudanças que o trabalho em equi pe pode lançar um novo olhar sobre o consumo de substâncias psicoativas Essas mudanças devem tomar lugar em todos os espaços desde a graduação até os diversos serviços de saúde apontando para a necessi dade de repensar a forma ção dos diversos cursos da área da saúde para o âmbito da saúde mental e do consumo abusivo de substâncias psicoativas Algumas possibilidades e linhas de intervenção do psicólogo enquanto membro de uma equipe do NASF seja no âmbito preventivo de promoção e proteção seja no contexto terapêutico e de reabilitação psicossocial a partir dos serviços ou em articulação com eles como ações baseadas nos pressupostos da Redução de Danos RD a estratégia da Triagem e Intervenção Breve TIB e alternativas de cuidado em rede considerando os diferentes tipos de consumo de substâncias psicoativas podem ser efetivadas De acordo com o Ministério da Saúde Brasil 2013 a inclusão da RD como uma das ações de saú de da política de AP pressupõe sua utilização como abordagem possível para lidar com diversos agravos e condições de saúde Atuar nessa perspectiva pressu põe a utilização de tecnologias relacionais centradas no acolhimento empático no vínculo e na confiança Considerandose especificamente a atenção aos pro blemas de álcool e outras drogas a estratégia de RD visa minimizar as consequências adversas criadas pelo consumo de drogas tanto na saúde quanto na vida econômica e social dos usuários e seus familiares Nes sa perspectiva a RD postula intervenções singulares que podem envolver o uso protegido a diminuição ou mudança nos padrões de uso a substituição por substâncias que causem menos problemas e até a abs tinência Brasil 2013 Outra ação necessária é trabalhar as crenças e representações sociais que a população os trabalha dores de saúde e os próprios usuários de drogas têm sobre essa condição de maneira a superar as barreiras que agravam sua vulnerabilidade e dificultam a busca por tratamento Lidar com os próprios preconceitos sobre o que desperta o consumo de drogas é funda mental para poder cuidar das pessoas que precisam de ajuda por esse motivo Percebemos então que a abordagem da RD oferece um caminho promissor por reconhecer cada usuário em sua singularidade e traçar com ele estra tégias para promover a saúde e garantir seus direitos enquanto cidadão No entanto é de fundamental importância o desenvolvimento de ações de educação permanente a fim de que os trabalhadores da saúde aperfeiçoem o diálogo para que possam transmitir não só medidas de segurança à saúde mas também confiança respeito e aceitação Não podemos nos es quecer de que a questão do preconceito ainda repre senta um empecilho ao desenvolvimento de algumas estratégias de RD Fonsêca 2012 Destacamos também dentre as estratégias que podem ser pensadas no campo da prevenção ao uso abusivo de álcool e outras drogas a TIB para o uso abusivo de substâncias que está sendo avaliada para populações especí ficas principalmente no contexto da AP em todo o mundo Ronzani 2008 devido à possibilidade de vínculo entre os usuários e a equipe de saúde e à efetividade do monitoramento do trata mento De forma geral a TIB apresenta um enfoque educativo e motivacional no qual o principal objetivo é desencadear a decisão e o comprometimento com a mudança dos pacientes com a finalidade de reduzir o risco de danos ocasionados pelo consumo exagerado de substâncias psicoativas A TIB foi proposta como abordagem terapêu tica para usuários de álcool em 1972 por Sanchez Craig e colaboradores no Canadá Neumann 1992 Tratase de uma estratégia baseada na abordagem mo tivacional para prevenção com foco na mudança de comportamento do usuário por meio do atendimento com tempo limitado a ser realizado por profissionais de diferentes formações desde que devidamente trei nados A TIB no entanto não serve apenas para tratar problemas relacionados ao álcool mas também para ajudar na mudança de uma série de comportamentos como modificar a dieta parar de fumar perder peso entre outros Consumo de drogas e o trabalho do psicólogo no NASF 193 Psicologia em Pesquisa UFJF 92 188197 JulhoDezembro de 2015 A TIB possui baixo custo e se mostra efetiva para questões relacionadas ao uso de risco de subs tâncias psicoativas sendo uma ferramenta destinada a reforçar a autonomia nas escolhas do usuário assim como sua capacidade de gerir seus problemas Desse modo ela tem sido usada para prevenir ou reduzir o consumo de álcool e outras drogas bem como pro blemas associados e orientar de modo focal e objeti vo sobre os efeitos e as consequências relacionados ao consumo de risco constituindose também como um meio adequado para referenciar casos de dependência para tratamentos especializados Ronzani 2008 Ronzani Mota e Souza 2009 apontam que os estudos sobre a TIB se concentram em duas dire ções principais sua efetividade na redução de padrões de uso da substância e as condições em que tem sido implementada tendo como foco o preparo dos pro fissionais envolvidos Os autores afirmam que a utili zação de apenas cinco a dez minutos de consulta de rotina para aconselhamento dos usuários de risco de álcool por profissionais de saúde consegue reduzir o consumo em 20 a 30 Uma vez que a depender da região durante o período de um ano entre 60 e 75 da população procura algum tipo de atendimento em serviços de AP a implantação de estratégias de TIB para usuários de risco nesses serviços permitiria de tectar pessoas com tal tipo de uso e intervir precoce mente Ronzani Mota Souza 2009 Quando associados à TIB os instrumentos de rastreamentotriagem como por exemplo o questionário CAGE o AUDIT e o ASSIST que são ferramentas de identificação de padrões de uso do álcool do tabaco e de outras drogas facilitam a aproximação inicial e permitem um retorno objetivo para o paciente possibilitando assim a introdução dos procedimentos de TIB e de motivação para a mudan ça de comportamento em relação à substância Por essa razão a Organização Mundial da Saúde OMS vem desenvolvendo há alguns anos estudos multi cêntricos em diversos países com o objetivo de ava liar a implemen tação de rotinas de TIB para o uso de álcool e outras drogas em serviços de AP A ênfase de tais estudos tem sido na avaliação do impacto do treinamento de pro fissionais de saúde e da supervisão continuada na mudança de atitudes dos profissionais e na incorporação da TIB na rotina dos serviços Ron zani Mota Souza 2009 Segundo a OMS 2011 uma vez que a promo ção da saúde e a prevenção de doenças faz parte do dia a dia de trabalho das equipes de AP tendo em vista as ações de prevenção e detecção de doenças rotineiras nas Unidades de Saúde tais como aquelas relaciona das à imunização à pressão arterial à obesidade ao consumo de tabaco entre outras os usuários con fiam nas informações que recebem dos profissionais de cuidados primários sobre os riscos à saúde parti cularmente aquelas relacionadas ao uso de substân cias A OMS diz ainda que nos países desenvolvidos 85 da população acessa um profissional de cuidados primários de saúde pelo menos uma vez por ano e é provável que usuários com problemas relacionados ao consumo de álcool e outras drogas façam parte dessa população OMS 2011 Isso significa que os profis sionais da AP têm a oportunidade de intervir numa fase inicial antes que o usuário desenvolva sérios pro blemas pelo uso de drogas e pela dependência Nesse sentido podese agir a partir da identi ficação do tipo de consumo da substância psicoativa pelo usuário para pensar em possíveis planos de ação Diante de um caso de uso recreativo por exemplo o psicólogo em parceria com as equipes de Saúde da Família pode considerar o padrão cultural do uso de álcool e outras drogas pela comunidade como por exemplo seu consumo em atividades festivas ou por determinados grupos sociais uso experimental e oca sional ou ainda como remédio uso circunstancial ou situacional para lidar com o sofrimento ou supor tar viver sempre relacionando essas questões com as condições de trabalho e de vida pensar em estratégias de orientação educação e prevenção voltadas a usuá rios familiares à comunidade em geral e à população específica considerandose o quadro epidemiológico local e nacional por substâncias para o conhecimento dos danos e das vulnerabilidades decorrentes ações de cuidado e proteção oferecidas pela rede de serviços e grupos de apoio comunitário realizar visitas domici liares periódicas com o objetivo de estreitar o vínculo e motivar o usuário e a família a procurarem ajuda e acompanhamento dos riscos com foco na RD para não evoluírem para padrões de uso comprometedores e participar de ações preventivas e educativas em con junto com outros equipamentos do território escolas Centros de Referência da Assistência SocialCRAS e grupos comunitários para promover ações que incen tivem a diminuição da disponibilidade de substâncias psicoativas na comunidade além de oferecer orien tações com o intuito de evitar o uso experimental e ocasional entre jovens e adolescentes e intervenções para que estes não se associem a grupos ou manifes tações que usam ou valorizam o uso de substâncias bem como o acompanhamento dos casos em que o uso recreativo é presente em famílias em situação de Lima A I O Dimenstein M Macedo J P 194 Psicologia em Pesquisa UFJF 92 188197 JulhoDezembro de 2015 vulnerabilidade e fragilidade dos vínculos afetivos e sociocomunitários Diante de casos de consumo abusivo de álcool e drogas o psicólogo pode acompanhar mais inten sivamente os casos identificados pela equipe da Es tratégia Saúde da Família ESF com padrão de uso regular e abusivo e com prejuízos à funcionalidade exposição a riscos danos e vulnerabilidades trabalhar a partir do manejo do vínculo da escuta qualificada e do acolhimento do sujeito em suas necessidades e sin gularidade permanece imprescindível para minimizar as resistências e oferecer abordagem direta e assertiva que motive o indivíduo e a família a procurarem aju da além de construir ações para o cuidado em parce ria com outros serviços recuperar ações de avaliação clínica e abordagem terapêutica inicial em usuários com padrão de uso abusivo recorrente e que apresen tam agravos físicos comportamentais e sociais inten sificar ações de RD como orientações e intervenções breves para minimizar as situações de vulnerabilidade e exposição a riscos físicos e sociais oferecer assistên cia psicológica e orientação com o serviço social para ampliar as ações de cuidado na rede de saúde e assis tência social e no território e apoiar a equipe ESF in clusive com matriciamento nas ações de orientação educação prevenção e proteção quanto aos riscos do uso abusivo policonsumo acidentes de trânsito vio lência comportamento sexual de risco intoxicação dependência comportamentos impulsivos e disrup tivos comportamento suicida e evolução no padrão de uso para dependência bem como transição para outros tipos de droga considerados mais pesados e esclarecimento sobre os direitos no caso de conflitos com a Justiça e com aparelhos de segurança pública As equipes de AP incluindo o psicólogo tam bém podem atuar em casos de uso dependente Suas ações podem se basear em intensificar a atuação em casos de usuários que vivem em territórios com gran de disponibilidade de substâncias o manejo do vín culo a escuta qualificada e o acolhimento do sujeito em suas necessidades e singularidade são ferramentas fundamentais para tratar esse padrão de uso priorizar intervenções que considerem as necessidades indivi duais a relação com a substância o padrão de uso do indivíduo e sua prontidão para aceitar qualquer tipo de acompanhamento conforme seu estágio para mudança précontemplação contemplação ação manutenção e recaída além do contexto familiar e da rede de suporte e apoio considerar e se articular com outros serviços de suporte para cuidar das com plicações clínicas dos possíveis prejuízos sociais das comorbidades psiquiátricas transtornos de ansieda de e humor psicose e transtorno de personalidade das vulnerabilidades dos fatores sociais e de pobreza acompanhada de senso de desesperança e sofrimento psicossocial além dos níveis de tolerância e do quadro de abstinência oferecer ação de RD como orienta ções e intervenções breves para minimizar as situa ções de vulnerabilidade e a exposição a riscos físicos e sociais esclarecer e moti var o tratamento ambulato rial e psicossocial na rede CAPS com modalidade de atendimentos individuais eou grupais com foco na reabilitação psicossocial com apoio e proteção para modificar padrões de uso dependente e compulsivo e seus riscos Para os casos que envolvam situação de violência eou negligência em relação a crianças ido sos e demais perfis sociais em situação de fragilidade articularse com os Centros de Referência Especializa dos de Assistência Social CREAS Ademais podese articular com equipes de consultório de rua ações em conjunto para ampliar o acesso e identificar novos ca sos para o cuidado da população de rua propor ações de caráter preventivo e protetivo aos Centros de Con vivência e Cooperativa Cecco para ampliar as ações de cuidado e fortalecer o acesso aos demais serviços articular ações de profissionalização e projetos de ge ração de renda para o fortalecimento de projetos de futuro esclarecer e orientar sobre os direitos no caso de conflitos com a Justiça motivar usuários e familia res a se inserirem em grupos de apoio e ajudamútua e grupos de fortalecimento de vínculos além de outras ações de suporte e acompanhamento nos Centros de Referência de Assistência Social CRAS para dimi nuir a resistência e o fracasso de sua participação nes ses grupos Essas são apenas algumas ações que podem ser realizadas com o objetivo central de ampliar o acesso e a qualidade da assistência a indivíduos e famílias com problemas relacionados a álcool e drogas Tais inicia tivas devem partir do estabelecimento de linhas de cuidado para cada padrão de uso com ações clínicas e de gestão para cada serviço bem como entre eles para avançarmos no trabalho em rede Dessa forma tornase necessário que inter venções desenvolvidas no âmbito da saúde mental busquem fortalecer o modo de atenção psicossocial apostando no resgate da singularidade de cada usuário investindo no comprometimento com seus sintomas e seu tratamento e incentivando seu protagonismo Tais movimentos são capazes de incitar a ruptura com a lógica da identificação dos sujeitos com a doença e com a concepção de cura restrita à solução medi Consumo de drogas e o trabalho do psicólogo no NASF 195 Psicologia em Pesquisa UFJF 92 188197 JulhoDezembro de 2015 camentosa além de auxiliar na construção de outros laços sociais para além do grupo apostando na força do território e da cidade como alternativas para a rea bilitação psicossocial Considerações finais A partir das análises aqui apresentadas é pos sível identificar alguns desafios que marcam a atua ção do psicólogo no NASF diante do consumo de substâncias psicoativas tais como a falta de forma ção contínua e de manejo profissional a crença dos profissionais de que nada pode ser feito em relação a problemas com álcool e drogas gerando o encami nhamento como única ação de cuidado e a formação dos psicólogos ainda baseada no modelo de clínica liberal privada curativa No entanto mesmo diante de tais entraves é possível construir práticas sintoni zadas com o contexto dos indivíduos resgatar as múl tiplas dimensões de saúde e incorporar outros saberes para compor a produção do cuidado integral como é a perspectiva da RD por reconhecer cada usuário em sua singularidade e traçar estratégias de promoção da saúde É inegável que há muito a ser feito em termos de práticas inovadoras em psicologia no SUS em especial na AP Tornouse no entanto expresso o movimento de mudanças que pouco a pouco vem buscando e alcançando modos mais efetivos de par ticipar das transformações necessárias ao desenvolvi mento do SUS Tratase de pensar em uma política de atenção ao usuário de álcool e drogas na qual as alternativas sejam construídas por meio do diálogo entre os di versos setores da população Paulin Luzio 2009 O trabalho deve ser encaminhado sob a égide da po tencialização dos laços sociais devendo fornecer res postas para as diferentes situações e necessidades dos usuários acolhendo e cuidando deles desde a urgên cia até o acompanhamento psicossocial e além disso intervindo nas cenas de uso criando vínculo e garan tindo acesso sem preconceitos e compulsoriedade Dessa forma tornase imprescindível o investi mento na contínua formação dos profissionais que fa zem parte dos diversos componentes da RAPS a partir dos princípios da educação permanente incorpo rando criativamente os avanços técnicocientíficos às bases teóricas já existentes problematizando as de mandas sociais emergentes e considerando as condi ções socioeconômicas e estruturais dos profissionais e da população Nesse sentido ressaltase a necessidade de os avanços científicos repercutirem nas pessoas não exclusivamente pela atuação dos profissionais de saú de mas também pelo impacto positivo que têm nos conhecimentos valores e comportamentos das comu nidades e dos sistemas sociais Costa Mota Cruvinel Paiva Ronzani 2013 Campos e Guarido 2010 afirmam que viver o contraditório na prática psi da AP e percorrer o ca minho do consultório para esse amplo espaço social é abrir mão do trabalho protegido de paradigmas técnicos estabelecidos e se lançar num pensar psico lógico que se torne possível sempre que as relações se construam Este estudo chegou a algumas indicações que podem contribuir para pesquisas futuras também in teressadas em investigar a atuação do psicólogo na AP frente às demandas relacionadas ao uso abusivo de ál cool e drogas Os problemas apontados atravessam as práticas desse profissional em nível nacional e mui to pouco se tem avançado no sentido de ampliar o acesso dos profissionais de saúde a informações sobre as habilidades específicas para detectar precocemente problemas relacionados ao uso de substâncias psicoa tivas e intervir de forma eficaz Contudo algumas es tratégias foram traçadas neste trabalho no intuito de fornecer ferramentas para uma abordagem territorial de cuidado em saúde mental Referências Araújo A C C 2013 Atenção primária e dependência química contribuições do matriciamento em saúde mental Saúde em Debate 371 6169 Arce V A R Sousa M F Lima M G 2011 A práxis da saúde mental no âmbito da Estratégia Saúde da Família contribuições para a construção de um cuidado integrado Physis Revista de Saúde Coletiva 212 541560 Barros M A Pillon S C 2007 Assistência aos usuários de drogas a visão dos profissionais do Programa Saúde da Família Revista Enfermagem UERJ 152 261266 Brasil Ministério da Saúde Portaria nº 3124de 28 de dezembro de 2012 Redefine os parâmetros de vinculação dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família NASF Modalidades 1 e 2 às Equipes Saúde da Família eou Equipes de Atenção Básica para populações específicas cria a Modalidade NASF 3 e dá outras providências Brasília Ministério da Saúde Lima A I O Dimenstein M Macedo J P 196 Psicologia em Pesquisa UFJF 92 188197 JulhoDezembro de 2015 Brasil Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde 2015 Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde Recuperado de http cnesdatasusgovbr Brasil Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas 2008 Política nacional de atenção integral à saúde do homem princípios e diretrizes Brasília Ministério da Saúde Brasil Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Atenção Básica Departamento de Ações Programáticas e Estratégicas 2013 Cadernos de Atenção Básica n 34 saúde mental Brasília Ministério da Saúde Brasil Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde Departamento de Atenção Básica 2009 Diretrizes do NASF Núcleo de Apoio à Saúde da Família Brasília Ministério da Saúde Brasil Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde 2003 Saúde mental na atenção básica o vínculo e o diálogo necessários Brasília Ministério da Saúde Campos F C B Guarido E L 2010 O psicólogo no SUS suas práticas e as necessidades de quem o procura In SPINK M J P Org A psicologia em diálogo com o SUS prática profissional e produção acadêmica pp 81103 São Paulo Casa do Psicólogo Chiaverini D H Org 2011 Guia prático de matriciamento em saúde mental Brasília Ministério da SaúdeCentro de Estudo e Pesquisa em Saúde Coletiva Claro H G Oliveira M A F Almeida M M Vargas D Plaglione H B 2011 Adaptação cultural de instrumentos de coleta de dados para mensuração em álcool e drogas SMAD Revista Eletrônica Saúde Mental Álcool e Drogas Edição em Português 72 7177 Conselho Federal de PsicologiaCFP 2013 Referências técnicas para a atuação de psicólogasos em políticas públicas de álcool e outras drogas Brasília CFP Costa P H A Mota D C B Cruvinel E Paiva F S Ronzani T M 2013 Metodologia de implementação de práticas preventivas ao uso de drogas na atenção primária latinoamericana Revista Panamericana de Salud Pública 335 325331 Figueiredo M D Campos R O 2009 Saúde mental na atenção básica à saúde de Campinas SP uma rede ou um emaranhado Ciência Saúde Coletiva Botucatu 141 129138 Fonsêca C J B 2012 Conhecendo a redução de danos enquanto uma proposta ética Psicologia Saberes 11 1136 Recuperado de http revistascesmacedubrindexphppsicologia articleview42 Gonçalves A M 2002 Cuidados diante do abuso e da dependência de drogas desafio da prática do Programa Saúde da Família Tese de doutorado Universidade de São Paulo Ribeirão Preto Laranjeira R Org 2012 II Levantamento Nacional de Álcool e Drogas LENAD São Paulo Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Políticas Públicas de Álcool e Outras Drogas INPAD Recuperado de httpinpadorg brwpcontentuploads201403LenadII RelatC3B3riopdf Lima A I O 2014 Suporte ao uso de álcool e drogas na atenção primária um estudo com equipes de NatalRN Dissertação de mestrado Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal Machado A R 2013 Contribuições para a formulação de ações de formação em atenção a usuários de álcooldrogas no SUS o relato de uma experiência em Minas Gerais In Lobosque A M Silva C R Orgs Saúde Mental marcos conceituais e campos de prática pp 111119 Belo Horizonte Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais Meira M A Silva M O 2011 Atuação da Psicologia na Estratégia Saúde da Família a experiência de um psicólogo em uma residência multiprofissional Revista Brasileira de Ciências da Saúde 153 369376 Neumann B G 1992 Intervenção Breve In Formigoni M L Org A intervenção breve na dependência de drogas a experiência brasileira pp 8194 São Paulo Contexto Organização Mundial da Saúde OMS 2011 Intervención breve vinculada a ASSIST para el consumo riesgoso y nocivo de sustancias Manual para uso en la atención primaria Washington DC OMS Recuperado de httpwwwwhoint substanceabuseactivitiesassistintervention spanishpdf Organização Pan Americana de Saúde OPAS 2009 Drug Use Epidemiology in Latin America and the Caribbean A Public Health Approach Washington DC Panamerican Health Organization Paulin T Luzio C A 2009 A psicologia na saúde pública desafios para a atuação e formação profissional Revista de Psicologia da UNESP 82 98109 Consumo de drogas e o trabalho do psicólogo no NASF 197 Psicologia em Pesquisa UFJF 92 188197 JulhoDezembro de 2015 Ribeiro R I S 2012 A dependência grave do álcool e do crack e o atendimento na rede pública de saúde mental Ministério Público do Estado de Minas Gerais Recuperado de httpsaplicacao mpmgmpbrxmluihandle1234567891058 Romagnoli R C 2006 A formação dos psicólogos e a saúde pública Pesquisas e Práticas Psicossociais 12 Ronzani T M Mota D C B Souza I C W 2009 Prevenção do uso de álcool na atenção primária em municípios do estado de Minas Gerais Revista de Saúde Pública 43Supl 1 51 61 doi101590S003489102009000800009 Ronzani T M 2008 Padrão de uso de álcool entre pacientes da atenção primária à saúde estudo comparativo Revista de APS 112 163171 Ronzani T M Rodrigues M C 2006 O psicólogo na atenção primária à saúde contribuições desafios e redirecionamentos Psicologia Ciência e Profissão 261 132143 Silveira M R 2009 A saúde mental na atenção básica um diálogo necessário Tese de doutorado Universidade Federal de Minas Gerais Belo Horizonte Endereço para correspondência Ana Izabel Oliveira Lima Universidade Potiguar Laureate International Universities Departamento de Psicologia Av Engenheiro Roberto Freire 2184 Capim Macio CEP 59082175 NatalRN Email izabellimaunpbr anaizabelpsigmailcom Recebido em 21062015 Revisto em 04092015 Aceito em 19102015 710 Cad Saúde Pública Rio de Janeiro 243710713 mar 2007 DEPENDÊNCIA QUÍMICA PROBLEMA BIOLÓGI CO PSICOLÓGICO OU SOCIAL Mota LA São Paulo Paulus 2007 84 pp Coleção Questões Fundamentais da Saúde 12 ISBN 9788534927 O consumo de substâncias psicoativas é uma carac terística comum a populações da maioria dos países inclusive a do Brasil sendo o tabaco e o álcool as mais utilizadas Muitas variáveis ambientais biológicas psicológicas e sociais atuam simultaneamente para in fluenciar a tendência de qualquer pessoa vir a usar dro gas e isto se deve à interação entre o agente a drogao sujeito o indivíduo e a sociedade e o meio os contex tos sócioeconômico e cultural Existe no mundo extensa produção bibliográfica sobre questões relacionadas às drogas psicológicas sociais educacionais políticas sanitárias econômicas e religiosas popularmente conhecidas como drogas lícitas e ilícitas A partir do século XX essas publica ções se intensificaram Várias foram as razões para is so O avanço científico e tecnológico o conhecimento armazenado a gama de tratamentos existentes o en volvimento de muitas áreas do conhecimento com es sa temática a alta prevalência de pessoas envolvidas portadores de dependência narcotraficantes crian ças adolescentes adultos ou idosos As reflexões so bre essas questões ocupam grande parte da atenção dos estudiosos Embora esses estudos representem boa bagagem na produção de conhecimento ainda se fazem necessárias mais pesquisas para a melhor com preensão da complicada relação entre as drogas e o ho mem Ainda que tenhamos uma significativa produção intelectual sobre substâncias psicoativas somos um tanto acanhados na compreensão deste fenômeno que muito bem é articulado na obra de Leonardo de Araújo e Mota Parafraseando Conte 1 perguntase qual o campo em que se situam as drogas A resposta é muito varia da e heterogênea tanto pelas disciplinas e ciências que se ocupam da área das substâncias psicoativas em re lação ao uso de drogas bem como pelos diferentes lu gares que a droga ocupa na vida física psíquica legal e social do usuário e da comunidade O uso de drogas situase em uma encruzilhada temática O fenômeno diz respeito ao campo sociológico médico psicológico jurídico etimológico psicanalítico educacional fami liar e o religioso Na pluralidade das interfaces desses campos é que o fenômeno da droga se situa Sendo assim cada lócus desse campo questiona e toma pa ra si esse fenômeno em nome de alguma verdade que postula oferecendo as mais diversas soluções 2 É com essa perspectiva em vista que o autor desenvolve seu trabalho Dependência Química Problema Biológico Psicológico ou Social Mota é graduado em Ciências Sociais professor universitário e doutorando em sociologia Universi dade Federal do Ceará procura fomentar a discussão sobre a origem do problema das drogas em relação ao homem Tratase de um livro que fala as questões das drogas e não a questão das drogas Nesse sentido esti mula a reflexão para a causa etiologia do uso de subs tâncias psicoativas tanto para os profissionais da área da saúde educação segurança ciências sociais quanto para o mundo acadêmico e outros que se interessem por esta temática Mota critica em seu livro o reducionismo de muitas teorias que tentam ditar suas verdades sobre a etiolo gia da relação entre o uso de drogas e o homem Escre ve o autor entre os saberes psicológicos não existe uma teoria geral das dependências p 29 É preocupação constante a questão da eugenia ou da higienização social que utilizaria as drogas para desencadear uma nova corrida às tendências de produzir um cenário à seleção artificial dos indivíduos mais aptos O autor aponta que o uso de drogas vem como uma panacéia ou seja o remédio para todos os males A proposta do livro é justamente uma investigação sobre a etiologia das drogas O autor elege a dimensão do modelo biop sicossocial o mais apropriado para esse fim e argu menta que é necessário um tratamento interdisciplinar para a investigação desse fenômeno que é ao mesmo tempo biológico psicológico e social como lócus para compreender as questões das drogas versus o homem Para poder tecer seus argumentos Mota divide sua obra além da introdução e conclusão em cinco capítu los O primeiro define o que é droga e traça uma breve revisão do termo O segundo versa sobre a biologia das drogas da eugenia às neurociências traz à tona as con cepções teóricas sobre a etiologia de causa e as ciências biológicas passando por Comte Darwin Lombroso e pelas teorias genéticas O terceiro descreve a questão do uso de substâncias psicoativas e a psicologia entre o prazer o condicionamento e a angústia de maneira a abordar os modelos psicanalítico e comportamental citando a influência da família da personalidade e do aprendizado social Freud refere que o uso de drogas estaria a cargo pela luta por felicidade e como amorte cedor de preocupações Recentemente os psicanalis tas referem que o uso de substâncias psicoativas seria um sintoma da patologia social Para a psicanálise as forças psíquicas são iguais em todos mas cada indi víduo elabora seu sofrimento de forma distinta por tanto a dependência de drogas seria apenas um dos recursos dentre outros disponíveis O quarto capítulo oferece uma reflexão sobre a sociedade e o problema das drogas no contexto social contemporâneo Centra se nos fatores sociais de risco que favorecem o uso de substâncias psicoativas Traz à baila Engels Durkheim e Merton para discorrer sobre a etiologia do uso de drogas No último capítulo o autor aborda questões centrais do modelo biopsicossocial da dependência e colocao como uma síntese necessária para tal explica ção Descreve o fenômeno como complexo para se ater aos reducionismos teóricos pois cada teoria tende a se intitular detentora de repostas RESENHAS BOOK REVIEWS 711 Cad Saúde Pública Rio de Janeiro 243710713 mar 2007 A conclusão final é que paradoxalmente ao que tem mostrado a história a etiologia da dependência química é tarefa impossível de se realizar e precisará ainda ocupar muitas mentes e esforços Praticamente nenhum cientista ou teoria chegou a uma conclusão definitiva sobre essa questão visto que as ciências são intrinsecamente transitórias e que nenhuma instância acadêmica isoladamente é capaz de fornecer uma te oria ou resposta consistente sobre as causas do uso e abuso de substâncias psicoativas Embora os problemas do uso de drogas sejam con siderados como uma reemergência na sociedade não se pode deixar de ressaltar a importância de se realizar discussões com serenidade e comprometimento não levando a construções anômalas sem fundamentação alguma não sendo possível pensar e abordar o tema em sua complexidade com reducionismos e preconcei tos apenas no campo conceitual teórico puramente homogêneo e desarticulado Nesse sentido é imperativa e útil a visão de uma perspectiva de interdisciplinaridade ou a transdiscipli naridade que permita conhecer o tema de forma mais ampla pois a conjugação de esforços e abrangência de cada área possibilita por meio de pressupostos com partilhados uma visão sistêmica do fenômeno drogas Isso tudo desvela a dimensão deste entrecruzamen to epidemiológico que é o processo saúdedoença O problema das drogas supera as questões simplesmente médicas alimentando novas questões e problemas a ele relacionados como por exemplo a violência a cor rupção a instabilidade política o crime organizado a lavagem de dinheiro o favorecimento da propagação de AIDS e hepatites entre outras O produto droga encontrase entre as três atividades mais lucrativas do mundo superando o petróleo e o mercado das armas Além disso forma uma rede direta e indireta com um dos maiores empregadores de pessoas na produção no consumo e na distribuição de substâncias psicoativas Essa atividade agrega valor à sua existência o que em muitas vezes explica a reduzida eficiência e eficácia de explicações consolidando como poderosa economia ilegal De forma geral encontramse nessa obra argu mentos consistentes para fundamentar as questões das drogas e talvez por isso se torne referência para os interessados no estudo deste fenômeno O paradoxo da droga é que ele ao mesmo tempo traz alivio alegria diversão poder sedução produz dor sofrimento desa gregação escraviza e mata Ana Maria Bellani Migott Instituto de Ciências Biológicas Universidade de Passo Fundo Passo Fundo Brasil pierinasbolcombr 1 Conte M Psicanálise e redução de danos articu lações possíveis Revista da Associação Psicanalí tica de Porto Alegre 2004 252333 2 Le Poulichet S Toxicomanias y psicoanalisis las narcoses del deseo Buenos Aires Amorrortu Edi tores 1990 PSIQUIATRIA INSTITUCIONAL DO HOSPÍCIO À REFORMA PSIQUIÁTRICA Lougon M Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2006 226 pp Coleção Loucura Civilização ISBN 85754110881 Nas últimas décadas o problema representado pe los transtornos mentais tem ocupado cada vez mais a agenda das políticas de saúde Muitos países têm cons truído políticas de saúde mental comprometidas com o desenvolvimento de novas formas de cuidado com a melhoria da qualidade de vida garantia dos direitos de cidadania e combate às formas de violência exclusão e estigma de que são alvo as pessoas com transtornos mentais Tais políticas têm se caracterizado pela redu ção significativa de leitos psiquiátricos e pela implan tação de serviços baseados na comunidade No Brasil do final dos anos 1980 o processo de re democratização as pressões dos movimentos sociais associadas à luta pelos direitos humanos levaram à construção da Reforma Psiquiátrica que obteve su cesso na consolidação de uma nova Política de Saúde Mental que tem como principais características a re dução de leitos e o maior controle sobre os hospitais psiquiátricos a criação de rede de serviços substituti vos a aprovação de nova legislação em saúde mental a Lei no 10216 de 6 de abril de 2001 e a criação de dispositivos de apoio aos processos de desinstituciona lização além da introdução da saúde mental na pauta de prioridades da educação permanente para o Siste ma Único de Saúde SUS Em nosso país a expansão de leitos psiquiátricos atingiu seu ápice em 1985 com 123355 leitos credenciados ao Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social INAMPS que representavam 2357 do total de leitos oferecidos no Brasil ocupando o primeiro lugar em oferta por es pecialidade Atualmente estimase que o número de leitos psiquiátricos credenciados ao SUS esteja em torno de 38842 ao lado da expansão progressiva da cobertura assistencial em saúde mental composta por uma rede com 1123 CAPS distribuídos em todo o país 479 Serviços Residenciais Terapêuticos 860 ambulató rios de saúde mental cerca de 60 Centros de Convivên cia e Cultura e 2741 beneficiários do Programa de Volta para Casa 1 É nesse contexto que situamos o livro de Mauricio Lougon ou mais precisamente no inicio desse proces so uma vez que o texto permite revisitar a história pio neira de transformação de uma instituição psiquiátrica no Brasil O livro contempla duas partes distintas a primeira produzida nos anos 1980 relata a experiência de transformação da Colônia Juliano Moreira O autor integrou a equipe desse projeto e pôde documentar e analisar o processo no período de 1982 a 1985 A se gunda parte elaborada duas décadas após a primeira discute as conseqüências decorrentes do processo de desinstitucionalização com base em estudos sobre as experiências norteamericana e européia Como apên dice são apresentadas 15 fotos do acervo pessoal do au tor que ilustram aspectos do estudo empreendido Na primeira parte temos três capítulos O primei ro caracteriza a Colônia Juliano Moreira que na época mantinha cerca de 2600 internos na maioria idosos habitantes da instituição há mais de vinte anos So mavase a essa população 1200 funcionários e 3 mil moradores resultado de anos de ocupação de terras públicas O texto descreve a instituição suas funções RESENHAS BOOK REVIEWS Psicologia Sociedade 20 1 8090 2008 91 DEPENDÊNCIA DE DROGAS E PSICOLOGIA SOCIAL UM ESTUDO SOBRE O SENTIDO DAS OFICINAS TERAPÊUTICAS E O USO DE DROGAS A PARTIR DA TEORIA DE IDENTIDADE1 Aluísio Ferreira de Lima Universidade Federal do Ceará Fortaleza Brasil RESUMO Este artigo apresenta os resultados da dissertação de mestrado que teve como proposta a investigação do sentido da oficina terapêutica de teatro para uma pessoa acompanhada no ambulatório de tratamento da dependência química do município de Diadema SP Para isso partiuse da Psicologia Social e do conceito de identidade como categoria central de análise propondo entender o fenômeno não apenas no seu aspecto instrumental mas sim em todo o contexto no qual o indivíduo usuário de substâncias psicoativas está inserido nos conflitos da tradição versus modernidade do mercado de consumo dos diagnósticos e tratamentos Com tal abordagem pretendese apresentar uma contribuição tanto teórica quanto política A pesquisa foi realizada a partir da narrativa da história de vida da participante que foi gravada e transcrita com o consentimento da entrevistada Finalmente o presente trabalho tece algumas reflexões sobre a questão das drogas e da possibilidade de metamorfose por meio da oficina terapêutica de teatro assim como oferece subsídios para discutir as identidades pósconvencionais e as possibilidades de emancipação PALAVRASCHAVE Uso de drogas oficina terapêutica identidade Psicologia Social DRUG DEPENDENCY AND SOCIAL PSYCHOLOGY A STUDY ON THE MEANING OF THERAPEUTIC WORKSHOPS AND THE USE OF DRUGS FROM THE THEORY OF IDENTITY ABSTRACT This paper presents the results of a Masters dissertation that investigated the meaningof the therapeutic theater workshop for a person who has been treated at the ambulatory of drug dependency in the city of Diadema SP To do so our analysis is centered on categories of Social Psychology and the concept of Identityn considering to understand the phenomenon not only in its instrumental aspect but the context as a whole in which the individual that uses psychoactive substances is inserted in the conflicts between tradition vs modernity in the consumer market of diagnosis and treatments with such an approach proposing a theoretical as much as a political contribution The research was carried out from the narrative of the participants life history which was recorded and transcripted with the consent of the interviewed Finally this work weaves some reflections on the question of drug usage and the possibility of change through the therapeutic theater workshop as well offering subsidy to discuss postconventional Identities and the possibilities of emancipation KEYWORDS Drug usage therapeutic workshop Identity Social Psychology Ao abordarmos o tema das drogas há que se apre sentar primeiramente os pressupostos dos quais se parte vistas a amplitude e a diversidade das discussões acerca do tema que vão desde o ponto de vista mais conservador até o mais libertário do mais reducionista até o mais com plexo No que se refere à contextualização desse problema ao nível global sabemos que de acordo com a World Healt Organization WHO quatro das seis causas de vivência com inaptidão ocorrem devido a distúrbios neuropsiquiátricos depressão uso de álcool esquizofrenia e transtorno bipolar uma entre quatro famílias tem pelo menos um membro com transtornos mentais além dos custos de saúde e sociais aqueles que passam por sofri mento mental também são vítimas de violações dos direi tos humanos estigma e discriminação tanto dentro quan to fora das instituições psiquiátricas WHO 2003 p 4 O custo social e os impactos econômicos dos transtornos mentais afetam a renda pessoal e familiar e custam para a economia nacional vários bilhões de dólares por ano A WHO mostra que o abuso de álcool e outras drogas continua sendo um dos maiores problemas de saúde pública do mun Psicologia Sociedade 20 1 91101 2008 Ferreira de Lima A Dependência de drogas e Psicologia Social estudo sobre as oficinas terapêuticas e o uso de drogas a partir da Teoria da Identidade 92 do tanto nos países desenvolvidos quanto nos pa íses em desenvolvimento Mundialmente o uso de álcool respondeu por 4 do total burden de doen ças em 2000 WHO 2003 p 22 Estimase que atualmente existam 763 milhões de pessoas com problemas relacionados ao uso de álcool dos quais pelo menos 153 milhões sofreram algum dis túrbio psiquiátrico Entre 5 e 10 milhões de pessoas atu almente utilizam drogas injetáveis 5 a 10 das infec ções por HIV possivelmente são causadas por esse tipo de utilização Em 2000 mais de 18 milhões de mortes foram atribuídos ao uso de álcool e 205000 atribuídas ao uso de drogas ilícitas Embora esses dados possam apontar para um cer to pessimismo frente às possibilidades de enfrentamento do problema encontramos no Brasil grandes avanços no que se refere ao tratamento pois desde a III Conferên cia Nacional de Saúde Mental tem sido defendida a im portância do Ministério da Saúde em garantir a definição de políticas públicas para os usuários de álcool e outras drogas baseadas nos direitos humanos nos princípios e diretrizes do Sistema Único de Saúde SUS e da Refor ma Psiquiátrica assim como a necessidade de garantir que o SUS se responsabilize pelo atendimento dos usuá rios de drogas e ao mesmo tempo não reduzir essa pro blemática exclusiva da saúde Brasil 2002 p 60 E mais ainda quando o Ministério da Saúde passou a implementar o Programa Nacional de Atenção Integrada aos Usuários de Álcool e outras Drogas reconhecendo o problema do uso prejudicial de substâncias como um grave problema de saúde pública situada no campo da saúde mental e tendo como estratégia a ampliação do acesso ao tratamento a compreensão integral e dinâmica do problema a promoção dos direitos e a abordagem de redução de danos Brasil 2005 p 46 Em 2003 o Ministério da Saúde propôs a Política do Ministério da Saúde para a Atenção Integral a Usuári os de Álcool e outras Drogas na qual a Redução de Danos passa a ser a política pública adotada A partir de então a postura preconizada é a de colocarse na condi ção de acolhedor tendo em vista que cada indivíduo traz consigo sua história de vida expressando sua individua lidade e também uma expressão da história de vida de muitas outras pessoas Brasil 2004 Essa compreensão permite que entendamos o consumo de drogas como um problema social e o usuário de drogas como sendo um cidadão que tem direito de usar o que quiser mas que deve se conscientizar de sua situação de risco e as impli cações para sua rede de relações É nesse cenário que encarei o desafio de realizar uma pesquisa de mestrado em Psicologia Social A Lima 2005 e mais especificamente ousei fazer uma análise do uso de drogas utilizando a teoria da Identidade desenvolvi da por Ciampa 1987 A escolha pelo orientador assim como pelo referencial teóricometodológico se deu como uma reação às leituras reducionistas e pessimistas que des crevem o ser humano impotente perante as influências das substâncias psicoativas aos estudos que partem da influ ência da droga no comportamento humano ou ainda às pesquisas que focam a influência do mercado no consu mo das drogas Meu interesse voltouse para o indivíduo sua relação com as substâncias psicoativas e principal mente ao sentido que este atribuiu à oficina terapêutica de teatro na metamorfose de sua identidade na transforma ção da sua condição de dependente de drogas em um indi víduo que pode ter uma postura autônoma frente às subs tâncias que utiliza seja a partir da redução do consumo substituição ou abstinência Através do material bibliográ fico e empírico coletados na pesquisa exploro a possibili dade de desenvolvimento de identidades pósconvencio nais Habermas 1983 de usuários de drogas Desse modo a pesquisa enfocou a identidade como categoria central de análise o que implicou compreender o fenômeno envolvendo as substâncias psicoativas a partir da tensão existente entre o mundo da vida e a lógica sistêmica esses conceitos serão explicados no decorrer do texto e sua influência na construção desconstrução e reconstrução das identidades Partindo da considera ção da influência capitalista nos problemas atuais discu to ao longo da pesquisa os conflitos existentes entre a tradição e a modernidade as influências do mercado de consumo os diagnósticos e tratamentos na construção da personagem do dependente de drogas assim como a possibilidade de desconstrução dessa personagem de pendente de drogas a partir da intervenção que o sujeito da pesquisa sofreu em um Centro Atenção Psicossocial para álcool e outras drogas mais precisamente na ofici na terapêutica de teatro Dada a amplitude de questões discutidas na pesquisa de mestrado este artigo tem como objetivo trazer uma síntese das principais questões abor dadas e das considerações finais acerca do problema O envolvimento do pesquisador com o mundo das drogas O interesse pelo estudo da identidade das pessoas que utilizam substâncias psicoativas surgiu durante o período de estágio acadêmico no ambulatório de trata mento aos usuários de drogas do município de Diadema SP Espaço Fernando Ramos da Silva EFRS Isso ocor reu no período de 15 de fevereiro de 2002 a 31 de de zembro de 2003 quando foram executadas as seguin tes tarefas na instituição atendimentos individuais grupais familiares trabalhos de prevenção e capacitação na temática das drogas e monitoria em oficinas terapêu ticas Psicologia Sociedade 20 1 91101 2008 93 Neste período foi observado que os usuários do serviço envolvidos no tratamento tinham uma participa ção constante nas oficinas terapêuticas sendo que na maioria das vezes era o único espaço freqüentado por eles Também foi observado durante os atendimentos do grupo de familiares que a mudança de personagens destes usuários era constantemente trazida pelos com ponentes da família Verificouse inclusive que alguns familiares vinham ao grupo informar o abandono do paciente justificando que este tinha mudado de vida arrumado emprego namorada reconstruído relaciona mentos etc Observei utilizando uma expressão habermasiana a presença de fragmentos de emancipação na vida des ses usuários como por exemplo o fenômeno presenci ado na oficina terapêutica de teatro do EFRS quando após a apresentação de uma peça teatral em um Encontro Internacional e serem acolhidos e parabenizados como artistas pelos representantes europeus e latinoameri canos os usuários retornaram na semana seguinte pro pondo a mudança do nome da oficina de teatro do EFRS Os Recuperandos para Cia ReVisão com a ar gumentação de que o antigo nome os colocavam em cons tante reposição do problema que passavam ao passo que revisão colocava como proposta uma nova forma de lidar com a vida sendo proposto para os técnicos a apresentação de peças em outros eventos e espaços Es ses Fragmentos de emancipação levoume a pesquisar o sentido da oficina de teatro para uma pessoa submetida ao tratamento da dependência de drogas no EFRS en tendendo que a participação nesse lugar parecia propor cionar uma metamorfose de identidade significativa para esses indivíduos Sendo assim fica explícito que a escolha do EFRS como locus para encontrar os possíveis participantes da pesquisa se deu pela forma de tratamento da instituição em que a permanência do indivíduo depende de sua dis posição ao tratamento proposto diferentemente de insti tuições totais descritas há muito por Irvin Goffman 1961 que utilizam a internação e a abstinência como forma ideal para o tratamento da dependência de drogas em que é necessário que o indivíduo abra mão de seu desejo e autonomia passando por um período de internação tendo além dos atendimentos das especialida des a participação obrigatória em oficinas terapêuticas Outro fator que fortaleceu a escolha do EFRS dentre outras instituições de tratamento do ABC foi o fato desta instituição ter seu projeto de criação e intervenção utiliza do como objeto de pesquisa em uma dissertação de mestrado em Psicologia Social da Pontifícia Universida de Católica de São Paulo PUCSP S Lima 2000 A direção do EFRS mostrouse bastante interessa da em colaborar com a pesquisa possibilitando acesso aos prontuários e indicando informantes e participantes potenciais para entrevistas Entre os 2494 prontuários de usuários matriculados até 22122003 levantamos os prontuários de expacientes que apresentavam em seu histórico alguma participação na oficina terapêutica de teatro durante seu tratamento na instituição Este proces so foi iniciado no dia 20 de dezembro de 2003 e encerra do em 15 de janeiro de 2004 Ao todo foram levantados 57 prontuários de pesso as que faziam uso de drogas psicoativas e obtiveram alta do ambulatório ou abandonaram o mesmo em momento de maior organização pessoal e que participavam dessa oficina Após a escuta de informantes sobre o possível participante os informantes foram antigos usuários fami liares de usuários e técnicos da instituição finalmente es colhemos uma usuária que apresentavase como caso emblemático em outras palavras um histórico que apon tava para uma possível identidade pósconvencional A escolha da oficina terapêutica de teatro entre as outras da instituição ocorreu devido a alguns fatores a ao fato desta ter sido a primeira oficina da instituição b ser a oficina na qual o usuário expõe seu trabalho por meio do corpo para um público que pode reconhecer ou não sua atuação c pelo seu efeito peculiar de possibili tar a mudança nas interpretações publicamente reconhe cidas referentes ao indivíduo estigmatizado Este último item é defendido por Habermas quando diz uma com panhia de teatro os membros de uma universidade ou de uma organização eclesial conseguem impor reivindica ções de cogestão esse fato tem também certamente um aspecto político Habermas 1983 p 99 A pesquisa foi realizada coletando a narrativa da história de vida gravada e transcrita com o consenti mento da entrevistada que assinou um termo de autori zação esclarecendo os objetivos da pesquisa e garantindo o sigilo Estes relatos procuraram focar acontecimentos imediatamente antes durante e após sua participação na oficina terapêutica para que a participante nos contasse diversos aspectos de sua vida não apenas aquele que levouo a procurar tratamento no EFRS A escolha da narrativa de história de vida como instrumento principal de análise ocorreu devido ao fato do método utilizado na pesquisa ter como objetivo observar as metamorfoses na identidade isto é o intercâmbio de personagens no pro cesso histórico da participante A narrativa de história de vida como forma de en tender a constituição das identidades faz parte do método desenvolvido por Ciampa para analisar as identidades e alinhase às discussões trazidas por Walter Benjamin Benjamin demonstra como nos utilizamos de métodos simplificadores ao retratar as condições de existência humana ao nos aliarmos totalmente ao ideal de produção capitalista como se estivéssemos privados de uma fa culdade que nos parecia segura e inalienável a faculdade de intercambiar experiências Benjamin 1994 p 198 Ferreira de Lima A Dependência de drogas e Psicologia Social estudo sobre as oficinas terapêuticas e o uso de drogas a partir da Teoria da Identidade 94 A narrativa de história de vida permite resgatar o narrador que segundo este autor está em vias extinção há muito esquecido e sufocado por trazer as contradições do sis tema e por apontar o mal estar do cotidiano Deste modo procuramos registrar a memória viva da participante e compreender os processos de meta morfose que aconteceram nos diversos setores de sua vida novos significados que passaram a atribuir aos fa tos de sua vida como se percebe e percebe que é vista pelos membros dos grupos que freqüenta o que mudou na sua vida familiar social e profissional observando como este processo se desenvolveu Para tanto quando analisamos a narrativa de história de vida procuramos distinguir as personagens encarnadas dentro da narrati va verificando a articulação dessas personagens entre si como realidade subjetiva constituída a partir da internalização e da interiorização assim como com ou tros atores sociais como realidade objetiva que envolve a normatividade e a intersubjetividade Em outras pala vras buscamos entender seu projeto de vida o que é e o que quer ser Psicologia Social Crítica e identidade questões teóricometodológicas Conforme já explicitado anteriormente este artigo é a síntese de uma pesquisa de mestrado que buscou entender o sentido da oficina terapêutica de teatro para dependentes de drogas a partir da Psicologia Social mais especificamente a partir da teoria de identidade desen volvida por Antonio da Costa Ciampa cuja produção se gue uma vertente denominada Psicologia Social Crítica Reconhecendo a possibilidade de desconhecimento tanto dessa teoria da identidade quanto da Psicologia Social Crítica parece imprescindível uma breve exposição an tes da apresentação da pesquisa propriamente dita No que se refere a esta última podemos dizer que é conceituada como uma vertente da Psicologia Social que alinhase à teoria crítica formulada por Max Horkheimer na escola de Frankfurt e desenvolvida atu almente embora isso não seja visto de forma consensual por Jürgen Habermas Em linhas gerais essa proposta teóricometodológica impõe a necessidade de investigar a possibilidade de desenvolvimento de um pensamento crítico que conduza os indivíduos à percepção de si mes mos como sujeitos ativos da história possibilitando que saiam da alienação que os mantém na condição de obje tos passivos que sofrem a história Em outras palavras a Psicologia Social Crítica pro cura entender como o mundo da vida2 espaço cotidia no onde são possíveis de serem identificadas as formas cooperativas de existência vem sofrendo a colonização subordinação à lógica sistêmica e como esse proces so tem reultado numa série de distúrbios a perda de sen tido das tradições culturais na reprodução social anomia interação social e psicopatologias e distúrbios de for mação da identidade socialização e individuação Habermas 1990 Vale reforçar aqui que o mercado sempre fez parte dessa ordem sistêmica cuja existência se justifica ou deveria se justificar pelo atendimento às necessidades do mundo da vida e não o contrário como vem cada vez mais acon tecendo em que a própria vida é posta a serviço dos interesses sistêmicos Ciampa 2004 p 2 Dessa maneira para a Psicologia Social Crítica o problema não estaria na racionalidade mas na dificuldade de se desenvolver uma certa racionalidade que possa es capar da irracionalidade que transforma os meios em fins e que é resultado da colonização proporcionada pela lógica sistêmica Aqui aparece a importância das pesquisas de identidade para a Psicologia Social Crítica na medida em que esse conhecimento pode ajudar a entender como eu internalizei minha classe como reproduzo minha classe a tal ponto que sou diferente de outro burguês Carone sd p 13 e desvelar tanto as influências do capital no desenvolvimento dessa identidade como os fragmentos emancipatórios presentes na mesma Tendo expressado mesmo que de forma simplista a importância dos estudos de identidade para uma Psico logia Social Crítica apresentamos agora a teoria de Ciampa que seguindo os pressupostos apresentados difere das tradicionais concepções de identidade que ten dem à naturalização do desenvolvimento individual ou ainda daquelas que trabalham com a perspectiva de per sonalidade Na concepção desenvolvida por Ciampa a identidade do humano é construção reconstrução e desconstrução constantes no diaadia do convívio so cial na multiplicidade das experiências vividas Kolyniak Ciampa 1993 p 9 Como esse autor costuma postu lar a identidade é o que estousendo ao mesmo tempo em que é aquilo que me nega naquilo que também sou semestarsendo na medida em que sempre compareço como representante de mim mesmo uma personagem perante os outros Ciampa diz ainda que cada indivíduo encarna as relações sociais configurando uma identida de pessoal uma história de vida um projeto de vida Uma vida que nem sempreévivida no emaranhado das rela ções sociais Ciampa 1987 p 127 Para Ciampa a identidade é sempre pressuposta uma identidade que é reposta a cada momento sob pena desses objetivos sociais filho pais família etc deixarem de existir 1987 p 163 e que isso introduz uma complexidade ao passo que ao ser reposta a identi dade é vista como dada e não como se dando num continuo processo de identificação É como se uma vez Psicologia Sociedade 20 1 91101 2008 95 identificado o indivíduo a produção de sua identidade se esgotasse com o produto Ciampa 1987 p 163 dan do a impressão que a identidade continua a mesma quan do na realidade está presa num movimento de mesmice O que sustenta a mesmice é o impedimento da eman cipação e a plena concretização da mesmice é aquilo que Ciampa chama de fetichismo da personagem que vai explicar a quase impossibilidade de um indivíduo atingir a condição de serparasi ocultando a verdadeira natureza da identidade como metamorfose e gerando o que será chamado identidade mito 1987 p 140 o mundo da mesmice da nãomesmidade e da má infinidade a não superação das contradições em que a própria atividade que serve de base para a personagem deixa de ser desem penhada Severino é lavrador mas já não lavra Contu do o impedimento da emancipação e a manutenção da mesmice não se constituem em algo inevitável na medida em que as contradições existentes na própria representa ção e consequentemente a impossibilidade de uma repre sentação única em todos os espaços sociais forcem uma alterização da identidade uma negação da negação O mecanismo da negação da negação é explicado por Ciampa 1987 p 187 da seguinte maneira A negação da negação permite a expressão do outro outro que também sou eu isso consiste na alterização da minha identidade na eliminação de minha identi dade pressuposta que deixa de ser reposta e no desenvolvimento de uma identidade posta como metamorfose constante em que toda a humanidade contida em mim se concretiza Isso permite me repre sentar 1º sentido sempre como diferente de mim mesmo deixar de presentificar uma representação de mim que foi cristalizada em momentos anteriores deixar de repor a identidade pressuposta O termo alterização trazido por Ciampa expressa a idéia de uma mudança significativa um salto qualitativo que resulta de um acúmulo de mudanças quantitativas às vezes insignificantes invisíveis mas graduais e não radi cais que podem indicar uma possibilidade e uma tendên cia da conversão das mudanças quantitativas em mudan ças qualitativas mudanças condicionadas às questões his tóricas e materiais determinadas O termo alterização é o que possibilita ao autor desenvolver o conceito de mesmidade que se refere à superação da personagem vivida pelo indivíduo é a expressão do outro outro que também sou eu Isso se torna possível a partir do potencial para formular projetos de identidade cujos conteúdos não estejam prévia e autoritariamente definidos aparecendo aqui o sentido emancipatório da identidade Esse movimento para a emancipação se dá com o desenvolvimento de uma Identidade PósConvencio nal Compreendendo a complexidade desses conceitos é importante ressaltar como esses dois termos são en tendidos Os dois conceitos seguem a influência habermasiana sendo que o primeiro termo é entendido aqui como a superação de visões estreitas nas quais ca ímos devido a ilusões pelas quais somos de certa for ma responsáveis uma vez que elas não resultam de uma causalidade natural nem das limitações do próprio inte lecto Habermas 2005 p 163 Já a identidade pós convencional é compreendida como aquela que antecipa uma forma de vida com valores e normas ainda não esta belecidos que só pode estabilizarse na antecipação de relações simétricas de um reconhecimento recíproco isen to de coerção Habermas 1993 p 222 É possível inferir que essa identidade pósconvencional somente tornase possível quando o indivíduo passa a atribuir às suas vivências um sentido de autodeterminação e prin cipalmente possa ser autor da própria história Ser autor da própria história como medida das iden tidades pósconvencionais é um horizonte para o pesqui sador de identidade que deve estar atento para não pro jetar conceitos que transformem os indivíduos em sujei tos transcendentais em blocos uniformes que por sua vez neguem a pluralidade das formas de existência e os projetos de vida individuais Fica explícito que a identida de na perspectiva de Ciampa é tanto uma questão teóri ca quanto política ao passo que sua compreensão deve levar em consideração os fragmentos de emancipação e a sutil opressão alinhandose assim a tradição da teoria crítica da sociedade que incorpora o interesse emancipatório no conhecimento para além de sua mera aplicação prática e utiliza o conceito de reflexividade para decidir de que modo cada interesse promove autonomia ou seja pode levar à emancipação Tendo apresentado o referencial teórico adotado voltemos ao problema da pesquisa a dependência de dro gas e sua relação com a identidade Assim comecemos partindo da premissa que entendemos que o uso de dro gas nos primórdios da história da humanidade sempre esteve relacionado com a transcendência do espírito hu mano ou ainda com a anestesia do sofrimento corporal e mental e que podemos pensar observando como o uso de drogas é feito na modernidade que seu uso não mu dou muito desde os primeiros relatos de experiências com essas substâncias Essa afirmação é reforçada na medida em que observamos o uso de drogas relacionado ao ri tual capitalista seja no cafezinho antes do trabalho na cerveja do final de semana nos medicamentos para dor mir para engordar ou para emagrecer nas drogas utiliza das nas danceterias nas escolas etc seja para integrar esses grupos seja para ter alto rendimento ou ainda para fugir da realidade massacrante na qual o indivíduo está inserido Contudo esse não é um problema recente Ao lon go da história ocorreram diversas tentativas de caracteri zar a identidade do dependente de drogas com o intuito de desenvolver tecnologias que pudessem abarcar o fe Ferreira de Lima A Dependência de drogas e Psicologia Social estudo sobre as oficinas terapêuticas e o uso de drogas a partir da Teoria da Identidade 96 nômeno No entanto nenhuma dessas tentativas teve êxito dada a pluralidade de formas de vida na qual está inserida a pessoa que utiliza substâncias psicoativas De acordo com a literatura parece existir um consenso en tre os diferentes autores no que se refere à impossibilida de de traçar uma identidade típica para o dependente de drogas valendo a pena trazer algumas dessas contribui ções Para Freud por exemplo as drogas têm um lugar permanente na economia de libido Sendo assim devemos a tais veículos não só a produção imediata de prazer mas também um grau altamente desejado de independência do mundo externo pois sabese que com auxilio desse amortecedor de preocupa ções é possível em qualquer ocasião afastarse da pressão da realidade e encontrar um refúgio num mundo próprio com melhores condições de sensibi lidade Freud 2002 p 27 Se seguirmos o raciocínio de Freud podemos to mar como hipótese que quanto mais repressão existir na sociedade maior será o usoabuso de drogas por parte das pessoas Se isso for verdadeiro encontraremos um aparente paradoxo pois o usuário de drogas seria então uma denúncia do sistema na medida em que tem de bus car a satisfação humana em outras formas não institucionalizadas negando inclusive o princípio de de sempenho Já alguns autores da atualidade defendem que foram frustradas as tentativas de caracterização da per sonalidade típica do dependente de drogas Em Birman 2001 verificamos uma diferenciação entre os indivíduos que utilizam substâncias psicoativas pela dimensão compulsiva dos mesmos nas palavras deste autor os usuários de droga podem se valer da droga para seu deleite e em momentos de angústia mas esta nunca se transforma na razão maior de sua existên cia Os toxicômanos porém são compelidos à sua ingestão por forças físicas e psíquicas poderosas As drogas passam a representar para esse grupo o valor soberano na regulação de sua existência Birman 2001 p 223 Logo não haveria uma dependência física se não fosse a presença da dependência psíquica sendo que nas toxicomanias ocorreriam ambas as formas de dependên cia tendo no caso da dependência física um aumento crescente da dose inicialmente administrada com possí veis substituições por drogas mais potentes É importante apontar que também é insuficiente abordar o fenômeno das drogas sem levar em considera ção o contexto sóciohistórico no qual o indivíduo está inserido Seguindo essa linha de argumentação encon traremos em Bucher uma importante contribuição Ele defende que a identidade do usuário de drogas não se deixa reduzir a uma personalidade social enquanto as similação de influências externas e normativas culmi nando na confecção de papéis sociais estáveis e integradores Bucher 1992 p 176 Ao utilizarmos o conceito de identidade apresenta do anteriormente para discutir o problema da dependên cia de drogas teremos que seguir inicialmente dois pon tos de discussão O primeiro se refere às questões intersubjetivas que conotam um fetiche no uso de drogas e que atribuem a essas um poder de dominação inevitável sobre os indivíduos Isso equivale ao reconhecimento e redução dos indivíduos que utilizam essas substâncias psicoativas a uma única personagem o dependente de drogas Aqui encontramos outras complexidades na medida em que o fato dos indivíduos deixarem de re por esta personagem dependente nem sempre é uma garantia da recuperação dos outros personagens perdi dosnegados pai filho irmão trabalhador etc aprisi onandoo muitas vezes na personagem do Ex exde pendente exdrogado etc não ocorrendo portanto uma metamorfose como mesmidade de pensar e ser O segundo ponto de discussão referese às formas de utilização das drogas que podem conter tanto um sen tido reacionário no fortalecimento das indústrias de be bidas farmacêuticas tabagistas ilegais etc quanto emancipatório na medida em que entendemos que nem toda forma de contravenção seja algo negativo mas que podem apontar para a necessidade de mudança na reali dade vigente e que muitas vezes desvelam as desigual dades sociais e as impossibilidades de existência na soci edade administrada Neste último caso a dependência de drogas pode contraditoriamente ser uma reivindicação de independência da dependência da realidade vivida É importante registrar que quando utilizamos o ter mo usuário de drogas queremos apontar uma catego ria na qual estamos todos incluídos direta e indiretamen te mas que por conta das questões morais acabam sen do diferenciadas entre si Nos referimos tanto à pessoa que fuma seu baseado de maconha com os amigos participa da cervejada do final de semana que usa dro gas para dormir para lidar com a depressão que toma o cafezinho para agüentar mais um turno da exploração no mundo trabalhista enfim falamos de nós mesmos e ao mesmo tempo falamos daqueles que são estigmatiza dos pelo uso abusivo de qualquer uma dessas substânci as ou seja diferenciamonos das tradicionais concep ções que reforçam a estigmatização dos usuários de dro gas como bem escreve Amaral 2000 p 46 Ao estigmatizar o usuário de drogas a sociedade cumpre a função divergente a que explicitamente se propõe ou seja ao invés de desestimular o uso da droga reforçao por meio do rebaixamento contínuo da autoestima desses indivíduos negandolhes o acolhimento e a aceitação social estimulandoos a Psicologia Sociedade 20 1 91101 2008 97 integrarse com outros indivíduos marginalizados por diferentes desvios eou estigmas encontrando em outros toxicômanos a sua identidade grupal Ao realizar a discussão acerca dos diferentes as pectos e vislumbrar a complexidade envolvida na temática das drogas podemos inferir que o significado atribuído ao seu uso pertence a uma moral vacilante que em de terminado momento faz com que sejam incentivadas li beradas legalizadas etc e noutro proibidas por serem consideradas perniciosas e destruidoras da sociedade Desse modo tendo contextualizado nosso proble ma de pesquisa e apresentado o referencial teórico metodológico no qual apoiamos a mesma restanos ago ra apresentar a narrativa da história de vida de LouLou analisada na tentativa de apreender o sentido que esta atribui a sua participação na oficina terapêutica de teatro buscando verificar se o processo de metamorfose ocor rido nas diversas personagens de sua vida evidencia a presença de fragmentos de emancipação bem como dis cutir se essa identidade pode ser considerada como Pós Convencional Síntese da história de vida de LouLou e análise da entrevista A história de LouLou é muito rica Todavia as vicissitudes de sua história não poderá ser contada e ana lisada da forma como deveria ser feita por conta da limi tação que um artigo como esse apresenta Ao analisar mos a identidade entendemos que essa se expressa por meio de personagens que a cada representação negam sua totalidade sendo o jogo e articulação dessas identida des que darão ao indivíduo sua alteridade Dada a limita ção tentarei fazer esquematicamente um resumo das prin cipais personagens vividas pela entrevistada que foram escolhidas assim como o nome LouLou pela própria participante LouLou é uma pessoa real que nasceu e cresceu na periferia de Diadema São Paulo filha de uma família de migrantes pai metalúrgico e mãe dona de casa Du rante sua infância diz que representava a garotamor na uma criança que estava presa ao hedonismo ingênuo e procurava a maximização do prazer evitando a punição Ao iniciar sua busca pessoal na adolescência fica dividida entre as personagens adolescente experimentadora de drogas que iniciava o uso de diver sas drogas com as amigas burguesas principalmente com os medicamentos das mães dessas garotas e a adoles cente punk proibida pelo grupo de usar drogas que se tornaria mais tarde a adolescente anarcopunk Já no final da adolescência começa a namorar e assume a per sonagem da alunarebelde que descobre que para po der trabalhar tinha que ser autônoma visto que tinha como projeto tatuar todo seu corpo e viver com um visual al ternativo Tornase assim a vendedoradecachorro quente Vai repor essa personagem durante três anos até que se separa do namorado e vivencia a garotaiso lada ficando em casa deprimida durante um ano Ao voltar para o mundo desorientada retoma suas leituras e descobre o anarcofeminismo transformando se então na anarcofeministaativista Sem que se desse conta reaparece nesse período a adolescente experimentadora que começa a tomar parte cada vez maior nas suas atuações Pela primeira vez procura ajuda especializada uma tentativa frustrada pois o psiquiatra acaba fazendo uma amálgama dessas personagens e atribuí à LouLou a per sonagem dependentededrogasdepressiva Não acei ta tomar drogas remédios para se curar do uso de dro gas e acaba se mudando para Florianópolis onde procu ra elevação espiritual e equilíbrio no uso das substâncias quando se transforma na bruxadaIlhadaMagia en tretanto a sacralidade dessa bruxa é quebrada quando em uma festa faz a ingestão de um chá que dizia achar mágico cogumelo que fora dos rituais habituais a dei xa desorientada outra vez Sua desorientação é tamanha que surta e tenta suicídio Em suas palavras sem conse guir controlar os pensamentos abre as portas da percep ção e encontra a loucasuicida acaba ateando fogo em sua própria cabeça De volta a São Paulo é levada para o Centro de Atenção Psicossocial Integral CAPSI de Diadema que lhe atribui a personagem de dependentededrogaslou casuicida e a encaminha para o EFRS CAPSad Até aqui relata que os encaminhamentos mais prejudicaram seu estado emocional do que contribuiram para sua me lhora No EFRS conta que pôde ser vista como um ou tro outro pelos técnicos da instituição e pelo Grupo de Mulheres Diz que essa condição de igualdade confere uma ambiência favorável para resgatar a personagem anarcofeminista já não mais militante ativista Vamos deixar a própria LouLou dizer como esse processo foi importante O grupo de mulheres foi essencial enquanto mulher porquê Porque quando você está com outras mulhe res que passam problemas parecidos com você em termos físicos emocional você se sente que num grupo de amigas é uma boa forma de você se inserir novamente Dá uma segurança legal Dentro disso no grupo de mulheres a Assistente Social a Psicó loga e a esqueci o nome dela branquinha de cabe lo preto Enfermeira Elas são mulheres muito for tes Muito interessantes ajudaram muito foi uma coisa essencial e de você vê e de estar desenvolven do algum conhecimento seu enquanto mulher com outras mulheres dentro daquele período eu naquele momento de tudo eu tinha medo eu fui voltando Ferreira de Lima A Dependência de drogas e Psicologia Social estudo sobre as oficinas terapêuticas e o uso de drogas a partir da Teoria da Identidade 98 Da mesma maneira LouLou vai nos contar que na oficina terapêutica de teatro pôde reapresentar ou tros papéis e começar a tomar consciência explícita das contradições que viveu e ser reconhecida como huma na sendo esse espaço essencial para sua alterização Teatro muito fudido porque ele mexe com o corpo ele mexe com a emoção faz resgatar de novo esse lance de autoestima te empurra teatro já tinha as sim um desenvolvimento legal teatro misturado com uma fonoaudióloga é foda pra caramba você enquanto pessoa capaz de produzir isso te dá vida isso te traz calor isso é humano A Oficineira olha nós somos de uma companhia vamos lá vamos ensaiar vamos fazer sabe vamos se pintar vamos por peruca vamos criar o absurdo e é isso Ah Mas é só um personagem Mas aquilo é a gente você é capaz de ser a gente é capaz de ser feliz dar risada de fazer as pessoas rirem e isso esse retorno é muito fudido sentir perante as pessoas que convivem com a gente que a gente foi capaz de pro porcionar uma emoção muito forte nelas Porque a gente tá vivo Então a gente tem um respaldo en quanto pessoa de falar Pô você fez aquele teatro muito legal aquilo é muito foda aquilo foi a minha vida resgatou minha vida de um jeito e a forma de organizar um Sarau eu gostava muito de estar ali participando Por meio da oficina terapêutica de teatro pôde ques tionar a personagem dependentededrogasloucasuicida e apresentar um novo eu que podia ser reconhecido socialmente Sua apresentação era sentida como uma ne gação da personagem doente que era pressuposta como incapaz de produção Questionava a si mesma quando re presentava e forçava a platéia a se questionar quando a assistia dissolvia o estigma ao mostrar que por trás da personagem do drogado existia uma LouLou que não poderia ser reduzida a uma única atuação Sai do EFRS e retorna para Florianópolis após a morte do namorado que sofre um acidente durante seu tratamento Retoma sua vida e com o passar do tempo conhece uma pessoa com quem decide ter um filho Deixa de usar as substân cias psicoativas não por imposição externa não por se achar uma exdrogada mas sim porque essas perderam o sentido Percebeu que pode viver sendo elamesma Eu busco um mundo melhor então se eu estou ven do que uma coisa não tá me fazendo bem eu tenho que deixar Mas será que ela só não tá me fazendo bem pelo ritmo que eu to levando Também o ambi ente que eu to vivendo não tá me oprimindo ao fato de quando eu usar isso eu estar me sentindo mal Porque se eu der uma volta na praia tiver um dia super gostoso e de repente fumar um posso me sen tir muito melhor Mas de repente eu pensei meu porque há necessidade de eu estar usando Se de repente eu posso fazer um vasto de muitas coisas que eu também gosto que me dá prazer sem eu pre cisar usar isso todas as pessoas em geral acabam passando por essas condições difíceis de surtar de depressão de se sentir muito mal por isso porque lhe faltam coisas que faziam elas viver faziam elas felizes então às vezes um cara surta porque trabalha tanto trabalha tanto trabalha tanto e nunca pode descansar e nunca pode fazer nada do que ele gosta chega uma hora que ele pensa o que eu gosto Ela representa atualmente uma LouLoudehoje que ao se propor normas éticas com pretensões de vali dade universal apresentase com uma identidade pós convencional que inclui em seu projeto de vida o in gresso em uma universidade e o retorno para São Paulo para se envolver na luta pelos direitos dos indivíduos que utilizam as instituições de tratamento Eu gostaria de me envolver mais nessa causa tenho comigo minhas idéias acho que a gente também às vezes não pode mudar o mundo mas a gente se revo luciona e que isso faz da gente ser o que é tudo isso aconteceu Mais eu tive que existir mais que tudo pra poder resistir a isso tudo com muito esforço Ao recusarse à submissão a uma política de iden tidade que lhe atribuiria a personagem de exdependente LouLou escolhe desenvolver sua identidade política sua própria identidade como concretização do projeto de vida de uma guerreira que não tenta mais planejar o futuro mas vive intensamente o presente enfrentando as dificul dades que aparecem em sua vida Se conseguiu em muitos aspectos a própria revo lução porque não revolucionar um pouco o mundo Se este projeto vai ser concretizado ou não só veremos com o tempo O mais importante é que o conteúdo trazido por LouLou apresenta aquilo que denominamos como frag mentos de emancipação Ao recorrermos a Habermas veremos que esses fragmentos trazem consigo uma nova forma de olhar para o usuário de drogas que não deixam intocadas as convencionais formas de lidar com o pro blema na medida em que uma identidadeeu póscon vencional não pode desenvolverse sem antecipar estru turas comunicativas modificadas da mesma forma que a partir do momento em que essa antecipação se torna realidade social não deixará intocadas as formas tradici onais de integração social Habermas 1990 p 234 Essa tendência parece estar se concretizando por exem plo no EFRS Quanto à oficina terapêutica de teatro vimos que a produção estética em si não foi o mais importante no tratamento de LouLou mas sim o processo criador de espontaneidade que permitindo o acesso ao outro ou tro de LouLou proporcionou a apresentação do Eu Aprendemos que a oficina terapêutica de teatro pode pos sibilitar a experiência apresentada por Marcuse na qual Psicologia Sociedade 20 1 91101 2008 99 ocorre a intensificação da percepção até chegar ao ponto de distorcer as coisas de modo que o indizível é dito o invisível se torna visível e o insuportável explode As sim a transformação estética transformase em denún cia mas também em celebração do que resiste à injusti ça e ao terror e do que ainda pode se salvar Marcuse 1986 p 53 A denúncia da opressão e redução da iden tidade a uma única personagem do drogado do louco e celebração de sua libertação a partir da representação do eu a partir da ampliação de sua identidade com a perso nagem do ator Desse modo o usuário de drogas geralmente re conhecidoreduzido apenas ao papel de dependente pode por meio da apresentação performática na oficina tera pêutica de teatro ser visto e reconhecido como um ou tro pela platéia que o assiste ou seja pode acessar um outro outro que também é ele Dizendo de forma dife rente essa expressão do outro outro que também sou eu que consiste na metamorfose da minha identidade na superação de minha identidade pressuposta Ciampa 1987 p 180 Assim a narrativa de LouLou mostra que a oficina terapêutica de teatro pode gerar condições para o desenvolvimento do agir comunicativo que pode ser compreendido como um processo circular no qual o ator é as duas coisas ao mesmo tempo ele é o iniciador que domina as situações por meio de ações imputáveis ao mesmo tempo ele é o produto das tradições nas quais se encontra dos grupos solidários aos quais pertence e dos processos de socialização nos quais se cria Habermas 2003 p 166 Da mesma maneira que Ciampa fala de lições mos tradas pela história de Severina da sociedade na qual vi vemos como um Prometeu moderno que depois de rou bar o fogo dos céus sofre a condenação de ser devorado diariamente pelas aves de rapina sem morrer diaria mente sua vida sua força de trabalho é reproduzida para alimentar a águia que o consome impiedosamente mos trounos também que o segredo dessa condenação é o de não nos deixarmos morrer para continuarmos sendo mastigados vivos Ciampa 1987 p 236 E que essas lições fizeram com que fosse razoável aceitar uma lógica do desenvolvimento individual na qual a partir de uma busca de maximizar o prazer e rejeitar a dor através da obediência evoluise para uma busca de liberdade moral e política para toda a humanidade caminhando de um hedonismo ingê nuo para uma ética universalista da linguagem Des cobrimos também e isso é importante que o nível mais elevado da consciência moral pressupõe não um conteúdo normativo erigido em princípio e sim um procedimento comunitário que permita interpre tações universalistas dos carecimentos Ciampa 1987 p 220 Essas lições foram novamente trazidas por LouLou que ao contar sua história de vida demonstra como se dá o castigo dos deuses da quebra na continuidade do existir humano decorrente de uma imposição social em que a identidade do indivíduo é confrontada com exigências que estão em contradição com as expectativas Ao mesmo tem po em que busca legitimação nas estruturas de expectativa experimentadas e assumidas no passado Dessa forma LouLou assim como a Severina tam bém ensina que nossas vivências não ocorreram de forma simples e independentes das experiências e somente quando buscarmos o entendimento do sentido atribuído às meta morfoses identitárias que sofremos durante nosso desen volvimento é que poderemos analisar se as mudanças fo ram qualitativas e não apenas quantitativas É nesse ponto que passamos a discutir a questão da emancipação da domesticação da ave de rapina para que esta trabalhe a nosso favor a favor daqueles que acham que uma vida que merece ser vivida não é nem a da carniça nem a da caça que se esconde Ciampa 1987 p 237 mas sim da autonomia dos projetos de futuro da criação Ao nos referirmos à emancipação recorremos a uma idéia de vontade de decisão sobre o próprio bem de uma maneira cada vez mais autônoma livre da intromissão de interesses externos A emancipa ção no sentido habermasiano é entendida como um tipo especial de autoexperiência porque nela os proces sos de autoentendimento se entrecruzam com um gan ho de autonomia Habermas 1993 p 99 Todavia o fato de desenvolver uma Identidade Pós Convencional não é garantia de uma emancipação com pleta ou definitiva do indivíduo Iisso seria convencionarpredeterminar o que entendemos por emancipação humana ignorando a lógica sistêmica que a todo instante oferece saídas heterônomas e ilusórias para os indivíduos Logo o que se pode observar com a história de LouLou é a possibilidade de viverumavidaquemere ceservivida sendo que isso se torna possível a partir do momento em que o indivíduo pode afirmar o eu de si mesmo e que pode ser reconhecido como um outro que não se reduz a qualquer personagem mas sim que é a expressão de uma pluralidade que por sua vez precisa ser incorporada na comunidade entendida por meio da construção desconstrução e reconstrução compreen dendo as mudanças ocorridas com o indivíduo e sua atu al condição ou seja incorporando o outro com respeito às diferenças Considerações finais A dissertação de mestrado pode nos mostrar que não existe uma causa objetiva uma ou mais variáveis com as quais se poderia relacionar o fenômeno do uso de drogas Este fenômeno está no indivíduo em seu sentido Ferreira de Lima A Dependência de drogas e Psicologia Social estudo sobre as oficinas terapêuticas e o uso de drogas a partir da Teoria da Identidade 100 existencial Da mesma forma esse uso também é incen tivado pelo mundo concreto pelas condições materiais de existência As drogas são portanto combustível e veículo fonte de energia e móvel para a ação voltadas para o lúdico para a representação de si e do grupo a que se pertence ao mesmo tempo em que também servem para o necessário devaneio para a leveza da alma que precisa flutuar e transgredir limites impostos pela ordem sistêmica que tornam a realidade insuportável LouLou pode nos ensinar com sua história de vida que o proble ma está no sentido de seu uso cada vez mais alienado na sociedade que transforma tudo o que toca em mercado ria de consumo Outro aspecto que não podemos deixar de apontar referese às medidas de tratamento do uso prejudicial de drogas tão necessárias e ao mesmo tempo tão insufici entes Os tratamentos do uso de drogas que ainda apre sentam em sua maioria como indicativo de saúdealta a abstinência evitação da substância e a não recaída re torno ao uso especialistas esquecem que muitas vezes os indivíduos podem continuar a desejar o uso evitando situações em que exista a substância Nesse último caso não se trata de fato de metamorfoses com sentido emancipatório pois ainda que vejamos uma aparente mudança continua a haver a reposição e não a supera ção de personagens exdrogado exalcoolista Claro que isso não significa que essa superação não poderá ocorrer a posteriori A questão seria então oferecer espaços que possibilitassem a alterização do indivíduo lugares em que o indivíduo poderia ter experiências significativas e atri buir outro sentido para o uso das substâncias que utiliza utilizava ou seja um contexto no qual se possa desen volver a consciência de que existe uma relação entre as experiências e que existe a possibilidade de se fazer ou tras escolhas até então nem mesmo pensadas Aprendemos também com o relato de LouLou que as oficinas terapêuticas podem ajudar a desvelar cada vez mais as desigualdades e a quase impossibilidade de existência em um mundo cada vez mais dominado pela lógica sistêmica apontando para novas formas de experienciar a realidade na medida em que oferecem elementos que demonstram que os indivíduos podem ser muito mais do que as personagens estigmatizadas que os aprisionam em determinados momentos de sua vida passando as patologias capitalistas baseadas na nosologia psiquiátrica a serem vistas como patologias da Modernidade cuja causa entre outras coisas se deve à impossibilidade dos indivíduos poderem com autono mia dizer eu de si mesmos Antes de encerrar é importante apontar uma últi ma questão as estratégias de prevenção e de tratamento Ao planejar intervenções específicas para evitar o uso e abuso de drogas devemos considerar que a dependência corresponde a um fenômeno que não se confunde ape nas com o consumo de drogas mas sim ao encontro de um indivíduo consigo mesmo com seus valores e cren ças É preciso ver o produto a droga inserida na esfera capitalista num contexto sociocultural que incentiva carimba e aprisiona o indivíduo na personagem do vicia do É preciso combater as políticas de identidade que servem para manutenção da realidade do indivíduo im possibilitando muitas vezes que ele consiga sua diferen ciação impondolhe a heteronomia que nega a experiên cia e atribui um sentido a priori para a vida do indivíduo É importante compreendermos como a sociedade de massas e de consumo procura moldar o indivíduo aos interesses do capitalismo e apaga as possibilidades de emancipação e assumir uma posição contrária investir na vida na liberdade Notas 1 Artigo escrito a partir da dissertação de Mestrado em Psicolo gia Social na PUCSP A dependência de drogas como um problema de identidade possibilidades de apresentação do Eu por meio da oficina terapêutica de teatro 2005 Sob orienta ção do Prof Dr Antonio da Costa Ciampa e com bolsa do CNPq 2 Segundo Habermas 1990 o mundo da vida pode ser entendi do como o espaço formado pela cultura que é uma reserva do conhecimento alimentada pelas interpretações lingüísticas e pela tensão entre os conteúdos da tradição e da modernidade a sociedade composta de ordens legítimas as quais os partici pantes de processos comunicativos regulam seu pertencimento a grupos sociais e pela personalidade como um conjunto de motivações que inspiram os indivíduos à ação e produz iden tidade Referências Amaral I S 2000 A sociedade de consumo e a produção da toxicomania Dissertação de Mestrado nãopublicada Pontifícia Universidade Católica de São Paulo SP Benjamin W 1994 Obras escolhidas Magia e técnica arte e política São Paulo SP Brasiliense Birman J 2001 Malestar na atualidade A psicanálise e as novas formas de subjetivação 3 ed Rio de Janeiro RJ Civi lização Brasileira Brasil Sistema Único de Saúde Conselho Nacional de Saúde Co missão Organizadora da III CNSM 2002 Relatório Final da III Conferência Nacional de Saúde Mental Brasília DF Autor Brasil Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde SVS CNDSTAIDS 2004 A política do Ministério da Saúde para atenção integral a usuários de álcool e outras drogas 2 ed rev ampl Brasília DF Autor Brasil Ministério da Saúde Secretaria de Atenção à Saúde Coor denação Geral de Saúde Mental 2005 Reforma psiquiátrica e Política de Saúde Mental no Brasil Trabalho apresentado à Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Men tal 15 anos depois de Caracas Brasília DF Psicologia Sociedade 20 1 91101 2008 101 Bucher R 1992 Drogas e drogadição no Brasil Porto Alegre RS Artes Médicas Carone I sd Análise epistemológica da Tese de doutoramento de Antonio da Costa Ciampa A estória do Severino e a história da Severina Mimeo Ciampa A C 1987 A estória do Severino e a história da Severina São Paulo SP Brasiliense Ciampa A C 2004 Fundamentalismo A recusa do fundamen tal São Paulo SP Trabalho apresentado na mesaredonda No vos rumos Religião e espiritualidade no Terceiro Milênio no IV Ciclo de Reflexões e Debates Religiões e a inclusãoexclusão de pobres negros e mulheres no mundo globalizado Freud S 2002 O mal estar na civilização Rio de Janeiro RJ Imago Goffman I 1961 Asylums Essaya in the social situation of mental patients and other inmates New york Doubleday Anchor Habermas J 1983 Para a reconstrução do materialismo históri co São Paulo SP Brasiliense Habermas J 1990 Pensamento pósmetafísico Estudos filosófi cos Rio de Janeiro RJ Tempo Brasileiro Habermas J 1993 Passado como futuro Rio de Janeiro RJ Tempo Brasileiro Habermas J 2003 Consciência moral e agir comunicativo 2 ed Rio de Janeiro RJ Tempo Brasileiro Habermas J 2005 Sobre o poder das teorias e sobre sua impo tência In J Habermas Diagnósticos do tempo Seis ensaios Rio de Janeiro RJ Tempo Brasileiro Kolyniak H M Ciampa A C 1993 mar Corporeidade e dramaturgia do cotidiano Discorpo Revista do Departamento de Educação Física e Esportes da PUCSP 2 Lima A F 2005 A dependência de drogas como um problema de identidade Possibilidades de apresentação do EU por meio da oficinaterapêutica de teatro Dissertação de Mestrado não publicada Pontifícia Universidade Católica de São Paulo SP Lima S 2000 Espaço Fernando Ramos da Silva Um projeto de tratamento e prevenção ao uso de drogas em Diadema Disser tação de Mestrado nãopublicada Pontifícia Universidade Ca tólica de São Paulo SP Marcuse H 1986 A dimensão estética Lisboa Portugal Edi ções 70 World Healt Organization 2003 Investing in mental health Switzerland Nove Impression Aluísio Ferreira de Lima é Psicólogo Professor de Psicologia Social da UFC Doutorando em Psicologia Social pela PUCSP Mestre em Psicologia Social pela PUCSP e Especialista em Saúde Mental pela USP Membro do NEPIM Núcleo de Pesquisa da Identidade e Metamorfose da PUCSP Endereço para correspondência Rua Dom Duarte Leopoldo e Silva 27 1º andar Sala 13 Centro Santo André SP 09 015560 Tel 11 8226 2269 aluisiolimahotmailcom Dependência de Drogas e Psicologia Social Um Estudo sobre o Sentido das Oficinas Terapêuticas e o Uso de Drogas a partir da Teoria de Identidade Aluisio Ferreira de Lima Recebido 20062007 1ª revisão 08092007 Aceite final 11102007 UNILASALLE NITERÓI Entrevistas sob o tema Psicologia na Dependência Química ALINE GONÇALVES DA SILVA EDIANE ALBUQUERQUE DE MATTOS ESCUDEIRO JHONATAN DA SILVA OLIVEIRA JULIA MAIA AIRES LAIZA CAMPOS DA CUNHA NADIANE NORONHA MARQUES VANDA DA SILVA ROCHA Niterói 2023 A dependência química é uma condição crônica que pode ter sérias ramificações para a saúde física mental e emocional da pessoa afetada bem como para sua vida social e profissional O tratamento geralmente envolve uma abordagem multidisciplinar que pode incluir terapia comportamental aconselhamento apoio de grupos de ajuda mútua e em alguns casos medicação O apoio da família e dos amigos desempenha um papel importante na recuperação de dependentes químicos e é fundamental buscar ajuda profissional quando necessário 1º Entrevista Psicólogo Rogério Bosso CRP 06104533 Doutorando na USP na área de dependência química Conte um pouco sobre sua formação em psicologia Sou Rogério Bosso psicólogo me formei em 2010 e iniciei carreira no Centro de Referência Especializado de Assistência Social CREAS em Itapira onde atende jovens em medidas socioeducativas da Fundação CASA além de crianças negligenciadas e idosos Eu também implementei o Projeto Semente que era prevenção de álcool e drogas na Escola Cândido Moura em Itapira Em Campinas trabalhei no Instituto Padre Haroldo primeiro como clínico por três anos e depois como coordenador dos serviços por sete anos e meio Ingressei na docência em 2013 lecionando sobre álcool e drogas em uma pósgraduação e em 2017 comecei a lecionar na Faculdade Anhanguera de Campinas onde permaneço ministrando aulas de psicopatologia supervisão de estágio e coordenando o curso Complementei minha formação com especializações em saúde mental e dependência química na UNIFESP e atualmente cursando doutorado na USP na área de dependência química Além disso realizei treinamento em Avaliação psicológica na Unicamp e atuei como psicólogo voluntário oferecendo atendimentos Como você optou pela Psicologia como carreira Optei pela carreira em psicologia aos dezoito anos motivado pela minha experiência de trabalho em um hospital psiquiátrico em Itapira onde ajudava a cuidar dos pacientes no pátio Esse contato com a psicologia e o trabalho dos psicólogos despertou meu interesse e curiosidade levandome a escolher e estudar psicologia especialmente após observar o trabalho dos profissionais na área da psiquiatria Qual a diferença da psicologia clínica para a psicologia social na condução do tratamento com relação às questões de dependência química Acho que não tem muita diferença no atendimento acho que tem pontos importantes E não vejo a possibilidade de atendimentos por uma demanda tão complexa sem o conhecimento do que é o transtorno por uso de substâncias Como todos os outros a pessoa precisa se especializar para conseguir conduzir os atendimentos psicológicos É um universo que tem muita violência e muitas particularidades com muitas questões muito específicas O paciente passa por estágios e você tem que conhecer muito dessa complexidade para poder dar conta dos atendimentos Trabalhar com dependência química exige cooperação entre profissionais de diferentes áreas como psiquiatras terapeutas ocupacionais enfermeiros e conselheiros A interdisciplinaridade é vista como fundamental seja em configurações clínicas ou em trabalhos sociais financiados pelo SUS para oferecer um atendimento abrangente e eficaz aos pacientes Como surgiu o interesse na área da dependência química O interesse surgiu enquanto trabalhava em um hospital psiquiátrico especificamente nos setores relacionados à dependência tanto masculina quanto feminina durante meus últimos três anos de oito anos de serviço Participava das reuniões de equipe e do planejamento terapêutico individual de cada paciente Encontrei na área um desafio que correspondia ao perfil de personalidade o que me motivou e me interessou ainda mais pelo tema Meu envolvimento direto com dependentes químicos na equipe do hospital foi um ponto crucial nesse processo O que entendem por dependência química qual a direção para o tratamento No DSM5 o Manual Diagnóstico Estatístico dos Transtornos Mentais o Transtorno por Uso de Substâncias é a nova nomenclatura No DSM5TR há onze critérios de diagnóstico que avaliam a gravidade leve moderada e grave desse transtorno Para identificar se alguém tem um transtorno por uso de substâncias é necessária uma avaliação detalhada realizada por um profissional especializado na área que avalie se os critérios específicos são atendidos Essa avaliação combina o conhecimento clínico adquirido ao trabalhar com dependentes químicos com as evidências e diretrizes fornecidas pelo DSM para um diagnóstico preciso Quais os indícios que um paciente pode apresentar que caracterizam o uso de substâncias químicas como uma doença crônica Existem critérios diagnósticos A pessoa precisa apresentar esses critérios para ser caracterizada como uma pessoa que tem transtorno para as substâncias Por exemplo um dos critérios é ter tolerância ou seja é ter o conceito de que a pessoa precisa aumentar as doses consumidas de uma determinada substância para ter o mesmo efeito que ela tinha anteriormente Outro critério é deixar de ter relações sociais diversificadas restringindo se única e exclusivamente a relações voltadas para o uso das substâncias químicas Há também a Abstinência A síndrome de abstinência são sinais e sintomas ruins que a pessoa tem física e psicológica como diarreia irritabilidade ansiedade tremores que aparecem com a interrupção do uso Enfim você vai ter onze critérios diagnósticos que vão mostrar que a pessoa tem uma dependência Qual é a faixa etária e sexo dos pacientes que você atende atualmente A faixa etária dos pacientes que eu atendo atualmente é a partir de dezoito anos até cinquenta e oito anos de idade Eu acho que essa é a faixa de idade que eu tenho maior número de atendimento atualmente Mas faço um recorte eu não atendo crianças e adolescentes Então até completar dezoito anos eu não atendo Essa é uma escolha que eu fiz quanto profissional de focar mais no público adulto mesmo Quais são as principais dificuldades para o tratamento dos dependentes químicos Primeiro ofertas e tratamentos especializados Nós temos hoje os Caps ADS que são Centro de Atenção Psicossocial específicos para o tratamento de álcool e outras drogas mas que não dá conta de toda a demanda Nós temos uma demanda bastante grande Infelizmente hoje a dependência virou muito lucrativa nós temos espaços que se dizem especializados e acabam por não oferecer um tratamento Então a oferta de espaços especializados para tratamento é uma grande dificuldade assim como profissionais especialistas na área que fazem de fato um bom trabalho É muito comum ter dificuldades para identificar o que vem primeiro quando um dependente químico tem uma comorbidade psiquiátrica As vezes com uma boa avaliação de um histórico de vida a gente consegue ter possíveis hipóteses e ideia É muito comum na dependência termos transtornos psiquiátricos associado como transtorno psicótico depressivo transtornos de personalidade e TDAH E esses transtornos vão dificultando a permanência da pessoa em recuperação As constantes recaídas acabam sendo um problema Cada recaída que a pessoa tem ela tem mais agravos e prejuízos e isso vai dificultando a sua recuperação e também a relação com a família A família nem sempre é um fator protetivo muitas das vezes ela dificulta o tratamento como não aderindo as propostas feitas pela equipe não entendendo que elas também precisam de tratamento e quando não realizam os encaminhamentos que foram direcionados para ela Então existem algumas dificuldades nesse caminho Na sua experiência em atendimento aos dependentes químicos você percebe um estigma maior sobre as mulheres viciadas do que sobre os homens Sim São muito mais fortes relacionados às mulheres dependentes do que aos homens Também chegam menos mulheres ao atendimento as barreiras sociais sãs os fatores mais importantes que a impede de chegar Por exemplo quando ela tem um filho muitas vezes ela não consegue ir para o tratamento por não ter com quem deixar o filho Já o homem deixa com a mulher e vai A mulher fisiologicamente falando tem uma vulnerabilidade maior para se tornar dependente Existem evidências que elas se tornam dependentes quando tem parceiro dependente Socialmente são vistas com termos muito pejorativos e também ficam mais vulneráveis a doenças relacionadas a DST Para manutenção do vício elas têm que usar o corpo como moeda de troca sofrendo muito mais com os problemas da dependência e sendo muito mais estigmatizada Há uma cobrança social muito maior para que exerça o papel de cuidadora de doméstica o que vai impedindo a sua chegada no ambiente de tratamento Existem os dependentes químicos incuráveis Até hoje não se tem uma cura para a dependência Tem manutenção de tratamento É lógico que a cura pode ser questionada A gente pode partir de vários lugares pensando na relação da cura o que é estar curado A dependência é uma doença do cérebro e ela precisa de manutenção assim como uma esquizofrenia por exemplo Existem graus diferentes Assim como tem grau de comprometimento diferente de um paciente para o outro O que dificulta mais ou facilita mais o tratamento como por exemplo as próprias questões sociais e o suporte social que a pessoa tem É diferente eu tratar uma pessoa sem nenhuma comorbidade com alto nível de suporte social do que uma pessoa que tem comorbidade vivendo em situação de rua há dez anos por exemplo São complexidades que vão facilitando ou dificultando o trabalho mas todos eles precisam ter manutenção do tratamento Como a psicologia pode auxiliar as famílias das pessoas que passam por problemas relacionados ao uso de drogas A psicologia pode ajudar os familiares fazendo grupos de psicoeducação relacionado ao transtorno por uso de substâncias atendendo os familiares entendendo a complexidade de cada caso Também ajudando a família a compreender a situação orientando estimulando a família a participar do tratamento bem como realizar as propostas feitas pela equipe Eu acho que é uma forma importante de ajudar os familiares Os familiares também adoecem quando tem uma pessoa com transtorno por uso de substância Então acho que é importante que os espaços de tratamento levem em consideração a questão da família e ofereçam esse suporte de psicoeducação e de atendimento familiar 2º Entrevista Psicóloga Kelly Tristão CRP 161498 Doutora em Psicologia e diretora do CEPAES Conte um pouco sobre sua formação em psicologia Sou Kelly Tristão psicóloga junguiana formada pela Universidade Federal do Espírito Santo há 20 anos Na universidade eu fui apresentada à Psicologia Analítica na disciplina de Psicologia da Personalidade onde o foco era realmente a Psicologia Analítica Na sequência eu fiz um estágio em saúde mental numa clínica psiquiátrica de internação onde eu pude atuar um pouco com o olhar da Anísia da Silveira Foi a partir de então que eu comecei a entender o quanto a Psicologia Analítica fazia sentido para uma modalidade de cuidado que eu desejava oferecer No meu doutorado eu trabalhei um pouco mais com o foco que desejam na pesquisa de vocês O tema da minha pesquisa foi O lugar da criança e do adolescente que usam a substância psicoativa no cuidado em saúde mental Foi uma pesquisa desenvolvida no CAPS Infanto Juvenil aqui da cidade de Vitória e eu trabalhei tentando discutir um pouco como que a gente entendia que esse adolescente essa criança se via no cuidado que ele recebia dos profissionais e como que ele se cuidava como era trabalhado com ele essa possibilidade do autocuidado No meu doutorado foi trabalhado três aspectos da Psicologia Analítica no referencial teórico da tese O primeiro deles é pensar a questão do desenvolvimento Qual que é o lugar desse indivíduo no seu desenvolvimento psíquico no seu processo de individuação levando em consideração que apesar do Jung trabalhar especificamente com o processo de individuação na fase adulta alguns autores como Forre Hahn e Neumann trabalham a possibilidade de entender o processo de individuação desde o momento que o sujeito nasce Essa foi a perspectiva que eu trabalhei na tese Um outro conceito que eu trabalhei foi a relação transferencial e contratransferencial especialmente para entender se o que perpassava ali tanto no inconsciente dos profissionais que atuavam quanto daqueles adolescentes que estavam inseridos no serviço se de alguma forma favoreciam ou não se prejudicava a relação terapêutica que deveria ser estabelecida naquele processo Isso foi feito articulado com um outro conceito que na realidade a gente chama dentro da Psicologia Analítica de Teoria dos Complexos Culturais E essa teoria é muito importante porque ela vem trabalhando vem ajudando a gente a entender um pouco mais sobre essa organização de grupo como esse grupo enquanto um social enquanto uma cultura ele perpassa esse sujeito esse indivíduo tanto no que diz respeito a como ele se constrói e se identifica conscientemente mas também as suas questões inconscientes as suas defesas estabelecidas como ele se relaciona a partir dessa identificação e defesa com o outro o que a gente chama de grupo externo o outgroup E isso é importante por quê Porque a gente entende que especialmente quando a gente fala de dependência química e de adolescente e do pobre a gente tem aí uma série de questões que são questões sociais que de alguma forma também influenciam como esse profissional olha para essa pessoa para esse adolescente que está envolvido com o uso de substâncias com o tráfico com o entorno do tráfico Então o meu percurso de Psicologia Analítica foi nessa sequência e hoje estou atuando somente como psicóloga clínica e docente também de nível de pós graduação Como surgiu o interesse na área da dependência química Quando você me pergunta sobre como é que surgiu o meu interesse pela dependência química eu acho que a minha entrada nessa área de dependência ela se dá muito mais pelo incômodo do que pelo interesse propriamente dito Quando eu atuei enquanto profissional na clínica de internação psiquiátrica a gente tinha um número específico um número pequeno de vagas que eram específicas para quem possuía uma questão propriamente de uso de substâncias que não havia uma comorbidade com esquizofrenia entre outras coisas E naquele período eu percebia um incômodo muito grande de toda a equipe porque existia um processo que a gente entendia enquanto uma certa manipulação daquele paciente psiquiátrico para conseguir algumas coisas para chegar a alguns pontos E esse incômodo também surgia comigo Eu entendi naquele momento que ali não era o lugar dele que a gente precisava separar aquelas pessoas ali e cuidar de formas e em lugares diferentes Só que no geral a gente entendia que era como se não fosse o lugar deles e a responsabilidade por isso era atribuída a eles não à equipe aos profissionais que não sabiam que não tinham manejo ou não queriam dirigir um cuidado mais específico para aquele público E quando eu entrei no doutorado a gente estava passando por um processo aqui em Vitória de junção da clientela onde o usuário de substância psicoativa juvenil que tinha um lugar específico para ele acabou transferido para o Caps Infantojuvenil que eles chamavam muito de CAPS Transtorno Com toda essa mudança a gente teve uma inclusão uma união da equipe aqueles adolescentes foram tirados de onde eles estavam do lugar de onde eles estavam para ir junto com os outros pacientes que eram do CAPS Eu entendia devido a minha prática profissional que ali não era o lugar deles Quando pensei nessa hipótese de qual é o lugar da criança e do adolescente que usa substâncias no CAPS a minha resposta a resposta que eu buscava era ali não é o lugar deles é um outro lugar E aí foi muito interessante porque eu queimei a minha língua Na minha pesquisa eu fiquei inserida durante um ano no CAPS fazendo observação fazendo entrevistas tanto com pacientes usuários quanto com profissionais e aos poucos eu fui percebendo que sim ali era um lugar de cuidado para aqueles indivíduos que possuíam as necessidades decorrentes do uso inadequado ou uso abusivo de álcool e outras drogas O que entendem por dependência química qual a direção para o tratamento Quando a gente fala sobre como a Psicologia Analítica entende as dependências químicas a gente vai entender que o mais importante o problema na realidade não é a droga em si mas a relação que é estabelecida com essa droga Que aí tem uma relação de uma certa dependência que a gente chama de relação dual Onde esse sujeito depende dessa substância e vive por essa substância a fim de estar e de produzir um lugar de produzir um mundo ou uma realidade que seja suportável frente àquela realidade que ele está inserido É muito fácil pra gente julgar essa pessoa Ela tem tudo O que que falta pra essa pessoa Ou mesmo para aquele menino que esta lá na periferia Nossa é falta de um trabalho mas a gente não sabe a gente não se dá conta de quais são essas vivências se traumáticas ou de uma outra ordem que esse sujeito passou ou passa que torna a realidade dele ou como ele enxerga de uma maneira tão terrível a fim de que o uso de uma substância psicoativa traga a possibilidade embora não seja uma possibilidade boa de que ele acredite que é um mundo melhor Ao fazer uso abusivo da substância ele fantasia de que ele está conseguindo se relacionar com aquele objeto de maneira a permitir que ele fique que ele se sinta de alguma forma mais forte se sinta de alguma forma mais organizado ou seja que eles se sintam em um mundo que seja suportável para ele naquele momento Qual é a faixa etária e sexo dos pacientes que você atende atualmente Vou falar especificamente do público juvenil e de um contexto de um recorte Mas é claro que quando a gente está falando de outras dependências de outros objetos de dependência a gente pode pensar em uma psicodinâmica semelhante Mas uma fala que foi muito marcada entre as entrevistas que eu fiz é de um do adolescente que durante a entrevista ele vira pra mim e fala assim Tia como é que você consegue viver sem droga O mundo é muito ruim tia A minha vida é muito ruim Como que você consegue Isso ficou muito marcante pra mim Por que como é que aquele adolescente embora ele tenha algumas entradas nessa sociedade considera como a sociedade que ele tem acesso assim Como ele enxerga esse mundo E como é isso enxergar a possibilidade de estar nesse mundo de suportar esse mundo somente com o uso de substâncias É claro que quando a gente fala do uso de substâncias pelo adolescente é muito diferente de quando a gente fala do adulto que continua E no caso do adolescente existe a chance a possibilidade de que ele pare o uso que é um uso prejudicial que embora ele acredite que traga uma realidade melhor pra ele e que na realidade é o contrário que acaba prejudicando muito mais a realidade do sujeito as muitas possibilidades de vida Quando a gente fala do adolescente que está no CAPS Infanto Juvenil é muito comum que seja um adolescente que veio de uma indicação judicial ou de uma ordem judicial Porque fez o uso porque foi pego com uma maconha com alguma outra substância e não necessariamente ele possui ali uma dependência química O que não quer dizer que ele não tenha o uso prejudicial já que o uso afeta os seus processos de desenvolvimento Seria muito ingênuo da nossa parte achar que por mais que a gente entenda que por exemplo a maconha pode ser e menos prejudicial do que algumas outras drogas esse adolescente vai passar pelo uso sem ter tido nenhum prejuízo e vai ter Seja prejuízo em termos de memória de cognição seja prejuízo sociais Mas no caso desses sujeitos é muito claro o que motiva a indicação dessas pessoas para um Centro de Atenção Psicossocial não é questão clínica não é porque ele precisava de um cuidado devido ao uso de substância a fim de não que não o prejudicasse muito Eles eram indicados porque existia ali algo que a gente chama de racismo estrutural Por quê Porque em sua maioria todos os adolescentes com quem eu estive durante todo o meu processo de doutorado de coleta de dados eram meninos pretos e pobres Quando eu tive algum contato algum relato sobre menino que era branco esse relato era feito pela família que participava de um grupo de família Esses meninos não estavam presentes no CAPSI Só estavam presentes aqueles a quem a justiça obrigava Mais uma vez não pelo caráter clínico mas pelo caráter judicial Então a entrada é de muito por esse aspecto Quais são as principais dificuldades para o tratamento dos dependentes químicos Então se a gente fala o que move essa relação que você estabelece pela droga a fim de uma busca de uma realidade alternativa a aquela realidade que é insuportável para aquele sujeito a gente precisa pensar que clinicamente a gente vai ter que trabalhar nesse amplo da realidade também Como esse sujeito se encontra nessa realidade nesse mundo e qual é o lugar dele num desenvolvimento psíquico desse mundo e as relações que ele estabelece nesse mundo assim como a possibilidade de apresentar a ele outros mundos que são possíveis de entrar Logo quando a gente fala da dependência química a gente tem aí em termos de cuidado em termos de tratamento uma prática que eu considero que seria mais interessante de poder pensar que é a prática da redução de danos Quando eu falo de redução de danos eu não falo de substituição de insumos substituição de uma droga pela outra É claro que isso também pode ser pensado mas eu gosto de usar uma fala do Antônio Lancetti lá da Clínica da Peripatética que ele diz que redução de danos é uma estratégia de ampliação de vida Logo como que a gente poderia pensar nessa atuação A medida que eu tenho um universo do social no CAPS a possibilidade de apresentar a esse sujeito outros mundos outras realidades seja por meio de esporte seja por meio do uso da arte de estágio de geração de renda de cultura de contato com outras pessoas que estejam lá por conta da droga mas que possam se reunir para pensar em outra estratégia de vida eu permito que ele conheça também outros mundos e que tenha a possibilidade de ir junto com outros profissionais de se relacionar com esse mundo que ele está conhecendo também Então a gente está falando de estratégia de expansão de vida Quando a gente fala de redução de danos a gente também precisa lembrar de como é que eu posso pensar em reduzir o dano para esse sujeito que continua a usar né Se ele usa maconha e ele não quer parar de usar como que ele pode usar o que ele pode fazer para diminuir os efeitos desta maconha Quando ele pode usar de forma não seja tão prejudicial pra ele né E também explicar pra ele de forma a construir esse conhecimento em conjunto quais são os malefícios que o uso daquela substância pode gerar pro seu próprio desenvolvimento e para sua relação com a sociedade Na sua experiência em atendimento aos dependentes químicos você percebe um estigma maior sobre as mulheres viciadas do que sobre os homens No consultório hoje eu não atuo mais especificamente com esse público Mas eventualmente a gente recebe pessoas que têm essa necessidade decorrente do uso de substâncias psicoativas ou uso inadequado de outras substâncias que não são as drogas de maneira que ele possa se relacionar com a sua vida de outra forma Para isso ele precisa de um ego que seja forte E o ego que é forte não é um ego rígido é um ego flexível capaz de lidar com essas questões inconscientes que de alguma forma o afetam e também com a realidade externa que interfere no seu cotidiano E aí a tarefa da psicoterapia é justamente ajudálo a enxergar esse mundo ou esses mundos essas possibilidades de mundo de relação com ele de uma outra maneira mas também de fortalecimento e de organização de ego a fim de permitir que esse sujeito tenha uma relação com sua vida que não seja atravessada ou que não seja guiada pela dependência seja ela de substâncias psicoativas ou não A dependência de substancias psicoativas tem demanda maior público de mulheres As mulheres têm vindo mais ao consultório com essa dependência de algumas medicações como ansiolítico Rivotril Diazepam entre outras medicações da mesma ordem 3º Entrevista Psicóloga Ieli De Souza Faria CRP 0554049 Pósgraduanda em Psicologia Análitica pela Celso Lisboa Qual a diferença da psicologia clínica para a psicologia social na condução do tratamento com relação as questões da dependência química A resposta a esta pergunta dependerá da concepção de psicologia clínica e psicologia social que estivermos utilizando para pensar esta questão Ambas as perspectivas englobam variadas possibilidades de leitura sobre um fenômeno e destas decorrerá a condução do tratamento O que te levou a escolher essa área O desejo de exercer a psicologia para além do consultório sempre me aproximou do setor público e estudando a respeito das possibilidades de atuação do psicólogo neste setor me interessei por este tema O que entendem por dependência química qual a direção para o tratamento Em consonância com o Código Internacional de Doenças em sua décima edição CID 10 elaborado pela Organização Mundial de Saúde OMS A dependência química decorre da união de fatores físicopsíquicos em um determinado indivíduo para quem o uso de uma substância ou uma classe de substâncias atinge prevalência em relação a interesses anteriormente valorizados Sua descrição ainda apresenta o aspecto compulsivo da doença isto é forte desejo de uso da substância psicoativa além do retorno dos sintomas no caso de indivíduos dependentes mais rapidamente em comparação com os que não têm a doença instalada Conforme a definição apresentada a diversidade dos aspectos afetados pela dependência química aponta para um tratamento multidisciplinar e no caso da instituição em que eu atuo que estabelece a abstinência como requisito para o início e a continuidade do tratamento Como ocorre o trabalho no dia a dia as pessoas chegam para o tratamento ou vocês vão até as pessoas Partindo da abstinência e da necessidade da mudança de hábitos como condições de tratamento entendemos que este processo exigirá grande esforço daquele que deseja se recuperar Consideramos a chegada instituição por vontade própria um primeiro e importante movimento em busca do tratamento Qual seria o papel do psicólogo a partir dessa definição o ajuste social ou a adaptação O papel do psicólogo no tratamento da dependência química é auxiliar a compreensão do dependente químico a respeito dos elementos que o levaram a manifestar a doença como expressão de uma configuração única de um conjunto de fatores organizados por cada indivíduo bem como a estruturar novos modos de relação que o permitam estabelecer um estilo de vida que dispense o uso do químico Se pode dizer que existe cura Poderia dar um exemplo concreto de algum caso pessoal A Organização Mundial de Saúde OMS aponta como uma das características da dependência química ser incurável A cura neste caso seria a possibilidade de prosseguir utilizando o químico após o tratamento sem apresentar os prejuízos decorrentes deste uso o que não é possível Conheço um rapaz que após 25 anos sem o uso do químico deixou de seguir as diretrizes do tratamento retornou ao uso e no dia seguinte já apresentava as mesmas condições que o levaram a buscar auxilio da primeira vez Pode por gentileza descrever um pouca mais da prática da psicologia social o diaadia o trabalho em conjunto com outros profissionais a especialização básica do profissional O aspecto social da psicologia para além das definições que existem da psicologia social pode nos fazer refletir a respeito dos inúmeros atravessamentos possibilitados pela nossa prática na vida das pessoas com as quais nos relacionamos assim como os variados fatores que influenciam o adoecimento destas Na dependência química como em outros transtornos é muito importante que sejam criadas redes de apoio que favoreçam a recuperação destas pessoas ou seja o seu caminhar para a saúde Neste sentido o trabalho com outros profissionais favorece a criação de estratégias inovadoras de cuidado e das redes de apoio para a realização do próprio trabalho Além disso os desafios desta convivência podem ser encarados como oportunidade para o aperfeiçoamento de todos os envolvidos Por se tratar de um tema polêmico que gera inúmeras controvérsias e tem efeitos muito diversos na maneira de conduzir o tratamento considero a formação continuada de fundamental importância a fim de facilitar o diálogo com outras categorias profissionais SciELO Books SciELO Livros SciELO Libros ALARCON S Critérios para o Diagnóstico de Dependência Química In ALARCON S and JORGE MAS comps Álcool e outras drogas diálogos sobre um malestar contemporâneo online Rio de Janeiro Editora FIOCRUZ 2012 pp 131150 ISBN 9788575415399 httpsdoiorg10747697885754153990007 All the contents of this work except where otherwise noted is licensed under a Creative Commons Attribution 40 International license Todo o conteúdo deste trabalho exceto quando houver ressalva é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 40 Todo el contenido de esta obra excepto donde se indique lo contrario está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 40 6 Critérios para o Diagnóstico de Dependência Química Sergio Alarcon 6 Critérios para o Diagnóstico de Dependência Química Sergio Alarcon Segundo a Organização Mundial da Saúde OMS 2001 cerca de 10 das populações dos centros urbanos de todo o mundo consomem abusivamente substâncias psicoativas independente da idade sexo nível de instrução e po der aquisitivo Outro estudo conduzido pela OMS em 2003 sobre a carga global de doenças estima que o tabaco o álcool e as drogas ilícitas correspondam a respectivamente 41 4 e 08 de todas as morbidades no mundo Ainda segundo o mesmo estudo a carga de doenças inclui transtornos físicos cirrose hepática miocardiopatia alcoólica polineuropatia demência etc e lesões de correntes de acidentes industriais e automobilísticos por exemplo No Brasil uma pesquisa encomendada pelo governo federal sobre os cus tos dos acidentes de trânsito revelou que há uma relação entre o uso do álcool e outras drogas e a gravidade das lesões Como os acidentes e as violências ocu pam a segunda causa de mortalidade geral sendo a primeira causa de óbitos entre pessoas de 10 a 49 anos de idade perfil que se mantém nas séries históri cas do Sistema de Informações sobre Mortalidade SIM do Ministério da Saúde entre 2000 e 2008 seria importante procurar entender em que condições as drogas são determinantes de uma maior exposição das pessoas a comporta mentos de risco Isso inclui os efeitos inerentes aos hábitos culturais e também aqueles provocados pelas legislações que procuram regular esses hábitos quan do relacionados ao uso de drogas Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 131 09072014 110550 132 Álcool e outras Drogas DiÁlogos sobre um malestar contemporâneo Dados epidemiológicos sobre o consumo de drogas no Brasil obtidos a partir do I Levantamento Domiciliar sobre Uso de Drogas realizado em 2001 pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotópicas Cebrid da Universidade Federal de São Paulo Unifesp indicam que a droga mais con sumida no país é o álcool com uso na vida ou seja qualquer uso inclusive o uso experimental uma vez na vida por 687 da população seguido do tabaco com 411 Em proporções substancialmente mais baixas constam as demais drogas como a maconha com 69 os solventes com 58 os benzodiazepí nicos com 33 e a cocaína com 23 Notese a disparidade entre o consumo de drogas lícitas como álcool e tabaco em relação ao uso das drogas ilícitas citadas Carlini et al 2001 Estimase que aproximadamente 20 dos pacientes tratados na rede pri mária apresentam um padrão de uso de álcool considerado abusivo ou de alto risco Essas pessoas têm seu primeiro contato com os serviços de saúde por intermédio de clínicos gerais que raramente detectam a presença de acometimento por tal uso por uma série de razões que vão desde as más condições de trabalho até a formação técnica deficiente o que tem reper cussão negativa sobre as possibilidades de diagnóstico e tratamento Percebese que no geral o foco da atenção está voltado para as doenças clínicas decor rentes da dependência que ocorrem tardiamente e não para a dependên cia subjacente O diagnóstico e o tratamento precoces da dependência química seja do álcool ou de outras drogas têm papel fundamental no prognóstico desse trans torno que se amplia de um ponto de vista global de prevenção e promoção da saúde e se complica já que de maneira geral há expressivo despreparo e desinformação das pessoas que lidam com o problema sejam elas usuários familiares ou mesmo profissionais Não se trata simplesmente de constatar a utilização de drogas uma vez que em termos estritos de avaliação médica isso não tem muito significado Verificado o uso devese primeiramente avaliar até que ponto este está relacio nado com a dependência química ou se diz respeito exclusivamente à experi mentação ou ainda ao uso abusivo sem dependência No entanto se é im portante a identificação precoce de casos que poderiam evoluir para situações de maior gravidade também se deve tomar cuidado para não se psiquiatrizar um comportamento considerado normal em determinado contexto cultural específico Um diagnóstico clínico equivocado que confunda experimenta ção com uso abusivo ou com dependência química pode acarretar ações Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 132 09072014 110550 Critérios para o Diagnóstico de Dependência Química 133 que signifiquem grave iatrogenia ou seja a produção de dano com base na intervenção técnica sanitária Por isso o objetivo aqui é favorecer uma melhor abordagem diagnóstica por equipes interdisciplinares da área da saúde Ob viamente por tratarse de um texto esquemático serve apenas como sugestão para uma maneira de pensar o diagnóstico que necessitará ser criticada e eventualmente complementada O processo pelo qual o consumo de substâncias em certas pessoas evolui para padrões de comportamento compulsivo de busca e utilização chegando a provocar a incapacidade do autocontrole mesmo à custa de muitos preju ízos parece ser a consequência de um amálgama que abrange fatores psi cológicos neurobiológicos e sociais de difícil apreensão No entanto mesmo sendo obscuros os mecanismos que levam o indivíduo a se tornar farmacode pendente o diagnóstico e o tratamento para a dependência são plenamente possíveis e viáveis Na verdade por se tratar de um fenômeno complexo ou seja que permeia praticamente todas as valências possíveis da vida de um indivíduo a dependência química requer um diagnóstico interdisciplinar por meio do qual tanto uma equipe de saúde quanto o próprio usuário e seus fa miliares possam apoiarse para construírem estratégias de transformação Essas estratégias devem visar idealmente não apenas à abstinência ou à exclusiva redução dos danos mas principalmente à possibilidade de construção de ho rizontes vitais que sejam a um só tempo exequíveis e sedutores para o utente1 Ninguém consegue com facilidade e sem sofrimento abandonar hábitos longamente adquiridos quanto mais hábitos produtores de prazeres As dro gas tornamse hábitos ou seja seu uso tornase um costume sendo constan temente repetido exatamente pela sedução que provocam O objetivo último que começa com o diagnóstico da dependência química é ajudar na cons trução de condições de vida cuja sedução possa concorrer com um prazer que se tornou ao mesmo tempo nocivo hábito causador de uma satisfação efêmera cujo custo é pago à prestação sob a forma de transtornos de todas as ordens Rotelli 1991 1 Será dada preferência ao termo utente no lugar de usuário ou paciente pois em primeiro lugar tratase de uma designação corrente na saúde mental pósreforma psiquiátrica e em se gundo lugar tratase de um termo que denota uma atividade inerente ao próprio dependente químico que é essencial na relação terapêutica que se pretende construir nos serviços públicos voltados para a atenção do adito Utente significa aquele que graças a algum grau de indepen dência e conforme a sua vontade usufrui de algo Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 133 09072014 110550 134 Álcool e outras Drogas DiÁlogos sobre um malestar contemporâneo Apontamentos sobre o Diagnóstico Clínico da Dependência Química O diagnóstico da farmocodependência como mencionado não é simples sendo necessária a superposição de perspectivas diversas para a mensuração de sua real dimensão Essas perspectivas incluem aspectos biológicos psicoló gicos sociais e culturais que por fim desembocam na especificidade daquela subjetividade acometida pelos efeitos nocivos do hábito de usar drogas Nenhu ma perspectiva tomada isoladamente é suficiente para dar conta dos aspectos essenciais do fenômeno da dependência Na área médica temse tornado consenso identificar o tipo de usuário se gundo a maneira pela qual ele incorpora ao seu cotidiano o uso de drogas É chamado de experimentador aquele que delas faz consumo esporádico com nenhum ou pouco impacto sobre sua saúde Difere do usuário social ou recre ativo que utiliza drogas repetidas vezes de forma controlada sem a ocorrência de alterações em suas funções orgânicas psicológicas e sociais Considerase como abuso ou uso nocivo a utilização que frequentemente extrapola os va lores médicos e culturais aceitos quanto à quantidade frequência de uso e via de administração O abusador apresenta recorrentes intoxicações com diversos prejuízos sejam físicos psicológicos ou sociais Já a dependência química é explicada em termos diagnósticos segundo o DSMIV 1995 pela autoadminis tração repetida de drogas que em geral leva à tolerância à abstinência e a um padrão compulsivo de uso com histórico evolutivo de no mínimo 12 meses Podese dizer que as substâncias psicoativas interferem na função normal do cérebro alterando os processos normais de acumulação liberação e elimi nação de neurotransmissores2 endógenos Alguns desses neurotransmissores que se relacionam com as substâncias psicoativas são a dopamina a serotonina a noradrenalina o ácido gamaaminobutírico Gaba o glutamato e os opioides endógenos Em geral quando praticamos alguma ação cujo resultado final é benéfico do ponto de vista orgânico como por exemplo o ato de nos alimentarmos o sistema nervoso libera alguns neurotransmissores que ativarão as chamadas vias cerebrais de recompensa fazendonos sentir prazer O sistema de recom pensa não gera contudo apenas prazer mas também saciedade fazendo com 2 Neurotransmissores são substâncias químicas produzidas pelas células do sistema encefáli co os neurônios responsáveis pelo envio de informações a outras células do corpo Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 134 09072014 110550 Critérios para o Diagnóstico de Dependência Química 135 que após determinado limite o impulso para a repetição do ato se interrompa A cessação do ato é imperiosa para que um ato análogo venha a se constituir futuramente tornando possível a repetição da sensação de prazer Da mesma forma é o desprazer implícito na sensação de falta de comida água sexo etc que gera a busca do prazer que trará a saciedade estabelecendo um circuito natural de privaçãoprazersaciedade Sem esse circuito de recompensa o indiví duo perderia o interesse pela vida e seria incapaz de subsistir Esse mecanismo bioquímico e psicológico é também denominado refor ço positivonegativo A ativação desse circuito pode ocorrer de maneira ar tificial com o uso de drogas o que por si só não acarreta necessariamente a farmacodependência Apenas o uso contínuo crônico de determinadas quantidades de psicoativos geraria o desenvolvimento de um processo de aprendizagem neuronal neuroadaptação como efeito paradoxal da satis fação provocada pelo seu uso efeito agradável ou positivo A busca natural pelo prazer tornarseia então descontrolada pois a neuroadaptação imporia ao indivíduo uma sensação situada entre a privação e o prazer sem a media ção temporal da sensação de saciedade Ou seja podese dizer que um dos aspectos que explicam a dependência química seja a avidez crônica que faz com que o indivíduo passe a buscar com frequência desmedida um prazer insaciável O uso da substância deixaria então de ser controlado pela expres são da sequência privaçãoprazersaciedade reduzindose ao tudo ou nada do circuito privaçãoprazerprivação Portanto os efeitos da satisfação ou do prazer não são os únicos a justifica rem os comportamentos associados à dependência Os sintomas de abstinência efeito desagradável da privação ou efeito negativo também acabam contri buindo para a manutenção do consumo abusivo Por abstinência entendese uma alteração comportamental maladaptativa com elementos cognitivos e fi siológicos que ocorrem quando transcorrido certo tempo após um uso pesado da droga a diminuição de sua concentração plasmática leva a sintomas desa gradáveis variados o que compele a pessoa a voltar a usar a droga seja para aliviar os sintomas desagradáveis seja para evitar o retorno desses sintomas O processo que leva ao comportamento desmedido da neuroadaptação pode ser entendido através do mecanismo de bloqueio da recaptação de um neurotransmissor depois de sua liberação fato que ocasiona a exacerbação dos efeitos normais ocasionados por esse neurotransmissor gerando ou uma subsensibilidade tolerância ou uma hipersensibilidade sensibilização à droga de abuso Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 135 09072014 110551 136 Álcool e outras Drogas DiÁlogos sobre um malestar contemporâneo Genericamente devese entender por tolerância a necessidade de cres centes quantidades da substância para se atingir o efeito desejado Pode tam bém ocorrer o fenômeno denominado tolerância cruzada quando o uso re petido de uma determinada substância confere tolerância a outras substâncias da mesma categoria bioquímica por isso alguns anestésicos quando utiliza dos em alcoolistas não fazem efeito O contrário da tolerância a sensibiliza ção também denominada tolerância reversa ocorre quando há aumento da resposta neuropsicológica inicial com o uso crônico da mesma dose da subs tância A tolerância por se apresentar de forma variável entre os indivíduos e os tipos de drogas usadas pode ser difícil de se determinar com base apenas na anamnese Contudo nem a tolerância nem a abstinência são critérios necessários ou suficientes quando tomados isoladamente para um diagnóstico adequado de dependência Podese encontrar tanto o uso compulsivo sem tolerância e abs tinência caso do uso de canabinoides quanto tolerância e abstinência em situações nas quais não há evidência de uso compulsivo O que caracteriza a dependência química e pode definir um diagnóstico clínico é a presença de um conjunto de sintomas comportamentais cognitivos e fisiológicos indicando que o indivíduo continua utilizando uma substância apesar dos significativos prejuízos a ela atribuídos DSMIV 1995 Assim podese estabelecer um padrão de uso característico da dependência que inclui o uso da substância em dose eou tempo acima do pretendido inicialmente o fracas so em diversas tentativas de controlar ou reduzir o uso da substância o tempo excessivo gasto para a recuperação dos efeitos ou para a aquisição da droga uma importante disfunção social com redução drástica de atividades recrea tivas e ocupacionais a manutenção peremptória do uso da substância mesmo diante do reconhecimento das perdas sociais econômicas e afetivas Outro critério diagnóstico amplamente utilizado no Brasil é aquele produ zido pela Classificação Internacional de Doenças atualmente em sua décima edição a CID10 Com base nessa classificação a dependência de substâncias compreende seis critérios e uma pessoa é considerada dependente se apre sentar pelo menos três desses critérios Quadro 1 Há dois critérios biológicos abstinência e tolerância e quatro critérios que incluem elementos cognitivos desejo compulsivo dificuldades de autocontrole dificuldade de se proteger dos danos evidentes provocados pelo uso e restrição dos interesses e ampliação progressiva do tempo despendido com a droga Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 136 09072014 110551 Critérios para o Diagnóstico de Dependência Química 137 Quadro 1 Critérios de dependência de substâncias segundo a CID10 Presença de três ou mais dos seguintes sintomas em qualquer momento durante o ano anterior 1 Desejo forte e compulsivo de consumir a substância 2 Dificuldades para controlar o comportamento de consumo de substâncias em termos de início fim ou níveis de consumo 3 Estado de abstinência fisiológica quando o consumo é suspenso ou reduzido evidenciado por síndrome de abstinência característica ou consumo da mesma substância ou outra muito semelhante com a intenção de aliviar ou evitar sintomas de abstinência 4 Evidência de tolerância ou seja necessidade de doses crescentes da substância psicoativa para a obtenção dos efeitos anteriormente produzidos com doses inferiores 5 Abandono progressivo de outros prazeres ou interesses em virtude do consumo de substâncias psicoativas aumento do tempo empregado na aquisição ou consumo da substância ou na recuperação de seus efeitos 6 Persistência no consumo das substâncias apesar de provas evidentes de consequências manifestamente prejudiciais tais como lesões hepáticas causadas por consumo excessivo de álcool humor deprimido consequente a um grande consumo de substâncias ou perturbação das funções cognitivas relacionada com a substância Fonte adaptado de WHO 1992 O Diagnóstico da Dependência Química e a Comorbidade Na medicina geral utilizase o termo comorbidade quando dois ou mais transtornos de saúde de etiologias distintas coexistem em um mesmo indiví duo Sua adequação à psiquiatria e à saúde mental é motivo de controvérsias embora haja poucos estudos sobre o tema Essas controvérsias se relacionam à própria dificuldade da psiquiatria em se adequar à teoria das doenças reinante na medicina geral em virtude da ausência de uma etiologia biológica identifi cável para as doenças mentais Segundo Camargo Jr as doenças são coisas de existência concreta fixa e imutável de lugar para lugar e de pessoa para pessoa as doenças se expressam por um conjunto de sinais e sintomas que são manifestações de lesões que devem ser buscadas por sua vez no âmago do organismo e corrigidas por algum tipo de intervenção concreta leiase medicamentosa ou cirúrgica Camargo Jr 2007 6566 Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 137 09072014 110551 138 Álcool e outras Drogas DiÁlogos sobre um malestar contemporâneo Ainda segundo Camargo Jr essa definição de doença como coisa é com patível com o modelo de história natural da doença que esquematiza as relações dinâmicas do ciclo saúdedoença compondoo a partir de três pilares o agente etiológico o doente e o meio ambiente O agente etiológico se define com base nessa tese pelas forças dispostas no ambiente que criam o estímulo patológico no indivíduo sendo a doença a resposta do indivíduo ao estímulo proporcionando alterações que levam a recuperação defeito invalidez ou morte Leavell Clark 1976 Determinar o agente etiológico é portanto determinar a causa da doença Supondo que qualquer tratamento que vise à cura de doenças objetive a eliminação de suas causas não apenas a eliminação de seus efeitos ou sintomas então de forma geral todo o esforço diagnósticoterapêutico da medicina curativa repousa so bre a determinação e a retirada do agente etiológico Sabese que a psiquiatria carece de agentes etiológicos para explicar as causas das doenças mentais identificando no máximo como um deus exma china as imprecisas causas genéticas e hereditárias Esse vácuo explicativo determinado pela ausência do agente etiológico sustenta a imprecisão relativa ao entendimento dos mecanismos de produção da doença que a rigor tornase mera conjectura Assim a identificação e a conjugação dos sintomas em sín dromes que distinguem uma doença como tal dependem de uma série de fato res em geral extracientíficos situação que necessariamente joga a medicina mental no limiar da medicina científica E o que afinal se censura em relação à psiquiatria como responsável por iatrogenia nada desprezível é o cientificismo3 expresso pela insistência em buscar no modelo biológico da história natural das doenças a justificação para seu repertório de condutas ocasionando parado xalmente a excessiva medicalização do sofrimento o que explica em parte a explosão do uso de medicamentos como Valium Prozac Ritalina etc para contornar condições de ansiedade tristeza ou inquietude Na história da medicina mental o jogo entre a contestação e a reafirmação de suas pretensões científicas é que acaba fazendo do termo reforma psiquiá trica quase que um eufemismo para psiquiatria É no interior desse jogo que 3 O cientificismo é uma posição ideológica e ufanista que justificou e ainda justifica uma série de aberrações éticas em nome da infalibilidade da ciência o que inclui a crença por exemplo de que é a ciência a única forma de descrição neutra e objetiva do real Não podemos esquecer ideias eticamente questionáveis nascidas no seio do cientificismo como o higienismo o darwinismo social a antropologia criminal de Lombroso etc É importante enfatizar aqui que denunciar o cientificismo não é o mesmo que agir de forma antiintelectualista ou contra a ciên cia pelo contrário Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 138 09072014 110551 Critérios para o Diagnóstico de Dependência Química 139 se define segundo a época essa ou aquela entidade nosológica Em outras pa lavras os momentos nos quais se hesita entre o arcaico e o moderno formam a constante que delineia a temporalidade da medicina mental onde por exem plo em um dia é possível o diagnóstico de psicose maníacodepressiva e no outro o de transtorno bipolar que o substituiu O esforço para se definir os transtornos psiquiátricos como síndromes fica evidente nas elaborações dos manuais de classificação diagnóstica su pracitados o CID10 e o DSMIV O que esses manuais apresentam na verdade é o registro de observações semiológicas do que é aceito pela comunidade científica da época como sintoma ou grupo de sintomas aparentados eou interdependentes São passíveis de revisões periódicas em virtude não de uma mudança de paradigma científico pois não há conceitos definidores bem fundamentados empiricamente mas em virtude de um rearranjo no consenso temporário e descritivo e não explicativo já que sempre falta o agente etiológico das síndromes mentais Cada revisão acompanha amiúde a adequação política social e cultural da medicina mental às forças hegemô nicas de sua época Por isso os critérios definidores de patologias podem ser tão fluidos e imprecisos quanto aqueles que por exemplo determinaram a entrada e posteriormente a saída da homossexualidade do rol das doenças mentais Belmonte 2009 Podese dizer que ocorre com frequência na psiquiatria aquilo que no caso das outras especialidades médicas seria classificado como quadro mórbi do mal definido produzindo uma habitual zona cinzenta diagnóstica na qual o desencontro terapêutico é a regra Nesse contexto agregamse dificuldades para que se estabeleça com alguma precisão os fatores de risco psiquiátricos que poderiam eventualmente influenciar o uso abusivo de drogas Ou seja em geral as relações de causa e efeito entre as drogas e os transtornos mentais são estabelecidas com um baixo grau de confiabilidade para um diagnóstico que se desejaria preciso e científico Mesmo assim é terapeuticamente estratégico pesquisar na farmacodependência as relações entre diagnósticos múltiplos que necessitam ser dimensionados minimamente de maneira a permitir uma hierar quização dos problemas para o planejamento mais eficaz das ações de cuidado e tratamento Um esquema simples para se avaliar as relações entre dependência quí mica e comorbidade proposto por Frances Widiger e Fyer 1990 encontra se resumido com modificações a seguir Segundo os autores é necessário avaliar se a dependência química DQ predispõe a comorbidade CM ou Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 139 09072014 110551 140 Álcool e outras Drogas DiÁlogos sobre um malestar contemporâneo se contribui para a manifestação da CM em caso positivo a DQ é primária e predispõe a CM se a CM predispõe a DQ ou se contribui para a manifestação da DQ em caso positivo a CM é primária e predispõe a manifestação da DQ se a DQ e a CM são influenciadas por um mesmo fator predisponente em caso positivo tanto a DQ quanto a CM são secundárias ao fator primário se a asso ciação entre DQ e CM ocorre por acaso ou se decorre de sua maior prevalên cia na população em geral não há relação entre DQ e CM e se a DQ e a CM pertencem na verdade a um mesmo transtorno tendo sido equivocadamente separadas DQ e CM manifestamse como variações sintomatológicas de um mesmo transtorno Obviamente o fenômeno da comorbidade deve ser visto sempre que pos sível de maneira interdisciplinar uma vez que não se pode reduzir a farmaco dependência a uma condição apenas médicopsicológica tendo em vista seu potencial como enfatizado para afetar todas as áreas da vida humana Assim deverseia tentar ao máximo integrar as várias leituras seja da enfermagem da medicina do serviço social da psicologia etc de forma a fomentar a inter disciplinaridade Assim algumas ações seriam próprias apenas a uma ou outra disciplina específica por exemplo a revisão dos sistemas continuaria depen dente essencialmente da expertise médica de preferência do clínico geral No entanto o mais importante não seria tanto o diagnóstico particular feito por uma disciplina isoladamente mas a soma dos diagnósticos do médico do psi cólogo do assistente social etc que de maneira aproximada forneceria a bio grafia a identidade enfim a territorialidade daquela existênciasofrimento A vantagem seria no final a construção de um projeto terapêutico menos formal e efetivamente individualizado Apontamentos sobre Diagnóstico Interdisciplinar O diagnóstico médico embora importante é índice de apenas um dos as pectos da farmacodependência Assim para a construção de um projeto tera pêutico consistente é necessário um diagnóstico mais amplo que permita à equipe de saúde não apenas individualizar as estratégias de cuidado mas tam bém em especial construir um projeto terapêutico interdisciplinar e correspon sável com a participação ativa do próprio utente e de seus familiares e amigos O objetivo é estabelecer com o indivíduo a possibilidade de problematização de seu universo cultural e relacional pois é por meio de sua identificação ou Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 140 09072014 110551 Critérios para o Diagnóstico de Dependência Química 141 não identificação com os valores de sua territorialidade4 que se torna possível a autoconstrução da própria identidade Muitas vezes essas ligações territoriais estão de tal forma frágeis ou rompi das em virtude dos transtornos inerentes à dependência química que é grande a possibilidade de o indivíduo retornar ao comportamento compulsivo e au todestrutivo por absoluta falta de perspectiva Assim a função de um projeto terapêutico interdisciplinar é servir de mediador e guia para a problematização dessas relações apresentando objetivos próprios ao pressuposto da atenção psi cossocial de evitar a institucionalização e cuidar das condições para a autono mia individual Quando se utiliza o termo problematizar o que se quer dizer é que a abordagem não pode ser baseada em um modelo que paternalize as relações despertando no indivíduo sentimentos de incapacidade culpabilidade e inse gurança O objetivo não é gerar mais dependência tratase de evitar que o in divíduo procure um iluminado um guru um doutor enfim um salvador da pátria do qual se sinta dependente para resolver seus problemas Problematizar aqui significa colocar a própria dimensão do problema como o problema a ser avaliado antes que se pense em sua solução Ou seja supõe que se coloque em dúvida em primeiro lugar a própria pertinência do problema antes de em se gundo lugar aceitálo como uma questão que mereça o esforço para a resposta adequada Sabese que as soluções podem ser falsas ou verdadeiras mas o pior que pode advir é a solução verdadeira para um falso problema A solução verda deira para um falso problema eterniza o sofrimento causado pelo verdadeiro 4 Definimos territorialidade como sinônimo de mundo próprio O termo territorialidade é utilizado pelos filósofos Gilles Deleuze e Felix Guattari Ao se considerar a territorialidade deixase de considerar o território como sinônimo de lugar ou mesmo de espaço e passase a considerálo como algo construído a partir de determinadas práticas humanas que incluem as dimensões do saber do poder e da subjetivação Relações que são portanto econômicas políticas e éticas e não tão somente limitadas por considerações psicologistas ou biomédicas A territorialidade é algo que se carrega consigo que não é a terra propriamente não é o espaço geográfico é aquilo que poderíamos denominar como antecipamos anteriormente e confor me a etologia Uexküll sd mundo próprio umwelt E mundo próprio é um conceito que associa ambienteorganismoafeto como singularidade como sentido Na dependência quími ca devemos entender melhor como os processos de produção de mundos próprios podem le var ou à legitimação do status quo o que provavelmente fará essa subjetividade ser submetida pelas mesmas forças que a tornaram frágil e escravizada submetida ao simbólico entendido como a regra geral hegemônica ou à produção daquilo que Foucault 2004 chamou de sub jetivação a capacidade de ser diferente de si mesmo de se autoproduzir de ser nesse sentido livre das significações dominantes Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 141 09072014 110551 142 Álcool e outras Drogas DiÁlogos sobre um malestar contemporâneo problema não percebido e não resolvido obscurecido pelo falso problema e sua solução verdadeira O modelo5 da problematização propõe então estimular a capacidade do utente de por si mesmo levantar e avaliar os próprios problemas Para tanto é necessário quebrar a lógica pela qual a informação se concentra num único indivíduo ou mesmo em uma equipe de saúde portadora de soluções É necessário antes partilhar informações exercitar um jogo no qual as cren ças preconceitos estigmas e certezas tanto dos membros da equipe quanto do utente familiares e amigos são postos em posição dialógica até que a autonomia do utente seja reconquistada pela capacidade de se autoavaliar de se autoconstituir como indivíduo produtor de suas próprias crenças e de sejos livre enfim tanto quanto possível dos preconceitos das superstições e dos falsos problemas Com base nessa capacitação ou empoderamento tornase desejável pensar na saúde como qualidade de vida e não apenas como ausência de doença conforme preconiza o Sistema Único de Saúde SUS É um engodo imaginar que uma equipe de saúde possa por si mesma e sem a interação necessária e profunda com o utente advogar qualquer prescrição mudança de estilo de vida ou seja lá o que for em nome de uma pretensa qualidade de vida que seria nesse caso sempre unilateral estan do portanto mais próxima de uma violência etnocêntrica6 do que de uma real promoção da saúde Nesse modelo problematizador a função da equipe terapeuta é promover essa capacidade autopoiética7 que por sua vez deve surgir no âmbito do pró prio indivíduo ou grupo Exercitar essa corresponsabilidade na perspectiva do utente não significa tão somente dividir os fracassos e os sucessos de maneira que não haja culpados ou heróis mas também e principalmente ser livre para atuar sobre suas próprias condições de vida e modificálas positivamente mesmo que seja com a ajuda de equipe técnica especializada São também funções da equipe terapêutica facilitar a construção de re des sociais solidárias de promoção da saúde como qualidade de vida mobili zar os recursos da rede de atenção das comunidades serviços residenciais 5 Não se trata propriamente de um modelo mas de uma forma de pensar que permite a varia ção caso a caso 6 Crença na superioridade da cultura a que se pertence acompanhada de sentimento de menos prezo por padrões de comportamento que se afastam da posição cultural do observador 7 Termo introduzido pelos pesquisadores chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela para designar o ser vivo enquanto ser autocriado Maturana Varela 1980 Por extensão desig na no homem a capacidade de se autoinventar em termos físicos e cognitivos Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 142 09072014 110551 Critérios para o Diagnóstico de Dependência Química 143 terapêuticos casas de passagens ou abrigos grupos de ajuda mútua comuni dades terapêuticas centros culturais e de convivência oficinas terapêuticas hospitais e clínicas etc e apoiar o desenvolvimento das competências dos in divíduos e das famílias A clínica da problematização tem como objetivos entre outros reforçar a dinâmica interna ou funcionamento interno de cada indivíduo para que este possa avaliar seus próprios valores suas potencialidades e tornarse o construtor de sua independência reforçar a autoestima individual redescobrir e reforçar a confiança em cada indivíduo diante de sua capacidade de evoluir e de se de senvolver como pessoa problematizar o papel da família e da rede de relações que ela estabelece com o seu meio e valores culturais prevenir e combater as situações de desintegração dos indivíduos e das famílias e estimular a restaura ção e fortalecimento dos laços sociais tornar possível a comunicação entre as diferentes formas do saber popular e saber científico estimular a participação social como requisito fundamental para dinamizar as relações sociais promo vendo a conscientização e estimulando o grupo por meio do diálogo e da refle xão a tomar iniciativas e ser agente de sua própria transformação O modelo coparticipativo e corresponsável proposto pela clínica da pro blematização não inviabiliza abordagens clássicas na medida em que procura respeitar a subjetividade territorialidade do indivíduo Um cuidado que no entanto devese ter é evitar que determinadas abordagens como por exemplo o messianismo dos 12 passos ou o psicanalismo desempenhem um papel es truturante no serviço em desacordo com uma ética da atenção pública Não se trata de proscrever a priori nenhuma abordagem possível muito menos os 12 passos ou a psicanálise mas absorvêlas como ferramentas úteis retirandolhes as características privatistas seja a religiosidade latente no exemplo dos 12 pas sos seja a tendência a impor uma particular Weltanschauung8 como às vezes acontece com a psicanálise para que possam funcionar como utensílios que ora serão úteis ora não conforme a subjetividade em problematização Em suma dependendo das demandas são utilizadas as ferramentas pos síveis com o objetivo de melhorar a qualidade de vida e de acordo com o en foque interdisciplinar citado tais como a psicoterapia breve psicoterapia em grupo entrevista motivacional psicanálise psicologia analítica atenção médica geral e psiquiátrica atenção à família e avaliação social 8 Weltanschauung é uma palavra alemã que significa visão do mundo ou cosmovisão Aqui utilizada no sentido de uma cosmovisão unilateralmente imposta Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 143 09072014 110551 144 Álcool e outras Drogas DiÁlogos sobre um malestar contemporâneo Sugestão para a Construção de um Fluxograma de Atenção Interdisciplinar Como argumentado desde o início deste capítulo na construção de estra tégias de tratamento da farmacodependência tornase necessária uma visão complexa de cada caso o que permite sua individualização de maneira que por um lado não se possa estabelecer modelos fixos de ação mas por outro em um sentido pragmático seja possível dispor de determinadas prescrições baseadas não apenas no conhecimento farmacológico básico a respeito de cada grupo de drogas e seus efeitos particulares na fisiologia humana mas em um diagnóstico ampliado capaz de incluir a territorialidade e as singularidades de cada um Em parte a construção do diagnóstico tanto impõe que se obtenha uma racionalidade geral de cada territorialidade quanto que se agreguem os frag mentos derivados dessas territorialidades colhidos em diversas perspectivas tanto do ponto de vista da clínica quanto na perspectiva epidemiológica ou da saúde pública por exemplo A forma de articulação desses fragmentos é a resultante das estratégias elaboradas pelas equipes territoriais conforme um diagnóstico situacional complexo Acúrcio Santos Ferreira 1998 Dessa maneira não há um modelo prefixado que determine a forma universal para todas as situações Apenas podese exemplificar de forma provisória e esque mática uma sequência de acontecimentos que a partir de uma territorialida de possibilitam as ações estratégicas Assim sugerimos o seguinte esquema a ser seguido Porta de entrada Nessa etapa são realizados o acolhimento e a avaliação clínica O aco lhimento visa primordialmente pela escuta à melhoria na qualidade da assis tência ao favorecer a relação usuáriotrabalhadorserviço e à ampliação das formas imediatas de intervenção individualizada As técnicas para o acolhimento variam de serviço para serviço mas devem estar centradas ao máximo no utente possibilitando o encaminhamento mais resolutivo da necessidade individual por meio de uma assistência acolhedora e humanizada Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 144 09072014 110551 Critérios para o Diagnóstico de Dependência Química 145 Em geral o que se pretende no acolhimento é exatamente enfatizar a ne cessidade do próprio utente de participar de seu tratamento de maneira proati va e integral A emergência da territorialidadesujeito é diretamente proporcional à su balternidade da doença e aos aparatos médicobiológicos e psicológicos de ava liação e conduta que tradicionalmente objetificam a subjetividade fragmentan doa em pedaços aos quais correspondem as disciplinas e especialidades Essa fragmentação da subjetividade é proporcional à fragmentação do trabalho dos profissionais da saúde CostaRosa 2000 Contudo os maiores riscos são a negação da doença e a produção de sub diagnósticos Resgatar a territorialidadesujeito significa fazer emergir o víncu lo clínico e crítico entre acontecimentos e sentidos vitais e não simplesmente sobredeterminar o sentido em detrimento do acontecimento Acontecimento e sentido estão ligados de forma irredutível e produzir uma clínica do sujeito usando o termo como em Campos 1997 mas invertendo os polos de atenção do acontecimento doença para o sentido sujeito não significaria vantagem alguma em relação à clínica fragmentária dos modelos unicausais Os profissionais envolvidos no processo de acolhimento e avaliação clí nica são o psicólogo o assistente social e os cuidadores técnicos de enferma gem e conselheiro Para se evitar a ambulatorização da acolhida o médico psiquiatra ou generalista seria solicitado apenas para os casos de urgência emergência médica ou conforme demanda situacional Primeira fase diagnóstico Nessa fase de diagnóstico é realizada a coleta de elementos diagnósticos e aplicado um programa motivacional intensivo No exame do território são realizados uma coleta de dados que permita a identificação e a hierarquização dos problemas e um inventário dos recursos do território relacionados aos três níveis de atenção sanitária ou seja a preventiva a assistencial e a de promoção da qualidade de vida O diagnóstico situacional avaliação de facilitadores e dificultadores ao tratamento permite determinar a distribuição de um problema e suas causas para racionalizar o planejamento de seu controle ou mitificar seus agravos O conceito de diagnóstico situacional é proveniente das teorias sobre planeja mento estratégico situacional geralmente recomendado para equipes de saúde com atividades interdisciplinares e intersetoriais É um instrumento que permite Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 145 09072014 110551 146 Álcool e outras Drogas DiÁlogos sobre um malestar contemporâneo a identificação descrição e análise de problemas atuais a hierarquização dos problemas por ordem de prioridade o planejamento conjunto de ações para a remissão total ou parcial desses problemas o acompanhamento dos processos o prognóstico e a avaliação dos resultados O planejamento das ações inclui a elaboração de planos de ação que vi sam essencialmente à reconstrução de horizontes vitais sedutores do ponto de vista do utente que possam substituir o prazer fácil das drogas Obviamente outras medidas mais simples devem ser observadas visando à construção de re des de apoio que ofereçam o máximo de impacto eficácia com um mínimo de custo eficiência assegurando que as necessidades imediatas do utente sejam supridas com os maiores benefícios Como última etapa dessa fase é aplicado um programa motivacional inten sivo cujo objetivo é estimular o tratamento e confeccionar um projeto terapêuti co individualizado territorializado Segunda fase tratamento Nessa fase de tratamento a primeira etapa é a implementação das ações na qual buscase aplicar a tática escolhida a mais apropriada para viabilizar na prática o que foi planejado anteriormente procurando motivar a participação ativa do utente Em seguida passase à aplicação do projeto terapêutico indivi dualizado mediante ações complexas interdisciplinares Terceira fase manutenção Essa fase de manutenção depende em parte da demanda do utente que pode requerer atenção continuada ou eventual conforme a situação Tratase de uma vigilância em saúde na qual há uma avaliação dos resulta dos das ações mediante o monitoramento dos objetivos alcançados pelo utente é justamente nesse momento em que surge a flexibilização da estratégia com a possibilidade de correções ou a construção de nova estratégia Instrumentoguia Atualizado e reatualizado constantemente durante o processo terapêutico de preenchimento multiprofissional os objetivos desse instrumentoguia são avaliar os componentes facilitadores e os dificultadores do tratamento a fim de Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 146 09072014 110551 Critérios para o Diagnóstico de Dependência Química 147 se construir táticas de viabilização que favoreçam positivamente o prognóstico e de se obter dados para uma intervenção individualizada projeto terapêutico É constituído por sete tópicos discriminados a seguir Perfil psiquiátrico e psicológico Para o diagnóstico de fatores médicospsicológicos negativos dificultado res ao tratamento da dependência química tais como síndromes psiquiátricas psicóticas fóbicoansiosas epiléticas afetivas ou transtorno de personalidade Avaliação de possível comorbidade primária Motivação Avaliação da motivação para o tratamento Podese utilizar o clássico mode lo de Rollnick e Miller précontemplação contemplação determinação ação De acordo com a avaliação devese aplicar aconselhamento diretivo cen trado no utente com o objetivo de estimular motivar o trabalho para uma mudança do comportamento História do tipo de uso Tipo de drogacompulsão tipos de substâncias usadas droga de escolha ou CID10 F19 início de uso frequência de uso Grau de dependência Podese avaliar o grau de dependência utilizandose alguns critérios a es colher Como exemplo o questionário Clinical Institute Withdrawal Assesment for Alcohol CIWA para alcoolistas e o teste de Fagestrom para os casos de taba gismo Características do contexto social relativo à rede de apoio A rede de apoio pode ser inexistente pedese que seja citado o motivo se houver existente pedese que sejam citados quais os tipos e possível pede se que seja explicado O contexto de vida social pode ser facilitador ou não do tratamento de pendendo de determinados fatores tais como harmonia ou desagregação fami liar presença ou ausência de vínculo empregatício grau de envolvimento com o tráfico de drogas etc Dessa maneira pedese que tais indicadores sejam ava liados como importantes no projeto terapêutico imediato como também para as abordagens psicossociais disponíveis a posteriori Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 147 09072014 110551 148 Álcool e outras Drogas DiÁlogos sobre um malestar contemporâneo Cultura de uso Se vinculado ao trabalho happy hour por exemplo ao tráfico ao sexo etc Problemas associados Encaminhamento judicial processos criminais prisões dívidas com tráfi co busca de refúgio etc Abordagem para redução de riscos e danos Durante o tratamento pode ser feito um treinamento psicoeducativo em situações de risco situações sociais geradoras de ansiedade e estresse etc Não se deve imaginar que a redução de danos seja como ideologicamente se acusa uma lógica que incite ao uso de drogas Pelo contrário essa estratégia baseiase em dados da realidade que vêm exatamente dos centros de tratamen to que privilegiam unicamente a abstinência total e que são incapazes em sua totalidade de atingir um índice de abstinência superior a 30 Ou seja 70 dos dependentes químicos ou se institucionalizam em situações de revolving door entrando e saindo num ciclo intermitente de internações não resolutivas ou são abandonados ou capturados pelos aparelhos de repressão situação que gera muita dor e sofrimento sobretudo pelo estigma da criminalização e que pode leválos até mesmo à morte Contudo não se deve acreditar que a redução de danos como política pública estabeleça para a assistência qualquer prescri ção que inviabilize estratégias que visem à abstinência Da mesma forma uma política de redução de danos não inviabilizaria sem ser contraditória qualquer abordagem racional que vise à proteção do utente como por exemplo uma internação de curta ou média permanência Enfim uma política de redução de danos é apenas indicativa para ações pú blicas flexíveis que minimizem as consequências das más relações com as drogas que as pessoas eventualmente produzem Tais relações hoje em dia derivam jus tamente da maneira como as drogas são tratadas pelas determinações do Estado Conclusão Um dos motivos para o fracasso dos tratamentos para a dependência quí mica é a dificuldade para a reconstituição por parte do próprio utente de uma Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 148 09072014 110551 Critérios para o Diagnóstico de Dependência Química 149 rede de apoio social e familiar adequada em sua comunidade A capacidade de construção de um horizonte de vida que seja mais sedutor que o prazer fácil das drogas também é essencial Por isso a simples aquisição de um certo con trole sobre o comportamento compulsivo de uso de substâncias químicas que muitas pessoas confundem com redução de danos não significa a extinção do chamado problemadrogas na vida da maioria dos utentes Podese entender o problemadrogas de várias maneiras desde os conflitos intrapsíquicos provocados pelas perdas emocionais ou pelos problemas econô micos gerados por perdas materiais até as mazelas geradas pelo estigma pelos conflitos com a lei e a polícia pelas ligações com a criminalidade etc Em alguns casos o utente é real portador de comorbidade psiquiátrica pri mária e as dificuldades para o autorreconhecimento do problema o chamado juízo crítico da morbidade pode levar à recidiva do comportamento abusivo e ou patológico A clínica da problematização deve também levar em consideração ações preventivas para se evitar as condições de recidiva Observase então uma aber tura e uma flexibilidade do serviço com a finalidade de facilitar que o utente possa continuar recebendo suporte e cuidado de maneira que sua conduta ou comportamento se determine por um modo autônomo ético e racional Referências ACÚRCIO F A SANTOS M A FERREIRA S M G O planejamento local de serviços de saúde In MENDES E V Org A Organização da Saúde no Nível Local São Paulo Hucitec 1998 BELMONTE P História da Homossexualidade ciência e contraciência no Rio de Janeiro 19702000 2009 Tese de Doutorado Rio de Janeiro Fundação Oswaldo Cruz Casa de Oswaldo Cruz CAMARGO JR K R As armadilhas da concepção positiva de saúde Physis 171 6376 janabr 2007 CAMPOS G W S A Clínica do Sujeito por uma clínica reformulada e ampliada Campi nas Universidade Estadual de Campinas 1997 Mimeo CARLINI E A et al I Levantamento Domiciliar sobre o Uso de Drogas Psicotrópicas no Brasil São Paulo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas da Universidade Federal de São Paulo CebridUnifesp Secretaria Nacional Antidrogas Senad 2001 Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 149 09072014 110551 150 Álcool e outras Drogas DiÁlogos sobre um malestar contemporâneo COSTAROSA A O modo psicossocial um paradigma das práticas substitutivas ao modo asilar In AMARANTE P Org Ensaios subjetividade saúde mental sociedade Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2000 DSMIV Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais Porto Alegre Artes Médicas 1995 FOUCAULT M A ética do cuidado de si como prática da liberdade In FOUCAULT M Ética Sexualidade e Política Rio de Janeiro Forense Universitária 2004 FRANCES A WIDIGER T FYER M R The influence of classification methods on co morbity In MASERJ D CLONINGER C R Orgs Comorbity of mood and anxiey disorders Washington D C American Psychiatry Press 1990 LEAVELL H CLARK E G Medicina Preventiva São Paulo McGrawHill do Brasil 1976 MATURANA R H VARELA F J Autopoiesis and Cognition the realization of the living Dordrecht D Reidel Publishing Company 1980 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE OMS Relatório sobre Saúde no Mundo saúde mental nova concepção nova esperança Genebra OMS 2001 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE OMS Relatório Mundial Organização Mundial da Saúde Genebra OMS 2003 ROTELLI F Onde está o Senhor In LANCETTI A Org Saúde e Loucura 3 São Paulo Hucitec 1991 UEXKÜLL J Dos Animais e dos Homens Lisboa Livros do Brasil sd WORLD HEALTH ORGANIZATION WHO The ICD10 Classification of Mental and Behav ioural Disorders clinical descriptions and diagnostic guidelines Geneva World Health Organization 1992 Álccol e Outras DrogasBookFinalindb 150 09072014 110551 1 REDUÇÃO DE DANOS UM NOVO OLHAR DA PSICOLOGIA PARA USO ABUSIVO DE ALCOOL E OUTRAS DROGAS ARAUJO Joana Carolina Almeida de1 GOMES Luiz Guilherme Araújo 2 RESUMO Este artigo objetiva contribuir a partir de uma revisão bibliográfica de diversos autores que versam sobre a temática para a problematização acerca da atuação dos psicólogos que trabalham com a estratégia de redução de danos em usuários abusivos de álcool e drogas Diante disso inicialmente será apresentada uma perspectiva histórica da política de redução de danos destacando a contribuição da psicologia para modelo de tratamento que leva em consideração o contexto e a subjetividade do indivíduo compreendido neste trabalho como um ser biopsicossocial Nesse sentido como resultado advindo do levantamento bibliográfico destacase o percurso e as mudanças que a redução de danos vem enfrentando até os dias atuais bem como por inúmeras críticas em relação a sua implantação atuação e eficácia no contexto da saúde O comprometimento profissional do psicólogo mostrase de extrema relevância pois consiste em uma forma de incluir o posicionamento e responsabilidade pelo viés da ética E que o conhecimento psicológico seja uma ferramenta de forma construída delineada contribuindo para com a saúde Palavras Chaves Drogas Estratégia Prevenção e Políticas públicas ABSTRACT This article aims to contribute based on a bibliographical review of several authors that deal with the thematic to the problematization about the performance of the psychologists who work with the strategy of harm reduction in abusive users of alcohol and drugs Therefore a historical perspective of harm reduction policy will be presented highlighting the contribution of psychology to a treatment model that takes into account the context and subjectivity of the individual understood in this work as a biopsychosocial being In this sense as a result of the bibliographic survey the path and the changes that harm reduction has been facing up to the present day as well as numerous criticisms regarding its implementation performance and efficacy in the context of health stand out The professional commitment of the psychologist is extremely relevant because it consists of a way of including the positioning and responsibility for the bias of ethics And that psychological knowledge is a tool in a constructed way outlined contributing to cheers Key Words Drugs Strategy Prevention and Public Policy 1 Graduanda do Curso de Psicologia do Centro Universitário de Várzea Grande 2 Professor Mestre Orientador no Curso de Psicologia do Centro Universitário de Várzea Grande 2 1 INTRODUÇÃO Este artigo objetiva realizar uma revisão de literatura acerca da atuação dos psicólogos que trabalham com a estratégia de redução de danos em usuários que fazem uso abusivo de álcool e drogas Pretendese problematizar sobre as dificuldades que a estratégia de redução de danos vem enfrentando desde a sua implantação até os dias atuais bem como sobre o papel da política como principal movimento para inserção da redução de danos RD no Brasil Para isso foi realizado um levantamento bibliográfico com a finalidade de investigar sobre a importância do tema assim como sobre a relevância de realizar esse estudo Para a realização deste trabalho utilizamos a ferramenta metodológica de pesquisa bibliográfica Discorrendo sobre o que é revisão de literatura Koller Couto e Hohendorff 2014 mostra que a realização de revisão de literatura faz parte do cotidiano dos acadêmicos e pesquisadores uma vez que constantemente realizase esta elaboração de pesquisa para fins de trabalhos acadêmicos e projetos de pesquisa Optouse por realizar um levantamento dos anos de 2002 a 2017 de temáticas que versam sobre álcool drogas e dependência química Para realizar a organização dos artigos selecionados utilizouse uma planilha do programa Excel com as seguintes categorias número para identificação do artigo autores ano título do artigo objetivos As categorias foram analisadas de maneira qualitativa e os dados apresentados de maneira descritiva Os artigos encontrados foram lidos na integra os mesmos foram pesquisados nas bases de dados Scientific Eletronic Library Online SCIELO Portal capes Lilacs e biblioteca virtual em saúde BVS Ainda segundo Koller Co uto e Hohendorff 2014 revisão de literatura tem como objetivo a definição e delimitação do tema no qual vai ser realizado uma pesquisa qual será o seu foco em que consiste em estimativas críticas do material no qual já foi publicado Em outras palavras a revisão de literatura visa organizar integrar e avaliar estudos relevantes sobre determinado tema Para este trabalho após verificarse a quantidade de artigos científicos que apareceram com o tema no qual foi selecionado realizouse a escolha de quatro plataformas virtuais de pesquisa de artigos científicos delimitando também neste momento o ano de artigos publicados deste modo foi realizado um recorte dos últimos 15 anos de publicações que discorrem sobre o tema sendo assim realizou a opção de quatro pontos de procura para a pesquisa dos artigos com os seguintes descritores 3 Drogas Estratégias Prevenção e Políticas públicas totalizando uma busca 177 de artigos a primeira instância depois de realizado um filtro leitura e análise do material levantado além da fundamentação teórica foram focalizadas 15 artigos os quais falam sobre a temática para posterior análise Em todos os artigos lidos foi possível compreender que o modelo de redução de danos tem se tornado uma estratégia eficiente para trabalhar com os usuários de álcool e drogas e em nenhum dos artigos foi percebida guerra contra as drogas Os artigos encontrados trazem a importância sobre a atuação do psicólogo como profissional que atua nos programas e mostram que a prevenção realizada com os usuários é uma das que trazem mais resultados positivos Nesse contexto é necessário a discussão para um possível caminho a ser tomado pelos psicólogos que trabalham ou querem trabalhar nessa área O contato inicial se deu a partir da leitura sobre redução de danos há aproximadamente dois anos em uma aula da disciplina de saúde mental ofertada no sexto semestre do curso de psicologia no UNIVAG O interesse pessoal ocorreu através das experiências próximas no convívio de pessoas no cotidiano Um dos grandes problemas do uso abusivo de álcool e drogas é o surgimento dos danos secundários Os danos secundários são justamente as demandas advindas do consumo abusivo de álcool e drogas a exemplo temos a violência doenças que surgem a partir dos exageros a perda de emprego separações e etc Em sua definição a Redução de danos RD é uma política de saúde em que sua finalidade visa oferecer propostas que reduzam ou minimizem os impactos na esfera biológica social e econômica ligadas ao uso de drogas Toda a prática desenvolvida ne ste âmbito está fundamentada no respeito e no direito que o indivíduo tem para fazer uso das drogas ANDRADE et at apud POLLO E MOREIRA 2008 A redução de Danos é uma política de saúde que se propõe reduzir os prejuízos de natureza biológica social e econômica do uso de drogas pautada no respeito ao indivíduo e no seu direito de consumir drogas Sua proposta de redução de danos surgiu incentivando formas de auxílio cujo principal objetivo não era eliminar o uso de substâncias psicoativas mas melhorar o bemestar físico e social dos usuários minimizando os prejuízos causados pelo uso das substâncias A RD pode ser sintetizada em cinco princípios o 1º é uma alternativa de saúde pública ao modelo moral criminal e de doença o 2º reconhece a abstinência como resultado ideal mas aceita alternativas que reduzam os danos o 3º baseiase na defesa do dependente o 4º promove acesso a serviços 4 de baixa exigência ou seja serviços que acolhem usuários de forma mais tolerante como uma alternativa para as abordagens tradicionais de alta exigência aquelas que tipicamente exigem a abstinência total como prérequisito para a aceitação ou permanência do usuário e o 5º é baseado nos princípios do pragmatismo empático versus idealismo moralista MARISKA etal 2014 Vale ressaltar que os psicólogos atuantes com o método de redução de danos adotam uma abordagem multidisciplinar em que se possibilitam a interdependência e a natureza complementar das atividades de prevenção do uso indevido atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas repressão da produção não autorizada e do tráfico ilícito de drogas MARISKA etal 2014 Sendo assim é possível compreender que é de suma importância refletir sobre o compromisso social da psicologia e a possibilidade de um novo olhar para o sujeito salientando a possibilidade do impacto que o modelo de redução de danos causa no comportamento de pessoas que fazem usos de drogas abusivamente 2 O SURGIMENTO DA ESTRATÉGIA DE REDUÇÃO DE DANOS UM BREVE HISTÓRICO De acordo com Silveira 2008 Na história da humanidade é possível constatar por meio de registros arqueológicos que o homem em diversas culturas desde os primórdios já usavam drogas por motivos culturais ou para viabilizar a socialização e até mesmo para isolar os religiosos e neste último caso em específico eram usadas em eventos ritualísticos de passagem como por exemplo da fase da infância para a adulta a necessidade dessa transcendência em si lhes permitiria assimilar de uma melhor forma esse processo de transformação biológica psicológica e social Depreendese dessa forma que o homem já procurava formas de alterar os estados da consciência logo o uso ou abuso de drogas seja ela lícita ou ilícita não é uma ocorrência da modernidade ou da pós modernidade SILVEIRA 2008 Em nossa sociedade contemporânea grande parte desses ritos iniciáticos foram extintos Em contrapartida os conflitos diante das mudanças que ocorreram ao longo dos séculos tais como a obtenção de prazeres imediatos a intolerância à frustração e aos conflitos intrínsecos a existência humana nos aponta para uma busca do alívio ou uma espécie de anestesia diante dessas realidades Assim somos estimulados pela nossa 5 cultura ao consumismo se tornando uma tentativa de compreender o espaço da falha existente no ser humano SILVEIRA 2008 No século XVII com o advento da Revolução Industrial o contexto social refletia um crescimento populacional desordenado nas áreas urbanas sendo resultado da migração rural e com isso havia também um descontentamento com as condições de trabalho por parte da classe trabalhadora e as condições de infraestrutura desses espaços eram calamitosas FOUCAULT 1972 Nessa época as indústrias de bebida alcoólica a cada vez se aprimoraram na destilação do álcool tornando o consumo humano mais acessível o que resultou num alto consumo desta droga Posteriormente não só o álcool como outras drogas passaram a ser usadas com mais popularidade e com o aumento do consumo tanto de álcool quanto das drogas tornouse um problema considerado pelas autoridades vigentes como de ordem social As medidas de intervenções foram mediadas a princípio pela esfera religiosa por conseguinte a área biomédica e por último pela Justiça No entanto as intervenções realizadas não foram suficientes para erradicar o uso de álcool e das outras drogas o que perdurou ao longo dos séculos seguintes MACHADO E BOARINI 2003 Já no início do século XIX nos Estados Unidos pela primeira vez foram adotadas medidas de combate ao uso de drogas cuja finalidade era de declarar guerra ao uso de drogas por meio da abstinência A abstinência foi uma das providências que consistia na proibição visando à cura por meio dela Esse período ficou marcado pela estigmatização discriminação direitos violados e obviamente o fracasso pois o consumo em nada diminuía o fato foi que o consumo só aumentava a nível mundial MACHADO E BOARINI 2003 Paralelamente a isto os autores Nardi e Rigoni 2005 apontam que na década de 80 aconteceu um movimento social na Holanda envolvendo profissionais da Saúde que pela primeira vez foi utilizado o termo Redução de Danos O objetivo desse grupo de profissionais consistia em promover melhores condições de vida e de saúde dos usuários já que estavam preocupados com o aumento da transmissão de hepatite B e da AIDS doenças que se alastravam pelo mundo Diante desse panorama os profissionais utilizaram o método de redução como forma de minimizar o contágio reduzindo a troca das seringas dos usuários e incentivando o uso individual Segundo os autores essas medidas adotadas eram de cunho preventivo da doença enquanto que nos EUA o objetivo era de abstinência declarada a guerra contra as drogas contrária ao movimento de redução de danos proposta pela Holanda na época 6 Conforme Pollo e Moreira 2008 devido a contaminação pelo vírus HIV entre usuários de drogas injetáveis e seus parceiros a Holanda iniciou a execução da estratégia de RD com o objetivo de que fosse diminuída a fala sobre grupos de riscos e iniciado o cuidado com os comportamentos de risco ou atividades que podiam deixar os indivíduos mais vulneráveis exigindo de instâncias maiores ações mais concretas Com isso houve a presença de educadores trabalhando nas ruas procurando fazer contato com essa população e estabelecer vínculos de confiança visando à propagação de estratégias preventivas e oferecendo acesso aos serviços de saúde Ainda de acordo com Pollo e Moreira 2008 a implantação dos programas de trocas de seringas estabeleceram forte influência para a adoção de medidas públicas com a finalidade de controlar a epidemia mundial de AIDS Nessa perspectiva o programa se expandiu para vários países se consolidou como política pública na área da saúde e multiplicou as ações preventivas Depreendese então a partir Pollo e Moreira 2008 que O que podemos fazer é tentar evitar que as pessoas se envolvem com estas substâncias Para aqueles que já se envolveram podemos ajudálos a evitar que se tornem dependentes E para aqueles que já se tornaram dependentes cabe a nós oferecer os melhores meios para que possam abandonar a dependência Porém se apesar de todos os nossos esforços eles continuarem a consumir drogas temos a obrigação de orientálos para que o façam da maneira menos prejudicial possível na expectativa de que estejam atravessando apenas uma fase difícil Afinal eles não precisam de quem os julgue mas de quem os ajude E este é o nosso papel enquanto profissionais de saúde POLLO E MOREIRA 2008 P10 Segundo Mariska Padilha e Andrade 2014 a redução de danos antes de tornar se uma estratégia de prevenção era um movimento político pois na Holanda já se tinha abordando esta temática no decorrer da década de 1970 através de sua legislação sobre drogas e passou a adotar a troca de seringas de modo experimental em Amsterdã no ano de 1984 a fim de prevenir a transmissão do vírus da hepatite B Mariska Padilha e Andrade 2014 ainda informam que a Associação Internacional de Redução de Danos IHRA entende a RD como um conjunto de políticas programas e práticas que visam primeiramente reduzir as consequências adversas para a saúde resultantes do uso de drogas lícitas e ilícitas sem necessariamente que a pessoa reduza o seu consumo Os referidos autores ainda salientam que o princípio fundamental que orienta estas ações é o respeito à liberdade de escolha visto que muitos usuários não conseguem ou não querem deixar de usar drogas porém necessitam ter os riscos decorrentes do seu uso minimizados 7 A contextualização desta política tornase saliente porque permite compreender os feitios relevantes de políticas de saúde inclusivas tal como a de RD para a redução da fragilidade de determinadas populações em respeito aos direitos humanos à população de usuários de drogas seus familiares e próximos além de difundir e estimular ações desta natureza nas diversas totalidades De forma estratégica a expectativa histórica assume o compromisso de dar visibilidade aos atores e elucidar os cenários em que a RD se desenvolveu visando encorpar o protagonismo desta política que se propõe a abusar dos limites das práticas de saúde idealizadas nos intramuros das instituições indo ao encontro da realidade das ruas e das pessoas em situação de grandes infortúnios visando resgatar um pouco de cidadania para esta população tradicionalmente excluída e marginalizada pelas políticas públicas MARISKA PADILHA E ANDRADE 2014 Nessa fase a impossibilidade temporária ou não de um dependente abandonar o uso de drogas estava sendo aceita como fato Para esses autores partese do princípio que as drogas lícitas e ilícitas fazem parte desse mundo e trabalhase para minimizar seus efeitos danosos em vez de simplesmente ignorálos ou condenálos Como salientam Elias e Bastos 2011 estas medidas se traduzem em alternativas de uso que envolvam menores riscos e danos para os consumidores de tais substâncias e para a coletividade ou seja a proposta e o objetivo de tais ações não é fazer com que o sujeito pare necessariamente com o consumo mas sim reduzir os danos que o uso abusivo pode provocar além do risco de contrair doenças ELIAS e BASTOS 2011 p2 No Brasil a primeira experiência em redução de danos ocorreu na cidade de SantosSP em 1989 com a distribuição de seringas estéreis entre usuários de drogas injetáveis com o objetivo de conter a disseminação do HIVAIDS Desde então em muitos estados brasileiros tem sido desenvolvida ações nesta perspectiva sejam por instituições públicas ou por organizações da sociedade civil e com apoio sobretudo das diretrizes do Ministério da Saúde por meio dos Programas Nacionais de DSTAIDS Hepatites Virais e Saúde Mental Estas ações também se ampliaram para diferentes drogas e diferentes formas de uso de drogas saindo do foco do usuário de droga injetável ELIAS E BASTOS 2011 De acordo com Amarante 2007 o processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil apresenta vários caminhos e tendências com seus avanços e retrocessos na luta pela transformação da relação que a sociedade estabeleceu com o louco com a loucura e com 8 suas instituições sendo este uma construção iniciada há vários anos culminando no processo de desinstitucionalização pilar dessa política O debate sobre a reforma psiquiátrica no Brasil tem origem na década de 70 com o surgimento do movimento dos trabalhadores de saúde mental MTSM após uma greve de residentes e denúncias no Rio de Janeiro contra as más condições de trabalho bem como as péssimas condições das estruturas físicas dos hospitais psiquiátricos A grande repercussão deste movimento é considerada o dispositivo do processo de reforma psiquiátrica brasileira AMARANTE 2003 Amarante 2003 ainda destaca que a promulgação da lei 1021601 que dispõe sobre a proteção das pessoas acometidas de transtornos mentais conhecida como Lei da reforma psiquiátrica vem trazendo uma nova forma de cuidados a serem adotados em relação aos seus portadores bem como a reestruturação e autonomia dos mesmos De acordo com a Portaria Nº 1028 de 1º de julho de 2005 estabelecida pelo Ministério da Saúde as ações de redução de danos devem acontecer onde se tem a necessidade e interesse público que ocorra ou possa ocorrer o consumo de produtos substâncias ou drogas que causem dependência ou qualquer outro local onde se encontram os usuários como por exemplo cadeias públicas estabelecimentos educacionais destinados à internação de adolescentes hospitais psiquiátricos abrigos estabelecimentos destinados ao tratamento de usuários ou dependentes ou de quaisquer outras instituições que mantenham pessoas submetidas à privação ou à restrição da liberdade Com relação às estratégias usadas para se reduzir tais práticas Conte et al apud Forteski e Faria 2013 dizem que as mesmas são entendidas como a aplicação de práticas que proporcionam condições para a atuação responsável do usuário e o exercício de seu direito de escolha por meio da flexibilização dos métodos procurando alcançar na prática o princípio de universalidade proposto pelo Sistema Único de Saúde SUS Santos e Malheiros 2010 afirmam que em 2006 ocorreu uma mudança na lei e que a partir dessa mudança a estratégia de Redução de Danos passou a se inserir nas instituições através das políticas centrais de saúde do SUS como a Política Nacional de Atenção Básica a Política Nacional de Saúde Mental e a Política do Ministério da Saúde de Atenção Integral de Usuários de Álcool e outras Drogas Enquanto ponto político a oficialização do trabalho só aconteceu três anos depois com a aprovação do Projeto de Lei nº 16999 Brasil 1999 Somente em 2004 a RD 9 passou a ser vista como uma estratégia na Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e Outras Drogas lançada pelo Ministério Público Brasil 2006 informa que o Sistema Nacional Antidrogas SISNAD em a finalidade de articular organizar integrar e coordenar as atividades relacionadas à prevenção do uso indevido de álcool e outras drogas Mediante ao que foi discutido sobre a estratégia de RD bem como a proposta de um novo olhar para o indivíduo que faz uso de drogas abordaremos a seguir sobre a contribuição do profissional psicólogo enquanto integrante de uma equipe multidisciplinar na estratégia de RD 3 Os desafios da estratégia de redução de Danos e as políticas no Brasil Conforme Elias e Bastos 2011 a partir da década de 80 é que se começa a tentativa de implementação da redução de danos no Brasil Para compreender acerca da inserção da RD no Brasil é necessário antes de tudo contextualizar o papel dos movimentos sociais da saúde mental na reforma psiquiátrica brasileira enquanto movimento social e político Corroborando com os autores Forteski e Faria 2013 ao dizerem que a trajetória da RD no Brasil é permeada pela repressão e tratamento moral destacam ainda que apenas em 1995 foi possível realizar a troca de seringas legalmente primeiro em Salvador e só mais tarde em São Paulo Os autores Soares e Jacob apud CANOLETTI e SOARES 2001 afirmam que A história brasileira dos programas de prevenção de droga mostra nítida aderência a abordagem de guerra as drogas embora mais recentemente algumas práticas mostremse simpáticas as perspectivas da redução de riscosdanos agregandose em maior ou menor grau aos pressupostos as ideologias aos objetivos e as estratégias desse movimento SOARES e JACOB 2000 apud CANOLETTI e SOARES 2001 p119 Segundo Mariska etal 2014 em 1994 o Ministério da Saúde assumiu a RD como estratégia de saúde pública para a prevenção das DSTAIDS e hepatites entre usuários de drogas injetáveis por meio de uma cooperação com o Programa das Nações Unidas para o Controle Internacional de Drogas se constituindo como o primeiro projeto de RD apoiado por este organismo internacional 10 Até então a primeira experiência em RD ocorrida no Brasil havia sido interrompida por uma interdição judicial sendo reiniciada somente em 1995 na cidade de Salvador A partir destas iniciativas a RD se desenvolveu no Brasil através dos Programas ou Projetos de Redução de Danos PRD contemplando uma série de ações desenvolvidas em campo tais como distribuição de seringas atividades de informação educação e comunicação aconselhamento encaminhamento vacinação e outras ações preventivas MARISKA etal 2014 Conforme Carvalho e Dimenstein 2017 esse processo advém da crítica de diversos setores da sociedade que avaliam o atual sistema de proibição e controle de entorpecentes como ineficaz em conter os problemas sanitários e sociais associados ao uso de substâncias psicoativas SPAs fato que para alguns avaliadores produziu consequências piores do que o próprio uso abusivo de drogas O tratamento moral constituise como o princípio de ação das duas instituições Nele ocorreu a condenação do consumo de álcool e outras drogas e aumentou a responsabilização do sujeito tanto como causador da sua dependência química quanto pela mudança da sua situação de vida MARLATT GORDON 2012 apud CANOLETTI E SOARES 2001 Tais questões estão em consonância com as fragilidades das políticas de redução de danos no Brasil sendo essas a precarização do trabalho dos profissionais ausência ou dificuldade de monitoramento das ações desenvolvidas dificuldade de vincular os usuários a um tratamento continuado e problemas de financiamento que afetam a sustentabilidade dos serviços InglezDias etal apud CANOLETTI e SOARES 2001 Dessa maneira a união desses fatores conjuntamente com a ausência de espaços de atualização técnica e supervisão institucional acabam por contribuir para com a manutenção do discurso moral Nessa forma de compreender o tratamento de consumidores de álcool e drogas a experiência da recaída não é tolerada O próprio uso desse termo recaída indica um atravessamento entre o campo da saúde e a moral religiosa Poderiam ser utilizados outros termos para caracterizar essa nova ocasião de consumo de AD entretanto recair expõe não um problema de saúde mas antes disso é uma queda da alma que se deixaria levar pelas tentações e desviase do caminho da salvação ao retornar aos prazeres vazios das drogas Essas sempre associadas ao desejo de morte descuido com a saúde e criminalidade SOUZA CARVALHO 2012 11 4 A CONTRIBUIÇÃO DO PSICÓLOGO NA EFETIVAÇÃO DA ESTRATÉGIA DE REDUÇÃO DE DANOS Carvalho e Dimenstein 2017 relatam que o resgate da extensão de livrearbítrio em um campo historicamente apontado pela obrigação moral e influência dos procedimentos como base dos tratamentos à dependência química Os profissionais caracterizam a RD como uma das alternativas que podem compor suas estratégias de ação mas a consideram estratégia menos complexa e mais barata contrapondose aos tratamentos tradicionais que têm como objetivo a abstinência aos quais consideram superiores e que constituem a meta atual do serviço CARVALHO E DIMENSTEIN 2017 p653 De acordo com Amendola 2014 atualmente percebese que o movimento da psicologia enquanto ciência e profissão tem se envolvido nas questões mais latentes na sociedade contemporânea buscando contribuir para seu enfrentamento e solução por meio de estudos e pesquisas para construção de novos referenciais teóricos e novas alternativas de atuação capazes de dar conta da complexidade destas questões Esta busca se referenciar na necessidade de superar uma visão individualista e descontextualizada sobre o processo de constituição da subjetividade humana que acaba por levar a responsabilização do indivíduo pelo sofrimento decorrente de questões sociais e coletivas Em relação ao uso de drogas essa questão é marcada pelo social cultural e histórico não podendo ser reduzida meramente a uma patologia a ser tratada Entretanto segundo o CFP conselho federal de psicologia 2013 não se pode negar que o uso abusivo de álcool e outras drogas ao colocar a substância no controle da vida do indivíduo cria uma condição de assujeitamento e coisificação provocando intenso sofrimento psíquico o que gera a necessidade e impulsiona a busca por cuidado Para as autoras Mariska etal 2014 o princípio fundamental que orienta estas ações é o respeito a liberdade de escolha visto que muitos usuários não conseguem ou não querem deixar de usar drogas porém necessitam ter os riscos decorrentes do seu uso minimizados tais riscos como evitar o envolvimento com o uso de drogas evitar o envolvimento precoce evitar que o uso se torne abusivo ajudar a abandonar a dependência e orientar para o uso menos prejudicial possível 12 Ainda segundo as autoras Mariska etal 2014 a droga passa a não ser mais o foco mas sim a qualidade de vida que passa a ser priorizada Vigostki 1998 apud CFP 2013 informa que com base em uma concepção sóciohistórica vertente da Psicologia Social A compreensão do fenômeno psicológico passa pela análise das relações sociais entre sujeitos a partir de uma dimensão ética que engloba aspectos biológicos semióticos afetivos e históricosociais unindo e ao mesmo tempo diferenciando social e psicológico VIGOSTKI1998 apud CFP 2013 p63 Borloti e Machado 2013 trazem uma informação importante em que Brasil 2003 menciona que até pouco tempo atrás o tratamento de saúde em pacientes que apresentavam desordens pelo víeis do uso prejudicial de álcool e droga foi marcado pelo auxílio hospitalar médicopsiquiátrico Tal transformação se deu a uma revisão da assistência ao paciente da área da saúde mental incluindo os portadores de transtornos mentais devido ao uso prejudicial de álcool e outras drogas Conforme os respectivos autores salientam Na história da intervenção sobre a dependência química a visão moral sobre o dependente sustentou uma abordagem calcada na confrontação Rotulada como antiprofissional Miller Rollnick 2001 p 24 tal abordagem não considerava a motivação para a mudança de comportamento Atualmente isto se alterou apesar de ainda existirem ambientes de tratamento com abordagem moral e a motivação tornouse tema obrigatório nas discussões de quaisquer formas de intervenção Szupszynski Oliveira 2008 inclusive da internação compulsória atualmente tema de discussões polêmicas na mídia BORLOTI E MACHADO 2013 p279 Os autores Borloti e Machado 2013 ainda mencionam que ultimamente os planejadores das políticas públicas protegem a potência da intervenção nesses transtornos desde a atenção básica deve considerar os fatores psicológicos econômicos políticos eou culturais sejam predisponentes ou consequentes ao problema do uso prejudicial de drogas Propendendo provocar intervenções estabelecedoras que transformem a motivação para o uso danoso de álcool e de outras drogas foram desenvolvidas intervenções breves IBs estratégias basais aos fins da atenção básica Elas são aplicáveis a todos os tipos de pacientes que chegam à Unidade Básica de Saúde pois em geral envolvem o enfrentamento dos problemas de saúde em especial em doenças crônicas envolvem comportamentos de mudança de pensamentos e em sua motivação incluindo os encobertos de pensar e sentir sobre a mudança ROLLNICK MILLER BUTLER 2009 APUD BORLOTI E MACHADO 2013 P280 Como salientam os autores Borloti e Machado 2013 13 Intervenções breves como ferramentas de intervenção analítico comportamental na atenção básica com pessoas que fazem uso prejudicial de drogas com os pacientes crônicos muitas vezes algumas intervenções parecem não funcionar sobretudo aquelas marcadas pelo impulso de querer consertar o paciente fazendoo caminhar na direção que o terapeuta julga ser a melhor As IBs foram desenvolvidas para vencer essa tentação em especial com pacientes que apresentam transtornos devidos ao uso prejudicial de álcool e outras drogas BORLOTI E MACHADO 2013 p280 Os concernentes autores ainda relatam que as IBs foram idealizadas primeiramente como táticas terapêuticas em pacientes que fazem uso lesivo de álcool e drogas Borloti e Machado 2013 corroboram mencionando que assim como as IBs algumas estratégias de terapia para a dependência ou abuso de algumas drogas podem ser breves apesar de o Instituto Americano sobre Abuso de Droga NIDA 2009 preconizar que uma intervenção global sobre a dependência requer um longo prazo Portanto Os profissionais da atenção básica estão em uma posição única para identificar e intervir com os pacientes para quem o uso de substância é arriscado e prejudicial para a sua saúde e bemestar Além desses profissionais os profissionais da assistência social no Sistema único de Assistência Social SUAS do sistema judiciário e policial também irão estabelecer relacionamento interpessoal com esses pacientes Portanto a utilização da IB é ampliada a todos os profissionais da área da saúde e assistência abarcando o contingente de profissionais aptos após treinamento específico a aplicála de modo a aumentar a eficácia e a eficiência dos recursos de tratamento e intervenção no SUS e no SUAS e nos demais sistemas de funcionamento das políticas públicas BORLOTI E MACHADO 2013 p280 Assim é possível analisar a IB como uma figura de aconselhamento para a alteração de conduta não restritiva aos psicólogos apontada aos pacientes que fazem uso danoso de drogas e que tem os seis subsídios comuns a todas as abordagens do aconselhamento 1 dar feedback aos sentimentos e pensamentos do paciente 2 aceitá lo onde ele está naquele momento antes de lidar com a posição em que poderia ou deveria estar 3 manterse sigiloso e garantir a confidencialidade do que é ouvido 4 não empregar coerção e constrangimento forçando a participação do paciente 5 ser compreensivo à vida do paciente e ao mesmo tempo manterse separado dela e 6 estar consciente e sensível às mensagens da comunicação com ele BORLOTI E MACHADO 2013 p284 Diante disso segundo o CFP 2013 a política pública voltada para os usuários que fazem o uso e abusam de álcool e outras drogas deve levar em consideração a tríade igualdade diversidade e singularidade devendo ter uma diretriz integral e sistêmica de saúde integral porque considera o indivíduo como um todo integrado por diferentes 14 aspectos e sistêmica porque concebe estes aspectos como interdependentes e mutuamente determinantes de um processo único e total Como descrita pelo CFP 2013 a Psicologia se apropria das questões clínicas psicopatológicas subjetivas sociais e culturais ligadas às questões das drogas e participa desse trabalho tanto em aspecto macro na composição das equipes e projetos diversos como se aprofundando na busca de conhecimento específico ligado a seu núcleo de conhecimento ou seja às ferramentas e referenciais teóricos que a Psicologia tem para contribuir de modo efetivo para a atenção direta às pessoas com problemas ligados ao uso de drogas CFP 2009 apud CFP 2013 p73 De acordo com Santos e Malheiros 2010 à medida que a RD traz novos desafios para a clínica e efetiva novas tecnologias de cuidados a mesma pode ser considerada como uma estratégia da Reforma Psiquiátrica para pessoas que usam substâncias psicoativas Pautado no compromisso dos psicólogos com o social sua participação em políticas públicas é de extrema necessidade Centros como o CREPOP dá essa garantia de disseminar o conhecimento oferecer referências para atuação desse profissional bem como identificar estratégias de participação e promover interlocução da psicologia com espaço de formulação e gestão e execução em políticas públicas BRASIL 2003 Hoje a atuação de psicólogos no SUS e em CAPS vem sendo referência do engajamento dos profissionais de psicologia no Brasil Para que o modelo da RD seja eficaz na adesão dos usuários é preciso ser feito alguns ajustes tais como capacitação técnica na área das drogas e da AIDS acesso gratuito aos serviços sem longa fila de espera etc CFP 2013 p33 Ainda segundo CFP 2013 as atuais ações de recolhimentos compulsórias da população em situação de rua internação compulsória violam ao direitos humanos dos usuários os psicólogos por sua vez vem contribuir nas disculções de políticas no intuito de garantir a integralidade do cuidado e na intersetorialidade das ações para as pessoas que fazem uso de álcool e outras drogas através de produções científicos tanto para desmistificar quanto para questionar práticas autoritárias auxiliando em produção de práticas democráticas condizentes com a perspectiva do cuidado e não com a da tutela Como bem coloca o CFP 2013 Por muito tempo a única opção de atenção para usuários de álcool e outras drogas foi dada pelo paradigma da abstinência através das internações em grandes hospitais psiquiátricos e instituições asilares que marcaram a institucionalização do saber psiquiátrico no Brasil CFP 2013 p36 15 Assim como ocorreu uma mudança de paradigma no que se refere a atenção aos usuários de álcool e drogas uma vez que estes eram confrontados a abster do uso houve também uma mudança nas práticas que a psicologia exercia visto que seu surgimento se deu na atenção individual e que por muito tempo sua atuação se fez presente neste modelo de tratamento Atualmente compreendemos o papel social e o compromisso da psicologia que rompe com as práticas individualistas e que se engaja em promover cada vez mais o respeito e o compromisso com políticas públicas sociais CFP 2013 p37 16 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir dos autores discutidos neste artigo percebese que a relação do usuário de drogas com a violência possivelmente se dá pelo fator social não desconsiderando o sujeito como um ser subjetivo e em movimento necessitando assim ponderarmos a respeito das leis e tudo que o envolve ciente de que não sempre este sujeito deixará de abusar do uso de álcool e drogas O método de RD vem como uma tentativa de possibilitar pensarmos sobre as atuais políticas públicas e terapias já existentes de maneira a melhorar as mesmas com intuito de auxiliar na inserção e no respeito aos usuários e no convívio perante a sociedade Tal perspectiva corrobora com a reforma psiquiátrica brasileira e as políticas públicas possibilitando entender a forma como a estratégia denominada redução de danos é pensada hoje e a maneira como foi introduzida no Brasil Desta forma compreendese a reforma psiquiátrica como um movimento um processo histórico que se constituiu pela crítica ao paradigma psiquiátrico hegemônico e pelas práticas que o transformaram e superaram no Brasil ocorrendo a partir do final da década de 70 representando com isto uma crítica estrutural à instituição psiquiátrica Como processo histórico inserese numa totalidade complexa e dinâmica portanto também determinado nacionalmente pelo processo de redemocratização em curso no país a partir daquela época Nesse sentido o movimento de reforma psiquiátrica brasileira buscou a desconstrução da realidade manicomial para além da queda dos seus muros e a construção de novos equipamentos de saúde segundo novas bases epistemológicas políticas e sociais operando transformações de toda uma cultura que sustenta a violência a discriminação e o aprisionamento da loucura AMARANTE 2007 Assim podemos entender que a RD possui estratégias que podem ser desenvolvidas em diferentes campos e que visam à construção de possibilidades de vida a partir de ações que levem em consideração os processos de subjetivação Conforme pudemos observar a partir dos autores citados acima a RD teve diferentes formas de manifestações e não apenas um movimento a fez se consolidar enquanto estratégia de políticas públicas na saúde Percebese a partir dessa breve contextualização que os movimentos políticos sociais científicos e até moral tiveram fundamental importância e influência para a legislação e a execução da RD 17 Diante da importância do sujeito ao se expor ao uso abusivo de álcool e outras drogas é fundamental que a participação do profissional psicólogo seja efetiva e que o mesmo deverá saber que as políticas públicas já existentes são voltadas não somente para o coletivo mas também com a finalidade de atender a necessidade de um sujeito O psicólogo deve também se basear em uma concepção de subjetividade em constante processo de transformação Sendo assim compreendese que apesar de ainda haver certa resistência por parte da população no que tange a RD os benefícios são notórios Acreditase que campanhas educativas possam sensibilizar as pessoas no que diz respeito ao preconceito Significa pois apostar em políticas públicas que priorizem tais campanhas O que se pretende articular com isso é que existem outros fatores sociais que são prejudicados Alguns desses fatores a política do tráfico das drogas o capitalismo e tudo que este promove Quando apenas se pensa na redução dos riscos deixamos de pensar na outra parte da sociedade escravas do tráfico deixando de pensar no fator social na segregação na desigualdade social e também na possibilidade de que o número de usuários que cometem latrocínios tende a aumentar pois muitas vezes é apenas assim que a dicção pode ser sustentada Diante do estudo aqui realizado foi possível perceber que ainda há necessidade de se discutir a estratégia da RD no meio acadêmico assim como a inclusão de uma disciplina que contemple a temática como uma política pública na área da saúde mental levando nos refletir sobre qual a efetividade do trabalho dos profissionais psicólogos na estratégia da RD 18 REFERÊNCIAS AMENDOLA Marcia Ferreira Formação em Psicologia Demandas Sociais Contemporâneas e Ética uma Perspectiva Psicol cienc prof Brasília v 34 n 4 p 971983 Dec 2014 Available from httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1414 98932014000400971lngennrmiso access on 11 Sept 2017 httpdxdoiorg1015901982370001762013 AMARANTE P Saúde mental políticas e instituições programa de educação à distância Rio de Janeiro FIOTECFIOCRUZ EADFIOCRUZ 2003b vol 3 A SAÚDE MENTAL E ATENÇÃO PSICOSSOCIAL Amarante P Rio de Janeiro Editora Fiocruz 2007 BRASIL 2005 Disponível em httpbvsmssaudegovbrbvssaudelegisgm2005prt102801072005html Acesso em 19 Mai 2017 BRASIL 2006 Disponível em httpwwwplanaltogovbrccivil03ato2004 20062006leil11343htm Acesso em 08 Jun 2016 BORLOTI Eliseu Batista MACHADO Alex Roberto Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental Comportamento em foco 2 Organização de Carlos Eduardo Costa Carlos Renato Xavier Cançado Denis Roberto Zamignani Silvia Regina de Souza ArrabalGil Associação Brasileira de Psicologia e Medicina Comportamental São Paulo ABPMC 2013 CANOLETTI Bianca SOARES Cássia Baldini Programas de prevenção ao consumo de drogas no Brasil uma análise da produção científica de 1991 a 2001 Interface Botucatu Botucatu v 9 n 16 p 115129 Feb 2005 Available from httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1414 32832005000100010lngennrmiso access on 19 May 2016 httpdxdoiorg101590S141432832005000100010 CARVALHO Bruno DIMENSTEIN Magda Análise do discurso sobre redução de danos num CAPSad III e em uma comunidade terapêutica Temas psicol Ribeirão Preto v 25 n 2 p 647660 jun 2017 Disponível em httppepsicbvsaludorgscielophpscriptsciarttextpidS1413 389X2017000200013lngptnrmiso acessos em 22 set 2017 httpdxdoiorg109788TP2017213 ELIAS Lucília de Almeida BASTOS Francisco Inacio Saúde pública redução de danos e a prevenção das infecções de transmissão sexual e sanguínea revisão dos principais conceitos e sua implementação no Brasil Ciênc saúde coletiva Rio de Janeiro v 16 n 12 p 47214730 Dec 2011 Available from httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1413 81232011001300021lngennrmiso access on 19 May 2016 httpdxdoiorg101590S141381232011001300021 19 FORTESKI Rosina FARIA Jeovane Gomes de Estratégias de Redução de Danos Um exercício de Equidade e Cidadania na Atenção a Usuário de Drogas Revista de Saúde Pública de Santa Catarina v 6 n 2 p 7891 2013Disponível em httpespsaudescgovbrsistemasrevistaindexphpinicioarticleview16921 Acesso em 22 Maio 2017 FOUCAULT M A História da Loucura na Idade Clássica In A grande internação São Paulo Ed Perspectiva 1972 KOLLER S H COUTO M C P de P HOHENDORFF J V Org Manual de produção científica Porto Alegre Penso 2014 192p Série Métodos de Pesquisa MALISKA Isabel Cristina Alves PADILHA Maria Itayra ANDRADE Selma Regina Redução de Danos em FlorianópolisSC uma política estratégica de prevenção e cuidado à saúde Revista Eletrônica de Enfermagem v 16 n 1 p 1708 2014 MACHADO Letícia Vier BOARINI Maria Lúcia Políticas sobre drogas no Brasil a estratégia de redução de danos Psicol cienc prof Brasília v 33 n 3 p 580 595 2013 Disponivel em httpwwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS1414 98932013000300006lngennrmiso Acessado em 15 Out 2016 httpdxdoiorg101590S141498932013000300006 MINISTÉRIO DA JUSTIÇA Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas Módulo 5 Atenção integral na rede de saúde 7ª Edição Brasília 2014 Disponível em fileCUsersaluno03UNIVAGLABS022DownloadsSUP7Mod5pdf NARDI Henrique Caetano RIGONI Rafaela de Quadros Marginalidade ou cidadania A rede discursiva que configura o trabalho dos redutores de danos Psicolestud v 10 n 2 p 27382 2005 Disponível em httpwwwscielobrpdfpev10n2v10n2a14 NIEL MRedução de Danos para Drogas Fumadas In NIEL D X SILVEIRA Orgs Drogas e Redução de Danos uma cartilha para profissionais de saúde São Paulo2008 POLLOA M A MOREIRA F G Aspectos históricos da Redução de Danos In M NIEL D X SILVEIRA Orgs Drogas e Redução de Danos uma cartilha para profissionais de saúde São Paulo2008 SANTOS A M S MALHEIRO L Redução de danos uma estratégia construída para além dos muros institucionais In NERY FILHO A VALÉRIO A L R Org Módulo para capacitação dos profissionais do projeto consultório de rua Brasília DF SENAD Salvador CETAD 2010 p 4953 Referências Técnicas para a Atuação de Psicólogasos em Políticas Públicas de Álcool e Outras Drogas Conselho Federal de Psicologia EiXO 3 A ATUAÇÃO DOS PSICÓLOGOS EIXO 4 DESAFIOS PARA UMA PRÁTICA PSICOLÓGICA EMANCIPADORA Brasília CFP 2013